Anais Endis 2017 - volume 1

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ANAIS DO ENCONTRO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE

MÍDIA E DEMOCRACIA volume 1 | número 2 | agosto de 2017


ANAIS DO ENCONTRO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Francisco Hudson Pereira da Silva REVISÃO

Os autores ANAIS DO ENCONTRO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE é uma publicação anual do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Estratégias de Comunicação (NEPEC), vinculado à Universidade Federal do Piauí. CORPO EDITORIAL

Francisco Laerte Juvêncio Magalhães Francisco Hudson Pereira da Silva Pedro Júlio Santos de Oliveira Thalyta Cristine Arrais Furtado Thiago Ramos de Melo e-mail: nepec.ufpi@gmail.com CONSELHO CIENTÍFICO

Francisco Laerte Juvêncio Magalhães Lívia Fernanda Nery Viviane de Melo Resende João Benvindo Ribamar Jr. Cássio Miranda Maraísa Lopes AUTOR CORPORATIVO

Editora Universidade Federal do Piauí Campus Universitário Ministro Petrônio Portella, s/n - Ininga, Teresina - PI, 64049-550 ISSN 2525-6033


SUMÁRIO

Apresentação  6 Linguagem, Cultura e Identidade O uso da concordância nominal por alunos do Ensino Médio de São Luís – MA  13 Eduardo Adriano Santos O significado da arte na educação  22 Ângelo Roberto Silva Barros Tudo nosso, nada deles: uma reflexão sobre as construções narrativas geradas a partir do funk carioca e pagode baiano  35 Guilherme Santos e Ana Paula Lima Aulas sobre cultura: o sentido das leis 10.639/03 e 11.645/08 e seus efeitos na constituição identitária dos estudantes  44 Eulia Rejane Silva The lion, the witch and the wardrobe by C. S. Lewis: an illustration of christianity in contemporary literature  52 Paula Costa dos Santos e Renata Cristina da Cunha Barnabé, burocrata, marajá ou servidor?: as identidades do funcionário público na história  61 Maxhemyliano Silva Marques A (des)construção da(s) identidade(s) no aplicativo ―nametests.com‖ da rede social Facebook  69 Israel Ferreira Santos O racionalismo de Horácio: reflexões do pensamento renascentista na personagem shakespeariana  74 Marimacio Amorim de Souza Junior e Renata Cristina da Cunha A histeria vampírica na Inglaterra do século XXI: o mito do vampiro na Literatura Inglesa  83 Maria Jukelle de Lima Sousa e Renata Cristina da Cunha O jogo de estratégias e táticas no jornalismo: negociações de Revestrés sobre as identidades culturais piauienses  90 Mayara Sousa Ferreira


Análise da influência de Ana Bolena na criação do anglicanismo na Inglaterra  97 Ana Carolina Ferreira Soares, Maria Clara da Silva Nascimento e Renata Cristina da Cunha Por uma ciência nativa: o discurso científico na perspectiva dos indigenas  104 Priscila da Silva Nascimento e Adan R. Moreira Martins O discurso melancólico no eu de Bento Santiago, de Machado de Assis, e de Orientación de los gatos, de Julio Cortázar  112 Cristiane de Mesquita Alves e José Guilherme de Oliveira Castro A formação identitária e cultural do sujeito surdo a partir das implicações do bilinguismo e da surdez  120 Maria das Graças Santos Mourão, Francisca das Chagas Gomes da Silva e Bruna Rodrigues da Silva Neres Discurso e identidade: uma análise da cobertura da Rádio CBN na conquista da medalha olímpica da judoca Rafaela Silva  128 Rute Dâmaris da Silva Freitas ―Não vai poder ir no Maracanã‖: futebol, identidade(s) e modernidade  137 Joaquim Kayk Breno Conrado e Mayra Izaura de Moura A recepção midiática do forró contemporâneo em Teresina/PI e seus contextos mediacionais  147 Janete de Páscoa Rodrigues, Fábio Soares da Costa e Isabela Naira Barbosa Rêgo Gothic Fiction in Videogames: reflections about Resident Evil 6 and the its Survival Horror Genre1  156 Lukas Rodrigues dos Santos e Renata Cristina da Cunha Um livro de concreto: as condições de produção, o interdiscurso e a ideologia em um muro na periferia de Teresina  168 Anyelly Gardênia Costa Silva e João Benvindo de Moura A contribuição do ensino sociológico para as relações sociais  177 Lorenna Ferreira Santos A noção de autor e autoria nas telenovelas globais: uma análise bakhtiniana  183 Nina Nunes Rodrigues Cunha ―Arca das Letras‖ - produção de sentidos sobre a política de incentivo à leitura voltada para o rural: uma pesquisa em curso no rural teresinense  192 Milane Batista da Silva e Maria Dione Carvalho de Moraes Pixo – o grito da (av.) Boa Esperança: a comunicação como reivindicação de direitos  202 Sarah Fontenelle Santos e Glaudson Lima Gomes A objetificação da mulher na publicidade e o discurso presente na contribuição para a desigualdade de gênero  211 Socorro Nayra Vieira Silva e Sousa A importância da transposição didática na formação docente  219 Yêda Juliana Sousa Pinheiro


O último pedaço de ilusão: Flannery O‘connor, a identidade e o real  227 Victor Bruno

Gênero e Subjetividades Uma mulher sem escolhas: a índia Domingas na visão de seu filho Nael em Dois irmãos, de Miltom Hatoum  238 Jéssica Borges de Castro, Vanessa de Carvalho Santos e Wander Nunes Frota Dissidências do pensamento e do desejo: discursos disciplinares e construções subjetivas da juventude teresinense dos anos 70  245 Laura Lene Lima Brandão O reinado de Elizabeth I e a sua contribuição para a transformação da Inglaterra em uma grande potência  255 Samara Carolina Sousa Nascimento, Kelly Sales Oliveira e Renata Cristina da Cunha Violência contra mulher na mídia: estupros coletivos em sites piauienses  262 Michelly Santos de Carvalho, Marciana Mimeiro Viana, Poliana de Morais Sampaio e Tatiane Zeferino Gabrielle Bonheur Chanel e a moda sem gênero da comtemporaneidade  272 Ramilton Talmo Vaz dos Santos e Simone Ferreira de Albuquerque



APRESENTAÇÃO

O II Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade foi promovido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Estratégias da Comunicação (NEPEC - PI), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí, com apoio do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Análise do Discurso (NEPAD) e aconteceu entre os dias 26 e 28 de abril de 2017, no Centro de Ciências da Educação – CCE situado no campus Petrônio Portela - UFPI, na cidade de Teresina, Piauí. O evento teve como temática Mídia e Democracia, visando estimular o debate acadêmico científico entre estudantes, professores, pesquisadores e profissionais de comunicação e áreas afins. Dessa forma, pretendeu ampliar as discussões acerca dos estudos da linguagem a partir da difusão de trabalhos relacionados a essa temática, buscando, assim, inserir o Piauí no circuito de eventos relacionados à pesquisa sobre discursos. O II ENDIS abriu portas para pesquisadores das áreas de Comunicação, Estudos da Linguagem, Filosofia, História, Antropologia, Sociologia que atuam no campo de estudos sobre discurso, identidade e subjetividade. O evento contou, na edição de 2017, com seis eixos temáticos (grupos de trabalhos), além de oferecer minicursos, oficinas e palestras, que oportunizaram ao participante a produção de conhecimento interdisciplinar e a troca de experiência acadêmicas e culturais. Assim, os Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade apresenta o resultado das pesquisas apresentadas em forma de comunicação, resultado das investigações de pesquisadores e alunos, brasileiros e estrangeiros, que atuam nas áreas acima mencionadas, versando em pesquisa teórica e/ou empírica que trataram da temática do evento. Corpo Editorial

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O USO DA CONCORDÂNCIA DE NÚMERO NO SINTAGMA NOMINAL POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO DE SÃO LUÍS-MA1 Eduardo Adriano Santos2 RESUMO As variedades linguísticas brasileiras são inúmeras. Este trabalho tem a intenção de mostrar uma das temáticas que caracteriza parte dessas variantes, a concordância de número no Sintagma Nominal (SN). A pesquisa dota-se de aspectos da fala do maranhense por alunos de uma escola do Ensino Médio, da cidade de São Luís, relacionados ao uso das marcas redundantes de plural. Em teorias variacionistas da língua, há um esboço do que esses estudantes falam. Tenta-se entender se esse perfil de ludovicense utiliza a normapadrão, regida pelas gramáticas, ou se dá preferência à norma não padrão, o que prioriza o uso dinâmico da língua para suprimir tais formas pluralizadas, de acordo com a dicotomia entre o escrito e o falado. Também é mostrado como e quais são as metodologias essenciais para a exposição pedagógica dos alunos à utilização real do fenômeno da concordância nominal de número, a depender do contexto social em que se inserem, tendo em vista uma divisão entre os gêneros masculino e feminino. Logo, neste trabalho, analisam-se como os alunos fazem a concordância dos artigos (determinantes) com os substantivos em sua composição espontânea de comunicação, por meio da fala. Palavras-chave: Concordância de Número; Ensino Médio; Variação Linguística.

Introdução

O

artigo trata do uso das concordâncias de número no Sintagma Nominal (SN) relacionado às variedades linguísticas do Brasil, sobretudo a maranhense, analisando dados que alunos de uma escola do Ensino Médio de São Luís expuseram. Tal fenômeno variacionista é relevante à compreensão do que esses estudantes, num aspecto sociolinguístico entre escolaridade e gênero, falam, sejam usando as marcas de plural de forma condizente com as gramáticas (norma-padrão) ou até mesmo da forma que dinamiza e suprime essas redundâncias (norma não padrão). Num contexto objetivo e científico, o trabalho é importante para estabelecer a relação entre o que é considerado estigma e o que os estudantes consideram como normal pelo que falam, analisando, também, se há policiamento ao que dizem (linguagem verbal na modalidade oral) ou se a fala soa de forma espontânea sem as interferências das normativas gramaticais. Tendo Scherre e Bagno como referências variacionistas da língua, caracterizou-se o uso das concordâncias de número como fator atribuído à fala. A partir de então, apresenta-se a dicotomia entre o padrão e não padrão desses aspectos, usando Bechara como fundamentação teórica à forma canônica das marcas de plural. Como forma de delimitar a temática da área de pesquisa, buscaram-se estudos que relacionassem a concordância de número do substantivo (determinado3) com o artigo (determinante). Ainda sob a ótica do uso das concordâncias de número no SN, analisa-se a variedade linguística presente no Maranhão de acordo com estudos de Ramos e Bezerra no que diz respeito à catalogação de dados ao mapeamento do que se fala no estado, fazendo, em parte, uma diacronia nos estudos que compreendem essa temática. Nota-se, portanto, o comportamento do falante maranhense desde as primeiras análises nas perspectivas de Frei Francisco de Nossa Senhora dos Praseres Maranhão, no século XIX, quando desconsiderava o português típico da região. 1

Trabalho apresentado no GT.01 - Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017; 2 Graduando do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: edriansantos2008@gmail.com. 3 Visto em Bechara (2002) como elemento de associação pelo que o determinante impõe – redundância das marcas de plural colocadas pelo artigo em relação ao substantivo. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 13


Assim, baseando-se em pesquisas de caráter exploratório e bibliográfico, o intuito do artigo é relacionar os resultados a trabalhos já concluídos e fazer uma ponte entre o que é deixado de fora (estigma) e o que é aproveitado no emprego corriqueiro da fala. Tais informações ajudam a compreender as melhores metodologias de exposição do aluno para a compreensão do trânsito, na modalidade oral, entre a norma culta e coloquial, apresentadas por Castilho, Travaglia e Bertoni-Ricardo, o que salienta o papel da escola à contribuição de uma fala contextualizada socialmente. O uso das concordâncias de número como fator de variação linguística O Brasil, com suas características geográficas continentais, possui uma grande diversidade, nos mais variados aspectos, que contribuem para o enriquecimento da identidade nacional dos brasileiros, sejam elas ecológicas, culturais e, não menos importante, linguísticas, que definem as características próprias de cada região deste país. […] a verdade é que no Brasil, embora a língua falada pela grande maioria seja o português, esse português apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade , não só por causa da grande extensão territorial do país – que gera as diferenças regionais, bastante conhecidas e também vítimas, algumas delas de muito preconceito -, mas principalmente por causa da trágica injustiça social […]. (BAGNO, 2006, p.16)

Como já foi explanado por Bagno (2006) na citação acima, outro fator, além da extensa territorialidade do Brasil, que influencia a variação linguística em nosso país está intimamente atrelado às condições sociais as quais os falantes são submetidos. Essas situações se misturam ao enredo da sociolinguística – grau de escolarização, gênero, status econômico, grupos etários, redes sociais e mercado de trabalho. Nessa perspectiva, avaliam-se as concordâncias como um fator que contribui para a variação linguística do português falado no Brasil. Procura-se, então, uma definição para a concordância de número, sendo, de acordo com Scherre (2005), com conceito fundamentado em aspectos gramáticos, a flexionalização de elementos cujas marcas de plural devem tornar-se evidentes, seja nominal ou verbal. Vê-se que […] todos os elementos flexionáveis de uma construção nominal (e/ou verbal) plural devem portar marcas explícitas de plural por ser o português uma língua que exibe os mecanismos de concordância de número, quer nominal, quer verbal (Bechara, 1973: 295310; Rocha Lima, 1983: 273: 353-378; Cunha & Cintra, 1985: 263-267; 485-505). (SCHERRE, 2005, p.16)

Como forma de comprovar o uso da concordância de número, Scherre (2005) compara tal uso no inglês e no francês. Principalmente na Língua Inglesa, no que diz respeito à fala e a escrita, essas marcas flexionadas não aparecem e no francês, cuja língua é da mesma raiz do português, quanto a fala, o uso da concordância é inexpressível. Percebe-se que as concordâncias de número são usadas de formas diferentes, sem que possam sofrer algum tipo de classificação qualitativa, tanto no inglês como no francês. A obrigatoriedade dessas marcas na Língua Portuguesa pode ser vista em: […] é usual na nossa tradição gramatical a afirmação de que a concordância de número plural é de natureza obrigatória, ou seja, a marca explícita de plural deve estar presente em todos os elementos determinantes flexionáveis do sintagma nominal sempre que o núcleo nominal estiver no plural; deve também estar presente no verbo sempre que o sujeito estiver no plural; deve também estar presentes nos predicativos quando o sujeito for plural. (SCHERRE, 2005, p.19)

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Contrapondo-se à citação, nota-se que a variação linguística está incutida nos fenômenos de concordâncias de número e que essas regras não são seguidas à risca pela maioria dos falantes. Eles, por sua vez, não usam os mecanismos canônicos de plural à reprodução da fala, mas suprimem as redundâncias, construindo diversas formas de plural (SCHERRE, 2005). Indo ao encontro de Scherre, Bagno (2006) associa o uso formal das concordâncias nominais a marcas redundantes de plural e o uso não padrão dessas marcas acarreta numa variedade que economiza, dinamiza e não envaidecesse o uso da língua. Para comprovar tal fenômeno, Bagno (2006, p.51) utiliza dois exemplos, expostos a seguir:  

―Quero te dar a linda flor amarela que brotou no meu jardim.‖ ―Quero te dar as lindas flores amarelas que brotaram no meu jardim.‖

Para destacar os dois exemplos, informando ―[...] que se trata de mais de uma flor, o PP (Português Padrão) precisa de cinco marcas de plural, que modificam várias classes de palavras: artigo, adjetivo, verbo...‖ (BAGNO, 2006, p.52). Como forma de dinamizar a comunicação através da fala, Bagno (2006) e Scherre (2005) afirmam que as marcas de plural, na variedade não padrão, são identificadas, na maioria dos casos, por apenas um elemento, sendo que, geralmente, os artigos (determinantes) cumprem o papel de pluralizar os determinados, que não se flexionam. Novamente, toma-se o exemplo de Bagno (2006) como base: 

―Quero te dar as lindas flores amarelas que brotaram no meu jardim.‖

É notório que as marcas de redundância estão evidentes, pois as classes de palavras variaram de acordo com o número. Levando o exemplo à realidade da variação linguística popular, embasado no pressuposto de que o artigo pode tornar-se a única marca de plural de um enunciado, certamente teríamos a seguinte expressão: 

Quero te dar as linda flor amarela que brotou no meu jardim.

Com o exemplo, notamos que as concordâncias foram suprimidas, dando o espaço a apenas um elemento (artigo) que pudesse indicar a pluralização das classes gramaticais que são identificadas pelos substantivos, adjetivos e verbos presentes na frase modelo. Assim, percebe-se que as características do uso das concordâncias de número, no que diz respeito à fala, são subjacentes, sobretudo, à variedade não padrão da língua, tornando-se um importante fator à teoria variacionista, de forma que a ―[...] concordância de número do português brasileiro faz parte da nossa gramática intuitiva [...]‖ (SCHERRE, 2005, p.24). Concordância de número no sintagma nominal – relação dos artigos com os substantivos As concordâncias nominais de número ocorrem pela relação das marcas de plural das palavras determinantes (artigos, adjetivos, numerais...) com as palavras determinadas (substantivos ou pronomes). É notório que as marcas de plural no SN usadas pelos falantes dão-se, sobretudo, relação do artigo e/ou numeral com o substantivo. Diz-se concordância nominal aquela que se verifica em gênero e número entre o adjetivo e o pronome (adjetivo), o artigo, o numeral ou o particípio (palavras determinantes) e o

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substantivo ou pronome (palavras determinados) a que se referem: [...]. (BECHARA, 2002, p.543)

Dependendo do grupo de falantes, pode-se perceber um alto grau de variabilidade linguística. Guiando-se pelas gramáticas normativas, Bechara (2002) diz que a concordância nominal de número acontece pela relação dos artigos com os substantivos a que se referem. Pressupõe-se que tal ideologia diz que um suposto falante padronizado diria: os gatos, as árvores, os dias, enquanto aquele detentor da norma não padrão falaria: os gato, as árvore, os dia. Tais supressões das redundâncias de plural fazem parte do cotidiano do falante, haja vista que a dinamicidade que a fala propõe é essencial à evolução da linguística. Assim, percebe-se, de acordo com Fiorin (2013), que a língua (conjunto de convenções adquiridas socialmente) concretiza-se por meio da fala e que sua evolução é inevitável. [...] a variação na concordância de número no português brasileiro faz parte da nossa gramática intuitiva..., e que leituras e interpretações dos mesmos fatos podem ser função do papel social das pessoas que o produzem [...]. (SCHERRE, 2005, p.24)

O uso padrão ou não padrão das concordâncias nominais, embasados em premissas gramaticais, ultrapassam os fundamentos normativos da Língua Portuguesa. Portanto, uma leitura individual dos comportamentos da fala está ligada ao estabelecimento linguístico do indivíduo em seu meio cultural. A variedade linguística do Maranhão sob a ótica do uso das concordâncias de número no sintagma nominal O português brasileiro, assim como as demais línguas naturais do mundo, é sedimentado por variações. A depender da organização social de cada região, uma marca linguística destaca-se em sua caracterização. No caso do Maranhão, a supressão das marcas de plural é analisada a partir de estudos já concebidos da área como forma de sistematizar o material linguístico do estado. Enfocado no pressuposto gramatical do uso formal das concordâncias de número, analisa-se a contribuição sociolinguística entre o gênero masculino e feminino alusiva à escolarização básica, caracterizada pelo Ensino Médio. Tais análises são embasadas naquilo que é falado, seja seguindo estruturas padrões ou fazendo o uso dinâmico da fala para a não utilização das redundâncias presentes nas marcas de plural. Acompanhando os aspectos evolutivos da língua das demais regiões do país, sobretudo a nordestina, o Maranhão, de acordo com estudos preliminares no âmbito do uso das concordâncias de número no SN, encaixase no quadro que limita as marcas de plural. Em outras palavras, isso faz com que o número seja indicado apenas pelo item determinante, neste caso, o artigo, tornando o substantivo – objeto de estudo da pesquisa – invariável, de acordo com Marroquim (apud RAMOS e BEZERRA, 2010, p.14). Dessa forma, como afirma Ramos e Bezerra (2010), fundamentados em Amaral (1976, p. 70-71), o sinal de pluralidade (-s) pode desaparecer. ―Como sinal de pluralidade, desaparece: os pau, os ermão, as frô(r) [...] e que a pluralidade dos nomes é indicada, geralmente, pelos determinativos: os rei, duas dama, certas hora...‖. Na citação, pode-se perceber a relação íntima entre os artigos e substantivos no que concerne ao português não padrão, cuja intenção é suprimir as marcas de plural no cotidiano das pessoas. Ainda se tratando de Ramos e Bezerra (2010), é exposto neste artigo um dos primeiros trabalhos em que se aborda o português falado no Maranhão de que se tem notícia, feito por Frei Francisco de Nossa Senhora dos Praseres Maranhão, relatando os costumes falados pelos maranhenses durante o século XIX. Tais costumes são exemplificados em ―[...] registro(s) de realizações como: das tua cezão; duas faca e três cuié di prata embruiadas nuas fôia; dois ôio; muitas lembrança [...]‖ (RAMOS; BEZERRA, 2010, p.15). Como se nota no enunciado, outros fenômenos linguísticos, além do que esta produção científica propõe, aparecem no

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exemplo, mas não serão aqui analisados, pois não são propostos pela temática central (uso das concordâncias de número no Sintagma Nominal). Há a percepção de que a forma não padronizada do português brasileiro falado no Maranhão já tem antecedentes relativos à colonização do estado, no qual aqueles (índios, negros e mestiços) que foram submetidos a um novo mundo linguístico adaptaram sua realidade de linguagem ao que era imposto pelos brancos, o que tornou o português dos maranhenses aos colonizadores: ―[...] rústicos, segundo o autor, não falavam o bom português.‖ (RAMOS; BEZERRA, 2010, p.15). A dinamicidade é um fator que caracteriza e influencia a naturalidade da língua, destacada pelo falar dos maranhenses ao expressam suas condições culturais, políticas, econômicas e sociais. Dessa forma, o uso das concordâncias de número no SN pode ser avaliado como forma de interação natural da fala por alunos do Ensino Médio de São Luís, a fim de manter uma comunicação pragmática de acordo com suas situações cotidianas. Ensino padrão e a prática não padrão das concordâncias de número no sintagma nominal por alunos do Ensino Médio Pensando na dicotomia entre o padrão e o não padrão, Bechara (2002) generaliza um conceito de concordância. É afirmado que a palavra determinante deve adaptar-se ao número da palavra determinada. Isso aponta que o lado não padrão da língua, ligado à fala, não está incutido nos moldes de ensino/aprendizagem dos alunos, de forma que o uso padronizado da comunicação, esquecendo-se da naturalidade linguística, é o único fator levado em conta no processo de aquisição da língua falada. O que se pode perceber é que a fala deve estar presente no processo de ensino da gramática – concordâncias de número no Sintagma Nominal -, ou seja, ela tem que ser analisada como um fator de contribuição e melhoramento no que diz respeito à qualidade educacional. Castilho (2009) justifica o emprego dos fenômenos linguísticos falados pelos alunos como forma de dinamizar a língua, inserida em realidades padrões ou não padrões. Via de regra o aluno não procede de um meio letrado. [...] O ponto de partida para a reflexão gramatical será o conhecimento linguístico de que os alunos dispõem ao chegar à escola: a conversação. [...] Ver considerado na escola seu modo próprio de falar, ser sensibilizado para a aceitação para a variedade linguística que flui da boca do outro, saber escolher a variedade adequada a cada situação – estes são os ideais da formação linguística do cidadão numa sociedade democrática. (CASTILHO, 2009, p. 21)

A fala de Castilho propõe que o aluno deve ser analisado como um todo, dando atenção especial à fala concebida no meio familiar. Ela deve ser tida como ponto de partida ao incremento das metodologias normativas da gramática. E ainda conclui: ―[...] Com o tempo o aluno entenderá que para cada situação se requer uma variedade linguística, e será assim iniciado o padrão culto, caso já não tenha trazido de casa.‖ (CASTILHO, 2009, p.21). O autor caracteriza o ensino gramatical como essencial ao aluno, mas não abre mão daquilo que o meio cultural disponibiliza ao estudante, propondo um equilíbrio entre o padrão e o não padrão. A intenção é possibilitar o trânsito do estudante entre a variedade culta e coloquial, tendo como referências as situações sociais do cotidiano de cada indivíduo. Para que haja a adaptação às várias formas de expressão da fala, de acordo com os grupos sociais, as pessoas devem ter certo grau de escolarização qualitativa, pois sua contribuição é essencial à aquisição da norma culta da língua falada. ―Os anos de escolarização de um indivíduo e a qualidade das escolas que frequentou também tem influência em seu repertório sociolinguístico [...]‖ (BERTONI-RICARDO, 2004, p.48). Dessa forma, encontramos dois vieses para o uso padrão e não padrão das concordâncias nominais de número. Um relacionado ao monitoramento da fala e o outro se relaciona à forma não monitorada. Bertoni-

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Ricardo (2004) afirma que essas vertentes são chamadas de Contínuo de Monitoração Estilística – consiste em adequar-se ao ambiente, interlocutor e ao tópico da conversa – e que sua função está diretamente ligada ao uso das concordâncias nominais de número pelos brasileiros no que diz respeito à fala. Nessa perspectiva, a autora ressalva que o gênero, como fator sociolinguístico, também é subjacente à variação linguística, a fim de ser caracterizado pela distinção do falar entre homens e mulheres, ou seja, ―[...] essas variações entre os repertórios feminino e masculino são relacionadas aos papéis sociais que..., são culturalmente condicionados‖ (BERTONI-RICARDO, 2004, p.47), tendo um teor monitorado ou não da fala. Em contextos não monitorados, no Brasil, as marcas redundantes são suprimidas, fazendo com que apenas o primeiro elemento do sintagma seja flexionado, a fim de expressar a pluralização do que é falado. Em outras palavras, Bertoni-Ricardo (2004) afirma que a forma não padrão já está tão natural que a mesma pode até ser encontrada em modalidades monitoradas da fala e da escrita. Por estar tão generalizada na língua, é certo que nossos alunos vão empregá-la em seus textos escritos que, por sua natureza, exigem a regra da concordância prevista na gramática normativa. Por isso, nós, professores, temos que ficar muito atentos ao uso da regra de concordância nominal na produção de nossos alunos e na nossa própria produção. (BERTONI-RICARDO, 2004, p. 89)

Logo, percebemos o papel do professor enquanto norteador dos fenômenos de fala dos alunos. Ainda em Bertoni-Ricardo (2004), há o resultado de uma pesquisa que caracteriza o professor em quatro pontos: (I) há a identificação dos erros de leitura, mas o professor não distingue diferenças dialetais de erros de decodificação, tratando-os como se fossem a mesma coisa; (II) há dois possíveis motivos que fazem com que o professor não identifique as regras não padrão: ou ele não as tem em seu repertório ou ele faz uso de tais regras, desconsiderando-as como erros; (III) percebendo as regras não padrão, o professor prefere não reprimir o aluno para não constrangê-lo; e (IV) há a percepção da regra não padrão, mas não a intervenção do professor que, em seguida, logo apresenta ao aluno um modelo padrão. Em síntese, observamos o quão importante é a relação professor/aluno para que a forma natural da fala empregada pelo estudante, com relação ao uso das concordâncias nominais de número, seja aplicada de acordo com as variantes sociais, ou seja, as concordâncias devem ser postas no contexto adequado ao grupo social relacionado à situação sociointeracionista no qual o indivíduo se insere. Dessa forma, [...] no português brasileiro, tendemos a flexionar o primeiro elemento do sintagma nominal e a não marcar os demais. Esta é uma tendência que se explica porque geralmente dispensamos elementos redundantes na comunicação [...]. (BERTONIRICARDO, 2004, p.89).

Assim, notamos que a não exposição do aluno à variedade culta, haja vista que ele já está inserido na forma coloquial, fará com que seu conhecimento linguístico fique medíocre, de forma que sua fala será transcrita de modo não convencional às gramáticas, flexionando apenas o primeiro elemento, tendo como exemplo: ―os amigo, meus brinquedo, aqueles homi, os meu tio‖ (BERTONI-RICARDO 2004, p.89). Metodologia Este trabalho teve uma vertente metodológica pautada na coleta de dados relacionada ao uso das concordâncias nominais, atreladas às marcas de plural, por alunos do Ensino Médio de uma escola pública da cidade de São Luís, capital do Maranhão. Ao todo, foram ouvidos seis estudantes, sendo que esse grupo foi dividido entre três homens e três mulheres, havendo a distinção das séries escolares. Os entrevistados foram identificados por numerações, distinguindo o sexo à coleta dos dados, haja vista que a sociolinguística imprime uma forma diferenciada entre a fala dos homens e das mulheres. 18 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A metodologia das entrevistas foi embasada em uma vertente metodológica usada por Bezerra e Ramos (2010), ambos contribuintes à tessitura do livro O Português Falado no Maranhão: múltiplos olhares , através da temática: O processo de formação de plural em itens nominais na fala maranhense. A metodologia usada pelos dois autores, assim como será usada com o tema deste artigo, foi fundamentada em Scherre (1988), que propõe o cruzamento de uma escala de ―variáveis morfofonêmicos de formação de plural e tonicidade‖ com oito níveis à obtenção dos dados. Esses níveis são representados por: [...] (I) itens com plural duplo (oxítono ou paroxítono) – ovo/ovos; (II) itens terminados em -l (oxítono ou paroxítono) – casal/casais; (III) itens terminados em -r (oxítono ou paroxítono) – maior/maiores; (IV) itens terminados em -ão (oxítono) – avião/aviões; (V) itens terminados em -s (oxítono) – país/países; (VI) regular oxítono – café/cafés; (VII) regular paroxítono – verde/verdes e (VIII) regular proparoxítono – médico/médicos. (Apud RAMOS E BEZERRA, 2010, p.18)

Com base na escala, imagens que exprimem marcas de plural foram apresentadas aos alunos, de forma que as análises dos dados ficassem assim distribuídas (dos oito níveis, apenas quatro foram analisados):    

Itens com plural duplo: copo/copos Itens terminados em -l: anel/anéis Itens terminados em -r: ventilador/ventiladores Itens terminados em -ão: pão/pães

A estrutura do trabalho deu-se, além das entrevistas, em caráter bibliográfico. Por fim, de acordo com as respostas dos entrevistados, embasadas nos preceitos do uso das concordâncias de número no Sintagma Nominal, foi analisada a relação entre os artigos com os substantivos. Dados Partindo da ideologia de que elementos sociolinguísticos da escolaridade e do gênero contribuem à teoria variacionista da língua no que diz respeito à fala em relação ao uso das concordâncias de número no Sintagma Nominal, apresentam-se as análises dos seguintes dados: Itens com plural duplo: copo/copos Concernindo-se à escolaridade e ao gênero, dos seis entrevistados, quatro utilizaram a forma padrão da análise em questão, que tem por objetivo a repetição do termo com o acréscimo do morfema (-s), que indica marcação de plural, de acordo com que o artigo determina. Pela ordem das entrevistas, o informante I (feminino) e informante II (masculino) - segunda série -, o informante III (feminino) - primeira série – e o informante VI (feminino) - terceira série - usaram a forma padrão, gramaticalmente falando, do plural duplo, dizendo: ―o copo/os copos‖. Àqueles que não flexionaram o substantivo ao artigo, temos o seguinte perfil: informante IV (masculino) - primeira série - e informante V (masculino) – terceira série -, que suprimiram a redundância da marca de plural do determinado (substantivo) ao determinante (artigo). Pela entrevista, os informantes IV e V disseram: ―o copo/os copo‖. Assim, percebe-se que 100% das mulheres entrevistadas mantiveram o monitoramento da fala, mesmo estando em séries distintas, e apenas um, dos três entrevistados masculinos, prezou pela norma-padrão das expressões sugeridas. Itens com plural terminados em -l: anel/anéis Havendo a inserção do morfema (-s) para determinar a marcação de plural em itens terminados em l, de forma que haja uma mudança silábica à indicação das redundâncias de número, a distinção entre o uso Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 19


padrão e não padrão da fala em relação às concordâncias de número fica bem explícito. Nesse ponto de vista, notou-se que 100% dos entrevistados usaram a forma canônica ao marcarem a redundância do substantivo com o artigo, de acordo com a pluralidade. Portando, itens terminados em -l ―[...] favorecem a inserção das marcas de plural [...]‖ (BEZERRA; RAMOS, 2010, p.21) adequadas ao contexto padrão prescritas pelas gramáticas. Itens terminados em -r: ventilador/ventiladores Entre os entrevistados, os informantes I, II, III e IV usaram a forma padrão da concordância, ou seja, duas mulheres e dois homens falaram ―o ventilador/os ventiladores‖, pelo que foi sugerido. Esse grupo faz parte das duas primeiras séries. Com a parcial dessa análise, observou-se que os dois últimos informantes, o V e o VI, ambos da terceira série (um homem e uma mulher), suprimiram a marcação de plural que deveria existir na expressão ―os ventiladores‖, de acordo com as regras vigentes na língua padrão. Os últimos informantes falaram: ―o ventilador/os ventilador‖. Percebe-se, neste caso, que há uma inversão, pois, tendo como pressuposto a ideia de que o aumento do nível de escolaridade caracteriza a utilização de forma progressiva da norma-padrão aos falantes, vê-se que há algum problema no que diz respeito ao ensino desses alunos, pois da primeira à terceira série não deve haver tal regresso, como é visto em Bertoni-Ricardo (2004) e Castilho (2011) com a proposta de apresentação da variante culta e coloquial aos estudantes, a fim de promovê-los a pessoas capazes de adequar sua fala ao contexto que estão inseridos. Itens terminados em -ão: pão/pães Ainda no que diz respeito ao gênero e escolaridade, de acordo com este tópico, há a seguinte distribuição na análise dos dados: novamente, 100% das mulheres usaram a norma-padrão para se referirem à expressão, mesmo tendo níveis diferenciados de escolaridade, sendo que a informante I cursa a segunda série, a informante III cursa a primeira série e a informante VI cursa a terceira série, ou seja, a característica que mais pesa neste quesito é o fenômeno sociolinguístico do gênero, no qual as mulheres mantêm o monitoramento à reprodução da fala, usando a expressão ―o pão/os pães‖. E apenas um, dos três homens entrevistados, prezou pela padronização deste elemento, o informante II (segunda série). O informante IV (primeira série) e o informante V (terceira série) usaram a forma não convencional à regra do uso das concordâncias de número no SN, sendo que a quarta pessoa entrevistada criou uma forma diferente de pluralizar tal expressão, quem em vez de falar ―os pães‖ falou ―os pões‖. Este caso pode ser ligado ao fator escolaridade em relação a sociolinguística, haja vista que o caso peculiar de pluralização pode estar relacionado ao fato do aluno apresentar um baixo nível, no Ensino Médio, de escolaridade. Já o informante V, que também fugiu à regra gramaticalmente prestigiada, é aluno da terceira série, ou seja, pressupunha-se que ele deveria, por causa do grau de escolaridade, apresentar, ao falar, a norma-padrão referida às concordâncias de número, no qual a expressão ―os pão‖, falada por ele, poderia ser substituída por ―os pães‖. Logo, nessa vertente teórica, nota-se, ainda, que as metodologias de ensino da referente escola não suprem com as necessidades de formação dos alunos, provavelmente não o expondo à norma culta. Considerações finais Vimos que a análise do uso das concordâncias de número no Sintagma Nominal por alunos do Ensino Médio, da cidade de São Luís, está atrelada ao contexto social ao qual cada indivíduo se insere, ou seja, o nível de monitoramento do mesmo é subjacente à sua gramática intuitiva, sendo inerente a todos os comportamentos de fala das pessoas. Nota-se, assim, que o Maranhão passa pelo processo de evolução da língua, já que ela é mutável, estando em constante transformação, caracterizando-se, principalmente, pelos fenômenos da fala. Nessa perspectiva, devemos tomar o aluno como ser autônomo na construção dos sentidos, ou seja, o ambiente cultural, incluindo o familiar, tem que estar intimamente ligado ao contexto escolar. Mantê-lo na 20 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


escola, de forma inclusiva, social e linguisticamente falando, é atrai-lo aos padrões cultos que as gramáticas propõem, pois assim ele terá dois caminhos linguísticos ao livre uso, respeitando a regra de contextualização da linguagem. O que foi abordado neste trabalho é apenas uma parte ínfima de todo um conteúdo além das normatividades gramaticais, em relação ao que é dito na linguagem verbal (modalidade oral) pelas pessoas, mas passa despercebido ou, quando notado, é alvo do preconceito linguístico. Referências BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolinguística. 15. ed – São Paulo: Contexto, 2006. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz?. 42. ed. – São Paulo: Loyola, 2006. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. rev. e ampl. – Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. CASTILHO, Ataliba. A língua falada no ensino de português. 7. ed., 1ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2009. FIORIN, José. Linguística? Que é isso?. Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP). Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil. São Paulo: Contexto, 2013. LEMOS, D. M.; DÓRIA, T.P.L. A variação da concordância nominal de número no contexto escolar. Cadernos do CNLF, Vol. XVI, Nº 04, t.2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/xvi_cnlf/ tomo_2/134.pdf>. Acesso em: 23 de outubro de 2014. MARTINS, E. R.; MARAN, N. M. G. Possibilidades do trato da variação linguística em sala de aula: uma experiência com os princípios da sociolinguística educacional. Boa Vista: ed. Revista SELL. UERR/UFRR, v. 4, nº1, 2014. Disponível em: http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=1&ved=0CB8QFjAA&url=http%3A%2F %2Fwww.uftm.edu.br%2Frevistaeletronica%2Findex.php%2Fsell%2Farticle%2Fdownload%2F474%2F619&ei=XftpVID6 Mc2MyAT6m4KIBg&usg=AFQjCNH3iDb7wMqyb0cadVOWmkwge0AFug&sig2=ndAYdFflY1sDgN_8GD9xCA&bvm=bv.7914224 6,d.aWw>. Acessado em: 23 de outubro de 2014. RAMOS, Conceição; BEZERRA, José. O português falado no Maranhão: múltiplos olhares. São Luís: EDUFMA, 2010. p. 1326. SCHERRE, M. M. P. Aspectos da concordância de número no português do Brasil. Revista Internacional de Língua Portuguesa (RILP) - Norma e Variação do Português. Associação das Universidades de Língua Portuguesa. 12:37-49. dez. de 1994. Disponível em: http://www.ai.mit.edu/projects/dm/bp/scherre94-number.pdf>. Acessado em: 24 de outubro de 2014. SCHERRE, M. M. P. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. SCHERRE, M. M. P. & NARO, A. J. Sobre a concordância de número no português falado do Brasil. In Ruffino, Giovanni (org.) Dialettologia, geolinguistica, sociolinguistica.(Atti del XXI Congresso Internazionale di Linguistica e Filologia Romanza). TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. 14. ed. – São Paulo: Cortez, 2009.

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O SIGNIFICADO DA ARTE NA EDUCAÇÃO Ângelo Roberto Silva Barros1

RESUMO Quando falamos em arte e sua inclusão na educação escolar, estamos pensando em seus vários conceitos e significados, o que implica necessariamente a explicitação, ainda que breve, do que se entende por arte, e por sua dimensão como um dos componentes curriculares. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº. 9394, de 20 de dezembro de 1996, tornou seu ensino obrigatório em toda a educação básica no Brasil, mas o grande desafio é garantir que isto se faça de maneira a aprimorar a formação artística e estética dos educandos. Ao desenvolver-se o ensino e a aprendizagem da arte na escola surgem importantes questões referentes ao seu processo pedagógico e educacional. Uma delas diz respeito ao posicionamento que assumimos sobre os modos de encaminhar esse trabalho de acordo com os princípios e os objetivos de um processo educativo que atenda as necessidades de educação, dos educandos e da cultura artística na Pós-modernidade. Destarte, se pretendemos contribuir para a formação de cidadãos conhecedores da área de conhecimento arte e para a melhoria da qualidade da educação escolar artística e estética, é preciso que organizemos nossas propostas de tal modo que a arte se mostre significativa na vida das crianças e jovens. Estas são proposições que pretendemos anunciar em linhas gerais neste estudo com a finalidade de subsidiar as reflexões e experiências dos educadores e arte/educador. Palavras-chave: Arte; Educação; Pós-Modernidade.

―A arte interpreta o mundo e dá forma ao informe, de modo que, ao sermos educados pela arte, descobrimos facetas ignoradas dos objetos e dos seres que nos cercam‖ (Tzvetan Todorov). ―A linguagem [verbal] e a ciência abreviam a realidade; a arte intensifica-a. a linguagem [verbal] e a ciência dependem do mesmo processo de abstração; a arte pode ser descrita como um contínuo processo de concreção‖ (Ernst Cassirer). ―É como se a obra de arte também, à sua maneira, fosse feita para ser ‗experimentada‘ estesicamente. Não somente, aliás, com o olhar, mas por todos os sentidos. [...] O que, se traduzirmos na nossa linguagem, equivale a um claro convite a recordar que, na procura do nosso prazer (ou na do sentido – é quase a mesma coisa), não se pode separar o componente estésico do estético, e vice-versa. Por essas razões, reciprocamente, trata-se de analisar sua articulação mútua enquanto níveis prática e teoricamente indissociáveis no desenrolar de qualquer processo de apreensão do sentido‖ (Eric Landowski).

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s reflexões supracitadas do filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov, do filósofo alemão de origem judaica Ernst Cassirer e do semiólogo e sociólogo francês Eric Landowski me impulsionam a (re)pensar a seguinte questão: ―Que importância é essa que está sendo atribuída à arte e faz com que ela tenha também um espaço na educação em geral e escolar?‖. Primeiramente, é a importância devida à função indispensável que a arte ocupa na vida das pessoas e na sociedade desde os primórdios da civilização, o que a torna um dos fatores essenciais de humanização. É, pois, fundamental – de acordo com Arnold Hauser (1961; 1984; 1998), Ernest Fischer (1971), Ernst Hans Josef Gombrich (1986; 2008) e Louis Hautecoer (1962) – entendermos que a arte se constitui de modos específicos de manifestação da atividade criativa do ser humano 1

Graduado em Educação Artística pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e Especialista em Psicologia da Educação pela Faculdade de Educação Montenegro (FAEM). Arte/educador e Pesquisador em artes e culturas visuais. São Luís / MA. Endereço eletrônico: angelo_roberto_barros@hotmail.com. 22 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


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, ao interagir com o mundo em que vive, ao se conhecer, e ao conhecê-lo. Em outras palavras, o valor da arte está em ser um meio pelo qual o ser humano expressa, representa e comunica conhecimentos e experiências. Todos nós sabemos que os seres da natureza, bem como os objetos culturalmente produzidos, despertam em nós diversas emoções e sentimentos, agradáveis ou não aos nossos sentidos e ao nosso entendimento. Logo ao nascer, passamos a viver em um mundo que já tem uma história social de produções culturais que contribuem para a estruturação de nosso senso estético. Desde a infância, tanto as crianças como nós, professores e pais, interagimos com as manifestações culturais de nosso meio. Aprendemos a demonstrar nosso prazer e desprazer, gosto e rejeição, por imagens, objetos, sons, ruídos, músicas, falas, movimentos, histórias, jogos e informações, com os quais interagimos e nos comunicamos na vida cotidiana (por meio de conversas, livros ilustrados, vídeos, rádio, televisão, cinema, internet, revistas, feira, exposição, cartaz, vitrine, ruas etc.). Gradativamente, damos forma e sentido às nossas maneiras de admirar, de gostar, de julgar, de apreciar – e também de fazer – as diferentes manifestações culturais de nosso grupo social e, dentre elas, as obras de arte. É por isso que mesmo sem perceber, educamo-nos esteticamente, no convívio com as pessoas e as situações da vida cotidiana (FERRAZ e FUSARI, 2009, p. 19).

A escola, como espaço/tempo de ensino e aprendizagem 3 sistemático e intencional, é, por excelência, um dos locais onde os educandos têm a oportunidade de estabelecer vínculos entre os conhecimentos social e culturalmente construídos. Por esse motivo, é também o lugar e o momento em que se pode verificar e estudar os modos de produção e difusão da arte na própria comunidade, região, país, ou na sociedade em geral. Destarte, o aprendizado da arte vai incidir sobre a elaboração de formas de expressão e comunicação artística (pelos educandos e autores/artistas) e o domínio de noções sobre a arte derivativa da cultura universal. Ao conhecer a arte produzida em diversos locais, por diferentes pessoas, classes sociais e períodos históricos e as outras produções do campo artístico (artesanato, objetos, design, audiovisual etc.), os educandos ampliam as suas concepções de arte e aprendem a dar sentido a ela. Desse convívio decorrem, portanto, conhecimentos que desenvolvem o seu repertório cultural, mas, acima de tudo possibilitam-lhes a apropriação crítica da arte, aprender a identificar, respeitar e valorizar as produções artísticas, e compreender que existe uma poética individual dos autores/artistas e diferentes modalidades de arte, tanto erudita como populares 4. Nas palavras de Maria Heloísa Corrêa de Toledo Ferraz e Maria Felisminda de Rezende Fusari (2009, p. 20-22, grifos das autoras):

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Penso que é sempre bom (re)lembrar que a atividade criativa é inerente ao ser humano por suas possibilidades de múltiplas combinações de ideias, emoções e produções nas diversas áreas de conhecimento (ciência, técnica, tecnologia, arte). No caso da arte, a atividade criativa apresenta singularidades no que diz respeito a essas combinações, as quais precisam ser conhecidas quando a estudamos ou a produzimos. A atividade criativa deve estar presente em todos os cursos e estudos escolares, mas nos de Arte ela deve ser vivenciada e estudada da maneira específica à arte. 3 Mui recentemente cheguei a compreensão de que método de ensino e processo de aprendizagem não se confundem, ainda de uso corriqueiro, a expressão ―processo ensino-aprendizagem‖ transmite a ideia desses processos diferentes como se fossem duas faces da mesma moeda. Entretanto, eles são dois processos diferentes e correspondem a dois sujeitos diferentes. Porém, atualmente se aceita a ideia de que o educando pode e costuma utilizar as informações do educador de modo muito diferente que ele pensa. 4 Conforme Ana Mae Barbosa (1998, p.14-15): ―No que diz respeito à cultura local pode-se constatar que apenas o nível erudito desta cultura é admitido na escola. As culturas de classes sociais baixas continuam a ser ignoradas pelas instituições educacionais, mesmo pelos que estão envolvidos na educação destas classes. Nós aprendemos com Paulo Freire a rejeitar a segregação cultural na educação. As décadas de luta para salvar os oprimidos da ignorância sobre eles próprios nos ensinam que uma educação libertária terá sucesso só quando os participantes no processo educacional forem capazes de identificar seu ego cultural e se orgulharem dele. Isto não significa a defesa de guetos culturais, nem de excluir a cultura erudita das classes baixas. Todas as classes têm o direito de acesso aos códigos da cultura erudita porque esses são os códigos dominantes – os códigos do poder. É necessário conhecê-lo, ser versado neles, mais tais códigos continuarão a ser um conhecimento exterior a não ser que o indivíduo tenha dominado as referências culturais da própria classe social, a porta de entrada para a assimilação do ‗outro‘. A mobilidade social depende da interrelação entre os códigos culturas das diferentes classes sociais‖. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 23


As manifestações artísticas participam da ambiência e de nossa vida tanto de maneira direta como indiretamente. Elas são reveladas em nosso cotidiano como, por exemplo, uma canção, uma obra arquitetônica ou uma escultura localizada no espaço urbano. Elas são concretizadas pelos artistas que as produziram, mas só vão se completar com a participação das pessoas que se relacionam e estabelecem um diálogo com elas. As obras artísticas são construções poéticas por meio das quais os artistas expressam ideias, sentimentos e emoções. Resultam do pensar, do sentir e do fazer, que por sua vez são mobilizados pela maternidade da obra, pelo domínio de técnicas, e os significados pessoais e culturais. São, por isso, constituídas de um conjunto de procedimentos mentais, materiais e culturais. Podem concretizar-se em imagens visuais, sonoras, verbais, corporais, ou são apenas manifestações das próprias linguagens, como expressão e representação de algo.

As imagens (obras de arte ou não) não são obrigatoriamente a representação do real, mas sim um signo construído pela ideação, ou por estímulos do exterior, e que agregam formas, apresentadas por meio de uma determinada linguagem artística, como a pintura, a gravura, a música, a poesia, a fotografia, o teatro, a dança. Isso fica bem evidente com a pintura modernista e pós-modernista 5 que rompem com as regras da imitação e da perspectiva, e que são denominadas pelo crítico de arte, pintor e filósofo italiano Gillo Dorfles (2001, p.100) como ―la arte de la libertad absoluta, del gesto creador ‖. O mundo natural, social e cultural é traduzido pela expressão dos sentimentos e ideias do artista, como faz o autodidata Joel DuMara, um novo talento que vem se destacando no cenário maranhense com seus marcantes e inconfundíveis relevos e suas pinceladas em contornos carregados ao mesmo tempo de fluidez e hesitação, bem como as cores vibrantes, conforme podemos ver em obras como ―A desconhecida de brinco azul‖ (Figura 1), ―A onda e a vela‖ (Figura 2) e ―Rosa marcada‖ (Figura 3), todas do ano de 2015.

Figura 1: ―A desconhecida de brinco azul‖ (2015), de Joel DuMara. Acrílica sobre tela. Dimensões: 120cm x 70cm. Coleção Particular Joel DuMara (Foto reprodução).

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É de notar que não é pacífica a discussão sobre os termos ou expressões modernidade e pós-modernidade. Desde a aceitação da expressão pós-modernidade à sua rejeição, existem todas as possibilidades. Perry Anderson (1999), Zygmunt Bauman (1998), Enrique Gervilla (1993), Anthony Giddens (1991; 1994; 2002), Jacob Guinsburg e Ana Mae Barbosa (2005); David Harvey (1994), Gilles Lipovetsky (1983; 1994; 1998), Jean-François Lyotard (1989), Jair Ferreira dos Santos (1986) e Alain Touraine (1994) são alguns de uma gama de autores que conflituam entre si sobre o conceito ―pós-modernidade‖. 24 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Figura 02: ―A onda e a vela‖ (2015), de Joel DuMara. Acrílica sobre tela. Dimensões: 120cm x 100cm. Coleção Particular Joel DuMara (Foto reprodução).

Figura 3: ―Rosa marcada‖, de Joel DuMara. Acrílica sobre tela. Dimensões: 80cm x 70cm. Coleção Particular Joel DuMara (Foto reprodução).

Atualmente, o que se entende por arte e por obra de arte é muito amplo – já diríamos André Richard (1989), Giulio Carlos Argan (1988; 1992; 2003), Herschel Browning Chipp (1996), Jorge Coli (1981), Lorenzo Mammì (2012), Michael Archer (2001), Michael Parson (1992; 1996) e Umberto Eco (1986; 2003). Entre as manifestações que têm marcado nossa época, os exemplos da pop art, da arte conceitual, da instalação ou da performance, mostram que o trabalho do artista e sua técnica são novas conquistas que incluem ideias e ações. Os autores ou artistas, com suas diferentes origens, histórias e experiências pessoais, procuram imaginar e inventar ―formas novas‖, com sensibilidade, para representar e expressar o mundo interior e sua relação com a natureza e o cotidiano cultural. Fazer isso em diversas linguagens artísticas, técnicas, materiais e em diferentes situações e complexidade de pensamento e emoção. E, quando estão se expressando ou representando com sensibilidade e imaginação o mundo da natureza e da cultura, os autores de trabalhos artísticos também agem e reagem diante das pessoas e do próprio mundo social. Com isso, criam novas realidades. É a realidade da obra, que é revelada no ato criador. Esses autores podem ser tanto as pessoas que se dedicam profissionalmente à produção de arte – os artistas – como aqueles que fazem trabalhos artísticos como atividade cultural e educativa – os estudantes, por exemplo. Nesse caso, ao fazer seus trabalhos de arte, o educando também desenvolve ações mobilizadas por suas ideias, percepções, sensações, sentimentos, emoções, que vão se concretizar nas atividades desenvolvidas com seus colegas e o professor. Ao produzir seus próprios trabalhos e acompanhar os de seus companheiros, de outros povos e culturas, ele tem condições de identificar, reconhecer e valorizar as diferenças de produções culturais e artísticas, e até de ter novos entendimentos de arte (FERRAZ e FUSARI, 2009, p. 22, grifos das autoras).

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Por sua vez, o público, isto é, as pessoas que estabelecem relações com os produtos artísticos/as obras de arte, as espectadoras, as ouvintes, as apreciadoras, são pessoas situadas em um determinado tempo e espaço sociocultural, e também participam ativamente delas através de seus diferentes modos e níveis de saber admirar, gostar, ler e julgar culturalmente aprendidos, afirma Maria Inês Hamann Peixoto (2003). Para o filósofo americano Richard Shusterman (1998), que estuda a relação entre as obras, objetos de arte e público, tudo depende da maneira como as obras são apresentadas, apropriadas e utilizadas, o que o leva a propor uma reflexão crítica sobre os modos de recepção. Para ele, a arte, apesar de seu poder de expressão, permanece muda sem a presença de uma recepção inteligente, com a qual possa dialogar, porém é necessária uma preparação para se empregarem diferentes visões ou discursos. Por outro lado, a estrutura de uma obra, sua produção e recepção incidem e são afetadas pela distribuição. A comunicação/divulgação entre o autor e seu público acontece durante as exposições, concertos, apresentações, nos museus, feiras, meios impressos, gravações etc., mas as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC‘s) têm permitido outros sistemas de veiculação das obras que abrem novos intercâmbios de gravações, filmagens, internet, páginas web 6. Como existem diferentes modos e patamares de sensibilidade, assim como formas de se relacionar com as produções culturais e especialmente as artísticas (que se dão pessoal ou virtualmente), a tendência é produzir-se modificações nesse processo de recepção. A recepção, porém, depende da experiência e familiaridade que se tem com os meios de comunicação. Por este motivo, o diálogo crescente com a arte, visitando museus, participando de exposições, consertos, assistindo a espetáculos, como a possibilidade de ampliação dos conhecimentos do educando e a oportunidade aprendizagens culturais 7. É, portanto, nessa abrangência que a arte deve compor os conteúdos de estudos nas aulas de Arte na escola e mobilizar as atividades que diversifiquem e ampliem a formação artística e estética dos educandos. As vivências emotivas e cognitivas tanto de fazeres quanto de análises do processo artístico nas modalidades Artes Visuais, Música, Teatro, Dança, Artes Audiovisuais devem, pois, abordar os componentes ―autores/artistas, produtos artísticos/ obra de arte, modos de comunicação/divulgação, público/audiência/espectadores‖ e suas maneiras de interagir na sociedade. Essas intermediações do processo artístico estão contidas no Quadro-Síntese I 8 que apresento a seguir, onde se destacam os diversos componentes desse processo e que, como alegam Maria Heloísa Corrêa de Toledo Ferraz e Maria Felisminda de Rezende Fusari, no decorrer dos estudos escolares em Arte não devem ser, por sua vez, esquecidos:

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Da digitação à navegação, passando pela memória, pela programação, pelo software, a realidade virtual, a multimídia, a interatividade, o correio eletrônico etc., os livros As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informação (1993), O que é virtual? (1996), A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço (1998) e A Cibercultura (1999), escritos por Pierre Lévy, são claros, completos e acessíveis para os não especialistas compreenderem as novas tecnologias, seu uso e suas questões. 7 Em vários estados e municípios brasileiros é possível encontrarmos em Museus, Teatros, Bibliotecas, Casas de Cultura, arte/educadores que desenvolvem projetos com o público em geral (visitas guiadas) e, em especial, com escolas. 8 Quadro-síntese elaborado, em 1988, por Maria Heloísa Corrêa de Toledo Ferraz e Maria Felisminda de Rezende Fusari, a partir das seguintes publicações: BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 2002; PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001 e; CANCLINI, Néstor Garcia. A socialização da arte: teoria e prática na América Latina. São Paulo: Cultrix, 1984. 26 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


QUADRO-SÍNTESE I: COMPONENTES QUE SE ARTICULAM NO PROCESSO ARTÍSTICO OS AUTORES/ARTISTAS São pessoas situadas em um contexto sociocultural; são criadores (profissionais ou não) de produtos ou obras artísticas a partir da história de seus modos e patamares de sensibilidade e entendimento da arte. OS PRODUTOS ARTÍSTICOS/OBRAS DE ARTE São trabalhos resultantes de um fazer e pensar ―técnico-emotivo-representacional do mundo da natureza e da cultura‖ e que sintetizam modos e conhecimentos artísticos e estéticos de seus autores; têm uma história e situam-se em um contexto sociocultural. A COMUNICAÇÃO/DIVULGAÇÃO São diferentes práticas (profissionais ou não) de apresentar, de expor, de veicular e de intermediar as obras artísticas, as concepções estéticas e a arte entre as pessoas na sociedade ao longo da história cultural. O PÚBLICO/AUDIÊNCIA/ESPECULADORES São pessoas também situadas em um tempo-espaço sociocultural no qual constroem história de suas relações com as produções artísticas e com seus autores (ou artistas) em diferentes modos e patamares de sensibilidade e entendimento da arte. Fonte: FERRAZ e FUSARI, 2009, p.24.

Ainda com referência ao aprimoramento e compreensão sobre a arte e sua história, bem como sobre as influências culturais aí presentes, é necessário que os arte/educadores tenham em mente a necessidade de um gradativo aprofundamento dos conhecimentos sobre essas inter-relações artísticas e estéticas que vêm ocorrendo ao longo do processo histórico-social da humanidade. Faz parte ainda desses conhecimentos, verificar como tal relação cultural mobiliza valores, concepções de mundo, de ser humano, de gosto e de grupos sociais. É justamente porque a arte mobiliza continuamente nossas práticas culturais, e nos impulsiona a perceber esteticamente as múltiplas visualidades, sons falas, movimentos, cenas, desde a nossa infância, que procuramos tomar consciência de como as produzimos e as interpretamos. Essa consciência pode nos ajudar a conhecer e reconhecer manifestações e interferências da arte em nossa vida. A arte, assim como as demais áreas de conhecimentos na escola, é importante para a nossa formação individual e a consciência de nossa cidadania. Afinal, todos nós desejamos ter oportunidades para perceber, analisar e conservar, por exemplo, sobre nossas escolhas de formas, cores, nossa admiração por certas músicas ou nosso gosto por certas cenas, modas, danças, objetos artísticos e pelas pessoas que os produzem. Além disso, quanto ao processo educacional em Arte, precisamos verificar quais das práticas artísticas e estéticas existentes em nossa vida pós-moderna desejamos conservar ou mudar e por quê. Isso significa admitir que necessitamos de práticas de uma contínua educação em Arte. Ao assumirmos que a Arte pode e deve ser ensinada e aprendida também na escola, temos a necessidade de trabalhar a organização pedagógica das inter-relações artísticas e estéticas junto aos educandos. Evidentemente, as aulas de arte não são os únicos lugares nem os únicos tempos disponíveis para as pessoas aprenderem saberes em arte. Outras instituições sociais e culturais (famílias, centro culturais, museus, teatros, igrejas, meios de comunicação, etc.) participam também das produções e leituras artísticas que as pessoas conhecem e praticam. Mas é na escola que se oferece a oportunidade para que crianças e jovens possam efetivamente vivenciar e entender o processo artístico e sua história em aulas especialmente Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 27


destinadas para esses estudos. Há, pois, uma especificidade nos saberes de arte que precisa ser discutido com os diversos educadores da escola, que permite inúmeras propostas interdisciplinares, constituição de projetos e integrações de áreas de conhecimento ou disciplinas, visando às inter-relações significativas entre esses saberes. As aulas de arte constituem-se em um tempo/espaço curricular em que os arte/educadores e seus educandos dedicam-se metodicamente à busca e aquisição de novos saberes, especificamente artísticos e estéticos. Além disso, a vivência artística praticada pelos educandos fora da escola como música, dança, teatro, artes visuais ou audiovisuais, também é considerada ponto de referência para os estudos de arte. Embora em nosso país o acesso aos bens culturais ainda seja dificultado à maioria da população, em muitas cidades brasileiras as crianças e jovens têm à sua disposição locais e entidades que promovem cursos e atividades com diversas linguagens artísticas, como literatura, teatro, cinema etc. No geral, fazem parte de programas patrocinados por órgãos públicos, por organizações não-governamentais (ONGs) e outras modalidades educativo-sociais, como os festivais artísticos-culturais que ocorrem em certos períodos do ano. Por outro lado, o avanço da tecnologia e o dos meios digitais tem facilitado o acesso de inúmeras manifestações culturais e artísticas. Para os arte/educadores, é importante reconhecerem a amplitude dessas experiências, pois a partir dessas vivências, os educandos conseguem aprender novas habilidades e saberes, tornando-os significativos e ampliadores de suas sensibilidades e cognições a respeito dessas modalidades artísticas. Mui seguramente, compreendo que o trabalho com a arte tem inúmeras possibilidades, mas o que importa é que possa ser qualitativamente bem-feito e desenvolvido com bastante habilidade e competência. Por esse motivo, os arte/educadores precisam saber arte, ou seja, pesquisar, conhecer e aperfeiçoar-se continuadamente no campo artístico e estético. Precisam encontrar condições de se aprimorarem tanto em saberes artísticos e sua história, quanto em saberes sobre a organização e o desenvolvimento do ensino de Arte. E saber proporcionar aos seus educandos condições para se aprimorarem criticamente dos conhecimentos e prosseguirem de forma sensível, intelectiva e criadora. Para a realização de aulas de arte com qualidade, [...] não é suficiente dizer que os alunos precisam dominar os conhecimentos é necessário dizer como fazê-lo, isto é, investigar objetivos e métodos seguros e eficazes para a assimilação dos conhecimentos. [...] O ensino somente é bem-sucedido quando os objetivos do professor coincidem com os objetivos de estudos do aluno e é praticado tendo em vista o desenvolvimento das suas forças intelectuais. [...] Quando mencionamos que a finalidade do processo de ensino é proporcionar aos alunos os meios para que assimilem ativamente os conhecimentos é porque a natureza do trabalho docente é a mediação da relação cognoscitiva entre o aluno e as matérias de ensino (LIBÂNEO, 1990, p. 54-55).

Em outras palavras, para que a aula de arte possa ser entendida como uma construção poética e inventiva, e que contextualize as experiências dos educandos, é necessário que os princípios que orientam todo o processo de ensino e aprendizagem, assim como os objetivos e métodos educacionais, estejam direcionados para o conhecimento artístico e estético e trabalhados conjuntamente pelos arte/educadores e educandos. Na escola, os objetivos educacionais de arte a serem alcançados referem-se ao aperfeiçoamento de saberes, pelos educandos (com a participação dos arte/educadores), sobre o fazer e o pensar artístico e estético, bem como sobre a contextualização destes. Entretanto, para desenvolver as competências no campo da arte de maneira significativa e com sentido para todos, é preciso ainda que haja sintonia entre os objetivos dos arte/educadores e os dos educandos. Destarte, o ensino e a aprendizagem serão orientados de modo a desenvolver-se com sentido para os educandos. É, pois, desejável que os educandos possam produzir com autonomia trabalhos individuais, em dupla e grupal, assim como ler, desfrutar e aprender a usufruir da arte na vida e na sociedade. Entretanto, não posso esquecer-me de ressaltar que são os arte/educadores quem criam condições e estimulam o interesse dos educandos, e que também precisam estar interessados e com disponibilidades para aprender e saber relacionar seus conhecimentos e experiências com o que aprendem.

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Quando trato do fazer e do ler arte na escola, estou me referindo aos procedimentos de ensino e aprendizagem realizados de maneira intencional, criadora e sensível. A educação do fazer e do ler, nessas condições, compreende a participação dos sujeitos que interagem nesse processo e são organizados da mesma forma dos demais processos artísticos, isto é, incluindo os autores/artistas, os produtos artísticos/obras de arte, a comunicação/divulgação e o público/ouvinte/espectador. Deste modo, estou considerando os educandos como autores, suas produções (as obras), a recepção ao seu trabalho, tanto por parte do arte/educador, como de seus colegas, pais, familiares e comunidades, e o modo como os trabalhos são apresentados entre si e para as outras pessoas. Com relação à leitura ou à análise da arte, tanto produzida no âmbito da escola como as da cultura regional, nacional e internacional, parte-se do mesmo princípio. É bem verdade que ―o fazer‖ é mais praticado nas escolas, embora muitas vezes faltem clareza e objetividade às ações dos arte/educadores que orientam o fazer artístico. No passado, este fato contribuiu, de certo modo, para que houvesse, inclusive, repetições e cópias pouco refletidas. Vale lembrar que a formação inicial e contínua dos arte/educadores precisa ter bem clara a amplitude desse fazer, que emerge de experiências em que o pensamento, a sensibilidade e a emoção concorrem para a criação. Segundo Maria Heloísa Corrêa de Toledo Ferraz e Maria Felisminda de Rezende Fusari (2009, p. 28-29), [...] São ações que integram a forma ao gesto, a ideia à materialidade, o pensamento à construção. Durante o processo de elaboração artística, o educando (autor do trabalho de arte) vivencia uma situação, em que ele exercita a criação, integrando outras ações, como pensar sobre ela, sobre o uso de materiais, de técnicas, e encontrar caminhos para concretizá-la. Ao produzir seu trabalho o educando desenvolve então uma linguagem própria, mas para que ocorra de fato a constituição dessa linguagem, deve ocorrer outro evento, uma comunicação, ou seja, considerar ainda quem a vê. Isto significa a desmistificação de entender-se a produção de crianças e jovens como meramente espontâneas. Elas partem muitas vezes de atos espontâneos, mas o desenvolvimento e crescimento de uma linguagem pressupõem a reflexão sistemática, experimentações e orientações adequadas dos professores. São eles que observam e orientam cada educando, identificando o estágio de cada um, indicando possibilidades e estimulando a sua produção. Em contrapartida, as demais pessoas que participam de sua escolaridade, as outras crianças e jovens, o professor, acompanhando ou observando o trabalho do educando, vivenciam experiências de outra ordem, a experiência da fruição.

Anamelia Bueno Buoro (2003; 2009), Consuelo Schlichta (2009), Luciana Mourão Arslan e Rosa Iavelberg (2006), Maria Helena Wagner Rossi (2009), Marly Ribeiro Meira (2007), Mirian Celeste Martins, Gisa Picosque e Maria Terezinha Telles Guerra (1998) são alguns dos autores que acreditam que conhecer os autores/artistas, ver como trabalham, observar suas obras é outro passo para aprender a pensar e analisar arte. Seguramente, a observação atenta do produto artístico e sua inserção na sociedade, a sua identificação, a percepção da linguagem e dos significados que contém, são conhecimentos específicos do campo artístico e que aprimoram tanto o processo de produção como a percepção estética. De acordo com Jorge Coli (2003, p. 7-8), é muito importante ―certa disponibilidade‖ para desfrutarmos as formas artísticas. Essa disponibilidade é definida como ―atenção, tempo de observação, reflexão e prazer em encontrar, por meios intuitivos, relações que nos seduzem, e isto não é o que acontece em nossa experiência cotidiana com as imagens‖. Igualmente importante, ele argumenta ainda que as imagens chegam até nós, hoje, geralmente de modo ininterrupto, obrigando-nos a uma visão ágil, capaz de captar aspectos variados, mas nem sempre nos encaminham ao olhar analítico. Para que se faça a análise ou a leitura de uma imagem (obra de arte ou não) é preciso, portanto, uma busca de correlações que permitam a interpretação e compreensão da forma. Exige aquele olhar atento do qual apontou Jorge Coli e depois, como processo, o exercício da observação. Igualmente importante, a leitura se inicia com a observação da própria produção. Em continuidade, desenvolve-se com a mediação (observação) dos trabalhos realizados por outras pessoas, como os de colegas, dos autores/artistas e as manifestações culturais.

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Defendo, pois, a ideia de que quando conhecemos as linguagens artísticas, seus elementos e os sistemas de signos – como os visuais, sonoros, corporais – temos condições de entendermos também como se dá a articulação desses elementos nas criações, e sabermos que eles podem se modificar de acordo com a época, cultura ou região e ter, com isso, sentidos diversos. A pintura corporal indígena, por exemplo, é uma tradição que os identificam e se mantêm nos materiais, na linguagem e nas formas que os distinguem entre si (Figura 4). Por outro lado, em nossos dias, no mundo ocidental, a arte no corpo, como é o caso da tatuagem, tem outros significados, como intervenção e experiência estética (Figura 5).

Figura 4: Pintura Corporal - Indígenas II. Disponível em: http://mascarasdaidentidade.arte blog.com.br/370838/ Danca-indigena/. Acesso em: 28/12/2015.

Figura 5: Pintura Corporal – Tatuagem. Disponível em: http://tatuagemtattoo.com.br/tatuagem-doi-locais-para-se-tatuar-onde-doimais/. Acesso em 28/12/2015.

Em síntese, para preparar e/ou desenvolver bem suas aulas, os arte/ educadores precisam conhecer as noções e os fazeres artísticos e estéticos de seus educandos e verificar em que medida pode auxiliar na diversificação sensível e cognitiva dos mesmos. Nessa concepção, se os arte/educadores desejam contribuir para o desenvolvimento de potencialidades dos educandos, eles devem planejar e orientar seus procedimentos pedagógicos de modo a ajudá-los a aprender a ver, olhar, ouvir, pegar, sentir, comparar os elementos presentes no mundo, tanto os da natureza como os das diferentes obras artísticas e estéticas do mundo cultural. Todas essas ideias aparecem em muitas propostas para uma educação escolar em Arte mais atualizada e com bases pós-modernistas. Ana Mae Barbosa (1975; 1978; 1982; 1984; 1986; 1991; 1997; 1998; 2001; 2002; 2005; 2008; 2009; 2015), Edmundo Burke Feldman (1981a; 1981b; 1982), Herbert Read (1977; 1986), Néstor Garcia Canclini (1984; 2000), Thomas Munro (1956), Vincent Lanier (1984), entre outros, demonstraram a importância da arte para o indivíduo e para a sociedade. Muitos deles chegaram a propor cursos de Arte fundamentados em uma intermediação artística e estética. É, pois, o caso de Vincent Lanier, ao enfatizar que os

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arte/educadores devem assumir, em suas aulas, um conceito central e forte, vinculado a referenciais artísticos. Além disso, ele desafia os arte/educadores a (re) pensar em procedimentos que favoreçam o crescimento estético sem cair na mera repetição de quaisquer conteúdos: Evidentemente, cada aluno em particular – criança ou adulto – terá seus próprios interesses estéticos, ponto a partir do qual pode ser levado para um envolvimento mais amplo. Para um, poderá ser a colcha da vovó, para outro, posters de artistas. Devemos explorar esses interesses pessoais. Entretanto, os currículos são normalmente planejados para grupos e não para indivíduos e, portanto, é importante identificar ou prever aquelas artes populares que podem servir como o denominador comum mais abrangente do interesse da juventude. [...] Contudo, mesmo o mais contemporâneo conteúdo de curso não irá garantir o tipo de crescimento que nossa idéia de ―conceito central forte‖ sugere, se não estiver implementado por procedimentos adequados em sala de aula. Se reduzirmos o currículo de Arte ao bordado, produção de filmes ou vídeo-teipes, desenhos ou recriação de espaços urbanos, produção de histórias em quadrinhos, em suma, desenvolvendo todas essas atividades de ateliê, de que os professores gostam muito, mesmo incluindo o folclore, a arte popular e a mídia, o mais provável é que nossos alunos estarão essencialmente limitados no crescimento que poderíamos provocar neles (LANIER apud BARBOSA, 1997, p. 50-51).

O autor supracitado, muito lucidamente, chama a atenção para a necessidade de garantir sempre a presença da arte nas aulas de Arte que os arte/educadores desenvolvem com seus educandos. Ele nos faz lembrar que nas aulas não basta, nem convém, a realização de exercícios dispersos, desconexos, sem aprofundamento de desenhos, pinturas, esculturas, gravuras, modelagens, colagem, histórias em quadrinhos (HQs), vídeo, música, dança, teatro, dentre outros. Essas atividades, nas várias modalidades, devem, sim, vincular-se a um projeto educativo na área. Elas precisam mobilizar o estudo e desenvolvimento de vivências e conceituações mais definidas. Atividades educativas espessas e não originárias de conceitos, de ideias artísticas e estéticas, podem concorrer para o desaparecimento do estudo da arte propriamente dito. Portanto, ―devolvamos a arte à educação em arte‖, alerta-nos Vincent Lanier! Fazendo minhas as palavras desse pesquisador e educador, é necessário que os arte/educadores avaliem, o mais objetivamente possível, tudo aquilo que desenvolvem em sala de aula e que reorientem suas condutas em arte numa direção que trate mais especificamente da aprendizagem em arte do que do desenvolvimento pessoal de qualidades não necessariamente relacionadas com a arte. Afinal, é o conhecimento em Arte e sua elaboração que deverá mobilizar cotidianamente o caminhar dos arte/educadores com a formação artística e estética junto aos seus educandos, quer sejam crianças, jovens, jovens adultos ou adultos. Referências ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ARGAN, Giulio Carlo. Arte e critica da arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1988. ________. A arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ________. História da Arte italiana. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 3 volumes. ARSLAN, Luciana Mourão e IAVELBERG, Rosa. Ensino de arte. São Paulo: Thomson Learning, 2006. BARBOSA, Ana Mae. Teoria e prática da educação artística. São Paulo: Cultrix, 1975. ________. Arte educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1978. ________. Recortes e colagens: influência de John Dewey no ensino da arte no Brasil. São Paulo: Autores Associados, 1982. ________. Arte-Educação: conflitos/acertos. São Paulo: Max Limonad, 1984.

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TUDO NOSSO, NADA DELES: UMA REFLEXÃO SOBRE AS CONSTRUÇÕES NARRATIVAS GERADAS A PARTIR DO FUNK CARIOCA E PAGODE BAIANO

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Guilherme Santos2 Ana Paula Lima3 RESUMO O presente trabalho visa identificar as narrativas construídas sobre as comunidades periféricas a partir do funk carioca e o pagode baiano, bem como promover uma reflexão sobre a representação da identidade cultural destes territórios e de seus habitantes tendo como base as visões divulgadas por músicas dos dois ritmos. O estudo parte da análise do histórico e de produções de dois mcs do funk carioca e dois cantores representantes do pagode baiano. O discurso exposto nas produções dos cantores traz dados importantes para compreender temas como violência, identidade cultural e a construção das favelas como um lugar antropológico. O artigo pretende também abordar os pontos de aproximação e distanciamento entre os estilos musicais e as representações que eles fazem das comunidades periféricas e de seus moradores em Salvador e no Rio de Janeiro. Palavras-chave: narrativa; pagode; funk; cultura; identidade.

Introdução

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Brasil é um imenso território que abriga diversas culturas. O hibridismo cultural é uma herança póscolonial que o povo brasileiro carrega em seu corpo, nos modos, na língua, na fala e no viver. Culturas se esbarram e se afastam de e por diversas formas. Dentro de toda essa diversidade, existem dois tipos culturais que arrastam multidões e fidelizam seus apreciadores: o funk carioca e o pagode baiano. Porém, eles também são, constantemente, alvos de duras críticas, sendo classificados por muitos como baixa cultura. Esses dois estilos musicais são valiosos para aqueles que se sentem representados pelas músicas e pelas narrativas que eles ajudam a construir e/ou reforçar. Quais são as aproximações entre dois estilos? Sabemos que a separação geográfica não se coloca como uma barreira intransponível, principalmente em tempos de globalização. Mas os dois ritmos também carregam marcas territoriais, afinal estamos falando do funk carioca e do pagode baiano. Porém, há vários pontos de convergência, principalmente em relação aos sujeitos que ocupam os territórios em que esses ritmos são produzidos e consumidos. Estamos falando de pessoas que, em sua grande maioria, são faveladas. Quando tratamos o sujeito periférico como favelado, categoricamente não estamos utilizando a palavra de forma pejorativa, mas sim como afirmação de pertencimento a um lugar, em vista que: O nascimento de um favelado ocorre quando ele consegue projetar, para dentro e fora de si, um sentimento de pertencimento à sua comunidade. O favelado nasce quando consegue enxergar aquele pedaço de terra, excluído política e socialmente, como seu ponto de origem. O favelado vem à vida quando a favela se torna seu ponto de partida para pensar e explorar o mundo tanto na esfera geográfica quanto em seu posicionamento e senso crítico junto à sociedade e suas mazelas. Acreditem: isto pode demorar a acontecer. (COSTA, 2017, Online)

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Trabalho apresentado no GT Linguagem, Cultura e Identidade, do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestrando do curso Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense. Niterói-RJ. E-mail: guilhermemarcelinodossantos@gmail.com. 3 Coautora. Mestranda do curso Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense. Niterói-RJ. E-mail: alpaulalima@gmail.com. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 35


Partimos da ideia de que tanto o pagode quanto o funk ajudam a construir a identidade do ator periférico. Para melhor compreendermos de que forma isso se dá, analisaremos as canções de três artistas. As letras desses cantores trazem elementos discursivos importantes para pensarmos como eles enxergam (e quais narrativas divulgam sobre) o público consumidor desses produtos culturais. Uma “combinação perfeita”: o proibidão carioca e a identidade periférica O funk é um ritmo que surgiu na década de 1970 e desde então ganhou, de maneira positiva ou não, os meios de comunicação. Artistas como Dj Malboro, Tati Quebra Barraco, Mc Marcinho, Cidinho e Doca e Claudinho e Bochecha, as equipes de som Pipo‘s, CashBox, A Gota Cerol Fininho, Espião Shock de Monstro e Furacão 2000 embalavam os finais de semana carioca, cada um em sua determinada época. Um ritmo contagiante não apenas para a juventude carioca, mas que também encantou artistas internacionais como a cantora inglesa M.I.A., que usou o funk como base para a sua música "Bucky Done Gun", produzido por Diplo e também a cantora japonesa Tigarah. O sucesso dentro e fora das casas de show também é inegável. Basta verificar em alguma festa que não seja especificamente um baile funk - que não raramente irá tocar o gênero musical. A frase que a música ―Som de Preto‖ de Amilcka e Chocolate popularizado na primeira década de 2000, se tornou a máxima para descrever de maneira definitiva o que é o ritmo: ―É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado!‖. Porém muitas pessoas têm preconceito em relação ao estilo musical. Parte da aversão se dá pelo fato das músicas representarem, sem romantismo, o favelado (aquele que está longe do asfalto) e toda a sua estética. Segundo o Censo 2010, o Rio de Janeiro é a cidade do país com a maior população vivendo em favelas. No total, são 1.393.314 pessoas que habitam 763 favelas. As favelas comumente são postas como locais de grande periculosidade devido às ações do tráfico nestes territórios. Mas é nesta área que os proibidões nascem na cabeça de seus compositores. O proibidão é um estilo de funk sem filtro e, como explica Tiburini (2011), difere das demais vertentes do funk em conteúdo, apesar da semelhança na forma. A autora também destaca: O proibidão é uma vertente do funk que explora de forma demasiadamente explícita os temas da violência e do crime – inclusive com narrativas sobre os conflitos entre traficantes nas favelas, elogios a facções ou traficantes, exaltação do poder bélico de determinadas comunidades etc. – ou da sexualidade/erotismo, muitas vezes narrando, sem nenhum pudor, situações eróticas vividas ou desejadas pelos intérpretes. (TIBURI, 2011,Online)

Mas o que o funk proibidão representa senão "a redenção de um ‗lugar de fala‘ que deveria permanecer em silêncio?‖ (Tiburi, 2011). Nas comunidades periféricas, o silenciamento é executado de várias formas e níveis. A representatividade dos silenciados aparece em suas músicas, sejam proibidões ou não. A realidade dos moradores, suas experiências, suas relações, parte de sua identidade é expressa nas músicas dos Mcs que vivem lá e expõem, sem nenhum pudor, aquilo que "o asfalto" chama de "baixa cultura" ou simplesmente não considera como uma cultura. Como aponta Stuart Hall (2003, p. 340) a cultura popular é baseada nas experiências, prazeres e memória de um povo; tem ligação com os afetos, tragédias e cenários locais que são práticas e experiências cotidianas de pessoas comuns, ligando tudo isso ao que Bakhtin chama de "vulgar". Assim como também: A cultura popular tem raízes na terra em que se vive, simboliza o homem e seu entorno, encarna a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o lugar, e de ali obter a continuidade, através da mudança. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas seu alcance é o mundo. (SANTOS, 2006, p. 222)

Nesse sentido, o funk configura-se como uma expressão cultural popular que expressa a realidade de um território no qual o Estado alcança, na maioria das vezes, através de suas forças ostensivas e onde as políticas públicas são sempre raras. Diante disso, a representação do poder dentro da favela muitas vezes fica 36 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


restrita à figura do traficante. Com a finalidade de perceber de que forma isso acontece, partiremos para a análise das produções de dois Mcs: Mc TH4 e Mc Smith5. A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) tem uma relação extremamente conturbada com as favelas cariocas. São frequentes as reclamações de moradores sobre o descaso da corporação nas missões em repressão ao tráfico, que acabam também repreendendo - muitas vezes segundos diversos relatos- os moradores que ficam no meio do fogo cruzado. Nos últimos anos, o Rio de Janeiro foi palco de alguns eventos esportivos que, por consequência, exigiram uma ação mais intensa por parte do governo, surgindo as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Segundo o site da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro o conceito norteador da UPP é "o de constituir uma ―polícia da paz‖ (...) que tem a missão de recuperar territórios perdidos para o tráfico e levar a inclusão social à parcela mais carente da população.‖ (Burgos et al, 2011, p.53). Mas: Para os fins deste artigo é suficiente apontar que a UPP é, na verdade, filha de uma história de fracassos de experiências de policiamento especializado para favelas. Isto não significa que muitas dessas experiências não contivessem virtudes que mais tarde serão incorporadas ao modelo da UPP. (Burgos et al, 2011, p. 53)

Neste cenário os abusos por conta das autoridades não cessaram. Por conta deste histórico, a representação do Estado na favela é a PM. Mas, devido as abordagens agressivas, ela acaba se tornando "inimiga" da população, como é exposto nas músicas: ―As Piranha me Ama‖ 6 do Mc TH e ―Vida Bandida‖7 do Mc Smith, respectivamente: ―[...]O estado me odeia,/ Mas as piranha me ama / Nós é putão!/ Nós é criminoso!/ As piranha rende,/Tem falso que baba ovo‖, canta Mc TH. Já na visão do Mc Smith: ―Mas é várias mulher, vários

fuzil a sua disposição,/ o batalhão da área comendo na sua mão./ Ele tem disposição para o mal e para o bem,/ Mesmo rosto que faz rir é o que faz chorar também./ Nossa vida é bandida e o nosso jogo é bruto,/ Hoje somos festa, amanhã seremos luto[...]. Nos proibidões, o Estado aparece constantemente como um agente repressor que ―odeia‖ o favelado. Eles também abordam fatos como a força de vontade e luta por melhores condições de vida, a questão religiosa e também o apreço ao território, que por vezes é manchado por uma guerra que não tem fim. Essas características podem ser identificadas em proibidões como ―Visão de Cria‖ 8 composta por Smith: Nós tem um

montão de novinha, pra todas nós perde uma prata,/ Nós dá condição no bagulho e se der a buceta pra outro nós mata./ Dono do ouro e da prata é Jesus e ninguém leva nada da Terra,/ O salário do pecado é a morte e morrer como homem é o prêmio da guerra./ Nossa vida é uma guerra, nossa morte é uma certeza,/ Não é só tirar marola nem acumular riqueza./ Dia a dia é nós na luta portando fuzil AK / Pra nenhum filha da puta vim aqui esculachar. A favela é um território marcado por várias ambiguidades e contradições. Sendo assim, ao mesmo tempo em que é mal vista, ela também é palco de ―encontros‖. ―Os moradores do asfalto‖ que sobem o morro para comprar drogas ou ir aos bailes nas comunidades. Assim, o território que por muitas vezes é tratado com um espaço muito perigoso, também é uma atração para os mesmos que miram o morro como local apenas de confronto e moradia de seus empregados. O gueto9 vira entretenimento, mesmo com suas mazelas sociais, 4

Thiago Mercedes, nascido em Duque de Caxias - RJ, cantor brasileiro de funk carioca, conhecido nacionalmente por ser o artista do gênero com o maior cachê no país no ano de 2016, estimado em cerca de 600 mil reais mensais. Nascido na comunidade São Judas Thadeu, em Duque de Caxias, no ano de 1994, Thiago trabalhou em sua adolescência e início da vida adulta como barbeiro, até que decidiu vender o salão que era dono para investir na carreira de músico, em 2013. 5 Wallace Ferreira da Mota é um cantor, compositor de funk proibidão e jogador de futebol society. Engajado com os preconceitos que sofrem os moradores de favela, ele empresta sua voz a músicas que retratam o tráfico, ao baile de favela, a vida difícil e a imersão do funk de forma local, nacional e internacional. Em 2014, integrou o elenco principal no filme Alemão, fazendo o papel de um traficante membro do grupo "Bonde do Playboy". Seus sucessos "Vida Bandida" e "Vida Bandida II" fizeram parte da trilha sonora do filme. 6 Áudio disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=4TwI09fWwCk > Acesso em 17/02/2017, às 19:13. 7 Áudio disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=LXEq_1jHqXk > Acesso em 17/02/2017, às 19:14. 8 Áudio disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=ivSmP4K_CBw > Acesso em 17/02/2017, às19:16. 9 ―O termo ‗gueto‘ designa uma ala delimitada urbana, uma teia de instituições específicas de grupo e uma constelação cultural e Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 37


para aqueles que as legitimam diariamente. Para o produtor cultural e pesquisador Hugo Oliveira, por exemplo, as pessoas estabelecem relações diferentes com o funk, principalmente por conta de suas vivências. São duas relações muito díspares. Uma é a relação do proibidão com o morador da favela. O morador da favela que curte funk, pois não são todos os moradores apreciam, ele tem uma relação de identificação: sabe o que está sendo cantado, quando cita siglas, nomes, códigos... Isso gera empatia, um sentimento de proximidade. Proximidade em saber que está falando da realidade de quem escuta (...) Então se dá dentro dessa relação e outras coisas envolvidas: a relação com a comunidade, com a favela, com o território que ele mora. Já a relação do morador do asfalto é uma relação de poder vivenciar uma história ou um pouco de uma vida que ele não vive, não participa. (Oliveira, 2017, entrevista)10

Constatamos essa relação - que aqui chamaremos de ―favela x asfalto‖ - novamente na música ―Vida Bandida‖: Nós estamos no problema, nós não rende pra playboy, / Nós não podemos ir na Zona Sul, a Zona Sul

que vem até nós./ Estampado no jornal, toda hora, todo instante, patricinha sobe o morro só pra dar pra traficante.

A relação favela x asfalto não se limita apenas nas visitas durante os famosos bailes. Parte do estilo de vida dos moradores do asfalto é utilizado pelos moradores da favela. As peças utilizadas ganham outro significado dentro das comunidades. A utilização das marcas se torna um modo de existência. As grandes marcas de perfumes, roupas, veículos, etc, antes eram utilizadas apenas pelos moradores de zonas nobres, porém o poder aquisitivo da classe C mudou11. Hoje, a utilização das mesmas é uma forma de apontar que naquele local também existem consumidores que apesar de não terem o mesmo acesso também entendem e apreciam o status e poder que o consumo de determinados bens podem dar aos seus usuários. [...] Exalando

Acqua Di Gio / Cheirosão, aquelas cena / Já liguei no menó do importe /Traz meu Air Max 90 / Tô de Rolex Presidente / Por cima das tatuagens/ As marcas saiu do filme/ Veio pras comunidades / Passa lá no lava jato/ Traz minha moto que hoje é o dia/ Hoje a tropa tá pras foda / Vai tacá nessas bandida! Os produtos consumidos pelos favelados são uma das formas deles se inserirem na teia social, não necessariamente - e também não apenas - no que se refere a favela, mas para fora dela. O príncipe e o gueto

No carnaval12 de 2015, um fato chamou a atenção da mídia: o desfile do bloco independente 13 do cantor Igor Kannário. Desfilando sem cordas, ele arrastou uma multidão de foliões e demonstrou ter um controle sobre o público, que impressionou quem até então não conhecia ou duvidava do sucesso do artista. Toda visibilidade rendeu, depois da folia, uma série de entrevistas e exposições na TV e outros veículos de comunicação. Os repórteres pareciam impressionados com o sucesso de Kannário, principalmente entre os bairros mais periféricos e quando seus fãs eram entrevistados uma pergunta sempre era feita: ―Mas por que Igor consegue arrastar essa multidão?‖, e as respostas mais comuns eram: ―Porque ele fala a língua da periferia‖, ―Ele representa o gueto‖. cognitiva (valores, mentalidade) que implicam o isolamento sociomoral de uma categoria estigmatizada, bem como o truncamento sistemático do espaço de vida e oportunidades de vida de seus membros‖. (Wacquant, 2004, p.1, tradução nossa). 10 Comunicação pessoal ao autor em 02 mar. 2017 via Whatsapp. 11 Segundo levantamento do Data Popular, divulgado em janeiro, a renda total dos jovens pertencentes a esse segmento social é de R$ 129,2 bilhões, maior do que a soma das classes A, B e D juntas, de R$ 99,9 bilhões. Disponível em < https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/02/03/marcas-de-grife-tem-vergonha-de-clientes-mais-pobres-diz-datapopular.htm > Acesso em 16/02/2017, às 14:52. 12 Em Salvador, o carnaval é uma manifestação em os foliões divertem-se ‗correndo‘ atrás dos trios elétricos. Aqueles que compram os chamados abadás, uma camisa que indica quem comprou ingresso para participar da folia, pode curtir a festa em um espaço localizado a redor do trio separado do resto dos foliões por uma corda. Aqueles que preferem curtir a festa de forma independente e optam por não comprar abadás são chamadas de foliões pipocas. 13 Os chamados blocos independentes são aqueles em que os desfiles são pagos com recursos públicos, por isso, diferentemente dos outros, não existe a cobrança de abadás, nem as cordas que separam os foliões que compraram ingresso do folião pipoca. 38 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Mas qual periferia o cantor aborda em suas músicas? Quais as narrativas sobre ela? Quais os conflitos que são destacados por essas canções? As letras do cantor oferecem pistas importantes para pensarmos respostas possíveis para esses questionamentos. Porém, antes de analisá-las faz-se necessário fazer uma breve contextualização sobre o pagode baiano enquanto gênero musical e trazer uma breve história sobre o cantor em questão. Leme (2003 apud Nascimento 2012, p. 62), nos lembra que ―a música de massa produzida no Brasil é fruto da rearticulação de matrizes históricas, que vão sendo adaptadas a novos contextos, novas influências culturais, num processo complexo que pode haver tanto imposições culturais como apropriações, resistências e inovações‖. Certamente o ritmo conhecido como pagode baiano pode ser compreendido dentro destes tensionamento sentre o popular e o massivo. Apesar de suas raízes remontarem ao samba de roda do Recôncavo, o ritmo, que se consolidou na década de 1990, mistura o samba com influências de músicas urbanas como o funk, podendo ser definido como ―um gênero híbrido, oriundo do samba que mescla a tradição do samba do Recôncavo baiano com algumas intervenções e inovações tecnológicas, incorporando novas experimentações da música eletrônica a partir de tecnologia como o sampler bem como agrega o funk e dialoga com outras tradições regionais, como o chula‖, (NASCIMENTO, 2012, p.56). Segundo Nascimento (2012) a proliferação e consolidação da música denominada pagode baiano não podem ser entendidas se não levarmos em consideração a banda que se tornou uma das primeiras expoentes do gênero, a Gera Samba14. Fundado no final da década de 1980, o grupo fez muito sucesso na década de 1990, principalmente entre os anos 1995 e 1999. De acordo com Nascimento (2012, p. 64) ―o Gera Samba era um grupo de samba altamente influenciado pelos batuques de origem africana do Recôncavo baiano‖. A partir do sucesso nacional que o grupo conquistou e à medida que o tempo ia passando, o gênero foi se consolidando e ganhando ainda mais destaque no cenário nacional. Com o tempo foram surgindo outras bandas como Harmonia do Samba (1993), Parangolé (1998), Saiddy Bamba (1998), Guig Ghetto (2001), Psirico (2003), Black Style (2006) e Fantasmão (2007), para citar algumas. A banda A Bronkka surgiu em 2009. Foi criada por Kanário juntamente com outros amigos. ―Essa saiu do meu cérebro, nasceu do meu pensamento. Queríamos uma banda para falar com a periferia. E daí veio também o nome: A Bronkka, como um grito de protesto‖, afirmou Kannário em entrevista para o jornal Correio da Bahia15. Ele seguiu liderando o grupo até 2012, quando optou por seguir carreira solo. Várias polêmicas marcaram a carreira de Kannário, que frequentemente era destaque nos programas policialescos da capital baiana. Em janeiro de 2015, ele foi preso, junto com outros amigos, por porte de maconha. Por causa da prisão, teve, inicialmente, a participação no Carnaval daquele ano suspensa. Mas, devido ao apelo popular, a prefeitura decidiu bancar o desfile e o cantor puxou um trio independente que arrastou uma multidão. Ex-morador do bairro da Liberdade (periferia de Salvador), Kannário se intitula o Príncipe do Gueto e se considera porta-voz da periferia, por cantar músicas que, segundo ele, dialogam com os jovens que moram nas favelas soteropolitanas. ―Vivi a vida toda naquela área (se referindo ao bairro da Liberdade). E já fui muito discriminado e humilhado por isso, pela desigualdade social, racial... Só por morar na periferia, todo mundo já te olha torto. Por isso hoje canto o que vivo, buscando inspiração na realidade do povo‖, afirmou Kannário também ao jornal Correio, deixando claro que já foi vítima dos preconceitos que muitos moradores de bairros periféricos sofrem constantemente. Por esse e outros discursos que defende, seu título de Príncipe do Gueto é amplamente reconhecido pelos seus fãs. Mas, de forma geral, todo o histórico do artista o coloca como uma figura controversa e 14

Na década de 1990 o grupo mudou o nome para É O Tchan. ―A mudança do nome do grupo de Gera Samba para É O Tchan foi motivada, principalmente, por uma determinação judicial que proibia o uso do nome Gera Samba pela existência de outra banda já registrada com esse mesmo nome‖, (NASCIMENTO 2012, p.66). ―[...] As letras do É O Tchan chamavam a atenção pelo apelo explícito à sensualidade, com base no próprio samba de roda do Recôncavo, suas performances envolviam música, dança e teatralidade e a intensa participação do público em apresentações e festas, programas de televisão e shows [...] (NASCIMENTO, 2012, p.65). 15 Ver matéria completa em: http://www.correio24horas.com.br/single-entretenimento/noticia/conheca-a-historia-de-igor-kanariocantor-do-grupo-baiano-abronkka/?cHash=5b6af08ef300ebd4ffde9908ebf0159d Acessado em 10/03/17. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 39


polêmica que divide a opinião dos soteropolitanos. Igor é uma figura ambígua (e quem não é?) que ora aparece na mídia como um criminoso ou alguém que incita a violência (também através de suas músicas), ora como artista que canta os estigmas e as potencialidades das comunidades periféricas. Discursivamente suas músicas constroem a periferia soteropolitana como um lugar 16, nos termos defendidos por Augé. E essa relação com a localidade é sempre dialógica e nunca determinista: o indivíduo sofre influência do lugar, mas também age sobre ele. Por pertencerem a este lugar, os ―filhos do gueto‖ são discriminados e sofrem com a falta de direitos básicos, mas também por viverem neste espaço desenvolvem táticas para a superação dos obstáculos que lhe são impostos diariamente, desenvolve ―mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros‖, do que mos fala Certeau (2007, p.45). Sendo assim, a favela também como um espaço de resistência ganha eco nas letras do artista. A favela defendida por Kannário é um lugar de conflitos permanentes. Ora suas letras a coloca como um território violento, com uma ética própria, (Eu vim das ruas e Terra onde a chapa é quente e o ódio impera/ Conheço a minha quebrada e tenho respaldo em qualquer favela )17, ora questiona as abordagens preconceituosas da mídia e opressivas e displicentes do poder público (Não somos essa fera/ Que esse sistema impõe pra você/ Aqui não tem bicho não/ Somos cidadãos 18, ou ainda: Eu sei que a nossa vida/ Um dia vai ser diferente/ O que se passa na cabeça dessa gente/ Que nunca se cansa de oprimir, nossa mente19) . Aqui Kannário também ressalta a luta contra os discursos hegemônicos que colocam a favela como foco de problemas sociais, seus moradores aparecem como ocupando justamente o lugar do oprimido. Na música Somos o Morro, por exemplo, o artista ressalta as angústias vividas pelos moradores de um lugar que muitas vezes cresceu à margem de tudo e clama por respeito e atenção: ―Subindo a favela dá pra

ver a criança crescer errando/ A mãe pedindo forças pra viver/ Sem ter o que comer, chorando (Esquecido por o sistema somos nós)/ O meu povo cego, surdo, e sem voz/ Ó meu Deus, guarda esse povo que precisa (Das suas bênçãos noite e dia, todo dia)/ Somos o morro/ O meu nome é gueto, prazer, eu quero respeito/ Ajuda minha favela aê). A favela é o espaço para o qual Kannário sempre se enuncia. Mas aqui ele não é qualquer enunciador, ele se coloca como porta-voz dos moradores dessa localidade e por isso também como vítima dos mesmos preconceitos vividos por essas pessoas: Tão dizendo que eu estou induzindo a malandragem/ Com tanta coisa

pra se preocupar/ Com o desemprego, a desigualdade/ Querem me calar, me excluir deve ser porquê/ Sou o Kannário, sou do gueto/ Canto aqui a realidade20, e ainda: Na rua ganhei meu respeito e fala pra todos otários que sou o Kannário/ É o Principe do Ghetto na Humildade pedindo respeito, é o principe do ghettoo 21). O lugar de enunciador que o Kannário construiu para ele, também é responsável por criar um laço de proximidade para o público para o qual ele diz cantar. Algumas de suas músicas trazem também certo apelo pela liberdade. Não apenas a liberdade de ir e vir, mas uma liberdade para a festa: ―Deixa nós brincar na boa/ Deixa a galera curtir, na boa/ Deixa a Favela

cantar, na boa, na boa, na boa/ Deixa o Kannário cantar, na boa/ Deixa a galera curtir, na boa/ É Carnaval na cidade, na boa, na boa, na boa‖22 . Igor parece clamar por uma liberdade que até no carnaval, ritual importante para a sociabilidade soteropolitana, é retirada dos moradores dos guetos e favelas de Salvador. E como não concordar com ele se pensarmos que as cordas que separam os foliões pipocas dos que podem pagar por um abadá, também criam formas discriminatórias de lidar com os dois públicos? De fato até no carnaval, a liberdade da favela é limitada e vigiada. Neste contexto a produção musical de Kannário constrói um discurso sobre a favela a partir de um 16

Para Augé um lugar é sempre relacional, histórico e identitário. O lugar é o local em que você é reconhecido na sua individualidade, à medida que esta também é estruturada e estruturante pelo/do lugar. 17 Trecho da música Na Humildade Pedindo Respeito. 18 Trecho da música Só Queremos Paz. 19 Trecho da música Menos Preconceito. 20 Trecho da música Malandragem. 21 Trecho da música Na Humildade Pedindo Respeito. 22 Trecho da música A Favela É Nossa. 40 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


lugar de conflitos. As construções narrativas que podem ser identificadas nas canções do artista não deixam de abordar os problemas sociais vividos nestes territórios, mas não essencializa estes problemas. Assim, os guetos soteropolitanos também são lugares em que a vida pulsa e, para usar a expressão de Michel de Certeau (2007), o cotidiano é inventado a cada segundo. Kannário faz questão de destacar o poder de grupos subalternizados a partir de uma filosofia própria: ―Não bata de frente não/ Você sabe qual é meu plantão/ O

bonde é pesado, fique ligado/ Quando eu passar você vai ver/ Não tô de bobeira, se der mole, eu levanto a poeira/ Não brinque com a mente e cole com a gente/ Que aqui a chapa é quente/ É tudo nosso, nada deles, nada deles, tudo nosso/ É tudo nosso, é nada deles/ É nada deles, nada deles tudo nosso‖23.

Nestes termos podemos também pensar as potencialidades do pagode enquanto uma expressão cultural que por ter uma ampla aceitação nas áreas periféricas, também tem se transformado em uma das linguagens escolhidas, principalmente pelos mais jovens, para dar visibilidade aos problemas enfrentados pela população. É a cultura, que foge a concepção hierárquica, nos mostrando o quanto que ela pode ser um campo político de enfrentamento: Nesse sentido salutar, toda uma gama de teorias críticas contemporâneas sugere que é com aqueles que sofreram o sentenciamento da história – subjugação, dominação, diáspora, deslocamento – que aprendemos nossas lições mais duradouras de vida e pensamento. Há mesmo uma convicção crescente de que a experiência afetiva da marginalidade social – como ela emerge em formas culturais não-canônicas – transforma nossas estratégias críticas. Ela nos força a encarar o conceito de cultura exteriormente aos objets d‘art ou para além da canonização da ―ideia‖ de estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido e valor, frequentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato da sobrevivência social. (BHABHA, 1998, p.240)

Certamente, que as músicas de Igor Kannário trazem muitos elementos narrativos que suscitam uma discussão mais densa. Não queremos aqui o colocar como porta-voz da favela ou questionar sua autoridade para isso. Nosso objetivo era justamente tentar entender qual gueto ele diz representar em suas músicas e fica claro que este não pode ser entendido apenas no singular. São vários os guetos, ainda que as singularidades destes espaços não podem ser deixadas de lado. Para além do cotidiano e dos conflitos das favelas, Kannário traz questionamentos comum a eles (nós): Qual a teia que você tece (?)/ Qual a história que você escreve (?)/ Qual a teia que você tece (,)/ Para não ser só mais um (?). Uma linguagem, vários guetos Não se pode falar de um único gueto, nem mesmo se estivermos analisando estes espaços em uma mesma cidade, em municípios diferentes então, isso torna-se impossível. Cada um deles tem particularidades únicas e características próprias, mas aqui queremos nos voltar para seus pontos de aproximação. É sabido que tanto os guetos do Rio de Janeiro quanto os de Salvador são formados por uma população predominantemente negra, que sofre com a negligência ou opressão por parte do Estado. Mas basta um olhar mais detalhista para notarmos que nesses espaços há pequenas revoluções acontecendo todos os dias, em cada esquina. E não por acaso é no campo cultural que essas transformações ficam ainda mais evidentes: Cada cultura prolifera em suas margens. Produzem-se irrupções, que designamos como ―criações‖ relativamente a estagnações. Bolhas saltando do pântano, milhares de sóis explodindo e se apagando na superfície da sociedade. No imaginário ofical, elas figuram como exceções ou marginalismos. Uma ideologia de proprietários isola o ―autor‖, o ―criador‖ ou a ―obra‖. Na realidade, a criação é uma proliferação disseminada. Ela germina. Uma festa multiforme infiltra-se por toda parte, festa também nas ruas e nas casas, para todos aqueles que não cega o modelo aristocrático e museográfico da produção durável. (CERTEAU 2012, p. 242)

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Trecho da música Tudo Nosso Nada Deles. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 41


A cultura germina e sua força torna-se ainda mais visível quando pensamos que expressões culturais como o funk e o pagode são frutos dessa semente. E não é por acaso que os cantores analisados nos dois ritmos se colocam como porta-vozes desses espaços subalternizados. Quando a distribuição desigual de poder coloca o Estado em uma posição hegemônica e ele passa a ter força política institucionalizada e aparato material que o torna capaz de exercer, da maneira que lhe convém, sua força, o único contra-ataque possível de acontecer é no campo discursivo e simbólico. Não que o poder governamental não atue também fortemente nessas áreas. Mas, quais as ferramentas podem ser usadas por grupos subalternizados, que muitas vezes não têm representação política e sofrem com a falta de recursos financeiros e direitos sociais? Nesse contexto, a música desponta como um campo importante de resistência política, tornando-se a voz (o som) daqueles que são ignorados e estigmatizados pelos meios de comunicação e constantemente silenciados pelo poder estatal. Talvez seja por isso que os três cantores, analisados nesse artigo, sejam tão aceitos pela população das favelas, soteropolitanas e cariocas, como porta-vozes de suas angústias e esperanças. Com uma linguagem acessível, cantando uma realidade experimentada por muitos moradores, esses artistas, que mantêm laços de pertencimento com os lugares para os quais se enunciam, tornam esses espaços e pessoas visíveis. Falam com eles, para eles. O poder de falar e ser ouvido é fundamental para a construção da cidadania: ―Una de las formas hoy más flagrantes de exclusión ciudadana se sitúa justamente ahí, en la desposesión del derecho a ser visto y oído, ya que equivale al de existir/contar socialmente, tanto en el terreno individual como el colectivo, en el de las mayorías como de las minorías‖, (MARTÍN-BARBERO, 2001, p.9) As letras cantadas pelos três artistas analisados constroem a favela como um espaço marcado por contradições. Não nega os problemas sociais existentes, mas também não deixa de ressaltar suas potencialidades, com uma diferença sutil: nos proibidões há uma inclinação maior em destacar o confronto bélico que existe entre Estado e moradores das periferias do Rio, assim como a ação miliciana ( Mas é várias

mulher, vários fuzil a sua disposição, o batalhão da área comendo na sua mão/ Ele tem disposição para o mal e para o bem, mesmo rosto que faz rir é o que faz chorar também). No pagode essa luta também aparece mas de

maneira mais discreta. São justamente esses conflitos que colocam a vida em um estado de fragilidade permanente e transforma a festa (que aqui pode ser pensada a partir dos bailes de pagode e funk) como um momento de celebração importante (Nossa vida é uma guerra, nossa morte é uma certeza[...], ou ainda, [...]Hoje somos festa, amanhã seremos luto[..]). A produção dos artistas analisados também destaca a favela como um território com uma ética própria, que é preciso ser seguida para que a vida seja assegurada. Outra semelhança entre as obras analisadas é que devido ao fato de cantar a favela com uma linguagem menos romantizada, os três artistas têm dificuldade de terem seus trabalhos expostos na grande mídia. No caso do funk, o problema abrange todo o estilo denominado proibidão. Já no pagode, Kannário tinha muito pouco espaço até o carnaval de 2015. A situação mudou um pouco depois do sucesso na folia, mas ainda assim sua exposição é muito mais reduzida se comparada a de outros grupos e artistas do mesmo gênero. São batalhas que os dois ritmos travam no campo simbólico na tentativa que conseguirem dar voz àqueles constantemente silenciados. Referências bibliográficas CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Trad. Ephraim Ferreira Alves. 13.ed. Petrópolis: Vozes, 2007. NASCIMENTO, Clebemilton. Pagodes Baianos: entrelaçando sons, corpos e letras. Salvador: Edufba, 2012. BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. WILLIAMS, Raymond. Base e Superestrutura: na teoria cultural marxista. Trad. Bianca Ribeiro Manfrini. Revista USP, São Paulo: n.65, p. 210-224, mar./maio. 2005. BURGOS ET AL. O efeito UPP na percepção dos moradores das favelas. Desigualdade e diversidade. Revista de Ciências Sociais da PUC Rio, nº 11, agosto/dezembro de 2011. http://desigualdadediversidade.soc.puc42 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


rio.br/media/4artigo11.pdf. COSTA, Joel Luiz. Quando nasce um favelado? Um tributo de valorização da nossa origem. In: Agência de Notícias das Favelas. Disponível em http://www.anf.org.br/quando-nasce-um-favelado/ Acesso em 21/02/2017, às 16:34. HALL, Stuart. Que "negro" é esse na cultura negra? In: Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; Tradução Adelaine La Guardia Resende... et all. - Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasilia, 2003. MARTÍN-BARBERO, Jesús. De las políticas de comunicación a la reimaginación de la política. Revista Nueva Sociedad, Bogotá: n. 175, p. 70-84, set./out. 2001. SANTOS, Milton. Os Pobres na Cidade In: A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção, 4. ed. 2. reimpr. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. WACQUANT, Loic, Ghetto, 2004. Disponível em: http://www.loicwacquant.net/assets/Papers/GHETTOntlEncySocBehavSciences.pdf Acesso em 27 de julho de 2016. TIBURI, Marcia. A nova moral do funk, 2011. Disoinível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2011/11/moral-funk/ Acesso em 5 de fevereiro de 2017.

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AULAS SOBRE CULTURA: O SENTIDO DAS LEIS 10.639/03 E 11.645/08 E SEUS EFEITOS NA CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA DOS ESTUDANTES

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Eulia Rejane Silva2 RESUMO No tempo presente é inegável a interferência da cultura africana no processo de formação da cultura brasileira. Essa influência pode ser percebida em vários segmentos da sociedade como já enunciaram inúmeros pesquisadores. A culinária, a dança, a música, a língua e as práticas religiosas contribuem para a constituição de uma identidade multicultural e, por isso, é preciso repensar o ambiente de aprendizagem no espaço escolar. Os discursos dos Livros Didáticos ainda aparecem como lugares fecundos para discussão sobre as relações entre o dito e o não-dito. São textos construídos, em sua maioria, a partir do que não é dito, ou seja, não é contada a história das contribuições, das tradições e das realizações dos povos negros e indígenas em terras brasileiras. Para esse trabalho que nos propusemos a realizar, pensamos em sujeito, linguagem e história como noções necessárias de serem compreendidas. A linguagem é mediadora entre sujeito e história, por isso é importante pensá-la em sua prática e não como um sistema de regras formais. Não se tratou, portanto, de realizar estudos tradicionais da linguagem, nem entrar na área da Antropologia e da Sociologia; não quisemos, tampouco analisar conteúdos. Buscamos evidenciar um lado da história do Brasil e dos negros que ainda não é respeitada e tentamos descontruir conceitos que colocam esses povos em situação de inferioridade e negatividade. A proposta foi alargar os conhecimentos dos estudantes sobre nossas origens e incentivar a pesquisa de fatos históricos e de personalidades negras que muito contribuíram para a constituição dessa sociedade multicultural. Estudar sobre história, cultura e arte Afro-brasileira é conhecer um povo do qual somos herdeiros – genética e culturalmente – viabilizando eliminar pré-conceitos e reformular informações equivocadas que sustentam atitudes de desrespeito e agressividades. E, sobretudo, possibilita pensar na constituição de suas identidades, de modo a contribuir para o reconhecimento da importância de diferentes povos na construção da sociedade brasileira. Com esse propósito, delineamos como objetivos específicos: i) compreender que a sociedade brasileira é formada por pessoas de diferentes etnias; ii) utilizar diferentes linguagens (corporal, musical, plástica, oral e escrita) nas diferentes intenções e situações de comunicação para que os/as estudantes expressassem ideias, sentimentos, necessidades, desejos e avançassem no seu processo de construção de significados e de sua identidade; iii) ampliar conhecimentos acerca da história do povo brasileiro. A partir daí, definimos temas condutores das aulas e iniciamos um processo que afirmasse os valores da cultura que estavam silenciados no material didático. Procuramos dar visibilidade aos aspectos da história dos africanos e dos indígenas e contribuir para a democratização das relações etnicorraciais no ambiente escolar (Silva, 2016). Organizamos a aprendizagem com a metodologia da ―pesquisa-ação‖ e os procedimentos adotados foram leitura, Roda de Conversa (momentos de debate), Apresentação Oral, Produção Escrita, Exposição (Mostras de trabalhos em sala e Mostra Pedagógica), Apresentação Cultural (dança). De acordo com Orlandi (2005), para compreender como um discurso produz sentido, não se pode preterir o contexto histórico que o fez emergir, pois as palavras não são nossas. Elas significam pela história e pela língua. Para não correr o risco de uma manipulação por determinados grupos é necessário buscar diversas contribuições para a compreensão do que não foi dito; por isso os debates tornaram-se espaços importantes de busca dos sentidos e de implementar as leis 10.639/03 e 11.645/08 na sala de aula. Consideramos, nesse pequeno percurso de trabalho, as contribuições trazidas por Guimarães (2002), Pêcheux (1990/1997), Orlandi (2005), a experiência de colegas professores que já desenvolvem a temática em suas aulas e diversos pesquisadores do tema, aos quais recorremos e citamos na referência do trabalho. Concluímos que utilizar diferentes linguagens nas diversas intenções e situações de comunicação permitiram aos estudantes expressassem ideias, sentimentos, necessidades, desejos e conseguissem avançar no processo de construção de significados daquilo que faziam. Também, foi possível abordar o silenciamento sobre aspectos culturais e linguísticos de 1

Trabalho apresentado no GT.01 - Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Na nota de rodapé, tamanho 10, justificado, deve ter a filiação (titulação máxima, instituição de origem por extenso, cidade e estado) e o endereço eletrônico. Ex.: Graduando da Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: email@email.com 44 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


grupos étnicos que durante anos forma(ra)m a maioria da população brasileira. A realização do trabalho na sala de aula teve por objetivo contribuir para a desestabilização de dizeres cristalizados sobre a impossibilidade de desenvolver atividades relativas à história e à cultura africanas e indígenas por causa das inúmeras dificuldades e contratempos enfrentados diariamente no espaço escolar. Não tínhamos a ilusão de completude, apenas lançamos possibilidades instigadoras sobre um tema profícuo à inúmeras realizações. Palavras-chave: Cultura; Identidade, Sentido; Educação das Relações Etnicorraciais.

Introdução

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o tempo presente é inegável a interferência da cultura africana no processo de formação da cultura brasileira. Essa influência pode ser percebida em vários segmentos da sociedade como já enunciaram inúmeros pesquisadores. A culinária, a dança, a música, a língua e as práticas religiosas contribuem para a constituição de uma identidade multicultural e, por isso, é preciso repensar o ambiente de aprendizagem no espaço escolar. Foi com a participação nos cursos, minicursos e oficinas que abordavam o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, oferecidas pela Secretaria Municipal de Educação, por meio do Núcleo de Educação das Relações Etnicorraciais3 e Superintendência4 da Igualdade Racial, no período compreendido entre os anos de 2013 e 2014, na cidade de Uberlândia, que tivemos uma melhor compreensão da importância de valorizar a identidade, a história e a cultura de afro-brasileiros e de indígenas garantindo o reconhecimento e a valorização das origens da sociedade brasileira, e a implementação de uma educação das relações etnicorraciais. Desde então, buscamos promover na escola onde trabalhamos uma educação que estimule a produção de conhecimentos, o desenvolvimento de atitudes, e a reflexão de valores ligados à identidade etnicorracial do nosso país. E o que apresentamos neste ensaio é uma amostra do trabalho realizado em 2015 com estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental I. O desenvolvimento do tema ―Educação das relações etnicorraciais‖ na sala de aula teve por objetivo contribuir para a desestabilização de dizeres cristalizados sobre a impossibilidade de desenvolver atividades relativas à história e à cultura africanas e indígenas por causa das inúmeras dificuldades e contratempos enfrentados diariamente no espaço escolar. Tentamos compreender porque as palavras e os enunciados não dizem sempre ―a mesma coisa‖ nas diversas situações em que são utilizadas. Conforme Pêcheux, não somos donos do nosso dizer nem temos o controle dos seus efeitos sobre os sujeitos, por isso, quisemos que sentidos fossem elaborados para além da história contada sobre os negros e indígenas em uma única perspectiva: a eurocêntrica. Não tivemos a ilusão de completude, apenas lançamos possibilidades instigadoras sobre um tema profícuo à inúmeras realizações. Consideramos, nesse pequeno percurso de trabalho, as contribuições trazidas por Guimarães (2002), Pêcheux (1990/1997), Orlandi (2005), a experiência de colegas professores que já desenvolvem a temática em suas aulas e diversos pesquisadores do tema, aos quais recorremos e citamos na referência. Também, não foi nossa pretensão com esse trabalho entrar na área da Antropologia nem da Sociologia; quisemos apresentar aos estudantes a história do povo negro aqui no Brasil que não estava presente nos textos do Livro Didático com qual trabalharíamos. Isso, para nós, mais se aproximou de uma

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A criação do NERER - Núcleo de Educação das Relações Etnicorraciais – (Decreto 14.934 de 06 de junho de 2014) foi uma das ações da Secretaria Municipal de Educação e objetivou estabelecer uma política de atuação didático-pedagógica que positivasse as relações etnicorraciais nos níveis e modalidades de ensino de competência da Rede Municipal a partir de 2013. Em 2017, com a nova Gestão Municipal, o NERER foi extinto (Decreto 16.966/2017), assim como os outros dez (10) Núcleos de Formação Continuada do Centro Municipal de Estudos e Projetos Julieta Diniz-CEMEPE/SME. 4 A criação da Superintendência da Igualdade Racial (Lei Municipal nº 11.354/2013) foi outra ação proposta no Plano de Governo da gestão 2013-2016 que instituiu a Rede Pública Municipal pelo direito de Ensinar e Aprender no Município de Uberlândia (Lei 11.444/2013). Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 45


tentativa de assumir convicções sobre uma educação humanizadora, uma possibilidade de construir práticas que promovam reflexões, enfim uma tarefa relevante por provocar inquietações. O sentido das leis 10.639/03 e 11.645/08 na sala de aula Segundo Guimarães (2002, p. 26) ―o sentido de uma sentença não é sua referência a um objeto ou conjunto de objetos, é o conjunto de condições nas quais a sentença se faz verdadeira‖. Adotando essa concepção de sentido consideramos que era necessário mediar interações em que fosse possível interpretações, questionamentos, releituras e (re)construções acerca da temática racial. Como afirmamos (Silva, 2016), os discursos dos Livros Didáticos ainda aparecem como lugares fecundos para discussão sobre as relações entre o dito e o não-dito. São textos construídos, em sua maioria, a partir do que não é dito. Não é contada a história das contribuições, das tradições e das realizações dos povos negros e indígenas em terras brasileiras, mas ainda aparecem, nos textos e nas imagens, as fugas dos negros, os troncos onde eram castigados, e a versão da Abolição da Escravatura marcada pela figura da princesa e como um marco de libertação. Quando retomamos o texto da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, e lemos em seu artigo 3º, inciso IV, que um dos objetivos fundamentais da República é ―Promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação‖ observamos que no dia-a-dia do ambiente escolar a promoção desse direito continua restrita e a valorização desses povos (negros e indígenas) ainda não é enunciada nos textos oferecidos como material pedagógico. Daí pensarmos nos efeitos que isso produz no imaginário de estudantes negros e pardos inseridos em um espaço educativo que, muitas vezes, não inclui. Para falarmos sobre os efeitos de sentido procuramos seguir o percurso da Análise de Discurso (AD) de base pêcheuxtiana no que se refere ao ―dito‖ e ―não-dito‖ sobre a história dos negros e indígenas presente (ausente) no material didático adotado para o Ensino Fundamental I na escola em que trabalhamos, pois os sentidos são construídos conforme os discursos se inscrevem na língua e na história. Dizer que os sentidos podem ser constituídos a partir do que não está expresso do texto é considerar que o lugar de onde são enunciados também importa nessa construção. Esses lugares estão marcados nas Formações Discursivas (FDs) 5em que são produzidos. Fica claro, portanto, que políticas universalistas, que diluem o tópico racial inviabilizam as correções históricas que deverão serem feitas contemplando essa população duplamente discriminada pela classe e pela cor. Alcançar as proposições constitucionais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária exige, portanto: Indignar-se com as injustiças sociais e projetar um futuro onde a utopia da igualdade e da fraternidade seja possível, exige a adoção de ações afirmativas baseadas em critérios etnicorraciais, isto é, programas e medidas especiais, adotadas pelo estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades de oportunidades, que historicamente foram construídas. (ROCHA, 2016, p. 12)

A implementação das lei 10.639/03 e 11.645/08 em sala de aula é, ao nosso ver, um compromisso dos educadores com as políticas públicas de promoção da igualdade e um comportamento afirmativo com o propósito de diminuir as injustiças sociais. O sujeito, de acordo com Pêcheux (1997 apud ORLANDI, 2005), é compreendido como ser assujeitado, como efeito de linguagem, constituído pela língua, dividido, clivado, heterogêneo. Nele a contradição, a dispersão, o equívoco, a descontinuidade, a incompletude e a falta são estruturantes. Seguindo nessa linha de estudos desenvolvidos pela AD entendemos que os sentidos podem ser lidos em um texto mesmo que não estejam materializados nele. Por isso, a relevância de se considerar o que está expresso e o que está implícito. 5

Precisamos lembrar que o conceito de FD não é de Pêcheux. É uma elaboração de Michel Foucault, que pode ser encontrada no livro Arqueologia do saber, ressignificada no campo da análise de discurso por Michel Pêcheux. 46 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


É buscar o que não foi dito pelo que foi dito e tentar compreender os efeitos que isso produz para diferentes sujeitos (Pêcheux, 1988). Por isso, buscamos evidenciar um lado da história do Brasil e dos negros que ainda não é respeitada e tentamos descontruir conceitos que colocam esses povos em situação de inferioridade e negatividade. A proposta6 foi alargar os conhecimentos dos estudantes sobre nossas origens e incentivar a pesquisa de fatos históricos e de personalidades negras que muito contribuíram para a constituição dessa sociedade multicultural. Estudar sobre história, cultura e arte Afro-brasileira é conhecer um povo do qual somos herdeiros – genética e culturalmente – viabilizando eliminar pré-conceitos e reformular informações equivocadas que sustentam atitudes de desrespeito e discriminação. De acordo com Orlandi (2005), as palavras não são nossas elas significam pela história e pela língua, assim, para não correr o risco de uma manipulação por determinados grupos é necessário buscar diversas contribuições para a compreensão do que não foi dito; por isso os debates tornaram-se espaços importantes de busca dos sentidos e de implementar as leis 10.639/03 e 11.645/08 na sala de aula. De acordo com Pêcheux (Fuchs & Pêcheux, 1975) deve-se conceber o discursivo como um dos aspectos materiais do que chamamos de materialidade ideológica. Assim sendo, as análises e interpretações deixam de ser em torno das proposições, palavra por palavra, e passam a ter o foco no discurso. Com essa compreensão não se deve buscar o que está oculto no papel como se os significados fossem fixos e estivessem escondidos em meio as palavras. Nosso objetivo em relação à implementação das leis 10.639/03 e 11.645/08 não foi a análise e a explicação do que já estava posto nos textos, mas enxergar os sentidos que podem ser construídos e não estão transparentes; pois eles também ocorrem na opacidade da materialidade deles. Seguindo a perspectiva dos estudos de Pêcheux buscamos verificar o dito e o não-dito compreendendo como os textos (objeto linguístico histórico) produziam sentidos ao serem enunciados (lidos e interpretados). O não dito diz respeito às diversas possibilidades da linguagem e atravessa o dito. O não-dito é, segundo Orlandi (2005), subsidiário ao dito e, de alguma forma, o complementa. Com base nesses pressupostos teóricos o gesto de interpretação lançado sobre o material impresso no Livro Didático foi na perspectiva de demonstrar como parágrafos aparentemente informativos podem desvelar o apagamento de uma visão eurocêntrica que não respeita o lugar que o negro e o indígena ocuparam e ocupam na construção da sociedade brasileira. Nas Rodas de Conversa temáticas mediamos debates que evidenciassem o silenciamento sobre como se deu o processo de escravização exercido contra os negros; e o silenciamento sobre a expropriação das terras onde os indígenas já estavam estabelecidos. Apresentamos trechos que confrontavam o discurso da igualdade racial no Brasil com a negação das culturas de cada povo; que os apresentam nos textos como iguais, mesmo tendo sido comprovado por inúmeros trabalhos 7, a injustiça social para com esses povos. Emergiram dessas discussões fatos silenciados ao longo da história e do ensino sobre história da formação do povo brasileiro, como: modalização da condição de viver como escravo; silenciamento do fato de terem sido vítimas de desumanização e de terem todos os seus direitos expropriados; desconsideração dos aspectos psicológicos sem respeitas as diferenças das organizações comunitárias indígenas e do povo negro e as diferenças biológicas desses povos tratados uniformemente; abordagem dos mecanismos de resistência (fugas e criação de quilombos, por exemplo) como se fossem ações e atos de ingratidão e rebeldia e não reações às imposições as quais eram submetidos; silenciamento sobre os aspectos e interesses políticos que permearam a saída dos negros da África. Com isso, verifica-se que para interpretar e compreender é preciso conhecer as condições de produção daquilo que está sendo analisado. Compreender o processo histórico e ideológico em que se deu a

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Projeto intitulado ―A Música brasileira e suas raízes na África‖. Pode ser consultado em nosso trabalho ―Relações etnicorraciais aulas sobre cultura para superar preconceitos‖ publicado pela Minas Editora; citado na referência. 7 Para melhor fundamentação pode-se recorrer à CURY, C. R. J. (2005); THEODORO, M. (2008); JACCOUD, L. B. & NEGHIN, N. (2002). Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 47


produção de acontecimentos implica em saber do momento histórico, político e social que os motivaram. O nãodito, parte do discurso que não é palavra; produz sentido(s). De acordo com Orlandi (2005), para compreender como um discurso produz sentido, não se pode preterir o contexto histórico que o fez emergir. Concordamos com a autora e com os pesquisadores da temática racial (alguns dos quais citamos na referência) sobre a urgência em se promover ações afirmativas de forma consistente, continuada, pois não é suficiente que o Estado afirme, por meio de leis e decretos, a igualdade e a existência de mecanismos de promoção da igualdade racial; é necessário, e urgente, o compromisso de implementar tais políticas e de enfrentar a discriminação e o racismo existentes na sociedade brasileira. Aulas sobre cultura: efeitos na constituição identitária dos estudantes O sentido, segundo compreendemos a partir dos estudos da AD, está diretamente relacionado ao mundo do sujeito e não apenas àquilo que é enunciado. Portanto, não bastava apresentar os textos escritos aos estudantes sem considerar as condições de produção, as condições históricas e políticas em que foram elaborados, tampouco apresentá-los distanciados das condições históricas e políticas dos sujeitos que as protagonizaram. Entendemos que é necessário ressignificar essa proposta de ensino que entende a África separada do Brasil e o Brasil sem a história e a cultura dos africanos e dos indígenas. É importante auxiliar os estudantes na compreensão dos sentidos que foram construídos acerca dos negros e dos indígenas, pois os sentidos não estão soltos, são geridos na relação entre sujeitos. Parece-nos necessário apreender o significado dos textos produzidos sobre a história e cultura afrobrasileira e indígena e o sentido que eles produzem. Considerando que ―o sentido de um enunciado linguístico é o que ele representa do mundo, dos objetos, de um estado de coisas.‖ (GUIMARÃES, 2002, p. 23) A sala de aula transforma-se, assim, em espaço de reflexão sobre os enfrentamentos dos povos negros e indígenas ao longo da história e apresentar a herança recebida pela população negra após a Lei Áurea é um dos mecanismos que possibilitam a compreensão da injustiça praticada contra eles. A inserção no mercado informal de trabalho, a impossibilidade de aquisição de terras, transformandose em trabalhadores rurais – ainda que preteridos pelos imigrantes europeus, a criação de escolas sem considerar a condição desigual de acesso e permanência para ex-escravos e os filhos destes são alguns tópicos que desvelam o lugar do negro na sociedade e ajudam os estudantes compreenderem a origem das desigualdades e os fazem refletir sobre (des)caminhos da inclusão. Compreender a dureza e a crueldade desse racismo impregnado na sociedade brasileira, confirmado pelos números das estatísticas poderá nos levar para um caminho para além do racismo, abrindo espaços para a ampliação e o fortalecimento de ações concretas (...) levando em consideração os grupos sociais, historicamente discriminados. (Rocha, 2016, p. 13)

A promulgação da Lei 10.639 em 2003 foi uma ação afirmativa que possibilitou a construção de conhecimentos sobre a história e a cultura dos povos de origem africana em todos os níveis e modalidades de ensino. A partir dessa lei tornou-se obrigatória a inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar e, com isso, foram ampliadas as possibilidades de reorganizar o ensino e debater sobre conceitos importantes que foram silenciados por um período na história do Brasil. Estudar a História da África e dos Africanos, saber da luta dos negros no Brasil, conhecer a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional são possibilidades de saber da contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do nosso país. Transforma-se, ainda, em possibilidade de ampliar as relações interpessoais e aprender respeitar a diversidade etnicorracial e cultural para desenvolverem atitudes de promoção sistemática da igualdade da pessoa humana como sujeito de direitos.

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Para as aulas, elegemos, a partir do Livro Didático, os Conteúdos Programáticos 8 que seriam os norteadores de todo o trabalho, dentre eles a Diversidade do Brasil e sua divisão territorial; a Divisão política do Brasil; as Regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Sul; o espaço geográfico regional e local. Definidos esses temas condutores das aulas iniciamos um processo que afirmasse os valores da cultura que estavam silenciados no material didático. Procuramos dar visibilidade aos aspectos da história dos africanos e dos indígenas contribuindo para a democratização das relações etnicorraciais no ambiente escolar. Ao definirmos os três objetivos específicos aulas como sendo: i) compreender que a sociedade brasileira é formada por pessoas de diferentes etnias; ii) utilizar diferentes linguagens (corporal, musical, plástica, oral e escrita) nas diferentes intenções e situações de comunicação; iii) ampliar conhecimentos acerca da história do povo brasileiro; quisemos que as aulas constituíssem-se de momentos e espaços para que os estudantes pudessem conhecer e valorizar a história dos povos africanos e indígenas, da cultura afrobrasileira e da importância dos negros na construção do país e refletissem sobre seus ascendentes históricos e, ainda, para que os estudantes expressassem ideias, sentimentos, necessidades, desejos e avançassem no seu processo de construção de significados e de suas identidades. A importância dada aos conteúdos revela um compromisso da instituição escolar em garantir o acesso aos saberes elaborados socialmente, pois estes se constituem como instrumentos para o desenvolvimento, a socialização, o exercício da cidadania democrática e a atuação no sentido de refutar ou reformular as deformações dos conhecimentos, as imposições de crenças dogmáticas e a petrificação de valores. Os conteúdos escolares que são ensinados devem, portanto, estar em consonância com as questões sociais que marcam cada momento histórico. (PCNs, 1997, v. 1, p. 11)

Como já tínhamos observado no decorrer do primeiro mês de aulas (período em que fizemos um diagnóstico da turma) que o gosto musical apresentado e representado pelos estudantes passava pelo Funk, optamos pelo estudo interdisciplinar baseado nos ritmos e estilos musicais. Retomamos os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (PCNs, 1997)9 e verificamos que dentre os objetivos estabelecidos para esse nível de ensino estão o conhecimento e valorização da pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais. Confirmamos, então a viabilidade da nossa proposta de trabalho. Optamos por organizar a aprendizagem com a metodologia da ―pesquisa-ação‖ que durou nove (09) meses – de Março à Novembro. Nesse período os estudantes pesquisavam em livros, revistas, páginas da internet, na escola e em casa, apresentavam questões (dúvidas) para debate, faziam autorreflexão e produziam atividades relativas ao tema proposto. Sempre com intervenção, comentários e refazimento de atividades, quando não apresentavam compreensão de algum tópico estudado. Os procedimentos adotados ao longo de todo o projeto foram: Leitura, Momentos de debate que chamamos de Roda de Conversa10, Apresentação Oral, Produção Escrita, Exposição (Mostras de trabalhos em sala e Mostra Pedagógica), Apresentação Cultural (dança). No decorrer dos nove meses do projeto escolhemos os procedimentos que, a nosso ver, poderiam propiciar as condições necessárias para que os estudantes na relação uns com os outros pudessem assumir-se como seres sociais e históricos, isto é, como sujeitos. 8

Os conteúdos aqui citados são alguns dos quais trabalhamos ao longo do ano. Interessa-nos apenas exemplificar que, com esses temas foi possível conhecer a diversidade cultural; abordar aspectos da formação política no país; e debater sobre a formação dos Quilombos e buscar suas localizações. 9 Os Parâmetros Curriculares Nacionais, tanto nos objetivos educacionais que propõem quanto na conceitualização do significado das áreas de ensino e dos temas da vida social contemporânea que devem permeá-las, adotam como eixo o desenvolvimento de capacidades do aluno, processo em que os conteúdos curriculares atuam não como fins em si mesmos, mas como meios para a aquisição e desenvolvimento dessas capacidades. Nesse sentido, o que se tem em vista é que o aluno possa ser sujeito de sua própria formação, em um complexo processo interativo em que também o professor se veja como sujeito de conhecimento. (PCNs, 1997, v. 1, p. 11); grifo nosso. 10 Metodologia adotada pela Secretaria de Educação (2013-2016) pela Lei nº 11.444/2013 que instituiu a Rede Pública Municipal pelo Direito de Ensinar e de Aprender no Munícipio de Uberlândia. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 49


Toda criança negra tem o direito de encontrar na escola um espaço prazeroso de informação, formação e socialização, onde ela possa construir positivamente sua identidade e orgulhar-se dela. [...] A criança negra tem o direito de ser respeitada em sua dignidade humana. (Rocha, 2000 apud Rocha, 2016, p. 25)

A escola não pode ser um lugar de reprodução do racismo e de práticas discriminatórias. Enquanto espaço educativo, não pode silenciar-se diante das desigualdades que ainda mantêm os negros e indígenas em situação de exclusão. Nosso trabalho foi uma tentativa de incluir no planejamento de nossas aulas a trajetória histórica de grupos sociais importantes para a formação do país que é silenciada. Quisemos manter uma proposta didática e pedagógica que fizesse com os estudantes refletissem sobre o processo histórico de racismo, discriminação e preconceito exercido contra os povos negros e como essas situações vêm sendo reforçadas pelos mecanismos velados de exclusão. Esse trabalho desenvolvido ao longo do ano de 2015, pode não ser considerado como uma opção pedagógica interétnica pelo fato de não possuirmos um histórico de militância e inserção no Movimento Negro, mas isto não foi impedimento para realizá-lo e consideramos que foi uma oportunidade de efetivar uma educação cidadã em uma sociedade plural. Considerações As atividades realizadas com os estudantes do 5º ano possibilitaram aos estudantes compreenderem a visão negativa que foi construída sobre os negros ao longo do tempo, conhecerem alguns problemas causados pelo apagamento de conteúdos curriculares sobre a história dos africanos e indígenas em terras brasileiras. Também foi possível abordar o silenciamento sobre aspectos culturais e linguísticos de grupos étnicos que durante anos formaram11 a maioria da população brasileira e constatar que no decorrer das aulas os estudantes conseguiam desvincular a identidade negra da imagem do escravo e o reconheciam como figura importante na agricultura, na medicina, na culinária, na dança, na música, no esporte. Verificamos que a nossa opção de destacar pessoas e experiências que, ao contestar a ideia de submissão, defenderam a igualdade e contribuíram para o fortalecimento de movimentos contra a discriminação racial resultou em reconhecimento e respeito, ainda que não tenhamos atingido a valorização em sua totalidade. Constatamos que muitos profissionais da educação ainda não estão dispostos a debater sobre a temática racial, menos ainda efetivá-la. Pedagogicamente, não interessa a todos da comunidade escolar e não é dada a devida importância, embora existam leis que estabelecem o contrário. Acreditamos que por meio da ação educativa desenvolvida intencionalmente com os estudantes eles assimilaram os diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira e desenvolveram a capacidade de refletir criticamente sobre as relações sociais, econômicas e políticas construídas e acumuladas historicamente. Portanto, nossos objetivos foram alcançados e as sementes foram lançadas. Referências BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997. CURY, C. R. J. Políticas Inclusivas e Compensatórias na Educação Básica. Cadernos de Pesquisa. São Paulo. V. 35, n. 124. Jan./abr. 2005. 11

De acordo com a PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios/IBGE divulgada em 13/11/2015 53% dos brasileiros se declararam pardos ou negros. 50 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


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THE LION, THE WITCH AND THE WARDROBE BY C. S. LEWIS: AN ILLUSTRATION OF CHRISTIANITY IN CONTEMPORARY LITERATURE

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Paula Costa dos Santos2 Renata Cristina da Cunha3 ABSTRACT Christianity and Literature have converged in countless occasions throughout different and renamed authors of distinguished ages. C. S. Lewis, for example, wrote a specific kind of tales whose protagonists are imaginative and mythological creatures, focusing on religious themes close to contemporary reality, outlining the power of literature combined literary subjects. This way, the main theme of this essay are the features of Christianity in the first book of the series The Chronicles of Narnia called The Lion, the Witch and the Wardrobe written by C. S. Lewis in 1950. To understand these characteristics intertwined in the book, the following question is proposed: What Christian features are found in The Lion, the Witch and the Wardrobe? In order to answer this question, the following objectives were established: Goal objective: To investigate Christianity features in The Lion, the Witch and the Wardrobe. Specifically, the objectives are: To elucidate the establishment and characteristics of Christianity as a religion; To clarify C. S. Lewis‘ life, emphasizing facts that influenced his literary production and Christian life and To analyze the main characters and plot of The Lion, the Witch and the Wardrobe relating them to The Bible. This study is a bibliographic research of descriptive-exploratory type and qualitative approach framed in authors as McGrath (2013), Veith (2006), among others. The results of the research highlight essential Christian features on the main characters: the children are a connection with the creation and proposed of human race described in The Bible, the White Witch symbolizes Lucifer and Aslan, Jesus. This way, it infers that the arrival of Father Christmas is connected to Jesus‘ birthday; the fight between good and evil forces illustrates the fight between Heaven and Hell; and that the whole plot of the book leads to the sacrifice of Aslan for the children, which symbolizes Jesus death on the cross. Keywords: Christianity. The Chronicles of Narnia. C. S. Lewis. The Lion, the Witch and the Wardrobe.

Introduction

C

hristianity and Literature have converged in countless occasions throughout different and renamed authors of distinguished ages. C. S. Lewis, for example, wrote a specific kind of tales whose protagonists are imaginative and mythological creatures, focusing on religious themes close to contemporary reality, outlining the power of literature combined literary subjects. This way, the main theme of this essay are the features of Christianity in the first book of the series The Chronicles of Narnia called The Lion, the Witch and the Wardrobe written by C. S. Lewis in 1950. The book shows its readers the journey of four English children who were chosen to save Narnia, a mystic land that exists inside our own world, from evil forces while the World War II was happening in the real world. The Lion, the Witch and the Wardrobe is considered by critics one of the books that most influenced children all over the world during the middle of the twentieth century. However, still nowadays, the twentiethfirst century, this collection arouses passion and interest to its readers (C. S. LEWIS INSTITUTE, 2010). According to C. s. Lewis official website, 100 million copies of the seven books have been sold in forty-one languages until the present date. 1

Trabalho submetido ao GT.01 – Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Acadêmica do curso de Letras-Inglês da Universidade Estadual do Piauí, campus Parnaíba-PI. Email:pauliinhaa_freittas@hotmail.com 3 Doutora em Educação. Professora Adjunta 2 do curso de Letras –Inglês da Universidade Estadual do Piauí, campus Parnaíba-PI. Email: renatasandys@hotmail.com 52 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


The book narrates a battle in Narnia between chosen children against evil forces in an attempt to free the Narnians of the oppression and slavery imposed by the White Witch. Nevertheless, we believe that what the author was trying to show to children went beyond the wars of this world (GREGGERSEN, 2006), because these stories hide a hidden message: to illustrate Christian values through the characters and plots of the stories, which is the main issue of this research. In order to answer the proposed questions, we developed the following objectives: Goal Objective: to investigate Christian features in The Lion, the Witch and the Wardrobe. Specifically, the objectives are: to elucidate the establishment and characteristics of Christianity as a religion; to clarify C. S. Lewis‘ life, emphasizing facts that influenced his literary production and Christian life; to analyze the main characters and plot of The Lion, the Witch and the Wardrobe relating them to The Bible. To reach these objectives we made a bibliographic research of descriptive-exploratory type and qualitative approach as its aim was to investigate Christian symbols within The Lion, the Witch and the Wardrobe, making a connection between the book, The Bible and concepts of Christianity through Literature review related to the subject. We will see now how Christianity was established. A BRIEF HISTORY OF CHRISTIANITY Christianity‘s path to become a religion4 that nowadays possesses considered influence in many societies. This influence derives from Constantine‘s play to make Rome, one of the biggest empire ever seen, a Christian Empire and because of the Jew philosopher Jesus, who is considered the face of Christianity and a link for Christians to the intellectual and spiritual world: Christianity is, if we may so express it, a double religion. Its teaching has reference to the nature of the intellectual being, and also to our own nature; it makes the mysteries of the Divinity and the mysteries of the human heart go hand-in-hand; and, by removing the veil that conceals the true God, it also exhibits man just as he is. (SEGAL apud CHATEAUBRIAND, 2009, p. 78)

Accordingly, in Christianity there is an acknowledgement of the existence of the Divinity (divided into three) whose powers can exceed men‘s imagination and, as said before, our natural laws. Christianity is, then, a religion devoted to the supposed personification of the Christian God on earth, which Christians believe to be Jesus5 of Nazareth. If we make use of these concepts, then, it is possible to demonstrate aspects of nature and the supernatural that outlines Christianity as a religion, going from its early history to characteristics that can define a Christian person and may be in The Lion, the Witch and the Wardrobe. Christianity follows the words written down on The Bible, a historical and literary book composed by another sixty-six (The King James Bible) smaller books that tell the history of Israel and imaginative stories of their culture. The Bible is divided in two parts6 called the Old Testament, which was translated from Hebrew and Aramaic, and New Testament, translated from Greek. According to William Schniedewind (2008), The Bible‘s stories were previously passed through, orally, for Israel was an oral society, so The Bible, the junction of a collection of old stories, only became a book because of Hebrew writing in Palestine that ―democratized the written word and allowed it to gain religious authority in the book we now call ‗The Bible.‘‖ (SCHNIEDEWIND, 2008, online). After Jesus‘ death, he became the principal figure of the Roman Religion, called the Catholic Church of Rome, the first branch of Christianity. Rome was essential to make Christianity as big as it is nowadays because ―it is generally agreed that the Roman Empire was one of the most successful and enduring empires in world 4

―The belief in and worship of a god or gods, or any such system of belief and worship.‖ (Cambridge Dictionary, online) His Hebrew‘s name is Yehoshua, ―comes from Joshua‘s Hebrew name, which sometimes appears in its shortened form, Yeshua. In Latin the name is rendered as ISEUS, though in old English, the ‗y‘ sound was rendered as ‗j‘, and thus we obtain ‗JESUS‘‖. (PARSONS, 2013, p. 2) 6 The Old Testament is focused on the Jews‘ history and the New Testament is focused on Jesus. 5

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history. Its reputation was successively foretold, celebrated and mourned in classical antiquity.‖ (LUNNROCKLIFFE, 2007, p. 3) Therefore, it is possible to say that this power was capable of converting several conquered people. The oppressed movement started by the disciples would then become a powerful religious institution. Rome visualized an opportunity and with intelligence recognized in the person of Jesus a figure of influence and attractive of power who could and would benefit them. The first Roman Emperor who realized how much this benefit could progress in a polytheist society was Constantine the Great, during his years of rule. He is still an important character of Roman history as he ceased tortures against Christians and united the declining Roman Empire from its imminent fall (FREDRIKSEN, 2006). The intensity of feelings that Jesus created made people love his intellectual and kindness, but the things he talked about was the cause of his death. The Jews who were supposed to be faithful to him, made the Romans crucify him and after his death, Jesus became the principal figure of Christianity and one of the most fundamental characteristics of it. Thus, this religion and Jesus became one of the most important aspect of Clive Staples Lewis‘ life. The faces of C. S. Lewis C. S. Lewis was born on November 29, 1898, in a town called Belfast in Northern Ireland, which is the district capital and biggest city of Ireland. He was Irish by birth and heart that used to hate England and its sights; he was a son of, according to him, two very different people: ―From my earliest years I was aware of the vivid contrast between my mother's cheerful and tranquil affection and the ups and downs of my father's emotional life‖ (C. S. LEWIS, 1943, p. 05), these characteristics were important to Lewis for his parents had eyes only to books; they were kind people who craved for a good and simple life in the countryside of Ireland. Everything was in place in Lewis‘ life, he liked the solitude and his talking animals; he got used to go to church on Sundays by the influence of his parents; his family was doing just perfectly fine, as he described in his autobiography book (MCGRATH, 2013). However, everything started to negatively change for Lewis after his last family vacation in the end of August, 1907. The lost that he suffered in the following days would change his entire life. In his autobiography book, Surprised by Joy (1955), Lewis states that he was born into an AngloCatholic family, nevertheless he did not give much attention over the traditions brought up from his parents‘ religion; he believed in God as his parents have taught him, he read The Bible and prayed as everybody else in his house, not caring for what it really meant. However, he prayed much more following the surprising news; his mother had discovered that she had an abdominal cancer (MCGRATH, 2013). He prayed day after day and night after night for God to cure his mother from cancer, he prayed when her mother started to get ill, but nothing extraordinary happened and disillusion brought him to atheism (STEWART, 2010). Those days in August 1908 were the last days he would pray to God for many years following his mother‘s death. The first time that C. S. Lewis declared himself an atheist, he had been influenced by his mentor Kirk, a very intelligent man that did not believe in God; he had a major influence on leading C. S. Lewis to atheism (LINDSLEY, 2002). It was through his friendship with Hugo Dyson, a very well-known English scholar, and J. R. R. Tolkien, one of the most classic authors of English Literature, that Lewis saw Christianity with good eyes. They all met in a small literary group in Oxford called The Inklings (PECK, 2011). Tolkien and Dyson had a fundamental influence on C. S. Lewis‘ conversion to Christianity. They spent hours and hours debating with Lewis about God. According to many scholars, that was the key to Lewis conversion. C. S. Lewis was a respected scholar and a teacher at Oxford University for 29 years and then a professor of Medieval and Renaissance Literature at Cambridge University at the end of his career. An atheist throughout his early life, he adopted theism in 1929 and converted to Christianity in 1931 (MONDA, 2008). C. S. Lewis‘ ultimate objective was to indirectly propagate Christianity in the whole world and also in the academic world. After, his conversion, according to himself (1955), every action he would make would be in 54 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


favor of what he believed in, so even his fictional books have some traits related to Christianity, an ideology that was with since his childhood even though he had not realized at the time: ―And before I knew what I desired, the desire itself was gone, the whole glimpse withdrawn, the world turned commonplace again, or only stirred by a longing for the longing that had just ceased.‖ (C. S. LEWIS, 1955, p. 16). In Narnia, for example, he put together every piece of imagination that he always had and put a little but a strong drop of Christian words. In this example, he wanted to present God to a certain and particular kind of people: children, as one day he was. C. S. Lewis is then one of the greatest Christian thinkers of the twentieth century (CHRISTIANITY TODAY, 2001) always having an astonishing rate worldwide to his books. The creation of a visionary world: a christian Narnia A christian illustration of the three main characters C. S. Lewis was capable of passing this thought presenting childhood as it really is and not through the eyes of an adult (VEITH, 2006), which bring us to really comprehend the role of each child in the book, as an individual and as someone connected to the spiritual world that C. S. Lewis may have showed in Narnia; Narnia may have become not an escaping place for the four children, but a sanctuary to find the Christian God. He created Peter, the older brother, Susan, the older sister, Edmund, the younger brother and Lucy, the younger sister and the youngest of them all. They had to leave London because of the World War II; little they knew about what they would have to face in an even more terrible war that would obligate them to make choices of life and death. As they enter in Narnia we can immediately see the first relation of the four children with Christianity and one of its characteristics showed before, the Theory of Creationism. The Bible (2004) states in its first book called Genesis that the Christian trinity created two human beings from the dust so they could populate the Earth: ―Then God said, ‗Let us make human beings in our image, in our likeness, so that they may rule over the fish in the sea and the birds in the sky, over the livestock and all the wild animals, and over all the creatures that move along the ground.‘ (THE BIBLE, 2004, p. 1) The two first human beings, according to The Bible (2004) were called Adam and Eve; they are the parents of humanity and very person born after them would have domain over every living creature. In The Lion, the Witch and the Wardrobe, the first children to enter in Narnia is the youngest, Lucy, in the second chapter. She, as the other children, enters in Narnia through the wardrobe in the professor‘s house. The first character that Lucy finds in Narnia is Mr. Tumnus, a faun7. As soon as Mr. Tumnus sees Lucy he sees how different she is and what she is in fact: ―Good evening,‖ said Lucy. But the Faun was so busy picking up its parcels that at first it did not reply. When it had finished it made her a little bow. ―Good evening, good evening,‖ said the Faun. ―Excuse me – I don‘t want to be inquisitive – but should I be right in thinking that you are a Daughter of Eve?‖ (C. S. LEWIS, 2002, p. 11)

As we can see, this a very direct reference to what Christian believe to be the first human beings on Earth who were created by the trinity (God, Jesus and the Holy Ghost). As in The Bible, in The Lion, the Witch and the Wardrobe to be a descendant (son and daughter) of Adam and Eve makes an individual very special with a title of greatness in Narnia who possesses a lot of respect from the Narnians. We can assume then, a canon that C. S Lewis used this aspect of the characters to link them to Christianity‘s beliefs. As we said before, according to The Bible (2004) and consequently, to the Theory of Creationism, human beings have the authority to subject other species, like animals (in the book we see also see mythologies characters). C. S. Lewis makes references to this authority and respect showing the respect that the Narnians feel for the children, as in the first dialogue of Lucy and Mr. Tumnnus: 7

Faun is an imaginary creature that is like a small man with a goat‘s back legs, a tail, ears, and horns. (Cambridge Dictionary, online)

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―You are in fact a human?‖ Of course I‘m human,‖ said Lucy, still a little puzzled. ―To be sure, to be sure,‖ said the Faun. ―How stupid of me! But I‘ve never seen a son of Adam or a daughter of Eve before. I am delighted. That is to say-‖ and then it stopped as if it had been going to say something it had not intended but remembered in time. ―Delighted, delighted,‖ it went on. (C. S. LEWIS, 2002, p. 12)

We understand that Mr. Tumnus demonstrates the importance of seeing a daughter of Eve in Narnia and how honor he is to have the opportunity to meet one for the first time. Lucy in turn demonstrates love and gratitude towards the faun for his sympathy in welcoming in his homeland. We can see the resemblances with the peace mentioned in The Bible (2004) between men and animals before the first sin that broke the bond between men and the Christian God. Therefore, the main reason that the children can save Narnia is because they have a close relation with the creator. Each child has its own purpose and conquest in Narnia. It is possible to see in The Lion, the Witch and the Wardrobe that Aslan is the love who would fight and sacrifice himself for its children, and for them he silent suffered, as we will see later this event is the most significant similarity of The Lion, the Witch and the Wardrobe; however, what can make Aslan the Christ in the book can be understood with two aspects of him; Aslan is the king of the forest, ‗the great lion‘ – Aslan in Turkey means lion – as well as Jesus is referred in The Bible (2004) as ‗the lion of tribe Judah‘8. C. S. Lewis wrote in a letter to answer one of his readers called Anne that Aslan being a lion is a reference to the Christ (DORSETT, 1985), as we can see in this passage in The Bible, Jesus is also a lion: ―And one of the elders saith unto me, Weep not: behold, the Lion of the tribe of Juda, the Root of David, hath prevailed‖ (THE BIBLE, 2004, p. 714). Both characters represent a leadership to be respected and a savior to people. Therefore, Aslan builds a personality of Christ and, as we will see later, will make the same decision and sacrifice that Christ took to save humankind, as the New Testament shows. Now, we discuss the background and personality of the third main character of The Lion, the Witch and the Wardrobe, the White Witch. Christian features within the stories of Narnia Once four English children were running away from the conflicts of the war. They were sent by their parents to a very huge house in the heart of the country away from the air raids. There lived an old professor and his housekeeper, since he had no family of his own. Peter, Susan, Edmund and Lucy were only playing hide and seek when Lucy found herself inside the Wardrobe, which is one of the doors to enter in Narnia. According to Ditchfield (2003, p. 42) the wardrobe is related to: When C. S. Lewis was a little boy, he and his brother Warnie would climb up into a big, old wardrobe and tell each other their own adventure stories. More than forty years later, Lewis began writing for children, ―stories within stories‖ that had very special meaning to those who understood them.

This is when the chronicles of the land called Narnia began. A land full of the talking animals that C. S. Lewis always loved and wrote when he was a child. We arrive now in one of the most important parts of a book, the setting. Here we understand how the development of the characters in the book happened and what the purpose of each one according to the events of the book is. When Lucy saw the cold and yet beautiful land of Narnia she was very amazed and not scared of it at all, not even when a friendship with a gentle Faun began; it began after Lucy had seen the lamppost that indicates the boundaries of Narnia. When they all were in Narnia (Lucy and Edmund for the second time), Lucy, Susan, and Peter made many animal friends, as Mr. and Mrs. Beaver who told them about Aslan coming to free Narnia; but Edmund did 8

Judah is one of the 12 tribes of Israel, descended from Judah, who was the fourth son born to Jacob and his first wife, Leah. (ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, 1998) It is also the tribe of King David, Jesus‘ ancestor. 56 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


not, Edmund made the wrong friend, the White Witch, who, as we already saw, wanted to destroy the children and anyone who could end her time in the throne of Narnia as she considered herself the queen of the country created by Aslan. Edmund ran away from the Beavers‘ house and went to find the White Witch and tell her everything he knew about the children and Aslan, which did not keep her from mistreating him. While Edmund was being held by the White Witch, the other children (Peter, Susan and Lucy) had met some important characters in the story, such as Father Christmas, who may seem like an ordinary plot of the book, but it possesses some essential meanings regarding the children, Aslan, the White Witch and the plot as a whole; of course, it has an illustration of a Christianity‘s acknowledgement. Father Christmas, like Aslan, only arrives at Narnia because of the children‘s presence in the land, which made the White Witch‘s curse start to break. Everyone knew him because, though you see people of his sort only in Narnia, you see pictures of them and hear them talked about even in our world - the world on this side of the wardrobe door. But when you really see them in Narnia it is rather different. Some of the pictures of Father Christmas in our world make him look only funny and jolly. But now that the children actually stood looking at him they didn't find it quite like that. He was so big, and so glad, and so real, that they all became quite still. They felt very glad, but also solemn. ―I‘ve come at last,‖ said he. ―She has kept me out for a long time, but I have got in at last. Aslan is on the move. The Witch‘s magic is weakening.‖ (C. S. LEWIS, 2002, p. 116-117)

C. S. Lewis made a clear allusion of the arrival of Father Christmas and Christmas itself, with Jesus (DOWNING, 2005) by saying he only came to Narnia because Aslan (a symbol of Jesus in the book) came to Narnia. In a letter to a young reader, C. S. Lewis answered her question of what is Father Christmas‘ meanings, according to Dorsett (1985, p.32) he wrote: ―Has there ever been anyone in this world who arrived at the same time as Father Christmas […]‖. Consequently, we can reaffirm this symbolization between the arrival of Christmas and Jesus‘ birthday rethinking about what we discussed in the first chapter, when Constantine ―made December 25th, the birthday of the pagan Unconquered Sun god, the official birthday of Jesus‖ (SAMPSON, 2002, p. 68). The story of the first book of The Chronicles of Narnia falls down into two convergent paths that are intrinsically related to The Bible, the first one is told during the whole book, the battle between good and evil that has visited literature on many occasions in the early ages and even nowadays. The main plot of The Bible is about the war between God, the creator (good), and Lucifer, the fallen angel (evil). In The Lion, the Witch and the Wardrobe, we also see these two forces collide throughout the book until the last act of struggle, as we can see in this passage: Then Lion and Witch had rolled over together but with the Witch underneath; and at the same moment all war-like creatures whom Aslan had led from the Witch‘s house rushed madly on the enemy lines, dwarfs with their battleaxes, dogs with teeth, the Giant with his club (and his feet also crushed dozens of the foe), unicorns with their horns, centaurs with swords and hoofs. And Peter‘s tired army cheered, and the newcomers roared, and the enemy squealed and gibbered till the wood re-echoed with the din of that onset. (C. S. LEWIS, 2002, p. 194)

We can see that the development of this relationship is crucial to the plot of the story; their fight is the last action of the lion before making the children, the kings and queens of Narnia; the children would reign for many years and then would come back to this world as if only minutes had passed; they had to come back to their normal life and pretend that nothing in Narnia had happened. They would wait for another opportunity to go back to Narnia. However, before the actual fight between good and evil started, the main plot of The Lion, the Witch and the Wardrobe had happened. Edmund had already committed a crime against a very old law of Narnia that is called in the book as Deep Magic. This deep magic granted to the White Witch that Edmund‘s life would have to be delivered to her; death would have to be his final sentence, for he was a traitor in front of Narnians‘ laws. The White Witch went to meet Aslan and said that he had a traitor with him and she went on: 57 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


―[…] you at least know the Magic which the Emperor put into Narnia at the very beginning. You know that every traitor belongs to me as my lawful prey and that for every treachery I have a right to a kill. […] His life is forfeit to me. His blood is my property.‖ (C. S. LEWIS, 2002, p. 155-156)

After the first sin, according to The Bible (2004), men were separated from God, which gave to the fallen angel the opportunity to have a certain control over them. In The Lion, the Witch and the Wardrobe we can see that the White Witch has the same power over those who committed treason against the law of the Emperor-beyond-the-Sea; Edmund, then, had to pay his sin with blood. However, Aslan decided to have a private conversation with the White Witch and after that said to everyone who was in that place. As Aslan in the first book of The Chronicles of Narnia, Jesus gave his own blood in exchange for the entire human race‘s salvation as we can see in this passage of The Bible (2004, p. 439) about Jesus: ―Surely he hath borne our griefs, and carried our sorrows: yet we did esteem him stricken, smitten of God, and afflicted. But he [was] wounded for our transgressions, [he was] bruised for our iniquities: the chastisement of our peace [was] upon him; and with his stripes we are healed.‖ We can also see resembles of these two events in the following passage of the book: The Hags made a dart at him and shrieked with triumph when they found that he made no resistance at all. Then others - evil dwarfs and apes - rushed in to help them, and between them they rolled the huge Lion over on his back and tied all his four paws together, shouting and cheering as if they had done something brave, though, had the Lion chosen, one of those paws could have been the death of them all. But he made no noise, even when the enemies, straining and tugging, pulled the cords so tight that they cut into his flesh. Then they began to drag him towards the Stone Table. (C. S. LEWIS, 2002, p. 166)

This is the one of the most powerful passages in the book regarding what could be illustrating the events of Jesus‘ life in The Bible. First, we have the animals tying him up, cutting his flesh and fur and humiliating him, as in The Bible, this also happened to Jesus (THE BIBLE, 2004, p. 438): ―I gave my back to the smiters, and my cheeks to them that plucked off the hair […]‖; or this other passage of Jesus‘ crucifixion (THE BIBLE, 2004, p. 589): ―And some began to spit on him, and to cover his face, and to buffet him, and to say unto him, […] and the servants did strike him with the palms of their hands.‖ We can see the resemblances between the context of these two stories and the sentences used. Therefore, we arrive in the last illustration of Christianity‘s beliefs in the plot of The Lion, the Witch and the Wardrobe: Aslan‘s resurrection. In The Bible (2004) is stated that Jesus resurrected as Aslan did; even though they arise from the death in a different amount of time, a tine incident can appear related to these events. In The Lion, the Witch and the Wardrobe, Lucy and Susan were with him during and after he was killed. Aslan‘s resurrection happened in this way: At that moment they heard from behind them a loud noise - a great cracking, deafening noise as if a giant had broken a giant‘s plate. […] ―What's that?‖ said Lucy, clutching Susan‘s arm. The rising of the sun had made everything look so different - all colours and shadows were changed that for a moment they didn't see the important thing. Then they did. The Stone Table was broken into two pieces by a great crack that ran down it from end to end […]; They looked round. There, shining in the sunrise, larger than they had seen him before, shaking his mane (for it had apparently grown again) stood Aslan himself. (C. S. LEWIS, 2002, p. 176-177)

The tine similar incident appears with the great cracking when Aslan resurrected. The Stone Table that he was laid down moments before was now torn apart into two pieces. This passage can be illustrating what happened in Jerusalem when Jesus died on the cross; as we can see in this passage (THE BIBLE, 2004, p. 576): ―At that moment the curtain of the temple was torn in two from top to bottom. The earth shook, the rocks split.‖ Therefore, we may understand that the broken stone and the curtain of the temple resemble the freedom of the

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Narnians, as the curtain9 is the supposed freedom of humanity. Summing up, we can comprehend symbolically Christian features illustrated in the story of war and freedom in The Lion, the Witch and the Wardrobe. Conclusion Christianity and British Literature have been meeting each other in several occasions throughout different and important authors of distinguished ages always presenting matter on sacrifice of love; Clive Staples Lewis is one of these writers that presented a literature which tells many tales of imaginative and mythology creatures and also religious themes existing closely to reality, demonstrating the power of contemporary literature to combine literary subjects as it happens with The Bible and The Lion, the Witch and the Wardrobe. The research has succeeded in all its objectives. The demonstration of Christianity as a religion in terms of its creation, establishment and characterization was duly completed in the first chapter, in which we saw its process of acceptance in the previous polytheist nation of Rome. Accordingly, we were able to take note of the Irish author‘s biography in the second chapter, which brought us the peculiarities of his life and work concerned to his literary and personal achievements and how they are related to Christianity. We reached the last specific objective in the third chapter, we found features on events of The Bible with The Lion, the Witch and the Wardrobe in the main characters‘ personalities and roles in the plot, as well as the plot itself that was full of symbolic illustrations of the sacrifice of Jesus on the cross among others similarities, as the arrival of Christmas and the fight between good and evil; This achievement has become possible in this chapter of analysis, in which we rescued the main characters and plot of The Lion, the Witch and the Wardrobe, in order to find similarities between this book and the book in which Christianity is based, The Bible. In this way, we were able to find a series of characteristics of Christianity‘s ideologies in The Lion, the Witch and the Wardrobe enabling an analysis with constructive results. References C. S. LEWIS. The Chronicles of Narnia: The Lion, the Witch and the Wardrobe. New York: Harper Collins Publishers, 2002. . Is Theology Poetry? 1943 Available on: <http://www.samizdat.qc.ca/arts/lit/Theology=Poetry_CSL.pdf> Accessed on: January 22, . Surprised by Joy. USA: Harvest Book, 1955. CHATEAUBRIAND, F. R. The Genius of Christianity. Tr. Charles White. Baltimore: John Wiley & Sons Publishing, 1856. CHRISTIANITY TODAY. C. S. Lewis: Scholar, author and apologist. 2001. Available <http://www.christianitytoday.com/history/people/musiciansartistsandwriters/cs-lewis.html> Accessed January 21, 2017.

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According to The Bible (2004), the curtain of temple separated the place called Holy Place where only the high priest could go in, because the presence of God was inside. When the curtain broke, meant that any person could be in the presence of God. 59 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


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BARNABÉ, BUROCRATA, MARAJÁ OU SERVIDOR?:

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AS IDENTIDADES DO FUNCIONÁRIO PÚBLICO NA HISTÓRIA

Maxhemyliano Silva Marques2 RESUMO O presente trabalho visa identificar práticas discursivas que atribuíram na/pela História identidades para funcionário público. Em consonância à Análise do Discurso de linha francesa, em especial as teses de Foucault (2004; 2012) em seus encontros teóricos com os Estudos Culturais de Hall (2015) e Silva (2000), tomamos o método arquegenealógico proposto por Foucault para encontrar vestígios discursivos que nos levam a diferentes identificações ao funcionário público dispersas na descontinuidade da História. Nesse sentido, buscamos as práticas discursivas que legitimaram saberes para a administração pública e consequentemente propiciaram discursivizações para o funcionário público. Buscaremos compreender como essas práticas, almejando novos contornos à administração pública brasileira, subjetivaram esses sujeitos e quais relações de poder amparam esse processo histórico-discursivo. A partir do nosso posicionamento teórico, consideramos o sujeito como ser descentrado, portanto, suas identidades são fragmentadas, construídas no interior dos discursos, estes dispersos pela História. Nessa esteira, considerando a relação entre discurso e identidade, entendemos que esta não é algo pronto e imóvel, mas um longo processo de deslocamentos, retomadas e rupturas que se materializa em diferentes enunciados. Nosso estudo revelou que os estereótipos postos a baila pelas representações desse profissional como barnabé, burocrata, marajá ou mesmo servidor provêm de discursos historicamente localizados e que os sentidos convivem numa interação de forças, atravessando os sujeitos na estabilização e reinvenção de identidades na contemporaneidade. Palavras-chave: Funcionário Público; Identidades; História; Análise do Discurso.

Introdução

O

presente artigo é um recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento do Programa de PósGraduação em Letras (PGLetras-UFMA). Investigamos a circulação discursiva de sentidos históricos sobre o funcionalismo público. Para isso, propomo-nos a efetuar a leitura do arquivo do funcionário público no Brasil, constituído de enunciados-acontecimentos dispersos no tempo-espaço que organizam saberes sobre esses sujeitos. Seguindo esse direcionamento, observamos como relações de poder definem o regime de enunciabilidade sobre os sujeitos do nosso estudo. Compreendemos como as identidades para o funcionário público são forjadas pelo discurso e atravessam os sujeitos na constituição daquilo que eles são. Nessa via, examinaremos quatro evidentes discursivizações, tratadas aqui como identidades historicamente localizadas, para o funcionário público no espaço de dispersão da História: o barnabé, burocrata, o marajá e, por fim, o servidor. Com esse tratamento, pretendemos compreender a irrupção desses quatro termos associados ao funcionário público. Para isso, em consonância com o projeto arqueológico, devemos investigar as condições históricas de enunciabilidade que permitiram que esses enunciados que tomam por objeto o funcionário público fossem produzidos. É possível, dessa forma, analisar na dispersão de acontecimentos o fio da regularidade que reúne essas discursivizações em torno de um objeto em comum. Ao considerarmos que o discurso forja a identidade, estamos também dizendo que o sujeito é descentrado, descontínuo, fragmentado, pois suas identidades não são livres das ações de outros sujeitos. As identidades são produtos da História, que por meio de práticas discursivas, são construídas e naturalizadas pela repetição. Portanto, não devemos pensá-las como dadas naturalmente; mas devemos compreender sua 1

Trabalho apresentado no GT 01, Linguagem, Cultura e Identidade, do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestrando em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Maranhão. São Luís-MA. Ocupante de cargo efetivo na autarquia DETRAN/MA. Endereço eletrônico: maxhemylianomarques@detran.ma.gov.br. 61 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


produção numa relação dialógica com as práticas sociais que por meio da linguagem vão constituindo subjetivações para os sujeitos. À medida que os lugares dos sujeitos são deslocados em meio a processos históricos, políticos, culturais e institucionais, novas identidades são produzidas e postas em circulação, enquanto outras são silenciadas. Na direção de compreender a identidade como produto de discursos localizados historicamente, materializadas por meio da linguagem, filiamo-nos teórica e metodologicamente aos postulados de Michel Foucault (2004; 2005), na relação dialógica entre a Análise do Discurso e os estudos culturais nas propostas de Hall (2015) e Silva (2014). Dessa forma, mobilizamos conceitos da arqueologia foucaultiana para tomar o espaço de construção de subjetivações para o funcionário público como atravessado por saberes e, dessa forma, analisar a espessura histórica dessas quatro identidades e os poderes que as atravessam. Identidade construída na linguagem: sujeito, identidade e arquivo na Análise do Discurso Diante a concepção de um sujeito centrado, dotado de vontade, capaz de controlar os sentidos, a Análise do Discurso (AD) propõe um deslocamento que tem por consequência a compreensão do sujeito como efeito que se dá pelo discurso. É a partir da inserção de Foucault na disciplina, quando o filósofo centra seus postulados no discurso, contribuindo assim para a expansão da AD, que o sujeito é entendido como fabricação situada a partir de três eixos que se reenviam uns aos outros: o ser-saber, o ser-poder e o ser-si. A obra de Michel Foucault pode ser classificada em três momentos que, embora pareçam distintos, se imbricam: ser-saber, ser-poder e ser-si, nos quais analisa, respectivamente, a constituição dos saberes na sociedade, as formas por meio das quais o poder é exercido sobre os sujeitos e a experiência do indivíduo com a sua sexualidade. (NAVARRO, 2008, p.01)

A vasta obra de Michel Foucault percorre esses três momentos distintos. No primeiro momento, o filósofo está interessado em ver o sujeito como um objeto de saber, em suma, como aquilo que recebemos como um saber foi naturalizado como tal. No segundo, a preocupação está em observar o sujeito como objeto do poder, em outras palavras, as sofisticadas formas de controle que cercam os sujeitos. No terceiro, seu interesse recai na experiência do sujeito consigo mesmo ao pensar temáticas como a ética e sexualidade. Vê-se claramente a unidade do trabalho de Foucault: compreender o sujeito como uma produção, rompendo com a ideia de ser ele uma instância produtora. A construção do sujeito se dá no entremeio dos dispositivos que agenciam os saberes, os poderes e a ética na sociedade. Assim, os sujeitos em Foucault são tomados como ―efeitos das construções discursivas, ao invés de serem tomados como pontos de partida para a explicação das práticas sociais‖ (RAGO, 1995, p. 71). A partir desse posicionamento, compreendemos que os sujeitos não escolhem conscientemente o que vão chamar de si, mas são os discursos que por meio de técnicas e mecanismos bastante específicos possibilitam a criação da subjetividade. [...] o discurso não é fruto de um sujeito que pensa e sabe o que quer. É o discurso que determina o que o sujeito deve falar, é ele que estipula as modalidades enunciativas. Logo, o sujeito não preexiste ao discurso, ele é uma construção no discurso, sendo este um feixe de relações que irá determinar o que dizer, quando e de que modo (NAVARRO, 2004, p. 113).

Sob o pensamento de Foucault, compreendemos que no discurso existem práticas de subjetivação que formatam continuamente o que os sujeitos são e sabem (saberes) e como devem se comportar (poderes). Isso implica considerar que essas práticas produzem identidades (NAVARRO, 2004). Os estudos culturais vão entendê-las como significados atribuídos, afetados pelo momento histórico e cultural (SILVA, 2000). Nessa via, a Análise do Discurso propõe estudá-la por meio da sua materialização na linguagem. Nesse viés, as identidades são tomadas como construções discursivas. Ser ―louco‖, ser ―religioso‖, ser ―mulher‖, ser ―funcionário público‖ são efeitos das construções operadas por discursos que emanam de vontades de verdade dispersas. Essas vontades decorrem do exercício do poder pulverizado na sociedade, que Michel Foucault chamou de Microfísica do poder. Foucault (2012) vê o poder como uma prática constituída 62 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


historicamente. Se as identidades são constituídas no interior dos discursos, estes dispostos nas relações de poder, podemos afirmar que elas são materializadas por meio de um dispositivo sistematizado (a língua) e são acontecimentos submetidos a uma ordem histórica, esta diretamente integrada às práticas sociais. É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. (HALL, 2015, p. 109)

Ao compreender que a produção de identidades constitui novos contornos aos sujeitos, a Análise do Discurso tem se preocupado em discuti-las. Muitos teóricos culturais percebem um descompasso entre as identidades do passado, consideradas sólidas, e os atuais discursos, compreendidos como líquidos. Com isso, os sujeitos são cercados por novas possibilidades identitárias, perdendo os sentidos históricos que os guiam na compreensão do que são. Esse fenômeno ocorre incessantemente, abrindo possibilidades múltiplas na experiência do sujeito consigo mesmo. A identidade deixou de ser um território seguro, mas sim um lugar constantemente invadido por novas referências A identidade tornou-se então uma celebração móvel (HALL, 2015). A chamada modernidade tardia aponta para a desintegração das identidades como ―resultado do crescimento da homogeneização cultural e do pós-moderno global‖ (HALL, 2015, p. 69). Nesse sentido, desfeita a ilusão de completude da identidade na pós-modernidade, Hall (2015) vai conceituar a identidade como posições que o sujeito é obrigado a assumir, uma lacuna a partir da existência do outro. O teórico deixa em evidência que a globalização é um fenômeno importante que mudou as relações sociais: nunca o outro se fizera tão presente na vida dos sujeitos como agora. Com acesso dilatado ao consumo e à produção de informações, os discursos encontraram formas mais rápidas de circular. Isso obriga o sujeito a, inconscientemente, buscar lugares seguros, estáveis. E não consegue se acomodar confortavelmente no interior das identidades pósmodernas. A identidade e a diferença não podem ser compreendidas, pois, fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido. Não são seres da natureza, mas da cultura e dos sistemas simbólicos que a compõem. Somos nós que as fabricamos no contexto de relações culturais e sociais (SILVA, 2014, p. 7).

Pensando na produção de identidades para o funcionário público, percebemos que a sociedade brasileira organiza um arquivo que constitui o que é ser esse sujeito. Ao acessá-lo, é possível verificar as diversas discursivizações ao longo da História sobre esse profissional e compreender as formulações que se abrem a partir dele para que outros discursos sejam proferidos. Sobre o arquivo, objeto específico de um empreendimento denominado arqueologia, Foucault (2004) entende que é aquilo que rege a formação e a transformação de uma multiplicidade de enunciados como acontecimentos singulares. Não se trata de um amontado de textos escritos ou ditos no decorrer da História, mas as regras que conectam esses textos heterogêneos em torno de um objeto, mantendo uma regularidade discursiva. Também não devemos compreendê-lo como nascido do acaso ou de uma fonte produtora. No arquivo, os discursos emergem como acontecimento, permitindo sistemas de enunciabilidade. Para isso, retomam discursos anteriormente ditos e abrem possibilidades de rompimento. O arqueólogo, ao realizar um trabalho com as materialidades discursivas deve recuperar o arquivo geral da época escolhida, isto é, de todos os traços discursivos suscetíveis a permitir a reconstituição do conjunto das regras que, num momento dado, definem ao mesmo tempo os limites e as formas da dizibilidade, da conservação, da memória, da reativação e da apropriação (REVEL, 2005). Desse modo, o arquivo age como dispositivo que negocia o que pode ser dito e aquilo que é esquecido ou excluído. Partiremos de quatro identidades localizáveis no decorrer da História que discursivizaram o funcionário público: barnabé, burocrata, marajá e servidor para organizar parte do arquivo de subjetivações para esse sujeito. Entendemos o enunciado como o átomo do discurso. Como tal, nossa proposta na seção 63 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


seguinte é realizar um tratamento com alguns enunciados para identificarmos práticas discursivas – os lugares institucionais que impõem, mantêm e deslocam sentidos – que atribuem pela História identidades para o funcionário público. O arquivo do funcionalismo público no Brasil: identidades na História Não é tão incomum ouvir enunciados tais como ―todo funcionário público é preguiçoso‖, ―eles só sabem ficar emperrando o serviço‖, e ―tem muito funcionário público que trabalha pouco e ganha bem‖. Esses enunciados, presentes no arquivo da nossa sociedade, ditam alguns dos sistemas de enunciabilidade sobre esses sujeitos. Nossa visada permite observar o aparecimento desses enunciados de paradigma negativo como acontecimentos, ou seja, constituídos por fenômenos políticos, culturais e sociais dos quais emanaram identidades para o funcionário público do Império à República. Um passeio pela História nos permite localizar discursos que dão nuances identitárias a esses profissionais, assentados numa negatividade que dão sentido ao trabalho desses sujeitos. A cronologia desses discursos vem de muito longe. É herança portuguesa. É preciso que remontemos a Portugal, na época em que era um grande império. Nesse período, todos os cargos públicos eram de propriedade do rei, o que reafirmava sua supremacia no poder. Assim, esses empregos, com pagamentos oriundos do tesouro, serviam de objeto de troca de favores entre a Coroa Portuguesa e seus súditos. Em recompensa à lealdade, o rei investia seus aliados nas funções públicas. Não havia, dessa forma, uma linha que separasse os bens públicos dos bens privados. As funções públicas eram consideradas propriedades por aqueles que as detinham, podiam ser herdadas e servir como objetos para agenciamento de favores. No reino de Portugal, a questão do desempenho não tinha relevância: os cargos públicos eram atributos dos nobres de boa linhagem, do homem fidalgo, de limpo sangue (FAORO, 1996). Essa prática, centrada na indistinção entre o patrimônio público e o privado, Holanda (1995) denomina patrimonialismo. Durante o primeiro e segundo reinado, a prática patrimonialista manteve-se, desenhando os primeiros contornos da administração pública brasileira. Nas primeiras décadas do Brasil República, também era muito comum a distribuição dos cargos públicos sem critérios que não fosse o apadrinhamento político. Essa herança permitiu a incursão de amadores na máquina pública, sendo condição para o aparecimento da figura do funcionário que desempenha suas funções com preguiça e não é qualificado para prestar atendimento ao público. Esse funcionário desqualificado para o trabalho, mas vitalício no cargo, figura tão recorrente nas repartições públicas do Brasil durante o século XX, é denominado de barnabé numa marchinha carnavalesca, de 1947, cuja autoria se atribui a Haroldo Barbosa e de execução de Chiquinha Barbosa. Vejamos: Barnabé o funcionário/ Quadro extranumerário / Ganha só o necessário/ Pro cigarro e pro café/ Quando acaba seu dinheiro/ Sempre apela pro bicheiro/ Pega o grupo do carneiro/ Já desfaz do jacaré/ O dinheiro adiantado/ Todo mês é descontado/ Vive sempre pendurado/ Não sai desse terêrê/ Todo mundo fala/ Do salário do operário/ Ninguém lembra o solitário/ Funcionário Barnabé/ Ai, ai, Barnabé/ Ai, funcionário letra E/ Todo mundo anda de bonde/ Só você anda a pé. (CASTRO, 2015, p. 79).

Essa prática discursiva, ocorrida num campo artístico, vulgarizou o termo ―barnabé‖ como uma discursivização para o funcionário público. O barnabé é aquele funcionário de pequeno escalão, com pequenos rendimentos, que está sempre com um terno preto surrado, uma gravatinha vagabunda e um jornal debaixo do braço, e que passa o dia lendo jornal e tomando cafezinho. Ou então deixa o paletó na cadeira e sai, voltando na hora de assinar o ponto. Esse discurso tem em suas bases efeitos de continuidade com o tipo de funcionário público da Coroa Portuguesa, ao discursivizar os detentores dos cargos públicos como aqueles que não têm vontade de crescer na carreira, nem de oferecer uma prestação de serviço excelente, pois está apenas preocupado em garantir sua remuneração ao fim do mês.

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Todavia, houve políticas que tentaram romper com a prática patrimonialista, como a reforma burocrática instituída por Getúlio Vargas que centrada nos princípios de Max Weber, defendia o fim do patrimonialismo da máquina pública. O primeiro Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, regulamentado pelo Decreto Lei n.° 1.713/1939, inaugura a obrigação de concursos para o provimento de cargos públicos, bem como a definição3 de funcionário público. Essa reforma exigiu que a administração pública se pautasse pela obediência às normas e aos preceitos legais, centrando a eficiência do setor público no princípio da impessoalidade4. Nesses termos, o trabalhador público devia segui-las cegamente para garantir a eficiência na prestação de seus serviços.

Figura 1: Burocratização no serviço público. Fonte: ambientelegal.com

Como podemos observar na charge acima, embora a reforma da época de Vargas primasse pela profissionalização da burocracia, ela adquire estatuto histórico quando pensamos os regimes de enunciabilidade que possibilitou. As instituições altamente burocratizadas forjaram o aparecimento de sentidos para o funcionário como um burocrata, um sujeito não racional. O burocrata, nessa prática discursiva, age na contramão à eficiência do setor público: seu papel resume-se em carimbar papéis em instituições que apenas dificultavam o acesso da população aos serviços públicos (BRESSER-PEREIRA, 1996). A Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, valendo-se dos princípios da administração gerencial, num movimento contrário à reforma burocrática que pouco contribuiu para a modernização e eficiência da máquina pública, apresenta nova ruptura com as práticas patrimonialistas ao instituir nova discursivização para os serviços públicos. Pautando-se pelos princípios de eficiência, ética e qualidade, o funcionário público passa a ser ressignificado como servidor público, num movimento linguageiro que nega as subjetivações dispersas pela História – o burocrata, o barnabé – e pretende inaugurar novos sentidos à máquina pública, convocando o servidor a fazer parte dela com o oferecimento de serviços estatais de qualidade para o exercício da cidadania.

3

Art. 2º Funcionário público é a pessoa legalmente investida em cargo público. A impessoalidade opõe-se ao patrimonialismo. Esse princípio prima pelo prevalecimento dos preceitos legais sobre as vontades individuais dos agentes públicos. 4

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[ Figura 2: Capa da edição da Revista Veja de 12/08/1987 Fonte: Veja

Porém, a era Collor de Melo constrói, discursivamente, nova identidade para o funcionário público. Construído como funcionário com altos privilégios, gordos salários e pouco trabalho nas repartições, os ―marajás‖ do serviço público são o fardo oneroso do país, uma ―praga‖. O que singulariza a capa da revista acima como acontecimento nessa ordem é o fato de ser utilizada ironicamente a figura do marajá indiano, com ares de príncipe, um turbante e muito dinheiro nos bolsos. Ao resgatar essa figura do imaginário e deslocar para o funcionalismo público, o funcionário-marajá adquire negatividade em meio a um país massacrado pelos consideráveis números da inflação, causada pela instabilidade econômica. Extirpar os marajás da máquina pública seria a condição para uma política de redução do Estado e recuperação da economia. Collor então assume a posição de ―caçador de marajás‖. Essas práticas discursivas midiáticas têm grande contribuição para a aceitação de um programa de governo neoliberalista, que defendido por Collor, age na lógica do enxugamento da máquina pública. Apesar das inúmeras reformas que atualizaram a administração pública e subjetivaram o sujeito funcionário público, ao impor critérios justos de admissão no serviço público, as diversas subjetivações apresentadas convivem numa descontinuidade histórica: até hoje, sobrevivem por meio da memória essas identidades para o funcionalismo público. Improdutivos, exímios burocratas, marajás. Esse feixe de sentidos se organiza numa ordem de entrelaçamento entre o histórico e o cultural, possibilitando-nos visualizar as práticas que se dão em torno do objeto discursivo servidor público.

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Figura 3: Homenagem da FENALEGIS ao dia do servidor público Fonte: FENALEGIS

Na prática discursiva acima, que se apresenta como uma homenagem pelo dia 28 de outubro, instituído como dia nacional do servidor público, percebemos feixes de sentido que posicionam o funcionário público como um profissional cujo ―trabalho e dedicação‖ fortalecem o exercício da cidadania. Esse discurso abre uma lacuna entre as subjetivações dispersas na história – silencia o funcionário barnabé, burocrata, marajá –, rompendo com essas possibilidades identitárias e subjetiva o sujeito funcionário público como um grande trabalhador, peça essencial para a consolidação da cidadania no país. Retomando ―servidor público‖ a partir de relações com os enunciados da Constituição Federal, essa prática discursiva atua como um nó numa extensa rede que constrói, nos movimentos descontínuos da História, novas subjetivações para o funcionário público, rompendo com as velhas identidades atribuídas a ele ao tecer novas possibilidades de sentido. Considerações Finais Ao nos propormos realizar a leitura do arquivo do funcionalismo público no Brasil, não pretendíamos esgotá-lo, descrevendo-o completamente. Outros enunciados-acontecimentos estão inseridos nesse complexo arquivo que esse trabalho não tem a intenção de exaurir. Reservamo-nos a uma leitura de quatro identidades localizáveis no curso da História para o funcionário público, numa perspectiva discursiva, compreendendo como as condições de aparecimento dessas práticas identitárias e seus atravessamentos pelas relações de poder. Os estudos culturais demonstram que as identidades são celebrações móveis, à medida que os lugares dos sujeitos sofrem deslocamentos no espaço das práticas sociais, novas possibilidades identitárias tornam-se possíveis para capturar os sujeitos. As práticas de subjetivação, que constroem pelo discurso marcas identitárias, fragmentam os sujeitos ao movimentar incessantemente o mercado de identidades. A todo o momento, os sujeitos são convocados a assumir novas identidades e descartar tantas outras. Depois de constituído o arquivo do funcionalismo público no curso da História do Brasil, percebemos que diversos acontecimentos discursivos implicaram na produção de identidades para o funcionário público. A herança portuguesa do patrimonialismo, bem como as primeiras admissões no serviço público por meio de apadrinhamento político no Brasil Colônia e República trouxe, como efeito, a discursivização do funcionário ―barnabé‖, o funcionário público de pequeno escalão, protegido no cargo e mais preocupado com sua remuneração. A reforma burocrática do Governo Vargas, que previa a extirpação do patrimonialismo na administração pública em poucos anos, atravessa a discursivização do funcionário ―burocrata‖, cujo papel seria apenas de respeitar as normas e procedimentos aos quais era submetido nas burocráticas repartições públicas. Por fim, a Constituição Federal substitui o termo funcionário por ―servidor‖, deslocando o lugar desse sujeito. A redemocratização do país trouxe como efeito no arquivo a existência legal da figura do ―servidor público‖. Negando as identidades dispersas na História para esse profissional, o texto constitucional produz

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sentido ao discursivizá-lo como peça essencial na manutenção de serviços públicos de excelência. Porém, o presidente Collor, com uma política neoliberal, emergiu como ―caçador de marajás‖, possibilitando o discurso de que o Brasil passava por instabilidade econômica devido a muitos funcionários públicos terem seus rendimentos muito acima da média. A mídia legitimou esse discurso e até hoje a imagem do funcionário que pouco trabalha e ganha muito bem ainda é comum quando se pensa no serviço público do Brasil. Dessa forma, percebemos que há uma negatividade associada ao trabalho do funcionário público desde quando o Brasil era colônia de Portugal. Identificados como ―barnabés‖, ―burocratas‖ e ―marajás‖, o termo ―servidor‖ é uma reinvenção que joga com o esquecimento dessas três identidades e abre possiblidade de novas discursivizações para o trabalho desses sujeitos assentados numa positividade. ―O servidor é um forte‖, ―o servidor trabalha‖, ―é peça essencial do serviço público‖ são enunciados dessa nova temporalidade histórica que ao fragmentar os sujeitos, trazem novas nuances identitárias para que esses sujeitos possam enfim se acomodar. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada de 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal: Centro Gráfico, 2015. BRASIL. Decreto-lei n° 1.713, de 28 de Outubro de 1939. Dispõe sobre o Estatuto dos funcionários públicos civis da União. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del1713.htm>. Acesso em: 08 abr. 2016. BRESSER-PEREIRA, L. C.. Da Administração Pública Burocrática à Gerencial. Revista do Serviço Público. Brasília, v. 47, n.1, p. 7-40, 1996. CASTRO, R. A noite do meu Bem: a História e as Histórias do Samba-canção. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. São Paulo: Globo, 1996. FENALEGIS. Fenalegis e Confelegis participam do XXI Congresso de Servidores e Vereadores de Câmaras do Paraná. Disponível em: <http://www.fenalegis.org.br/site/index.php/noticias/11-teste-003>. Acesso em 09 abr. 2017. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2012. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2015. HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. PEDRO, A. F. P. A burocracia está matando o Brasil. Ambientelegal.com. 05/08/2015. Disponível em: <http://www.ambientelegal.com.br/a-burocracia-esta-matando-o-brasil/>. Acesso em 02 abr. 2017. RAGO, M. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Rev. Sociol., São Paulo, v. 7, n. 1-2, p.67-82, out. 1995. NAVARRO, P. Discurso, história e memória: contribuições de Michel Foucault ao estudo da mída. In.: TASSO, I. (org.). Estudos do texto e do discurso: interfaces entre língua(gens), identidade e memória. São Carlos: Claraluz, 2008. ______. O acontecimento discursivo e a construção da identidade na História. In: SARGENTINI, V.; NAVARRO, P. L. (Org.). Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividades. São Carlos: Claraluz, 2004, p. 97-130 REVEL, J. Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. REVISTA VEJA. Editora Abril. São Paulo, Edição 988, ano 19, de 12 de Agosto de 1987. Disponível em: <https://acervo.veja.abril.com.br/#/edition/33558?page=1&section=1>. Acesso em 09 abr. 2017. SILVA, T. T. da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

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A (DES)CONSTRUÇÃO DA(S) IDENTIDADE(S) NO APLICATIVO “NAMETESTS.COM” DA REDE SOCIAL FACEBOOK 1 Israel Ferreira Santos 2 Resumo Tendo em vista que vivemos em uma era de constantes mudanças nas questões identitárias, o presente artigo tem como objetivo fazer uma breve análise sobre, de que forma o uso do aplicativo nametests.com vinculado à rede social facebook se apresenta como uma das ferramentas que possibilita a (des)construção da identidade pessoal dos indivíduos que fazem o uso dessa rede social e consequentemente do uso desse aplicativo e a reação dos mesmos ao fazerem o teste usando o aplicativo como forma de buscar para si próprio uma suposta ―identidade revelada‖ Palavras-chave: Mudanças. Identidade. Ciberespaço. Facebook.

Introdução Desde épocas muito remotas o homem sempre buscou meios para aprimorar o seu modo de viver e de se relacionar com o ambiente ao qual vive. Essas mudanças podem ser percebidas ao fazermos um percurso em todos os períodos de evolução pelo qual passou o homem. Desde o período em que vivia em comunidades primitivas até o presente momento denominado por autores como Jair Ferreira Santos (2010) de pósmodernidade ou condição pós-moderna a forma como ele se relaciona com o meio evoluiu de forma bastante considerável e significativa. Hoje, o homem criou vários meios a fim de se relacionar com o outro: criou o rádio, a TV, o telefone, a internet, dentre outros, com o intuito de romper fronteiras e manter uma aproximação mais contundente com os diversos povos e consequentemente com outras culturas mundo afora. De acordo com Santos (2000): O ambiente pós-moderno significa basicamente isso: entre nós e o mundo estão os meios tecnológicos de comunicação, ou seja, de simulação. Eles não nos informam sobre o mundo; eles o refazem à sua maneira, hiper-realizam o mundo, transformando-o num espetáculo (SANTOS 2000, p.13).

E é nessa sociedade sem fronteiras e bastante complexa que surge a problemática da identidade, na qual há uma constante desconfiguração e configuração da identidade desse sujeito pós-moderno. E esse processo de construção e desconstrução é potencializado com o advento das comunidades virtuais e com a criação das redes sociais na internet, que se deu a partir da década de 1990. E mais ainda com a popularização da rede social facebook, criada no ano de 2004. A partir da observação do aplicativo nametests.com vinculado à rede social facebook analisaremos como se dá o processo de construção da identidade e que tipo de identidade é construído através do uso desse aplicativo que ultimamente tem virado uma ―febre‖ entre os usuários dessa rede. O ciberespaço e as redes sociais virtuais Não foi somente a popularização da televisão a única forma de transmitir cultura. No final de década de 1980 vimos o surgir de mais um aparato tecnológico que aos poucos também foi se popularizando e mudando drasticamente a forma de comunicarmos e relacionarmos com o outro, a saber, o computador. Através do 1

Trabalho apresentado no GT 01 – Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduado em Letras-Espanhol pela Universidade Federal do Maranhão. Professor de Língua Portuguesa da rede particular de ensino em São Luís do Maranhão. Endereço eletrônico: avlr_88@hotmail.com 69 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


advento desse importante aparato tecnológico juntamente com a criação da internet, deu-se inicio a mais uma forma de se transmitir cultura e também a mais um meio que possibilita fortemente a influência no comportamento do indivíduo que a utiliza. Nasceu nessa época (do surgimento do computador junta á internet) o que chamamos hoje de cibercultura que é definido por Pierry Levy (1999, p. 17) como ―conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço‖. Ainda de acordo com o autor supracitado: [...] apesar de todo o caos gerado pelo livre acesso à internet a fácil distribuição de informação, causando um sistema de caos e desordem, os ―habitantes‖ do ciberespaço, mas massivamente os jovens, tem aumentado dia após dia. A explicação para isso é, de certa forma, simples: o ciberespaço proporciona uma relação interpessoal que, a sua maneira, quebra a barreira da solidão, o ciberespaço, como prática de comunicação interativa, recíproca comunitária e intercomunitária, o ciberespaço como horizonte de mundo virtual vivo, heterogêneo e intotalizável no qual cada ser humano pode participar e contribuir (Idem, p.126).

Partindo desse pressuposto, podemos definir as comunidades virtuais como espaços abstratos nas quais estabelecemos laços afetivos e representações daquilo que somos ou daquilo que almejamos ser. Podemos inferir que elas são construídas sobre interesses comuns, de forma cooperativa, independentemente de qual país ou continente um integrante, que faz uso deste tipo de relacionamento, possa ser. Dentre as várias comunidades virtuais que estão espalhadas pelo ciberespaço, as mais populares são as redes sociais. E sua expansão se justifica pelo fato de que elas facilitam a possibilidade de aumentar o círculo de relacionamentos, mesmo que o usuário tenha plena consciência de que a maioria das pessoas, com quem ele tem contato através dessas redes, nunca serão conhecidas pessoalmente (MOREIRA e RODRIGUES, 2010). Com o aprimoramento do uso da internet, houve um crescente número na criação dessa nova forma de socialização e interação. São exemplos de redes sociais: o extinto Orkut, o twitter e o facebook, que além de funcionarem como ferramentas para a comunicação no ciberespaço, essas redes se mostram como oportunidades que muitos usuários têm para inserir-se em um meio social na qual terá facilidade de comunicar-se com os mais diversos tipos de pessoas e no qual terá a possibilidade de mostrar-se de uma forma, que talvez, não condiz com a realidade a qual pertence. No ano de 2004 com o advento da rede social facebook, que superou o até então mais utilizado, a saber, o Orkut ,vimos essa rede social, a cada dia ganhar mais e mais usuários no mundo inteiro. Ainda mais pelo fato de que cada vez mais essa rede social virtual vem se aprimorando para facilitar a divulgação de informação e a interação entre seus usuários. Atualmente, podemos encontrar no facebook vários modos de interação: desde uma simples chamada de vídeo até um bate papo em tempo real com qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. E pelo que observamos essa rede social ainda tem muitas aplicações para serem incorporadas a fim de chamar a atenção dos seus usuários, fazendo com que ainda permaneça por muito tempo entre nós. Nesta nova era das novas tecnologias, essas redes sociais firmam seu espaço se mostrando como importantes ferramentas na construção das identidades pessoais. Ainda mais porque vivemos em uma era em que cada vez mais pessoas utilizam esse tipo de recurso para os mais diversos fins: de ferramenta de trabalho até para a busca de lazer e prazer. Dessa forma podemos afirmar que as redes sociais revelam-se como algo que estão no nosso meio modificando radicalmente as forma de relacionamento na sociedade em que vivemos e contribuindo para a disseminação de informação e a propagação de ideologias que terá um reflexo contundente na nossa formação identitária. A questão da identidade

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Quando falamos de identidade entramos em um campo bastante complexo e abrangente. Ela não é algo natural. É algo fluido, dinâmico, instável, que se constrói, que exerce influencia no ―outro‖ e apesar do ―outro‖ em um processo continuo, constante e inacabado. Ela é uma produção que é possibilitada pelas interações, que renovam as identidades participantes e tem como pano de fundo a cultura. Ela também faz uso da linguagem para se constituir manifestando-se através das várias formas de se expressar e de se comunicar, formas estas, que em si mesmas, mostram traços da cultura, estes traços por sua vez estão impregnados de significados e simbologias. Vários são os autores que abordam acerca dessa complexa temática que está em voga atualmente, ainda mais quando falamos de manter relações com o outro. E as concepções sobre o que é identidade passam a se definir como múltiplas e multifacetadas, diferentemente da tradição, quando se tinha a ideia de que a identidade seria assegurada pelo grupo. Na atual conjuntura ela se mostra como uma questão pessoal e subjetiva que passa pelas escolhas individuais. Dessa forma, a identidade perde o seu caráter de algo dado no nascimento para ser conceituada como algo que está em constante construção e transformação, pois ela não se ancora mais como uma coisa que é imposta, que é dada, mas como o produto de uma escolha, pois, parafraseando Stuart Hall (1997), ―não é mais uma questão de ser, mas de tornar-se‖. Vemos ainda em Stuart Hall (1997) um histórico de três importantes momentos pelos quais passaram as concepções sobre a questão da identidade. O primeiro deles está situado na perspectiva aparentemente rígida que já aparecia no Iluminismo, quando nessa época vigorava a concepção de indivíduo totalmente centrado e unificado. Para ele, a identidade ―consistia em um núcleo interior que emergia pela primeira vez com o nascimento do sujeito e desabrochava com ele, permanecendo essencialmente o mesmo – continuo ou idêntico‖ (Idem, p.7). Essa noção do individuo deu lugar à perspectiva que via o sujeito como um ser sociológico e que a complexidade do mundo moderno afetava decisivamente a composição da pessoa, ou seja, que a identidade se formava na interação entre o indivíduo e a sociedade na qual ele estava inserido. E por fim surge a ideia de sujeito pós-moderno profundamente marcado pela liquidez dos novos tempos, como diria Zygmunt Bauman (2001). Esse sujeito está inserido em um mundo fluido, de rápidas e constantes transformações, dessa forma terá reflexo na identidade desse individuo que também passará a ser fluida, porosa e de difícil delimitação. Podemos atribuir à pós-modernidade como sendo a facilitadora que propiciou que as identidades se formassem em torno do lazer, da aparência, da imagem e do consumo, tornando frágeis os laços que a delimitavam. Nesse ―baile‖ de máscaras, onde o individuo, a todo instante, troca de identidade como alguém que troca de vestimentas, transitando facilmente entre a imensa gama de opções identitárias existentes, podemos perceber que a mídia, manifestada nos mais distintos veículos de comunicação, mais intensamente na internet, passa a ser um espaço em que variados modelos de sujeitos e posicionamentos são ofertados às pessoas que fazem o uso desta. Nas palavras de Renato Ortiz (1994, p.5): ―Toda identidade é uma construção simbólica, o que elimina, portanto, as dúvidas sobre a veracidade ou falsidade do que é produzido‖. Igualmente importante, Stuart Hall (2000, p. 12) afirma: O sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de varias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. [...] Esse processo produz o sujeito pós-moderno conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.

Dessa forma, é perceptível que o dinamismo da pós-modernidade é quem facilita constantemente essa modificação da relação com as identidades culturais e esse fato se deve, em grande parte, pela globalização. E é nesse contexto do mundo sem fronteiras que as novas tecnologias de informação e comunicação se desenvolvem de forma bastante célere. 4 O uso do nemeteste.com na (des) construção da identidade

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Segundo Meucci e Matuck (2005, p. 4): Com a internet, os processos de construção identitária vêm ganhando uma nova forma. Ao disponibilizar um lugar no ciberespaço, a rede possibilita a um número maior de pessoas a oportunidade de se relatar, garante maior liberdade de mostrar ou construir a própria identidade. Tal possibilidade constitui um fenômeno que potencializa com o surgimento dos blogs, fotoblogs e das comunidades virtuais.

Partindo desta perspectiva, vemos que a maior rede social em número de usuários, o facebook, é o ambiente ideal onde essas identidades serão (des) construídas, ainda mais quando percebemos os diversos aplicativos que são a cada dia incorporados a essa rede com o intuito de ―ajudar‖ os usuários na busca por essa possível identidade. Através do uso do aplicativo nametests.com vemos claramente como a busca por uma forma de identidade se processa. Muitos usuários, na busca de uma suposta identificação, fazem o uso desse aplicativo para saber como são de verdade, ou seja, o que o seu nome, sua data de nascimento, seu gosto musical dentre outros características pessoais revelam acerca de sua personalidade. E vão mais além quando buscam na identidade do outro os pontos que são convergentes ou divergentes em relação à sua própria identidade; podemos citar como exemplo o uso desse mesmo aplicativo para saber qual artista é idêntico a você, qual a cantora ou o cantor famoso tem os mesmos rasgos de personalidade que você, qual a flor que revela a sua personalidade, qual personagem de desenhos animados é idêntico a você, dentre tantas outras possíveis categorias do seu ―eu‖ na busca por uma ―identidade‖; na busca em tentar se encontrar no mundo sabendo que não é a única pessoa que possui determinados pensamentos, determinado caráter, determinadas determinação etc. A seguir temos alguns exemplos do uso desse aplicativo, neles podemos perceber o quanto os usuários se identificam com o que o aplicativo lhes revela sobre si mesma, porém saber se o que está sendo dito condiz com o que o indivíduo verdadeiramente é ou não, são outras questões que merecem discussões.

Para Zygmunt Bauman (2005, p.35) as identidades ganharam livre curso, cabendo ao individuo capturá-las em pleno voo, usando seus próprios recursos e ferramentas. E com todo esse avanço tecnológico e o crescente número de usuários da rede, percebemos as facilidades e as condições que favorecem esse ―livre curso‖ da identidade, configurando assim a descentralização identitária nesses indivíduos; e ainda mais quando essa descentralização é potencializada com o uso de aplicativos semelhantes a esse, que permitem ao indivíduo construir para si um determinado discurso de representação identitária, uma vez que aplicativos como o nametests.com são verdadeiros símbolos de representação das identidades nas redes sociais virtuais.

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Considerações finais Viver hoje sem estar conectado no ciberespaço é algo que se torna impossível para aqueles que já tiveram a experiência de ter contato com essa nova forma de interação. A cibercultura, através dessa nova forma de interação virtual, possibilita o uso de uma nova linguagem on-line. Possibilita, aos indivíduos que a usam, criar novas identidades: partilhadas, projetada, experenciada, múltipla. Nesses ambientes diferentes identidades interagem entre si criando e recriando a si próprio e ao outro constantemente. Podemos perceber que as redes sociais de relacionamentos possuem um grande poder de influenciar (os que dela fazem uso) na formação de identidade, tendo em vista que a identidade é construída e reconstruída constantemente de acordo com as interações que o individuo participa e o contexto em que está inserido em determinados momentos. E com o advento desses novos aplicativos que estão vinculados às redes sociais, como o exemplo do facebook, essa construção e essa desconstrução se torna bastante potencializada, pois por meio de um discurso dito por um aparato tecnológico muitos buscam saber quem são de verdade e, assim, muitas das vezes (e porque não dizer na maioria delas) o indivíduo toma tais palavras como verdades, tomam tais discursos como autênticos sem levar em consideração sua vida aqui no mundo real. Referências BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,1997. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. MEUCCI, A. e MATUCK, A. ―A criação de identidades virtuais através das linguagens digitais‖. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, Anais 28, Rio de Janeiro. São Paulo: Intercom, 2005. MOREIRA, Walter e RODRIGUES, Vera Ventura. ―Espaços virtuais de relacionamento e identidade: uma análise do orkut‖ . In: ECCOM, Lorena, v. 1, n. 1, p. 67-74, jan/jun, 2010. ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. SANTOS, Jair Ferreira. O que é Pós-Moderno? São Paulo: Brasiliense, 2000.

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O RACIONALISMO DE HORÁCIO: REFLEXÕES DO PENSAMENTO RENASCENTISTA NA PERSONAGEM SHAKESPEARIANA1 Marimacio Amorim de Souza Junior2 Renata Cristina da Cunha3 RESUMO Este artigo é um recorte da monografia apresentada para conclusão do curso de Licenciatura em Letras/Inglês pela UESPI (2015.2) sobre a relação entre o Renascimento Italiano e a tragédia escrita por Shakespeare no auge do Renascimento Inglês, Hamlet. Especificamente no caso deste artigo, o foco são as reflexões do racionalismo renascentista em Horácio, personagem da peça em tela. Diante disso, intenciona responder a seguinte questão: Quais são as características do Racionalismo renascentista italiano encontradas em Horácio, personagem da tragédia shakespeariana Hamlet? Para responder tal questão, foi estabelecido o seguinte objetivo geral: Analisar as características do Racionalismo renascentista italiano encontradas em Horácio, personagem da tragédia shakespeariana Hamlet. Para alcançar este objetivo foi realizada uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo que revelou que o Racionalismo traz à tona o pensar por si próprio do homem renascentista. O fato de Horácio não ter acreditado na existência do fantasma quando foi informado, remete a uma interface específica desse movimento histórico-cultural, o racionalismo, referência maior deste trabalho, ou seja, Horácio é a personificação do racionalismo em Shakespeare. Além de diálogos acerca do Antropocentrismo e Teocentrismo, como correntes de pensamento distintas na fala de Horácio, percebe-se a primeira como uma forma de pensar que chega para somar com a segunda. Palavras-chave: Renascimento Italiano; Racionalismo; Shakespeare; Hamlet; Horácio.

Considerações iniciais

A

arte é algo que fascina em suma o ser humano, e muito pelo seu poder de retratar e ao mesmo tempo criticar o período histórico em que foi concebida, logo, uma obra tão importante como Hamlet, escrita por um dramaturgo igualmente brilhante, é algo que provoca olhares de curiosidade e deslumbre, e da mesma forma um período histórico com ampla abundância de acervo artístico e pensamentos filosóficos como o Renascimento Italiano, se torna um deleite tanto para amantes de Literatura, quanto de História e Artes. Entendendo o Renascimento Italiano como um período de grandes transformações em questão de valores e correntes de pensamento, bem assim como detentora de um vasto acervo de obras de arte nos mais variados campos dos estudos humanos, com destaque na escultura e principalmente na pintura. O surgimento do interesse por parte do autor pela temática se deve ao fato de há muito ter fascínio em relação, primeiramente, às artes da época e posteriormente à gama de pensamentos e valores renascentistas emergentes no período. Sendo posteriormente relembrado de tal tema no Ensino Superior com assuntos relacionados ao Renascimento Inglês que não somente é fortemente influenciado por seu homônimo Italiano, como traz consigo seu autor mais notável, William Shakespeare. Tem-se, então, a ligação de interesse anterior pelo Renascimento Italiano aliado à obra mais estudada de Shakespeare, Hamlet. Foi, portanto, na disciplina de Literatura da Língua Inglesa II que o pesquisador aproximou-se do objeto de estudo, a tragédia Hamlet, mas que em virtude de sua história com estudos renascentistas italianas, originou esta questão como norteadora deste trabalho: Quais são as características do Racionalismo renascentista italiano 1

Trabalho apresentado no GT.01 - Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduado em Letras/Inglês pela UESPI. Parnaíba-PI. Pós-Graduando em Ensino da Língua Inglesa pela Faculdade Internacional do Delta. Parnaíba-PI. Endereço eletrônico: marimaciojr@hotmail.com. 3 Co-autora. Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. São Carlos-SP. Endereço eletrônico: renatasandys@hotmail.com. 74 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


encontradas em Horácio, personagem da tragédia shakespeariana Hamlet? Com a intenção de responder esta pergunta, elaboramos o seguinte Objetivo Geral: Analisar as características do Racionalismo renascentista italiano encontradas em Horácio, personagem da tragédia shakespeariana Hamlet.

Antes de prosseguir, é preciso definir o significado da palavra característica. Característica é aquilo que caracteriza, ou ainda é uma particularidade de algo ou alguém. Por sua vez o dicionário traz também a definição do substantivo particularidade, como alguma coisa que possui algo de particular, ou também uma característica ou peculiaridade (FERREIRA, 2010). Percebemos então, que a palavra característica relacionada ao Renascimento Italiano remete às particularidades acerca do movimento cultural, ou seja, os fatos e pensamentos que foram singulares pertencentes a ele. Deste modo, podemos afirmar que alguns exemplos de características do Renascimento Italiano são as formas de pensamento que surgiram na época, como o Humanismo e suas vertentes, o Racionalismo – este escolhido para nossa análise – e o Antropocentrismo, que serão mais bem explicados no primeiro capítulo; ou ainda temos como particularidade deste período histórico a retomada da cultura greco-romana, que envolve tanto os seus valores e Artes, quanto personagens singulares de sua história. Os temas que obtiveram repercussão durante o Renascimento na Itália, bem assim como aqueles que obtiveram singular evolução e aprimoramento, podem ambos ser tomados como características. O estudo é fruto de uma pesquisa com abordagem qualitativa de cunho bibliográfico-exploratório na qual foi realizada em quatro etapas. Primeiramente foi feito um levantamento de todos os documentos condizentes tanto com o período do Renascimento Italiano, como a biografia de Shakespeare e assuntos acerca de sua obra Hamlet; em seguida foi feita uma revisão dos documentos encontrados e pautados em critério de inclusão e exclusão, com permanência daqueles que possuíam conformidade ao conteúdo abordado; foram posteriormente elaboradas fichas-resumo acerca do material de análise; e finalmente foi feita a realização de uma análise condensando os aspectos relacionados à temática da pesquisa com o intuito de alcançar o objetivo previamente estabelecido. O renascimento italiano Delumeau (1983) afirma que o Renascimento definiu-se a si próprio como uma marcha rumo ao passado; característica esta que se mostra aparentemente oposta a do nosso mundo moderno, a caminho do progresso; sendo assim também um movimento que quis voltar às fontes do pensamento e da beleza. Em meio ao fato de que seus integrantes buscavam no reavivamento da cultura da Antiguidade clássica greco-romana os ideais para sua época, é que se deu o nome de Renascimento, uma vez que para eles a antiguidade havia representado o pico da história da civilização do ocidente. Ao entrarem em contato com o racionalismo grego, os renascentistas romperam com a visão de mundo supersticiosa e religiosa da Era Medieval. A partir do pensamento greco-romano, o Renascimento surgiu fortemente na cidade de Florença, na Itália por volta do século XIV. Sousa (2015) afirma que devido à quantidade de obras e artistas que surgiram na Itália, os historiadores tomaram a liberdade de periodizar o Renascimento Italiano em três diferentes fases: o Trecento, que remete à fase do inicio do movimento renascentista, no século XIV (1301-1400); o Quattrocento, no qual temos inúmeros trabalhos em Florença, correspondendo ao século XV (1401-1500); e o Cinquecento, derradeira fase, ocorrida no século XVI (1501-1600), no qual a cidade de Roma adota posição de destaque. O início da fase do Trecento é marcado pelo movimento chamado Humanismo 4 Renascentista, que propicia a transição do Teocentrismo5 para o Antropocentrismo6. Juntamente ao Antropocentrismo, o

4

O Humanismo é definido pelos princípios que valorizam as ações humanas e valores morais (respeito, justiça, amor, liberdade, entre outros). Para os humanistas, os seres humanos são os responsáveis pela criação e desenvolvimento destes valores. Por sua vez, especificamente o Humanismo Renascentista propõe o Antropocentrismo. 5 Doutrina ou crença que considera Deus (deus judaico-cristão) como o centro de tudo. 6 Vertente do Humanismo. Ideia onde se defende que o homem deve estar no centro das ações, da cultura, da história e da filosofia. O homem como o centro do cosmos. 75 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Racionalismo7 foi também uma relevante corrente de pensamento provinda do Humanismo. Segundo Sousa (2010), o Racionalismo seria um importante pilar para futuramente a construção do pensamento científico por Descartes e outros pensadores; ou seja, podemos tomá-lo como uma espécie de ilustração da conhecida máxima ‗ver para crer‘. A característica principal do movimento renascentista foi a busca por compreender a humanidade como um todo. Justamente essa questão foi que levou ao desenvolvimento da Política, das Artes, das Ciências e da Religião que passaram a adotar o Antropocentrismo e o Racionalismo, por esse motivo, a ideologia que surge no centro do movimento é chamada de humanista; tendo ainda como marco o fim da Idade Média. A concepção de que tudo já está realizado no mundo e que aos homens só cabem duas opções, o pecado ou a virtude, não faz mais sentido. O mundo é um vórtice infinito de possibilidades e o que impulsiona o homem não é representar um jogo de cartas marcadas, mas confiar na energia da pura vontade, na paixão de seus sentimentos e na lucidez de sua razão. [...] todos acatam a lição de Pico Della Mirandola: a dignidade do homem repousa no mais fundo da sua liberdade. (SEVCENKO, 1985, p. 23).

Este momento na história europeia, marca a separação entre Teologia e Filosofia, resultado do surgimento do Humanismo Renascentista, que ascende o Humanismo à ideia central. É importante salientar que nos tempos atuais, vigora tais preceitos trazidos pelo Antropocentrismo, haja que esta doutrina é um estímulo à pesquisa científica, fazendo com que a Arte, Literatura e as Ciências passem por constantes evoluções. Tais preceitos tiveram início na pintura, com: Giotto; e também na literatura deste período com os escritores: Dante, Petrarca e Boccaccio. Em relação ao Quattrocento, graças ao patrocínio da poderosa família Médici, esta fase teve suas maiores manifestações e expressões ligadas à cidade de Florença. Inúmeros grandes artistas eram contratados para executarem pinturas, realizar projetos de Arquitetura e fazer a construção de igrejas. No período, o apoio de mecenas às artes, era tido como um valoroso instrumento de projeção social não só para os próprios Médici, mas para outros burgueses na Itália. Entre os artistas do Quattrocento, Sousa (2015) acentua Masaccio como um dos pintores que acuraram a utilização da perspectiva. Temos também os belíssimos quadros de Sandro Botticelli, que pretendia explorar elementos de natureza religiosa, espiritual e simbólica em vários de seus trabalhos. Filippo Brunelleschi é destacado no campo da Arquitetura pela construção da catedral de Santa Maria del Fiore. Ao término desta fase, damos um lugar para Leonardo da Vinci, que foi uma das figuras que incorporou com grande intensidade o sentido inovador do Renascimento. Ao chegar à fase do Cinquecento, o Renascimento ocupa uma posição de grande relevância na Itália e em outros países da Europa, tendo Roma como o principal centro político italiano e os papas como mecenas. Na Literatura, o Cinquecento foi prestigiado com as inovadoras teses políticas de Nicolau Maquiavel, autor da obra O Príncipe, na qual elabora a divisão entre os valores morais e as questões políticas. Já nas Artes, Michelangelo é imortalizado por seus afrescos na Capela Sistina; assim como outro grande pintor: Rafael Sanzio. Alcançando os finais do século XVI, Sousa (2015) observa que o Renascimento já experimenta outras manifestações para fora da Itália. Em tal contexto, a expansão marítima desloca o eixo econômico europeu do mar Mediterrâneo para o Atlântico. De tal modo, outros centros urbanos enriquecem, propiciando o surgimento de novos artistas, escritores e intelectuais. Já nessa nova situação, a Contra Reforma Católica atuou no sentido de perseguir as formas de conhecimento que iam contra os seus dogmas. Shakespeare e Hamlet

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Vertente do Humanismo. Doutrina que privilegia a razão como meio de explicação da realidade.

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Scott (2009) afirma que o Renascimento Inglês é um dos últimos da Europa e segue a tradição renascentista que começou na Itália no século XIV, ocorrendo na mesma época da chamada Era Elisabetana. Scott conta ainda que por conta da antecessora de Elizabeth I, a sua irmã Mary ser uma católica conservadora e religiosa fanática, é que possivelmente causou o atraso na chegada dos valores renascentistas vindos da Itália que já se espalhara por toda a Europa até então, uma vez que tais valores contestavam as doutrinas da Igreja. Elizabeth I iniciou o seu reinado como rainha da Inglaterra e Irlanda em 1558, conhecida por ter personalidade forte, permitiu que os valores renascentistas chegassem até seus domínios, pois diferente de sua irmã, era uma pessoa flexível e de mente aberta. A respeito de Mary, Scott (2009) esclarece que o seu reinado foi breve, pois morreu em 1558, depois de reinar somente cinco anos. Elizabeth I, que acendeu ao trono depois da sua morte, declarou que esta era uma obra da Providência, e na verdade, com Mary, o Renascimento Inglês jamais teria acontecido. Elizabeth tinha um caráter bem diferente. Era aberta, entusiasta do saber. O seu tutor, desde a juventude, tinha sido um grande humanista, Robert Ascham. Ela era protestante como o seu pai, Henrique VIII, mas não fanática. Via a religião como um assunto pessoal e esclareceu no princípio do seu reinado que, contanto que as pessoas observassem os ritos exteriores, o resto não interessava, pois a alma é coisa da consciência individual. Além de William Shakespeare, que é considerado um dos maiores escritores e dramaturgos da história da Literatura Mundial, o Renascimento Inglês traz outros grandes escritores anteriores a ele, como Thomas More, e também contemporâneos do bardo, como Edmund Spenser e Christopher Marlowe. Em relação a Shakespeare, sabe-se que sendo poeta e dramaturgo inglês, ele nasceu em Stratfordupon-Avon. O bardo é considerado o maior escritor da Língua Inglesa e o mais influente dramaturgo do mundo (HELIODORA, 1978). Seus textos literários são verdadeiras obras de arte e permanecem vivas até os dias de hoje, onde são retratadas frequentemente pelo Teatro, Televisão, Cinema e Literatura. Segundo Bassett (2000, p. 1), o escritor e amigo de Shakespeare, Ben Jonson disse: ―He was not of an age, but for all time 8‖; ou seja, sabemos que os textos de Shakespeare fizeram e ainda fazem sucesso, pois tratam de temas próprios dos seres humanos, independente do período histórico. Heliodora (2010) afirma que o teatro é o melhor documentário do ocidente, pois se pegarmos a sua história, teremos em mãos a melhor maneira de se saber o que houve no ocidente desde a Grécia, uma vez que na medida que o teatro muda, é pelo motivo de não estar mais representando o que está acontecendo, ou seja, ele vai se transformando por que a sociedade em torno dele também o faz. Apesar das tragédias terem sido o ponto forte de Shakespeare, o bardo também escreveu comédias e peças históricas, bem assim como seus famosos sonetos. Heliodora (2014) fala que entre 1601 e 1608, temos o chamado período trágico de Shakespeare, época em que escreveu suas maiores tragédias, e uma parte delas é conhecida como as quatro grandes peças: Hamlet (1601), Otelo (1604), Rei Lear (1605) e Macbeth (1606). Tomamos a primeira como a escolhida na pesquisa. Bloom (2004) afirma que entre todas, Hamlet é peça mais ilimitada, uma vez que apresenta a fragilidade humana em confronto com a morte. A peça Hamlet se passa no reino de Elsinore na Dinamarca. Conta a história do príncipe Hamlet que havia acabado de perder seu pai, o rei Hamlet, e teve a revelação de quem cometeu o assassinato por meio do fantasma do próprio falecido. O assassino seria o irmão do rei morto, Cláudio, que o fez para apossar-se do trono. O protagonista, então, passa a peça tramando sua vingança e com ela muitos acontecimentos regam o enredo, como a suposta loucura do príncipe, a traição e a insanidade de pessoas próximas a ele e principalmente os pontos mais chamativos na peça, a forma que Shakespeare descreve as filosofias e conflitos que permeiam a mente de Hamlet em seus famosos solilóquios, além de uma infinidade de abordagens e acontecimentos entrelaçados à trama e que fazem desta, não somente a mais longa peça em extensão de Shakespeare, como a mais estudada por diversas abordagens e perspectivas. Nas palavras de Holden (2001), percebemos que esta tragédia não é apenas a mais longa peça do bardo, porém a mais ambiciosa tecnicamente; uma vez que passa da comédia à tragédia, da violência à calma, 8

Ele não foi de uma época, mas de todos os tempos. (Traduzido pelo pesquisador).

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do amor ao ódio, da confusão à redenção, conta a história do ser humano com nunca foi contada, antes nem depois, expressando tanto a experiência individual quanto a coletiva que pode conter um frágil e confuso ser, um poeta-filosófico que enfrenta todos os nossos problemas cotidianos enquanto tenta resolver o que nós jamais teremos de enfrentar: vingar o assassinato do pai. Em relação, precisamente, à Horácio, é de certo afirmar que, na obra, a personagem se encontra como um fiel amigo do príncipe Hamlet, alguém com que ele sempre pode contar. Vejamos o que Martins (2009, p. 5-6) afirma: Horácio exerce um importante papel na tragédia de Shakespeare, pois é ele quem leva ao jovem príncipe a notícia do aparecimento do fantasma do antigo rei. Assim que fica sabendo da presença desse espectro Horácio decide contar o fato a Hamlet. [...] Em uma corte repleta de pessoas que só se preocupam com seus interesses, Horácio dirige todos os seus atos buscando ajudar o seu amigo. [...] o príncipe já não confiava plenamente em sua sanidade, mas confiava cegamente na amizade de Horácio.

Em outras palavras, a única pessoa que o protagonista confiava era seu amigo Horácio, este que sempre se encarregou de cuidar e apoiar o amigo no que fosse preciso, sem interesses políticos ou financeiros. Destaque à questão do príncipe ter dúvidas, inclusive, em relação à sua sanidade, mas depositar total confiança em Horácio. Ou seja, confiava mais em Horácio do que em si próprio. Martins (2009, p. 6) completa, ainda: ―fidelidade, lealdade, companheirismo, amizade, se opõem à ganância, ao poder, à corrupção, à traição. Horácio parece receber a recompensa ao ser o único sobrevivente.‖ Percebemos que Horácio é o oposto da proposta da peça; esta é guiada pela vingança, traição e afins, ao passo que o melhor amigo do príncipe representa exatamente tudo que é oposto a isso. Analisemos, então, a personagem Horácio sob a perspectiva do Racionalismo no capítulo que segue. O Renascimento italiano em Hamlet Neste capítulo dialogamos acerca do Racionalismo e suas implicações provindas do Renascimento Italiano. Tomando por base a análise da obra Hamlet de William Shakespeare, contando o enredo da peça de forma que retrata o pensamento renascentista nas falas e ações especificamente da personagem Horácio, que em sua descrença – em relação a relatos acerca do fantasma do Rei Hamlet – podemos dizer que este personifica o ser racional do Renascimento. Trechos foram, então, retirados da peça e analisados sob as lentes do Renascimento Italiano para que houvesse a possível articulação entre as ideias e valores do período histórico italiano e a tragédia do bardo inglês. Horácio e o Racionalismo do Renascimento Italiano Por volta de uma hora da manhã, no terraço do castelo de Elsinore, o oficial Bernardo está de vigília, quando aparece Marcelo e Horácio. Eles falam a respeito de uma estranha presença aos arredores do castelo, mas Horácio não acredita, pois diferentemente dos outros dois, ele ainda não viu. MARCELLUS: Horatio says 'tis but our fantasy, And will not let belief take hold of him Touching this dreaded sight, twice seen of us: […] That if again this apparition come, He may approve our eyes and speak to it. HORATIO: Tush, tush, 'twill not appear. BERNARDO: Sit down awhile; And let us once again assail your ears, That are so fortified against our story

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What we have two nights seen (HAMLET, ATO I, CENA I, p. 2):9

Quando Marcelo pergunta a Bernardo sobre a coisa ter aparecido novamente naquela noite, ele está se referindo ao fantasma que fora visto por eles anteriormente rondando pelas proximidades do castelo, e que se parecia muito com o falecido Rei Hamlet. A relutância de Horácio em aceitar a existência de uma coisa além da vida, algo sobrenatural, algo que se não fosse visto com os próprios olhos, não seria possível acreditar, nos traz por meio das lentes do Renascimento Italiano, a característica do homem questionador, dessa particularidade do século XIV trazida diretamente da Itália para a Inglaterra do Renascimento. Na época do Renascimento Italiano, teve-se um profundo questionamento por parte do homem em relação ao que seria real ou não, pois durante toda a Idade Média do Ocidente, Deus (deus judaico-cristão) era colocado como o centro de todas as ações e acontecimentos relacionados à sociedade e ao indivíduo; com a ascensão do Racionalismo na época, passou-se a questionar o papel de Deus como o único agente do destino, ou se realmente o homem poderia interferir em sua própria vida. Gasparetto Jr (2015) nos fala um pouco sobre a ideia do Racionalismo quando afirma que era definido pelo raciocínio como operação mental, discursiva e lógica para extrair conclusões. Segundo ele, para o Racionalismo, tudo tem uma causa inteligível, mesmo que não possa ser demonstrada empiricamente. Ele segue afirmando que o Racionalismo foi importante característica do mundo moderno para superar o mundo medieval, pois privilegia a razão em detrimento das experiências do mundo sensível, ou seja, o método mítico como se tinha acesso ao conhecimento durante a Idade Média. Assim, o Racionalismo é baseado na busca da certeza e da demonstração. E como percebemos na obra, Horácio pode ser considerado a personificação do racional à medida que mostra a sua descrença em relação a algo que ele nunca havia visto. Por outro lado, Marcelo e Bernardo acreditam que o fantasma realmente existe, uma vez que o viram, e talvez esse seja o único motivo que tenha os feito acreditar em tal fato, por esta razão que não se contentaram em apenas falar para Horácio que existia um fantasma assombrando Elsinore, mas fizeram questão de trazê-lo para que também o visse, pois assim como eles, seria essa a única maneira racional de acreditar na existência de tal criatura. A cena segue com a chegada do fantasma, Marcelo é o primeiro que percebe, e avisa pedindo silêncio. Os homens ressaltam a semelhança da aparição com o antigo rei; Horácio diz estar trespassado de medo, e mesmo assim, Marcelo o diz: ―Speak to it, Horatio10‖. BERNARDO: See, it stalks away! HORATIO: Stay! speak, speak! I charge thee, speak! (Exit Ghost.) MARCELLUS: 'Tis gone, and will not answer. BERNARDO: How now, Horatio! you tremble and look pale: Is not this something more than fantasy? What think you on't? HORATIO: Before my God, I might not this believe Without the sensible and true avouch Of mine own eyes (HAMLET, ATO I, CENA I, p. 3).11

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MARCELO: Horácio diz que é tudo fantasia nossa,/E não vai deixar a crença tomar-lhe conta/Sobre essa temida visão que vimos por duas vezes:/[...] Quando a aparição se mostrar novamente,/ Ele irá comprovar nossos próprios olhos e falar com ela. HORÁCIO: Ora, ora, não aparecerá. BERNARDO: Sente-se por um estante;/E nos deixe lhe atacar os ouvidos mais um pouco,/Que estão tão fortificados à nossa história/Sobre o que vimos por duas noites (Traduzido pelo Pesquisador). 10 Fale com ele, Horácio. (Traduzido pelo Pesquisador) 11 BERNARDO: Veja, já estás a se retirar! HORÁCIO: Fique! Fale, fale! Eu ordeno a ti, fale! (O Fantasma sai.) MARCELO: Se foi, e não irá responder. BERNARDO: E que tal, Horácio! Você treme e estás pálido:/Isto não é mais que fantasia?/O que tens a dizer? HORÁCIO: Juro por Deus, jamais teria acreditado/Sem a confirmação sensata e verdadeira/De meus próprios olhos (Traduzido pelo Pesquisador). 79 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Na última fala de Horácio, percebemos que a personagem admite a afirmação do pensamento racionalista, no qual apenas se acredita naquilo que se vê, no que se prova; pelo menos para ele, neste caso com o seu testemunho ocular. Devemos perceber também, que a transição da Idade Média à Idade Moderna pode ser considerada, para alguns historiadores, a ruptura do pensamento cristão religioso medieval e a ascensão do racional, ou seja, a sociedade teocêntrica se torna antropocêntrica. Para outros pesquisadores, a sociedade antropocêntrica apenas ganhou uma nova forma de pensamento a somar com o que já estava estabelecido. Em outras palavras, podemos dizer que apesar das pessoas terem continuado crentes e tementes a Deus, elas perceberam que também obtinham poder sobre suas ações, tirando assim, a responsabilidade de seu destino apenas de tal divindade superior. O Renascimento é a transição da Idade Média à Idade Moderna, assim sendo, Araújo (2011) explica que houve uma ruptura de valores nesta transição, a reflexão humanista acerca da sociedade, da cultura, das artes e das ciências medievais levou a profundas e consideráveis críticas acompanhadas de soluções de caráter antropocêntrico em oposição ao Teocentrismo ortodoxo defendido pelos teólogos e pela Igreja, que se viam ameaçadas por esta onda de inovações perturbadoras da ordem social estabelecida. Por outro lado, Nunes (2015) afirma que apesar do Antropocentrismo ter sido um movimento que surgiu em meio ao Teocentrismo ortodoxo defendido pelos teólogos e pela Igreja, o movimento humanista preocupava-se em oferecer novos valores, novas oportunidades ao homem que lentamente começa a indagarse a respeito do mundo a sua volta tornando-se mais atuante, mais participativo desejoso do saber técnico/teórico fundamental para que a experimentação prática fosse bem sucedida, ou seja, não existiria exatamente um rompimento, mas sim um agregado à sociedade. Nas falas de Araújo e Nunes, percebemos que há mais de uma interpretação a respeito do Renascimento e seus valores agregados dependendo do ponto de vista. Voltando à peça, notamos que quando Horácio diz: ―Before my God, I might not this believe12 ‖. É interessante vermos que a personagem representa a sociedade que não parou de acreditar em Deus, pois apela à divindade no momento de seu juramento, porém está mais questionadora em relação ao que existe ou não, do que se pode ou não provar de forma racional, corroborando a questão da não ruptura da crença em Deus, mas sim como um acréscimo à forma de pensar da época. Considerações finais Para a análise dos dados bibliográficos colhidos, tomamos primeiramente a questão norteadora: Quais são as características do Racionalismo renascentista italiano encontradas em Horácio, personagem da tragédia shakespeariana Hamlet? Pergunta esta que foi devidamente respondida a partir do Objetivo Geral previamente elaborado: Analisar as características do Racionalismo renascentista italiano encontradas em Horácio, personagem da tragédia shakespeariana Hamlet. A pesquisa obteve êxito em alcançar o objetivo. Primeiramente, as características do Renascimento Italiano foram devidamente justificadas e apontadas no primeiro capítulo, no qual vimos as particularidades e pontos principais do movimento, bem assim como seus artistas e obras; por sua vez, pudemos tomar conhecimento da biografia do bardo inglês no segundo capítulo, este que nos trouxe peculiaridades de sua vida e obra; ainda no mesmo capítulo, conhecemos a tragédia Hamlet, fazendo o leitor compreender os assuntos e questionamentos envoltos na obra, bem assim como entender o papel relevante de Horácio na tragédia de William Shakespeare. No terceiro capítulo conseguimos articular o Renascimento Italiano com a obra Hamlet; o que nos possibilitou alcançar o Objetivo Geral e consequentemente responder a nossa questão norteadora. Isso se tornou possível ainda neste capítulo de análise, no qual resgatamos o enredo de Hamlet, bem assim como trechos desta peça, tendo em vista averiguá-la sob as lentes do Renascimento Italiano. Desta forma, pudemos 12

Juro por Deus, jamais teria acreditado. (Traduzido pelo Pesquisador).

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encontrar as características do ser questionador do período histórico italiano na peça do bardo inglês e subsequentemente analisá-las. O Racionalismo traz à tona o pensar por si próprio do homem renascentista, no qual entende que algo só pode ser tomado como verdadeiro à medida que pode ser provado. O fato de Horácio não ter acreditado na existência do fantasma quando foi informado pelos guardas, remete ao ser racional do Renascimento. Pensamento que foi confirmado ao ver o fantasma por si mesmo posteriormente, ou seja, somente passou a acreditar, na medida em que obteve provas concretas, pelo menos para ele, com a confirmação por meio do testemunho ocular. O assunto trouxe, ainda, à pauta, diálogos acerca do Antropocentrismo ter surgido em detrimento do Teocentrismo ou apenas como uma forte corrente de pensamento que veio a somar com este. Na fala de Horácio – na qual a personagem clama por Deus e diz ainda que não teria acreditado se não tivesse visto a criatura por ele mesmo – vimos que apesar da descrença, a personagem se mostra temente ao deus judaicocristão, corroborando com a inclusão do pensamento vindo a somar com a ideia antiga, o Teocentrismo, e não a excluí-la. Do ponto de vista pessoal, este estudo nos possibilitou uma maior amplificação do conhecimento a respeito das temáticas que já eram fascinantes a tempos anteriores à otimização que aqui foi permitida. No campo social, compreendemos que o estudo dos períodos históricos, tanto italiano, quanto inglês, bem assim como o aprofundamento da tragédia shakespeariana nos faz perceber que tal conhecimento sobre essas sociedades anteriores, nos permite ter um olhar mais amplo sobre a nossa própria sociedade atual, fato que é de grande valia para todos nós, considerando uma comunidade de leitores que aumenta. Por último, no campo acadêmico, percebemos que esta pesquisa é amplamente interessante não só para alunos, mas professores e estudiosos de diferentes esferas, uma vez que notamos a presença de áreas do saber como: História, Literatura, Pintura, Teatro, entre outras; até mesmo a variedade de temas que resgata diversos assuntos da Itália e Antiguidade greco-romana. Além do mais, compartilhamos o êxito em saber que as pesquisas acerca dos temas, Renascimento Italiano e Hamlet, são de ampla interpretação, podendo ser trabalhadas de inúmeras maneiras diferentes de acordo com o propósito do pesquisador. As análises feitas neste trabalho acadêmico não são conclusivas, muito pelo contrário, abrem caminhos para novas interpretações a respeito do assunto, e ainda sabemos que a mesma temática e abordagem podem ser ainda mais exploradas, aja visto um período tão rico em personalidades, pensamentos e obras como o Renascimento Italiano, e igualmente uma peça como Hamlet que é famosa por protagonizar infinitas interpretações, por conta da ousadia de Shakespeare em ultrapassar uma simples peça de teatro, enaltecendo a figura do protagonista com suas falas cheias de múltiplos sentidos, além de personagens de grande relevância que trazem consigo a possibilidade de variados pontos de vista e análise. Referências BASSET, Jennifer. William Shakespeare. 5rd Edition. Oxford Bookworms. 2000. 64 p. BLOOM, H. Shakespeare. A invenção do humano. Rio de Janeiro: Objetivo, 2000. ______.Hamlet: Poema Ilimitado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. DELUMEAU, J. A civilização do Renascimento. Tradução Manuel Ruas. Lisboa: Estampa, 1983. FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Miniaurélio: o dicionário da língua portuguesa. 8. ed. Curitiba: Positivo, 2010. 895 p. GASPARETTO JR, A. Racionalismo. 2015. Disponível em: <http://www. infoescola.com/filosofia/racionalismo/> Acesso em: 10.12.15. HELIODORA, B. A trajetória de Shakespeare como autor. <https://www.youtube.com/watch?v=cSspgeb601k>. Acesso em: 19 de junho, 2015.

2014.

Disponível

______. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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em:


______. Bárbara Heliodora – 27/12/2010. 2010. Entrevista no Programa Roda Viva. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=vf2ax2mo7es>Acesso em: 19 de junho, 2015. MARTINS, R. C. Pílades e Horácio: o valor de amizade em Hamlet e Orestes. In: IX Semana Acadêmica de Letras PUCRS, 2009, Porto Alegre. Anais da IX Semana Acadêmica de Letras da PUCRS. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. p. 255-263. NUNES, L. Renascimento. 2015. Disponível em: <http://saloondahistoria. blogspot.com.br/2015/04/renascimento.html> Acesso em: 10.12.15. SEVCENKO, N. O Renascimento: os humanistas, uma nova visão de mundo: a criação das línguas nacionais: a cultura renascentista na Itália. São Paulo: Atual, 1985. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Dover Thrift Editions. New York. 1992. Published in volume VII of the second edition of The works of William Shakespeare, Macmillan and Co. ______. Hamlet. Tradução de John Milton e Marilise Resende Bertin. São Paulo. Disal, 2005. ______. Hamlet. Tradução de José Antonio de Freitas. – São Paulo: Martin Claret, 2010. – (Coleção a obra-prima de cada autor; 39). ______. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2006. 140 p.; 18 cm. (Coleção Pocket L&PM). SURTZ, E. The praise of pleasure: philosophy, education, and communism in More‘s Utopia. Massachusetts: Harvard University Press, 1957.

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A HISTERIA VAMPÍRICA NA INGLATERRA DO SÉCULO XIX: O MITO DO VAMPIRO NA LITERATURA INGLESA1 Maria Jukelle de Lima Sousa2 Renata Cristina da Cunha3 RESUMO Este artigo, trabalho de conclusão da disciplina de Cultura dos Povos ministrada no curso de Licenciatura Plena em Letras Inglês da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), tem como questão central: Qual a relação entre o mito dos vampiros na Literatura Inglesa e a histeria vampírica que aconteceu na Nova Inglaterra, Estados Unidos, no século XIX? A fim de responder esta questão, foi elaborado o seguinte objetivo geral: Analisar a relação entre o mito dos vampiros na Literatura Inglesa e a histeria vampírica que aconteceu na Nova Inglaterra, Estados Unidos, no século XIX. Para alcançar este objetivo, foi realizada uma pesquisa de cunho bibliográfico fundamentada em autores como Lecouteux (2005), Melton (2010), D‘Agostino (2010) dentre outros. Em termos organizacionais, o artigo apresenta quatro seções, além das reflexões iniciais e finais. Na primeira seção, são elencadas as possíveis origens do mito do vampiro. Na segunda seção, é delineada a trajetória histórica da histeria de vampiros na Nova Inglaterra no século XIX. Na terceira seção, é discutida a abordagem da figura do vampiro na Literatura Inglesa. Na quarta e última seção, são apresentadas as três obras literárias inglesas consideradas as principais pela criação da figura do vampiro moderno. Palavras-chave: Histeria na Nova Inglaterra; Literatura Inglesa; Mito do Vampiro.

Introdução

A

Nova Inglaterra sempre foi considerada um lugar misterioso desde que foi descoberta, segundo afirma Mendes (2016), sua história é rodeada de contos e eventos macabros que evocam o sobrenatural, se tornando um solo prolífero para os mais variados tipos de criaturas sinistras, bruxas, lobisomens e o tão temido vampiro . Nos séculos XVIII e XIX, histerias de vampiros eram comuns em toda a Europa, a consumpção que assolava o continente juntamente com relatos dos eruditos chegaram até o novo mundo fortalecendo a suspeita de ataques vampíricos. When folklore works in the place of reason and intelligence, it can become the new medicine of the day. That is what appears to have ocurried in New England when a disease called consumption, now known as Tuberculosis, ran rampant across the region. The medical doctors of the eighteenth and early nineteenth centuries had no cure or effective treatment for the disease. (D‘AGOSTINO, 2010, p. 19).

Essencial, o século XIX que marcou o nascimento do vampiro moderno na literatura inglesa lhe conjurando em solo inglês, solo esse, que foi o berço de seu cânone, O Drácula (1877) e de tantas outras obras que são referências, para os amantes de histórias de vampiros, trazendo a vida e ao mesmo tempo introduzindo a morte, coube à Literatura Inglesa a importante incubência de consagrar o que viria a ser o arquétipo do vampiro moderno por nada menos que, Lord Ruthven em The Vampyre: A Tale (1819), Carmilla (1872) e Drácula (1897) personagens que são homônimos de seus títulos. A Literatura tem sido solo fértil para o vampiro que se desenvolveu em vários outros cenários como na medicina para descrever doenças e no meio social para incorporar negativismo ao discurso de cunho político. Segundo enfatiza Lecoutoux (2005) os sociólogos têm atribuído o grande florescimento do vampiro por 1

Trabalho apresentado no GT _______________ do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduanda da Universidade Estadual do Piauí. Parnaíba-PI. Endereço eletrônico: jukellesousa13@gmail.com 3 Doutora da Universidade Estadual do Piauí. Parnaíba-PI. Endereço eletrônico: renatasandys@hotmail.com 83 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


meio da literatura, por ser este um mito que envolve temas eloquentes, assumindo na Inglaterra desde 1741 o sentido de ―tirano que suga seu povo‖. Ao suscitar questões relevantes para o imaginativo humano como: prazer, sofrimento, a vida e a morte, o vampiro foi considerado o grande responsável pela epidemia que estava dizimando famílias inteiras, de maneira alarmante os boatos de sua existência e suas obras aterrorizantes se espalhavam assolando a Nova Inglaterra do século XIX, todavia posteriormente o vampiro foi considerado inocente, sendo a porfiria, com sua pele pálida,e desejo de sangue, a grande culpada por trazer em sua essência as características do mito vampírico à realidade. Origem do mito Não se sabe ao certo onde e quando nasceu o mito acerca dos vampiros. Jenkins (2010) aponta para uma verdadeira mistura de histórias de origem indo-européia enquanto, Ferraz (2012) especifica um local: Os países eslavos da Europa Centro Oriental destacando que a própria palavra vampir tem sua origem no idioma sérvio essa prerrogativa ainda é suportada por Kallen (2011) que faz um traçado da origem da palavra vampiro, na Rússia, onde surgiu pela primeira vez, em publicação de um padre para descrever o soberano de Novgorod, Vladimir Yaroslavich como ―Upir Lichyi‖ que pode ser traduzido como‖ vampiro mau ou perverso‖ em Russo antigo, tinha um forte elo com os idiomas sérvios indicando sua possível origem. Kallen (2011) enfatiza a ideia da antiguidade do mito ao explicar que no século XI a palavra vampiro já era utilizada para se referir aos pagãos da Europa Oriental que bebiam sangue de sacrifício animal para obter a imortalidade. A lenda que, sobreviveu e se propagou ao redor do mundo ganhando novas e particulares características, em vários lugares como a Mesopotâmia, China, Grécia, Índia dentre outros, se tornou um símbolo folclórico universalmente conhecido. Estudiosos como Melton (2010) e De Sousa (2009) remontam a existência do mito desde os tempos bíblicos do antigo testamento, apresentando Lilith como a matriarca do mito vampírico, evidenciada no Talmude, livro de tradições judaicas, como a primeira mulher de Adão, que rejeitando-se a ser submissa a ele durante a relação sexual, foge para o mar vermelho, lugar que segundo as crenças dos hebreus, era um lugar amaldiçoado e lugar habitado por demônios. Lilith, tornou se um demônio mulher possuída pelo seu desejo oriundo de vingança, planejou tomar o sangue dos filhos de Adão e Eva revisitando o jardim Éden. De Sousa (2009) menciona que Lilith, muito famosa no folclore hebreu pertence ao grupo de demônios que atacam durante a noite em forma de Succubus4 e Incubbus5, tornando se a primeira figura representante do vampirismo por atacar suas vítimas sugando -lhes o sangue. Entretanto é importante ressaltar que uma criatura não é considerada vampira se somente sugar sangue de seres humanos para manter sua aparência de vida ou mesmo ressurgir de uma sepultura, Melton (2010) afirma que há variedades de vampiros que podem aparecer somente em forma de um espírito mau, sem um corpo, ou simplesmente se assemelhando a um demônio como são representados nas mitologias existentes na Grécia e Índia. Melton (2010) lista, três exemplos de criaturas vampíricas diferentes relacionadas ao mito somente na Grécia: lamiai ou Lamia, empusai e mormolykai de maneira que, em geral as três criaturas são muito semelhantes. Melton (2010), explica essas três criaturas também eram conhecidas na Grécia como strige, uma palavra derivada da latim, strix utilizada originalmente para designar demônios noturnos que matavam crianças sugando-lhes o sangue. O termo lamiai, depois se tornou lamia, designando uma classe inteira de criaturas baseadas em seu estereótipo. Na mitologia grega, a Lamia era uma rainha da Líbia, muito amada por Zeus, com quem teve filhos e filhas. Hera, mulher de Zeus, sob domínio de ardente ciúme e ira, usando de seu ressentimento raptou todas as 4

Súcubo (em latim succubus, de succubare) é um demônio com aparência feminina que invade o sonho dos homens a fim de ter uma relação sexual com eles para lhes roubar a energia vital. 5 Íncubo (em latim incubus, de incubare) é um demônio na forma masculina que se encontra com mulheres dormindo, a fim de ter uma relação sexual com elas. 84 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


crianças nascidas deste amor, o incidente causou profunda tristeza em Lamia que, incapaz de atacar Hera, se retirou para uma caverna onde começou a matar filhos de mães humanas, sugando-lhes o sangue transformando-se em um terrível monstro. Melton (2010) enfatiza que as lamias eram conhecidas inicialmente como criaturas demoníacas que se alimentavam de crianças além de incluírem características de serpentes, eram capazes de mudar forma constantemente, incorporando beleza e sensualidade para atrair também os homens. Melton (2010) aponta as similaridades entre os mitos de Lilith e da Lamia. Tecchio (2013) endossa a grande quantidade de características em comum entre elas alertando que provavelmente suas lendas sejam derivadas do mesmo folclore. De Sousa (2009, p.3) vai mais além: Chamada por muitos de Rainha do Mal e Mãe dos Espíritos Malignos, Lilith é representante de um ser que aparece na maioria das culturas. As mais antigas, além dela mesma, incluem a lâmia grega, a langsuyar malaia e também a loogaroo, a sukuyan e a asema, vampiras da área do Caribe. Cada uma dessas figuras vampíricas aponta para a origem do vampirismo como um mito explicando os problemas ocorridos no parto.

Contudo, claramente a variedade de vertentes que podem ser advindas de uma mesma raiz histórica, sejam elas em solo judeu, grego ou caribenho dentre tantos outros são somente uma pequena amostra da vasta proporção que o mito do vampiro tomou e tem tomado ao longo do tempo se consolidando em diversas culturas verdadeiramente um ser imortal. Histeria de vampiros na Nova Inglaterra Segundo, Moura (2009), A palavra histeria, de início esteve sempre ligada com o feminino e sexual, entretanto na Idade Média, a histeria começou a ser utilizada para se referir a possessões demoníacas. Moura (2009) explica que na Europa do século XIX a palavra começou a ser utilizada para se referir a doença do momento, acarretando numa fuga da realidade por parte do histérico como forma de se isentar das obrigações impostas por essa realidade. Durante o século XVIII Houve uma um súbita expansão das lendas e do folclore relacionados ao mito do vampiro por toda a Europa oriental, que atingindo também a Europa ocidental, em países como a França e a Inglaterra, foram responsáveis por disseminar uma grande quantidade de informações sobre o vampirismo nestes locais, resultando em verdadeira histeria coletiva. Distante da convicção que temos hoje de que o vampiro é um ser puramente literal, imortalizado pela Tv, teatro, filmes, literatura e quadrinhos, as pessoas que viviam na Europa e em especial na Nova Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX realmente acreditavam na existência destes seres mortos que haviam voltado à vida por ocasião de forças sobrenaturais, bebedores de sangue, dentre outras características peculiares, Swancer (2014). Thomas D‘Agostino em seu livro intitulado A History of Vampires in New England (2010) enfatiza que as fortes crenças do povo inglês nestes seres eram advindas de relatos de camponeses, que se espalharam nestas sociedades, ganhando força, diferentemente do vampiro charmoso e gentil que vemos hoje, o vampiro na Nova Inglaterra dos séculos XVIII e XIX era visto como um ser espiritual que se levantava da sepultura para se alimentar dos vivos. D‘Agostino (2010) ainda pontua que, a vida na colônia não era fácil a população estava exposta a muitos tipos de doenças, a morte era uma realidade bem cruel e visível principalmente para as crianças. Neste momento da história, a tuberculose, que era conhecida como consumpção, estava fazendo várias vítimas, os médicos não conseguiam descobrir a causa de tal epidemia que se alastrava cada vez mais rapidamente e de forma monstruosa por toda a Europa chegando até ao Novo mundo. A Tuberculose devastou famílias inteiras em pouco tempo, na tentativa de encontrar uma resposta para tal questionamento, as pessoas começaram a atribuir tal epidemia aos vampiros, o folclore acabou assumindo a situação onde a medicina falhou.

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Muitas famílias começaram a exumar os corpos de seus amados familiares em busca de pistas que pudessem levar ao vampiro que estava causando a doença, baseado nos detalhes das lendas que ouviram sobre vampiros, as pessoas acreditavam que a doença passava de um membro da família para outro, que ia matando membro por membro em um curso de vários anos, mas mesmo assim seu efeito era devastador, cada detalhe que ligasse a lenda do vampiro era de suma importância na identificação do ser demoníaco que estava assolando as comunidades da Nova Inglaterra, corpo inchado, sangue nos lábios, pele pálida indicavam um possível sinal de vampirismo, as pessoas se encontravam tão aterrorizadas, que retiravam até mesmo o coração do corpo dos mortos, que era dilacerado, se o sangue perpassasse o órgão, significava que um vampiro acabava de ser descoberto. D‘Agostino (2010) acrescenta que essa forte crença juntamente com as superstições que faziam a população praticar atos muitas vezes, sem sentido não surgiu do nada, elas foram trazidas até a colônia por meio dos imigrantes, embasadas em ideias ou conceitos preconcebidos, de valor histórico como enfatiza D‘Agostino (2010) citando o famoso artigo do monge francês Dom Augustin Calmet, como aporte teórico que embasava essa crença, além de relatos reais de dois homens sérvios, Peter Plogojowitz morto em 1725 e Arnold Paole, em 1726, ambos acusados de serem vampiros, por moradores locais de suas regiões. Ao mesmo tempo em que, nas colônias inglesas, a sociedade, se encontrava extremamente assombrada pelo medo de tão terríveis criaturas noturnas, se desenhavam sobretudo neste cenário os primeiros traços de uma literatura voltada para o vampiro, destinada a lhe conjurar em solo inglês. Na Inglaterra, a literatura gótica, século XVIII, trazia a essência do pesadelo como bem definiu Elizabeth MacAndrew, surgindo como uma forma de romance que confronta a obscuridade, dando vasão ao não racionalismo e o mal na vida humana, na famosa reunião de 1816, entre Lord Byron, Percy e Mary Shelley, e John Polidori na Suíça estava dando a luz ao primeiro conto do canino moderno: The Vampyre, de Polidori, Melton (2011). Vampiro na Literatura Inglesa No século XVIII foram registradas várias histerias vampíricas por toda a Europa Ocidental como as histerias vampíricas na Hungria (1725), Prússia (1750), Valáquia (1756) e Rússia (1772). Lecouteux (2005) atribuiu a grande popularização de informações sobre vampiros, aos vários relatos publicados por autoridades durante este período, escritos como a famosa síntese publicada em 1746 pelo monge Dom Augustin Calmet, intitulada ―Dissertations sur les apparitions des esprits, et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, de Moravie‖ que contribuíram para sincretização da lenda, que foi ganhando notoriedade à medida que teve suas primeiras representações literárias e artísticas aparecendo, por exemplo: no poema Bride of Corinth do aclamado Goethe. Segundo Senf (1999) Na Idade Média haviam poucas representações de vampiros na Literatura Inglesa, uma delas na obra de William Newburgh , Witchcraft in Old and New England, e a outra na obra de William Malmesbury, The Vampire in Europe. Senf (1999) cita um artigo de 1855, publicado pela Holsehold Words que se refere a um terceiro exemplo de vampiro na Idade média, encontrado no poema anglo saxão intitulado The Vampyre of the fens defendido por Nicholas K. Kissling que usa evidências linguísticas para comprovar sua tese de que a mãe do personagem Grendel, um dos rivais mais violentos de Beowulf, é uma Lâmia. Não obstante, somente no século XIX o vampiro se personificou. Lecouteux (2005) aponta John William Polidori (1795-1821), Joseph Sheridan Le fanu (1814-1873) e Bram Stoker (1847-1912) como os três mais importantes autores ingleses responsáveis pela representação do vampiro moderno, e ainda aponta Le fanu e Polidori como precursores responsáveis por despertar os olhos da sociedade para este tema e Bram Stoker como o grande responsável pela imagem do vampiro que temos na atualidade. Lecouteux (2005) enfatiza a grande importância que o vampiro ganhou com a ascensão da literatura gótica neste período. a ascensão do vampiro nesta época não se restringiu apenas aos movimentos da literatura gótica do século XIX mas, teve uma diversidade de importantes representações artísticas e 86 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


culturais de artistas, filósofos e escritores como Voltaire, Baudelaire, Byron, o mito que foi se redesenhando para resultar no tão famoso Drácula de Bram Stoker não cansou de ser reeditado até mesmo para o teatro ganhou notoriedade também na literatura contemporânea, no cinema e atualmente até mesmo na televisão. Lecouteux (2005) afirma que grandes nomes assinaram histórias de vampiros como Roman Polanski em A dança dos Vampiros (1967), Drácula (1994) de Francis Ford Coppola, Entrevista com um vampiro (1976), romance gótico de Anne Rice o que torna impossível negar a importância do tema para a humanidade à medida que se percebe a grande quantidade de discussões geradas em torno deste tema e sua constante desenvolvimento que tem permanecido de forma pertinente na sociedade suscitando a questões profundas que circundam o que acontece ao ser humano após a morte. Ferraz (2012) acrescenta ainda como: alguns dos principais caninos que corroboram a ficção vampírica, temas como: vida, imortalidade, sedução, sexo, salvação e perdição, violência, terror e prazer. Por meio das artes e literatura o vampiro tem se delimitado no século XXI, como uma paixão constante aparecendo com frequência em romances, como a saga Twilight (2005) de Stephenie Meyer e como a saga The vampire diaries (1991) de Lisa Jane Smith. Melton (2010) atribui o grande sucesso do vampiro na contemporaneidade a sucesso obtido pelo gênero entre as jovens, diferentes características têm sido incorporadas ao mito o que revela a constante evolução e expansão. Os três fundadores do mito na Literatura Inglesa Neste artigo iremos abordar as principais características das obras daqueles que são considerados os grandes criadores do vampiro moderno, na literatura inglesa: The Vampyre, A Tale (1819) de William Polidori, Carmilla (1872) de Joseph Sheridan Le fanu e Drácula (1897), de Bram Stoker levando em consideração o importante papel desempenhado por eles como precursores de todos os vampiros que temos na atualidade. Lecouteux (2005) elenca as principais características do vampiro na obra The vampyre de Polidori, o vampiro Lord Ruthven, aparece com olhos cinzentos e frios, com força sobre humana sugador de sangue. de acordo com Lecouteux (2005) o vampiro de Polidori lançou o gênero na Inglaterra conquistando um público sem precedentes, Porém foi injustiçado quanto a paternidade do vampiro, como afirma Ferraz (2012, p.239) John Polidori (1795-1821), médico e escritor inglês, (que era secretário e médico particular de Byron), foi um injustiçado relativamente à paternidade do Vampiro. Criou o magnífico Lorde Ruthven, colocando nele aspectos da biografia do poeta britânico Lord Byron (1788-1824), retirando o vampiro grotesco da periferia da zona rural e criando o arquétipo do vampiro: conde citadino, rico, aristocrata, viajante e sedutor.

Como pode se presumir, houve um completo mal entendido, o trabalho de Polidori foi atribuído a Byron, contudo não interferiu em seu estrondoso sucesso, Polidori influenciou muitas obras sobre vampiros que se seguiram como o próprio Bram Stoker, segundo afirma Zanini (2015) já havia uma espécie de arquétipo que proveu inspiração para Stoker, eles eram os vampiros de Polidori e de Le Fanu o que conferiu a Lord Ruthven o status de primogênito de uma grande linhagem. O Segundo canino fundador do vampiro moderno na Inglaterra, foi a obra Carmilla de Sheridan Le fanu, Carmilla era uma vampira que tinha interesse sexual em outras mulheres, Conforme afirma Ferraz (2012, p.237): Carmilla sempre foi um texto muito à frente de seu tempo, por retratar de uma maneira natural e nada discreta, sem nenhum questionamento moral que era próprio da época, uma vampira homossexual e pedófila já que ataca Laura quando esta tinha apenas 6 anos.

Fato que é evidenciado pelo romance doentio entre Carmilla e a personagem Laura. Ferraz (2012) descreve a personagem Laura como falsa ingênua que finge não perceber que há alguma coisa de errado com Carmilla, fechando até mesmo os olhos para a forte semelhança com a Condessa de Mircalla, um anagrama para o nome Carmilla, que é sua ancestral.

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O terceiro canino, considerado o cânone, das obras que dizem respeito ao vampiro é o vampiro Drácula, seu nome é um homônimo de sua obra. O livro conta a história do Conde Drácula, um vampiro nobre da Transilvânia, uma, que precisa morder pescoços humanos, pois o sangue lhe provém a força para se manter vivo. Stoker (2014, p. 26-27) oferece uma descrição das características físicas do Conde Drácula dentro de sua obra como: Seu rosto tinha um acentuado perfil aquilino, com um nariz magro e pronunciado, e narinas curvadas de uma forma peculiar; sua testa era larga e arredondada, e o cabelo escasseava nas têmporas, mas era farto no resto da cabeça Suas sobrancelhas eram muito densas e quase se encontravam acima do nariz, com pelos cerrados que pareciam se enrolar, de tão profusos. A boca, até onde eu conseguia vê-la sob o bigode farto, era rígida e de aparência cruel, com dentes brancos e peculiarmente afinados. Os dentes superiores projetavam-se sobre os inferiores e apareciam entre os lábios, que eram notavelmente corados e revelavam uma surpreendente vitalidade num homem daquela idade. Quanto ao resto, suas orelhas eram pálidas, com extremidades bastante pontudas. O queixo era largo e forte, e as maçãs do rosto firmes, ainda que magras. O efeito geral era da mais extraordinária palidez.

O vampiro Drácula surge no mesmo tempo que o cinema Ferraz (2009) aponta esse momento como possível responsável por tornar o vampiro um tema tão explorado pelo mundo cinematográfico. O livro é composto em forma de cartas que são tocadas entre os personagens da trama que vai ficando cada vez mais tensa com o desenrolar dos acontecimentos a que é descrita com riqueza de detalhes como descreve Ferraz (2009, p. 240) ―O vampiro só dorme em terra nativa, tem medo do espelho, não entra sem ser convidado numa casa. Ele também consagra a ligação do Vampiro com o morcego em sua obra‖. Bram Stoker recebeu o mérito de ter reunido vários dados que vinham de um passado distante, embasadas em antigas tradições que foram analisadas e organizadas por ele. Deste modo Lecouteux (2005) enfatiza que, Drácula se tornou tão conhecido de modo que se tornou uma referência, pois embora muitos outros autores tenham escrito história de vampiros, Ninguém conseguiu pintar o quadro de um vampiro com semelhante riqueza como fez Bram Stoker. Reflexões finais História e literatura têm caminhado lado a lado nos proporcionando a oportunidade de conhecer uma época que não podemos vivenciar fisicamente é evidente que o folclore ajudou a perpetrar a imagem do vampiro no imaginário das pessoas desde a antiguidade, sua importância é denotada a medida que percebemos que é um tema em constante construção e debate como pode se perceber durante todo este artigo. Perdurando entre séculos e diferentes culturas o vampiro é um elo mitológico entre a morte e a vida de importante relevância para tentar explicar questões que não entendemos, A literatura funcionou nesse processo como o meio pelo qual a insegurança de tais questionamentos era expressa, medos, anseios a literatura inglesa ainda mais, lhe conferiu beleza e um certo charme mesmo mórbido, o que o tornou um ser ainda mais enigmático levantando indagações, que muitas vezes são perturbadores para a mente humana, um dos desses momentos foi no século XIX, na Inglaterra, uma colônia massacrada por epidemias, onde o amanhã era incerto, as pessoas procuravam uma saída, um meio de combater a tantos questionamentos, que as assolavam, assim como hoje á nós, o mito do vampiro começa onde tudo termina, a morte. Referências D'AGOSTINO, Thomas. A History of Vampires in New England. Arcadia Publishing, 2010. DE SOUSA, Moacir Barbosa. O vampirismo na obra de Edgar Allan Poe. Revista eletrônica Temática, a. v, n. 7, jul. 2009. Disponível em: <http://www.insite.pro.br/2009/Julho/vampirismo_edgar_allan_poe_moacir.pdf>. Acesso em: 06 fer. 2017. FERRAZ, Salma. VAMPIROS: O MITO É O NADA QUE É TUDO E DE TODOS. Linguagens-Revista de Letras, Artes e Comunicação, v. 6, n. 2, p. 234-258, 2013.

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O JOGO DE ESTRATÉGIAS E TÁTICAS NO JORNALISMO: NEGOCIAÇÕES DE REVESTRÉS SOBRE AS IDENTIDADES CULTURAIS PIAUIENSES

1

Mayara Sousa Ferreira2 RESUMO O presente trabalho analisa a revista de jornalismo cultural Revestrés para entender como as identidades culturais piauienses aparecem e são negociadas no periódico. Para tanto, a investigação se dá a partir de dois eixos que devem aparecer na publicação: o estratégico e o tático, tomando por base as contribuições de Michel de Certeau (2014) sobre as artes de fazer no cotidiano. Assim, as estratégias se referem à maneira como a revista se reapropria das invenções e manifestações culturais. Por outro lado, as táticas dizem respeito ao que rompe o lugar do impresso, às articulações que alteram a ordem estabelecida. A partir desse entendimento, verificamos que Revestrés se posiciona no jornalismo produzido no Piauí, disseminando pensamento crítico capaz de valorizar aspectos culturais já postos, ao mesmo tempo em que levanta questionamentos, propõe olhares sobre outros novos e reflete sobre os convencionais. A revista intervém na construção e/ou reconstrução de identidades piauienses, de forma intencional ou não. As posturas negociadas podem levar a consequências, no sentido de contribuir para alocar aspectos locais como sendo característicos de todo o estado. Palavras-chave: cultura piauiense; estratégias e táticas; identidades culturais; jornalismo.

Introdução

É

notório o lugar do jornalismo enquanto mediador de acontecimentos, promotor de debates e um dos sujeitos que interferem diariamente nas construções e reconstruções sociais. Assim sendo, seu papel vai além de informar sobre assuntos que interessam à sociedade, chegando a intervir no entendimento que temos sobre as diferentes culturas e, por conseguinte, nos elementos que unem e identificam os grupos. Para entender esse papel do jornalismo, esta pesquisa propõe analisar suas contribuições para a (re)construção das identidades culturais, a partir da apresentação de estratégias e táticas. Tomamos como objeto a revista piauiense especializada em cultura, Revestrés, e escolhemos uma edição, dadas as limitações de tamanho desse artigo. Sendo assim, a pesquisa segue a linha de raciocínio em que apresenta os aspectos contextuais de uma edição escolhida aleatoriamente – a edição #20, que foi veiculada em maio/junho de 2015, uma vez que a revisa é bimestral e está em circulação desde fevereiro de 2012. Investigamos como o material publicado pode ser caracterizado como eixo estratégico ou tático, tomando por base a perspectiva de Michel de Certeau (2014). Segundo o autor citado, ―as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de poder‖ (CERTEAU, 2014, p. 96. Grifos do autor). Já às táticas, o autor se refere como sendo as formas como as pessoas se apropriam da realidade para burlar a ordem estabelecida. Surgem em meio aos padrões sistematizados e impostos no cotidiano como ações desviacionistas, mas pontuais, pois se tratam de exceções às regras a partir de negociações estabelecidas perante as estratégias. ―As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo – às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável‖ (CERTEAU, 2014, p. 96), atitudes que 1

Trabalho apresentado no GT Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Jornalista pela Universidade Estadual do Piauí. Mestre em Comunicação, através do PPGCOM da Universidade Federal do Piauí. Atualmente, é professora do curso de Jornalismo da Faculdade RSá. Picos-PI. E-mail: ferreiramayara02@gmail.com 90 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


podem ser capazes de mudar a realidade, de transformar a situação adversa e a organização imposta em favorável. Percebemos que Certeau (2014) se concentra em estudar as artes que os praticantes adotam no cotidiano, às vezes, até de modo subterrâneo, não ―autorizado‖ e nisso se demonstra a capacidade de criar, de inventar e que é esta a grande contribuição do autor. Propomos, então, avaliar quais os aspectos identitários da cultura piauiense são constituídos e valorizados na revista editada no Piauí. As estratégias são entendidas, portanto, como a linha principal do periódico, as formas como os temas são trabalhados, o poder estratégico dos que controlam o lugar ou o processo de produção cultural. Referem-se, ainda, àquilo que Revestrés leva ao leitor como uma reapropriação dos produtos culturais, a maneira como ela fixa o plano estratégico de publicação, o que quer passar para o público, as imposições, seja por meio da linguagem, dos recursos visuais, da organização das editorias, da disposição das pautas ou do conteúdo em si. Enquanto isso, as táticas dizem respeito ao que a revista usa para alcançar as estratégias. As astúcias são os modos de fuga do eixo principal na reapropriação dos produtos culturais, as formas que faz para burlar a ordem estabelecida. Identificaremos como táticas aquilo que rompe o lugar da revista ou o que ela vem desenvolvendo como linha maior no plano estratégico. Analisamos que táticas podem estar sendo usadas entre as articulações para burlar a ordem e fazer com que aspectos da cultura piauiense sejam fixados nas memórias e, consequentemente, nas identidades. De tal maneira, analisamos como a revista produz o material publicado, que aspectos textuais podem ser indicadores de valorização das identidades piauienses como forma de cativar o público e levar a uma aceitação daquilo que está sendo colocado, uma vez que as questões relacionadas às identidades são negociadas, então, tais negociações podem ser as táticas dentro deste trabalho. Investigaremos como a publicação trabalha a cultura, assim como os aspectos identitários, o que pode ser identificado do ponto de vista estratégico e tático, para entender o papel desse impresso de publicação especializada em Jornalismo Cultural. Análise das estratégias e táticas de Revestrés O primeiro aspecto a ser identificado do ponto de vista estratégico presente na revista Revestrés diz respeito ao visual gráfico do impresso: atraente e criativo. As cores são utilizadas para enfatizar as temáticas abordadas no periódico, até porque o visual gráfico é o primeiro a comunicar as intenções da publicação sobre o quanto ela é dinâmica e séria, ao mesmo tempo, além de ser uma forma de atrair a atenção do leitor para o conteúdo a ser lido e observado no seu interior. No caso da capa da edição #20, de maio/junho de 2015, exibe cor marrom, apresentando abas com variações no tom, as quais indicam os temas abordados pela pesquisa apresentada na reportagem de capa – ―Dossiê cultura: pela primeira vez, uma pesquisa de opinião, encomendada pela Revestrés, traz dados reveladores sobre o consumo de cultura no Piauí‖. Tal estratégia de cores e diagramação é usada como sugestão e adequação ao conteúdo: uma pasta de arquivo sobre a cultura piauiense. Estrategicamente, a marca é layoutada de modo a fazer referência ao significado do termo, proporcionando ao leitor uma prévia do que será encontrado nas páginas que constituem o interior do impresso, uma noção de como o conteúdo é tratado, do posicionamento da revista perante a cultura, do inverso que o conselho editorial propõe (FERREIRA, 2016, p. 103-104).

Notamos, na pesquisa realizada durante o curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, em 2016, que entre as estratégias está a logomarca do periódico, diagramada de forma inventiva, no canto superior esquerdo da capa, com a palavra Revestrés dividida entre ―reves‖ na parte superior com a letra ―R‖ posta ao contrário e ―trés‖ logo abaixo, com as letras de trás para frente.

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Figura 1 - Revestrés, capa, mai/jun. 2015 Fonte: acervo particular

O próprio termo revestrés faz referência à cultura piauiense de modo estratégico e quer dizer ao avesso ao contrário (FERREIRA, 2016). Da mesma forma, o slogan ―Literatura, arte, cultura e algo mais‖ é utilizado como uma maneira de destacá-la como impresso segmentado em cultura no estado, que traz abordagens de forma diferenciada. Tem-se, assim, um subtítulo informativo e sugestivo, que explicita a proposta da publicação, criando uma intencionalidade no texto para com todo o conteúdo do interior da revista. Quando se fala em identidades, faz-se referência àquilo que une, ao que é construído em referência aos outros por meio de negociações constantes. Ao utilizar uma palavra tão comum e tão própria do vocabulário piauiense para se auto-intitular, a revista provoca essa valorização da cultura que ela vai tratar no interior de suas páginas, usando a língua como elemento unificador, como aspecto importante na construção ou mesmo na manutenção do sentimento de unidade, de coerência do grupo. A expressão ―algo mais‖ que acompanha a ―literatura, arte, cultura‖ dimensionam o entendimento que o impresso tem de Jornalismo Cultural e o alcance de suas abordagens. O ―algo mais‖ pode incluir religiões, costumes, comportamentos e práticas que contribuem com a amplidão da abrangência temática, planejamento estratégico que impõe vantagens da revista perante o mercado editorial no qual está inserido (FERREIRA, 2016, p. 105).

Como estratégia para estabelecer a própria identidade e chamar a atenção do leitor, a revista faz uso de chamadas coloridas, muitas fotografias e infográficos, boxes, entremeando textos, que se caracterizam do ponto de vista interpretativo, informativo, mas também opinativo, no formato de reportagens, entrevistas, matérias, notas, artigos, crônica. Entre os principais conteúdos trabalhos na edição em avaliação, notamos a seção Entrevista, uma das principais, disposta nas primeiras páginas da revista, ocupando grande espaço e número de páginas, no caso da edição em análise, um total de 11, sob o título ―Homem reinventado‖. Concentra texto introdutório, seguido das perguntas e respostas, permeadas de fotos do próprio entrevistado, que se manifesta em gestos, 92 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


comportamentos e roupas, ajudando o leitor a criar uma imagem da ambientação da pauta, assim como a caracterizar o sujeito-alvo das perguntas. O próprio conteúdo também atua nesse eixo estratégico, mostrando que Revestrés trabalha também com pautas nacionais, sem deixar de fazer referência à cultura piauiense, nem que seja ao relatar o local onde a entrevista foi realizada, para, então, apresentar o entrevistado, um ex-presidiário que, hoje, é escritor, palestrante e colunista da revista Trip: ―Luiz Alberto chega antes da equipe da revista ao restaurante de comidas típicas piauienses. Tentar sentar numa mesa discreta, ao fundo. Usa óculos escuro de marca [...]‖ (REVESTRÉS, 2015, p. 9. Grifo nosso). Notamos na publicação de número 20, maio/junho de 2015, que as estratégias passam pela veiculação da Entrevista com o paulista, ex-presidiário que se tornou escritor ainda durante o período em que estava sob reclusão, e logo após ter sido amparado pela literatura. A revista destaca em ―Homem reinventado‖, que Luiz Alberto Mendes, hoje, é escritor de cinco livros e é colunista da revista Trip, dando palestras e oficinas por todo país. A entrevista se deu na oportunidade em que ele ministrava um desses cursos em uma penitenciária de Teresina. Amplia a abordagem e discute criminalidade, sistema prisional brasileiro, reincidência de crimes, literatura, ressocialização, maioridade penal e filmes. A capacidade inventiva de Revestrés se mostra, ainda no eixo estratégico, por meio da editoria Homenageado da Edição, que nomeia a publicação e apresenta a personalidade ao público, destacando traços, habilidades e contribuições para a cultura, geralmente, no âmbito do Piauí. Quatro laudas com pequeno perfil e grandes imagens colocam em evidência o personagem Raimundo Soldado, ―O pop-star brega do Nordeste‖. Além de apresentar o homenageado, o texto justifica porque ele merece tributo e apontando os motivos para ser reconhecido. Desse modo, o impresso promove a renovação da autoestima da cultura nordestina, apontando as características que tornaram merecedor de admiração e respeito, sempre com diagramação sugestiva, colorida, enérgica.

Figura 2 - Revestrés, p. 28 e 29, mai/jun. 2015 Fonte: acervo particular

As estratégias dessa edição passam também pelas tradições que fazem parte da cultura piauiense, expondo o barbeiro do mercado público do bairro Mafuá, que atende há 66 anos, na seção RevesTipos com o texto intitulado ―O barbeiro do Mafuá‖; e segue com a seção RevesMúsica, com a matéria ―Assim não, vali!‖, 93 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


pauta que se dá em consequência da Reportagem ―Dossiê cultura‖, pois a banda Validuaté apareceu em terceiro lugar na pesquisa como banda piauiense mais conhecida. A matéria conta a história do grupo e revela as outras profissões que cada integrante tem, apontando algumas curiosidades dos seus 11 anos de existência. Ao trabalhar com personagens típicos da cultura piauiense, como o barbeiro de um bairro popular ou os músicos locais, o periódico propõe essa construção social das identidades piauienses a partir de tipos, com suas personalidades notáveis no Estado, assim como seus papeis. Isso acontece, de fato, porque tal ―construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade‖ (POLLAK, 1992, 204). Pensando dessa maneira, conseguimos entender a proposição de Hall (2004), quando diz que o local se fortalece em relação ao nacional. Em tempos de globalização, em que facilmente, através dos meios de comunicação midiática, as culturas são entremeadas umas pelas outras, o local se fortalece, é valorizado pelo grupo pela preocupação e, ao mesmo tempo, medo que há de perda da identidade. É Hall (2004) quem debate acerca das consequências da globalização sobre as identidades. Ele ressalta que podem ocorrer efeitos de tensão entre o global e o local, mas ao mesmo tempo, a homogeneização da identidade pode gerar sua desintegração, fortalecendo o local a partir da resistência a esse processo. Desse modo, Revestrés contribui com essa resistência da cultura piauiense, e até a nordestina, em relação à cultura massificada, generalizada e homogeneizadora, sem considerar adequadamente as particularidades dos diversos grupos existentes. Mas, não só as culturas piauienses e nordestina são trabalhadas nesse impresso. Há uma seção chamada RevesBrasil, onde a revista apresenta uma pauta nacional. Na edição 20, o material que está dentro do título ―Mente sã, corpo são‖ fala de um dançarino paulista que tem origem familiar japonesa e, após apresentálo, aborda a importância de cada um dar atenção a si mesmo, sobre o reconhecimento que ele tem Brasil afora, artista premiado, e analisa o cenário nacional para a dança com relação às iniciativas e aos financiamentos. De modo geral, esses aspectos apresentados podem ser caracterizados como sendo parte das estratégias da revista em se manter no mercado editorial piauiense e brasileiro, uma vez que tomamos as estratégias como o lugar de onde se pode gerir, produzir e impor. Ou seja, elas postulam ―um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças‖ (CERTEAU, 2014, p. 93). Por outro lado, no que se refere às táticas de Revestrés número 20, maio/junho de 2015, edição Raimundo Soldado, visibilizam-se, principalmente no editorial e chegando na Reportagem, sobre dados de consumo da cultura pelos piauienses obtidos por meio de pesquisa por uma amostragem de 300 pessoas de diferentes bairros de Teresina. A justificativa para a encomenda é de que não existem dados oficiais sobre a cultura por parte dos órgãos de cultura. Isso fica claro no editorial ―Um dossiê sobre algo que nos interessa: nós mesmos‖. A própria revista é quem encomenda e expõe a pesquisa para obter dados, mas, mesmo não levando em conta as diferentes realidades do estado, as inferências são generalizadas. ―A pesquisa foi realizada em Teresina, mas é bastante razoável supor que os dados obtidos refletem a realidade do estado – ou nos dão uma boa noção disso‖ (Revestrés, p. 3, maio/junho de 2015), aponta o Editorial. Contudo, é a própria Reportagem ―Dossiê cultura‖ que aponta superficialmente algumas divergências entre os municípios do interior, quando lembra a Reportagem publicada na Revestrés #18 (jan./fev. 2015) sobre a produção de filmes na região de Picos, no interior do estado, e ressalta que as exibições acontecem em praças públicas e ginásios poliesportivos, pois as cidades da região não têm salas de cinema, apenas Picos, à época da reportagem #18 tinha perspectivas de inauguração com a chegada de dois shoppings 3.

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O primeiro shopping da região de Picos, no Sertão do Piauí, foi inaugurado em novembro de 2016, com três salas de cinema; o outro, está com as obras em andamento sob a perspectiva de salas de cinema também. 94 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Figura 1 - Revestrés, p. 35, n. 20, mai/jun. 2015 Fonte: acervo particular Pelo que foi verificado, consideramos que as táticas da revista passaram por realizar a pesquisa, explicar as motivações que levaram à investigação por amostra, assim como as maneiras como foram realizadas, porém, ao fazer isso, a publicação pecou por não considerar outros contextos e por tentar confundir a realidade da capital do Piauí com a do interior do estado, onde existem poucos espaços voltados para a produção cultural. Os dados seriam mais ricos se a amostra considerasse, ao menos, alguns municípios. Do ponto de vista das identidades, entendemos que ao privilegiar esse tipo de abordagem do consumo de cultura da capital em detrimento das atividades culturais dos piauienses que estão fora de Teresina, Revestrés intervém na construção e/ou reconstrução de identidades piauienses, de forma intencional ou não. Essa postura do impresso pode levar a consequências mais sérias, no sentido de tomar como sendo característico do estado do Piauí, que é predominantemente rural, aquilo que é resultado de uma abrangência limitada e baseada na ideia de urbanismo e modernidade. Compreendendo que o jornalismo tem um papel na sociedade, destacamos a sua responsabilidade, pois, de uma forma ou de outra, ele contribui para p estabelecimento ou a expansão de aspectos que se refiram a um sentimento de identidade e de coerência social, uma vez que coloca em discussão e pode dá evidência a características que podem conferir continuidade, consistência e integração de uma pessoa ou de um grupo e sua reconstrução e manutenção de si. Considerações Marcadamente inovadora, a atuação de Revestrés representa novas práticas no fazer jornalístico em Teresina e no Piauí. A revista se posiciona e dissemina o pensamento crítico capaz de valorizar aspectos já

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postos, questionar outros novos e refletir sobre os convencionais. As práticas empreendidas nesse periódico de Jornalismo Cultural estão atreladas notadamente à construção e reconstrução das identidades piauienses, embora não deixe de trabalhar pautas nacionais e até internacionais. Entendendo as estratégias como um processo criativo e de planejamento que se dá no cotidiano e as táticas como as maneiras de criar e se reapropriar do espaço que lhe é conferido, a revista abunda na diversidade de pautas e ao focar a cultura piauiense. Mas também apresenta táticas que apontam para uma cobertura que vai além do Piauí, chegando ao Nordeste e alcançando o Brasil. Contudo, Revestrés prioriza as pautas cujo ambiente geográfico se refere preponderantemente à capital do Piauí, o que demonstra que essa é uma publicação focada prioritariamente na ideia de urbanismo, em oposição à cultura do interior do estado, de provincianismo, a qual é menos relacionada. Na Reportagem sobre o ―Dossiê cultura‖, por exemplo, o impresso se volta integralmente para a realidade cultural de Teresina, sob a justificativa de que ela pode ser facilmente generalizada para o interior do estado. Porém, é preciso reconhecer que se tratam de ambientes e contextos socioculturais divergentes. Consideramos que essa postura é prejudicial, porque a cultura é um ambiente, essencialmente, diversificado, polêmico, onde ocorrem disputas, portanto, não é essencialista. Avaliando desse modo, encontramos indícios e pistas sobre o que é cotidiano, sobre o que tem valor, sobre o que tem peso em um tempo que preza pela firmação e valorização das identidades. Assim, é conveniente levar em consideração o fato de que o Piauí possui cheio de diversidades e particularidades nos seus 224 municípios, mesmo que, na maior parte deles, não existam salas de cinema ou outros espaços culturais e artísticos. É conveniente entender que as identidades piauienses vão além do ambiente urbano, pois, do contrário, podem haver outras consequências sociais, já que o jornalismo tem um papel proeminente na sociedade. Referências CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução Ephraim Ferreira Alves. 22 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. FERREIRA, Mayara Sousa. Memórias da cultura: estratégias e táticas de Revestrés na (re)construção das identidades piauienses. 2016. 209 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2016. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2016. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewArticle/1941>. Acesso em: 30 abr. 2012. REVESTRÉS. Teresina: Quimera, n. 18, jan/fev. 2015. REVESTRÉS. Teresina: Quimera, n. 20, mai/jun. 2015.

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ANÁLISE DA INFLUÊNCIA DE ANA BOLENA NA CRIAÇÃO DO ANGLICANISMO NA INGLATERRA1 Ana Carolina Ferreira Soares2 Maria Clara da Silva Nascimento³ Renata Cristina da Cunha4 RESUMO Este trabalho trata da relação entre Ana Bolena, a segunda esposa do Rei Henrique VIII, e a criação da igreja Anglicana na Inglaterra no século XVI. Nesse sentido, este estudo visa responder a seguinte questão: Qual é a relação entre Ana Bolena e a fundação da igreja Anglicana pelo Rei Henrique VIII da Inglaterra no século XV? A fim de responder esta pergunta, foi elaborado o seguinte objetivo geral: Analisar a relação entre Ana Bolena e a fundação da Igreja Anglicana pelo Rei Henrique VIII da Inglaterra no século XV. A fim de alcançar este objetivo geral, foram elaborados os seguintes objetivos específicos: Descrever o contexto histórico, político e religioso da Inglaterra durante o reinado de Henrique VIII, Conhecer a história de Ana Bolena e sua relação com o rei Henrique VIII e por fim Discutir os eventos históricos, políticos e religiosos que culminaram com a fundação da Igreja Anglicana nesse período. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, de cunho qualitativo, fundamentada em autores como Rank (2014), Damasceno (2006), Oliveira (2000), entre outros. Em termos organizacionais, este artigo está em dividido em: Reflexões iniciais e finais, além de três tópicos sobre o tema abordado. No primeiro tópico, é caracterizado o contexto histórico, político e religioso da Inglaterra no século XV. Na segunda seção, a biografia pessoal de Ana Bolena é resumidamente apresentada. No terceiro tópico, a relação entre Ana Bolena e a fundação da igreja Anglicana é discutida. As considerações finais confirmam o papel basilar de Ana Bolena para a fundação da igreja Anglicana, bem como do Anglicanismo. Palavras-chave: Igreja Anglicana; Ana Bolena; Henrique VIII;Inglaterra.

REFLEXÓES INICIAIS

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surgimento do anglicanismo coincide, em boa parte, com a própria história da igreja da Inglaterra, tornando assim a criação desta uma experiência fascinante em que em alguns momentos se desenvolve dentro de seus próprio conceitos culturais e por outro lado sob uma autoridade externa. (OLIVEIRA, 2000). O momento em que Ana Bolena entra na história da Inglaterra, torna-se crucial para o surgimento da nova religião e para mudanças no próprio reinado de Henrique VIII. Este é o momento que Henrique pede ao Papa permissão para divorciar-se de Catarina de Aragão para casar-se com Bolena. (OLIVEIRA, 2000). Devido a estes acontecimentos, optou-se por analisar como foi a influência de Ana Bolena na criação da religião da Inglaterra, tendo a seguinte questão norteadora: Qual a relação de Ana Bolena e a fundação da Igreja Anglicana pelo rei Henrique VIII da Inglaterra no século XVI? Buscou-se também expor os reais motivos do rompimento com a igreja católica e os conceitos a respeito do anglicanismo, tendo como principal objetivo avaliar a influência de Bolena na criação desta religião, trabalhando com a possibilidade de que ela foi apenas um dos motivos por trás de interesses políticos, por fim temos o objetivo de descrever o contexto histórico, político e religioso da Inglaterra durante o reinado de Henrique VIII.

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Trabalho apresentado no GT.01 Linguagem, cultura e identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Acadêmica do curso de Licenciatura Plena em Letras Inglês da Universidade Estadual do Piauí-Parnaíba, e-mail: anacarolprof.tur@gmail.com 3 Acadêmica do curso de Licenciatura Plena em Letras Inglês da Universidade Estadual do Piauí- Parnaíba, e-mail: clarinhamaggs2@outlook.com 4 Doutora da Universidade Estadual do Piauí- Parnaíba, e-mail: renatasandys@hotmail.com 97 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Para o desenvolvimento do trabalho foi utilizada a pesquisa bibliográfica, que deu um arcabouço teórico acerca do tema proposto, esta forma de pesquisa foi escolhida por proporcionar uma ampla fonte de informação relacionada ao tema escolhido. A ideia do trabalho surgiu como proposta da disciplina de Cultura dos povos do curso de Letras Inglês e o tema foi escolhido devido a relevância deste fato para a cultura inglesa, bem como de um interesse pessoal da pesquisadora em conhecer, discutir e expor o assunto, já que existem pesquisas que tratam da história do Anglicanismo a até mesmo da biografia de Ana Bolena, mas que não trazem o tema do relacionamento de Bolena e o Anglicanismo de forma aprofundada. Além disso, esta pesquisa ajudará a compreender o contexto histórico e político em que se encontrava o país inglês no período em que o rei Henrique VIII governou e servirá também como fonte de pesquisa para estudantes que pretendam conhecer um pouco mais sobre a cultura da Inglaterra, envolvendo todas estas questões históricas, políticas e religiosas e como as decisões tomadas pelo rei afetaram todo o contexto histórico da Inglaterra do século XV até os dias atuais. Breve histórico do contexto social da Inglaterra durante o reinado de Henrique VIIIi No ano de 1509, Henrique VIII assumiu o trono, após a morte de seu pai, mesmo ano em que se casou com Catarina de Aragão (LARA, 2010). O casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão, foi a continuidade de uma aliança entre Espanha e Inglaterra, já que Catarina era viúva de seu irmão, Arthur, e as negociações da união beneficiava as duas potências. (GACHINEIRO,2007). Já casado com Catarina, Henrique VIII entrou em guerra contra a França. Apesar disso, não recebeu o apoio desejado do rei da Espanha, o que o deixou irritado a ponto de descontar sua frustração em Catarina, começando assim um dos motivos para querer separar-se dela. (GACHINEIRO,2007). Em toda a história da Inglaterra, Henrique VIII tem a fama de um ditador e brutal, ele tinha dom para as artes, mas também era propenso a executar inimigos e até familiares, mas interessante aqui ressaltar é que durante os trinta e oito anos de seu governo ele conseguiu alcançar uma grande popularidade. (RANK, 2014). Inclusive quando Henrique VIII faleceu deixou os cofres reais vazios e a nobreza inglesa dividida em facções rivais, assim como uma discórdia religiosa, já que o país ficou dividido entre os que apoiavam a igreja católica romana e os apoiadores da reforma religiosa. (BINGHAN, 2015) Por mais de quatro décadas Henrique VIII se agarrou com tenacidade ao poder, sobrevivendo a tentativas de invasão, em suas relações com os poderes estrangeiros o rei não conseguiu chegar as conquistas militares que ele almejava, além deste fato quanto mais o tempo passava Henrique VIII também não conseguia garantir uma sucessão segura. (BINGHAN, 2015). Durante o reinado de Henrique VIII, ele conseguiu influenciar os tribunais britânicos, e imperar enquanto a Reforma Protestante acontecia na Europa e a violência tomava conta do continente, ele permanecia confiante de que o país poderia traçar seu próprio destino político sem a influência da igreja católica. (RANK, 2014). A partir de então os desentendimentos com a igreja começaram, neste período Henrique VIII tomou medidas para pôr fim ao crescente poder da igreja, como afirma Padmanabhan (2014, p.8) ―He took measures to curtail the power of the clergy in the English church by destroying monasteries and passing laws that were to be followed by the church authorities. The gist of these laws stated that a priest could be associated with a single church only. Another act stated that Pope was to be elected by the clergy who were nominated by the King.‖

As questões políticas foi realmente um fator decisivo para este rompimento, e consequentemente, a criação de uma nova religião como também afirma Guedes (2016, p. 68) ―O rompimento com o Vaticano deveu-se principalmente a fatores politicos: Henrique VIII desejava a anulação de seu casamento com Catarina de Aragão, irmã do rei Espanhol.Catarina havia se

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tornado estéril, sem ter deixado herdeiros masculinos para garantir a sucessão real. O monarca temia que, com sua morte a Inglaterra, passasse a ser dependente do poderoso império espanhol‖

Outro fator que contribuiu para tornar o ambiente da Inglaterra propício às ideias reformistas foi o fato de que o rei Henrique VIII queria divorciar-se de Catarina de Aragão para casar-se com Ana Bolena, alegando a vontade de ter um herdeiro para assumir o trono da Inglaterra, mas o papa não concedeu a anulação de seu casamento. (VICENTINO, 2006). A partir de então, o cenário da Inglaterra mudou, após o cancelamento do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão, o papa excomungou o rei, e em 1534 em um ato de supremacia foi declarado que o rei seria a única cabeça suprema na terra da Igreja da Inglaterra. (GUEDES,2015). Dentre os pontos positivos deste rompimento com a igreja a Inglaterra pode livrar-se de várias práticas corruptas e o principal conseguiu levar a bíblia em inglês para povo comum. (BINGHAN, 2015). Após o rompimento Henrique VIII casou-se com Ana Bolena, mas tal como Catarina, Bolena deu à luz a uma menina e não conseguiu dar um herdeiro para o rei, resultando em sua decapitação no ano de 1536. (FELIPE,2013). O Anglicanismo ganhou mais força na Inglaterra a partir de 1558, quando Elizabeth I, filha de Henrique VIII e Ana Bolena, passou a ser rainha da Inglaterra e Irlanda, apoiando assim o estabelecimento da Igreja Protestante, em que se tornou governadora suprema, e tornou-se o que hoje é conhecida como Igreja da Inglaterra. (FELIPE, 2013). Anglicanismo: história e alguns conceitos Ao conceituar Anglicanismo, logo ligamos a ideia religiosa, mas devemos compreender, que, esta teoria faz parte também da história e cultura da Inglaterra, como veremos a seguir. O Anglicanismo é o resultado, o somatório, de experiências religiosas, com características específicas e com acomodação cultural de diferentes tradições cristãs, que faz parte da Igreja, na Inglaterra, mas também, se desenvolve dentro do contexto social, político e cultural em que o país viveu. (OLIVEIRA, 2000). Outra definição de Anglicanismo é trazida por Chapman (2006, p. 4) que mostra o significado do termo: ―This term was used by J.H. Newman in 1838 in distinction to Protestantism. Later he wrote ―Anglicanism claimed to hold that the Church of England was nothing else than a continuation in this country of that one Church of which in old times Athanasius and Augustine were members.―

Se analisarmos apenas o termo em si, encontraremos em vários autores uma mesma teoria, ou ideias aproximadas, mas trataremos aqui de afirmar que o Anglicanismo surgiu na Inglaterra após um ato de supremacia. O Anglicanismo é também considerado um ato de reforma, mas com uma motivação diferente das reformas de Calvino e Lutero, afinal o surgimento desta religião foi resultado de uma ruptura do rei com a igreja de Roma. (DAMASCENO,2006). O rompimento do rei Henrique VIII com a Igreja de Roma, em 1531, não foi somente de cunho religioso, mas principalmente político, pois quando a igreja passou a ser chamada de Anglicana retirou-se imediatamente a autoridade que antes era do papa, consequentemente rompendo as relações do rei com o Vaticano, esta situação foi causadora de muitos conflitos durante os séculos XVI a XVIII. (DAMASCENO,2006). Mesmo assim, Henrique VIII foi considerado um homem de grande poder como cita Binghan (2015) com um poder consideravelmente maior do que de seu pai, ele desafiou o poder do papa, fortaleceu e aumentou o poder da monarquia, libertando-a das amarras do clero. Guedes (2016, p.68) também confirma esta consequência da ruptura: ―A recusa do papa em dar o divórcio provocou a separação das igrejas romana e inglesa, que ficou com as terras do Vaticano na Inglaterra e não pagou mais os dízimos obrigatórios.‖ O rompimento do rei com a igreja romana trouxe várias consequências, dentre elas o surgimento de outras igrejas protestantes, a abolição por parte destas igrejas do uso do latim como obrigatoriedade nos 99 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


ofícios religiosos, a permissão da livre interpretação da Bíblia, o que facilitou a participação e a compreensão dos fiéis, a partir de então foi criada uma religião mais individual em que os santos padres e papas passaram a ser dispensáveis. (GUEDES, 2016) A princípio a igreja anglicana manteve os princípios similares aos da Igreja Católica, o ato de supremacia, que trouxe esta nova igreja, criou tribunais religiosos nos quais os súditos deveriam submeter-se, caso contrário seriam perseguidos e até mortos. Vale aqui ressaltar que a igreja anglicana era tida como a igreja cristã da Inglaterra e não como uma ramificação da Igreja de Roma. (CARVALHO,2015). Foi somente no reinado de Elizabeth I que a igreja anglicana passou a ser consolidada como uma doutrina protestante. ―Apenas com Elizabeth I, filha de Ana Bolena e Henrique VIII, é que a Igreja anglicana se consolidaria como uma religião de doutrina protestante ministrada em língua inglesa. Também foram incorporados muitos princípios calvinistas, mas compostos com fundamentos católicos, como o culto e a estrutura eclesiástica, porém com a negação da autoridade papal e a valorização da justificação pela fé e pregação‖. Vicentino e Dorigo (2013, p.66)

Apesar desta consolidação a igreja anglicana nunca definiu uma posição doutrinal e somente após este contato com calvinistas e luteranos foi que tal doutrina foi formulada. (CALVANI, 2005). Ana Bolena e sua influência na criação do Anglicanismo Analisaremos aqui, como Ana Bolena influenciou na criação da Igreja Anglicana, para isso vamos conhecer um pouco sobre a rainha que inspirou fortemente a história da Inglaterra e para iniciar falaremos sobre os registros sobre sua biografia e em seguida seu relacionamento com o rei Henrique VIII e a criação do Anglicanismo. Ana, filha de família nobre, comerciantes que ascenderam ao sucesso, o diplomata Thomas Bolena e Elizabeth Howard, nasceu entre 1500 a 1507, a data permanece incerta dentre vários autores, ainda em sua adolescência deixou a Inglaterra e viveu até seus vinte anos como dama de companhia da rainha Claudia, na França, e em 1521 voltou a Inglaterra, no ano seguinte tornou-se dama de companhia da rainha Catarina de Aragão. (PETIT, 2012). O interessante é que sobre a juventude de Ana Bolena pouco se sabe, apenas é uma jovem que passa a ser notada somente na vida adulta. (COCHETE, 2015). Toda sua história gira em torno de satisfazer as ambições de seu pai como assim nos recorda Cochete (2015, p.21) ―Ana Bolena foi educada na França, país que ela muito admirava e que também a influenciou. Ela se mostrava, de acordo com Fraser, uma garota muito inteligente e aplicada e por esta razão ela foi a escolhida para realizar as ambições de seu pai, o diplomata Thomas Bolena.‖

A imagem social de Ana Bolena foi influenciada pelo espaço social e cultural da corte francesa, fazendo com que ela adquirisse dotes artísticos, sofisticação e requinte, apresentava um interesse por literatura e filosofia, mas sua vida sofre uma mudança quando em 1521, ela precisa retornar a casa. (ALMEIDA, 2009). Ana Bolena retorna para a Inglaterra para casar-se com seu primo James Buttler, o pai de Ana e de James reinvidicavam o Condado de Ormond que havia pertencido ao bisavô deles, a questão do litígio desta região seria resolvida com o casamento de Ana e James, mas graças ao relacionamento que Ana tinha com o rei um acordo foi feito tornando assim seu pai Conde de Ormond e seu tio Conde de Ossory, não havendo mais assim necessidade do casamento entre os primos. (MARÉGA, 2014). Após este fato Bolena manteve um outro relacionamento secreto, antes de chamar a atenção de Henrique VIII como assim afirma Maréga (2014, p.1) ―Quando Ana retornou à Inglaterra em 1522, ela juntou-se à Casa Real da Rainha. Foi então que envolveu-se com o jovem Henry Percy, herdeiro do Conde de Northumberland, assim que chegou à Corte. De acordo com William Cavendish, um contemporâneo de Percy, que também estava a

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serviço de Cardeal Wolsey, foi ―um romance secreto‖ que cresceu entre o casal, e eles planejavam, casar-se. Quando Wolsey descobriu a relação, ele repreendeu Percy e enviou-o para seu pai. Ana foi banida da corte por um tempo.‖

Há também a teoria de que isto ocorreu por conta de o rei já ter interesse me Ana Bolena, como afirma Paixão (2012, p.313) ―Rapidamente Ana Bolena teria despertado o amor de Henry Percy, com quem teria até mesmo se casado as escondidas, porém tivera seu relacionamento proibido, supostamente uma exigência do rei, já apaixonado por ela.‖ A partir de então a vida de Ana tomaria novos rumos, quando Henrique VIII apaixona-se por Ana e daí inicia a conversa com o cardeal Wolsey sobre a possibilidade de anular seu casamento com Catarina de Aragão. (OLIVEIRA, 2000). Vale aqui ressaltar que Ana resistiu durante cinco anos às investidas de Henrique VIII, na verdade, quem cobiçava o papel de amante do monarca era sua irmã, Maria. (PETIT, 2012). Apesar de Henrique VIII, já ter como amante a irmã de Ana Bolena, Maria, ele acabou por se interessar de forma mais intensa por Ana, atitude inclusive questionada por alguns autores, visto que, de acordo com relatos, ela não era uma mulher de grande beleza, como assim afirma Mason (2015, p.1) ―What attracted Henry in 1526 was not, therefore, so much Anne‘s beauty, but her character, intelligence and charm.‖ Como dito anteriormente, devido sua vivência na França, Ana trazia outros atributos que compensavam a falta de beleza. Após as investidas de Henrique VIII, ele então conseguiu conquista-la, existem relatos de que ela já desfilava ao lado dele em eventos na corte, antes mesmo de sua separação de Catarina, além deste fato Ana fez ainda com que o rei mandasse executar dois de seus conselheiros, John Fisher e Thomas More, tamanha era sua influência sobre Henrique, antes mesmo de ser a esposa oficial. (PAIXÃO, 2012). Por trás de toda essa história estava se agravando a situação do casamento de Henrique com Catarina, por falta de um herdeiro do sexo masculino, no ano de 1527 faziam 18 anos de seu matrimônio e a única herdeira continuava sendo Maria. (OLIVEIRA, 2000). Doren (2012, p.59) afirma o descontentamento de Henrique VIII da seguinte forma: ―Desapontado e irritado, e estando certo de que a falta de um herdeiro não podia ser culpa sua, Henrique procurou consolo em Ana Bolena, a irmã sensual de uma de suas primeiras amantes. Ana prometeu-lhe um filho, bem como prazeres sem fim, mas apenas se ele se divorciasse de Catarina e fizesse dela rainha.‖

Enfim chega o momento ideal para o benefício de Ana Bolena, e em 1533 ela casa-se com o rei Henrique VIII, tornando-se assim a rainha da Inglaterra, mesmo sem a simpatia popular. (OLIVEIRA, 2000). Mas afinal como Ana Bolena influenciou na criação da religião anglicana? O rei Henrique VIII não estava satisfeito com o estado, muito menos com a possibilidade de não ter um herdeiro do sexo masculino em seu casamento com Catarina, tanto que já havia tentado a primeira anulação do matrimônio como afirma Gonzalez 1995, p.124 ―Segundo o que parece, ao fazer sua primeira petição de anulação, o Rei não estava enamorado de Ana Bolena e, portanto, o que o motivava eram razões do Estado e não do coração‖. Então surge Ana Bolena, extremamente jovem e de importante família na corte, ela desejava ser rainha e ele pai de um herdeiro, ele também apaixonado resolve romper com a igreja para ficar com sua amada, tendo assim que enfrentar o clero e criar o anglicanismo, como uma nova religião da Inglaterra. (OLIVEIRA, 2000). Após analisar a história, sob a visão de autores como Oliveira (2000), Paixão (2012) e Petit (2012) observamos, que Henrique VIII tinha motivos para romper com a igreja católica, mas o fator crucial que influenciou neste ato, e principalmente na criação do anglicanismo, foi seu romance com Ana Bolena, que de forma audaz conseguiu sustentar a ideia de que ele precisaria ir contra as regras da igreja para que pudessem casar e ela dar a ele o herdeiro que ele desejava. Reflexões finais O intuito deste trabalho foi analisar como se deu a influência de Ana Bolena na criação do Anglicanismo na Inglaterra. 101 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


De acordo com o que foi constatado, vale aqui destacar a importância de Ana Bolena no curso da história da Inglaterra de modo geral. É importante também ressaltar que não somente a figura de Bolena foi o motivo do rompimento do rei com a Igreja de Roma, haviam questões políticas e de insatisfação do rei Henrique VIII com o poder que a igreja tinha, que juntando-se a seu desejo de cancelamento do matrimônio com Catarina de Aragão findaram no rompimento com a Igreja de Roma e sucessivamente em uma reforma religiosa, claro que compreendemos após analisar a história que Ana Bolena foi para o rei um bom motivo para o rompimento com a igreja. Até hoje percebemos divergências entre autores em relação ao tema aqui estudado, sendo em determinados casos Ana Bolena citada apenas como uma desculpa para o rompimento e em outros como o verdadeiro estopim para este rompimento e consecutivamente a reforma religiosa na Inglaterra, e aqui buscamos exatamente mostrar de forma clara como Ana Bolena influenciou e foi de extrema importância para que esta reforma acontecesse. Pode-se perceber que Ana Bolena, foi de grande influência na criação da Igreja Anglicana, pois partiu dela o apoio que o rei precisava para romper com a Igreja e os dois pudessem se casar, mesmo que a união tenha durado pouco. Este trabalho também apresentou outros fatos relevantes como a própria contextualização histórica e política em que a Inglaterra vivia no século XVI, assim como o surgimento e fortalecimento do Anglicanismo na Inglaterra. Referências ALMEIDA, A. P. L. A. P. Ana dos mil dias: Ana Bolena, entre a luz e a sombra da Reforma Henriquina. 2009. 82 f. Dissertação (Dissertação de Mestrado Em Estudos Anglo-Americanos Variante de Literaturas e Culturas) - Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, 2009. BINGHAM, Jane. Tudors: a verdadeira história de uma dinastia gloriosa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2015. CALVANI, C. E. B. Anglicanismo no Brasil. Revista USP, São Paulo, n.67, p. 36-47, 2005. CARVALHO, Jônatas. História da Igreja: a verdadeira história da igreja. São Paulo: Clube dos autores, 2015. COCHETE, Jéssica Lima. Discurso e história: representações do feminino em Ana Bolena. 2015. 1 CD-ROM. Trabalho de conclusão de curso (bacharelado - Letras) - Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara), 2015. DAMASCENO, Ely. Teologia, filosofia e a fé cristã. São Paulo: Clube de autores, 2006. DOREN, Charles Van. Uma breve história do conhecimento. São Paulo: Leya Casa da Palavra, 2012 FELIPE, L. Existência IV: do big bang à era digital. São Paulo: Clube dos autores, 2013. GACHINEIRO, Maria. E. P. Vidas e obras. São Paulo: Ferrari, 2007. GUEDES, Maria H. A nova Inglaterra. São Paulo: Clube dos autores, 2015. ______________. As Modernidades. São Paulo: Clube dos autores, 2016. LARA, Jésus. A. G. La Inglaterra de Enrique VIII. Revista digital para professionales de la enseñanza. Andalucía, n. 7, 2010. MASON, Emma. Henry VIII and Anne Boleyn: Suzannah Lipscomb dispels myths about the lovers who changed history. Disponível em: http://www.historyextra.com/feature/henry-viii-and-anne-boleyn-suzannah-lipscomb-dispels-mythsabout-lovers-who-changed-history Acesso em: 10 de fev. de 2017. OLIVEIRA, Vera. L. S. História do anglicanismo. Porto Alegre, 2000. PADMANABHAN, N. Social and cultural history of Britain: History of Tudors and Stuarts. India, 2014.

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POR UMA CIÊNCIA NATIVA: O DISCURSO CIENTÍFICO NA PERSPECTIVA DOS INDIGENAS 1 Priscila da Silva Nascimento2 Adan R. Moreira Martins3 RESUMO Analisamos neste trabalho as intersecções entre identidade e discurso científico presentes na proposta de constituição de uma ―ciência nativa‖ por intelectuais indígenas a partir a partir das décadas de 1960 e 1970. Partindo de seus próprios referenciais culturais desenvolvem o que denominam de um paradigma investigativo indígena, cuja critica a linguagem científica tradicional acaba por denunciar como historicamente as problemáticas indígenas tem sido inadequadamente refletidas. Questionando o sujeito epistêmico moderno, a saber, universal, sem sexualidade, gênero ou etnia, desenvolvem um corpo teórico que aponta, dentre outras coisas, para a importância da união entre atividade científica e militância, a língua nativa como lugar de enunciação, o conhecimento como processo coletivo e uma perspectiva relacional do mundo. Palavras-chave: Indígena; Ciência; Cultura.

Introdução

N

este trabalho apresento algumas reflexões iniciais presentes na discussão que me proponho a realizar em minha tese de doutorado atualmente em andamento, mas antes de adentrar propriamente no tema gostaria de expor o percurso que me trouxe para este tema ainda pouco estudado no país. O interesse por estudar o potencial intelectual no discurso de indígenas surgiu ainda no mestrado. Ao analisar as demandas das mulheres indígenas do movimento zapatista no México na década de 1990, percebi que as reivindicações e estratégias de luta das indígenas zapatistas eram, na maioria das vezes, muito distintas daquelas dos movimentos de mulheres que vivem sob o espectro cultural ocidental. Debruçando-me sobre os documentos reivindicatórios elaborados por elas, deparei com o alto grau complexidade de suas demandas, onde questões relativas ao universo cosmológico indígena desempenham um papel de extrema importância. Um exemplo é o uso da categoria corazón, que no mundo ocidental se encontra associado à ideia de amor romântico e não goza de status científico, para caracterizar a existência de uma intíma relação entre sabedoria, memória e conhecimento4. Estas observações sugeriram-me inúmeras outras questões. A mais significativa diz respeito aos limites das categorias teórico-metodológicas consolidadas pelo fazer científico ocidental para pensar processos que envolvem os povos indígenas. Até que ponto é possível, por exemplo, utilizar noções como a de racionalidade, objetividade, universalidade, indivíduo, entre outras, para compreendê-los? A própria noção de

1

Trabalho apresentado no GT Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Doutoranda em Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Araraquara/SP / Docente da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Parintins/AM - Endereço eletrônico: pri18silva@ig.com.br 3 Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) / Docente do Instituto Federal do Pará (IFPA), Itaituba/PA - Endereço eletrônico: kikobarrocco1@yahoo.com.br 4 De acordo com Marcos (2008, p. 29), corazón é a ―sede de las atividades intelectuales superiores‖, o centro de onde emanam seus pensamentos e estratégias de luta. Neste sentido, é preciso que ―No sentimentalicemos, colonicemos ni reduzcamos las referencias al corazón en el discurso de las mujeres como meramente emocional, por muy maravilloso que pueda parecernos‖. 104 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


―indígena‖, que de acordo com Bonfil Batalla (1972) denota a condição de colonizado, é também passível de tal questionamento5. A cosmovisão e sabedoria indígenas não podem ser ignoradas nos estudos sobre a realidade indígena. Depreende-se disto que toda análise séria a respeito de determinado grupo indígena deva levar em consideração seu universo simbólico e o que os próprios indígenas dizem a respeito de si mesmos. Em muitos campos de estudo que tem a questão indígena como elemento de análise ainda cabe a seguinte interrogação: são os próprios sujeitos pesquisados quem falam nos textos dos pesquisadores ou, ao contrário, ainda é a voz desses que serve de suporte para a expressão daqueles? Como bem observou Todd (2015) a respeito da denominada ―virada ontológica‖, cujo grande representante no Brasil é o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o ambiente acadêmico posiciona pessoas que falam sobre os povos indígenas acima daqueles que são indígenas e dos que procuram dialogar com eles em pé de igualdade. No caso específico que aqui me interessa, a saber, o da produção intelectual de indígenas, procuro não me colocar na posição de falar por eles. Busco, antes, conhecer suas trajetórias pessoais e produção teórica de modo a posicioná-los no contexto do saber científico contemporâneo, neste sentido, esta pesquisa também destoa dos estudos, igualmente recentes e relevantes, que abordam a presença indígena na universidade, discutindo temas como o acesso e permanência estudantil, mapeando políticas afirmativas ou mesmo as motivações por trás dos elevados índices de evasão escolar que, de acordo com estimativas oficiais, chega a 90% em alguns cursos6. Minha intenção é ir além da questão do acesso ao conhecimento científico por parte dos/as indígenas e discutir a contribuição epistemológica de alguns deles/as para o que reconhecemos como uma ciência nativa, pois, conforme expõe o antropólogo baniwa Gersem Luciano (2011, p. 105) ―existe a nova situação de sujeitos indígenas estudando a si mesmos como sujeitos que pensam e produzem conhecimento‖. Discuto neste espaço, de forma introdutória e não conclusiva, a iniciativa de alguns indígenas de construção de uma epistemologia própria, que ora dialoga, ora opõe ou mesmo amplia a ciência tradicional, pluralizando as perspectivas de compreensão da realidade social. Acredito que sem este primeiro passo de contextualização dos saberes indígenas emergentes se torna inviável adentrar na apropriação dos mesmos a respeito do discurso científico, uma vez que a crítica que realizam de forma recorrente aos parâmetros de pesquisa utilizados na compreensão dos povos indígenas, parâmetros estes que reproduzem um conjunto de mal entendidos insistentemente repetidos por muitos intelectuais, se insere no espaço aberto por diferentes pesquisadores indígenas. A emergência do paradigma investigativo indígena O paradigma investigativo indígena ou ciência nativa começa a emergir nas décadas de 1960 e 1970 em países como África do Sul, Nova Zelândia, Austrália, Estados Unidos e Canadá. Este processo esteve intimamente ligado ao ingresso de indígenas nos espaços de educação formal, no caso a universidade, e à forte pressão que exerceram no interior destas instituições para que pudessem produzir conhecimento científico a partir de seus próprios referenciais culturais. No início, a luta destes indígenas esteve centrada na defesa da permanência estudantil e no direito de serem aceitos nas universidades como pesquisadores indígenas. Obrigados a cumprir os protocolos institucionais e a utilizar metodologias já consolidadas para validarem seus projetos perante a comunidade acadêmica não puderam, neste momento, elaborar e utilizar métodos próprios de investigação. O uso da linguagem científica tradicional, no entanto, demonstrou aos poucos ser insuficiente para refletir adequadamente as problemáticas indígenas. À medida em que mais indígenas adentravam nas universidades e se interessavam em produzir conhecimento científico, aumentava o desconforto com a pratica 5

Esclareço que ao usar a expressão indígenas, assim mesmo no plural, não compreendo os mesmos como portadores de uma cultura única, tampouco quando uso a expressão ocidental pretendo generalizar todas as experiências não-indígenas. Compreendo que em cada um destes universos há um conjunto de caraterísticas comuns que me permitem fazer tal generalização. 6 De acordo com o Ministério da Educação (MEC), em 2011 havia apenas um indígena para cada 500 estudantes em universidades públicas brasileiras. 105 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


de transpor conceitos e teorias produzidas para e pela sociedade envolvente para compreensão da realidade dos povos indígenas. Desafiados pela histórica dinâmica de exclusão que caracteriza o ambiente acadêmico, tiveram que demonstrar, a partir do questionamento dos cânones científicos vigentes, que uma narrativa indígena em diálogo com a mitologia e a tradição poderia também constituir conhecimento em moldes científicos e que este conhecimento também era legítimo. A ideia de se construir um paradigma investigativo indígena começa a ganhar contornos mais claros a partir da década de 1980. Neste período, um grande número de indígenas já questionava de forma mais explicita o tratamento dado à questão indígena por inúmeros pesquisadores, propondo em contrapartida novas metodologias e categorias analíticas melhor adaptadas à realidade de seus grupos étnicos. Alertavam também para a necessidade da descolonização do pensamento científico ocidental, por entender os saberes indígenas como relíquias arqueológicas, superstição, narrativa mitológica, entre outros, e nunca como ciência. Embora isto tenha representado uma significativa abertura no debate sobre o pluralismo epistemológico, os indígenas tiveram, contudo, que esperar ainda algum tempo para acionar estas novas metodologias, sob pena de terem questionados a legitimidade de seu trabalho e sua posição de pesquisador. Questionar as bases da ciência tradicional e propor uma ciência nativa passava, necessariamente, por desvelar criticamente o discurso colonial dominante que por muito tempo promoveu uma visão cristalizada e anacrônica dos povos indígenas, critica esta que encontrou eco nos estudos denominados pós-coloniais. As teorias pós-coloniais ou pós-colonialistas se desenvolveram primeiramente no contexto anglosaxão nas décadas de 1980-90 com a preocupação de deslocar o olhar para as margens dos centros hegemônicos de produção de conhecimento, de forma a privilegiar o lugar de enunciação de sujeitos que foram historicamente subalternizados. Embora muito diferentes entre si, possuem o objetivo político comum de criticar o projeto científico moderno através da reflexão sobre os efeitos das estruturas de poder coloniais e suas formas de pensamento sobre sociedades e culturas periféricas. Conforme argumenta Costa (2006, p. 117), o projeto da modernidade ocidental é questionado pelos teóricos pós-coloniais com o intuito de esboçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica crítica às concepções de modernidade. Neste sentido, os estudos pós-coloniais se constituirão como uma crítica radical à concepção de sujeito por traz do conhecimento científico moderno que, amparado na ideia de progresso amplamente difundida a partir do século XVIII, reforçou as estruturas de poder estabelecidas pela conquista europeia, que impôs aos mais diferentes povos sua concepção de espaço-tempo e uma nova relação entre natureza e cultura. A constituição dos parâmetros epistemológicos do pensamento moderno está profundamente amparada em uma situação de dominação e exploração. Com efeito, a ideia de um sujeito epistêmico universal, sem sexualidade, gênero, etnia, classe, espiritualidade, língua, e que produz a verdade a partir de um monólogo interior consigo mesmo sem relação com nada de fora é apenas um dos vários efeitos deste processo. Muitos autores (QUIJANO, 1992; MIGNOLO, 2006, SPIVAK, 2010) têm denunciado, cada um ao seu modo, as características específicas deste sujeito, a saber, homem branco, europeu, heterossexual e proprietário dos meios de produção. O caráter excludente do projeto moderno e de sua matriz epistêmica invisibilizou todos os sujeitos que se encontram distantes do padrão denominado por Castro-Gómez e Grosfoguel (2007, p 72) de ―sistema-mundo europeo/euronorteamericano/capitalista/patriarcalmoderno/colonial‖. Sob esta perspectiva, é ―normal‖ que sejam poucos aqueles autorizados a produzir, validar e colocar em circulação dentro das universidades outras formas de conhecimento. A pensadora indiana Gayatri Spivak (2010), cujo projeto teórico se concentra em uma subárea dos estudos pós-coloniais denominado subaltern studies, caracterizou esta condição descrita acima através da palavra subalternidade. Para ela, subalterno é todo aquele que não possui voz ou representatividade – política, legal, entre outros - em decorrência do status social que adquiriu ao longo do processo de colonização. Em Pode o subalterno falar?, sua obra mais conhecida, discute a necessidade da descolonização do pensamento científico ocidental a partir do argumento de que não se trata apenas de dar voz ao outro subalternizado, como pretendem alguns pensadores deste campo de estudo, mas de constituir as bases 106 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


epistêmicas para que o mesmo seja compreendido a partir de outras lógicas. Neste projeto, o papel dos intelectuais é questionado e sua conivência com as estruturas de dominação, ao se reivindicarem como representantes do discurso do outro, denunciada. De acordo com Carvalho (2001), o projeto teórico-político desta pensadora, centrado na reflexão sobre a consciência da mulher subalterna, está relacionado à sua necessidade biográfica de desfazer o duplo lugar de fala subalterna que lhe foi imposto desde a infância, a saber, o de mulher em uma nação colonizada. Na América Latina, os estudos pós-coloniais emergiram através de uma profunda crítica a herança colonial nas diversas esferas da sociedade. De acordo com Quijano (2000, p. 201), esta herança se refere, basicamente, ao processo jurídico e econômico de apropriação de novos territórios pelos europeus iniciado no século XVI. No campo científico, se expressa por meio daquilo que denomina de ―colonialidad del poder‖, que produz uma continua invisibilização dos povos indígenas como produtores de conhecimento sistematizado. Como ressalta Quijano (1992, p. 37), a colonialidade do poder é regida por ―una racionalidad específica o perspectiva del conocimiento que se impuso mundialmente de forma hegemónica colonizando y sobreponiéndose sobre saberes concretos‖. A inversão de perspectiva geopolítica produzida pelos estudos pós-coloniais colocou em cena uma multiplicidade de sujeitos sócio-históricos até então excluídos do processo de produção de conhecimento pelos saberes dominantes. De acordo com Walsh (2009, p. 27), isto abriu espaço para a formulação de modelos epistemológicos contra- hegemônicos atentos à questão do eurocentrismo, do racismo e da condição colonial a qual estão submetidos os mais diferentes povos. Estes modelos serviram de ponto de partida para a proposição de um paradigma investigativo indígena. A reflexão sobre a descolonização do pensamento cientifico ocidental foi, sem sombra de dúvidas, um passo importante para a formulação do paradigma investigativo indígena. Seu papel foi o de desvelar a ―la destrucción de los conocimientos propios de los pueblos causada por el colonialismo europeo, que a su vez generó un imperialismo cultural y la consecuente pérdida de experiencias cognitivas‖ (SANTOS, 2010, p. 57). No próximo subitem, nos deteremos de forma breve sobre este paradigma investigativo, que apresenta categorias de pensamento orientadas pelas cosmovisões, saberes e praticas indígenas. A consolidação de um paradigma investigativo indígena O final da década de 1990 foi o ponto chave para que as reflexões epistemológicas realizadas por indígenas se firmassem como formas de conhecimento válidas dentro dos ambientes universitários, sobretudo os de língua inglesa. A ativista do movimento indígena maori Linda Tuhiwai é considerada umas das pioneiras na proposição de uma metodologia indígena de pesquisa7. De acordo com esta intelectual indígena, são as construções teóricas e os métodos de investigação que sustentam uma trama de poder colonial capaz de forjar um modelo de Outro selvagem e sem capacidade de produzir conhecimento significativo. Partindo da crítica pós-colonial, denuncia em sua mais importante obra, Decolonizing Methodologies. Research and Indigenous Peoples (1999) - traduzida para o castelhano em 2016 com o título A descolonizar las metodologías: investigación y pueblos indígenas – a perspectiva eurocêntrica presente no conhecimento científico produzido sobre povos indígenas e aponta para a importância de se reconhecer a produção intelectual ocidental como parte constituinte da própria cultura ocidental e cujas consequências políticas e sociais tem promovido a ausência de um lugar discursivo para a produção de intelectuais indígenas8. O pensamento científico ocidental, ainda segundo Tuhiwai (1999), tem sido historicamente cumplice dos colonialismos e dos imperialismos. Neste sentido, uma ciência próxima ao universo indígena deve se voltar 7

Linda Tuhiwai atualmente é professora de educação indígena na Universidade de Waikato, na Nova Zelândia. Faz-se necessário esclarecer que não há consenso sobre a utilização da expressão intelectual, tanto no meio acadêmico como entre os próprios indígenas, para caracterizar sujeitos indígenas que se dedicam a produzir algum tipo de reflexão teórica. Isto em virtude do fato de que o emprego do termo intelectual pode muitas vezes confundir a atuação desses atores políticos comunitários com a de uma elite indígena letrada já desconectada de seu povo. 8

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não para temas gerais, mas para as problemáticas enfrentadas pelas comunidades e seus membros. Assim, lista 25 projetos de pesquisa que considera condizentes com as preocupações dos pesquisadores indígenas. São eles: reivindicação, testemunhos, narrativas, celebração da sobrevivência, lembranças, gênero, indigenizar, intervir, revitalizar, conectar, ler, escrever, representar, vislumbrar, reenquadrar, restaurar, retornar, democratizar, criar redes, nomear, proteger, criar, negociar, descobrir e partilhar (TUHIWAI apud RAMOS, 2013, p. 19). Um ano após a publicação de Decolonizing Methodologies. Research and Indigenous Peoples, o filosofo indígena tewa Gregory Cajete9 publica outra obra importante intitulada Native Science (2000), na qual enfrenta a questão de uma fundamentação teórica para a nascente ciência nativa 10. Assim como Linda Tuhiwai, acredita que uma ciência produzida por indígenas deva visar o reconhecimento da milenar produção de conhecimento realizada pelos povos indígenas. Caberia, então, ao intelectual indígena perceber, pensar, conhecer, atuar e sistematizar estes conhecimentos. De acordo com Cajete (2000, p. 2-3), uma ciência nativa envolve (...) espiritualidade, comunidade, criatividade e tecnologias para manter o meio ambiente e cuidar da vida humana (...) envolve aspectos como o espaço e o tempo, a linguagem, o pensamento e a percepção, a natureza e os sentimentos humanos, a relação dos seres humanos com o cosmos e todos os aspectos ligados com a realidade natural11.

Esta ciência, por sua vez, deve se orientar pelos seguintes paradigmas que reproduzo aqui na integra: A ciência nativa integra uma orientação espiritual. A dinâmica harmônica multidimensional é um estado perpetuo do universo. Todos os conhecimentos humanos estão relacionados com a criação do mundo; portanto, o conhecimento humana está baseado na cosmologia humana. A humanidade tem um papel importante na perpetuação dos processos naturais do mundo. Todas as ―coisas‖ são animadas e tem um espirito. Todos os lugares são importantes e significativos porque cada lugar reflete a integridade da ordem natural. A história das relações deve ser respeitada de acordo com os lugares, plantas, animais e fenômenos naturais. A tecnologia deveria ser apropriada e refletir o balanço das relações do mundo natural. Há relações básicas, padrões e ciclos no mundo que necessitam ser entendidos; este é o rol das matemáticas. Há etapas de iniciação para o conhecimento. Os maiores são guardiões do conhecimento. As atuações no mundo devem ser acompanhadas através do ritual e da cerimônia. Os artefatos antigos contem a energia dos pensamentos e materiais com os quais foram criados e são símbolos de rituais que expressam esses pensamentos, entidades e processos. Os sonhos são considerados portas para a criatividade e o conhecimento se usa com sabedoria, prudência e de forma pratica12 (CAJETE, 2000, p. 64-65).

Outra obra importante para o desenvolvimento do paradigma investigativo indígena é Indigenous Research Methodologies (2012), da teórica indígena africana Bagele Chilisa13. Nesta obra, argumenta sobre necessidade de se desconstruir e reescrever a história dos povos indígenas através do empoderamento de seus membros e da autonomia dos processos de investigação no qual o indígena passa de objeto a sujeito de conhecimento de forma a ressaltar a necessidade de uma justiça social. 9

Gregory Cajete é professor da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos Segundo Cajete (2000), a etiqueta de ―ciência‖ empregada no termo ciência nativa diz respeito a uma estratégia política para dar a ela o mesmo status da ciência ocidental. 11 Tradução livre. 12 Tradução livre. 13 Bagele Chilisa é atualmente professora na Universidade de Botsuana. 10

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Mesmo expondo aqui de forma breve o pensamento de alguns intelectuais indígenas que tem contribuído para a consolidação do paradigma investigativo indígena, acredito poder apontar uma de suas principais características. A primeira delas é a de localizar e analisar o discurso colonial promovendo uma crítica descolonizadora do pensamento sem, contudo, deslegitimar toda a produção intelectual do Ocidente. Trata-se, antes, de examiná-la a fim de defender os interesses dos povos indígenas. O paradigma investigativo indígena é, portanto, ao mesmo tempo uma proposta de ciência nativa dentro de instituições acadêmicas e um recurso social e político de descolonização e autonomia dos povos indígenas baseado na cosmovisão e conhecimentos indígenas. Nas palavras de Shawn Wilson (2001, p. 176), indígena cree do Canadá, o paradigma ―es un conjunto de creencias sobre el mundo y sobre la obtención de conocimientos que van de la mano para guiar las acciones de las personas sobre cómo hacer su investigación‖. Implica, segundo Jelena Porsanger (2004, p. 107-108) em um (...) conjunto de métodos e teorias indígenas, normas e postulados empregados na investigação com o enfoque dos povos (...) assegurar que a investigação sobre as questões indígenas sejam conduzidas de maneira respeitosa, ética, correta, útil e benéfica, desde o ponto de vista dos povos indígenas14.

Por fim, cabe considerar que no paradigma investigativo indígena dimensões como a espiritual e fatores psicológicos tais como a intuição são levados em consideração, visto que descrevem o modo como os povos indígenas concebem seus mundos. Sobre isto, apresento algumas considerações no próximo e último subitem. Os aspectos constitutivos do paradigma investigativo indígena Uma das bases fundamentais do paradigma investigativo indígena é a noção de relacionalidade presente nas distintas cosmovisões indígenas. A realidade é entendida como uma totalidade na qual tudo o que vive se encontra unido. Nesta totalidade, há uma dimensão material e outra não imaterial e todas as coisas tem vida e possuem um espírito. Esta epistemologia relacional investe de importância fatores como o contexto, as cosmovisões ancestrais, as relações interpessoais e com os seres não humanos, a língua nativa como lugar de enunciação, o conhecimento como processo coletivo e o papel do investigador no processo de produção de conhecimentos. Diferentemente das ciências de matriz ocidental, a realidade não é nem separada e nem isolada em partes como se cada uma delas tivesse uma vida própria; pelo contrário, é composta por um conjunto de relações complementares e interdependentes entre si. Os entes materiais e não-materiais estão relacionados de diferentes maneiras em redes de relações vivas e espirituais que conformam uma totalidade-relacional. Se no sistema de conhecimento indígena tudo está relacionado, os conceitos não poderiam ser pensados de outra maneira. Expressam-se sempre em movimentos relacionados, em relações interpessoais, intrapessoais e espirituais. A temática da espiritualidade, que na tradição ocidental está relacionada quase sempre à fenômenos de caráter religioso, é recorrente nos autores que trabalham dentro do paradigma investigativo indígena. É utilizada como uma categoria teórico-explicativa que permite adentrar em questões de ordem imaterial que não poderiam ser excluídas das análises sobre a organização social dos grupos indígenas. Segundo Wilson (apud RAMOS, 2013, p. 12) ―a espiritualidade não é separada, mas parte integral e entranhada no todo que é a visão de mundo indígena‖. Para Cajete (apud RAMOS, 2013, p. 12), a espiritualidade não tem nada a ver com religião, mas com a busca de verdade ou verdades: ―A ciência nativa, em seus níveis mais altos de expressão, é um sistema de caminhos para chegar a essa verdade perpetuamente em movimento, ou ‗espírito‖. Esta última noção, de acordo com Cajete (apud RAMOS, 2013, p. 12), diz respeito a uma verdade inconstante 14

Tradução livre.

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Como o nascimento de uma criança ou um raio ligando céu e terra por uma fração de segundo, são esses os momentos infinitos tanto do caos como da ordem. São esses os preceitos da ciência nativa, pois a verdade não está num ponto fixo, mas sim num ponto de equilíbrio em constante mudança, perpetuamente criado e perpetuamente novo.

Verdade, neste sentido é ―sempre relativa a um sistema conceitual, que qualquer sistema conceitual humano é em sua maioria de natureza metafórica e que, portanto, não existe verdade que seja totalmente objetiva, incondicional ou absoluta‖ (LAKOFF; JOHNSON apud RAMOS, 2013, p. 15) A ideia de relacionalidade e de movimento não estão associadas apenas a de espírito e de verdade. Outro conjunto de ideias importante é a de propriedade intelectual, compromisso ético e justiça social no fazer científico. Sobre isto, os intelectuais indígenas reforçam que o conhecimento ao ser construído de maneira relacional não pertence a uma só pessoa, portanto, não pode ser comercializado nem apropriado alguém. Para melhor expressar esta compreensão, Wilson (2001, p. 179) usa a seguinte metáfora ―o que exalam as árvores eu o inalo. O que eu inalo a arvore o inala‖ É possível constatar entre os intelectuais indígenas a preocupação em serem coerentes com o princípio ético de difusão dos conhecimentos indígenas como instrumento de responsabilidade, respeito e reciprocidade baseada no consentimento coletivo dos participantes com vistas à justiça social. Para a concretização deste ideal, propõem desenvolver códigos de segurança e proteção a pesquisa em favor dos povos indígenas, seus conhecimentos e territórios. A pesquisa é vista necessariamente como uma atividade militante. Conforme propõe Tuhiwai (1999) com sua Agenda de Pesquisa Indígena, o objetivo é que os temas de pesquisa sejam definidos pelos indígenas visando uma atuação política que permita aos povos indígenas ter controle sobre a produção do conhecimento, mudar seus processos, recuperar e consolidar identidades culturais, bem como promover a busca de alternativas a multiplicidade de problemas enfrentados no cotidiano das comunidades. Trata-se, portanto, de conferir aos indígenas o direito de controlarem seus próprios destinos. A respeito disto, Tuhiwai (1999) instrui os indígenas para que aceitem participar de pesquisas somente quando forem os autênticos beneficiários. O caráter subjetivo que envolve o processo investigativo é claramente assumido por estes intelectuais indígenas. A neutralidade não tem espaço nesta perspectiva, ao contrário, o que se propõem é uma metodologia de pesquisa engajada. Conforme expõe Harding (apud ESPINOSA-MINOSO, 2014, p.10), ―la investigadora o el investigador se coloque en el mismo plano crítico que el objeto explícito de estudio, recuperando de esta manera el proceso entero de investigación para analizarlo junto con los resultados de la misma‖. O conjunto de análises realizadas aqui, embora ainda iniciais, apontam para uma nova forma de se fazer e entender a ciência. Nela, são colocados em jogo considerações a respeito do humano e do não-humano, uma perspectiva relacional de entendimento do mundo, uma postura investigativa de envolvimento com o objeto, entre outros aspectos. Acredito que as ferramentas conceituais e metodológicas produzidas pelos intelectuais indígenas que se filiam a esta perspectiva de compreensão da realidade social são de grande relevância para aqueles que, como eu, se incomodam com certos modismos teóricos acadêmicos que, longe de facilitarem nossas vidas, acabam nos enclausurando em concepções teóricas que expressam muito pouco a realidade vivida por muitos de nós. Por isso a necessidade de uma desobediência epistêmica. Referências BONFIL BATALLA, G. El concepto de indio en América: una categoría de la situación colonial. Anales de Antropología, vol. IX., México: Instituto de Investigaciones Antropológicas de la UNAM, 1972, pp. 105-124. CAJETE, G. Native Science: Natural Laws of Interdependence. Santa Fe, NM: Clear Light Publishers, 2000. CARVALHO, José Jorge. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes Antropológicos, v.7, n.15, p. 107-147, Porto Alegre, jul., 2001.

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O DISCURSO MELANCÓLICO NO EU DE BENTO SANTIAGO, DE MACHADO DE ASSIS, E DE ORIENTACIÓN DE LOS 1 GATOS, DE JULIO CORTÁZAR Cristiane de Mesquita Alves2 José Guilherme de Oliveira Castro3 RESUMO O trabalho tem como objetivo estudar como a melancolia representa o modo pelo qual o sujeito se identifica ínfimo diante de seus problemas pessoais, em que valoriza o eu não sou, nem nunca fui nada (Lambotte, 2001), como um elemento discursivo particular do processo de subjetivação melancólica, a partir da leitura das personagens da Literatura: Bento Santiago, protagonista do romance Dom Casmurro de Machado de Assis e do Narrador (marido de Alana), do conto Orientación de los gatos – de Julio Cortázar; personagens que no decorrer das narrativas apresentam caracteres identitários de fracassados e melancólicos, por não terem se realizado em seus relacionamentos amorosos. E, para estabelecer os entre-discursos da melancolia nos textos, empregou-se os pressupostos teóricos de Freud em Luto e Melancolia ([1917], 2016), Benjamin (2012) e Lambotte (2001), além do método de literatura comparada de Remak e Pichois & Rousseau (2011) para entrelaçar os discursos desses dois textos literários. Palavras- chave: Discurso melancólico; Discurso identitário; Literatura Comparada.

Introdução Tu que fosse uma facada, Entraste em minha alma chorosa; Tu que, tão forte qual manada De demos, vieste, louca e airosa. (Baudelaire, 2011, p. 53).4

A

melancolia se caracteriza como um estado em que o ser humano se encontra psiquicamente por um desânimo profundamente doloroso, por uma suspensão do desinteresse pelo mundo externo, desencadeado por muitas perdas, como a da capacidade de amar, pela inibição da capacidade para realização e ―pelo rebaixamento da autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, até atingir a expectativa delirante de punição‖. (FREUD, 2016, p.100), fazendo com que o indivíduo passe a se questionar acerca de sua condição e estar na sociedade consumista e capitalista, marcada pelas exigências de feitos individuais e valores morais cobrados de forma constante. Diante disso, a pessoa que não consegue fixar para os outros esses valores, entra em estado de transe e autorrecriminação, passando a buscar o que a levou à regressão tanto social, quanto individual, procurando explicações nos outros ao seu redor, motivos que ela mesma pudesse responder, como se os outros fossem culpados por seu fracasso real. A partir desse momento, o Eu instaura um processo de luto patológico, objetivando encontrar no objeto de desejo, neste estudo: objeto de desejo e de perda= mulheres, respostas para sua identificação. Entretanto, esse Eu não encontra saídas no discurso de luto, apesar de o luto apresentar muitos traços semelhantes ao discurso melancólico, como apresentar reação de ânimo doloroso 1

Trabalho apresentado no GT 01 Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Doutoranda em Comunicação, linguagens e Cultura pela Universidade da Amazônia. Belém- PA. Endereço eletrônico: cris.mesquita28@hotmail.com 3 Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor titular da Universidade da Amazônia. BelémPA. Endereço eletrônico: zevone@superig.com.br 4 BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martin Claret, 2011. 112 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


quanto à perda de uma pessoa querida, a perda do interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de qualquer novo objeto de amor- em substituição ao almejado e o afastamento de qualquer atividade que não esteja ligada à memória do ser amado; há a ausência de uma característica: ―falta nele a perturbação do sentimento de autoestima. No resto, ele é o mesmo‖. (FREUD, 2016, p. 100). E, é esta perturbação do sentimento de autoestima, como rasgo da melancolia, o qual caracteriza os discursos de dois narradores-personagens da Literatura em que este artigo objetiva analisar, como discursos melancólicos de autorrecriminação e autodesvalorização do próprio Eu. As personagens selecionadas para estabelecer esse diálogo comparativo, a partir do método de ―laços de analogia, fronteiriços‖ (PICHOIS & ROUSSEAU, 2011, p. 231), presentes nos discursos melancólicos foram: o narrador do texto Orientación de los gatos, um dos contos do livro Queremos tanto a Glenda (2009) publicado em 1980, de autoria de uma das maiores expressões da Literatura Hispano-americana, o naturalizado argentino Julio Cortázar (1914- 1984), personagem que narra a história e protagoniza a mesma, não nomeado, mas que se sabe quem é pelas descrições ―Alana es mi mujer‖ (CORTÁZAR, 2009, p. 11), o que se leva a chamá-lo no decorrer das linhas deste artigo, como Marido de Alana. Um homem com traços melancólicos de autocomiseração que no conto passa a observar a decadência de seu casamento, concomitante a sua, ao comparar as ações de sua mulher que são mais interessantes que as suas e a intrigante concorrência pela atenção da esposa com um gato chamado Osiris. ―Cuando Alana y Osiris me miran no puedo quejarme del menor disimulo, de la menor duplicidad. Me miran de frente, Alana su luz azul y Osiris su rayo verde‖ (Ibidem, p.11), que no conto, representa mais um elemento responsável pelo processo de autodepreciação do narrador. Além de passagens de alguns capítulos do romance Dom Casmurro (1899) de Machado de Assis (18391908), que serviram para comprovar ―um extraordinário rebaixamento na autoestima do Eu, um grandioso empobrecimento do Eu. No luto, o mundo se tornou pobre e vazio; na melancolia, foi o próprio Eu.‖ (FREUD, 2016, p.102), na figura de Bento Santiago, o Bentinho, narrador-personagem que protagoniza um dos textos mais discutidos da Literatura Brasileira, que neste artigo, prioriza apenas trechos que demonstrem a autorrecriminação e empobrecimento do Eu de Bentinho em relação a seu objeto de perda: Capitu versus matrimônio feliz (convenções sociais), para estabelecer ―estudos de literatura comparada [que] lidam mesmo é com os vultos literários do passado‖ (REMAK, 2011, p.197), nesse percurso de Literaturas que se comparam nesse estudo. Melancólico que é melancólico Dê a cada homem o que ele merece e quem escapará do açoite? Hamelet, II, 2.

O homem que assume seu discurso como melancólico ―de alguma forma ele deve ter razão em descrever algo que é como lhe parece‖ (FREUD, 2016, p. 103), ele é realmente ―tão desinteressado, tão incapaz para o amor e para o trabalho como ele diz. [...]. Em algumas de suas autorrecriminações, ele nos parece igualmente ter razão e até mesmo captar a verdade com mais agudeza do que outras pessoas, não melancólicas.‖ (Ibidem, p. 100). É o que acontece que o Marido de Alana que se assume melancólico e reconhece seus defeitos, cita-os e exemplifica. Encara sua amarga realidade, diferentemente da mulher, Alana, que ao parecer agindo aparentemente normal no simples cotidiano doméstico, a não melancólica (grifo nosso), não demonstra sua insatisfação direta diante de um relacionamento que tende ao término, ao fracasso. Assim como Capitu, com seus ―olhos de cigana, oblíqua e dissimulada‖ (ASSIS, 2010, p. 65) a não melancólica também (grifo nosso), não apresenta traços de recriminações, decepções em seu casamento, em seus relacionamentos sejam amorosos ou fraternais, em relação a seu filho Ezequiel, ou ao próprio marido diretamente. No entanto, Bento Santiago e Marido de Alana quando fazem sua autocrítica, de forma exacerbada, eles se descrevem como sendo homens mesquinhos, egoístas, insinceros e dependentes, que só se esforçaram para esconder as fraquezas de seus ser/ EU (grifo nosso), e as expõem somente diante de seus fracassos consumados, corroborando a premissa freudiana de que ―é preciso primeiro que alguém fique doente para ter 113 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


acesso a uma verdade como essa‖ (FREUD, 2016, p. 103). Isso justifica a aproximação dos discursos das personagens em estudo à conduta do melancólico em Freud, o qual afirma que a conduta do melancólico não é bem associada a de alguém que tenha ou possua um sentimento de culpa, quem faça contrição de arrependimento e autorrecriminação; pelo contrário, o melancólico externaliza seu desencanto, seu desajuste social e fracassos pessoais, sem vergonha, sem crença de que seus problemas poderão acabar, tornando-se pessoas amargas, e no escrever de Machado de Assis casmurras, isto é, ―Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo.‖ (ASSIS, 2010, p. 21). Além disso, a melancolia evidencia a insatisfação moral com o próprio Eu acima de outras críticas, como defeito físico, feiura, fraqueza e inferioridade social, críticas que ―são muito mais raramente objeto de autoavaliação; somente o empobrecimento assume um lugar preferencial entre os temores e afirmações do doente.‖ (FREUD, 2016, p. 105) que se vê/ considera como melancólico, como se observa no trecho em que Bentinho expõe sobre sua situação: O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. (ASSIS, 2010, p. 22).

Esta falta do Eu em Bentinho, ―mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.‖ (Ibidem, p. 22), é o que o coloca no plano de melancólico e que faz com que mais uma vez, comprova-se que o discurso dessa personagem esteja associado, preferencialmente, ao do melancólico, distanciando-se do discurso do luto, isso porque o luto (LAMBOTTE, 2001) representa uma elaboração psíquica da perda dolorosa, mas que o enlutado se protege de seu próprio desmoronamento por meio de um momento passageiro de acirramento da dor psíquica – a lembrança do objeto perdido, o pranteamento, passa. No entanto, o melancólico vivencia e não é capaz de esquecer esse desmoronamento narcísico do próprio EU, o que contribui para a precariedade de sua formação narcísica (LAMBOTTE, 1997). Na melancolia, como se ver, há um desmentido da perda, assim como da renúncia ao objeto, como assim o faz Bentinho: ―O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta.‖ (ASSIS, 2010, p. 22). Ademais, observa-se que o sujeito melancólico não pode perder o objeto ao qual se rendia, visto que nele o sujeito encontrava sua única forma – ainda que extremamente frágil – de continuidade do próprio sentimento de existência, como exemplo disso, pode-se perceber no conto de Cortázar, quando o Marido de Alana observa a duplicidade e a cumplicidade que há entre Osiris (o gato) e a esposa, como se observa no trecho: También entre ellos se miran así, Alana acariciando el negro lomo de Osiris que alza el hocico del plato de leche y maúlla satisfecho, mujer y gato conociéndose desde pianos que se me escapan, que mis caricias no alcanzan a rebasar. Hace tiempo que he renunciado a todo dominio sobre Osiris, somos buenos amigos desde una distancia infranqueable. (CORTÁZAR, 2009, p. 11).

Ao se deparar com a mulher diante do gato (Osiris), ou o gato é quem tem mais atenção que o sujeito (Marido de Alana), o Eu se nutre de renúncia própria e desprezo por perder o carinho da mulher para o gato. Em Dom Casmurro, a circunstância de rebaixamento do Eu pelo próprio sujeito se instala, quando Bentinho, anos mais tarde, faz uma síntese pessimista, comparando sua vida a uma profunda corrosão, buscando explicações nos roídos dos vermes, como se verifica no trecho: "Ele fere e cura!". Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento

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israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles. — Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos. Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído. (ASSIS, 2010, p. 43).

Nessas situações, consta-se que o sujeito, identificado ao vazio deixado pelo outro, entra em um conflito de forças, o qual revela a precariedade narcísica e o risco de seu desmoronamento. E, é nesse momento, que se percebe o problema da melancolia relacionado à constituição do eu e do objeto. Diante disso, corrobara-se com o discurso de Lambotte (2001) que aponta que a não-inscrição psíquica da perda objetal revela que o objeto sequer chegou a tomar uma circunscrição na subjetivação melancólica. Assim, o sujeito se desfacela, corrói-se e é absorvido pelo objeto de seu desejo em sua totalidade. E, o que se torna mais inquietante, ainda em relação a essa entrega do Eu para o objeto, no Eu melancólico, é que não há perda objetal pelo fato mesmo de que a deserção do Outro assinala, na constituição do sujeito, sua própria identificação ao nada, ou seja, o Eu melancólico necessita do Outro, mesmo que de forma dolorosa e ausente para si, para formar não só o ego narcísico, mas também para sua formação identitária, pois não podem ―apagar o nome de uma pessoa de sua memória [porque] é negar a sua existência: reencontrar o nome de uma vítima é retirá-la do esquecimento, fazê-la renascer e reconhecê-la conferindo-lhe um rosto, uma identidade.‖ (CANDAU, 2016, p. 68). Esse processo é uma constância no autotormento de quem é melancólico, isto é, lembrar, relembrar, nomear a amada que lhes causam desejo, amor e desconforto; Capitu para Bentinho, Alana para o Marido. Essa identificação narcísica com o objeto se torna então, o que Freud ([1917], 2016) denominou de substituto do investimento amoroso, o que tem como resultado uma ligação amorosa, por mais que o conflito com a pessoa amada exista, e Eu melancólico não consegue abandoná-la. A partir de então, o Eu começa a manifestar sua conduta de forma mais inteligível, mais visível por meio de: Suas queixas são acusações no velho termo; eles não se envergonham nem se escondem, porque tudo de depreciativo que dizem de si mesmos é dito, no fundo, acerca de outra pessoa; eles estão longe de dar provas, àqueles que os cercam, de humildade e submissão, as únicas que conviriam a pessoas tão indignas; ao contrário, eles são extremamente martirizantes, estão sempre como ofendidos e agindo como se tivessem sido objeto de uma grande injustiça. (FREUD, 2016, p.106).

No caso de Bentinho, tem-se muitos trechos no romance, que marcam seus relances memorialísticos em relação ao amor de Capitu seja em relação a ele seja ao seu amigo Escobar, ou na questão da real paternidade de Ezequiel ―— Não saiu a nós, [...], repliquei; [...], gosta de imitar os outros. — Imitar como? — Imitar os gestos, os modos, as atitudes; [...] já lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos...‖ (ASSIS, 2010, p.164) que é uma das máximas da narrativa machadiana. Outro fator que indica no texto, como um dos motivos que leva a martirização do Eu de Bentinho, é o fato de Capitu não olhá-lo, não correspondê-lo, o que o faz sentir injustiçado e justificar nisso sua casmurrice, como na passagem: Capitu fez um gesto de impaciência. Os olhos de ressaca não se mexiam e pareciam crescer. Sem saber de mim, e, não querendo interrogá-la novamente, [...] vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. Também vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correção. Todas essas belas instituições sociais me envolviam no seu mistério, sem que os olhos de

ressaca de Capitu deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo. O erro de Capitu foi não deixá-los crescer infinitamente, antes diminuir até às dimensões normais, e dar-lhes o movimento do costume. Capitu tornou ao que era, disse-me que estava brincando, não precisava afligir-me, e, com um gesto cheio de graça, bateu-me na cara, sorrindo, e disse: — Medroso! — Eu? Mas... — Não é nada, Bentinho. Pois quem é que há de dar pancada ao prender você? Desculpe, que eu hoje estou meia maluca; quero brincar, e... — Não, Capitu; você não está brincando; nesta ocasião, nenhum de nós tem vontade de brincar. (ASSIS, 2010, p.p 81-82) (grifos nossos). 115 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Assim como Bentinho, o Marido de Alana sente a falta de seu Eu tanto em sua própria vida, quanto na vida da esposa. Alana assim como Capitu, são mulheres que não olham para o Eu que as desejam, levando-o ao desalento e autocomiseração: Jamás hubiera podido descubrir que yo no estaba ahí por los cuadros, que un poco atrás o de lado mi manera de mirar nada tenía que ver con la suya. Jamás se daría cuenta de que su lento y reflexivo paso de cuadro en cuadro la cambiaba hasta obligarme a cerrar los ojos y luchar para no apretarla en los brazos y llevármela al delirio, a una locura de carrera en plena calle. Desenvuelta, liviana en su naturalidad de goce y descubrimiento, sus altos y sus demoras se inscribían en un tiempo diferente del mío, ajeno a la crispada espera de mi sed. (CORTÁZAR, 2009, p.13). (grifos nossos).

Diante disso, o que verifica é que ―houve uma escolha de objeto, uma ligação do libido a uma determinada pessoa; em consequência de uma ofensa real ou de uma decepção causada pela pessoa amada.‖ (FREUD, 2016, p. 106) (grifo do autor). Esta constatação real pelo Eu melancólico, por meio da representação do olhar das companheiras, marca no Eu a certeza de que a pessoa amada foi abandonada ou perdida, fazendo com que ficasse apenas a sombra do objeto (mulher), levando com que o Eu se julgasse e se reconhecesse como um perdedor, um ser abandonado, promovendo dessa forma, o conflito existencial entre o Eu e a pessoa amada, conflito em que leva ―a cisão entre a crítica do Eu e o Eu modificado pela identificação.‖ (Ibidem, p.106), exemplificado no trecho do Conto Orientación de los gatos: Es extraño, aunque he renunciado a entrar de lleno en el mundo de Osiris , mi amor por Alana no acepta esa llaneza de cosa concluida, de pareja para siempre, de vida sin secretos. Detrás de esos ojos azules hay más, en el fondo de las palabras y los gemidos y los silencios alienta otro reino, respira otra Alana. Nunca se lo he dicho, la quiero demasiado para trizar esta superficie de felicidad por la que ya se han deslizado tantos días, tantos años. A mi manera me obstino en comprender, en descubrir; la observo pero sin espiarla; la sigo pero sin desconfiar; amo una maravillosa estatua mutilada; un texto no terminado, un fragmento de cielo inscrito en la ventana de la vida. (CORTÁZAR, 2009, p.11). (grifos nossos).

O aumento da dor é alastrado pelo Eu, quando ainda há na perda do objeto outros Eus que concorrem com o homem melancólico, que se reconhece frustrado por suas perdas como no conto de Cortázar que Marido de Alana tem Osisris, o gato- merecedor de mais atenção que o marido; e no romance de Machado, Bentinho concorre com Escobar, o filho Ezequiel, bem como a dissimulação e agudeza de sua própria mulher: Capitu. Desse modo, percebe-se que os motivos que ocasionam a melancolia frequentemente vão além do acontecimento claro da perda do amor da mulher amada, ―abrangem todas as situações de ofensa, desprezo e decepção, através das quais pode manifestar-se na ligação uma oposição de amor e ódio ou uma ambivalência já existente pode ser reforçada.‖ (FREUD, 2016, p. 109), como se constata em Betinho e Marido de Alana. Das negativas5 Com a boca de morango, entretanto, a mulher, Como uma cobra em brasa a se retorcer, E moldando seus seios no ferro corpete, Estas palavras cheias de almíscar repete. (BAUDELAIRE, 2011, p.185.).

Outro aspecto discursivo que se nota nas falas de Bentinho e Marido de Alana é que eles, a modo grosso de dizer, são melancólicos duplamente assumidos, isso se partir da análise de melancolia em Freud, que 5

Este subtítulo faz referência ao último capítulo (também assim nomeado: Das negativas) do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicado originalmente em folhetins a partir de março de 1880, na Revista Brasileira. 116 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


se trata de um processo de ouvir o discurso do sujeito que se sente autotormentado e autodesprezível diante de sua realidade emotiva sensitiva, amorosa, podendo-se assim analisar o melancólico em Freud, como uma melancolia mais interna. Por outro lado, a condição do sujeito em relação à perda da pessoa amada e sua condição social, permite analisá-lo, também dentro do discurso de melancolia teorizado por Walter Benjamin (1892-1940). Para o filósofo alemão, a melancolia ―é rotineira. Pois estar o sujeito à rotina significa sacrificar suas idiossincrasias, abrir mão da capacidade de se enojar. E isso torna as pessoas melancólicas.‖ (BENJAMIN, 2012, p. 78). Além disso, este filósofo também justifica que o fato do homem está vivendo cada vez mais sozinho e triste está diretamente ligado à sociedade capitalista e individualista burguesa que o deixa cada vez mais depressivo diante das suas impossibilidades diante do Sistema Social, ―A melancolia e a constipação intestinal sempre estiveram associadas. Mas, desde que no corpo social os fluidos deixaram de circular, um embotamento sufocante nos persegue.‖ (BENJAMIN, 2012, p. 82). Diferentemente de uma concepção freudiana acerca da melancolia, Walter Benjamin atribuiu novas conceituações sobre o termo- até mesmo- de pré-freudianos a ao analisar a poesia de Baudelaire, ao relacionar o desencanto e a falta de vontade do melancólico diretamente ao efeito de um desajuste ou mesmo de uma recusa quanto às condições simbólicas do laço social. O romantismo tardio de Baudelaire – o último dos poetas românticos e o primeiro dos modernos – é interpretado por Benjamin como uma tentativa de superação do desencanto melancólico causado pelo fracasso das revoluções, pelo desalento do indivíduo diante de um tempo brutal cuja superação não se anunciava em nenhum horizonte. (KEHL, 2010, p. 2).

Benjamin justifica que um dos motivos que levou Baudelaire, assim como tantos outros poetas e escritores contemporâneos ao processo melancólico, teria sido as decepções nas transformações sociais prometidas pela Revolução Francesa. ―Em Baudelaire, que participou ativamente dos confrontos de rua em 1830 e em 1848, a desilusão causada pelo fracasso da revolução produziu uma descrença progressiva em relação à ação política‖ (Idem). Levando em consideração essa nova perspectiva a respeito da melancolia, e tangenciando a ideia para empréstimo nesta análise literária, passa-se a entender que o processo de melancolia de Bento Santiago e Marido de Alana, apesar de estarem casados com as respectivas mulheres: Capitu e Alana, eles não conseguem se inserir nem no mundo externo, social em que elas se inserem. Isso pode ser comprovado no conto de Cortázar: Llegábamos al final de la galería, me acerqué a la puerta de salida ocultando todavía la cara, esperando que el aire y las luces de la calle me volvieran a lo que Alana conocía de mi. La vi detenerse ante un cuadro que otros visitantes me habían ocultado, quedarse largamente inmóvil mirando la pintura de una ventana y un gato. Una última transformación hizo de ella una lenta estatua nítidamente separada de los demás, de mí que me acercaba indeciso buscándole los ojos perdidos en la tela. Vi que el gato era idéntico a Osiris y que miraba a lo lejos algo que el muro de la ventana no nos dejaba ver. Inmóvil en su contemplación, parecía menos inmóvil que la inmovilidad de Alana. De alguna manera sentí que el triángulo se había roto, cuando Alana volvió hacia mí la cabeza el triángulo ya no existía, ella había ido al cuadro pero no estaba de vuelta, seguía del lado del gato mirando más allá de la ventana donde nadie podía ver lo que ellos veían, lo que solamente Alana y Osiris veían cada vez que me miraban de frente. (CORTÁZAR, 2009, p. p 1516).

Em que Alana na galeria contempla quadros, observa-os, encantam-se pelas imagens, tenha compreendê-las, e mesmo em espaços que não ficam mais outros pessoas ―más allá de la ventana donde nadie podía ver lo que ellos veían‖ (Idem), Alana prefere olhar a imagem do gato a que contemplar o olhar do marido ou se preocupar com ele. A galeria no texto corresponde ao espaço social capitalista que se estar inserido, sem ser notado pelos outros, quando o Eu não consegue se instaurar ou se sentir dentro do processo social. 117 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Também em Dom Casmurro, há vários momentos em que Bento Santiago parece decepcionado com o espaço social em que está inserido, ao perceber que mesmo ao lado de Capitu, parece que sua presença é inexistente, como visto no fragmento: Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas. As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. (ASSIS, 2010, p. 176).

Em que narra o velório e o enterro do amigo Escobar, em que Bentinho percebe que Capitu, em meio a tanta gente, prefere contemplar e estar mais uma vez com outros, ou ao lado de outros a que dele mesmo. Diante destas colocações o que se contempla é que os dois homens em que se estuda neste artigo, são sujeitos em que manifestam uma profunda melancolia interna e externamente, da qual emprestamos o termo melancólico interno (grifos nossos) para se referir ao de Freud que afirma que a melancolia, trama-se um sem número de batalhas isoladas pelo objeto desejo, nas quais o ódio e amor se enfrentam: ―um, para desligar a libido do objeto, o outro para defender essa posição da libido contra o ataque.‖ (FREUD, 2016, p. 116); e empregase o termo de melancólico externo (grifos nossos) emprestado da filosofia benjaminiana que segundo Kehl: Estamos muito longe do melancólico freudiano, cujo objeto perdido é, por natureza, inconsciente, pois diz respeito aos laços mais íntimos e precoces da vida familiar. A obra de Baudelaire estaria marcada, ao mesmo tempo, pela desistência da via política e pelo permanente combate contra a melancolia e o conformismo presentes na vida social de seu tempo - um tempo em que não se avistava nenhuma perspectiva de que o futuro pudesse construir alguma alternativa para as derrotas do presente (KEHL, 2010, p.p 6-7).

Logo, o termo melancólico em Benjamin, também pode se ampliar as ações e atitudes de Bentinho e Marido de Alana, como se pôde verificar nas passagens já mencionadas, por este motivo é que se chega à ideia Das negativas, apropriadas pelo uso da escrita do próprio Machado de Assis ao escrever as considerações do último capítulo do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, nas quais se semelham aos textos em estudo ―Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade, não fui califa, [...] Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal‖ (ASSIS, 2002, p. 176).

Considerações finais Chegada às derradeiras considerações, mas como ponto de partida para as premissas, conclui-se que de modo geral que o sujeito ao se ver ou não inserido no processo de comunicação social ou no desejo de se comunicar ao mais próximo, nesse caso, a mulher amada, Alana ou a Capitu, quando o não consegue manifestálo e nem é correspondido, passa por um processo de profunda depreciação do Eu que se decepciona consigo mesmo e com a realidade social que não o apoia e o faz se autocorroer e autorrecriminar-se ainda mais, diante das possibilidades de sua vida ínfima. Ao renunciar o Eu na busca de um objeto que tem, mas não tem de forma concreta, já que tanto Bentinho, quanto Marido de Alana são indivíduos casados com seus objetos de perda, mas que eles, no caso, suas mulheres, não estão inseridas em seus Eus, elas não manifestam interesse imediato por eles, almejando outras formas de manifestações e carinho, anulando-os nesse processo, seja Osiris: o gato, no conto Orientación de los gatos, tanto na forma de animal presente na casa e no cotidiano do casal, quanto na forma de imagem dele, nas pinturas no e do ambiente extracasa, na galeria, desperta mais interesse no olhar de Alana, 118 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


quem não se preocupa em corresponder ao olhar e interesse do marido; seja Capitu, em Dom Casmurro, ela age como Alana, manifesta interesse pelo filho, por Escobar (amigo do marido), pelos afazeres e conflitos de Sancha, do cotidiano doméstico, após o casamento com Bentinho, a que mirar seus olhos de recassa e dissimulada (grifo nosso) a ele. No entanto, nem que o Marido de Alana ―querido tenerla desnuda en los brazos, amarla de tal manera que todo quedara claro, [...] dicho para siempre entre nosotros, y que de esa interminable noche de amor[...], naciera la primera alborada de la vida.‖ (CORTÁZAR, 2009, p. 15), com seus desejos de recomeço e Bentinho com sua dor amarga ―Desta maneira, [...] os últimos atos explicam o desfecho do primeiro, espécie de conceito, e, por outro lado, ia para a cama com uma boa impressão de ternura e de amor: Ela amou o que me afligira, Eu amei a piedade dela.‖ (ASSIS, 2010, 119), são sujeitos capazes de deixar sua forma de expressar melancólica, pelo contrário, eles vivenciam e se reconhecem, frustram-se como tal. Portanto, ao entender a melancolia como um processo de degradação do EU, seja expressada na forma do interior do Eu, como afirmou os estudos de Freud em seu estudo sobre Luto e Melancolia de 1917, seja no modo de se decepcionar ao Eu exterior, motivado pelas reações do Eu frente ao seu contexto social, nos estudos de Melancolia de Esquerda de 1930 em Benjamin e outros textos, como os destinados a estudar melancolia, a partir da poesia e vida de Charles Baudelaire, como nos analisados por Kehl (2010) , reintepretase esses estudos e associa-os às práticas e às atitudes de Bento Santiago e Marido de Alana, como sujeitos que representam esses discursos, tanto do ponto de vista de Freud quanto do de Benjamin, nas narrativas em que essas personagens estão inseridas na Literatura Brasileira e na Literatura Hispano-americana. Referências ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 9ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2010. ______. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 28ª ed. São Paulo: Ática, 2002. BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martin Claret, 2011. BENJAMIN, Walter. Melancolia de Esquerda. In: Magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas; v.1). (p.p 77-82). CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2016. CORTÁZAR, Julio. Queremos tanto a Glenda. Madrid (España): Santillana Ediciones Generales, S.L. Torrelaguna, 2009. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: Neurose, psicose, perversão. Trad. Maria Rita Salzano Moraes. Obras Incompletas de Freud. Vol. 5. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. (p. 99-118). KEHL, Maria Rita. A melancolia em Walter Benjamin e em Freud. In: Recordando a Walter Benjamin. Justiça, História y Verdad. Escritura de la melancolia. III Seminario Internacional Políticas de la Memoria. Centro Cultural de la Memoria Haroldo Conti, Buenos AiresArgentina, 2010. (p.p 112) Disponível: http://conti.derhuman.jus.gov.ar/2010/10/mesa-42/khel_mesa_42.pdf. Acesso em 08 de abril de 2017. LAMBOTTE, Marie- Claude. A deserção do Outro. Revista da associação psicanalítica de porto alegre. Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre: APPOA, 20, 2001. (p.p 84-101.) ______. O Discurso Melancólico: da fenomenologia à metapsicologia. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1997. PICHOIS, Claude & ROUSSEAU, André M. Para uma Definição de Literatura Comparada. Trad. Monique Balbuena. In: CARVALHAL, Tania Franco; COUTINHO, Eduardo de Faria (Orgs). Literatura Comparada. Textos Fundadores. 2ª ed. São Paulo: Rocco, 2011. (p.p 230-233). REMAK, Henry H. H. Literatura Comparada: Definição e função. Trad. Monique Balbuena. In: CARVALHAL, Tania Franco; COUTINHO, Eduardo de Faria (Orgs). Literatura Comparada. Textos Fundadores. 2ª ed. São Paulo: Rocco, 2011. (p.p 189-205).

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A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA E CULTURAL DO SUJEITO SURDO A PARTIR DAS IMPLICAÇÕES DO BILINGUISMO E DA 1

SURDEZ

Maria das Graças Santos Mourão2 Francisca das Chagas Gomes da Silva3 Bruna Rodrigues da Silva Neres4 RESUMO Este artigo objetiva identificar a contribuição da educação bilíngue para a formação da identidade e da cultura surda, uma vez que durante séculos foi negada aos surdos a possibilidade de construir e vivenciá-la com liberdade, dessa forma, o Bilinguismo é a filosofia educacional concebida como a mais adequada pela comunidade surda para promover a educação de surdos no atual contexto brasileiro. Para a realização deste estudo foi realizada uma pesquisa bibliográfica, fundamentada nos postulados de pesquisadores da área da surdez, como: Quadros (2015), Lacerda e Santos (2014), Quadros e Stumpf (2015) entre outros autores. Como conclusão deste estudo, entende-se que a educação bilíngue contribui para a formação cultural e identitária surda, de modo que reflete no reconhecimento e valorização da Língua Brasileira de Sinais enquanto língua natural legítima da comunidade surda, cuja apropriação favorece ao desenvolvimento cognitivo, afetivo, linguístico e social de seus usuários, enquanto que a aprendizagem da segunda língua possibilita aos surdos a integração e a comunicação com a comunidade ouvinte. Palavras-chave: Identidade; Cultura surda; Bilinguismo; Educação de surdos.

Introdução

D

urante anos foi negado ao surdo o direito de se comunicar por meio de uma língua de sinais. Na contemporaneidade, a promoção da educação bilíngue, ou seja, o acesso à língua Brasileira de Sinais e à Língua Portuguesa na modalidade escrita, é vista não mais apenas sob uma ótica linguística, mas também política, uma vez que a educação de qualidade é um direito de todos os cidadãos brasileiros. A proposta de educação bilíngue apresenta-se como estratégia viável para promoção do desenvolvimento cognitivo, linguístico, social e afetivo dos indivíduos surdos. O reconhecimento do status linguístico da língua de sinais permitiu aos surdos construírem uma cultura pertinente à forma específica de comunicação, de interagir com os demais, de apreender o conhecimento e de desenvolvimento de maneira geral dos sujeitos surdos. Devido ao fato da comunidade surda estar inserida dentro de outra comunidade, majoritária, que faz uso de um sistema linguístico bastante distinto cria-se a possibilidade de aprendizagem da Língua Portuguesa escrita, sendo necessária para integração na comunidade ouvinte. O objetivo deste artigo é identificar a importância da educação bilíngue para a formação identitária e cultural dos sujeitos surdos, pois entende-se que se inserido em um contexto educacional bilíngue maior é a possibilidade de aceitação e reconhecimento do surdo enquanto sujeito que além da diferença linguística do ouvinte, também tem hábitos e culturas distintas. Esta reflexão baseia-se no pressuposto de que o bilinguismo permite aos usuários da língua de sinais vivenciarem com liberdade seu sistema natural de comunicação e forma de perceber o mundo.

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Trabalho apresentado no GT – 01 linguagem, cultura e identidade, do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Pós-graduada em Especialização em Língua Brasileira de sinais, pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI. Barras- PI.E-mail: gracymourao05@gmail.com. 3 Pós-graduada em Especialização em Língua Brasileira de sinais, pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI.Barras- PI E-mail: franciscagomes001@gmail.com 4 Mestra em Letras pela UFPI. Teresina- PI.E-mail: brunarodrigues_89@hotmail.com 120 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A metodologia empregada para a construção deste trabalho investigativo é a pesquisa bibliográfica. Nesse sentido, utilizou-se como aporte teórico, estudiosos como: Strobel (2009), Stumpf (2015), Lacerda (2014), para fundamentar as discussões arroladas neste trabalho sobre surdez, identidade e bilinguismo no contexto educacional O bilinguismo no contexto da educação de surdos A língua de sinais representa ao surdo a possibilidade de desenvolver seu potencial comunicativo de modo natural, espontâneo, uma vez que a condição da surdez intuitivamente provoca nesse sujeito a necessidade natural da comunicação manual. Segundo Lacerda e Santos (2014, p. 67) a língua de sinais ―já existia antes de Cristo e está presente em muitas histórias no mundo todo, desde tempos remotos até os dias atuais‖, no entanto nem sempre ela teve o mesmo valor, passou inclusive por inúmeras e difíceis mudanças até obter o devido reconhecimento na sociedade vigente. Na Grécia Antiga, a sociedade considerava o sujeito surdo desprovido de inteligência, pois para os gregos o que diferenciava o ser humano dos outros animais conforme a teoria aristotélica era a fala e esta por sua vez estava relacionada à capacidade intelectual, devido a ausência da fala pensava-se que o surdo não era dotado de inteligência e era visto como alguém digno de sofrer castigos e de ser jogado em rios. A esse respeito Berthier (1984, p.165 apud STROBEL, 2009, p. 16) comenta que a criança surda designada na época de criança infortunada ―era prontamente asfixiada ou tinha sua garganta cortada ou era lançada de um precipício para dentro das ondas. Era uma traição poupar uma criatura de quem a nação nada poderia esperar". Entretanto, em contradição às afirmações anteriores, na mesma época em que os surdos eram aniquilados em Roma, de acordo com Lacerda e Santos (2014, p. 67) no Egito e na Pérsia eles ―eram considerados criaturas privilegiadas, enviados dos deuses, pois o povo acreditava que os surdos se comunicavam em segredo com os deuses‖. Percebe-se que a exclusão ou aceitação do surdo dependia tanto da época quanto da região onde nascia. Na antiguidade os surdos viviam excluídos da vida social e muitas vezes eram obrigados a fazer serviços braçais, além disso, também eram proibidos de se casarem e até mesmo deixavam de receber a herança familiar, que era um direito, mas era negado. Na Idade Média essa realidade começou a mudar, pois segundo Lacerda e Santos (2014) a igreja tentou envolver os surdos na vida religiosa, porém como não oralizavam, não podiam confessar seus pecados, ficaram assim impedidos de participar da vida e da comunhão. Em relação à questão das heranças Farias e et al (2012, p. 16) afirma que: nas famílias abastadas, na nobreza nascia muitos surdos, devido aos casamentos consanguíneos, muito comuns à época, uma vez que a nobreza não queria dividir as heranças com outras famílias, então casava primos, sobrinhas, tios entre eles mesmos, inclusive irmãos com irmãos.

Nesse período, os monges faziam o voto do silêncio e para se comunicarem utilizavam sinais, por esse motivo alguns monges foram chamados nos castelos para ensinarem os sinais e a oralização aos filhos surdos da nobreza. Na Idade Moderna, assim aponta Lacerda e Santos (2014) o filósofo e médico italiano Girolamo Cardamo já reconhecia as capacidades dos surdos, em decorrência de estudos sobre seu filho surdo. Esse filósofo italiano também já afirmava que a ―surdez e a mudez não impediam o desenvolvimento da aprendizagem‖. Com o passar dos anos muitos educadores de surdos realizaram estudos e pesquisas sobre a educação das pessoas surdas. O espanhol Pedro Ponce Leon (1520-1584) desenvolveu métodos para educação de surdos filhos de famílias nobres por meio de datilologia, escrita e oralização. 121 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Em 1975 o alemão Samuel Heinicke, considerado pioneiro na utilização do ―oralismo puro‖, era contra o uso da língua de sinais e fundou uma das primeiras escolas de surdos na Alemanha. O Oralismo é a abordagem educacional que defende o ensino da fala às pessoas surdas, tendo como princípios: Aquisição da língua falada, língua usada pela maioria das pessoas como a língua natural, para usála em casa, na escola e viver ―normalmente‖ no mundo; a fala é considerada essencial, sendo a forma que garante a integração total, alvo idealizado nesta abordagem. A fala será alcançada por diferentes entre eles, a amplificação sonora precoce, o treinamento auditivo e a leitura orofacial; e os sinais e o alfabeto manual são proibidos, pois são considerados perigosos para o desenvolvimento da fala (STUMPF e QUADROS, 2015, p. 10).

Na França, Charles Michel de L‘Épée ficou conhecido como ―o pai dos surdos‖, pois se aproximou da comunidade surda, aprendeu a língua de sinais e criou sinais metódicos e fundou a primeira escola pública para surdos. De acordo com Lacerda e Santos (2014), em 1855 iniciou-se a educação de surdos no Brasil com a chegada do francês Hernest Huet a pedido do imperador Dom Pedro II. Em 1870 Alexander Graham Bell publicou vários artigos criticando casamentos entre pessoas surdas, a cultura surda e as escolas residenciais para surdos, justificando que a utilização dessas atividades e da língua de sinais favorecia o isolamento dos surdos na sociedade. Em 1880 aconteceu em Milão o II Congresso Internacional de Surdo-Mudez, para decidir o futuro da educação de surdos no mundo. Nesse congresso ficou estabelecida a proibição da utilização da língua de sinais dando prioridade ao método Oralista e a professores ouvintes ao invés de surdos. Sá (1999, p. 69) comenta que a abordagem educacional oralista visa ―capacitar a pessoa surda a utilizar a língua da comunidade ouvinte na modalidade oral como única possibilidade linguística‖. A educação do surdo acontecia mediante a proposta da aquisição da língua falada, visto que a fala era considerada indispensável para a integração do surdo na sociedade. Após o Congresso de Milão, o uso da língua de sinais acontecia apenas em locais às escondidas, portanto, nunca deixou de ser utilizada por alguns surdos, principalmente nos banheiros e nos quartos onde ficavam longe do campo de visão dos educadores oralistas. Esse período conhecido como obscuro na educação dos surdos durou quase cem anos. Mas percebeu-se que a utilização do Oralismo não obteve sucesso no desenvolvimento da aprendizagem dos surdos. Nos anos 80, teve início os estudos e a aplicação da Comunicação Total que de acordo com Quadros e Stumpf (2015, p. 20) ―visa a utilização de todos os recursos disponíveis para se estabelecer um contato efetivo com a pessoa surda para o aprendizado da língua majoritária‖, dessa forma eram utilizados os gestos, a mímica, a leitura labial, a escrita e a utilização de aparelhos auditivos a fim de se estabelecer de qualquer forma uma comunicação com os surdos. No entanto, com o tempo ficou perceptível que a Comunicação Total não era adequada ao ensino da pessoa surda uma vez que continuava enfatizando principalmente a língua oral, ao invés dos sinais. William Stokoe foi pioneiro em evidenciar que a Língua de Sinais Americana apresentava todos os elementos constituintes das línguas naturais. Ele foi considerado o pai da linguística na língua de sinais e influenciou outras pesquisas que confirmaram que a língua de sinais é importante para a educação de pessoas surdas. Assim, uma nova pedagogia de educação para surdos se concretizou com a utilização do Bilinguismo, que segundo Sá (1999) ―estabelece que o trabalho escolar deve ser feito em duas línguas: a Língua de Sinais como primeira língua (L1) e a língua da comunidade ouvinte local como segunda língua‖, na modalidade escrita do português. Slomski (2010, p.63) comenta que: a educação bilíngue propicia o acesso precoce da criança surda à língua de sinais, o que implicará a criação de um ambiente linguístico sinalizado no qual a inserção de adultos surdos possibilitará a interação natural entre ambos,

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Esse fator facilita o processo de educação de crianças surdas, pois permite a aprendizagem da língua de sinais de forma natural. Isso significa também que tanto no ambiente familiar e principalmente no ambiente escolar deverá haver a valorização da língua de sinais fazendo com que a criança surda desde cedo adquira as habilidades e tenha o contato com a sua língua materna contribuindo desta maneira com a construção da própria identidade através da interação com os professores surdos, tradutores, intérpretes e também professores ouvintes. Pois não são apenas sinais, é uma língua que tem sua formação e estrutura específicas, que foi consolidada e reconhecida por meio de legislação, portanto deve ser considerada prioritária na educação dos surdos. Língua e surdez A língua, de maneira geral, independente da modalidade de produção, é um sistema simbólico e abstrato de elementos estruturados e organizados que permite a comunicação entre os seres humanos. Para Saussure (1969 apud MELO et al, 2014, p.12) a língua ―é, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício da faculdade nos indivíduos‖. Dessa forma, a língua surge em todos os grupos humanos para a comunicação de seus membros, permitindo estruturar e expressar pensamentos e ideias, e é ainda um componente cultural. Como já visto, durante muito tempo aos surdos foi vetada qualquer possibilidade de usufruir de sua língua natural, e ainda de assumir uma identidade, o que trouxe grandes prejuízos à educação de pessoas surdas, incidindo, inclusive, no seu desenvolvimento cognitivo. Os estudos linguísticos acerca das línguas de sinais iniciados pelo linguista William Stokoe na década de 1960 acerca da Língua de Sinais Americana deram às línguas de sinais o status de língua, rompendo com as concepções tradicionais que se referiam a oralidade como a única via linguística humana. Daí em diante linguistas surdos e ouvintes passaram a estudar as línguas de seus países de origem, buscando identificar semelhanças e diferenças entre as línguas de sinais e as orais, tais estudos passaram a reconhecer a língua de sinais como língua natural e materna dos surdos. As línguas de sinais são equiparadas às línguas orais, quando da sua possiblidade de expressividade e complexidade. A diferença significativa reside na modalidade de produção, as línguas de sinais são produzidas pelo canal visuoespacial, enquanto as orais pela modalidade oral-auditiva. Sobre a modalidade das línguas de sinais, Quadros e Schmiedt (2006, p. 14) apontam que: As formas de organizar o pensamento e a linguagem transcendem as formas ouvintes. Elas são de outra ordem, uma ordem com base visual e por isso têm características que podem ser ininteligíveis aos ouvintes. Elas se manifestam mediante a coletividade que se constitui a partir dos próprios surdos.

Todavia, a comunidade majoritária, na qual impera a oralidade, é inflexível à medida que torna inferior qualquer outro sistema linguístico, a exemplo da língua de sinais que ainda com frequência é considerada uma mera forma de comunicação das pessoas desprovidas de audição. Essa rigidez quanto a diversidade linguística faz, consequentemente, com que todos, independentemente de suas possibilidades, se adaptem ao sistema linguístico oral. No caso da Língua Brasileira de Sinais, a despeito da legislação em vigor, esta imposição de adequação se faz através do desconhecimento da maioria dos falantes da língua oral a respeito da língua sinalizada, o que obriga aos surdos buscarem meios de transmitir informações aos ouvintes, principalmente se o contexto social do surdo for constituído quase na sua totalidade por ouvintes. Em relação à aquisição da Língua Brasileira de Sinais, Quadros (2006) aponta que crianças surdas, filhas de pais surdos, que interagem na língua de sinais desde cedo, adquirem a língua manual de forma natural e espontânea, da mesma forma que uma criança ouvinte, filha de pais ouvintes aprende a língua oral.

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Todos esses estudos concluíram que o processo das crianças surdas adquirindo língua de sinais ocorre em período análogo à aquisição da linguagem em crianças adquirindo uma língua oralauditiva. Assim sendo, mais uma vez, os estudos de aquisição da linguagem indicam universais linguísticos. O fato do processo ser concretizado através de línguas visuais-espaciais, garantindo que a faculdade da linguagem se desenvolva em crianças surdas exige uma mudança nas formas como esse processo vem sendo tratado na educação de surdos(KARNOPP e QUADROS, 2001, p. 8).

Portanto, a aquisição linguística não depende especificamente da modalidade da língua, mas da interação com usuários da língua a que a criança está exposta. No caso das crianças surdas, quanto mais cedo estiverem inseridas em contexto de uso efetivo da língua de sinais maior será a fluência na língua, tornando-a primeira língua e base para outras aprendizagens, inclusive a segunda língua, no Brasil sendo a Língua Portuguesa na modalidade de leitura e escrita. O contato precoce com integrantes da cultura surda aumenta as possibilidades do sujeito surdo iniciar a formação de sua identidade o mais cedo possível, evitando, dessa forma, atrasos no seu desenvolvimento integral. Como afirma Fernandes e Correia (2015, p. 18) ―a capacidade humana de significação se apresenta como uma competência específica para a operação, produção e decodificação dos signos, permitindo, através dessa faculdade, a produção de significados‖. Essa capacidade de decodificação dos signos é possibilitada à pessoa surda através da língua de sinais, enquanto meio de comunicação e desenvolvimento cognitivo. A filosofia bilíngue e seus reflexos na formação da identidade e da cultura do surdo Paulatinamente, vêm sendo reconhecidas, social e legalmente, o que se denominou de identidade e cultura surdas, referindo-se às especificidades dos sujeitos surdos. Observando a história da educação desse grupo, pode-se dizer que esse reconhecimento é decorrente de um processo lento e de muitas lutas, e mais ainda que está longe de ser consolidado, uma vez que ainda é perceptível que para muitas pessoas ouvintes, a ausência de audição torna o surdo um sujeito deficiente e desprovido de autonomia, e quanto a língua de sinais desconsiderando-a como um sistema linguístico legítimo. Por cultura entende-se a construção e manifestação de traços peculiares a um determinado grupo social, como a linguagem, normas sociais, valores, ideias, artes, maneiras de estar no mundo e outros aspectos que diferenciam uma comunidade de outras. Dessa forma, percebe-se a existência de uma cultura surda legítima, que possui particularidades inerentes aos sujeitos surdos, compartilhada também por ouvintes que interagem com os usuários privilegiados. Essa cultura tem como base fundamental a aceitação do ser surdo, bem como a aquisição e uso da língua de sinais, no contexto brasileiro a Língua Brasileira de Sinais. Buscando uma definição de identidade, encontra-se nas palavras de Castells (1992 apud HONORA, 2014, p. 81) como sendo uma: fonte de significado e experiência e ainda o produto de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado.

No contexto da surdez a identidade diz respeito ao pertencimento e usufruto dos atributos próprios da cultura surda, como direitos, interesses, modos de vida, construídos ao longo do tempo e que continuam em permanente construção, assim como afirma Gesser (2009, p. 54) a cultura ―é produtiva, dinâmica, aberta plural e está em constante transformação, pois é construída situacionalmente em tempos e lugares particulares‖. Essa pertença social é constituída através da interação com os ―semelhantes‖, compartilhando vivências significativas. Em relação a essa formação identitária, Perlin (2003, apud SILVA, p.81) argumenta: o ser surdo se constitui na própria experiência de si que não é outra coisa senão o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os diversos discursos que definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria interioridade.

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Dessa forma, entende-se que o processo de afirmação da identidade social se constrói com grande influencia da cultura na qual está inserido o sujeito, a partir da aquisição de determinados aspectos, imprescindíveis para inserção social e sobrevivência, como também das experiências pessoais que constroem sua subjetividade. Como já é notório, a língua de sinais é a língua natural e base para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional dos sujeitos surdos. A língua integra fundamentalmente a cultura surda. No âmbito brasileiro, a Língua Brasileira de Sinais é o meio de interação do surdo consigo mesmo, com os demais e com o mundo. Todavia, por se tratar de um grupo minoritário, à comunidade surda é posta a aprendizagem de uma segunda língua, a língua portuguesa, necessária para a integração na comunidade majoritária, caracterizando a condição bilíngue dos sujeitos surdos no Brasil. Diferentemente das propostas do Oralismo e da Comunicação Total, a filosofia bilinguista resguarda o direito à apropriação legítima da língua natural da comunidade surda, fortalecendo a autoestima dos surdos e os traços culturais e identitários que favorecem a permuta de valores e possibilidades de interpretar o mundo. Na educação bilíngue, a Língua Brasileira de Sinais e a Língua Portuguesa são utilizadas em contextos e finalidades específicos. A primeira é a base primordial para todas as outras aprendizagens posteriores, além de proporcionar vivências nas representações da cultura e identidade surda. Já a segunda, na modalidade de leitura e escrita, é essencial para a inclusão dos sujeitos surdos nas experiências com a comunidade majoritária (STUMPF e QUADROS, 2015). A proposta de educação bilíngue no Brasil foi estruturada a partir do Decreto 5.626/2005 que regulamenta a chamada Lei da Libras, lei 10.436/2002, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais como meio legal de expressão e comunicação e demais recursos expressivos associados a ela, além de especificar que a língua de sinais não supre a língua portuguesa na sua modalidade escrita. De acordo com o Decreto 5.626/2005, a organização de escolas e classes bilíngues para garantir a inclusão de alunos surdos e deficientes auditivos, em classes abertas a surdos e ouvintes, deve acontecer desde a Educação Infantil. Na perspectiva de Quadros (1997, p. 91): Considerar a língua de sinais como a primeira língua do surdo significa que os conteúdos escolares devem ser trabalhados por meio dela e que a língua portuguesa, na modalidade escrita, será ensinada com base nas habilidades interativas e cognitivas já adquiridas pelas crianças surdas nas suas experiências com a língua de sinais.

Na condição de sujeitos bilíngues, o importante aos surdos em interação com as duas línguas é o desenvolvimento das habilidades cognitivas, afetivas, linguísticas e sociais. Além disso, Cummins (2003 apud STUMPF e QUADROS, 2015, p. 29) salienta que o bilinguismo favorece ainda o aumento da flexibilidade cognitiva, tendo em vista que a decodificação de informações ocorre através de dois sistemas linguísticos distintos. No contexto brasileiro, de maneira geral, o processo de inclusão do surdo no contexto escolar e a adaptação do sistema educacional às necessidades peculiares ao aluno com surdez vêm se estruturando lentamente. Apesar de estabelecidas as leis que regulam esse processo, o sistema educacional especial e regular, em grande parte das escolas, permanece na perspectiva normalizadora. Principalmente nos centros urbanos menos desenvolvidos, os surdos estão desprovidos do acesso pleno a língua materna e, consequentemente, a educação escolar de qualidade. De maneira geral, a maioria das crianças surdas é oriunda de pais ouvintes que desconhecem a língua de sinais, além de muitas vezes possuírem preconceito quanto a essa aprendizagem e o contato com outros surdos e a cultura proveniente da comunidade ocorrer tardiamente, protelando também a construção da própria identidade, fato este que também provoca prejuízos na aprendizagem da segunda língua. O contato com a língua de sinais para a maioria dos surdos acontece apenas no início da fase de escolarização e ainda se a escola estiver preparada para recebê-los. Diferentemente dos alunos ouvintes que chegam à escola com conhecimentos da língua materna, adquiridos na convivência desde cedo. Outra questão que é apontada por Quadros (2015, p. 32) é que: 125 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


as propostas bilíngues estão estruturadas muito mais no sentido de garantir que o ensino de português mantenha-se enquanto a língua de acesso ao conhecimento. A língua de sinais brasileira parece estar sendo admitida, mas o português mantém-se como a língua mais importante dos espaços escolares. Inclusive, percebe-se que o uso ―instrumental‖ da língua de sinais sustenta as políticas públicas de educação de surdos em nome da ―inclusão‖. [...]. A língua de sinais, ao ser introduzida dentro dos espaços escolares, passa a ser coadjuvante no processo, enquanto o português mantém-se com o papel principal. As implicações disso no processo de ensinaraprender caracterizam práticas de exclusão.

Todavia, ressalta-se que o processo de inclusão de maneira geral, não se tratando exclusivamente de alunos com necessidades especiais decorrentes da surdez, ocorre muito lentamente. Considerando o processo histórico de educação de surdos, pode-se afirmar que a proposta bilinguista é ―recente‖ no Brasil e sua consolidação de maneira a garantir o atendimento de qualidade aos objetivos a que se propõe acontece a passos lentos. Os surdos desejam afirmar sua identidade e cultura através da língua enquanto instrumento de atuação social, ou seja, de poder. Um exemplo disso é a importância de que alunos surdos tenham contato o mais cedo possível com outros alunos e professores surdos para a aprendizagem estruturada da língua de sinais e imersão na cultura surda. Diante das evidências que a comunidade surda é possuidora de cultura e identidade próprias é inquestionável a necessidade de mudanças na estrutura da educação bilíngue proporcionada aos sujeitos surdos de maneira a auxiliar a desenvolver nos indivíduos o pertencimento ao ―Ser Surdo‖, ao tempo em que estarão imersos numa segunda cultura que proporcionará o acesso ao conhecimento advindo da Língua Portuguesa na modalidade escrita. Dessa forma, entende-se que o Bilinguismo perpassa uma perspectiva meramente linguística, torna-se uma questão de ordem social, cultural e política. Considerações finais Através do estudo realizado neste trabalho percebeu-se que a educação de surdos ao longo do tempo vem passando por evoluções que envolvem questões relacionadas à superação do preconceito, da discriminação e da exclusão, mas que aos poucos foi dando lugar à aceitação, reconhecimento e valorização da língua de sinais por parte da sociedade. Apesar de que durante muito tempo os surdos foram maltratados e escondidos da vivência social, eles persistiram e não deixaram de lutar por aquilo que lhes era de direito, a utilização de uma forma de comunicação que permitisse sua verdadeira integração social, pois a língua de sinais é a libertação de um mundo que gira em torno da língua falada, da maioria ouvinte. A língua de sinais no contexto de educação bilíngue permite a interação social do surdo, sua integração com o mundo falante, fazendo romper as barreiras da comunicação entre surdos e ouvintes. Além disso, a educação bilíngue contribui com a construção da sua identidade, principalmente quando o surdo desde criança está inserido na comunidade surda, na qual possa aprender a língua de sinais naturalmente, na convivência com pessoas que lhe transmitam o verdadeiro valor que eles têm na sociedade, ao invés de crescerem em um meio de ouvintes que veem o surdo como deficiente. Na comunidade surda esta criança e também o adulto compartilham de uma cultura na qual o surdo é sujeito agente, que está inserido em uma sociedade na qual pode conviver normalmente, em que sua língua materna é indispensável para a comunicação e a língua escrita é necessária para que possa estabelecer melhores interações com a sociedade ouvinte. No entanto, observa-se que mesmo tendo adquirido status de língua e que as comunidades surdas já façam parte da vida de muitos surdos, ainda há muito o que ser feito. A proposta de educação bilíngue exige mudanças imediatas no contexto atual, na medida em que se trata de uma questão que envolve diversos âmbitos sociais.

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Disponível

em:

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DISCURSO E IDENTIDADE: UMA ANÁLISE DA COBERTURA DA RÁDIO CBN NA CONQUISTA DA MEDALHA OLÍMPICA DA 1 JUDOCA RAFAELA SILVA Rute Dâmaris da Silva Freitas2 RESUMO Este trabalho visa analisar as estratégias de discurso da Rádio CBN (Central Brasileira de Noitícias) na cobertura da conquista da medalha de ouro da judoca Rafaela Silva, nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Com isto, pretende identificar a construção de identidade em torno da atleta através de reportagens publicadas no site da emissora (cbn.globoradio.globo.com). A medalha de Rafaela Silva adquire o sentido de um feito heróico na mídia esportivo, por ser a primeira conquista de ouro da delegação brasileira no evento e por carregar uma série de significados: a atleta é negra e sofreu racismo nas Olimpíadas de Londres (2012), onde foi eliminada precocemente. A imprensa usa de um discurso de superação e identificação e usa principalmente elementos como sua família para criar uma identidade com o ouvinte. São analisadas quatro matérias em áudio, postadas no mesmo dia da luta (08/08/2016), porém, depois da conquista do ouro. Para o trabalho utilizamos como método a Análise de Discurso Crítica (ADC), que além de analisar profundamente os discursos, propõe ao pesquisador um posicionamento crítico na pesquisa. Nos apoiamos nos textos de Fairclough (2001), Resende (2009), Resende e Ramalho (2006) além de outros autores. Utilizamos autores como Giddens (2002), Castells (1999) e outros que lidam com o conceito de identidade, porque tratamos sobre essa questão, a partir dos discursos reproduzidos no rádio. Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica (ADC), Discurso e identidade, Rádio, Olimpíada.

Introdução

O

objetivo de nossa pesquisa é identificar elementos de construção de identidade nos discursos da rádio CBN (Central Brasileira de Notícias) sobre a judoca Rafaela Silva. A nossa proposta é a analisar quatro reportagens publicadas no site da rádio (cbn.globoradio.globo.com) durante a cobertura da conquista da medalha de ouro da judoca (o material analisado corresponde ao que foi publicado no dia da luta, em oito de agosto de 2016, mas depois da vitória da judoca). Apesar de ser um corpus aparentemente reduzido, é importante destacar que como se trata de um material em áudio, temos 11 minutos e 29 segundos. O material é composto por duas entrevistas pós-luta, um ―ao vivo‖ do local, e a primeira reportagem resumindo a conquista. Para realizar a análise utilizamos a Análise de Discurso Crítica (ADC) como aporte teóricometodológico, levando em conta a interação entre o texto e as práticas sociais e os aspectos linguísticos, para isso foi feito uma transcrição dos áudios. Ao formular uma posição crítica da análise e aliar aspectos linguísticos, sociais e identitários, a ADC nos diz que nos textos e discurso (principalmente nos textos jornalísticos) estão contidas muitas fórmulas para entender o indivíduo em suas relações sociais. O que nos interessa, entretanto, é essa relação dialética e intrínseca entre o discurso e a construção de identidade. De inicio no texto, vamos falar um pouco mais sobre a ADC e suas principais propostas, como a concepção tridimensional do discurso: o texto, a prática discursiva e as práticas sociais e os três significados do discurso. Longo em seguida abordaremos a questão da identidade e como ela está constituída, exploramos a relação entre linguagem e identidade, e entre discurso e identidade, o primeiro no sentido de representação e o segundo no sentido de construção. Outro ponto importante é a dificuldade de conceituar identidade em meio a 1

Trabalho apresentado no GT Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: rute.damaris@hotmail.com. 128 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


modernidade, onde os sujeitos não estão mais fixos em um centro, mas procuram se encontrar meio a um jogo de identidades. Fazemos também uma reflexão acerca do conceito de atores sociais no discurso e o modo como eles estão constituídos e relacionados com os aspectos de identidades. O item seguinte trata do discurso radiofônico e dos sentidos produzidos por ele. Por fim, fazemos a análise do objeto e como a rádio CBN tentou construir através de suas reportagens uma identificação entre a figura de Rafaela Silva e o público. Utilizando principalmente aspectos que tratam da família e de uma história de superação. Análise Crítica de Discurso (ADC) Seguimos nesta pesquisa a concepção crítica da Análise de Discurso na linha de Fairclough (2001), que propõe na Análise de Discurso Crítica (ADC) uma Teoria Social do Discurso, onde questões políticas e sociais estariam integradas na linguagem, e a linguagem estaria estruturada por uma relação dialética entre indivíduos e situações. Fairclough (2001) cita que por causa dessa relação dialética entre discurso e estrutura social, ou, entre prática social e estrutura social, o discurso é pensado como um modo de ação do indivíduo sobre o mundo e sobre os outros, assim como uma forma de representação do indivíduo. O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que direta ou indiretamente molda o indivíduo, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado. (FAIRCLOUGH, 2001, p.91)

As estruturas ordenam a produção discursiva nas sociedades e ao mesmo tempo, os novos enunciados individuais são uma ação sobre essas estruturas, eles mudam ou seguem com as formas subsequentes de ação. Na análise crítica, o analista deve tomar um posicionamento distante dos dados e da realidade ao mesmo tempo em que deve tomar um posicionamento político e colocar o foco na autorreflexão. Ele não só analisa e toma uma posição, mas também exige mudanças (WODAK 2004). A Análise de Discurso Crítica ou a Teoria Social do Discurso segue a linha de estudos da Linguística Crítica Funcional (LSF). Além de tomar a ideia dos textos como um sistema estruturado que se abre para o meio social, a ADC também traz reformulações em relação às funções da linguagem propostas por Halliday em 1991. Fairclough (2003 apud RESENDE; RAMALHO 2006) propõe três significados do discurso: o texto nas interações sociais, questionando ou legitimando as relações sociais, aqui também inclusos elementos textuais (significado acional). O texto como representação dos aspectos do mundo tanto físicos, mental, como social (significado representacional). E por último, as identidades construídas e negociadas no discurso (significado identificacional). A partir disso, para fins analíticos, o autor defende uma análise de discurso que contém três focos baseados na interação comunicativa, uma é a análise da interação orientada pelos textos. Outro é uma interpretação de outros discursos nos textos (interdiscurso) e as ordens do discurso – ―o aspecto semiótico de uma ordem social‖ (FAIRCLOUGH, 2012). Por último, temos uma análise social orientada de estruturas sociais e práticas socioculturais (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999 apud RAMALHO 2005). Estamos então em uma concepção tridimensional do discurso, que como o próprio nome revela contém três principais facetas do discurso, que resumidamente estão estruturados: o texto, a prática discursiva – produção, distribuição e consumo do texto -, e a prática social, relações dos indivíduos e onde tudo estaria incluído. A prática discursiva está presente nas formas linguísticas, nos textos falados ou escritos. Ela é uma forma particular da prática social (FAIRCLOUGH 2001). A prática social e o texto são dimensões do evento discursivo que se volta para os vetores dos ambientes econômicos, políticos e instituições particulares (RESENDE; RAMALHO 2011). 129 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


As práticas funcionam como um momento de ligação entre essas estruturas sociais e os eventos, entre a sociedade e as ações das pessoas dentro dela. Nas estruturas, nas práticas e nos eventos, a linguagem se faz presente como parte essencial através dos discursos. A questão da identidade A noção de identidade e sua concepção nos dias atuais não é uma tarefa fácil para desvendar, visto que o conceito vem passando por diversas mutações e caracterizar a identidade seria como dar um rosto ao que não podemos ver. Para Silva (2000, p.74), em uma perspectiva simples, ―a identidade é aquilo que se é, uma positividade, autônoma e autossuficiente‖. Por exemplo: sou brasileiro, sou negro, sou homem e etc. Em um viés social, Castells (1999, p.22) entende identidade como ―fonte de significado e experiência de um povo‖. Ele, porém, admite que mesmo que identidade esteja ligada as culturas de um povo, o indivíduo pode entrar em conflito por haver muitas fontes de significados. (...) entendo por identidade o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o (s) qual (ais) prevalece (m) sobre outras fontes de significado. Para um determinado indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode haver múltiplas. No entanto essa pluralidade é fonte de tensão e contradição tanto na auto representação quanto na ação social (CASTELLS, 1999, p. 22).

O que mostra também que identidade está constituída por luta de poder e dominação, em que os significados entram em disputa. A posição do indivíduo parece imposta e pode levar a um conflito quando existe resistência, por exemplo. Linguagem e identidade A identidade e a língua (como um signo social) estão em uma relação dialética. Consequentemente, a mesma relação é estabelecida dentro do sistema de relações sociais. Nesse contexto social, as identidades são estabelecidas e representadas por meio de sistemas linguísticos, mas existem tantos símbolos culturais, tantas identidades, que elas se tornam um jogo bastante disputado. A identidade depende de identidades opostas e de fatores externos a ela para se diferenciar. Segundo Woodward (2000) ela é marcada também por aquilo que é diferente. Diferença essa, que é sustentado por meio da exclusão. Para Silva (2000) a identidade e a diferença (aquilo que não somos e que também constitui a nossa identidade) são criaturas do mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos, no contexto de relações culturais e sociais, através de atos de falas as instituímos. E por isso para compreender a identidade e a diferença temos que posicioná-las ―dentro dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido. Não são seres da natureza, mas da cultura e dos sistemas simbólicos que a compõem‖. (SILVA, 2000, p,78) A noção de constituição de identidade dentro do sistema linguístico nos leva a sua composição dentro do conceito de identidade nacional, já que a língua de um povo é um dos símbolos de uma nação. Juntamente com a língua, é central a construção de símbolos nacionais: hinos, bandeiras, brasões. Entre esses símbolos, destacam-se os chamados ―mitos fundadores‖. Fundamentalmente, um mito fundador remete a um momento crucial do passado em que algum gesto, algum acontecimento, em geral heroico, épico, monumental, em geral iniciado ou executado por alguma figura ―providencial‖, inaugurou as bases de uma suposta identidade nacional. Pouco importa se os fatos assim narrados são ―verdadeiros‖ ou não; o que importa é que a narrativa fundadora funciona para dar à identidade nacional a liga sentimental e afetiva que lhe garante uma certa estabilidade e fixação, sem as quais ela não teria a mesma e necessária eficácia. (SILVA, 2000, p. 85)

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A constituição de identidade através da linguagem se dá através de proposições que são pronunciadas e que fazem com que alguma coisa aconteça, essas proposições são repetidas, muitas vezes de forma despercebidas pelos sujeitos e contribuem para definir e reforçar identidades. Toda essa luta de poder e significados de identidades no contexto social, está marcado pela questão de representações de identidade, momento em que elas passam a existir. ―Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade‖. (SILVA, 2000, 91) Na representação as práticas de significação e os sistemas simbólicos são capazes de produzir significados e posicionando-os como sujeitos. Através desse sistema de significados ―damos sentidos à nossa experiência e aquilo que somos e aquilo em que podemos tornar‖ (WOODWARD 2000). Isso porque a representação é tida como um processo cultural onde estabelece identidades culturais e coletivas e os sistemas simbólicos no qual está alicerçado e responde a perguntas particulares, como ―quem sou eu?‖. ―Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar‖ (WOODWARD, 2000, p. 17). A legitimação de determinada identidade ocorre por uma referência ―a um suposto e autêntico passado‖, muitas vezes glorioso, mas capaz de validar a identidade a ser reivindicada. ―Uma das formas pelas quais as identidades estabelecem suas reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos‖ (WOODWARD, 2000, p. 11). Mas essa reflexão do passado é algo natural parte da construção de identidades que está acontecendo em um momento exato e que se dá por conflito, contestação ou uma possível crise. ADC e identidade Como vimos anteriormente, Fairclough (2001) pensou em dar destaque a identidade quando separou

função identitária e relacional a partir da função interpessoal. Ele quis demonstrar ―como as identidades são construídas (reproduzidas, contestadas e reestruturada) no discurso‖ (FAIRCLOUH, 2001, p. 175). Ao mesmo tempo, ele faz uma crítica aos estudos de identidade, por eles darem mais importância ao sentido ―expressivo‖ do discurso, a função emotiva ou expressiva da linguagem, em que os sujeitos expressam as coisas, seus sentimentos e atitudes a elas, as características expressivas do significado das palavras‘ (FAICLOUGH, 2001, p. 209). Mas, segundo ele focalizar apenas nesse sentido reduz a função identitária da linguagem com uma parte menor da função interpessoal. Quando se enfatiza a construção, a função da identidade da linguagem começa a assumir grande importância, porque as formas pelas quais as sociedades categorizam e constroem identidades para seus membros são um aspecto fundamental do modo como elas funcionam como as relações de poder são impostas e exercidas, como as sociedades são reproduzidas e modificadas. Focalizar a expressão, por outro lado, marginalizou completamente a função de identidade como aspecto menor da função interpessoal (FAIRCLOUGH, 2001, p. 209).

As identidades adquirem um sentido muito mais que apenas aspectos intrínsecos e ―subjetivos‖, ela é exercida por representações sócias sociais e simbólicas, e o pesquisador precisa estar atento em entender esses aspectos. Fairclough (2001) chama a atenção para o fato de as pessoas se identificarem e serem identificadas por outro no discurso. Ou seja, ―o significado identificacional está ligado não apenas ás identidades, mas também a identificação de outrem, o que enfatiza a relação entre identificação e relações sociais‖ (FAIRCLOUGH, 2003 apud RESENDE, 2009, p.41). Os discursos manifestam identidades, e aspectos de identidades estão manifestados no discurso e essa relação leva a pressuposições onde as pessoas se identificam. Aqui reside outro perigo em relação aos estudos de identidade. De acordo com Resende (2009) os discursos não se limitam a representação, mas também na construção de identidades na relação dos significados representacional e identificacional. A grande diferença entre identificação e representação está na fluidez, ―não há fronteiras rígidas entre os significados, ao contrário, há fluidez‖ (RESENDE, 2009, p. 40), o modo 131 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


como as realidades sociais estão expostas está associado às formas de identificar e se identificar nessas realidades. Esse lugar em que o sujeito reflete sobre si mesmo e suas identidades se chama reflexividades (CHOULIRIAKI; FAIRCLOUGH, 1999, apud RAMALHO; RESENDE, 2006, p. 34). Esse conceito passa por ajustes no período da modernidade já que os autores sociais se utilizam da reflexividade que vêm de fora para adquirir informações. Identidade na modernidade A principal mudança na esfera da identidade na modernidade é a conexão entre o local e o global. ―A globalização unifica a comunidade humana como um todo - até certo ponto por causa da criação de riscos de alta consequência a que ninguém que viva na Terra pode escapar‖ (GIDDENS, 2002, P. 207). Giddens (2002) dá um outro sentido a reflexividade ao entender esse processo dentro da modernidade como uma ―incorporação rotineira de conhecimento ou informação novas em situações de ação que são reconstituídas ou reorganizadas‖ (GIDDENS, 2002, p. 221) é o que ele chama de reflexividade institucional. Em que, as instituições da modernidade constituem as auto identidades, mas também acontecem o contrário. A modernidade em seus aspectos mais abrangentes é capaz de contribuir para divisões de classes sociais e outros fatores que causam separação e desigualdades, como gêneros e etnias, fatores que ―podem ser em parte definidas em termos do acesso diferencial a formas de autorrealização e de acesso ao poder‖ (GIDDENS, 2002, p.13). Por isso, a modernidades é responsável pela ―diferença, exclusão e marginalização‖. Tudo isso está englobado em um conceito mais amplo de Giddens, o de reflexividade da modernidade. Onde ―Cada um de nós não apenas ―tem‖, mas vive uma biografia reflexivamente organizada em termos do fluxo de informações sociais e psicológicas sobre possíveis modos de vida‖ (GIDDENS, 2002, p. 20). A mídia é tida como principal responsável por essa ―crise‖ da reflexividade dos sujeitos. As formas simbólicas são retiradas ou desencaixadas de seus contextos originais e recolocadas ou recontextualizadas em variados contextos, nesses locais, outros atores decodificam essas informações, indivíduos que têm acessos a esses bens simbólicos (RAMALHO; RESENDE, 2006, p. 32). O conceito de reflexividade refere-se à possibilidade de os sujeitos construírem ativamente suas auto identidades na vida social. Por outro lado, identidades sociais são construídas por meio de classificações mantidas pelo curso. E assim, como são construídas discursivamente, identidades também podem ser contestadas no discurso (RAMALHO; RESENDE, 2006, p.34).

Não basta afirmar que o indivíduo reflete sobre si mesmo, ele também é construído discursivamente, assim como utiliza do discurso para contestar identidades. Os atores sociais no discurso Esse conceito de atores sociais nos esclarece sobre a posição dos sujeitos no discurso. Os atores sociais dentro das práticas discursivas podem ter papel ativo e passivo. Eles são ativos quando são representados por forças ativas e dinâmicas numa atividade, e são passivos quando são representados como submissos a uma atividade ou como receptores de uma ação (VAN LEEUWEN 1997, p. 187). Os atores sociais também podem ser representados em classes ou como e identificável. Também como indivíduos (no caso a individualização), ou em grupos (a assimilação). Na agregação os grupos de participantes são quantificados e tratados com ―dados estatísticos‖, e na individualização eles são tratados separadamente (VAN LEEUWEN, 1997, p. 194-195). Os indivíduos podem ser indeterminados, isso acontece quando eles são representados por indivíduos ou grupos não-especificados ou podem ser ―anônimos‖ quando os atores são determinados e de alguma forma especificado, em uma análise essa indeterminação do sujeito é percebido através dos pronomes indefinidos (VAN LEEUWEN, p.198). 132 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A percepção dos atores sociais no discurso nos ajudam no processo de identificação, tida como o lugar onde os atores sociais estão explicitamente definidos como aquilo que fazem, e o que são (VAN LEEUWEN 1997 p.202). São três tipos: classificação, identidade relacional e identificação física. Na identificação relacional, os atores sociais são representados por suas relações pessoais, familiares ou de trabalho que têm entre si, e que é demarcada por um conjunto de substantivos como: ―amigo‖, ―tia‖, ―colegas‖ e outros. Já a identificação física representa os atores sociais a partir de características físicas que os identificam e o diferenciam em um determinado contexto. Na classificação, os atores sociais são referidos pelas principais categorias que a sociedade ou instituição diferencia classes de pessoas: pobre, rico, alfabetizado, analfabeto, torcedores e outros. Outra subcategoria é o da impessoalização, quando os atores sociais são representados por outras formas gramaticais, como substantivos abstratos ou substantivos concretos, que lhes tiram a característica semântica humana e os tornam abstratos - uma qualidade pelo qual são representados - e objetificados - são representados por meio de uma referência a um local ou coisa diretamente associada à sua pessoa ou a atividade a que estão ligados (VAN LEEUWEN, 1997). A linguagem do rádio Ao analisar reportagens veiculadas no rádio é preciso dar importância às características do veículo, isso porque de acordo com Jung (2013) a situação em que o repórter estiver afeta na forma como o fato é noticiado. ―Se cobrir um levante civil, certamente deverá refletir na voz a situação de estresse que vivencia‖ (JUNG, 2013, p.121). Outro fator que afeta é o próprio estilo que a emissora exige do repórter. A rádio CBN, por exemplo, criou um estilo próprio com os seus repórteres, uma das características bem interessante é o uso de constantes ―ao vivo‖, principalmente na cobertura de eventos. Exposto a esse tipo de emoção o repórter passa a ideia de que está sentindo o momento da notícia características que são bem mais visíveis quando se trata de um evento esportivo como a Olimpíada. Em uma análise de uma notícia radiofônica, portanto, temos que verificar quais os sentidos estão presentes naquela mensagem pela forma como ela é dita (a imposição vocal). A simples emissão da voz faz com que uma frase tenha vários sentidos diferentes. Na leitura da notícia, o grifo na palavra é feito com o reforço da intensidade da voz, articulação mais precisa e velocidade mais lenta. (JUNG, 2013, p. 120) Outros elementos de veiculação da mensagem são os efeitos sonoros, som ambiente e música também ajudam a dar diferentes significações à notícia e a partes do texto importância maior ou menor. A mensagem ouvida ―se converte na principal referência que se deve ter em conta para entender as peculiaridades da linguagem e da comunicação radiofônica‖ (MARCHAMALO; ORTIZ, 2005, 20). Dentro do rádio também podem estar presentes vários tipos de linguagem: - A linguagem falada, ou seja, a palavra. - A linguagem da música, também chamada de linguagem das sensações. - A linguagem dos sons e dos ruídos propriamente ditos. Para alguns autores, a descrição desse tipo de comunicação coincide com a linguagem das coisas. - E, finalmente, a linguagem do silêncio (MARCHAMALO; ORTIZ, 2005, p.20)

Essas linguagens combinadas são capazes de estimular o cérebro e criar imagens sobre o que está sendo ouvido. O modo como a voz está sendo utilizada pelo emissor, afeta esse processo. ―(...) quatro são os fatores que influem de modo especial: a vocalização, a entonação, o ritmo e a atitude‖. (MARCHAMALO e ORTIZ, 2005, p.23). Por isso nesse tipo de mensagem o emissor transmite também sua ―personalidade, sua avaliação dos acontecimentos ou sua visão da realidade‖ (MARCHAMALO; ORTIZ, 2005, p.23).

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A análise A análise foi realizada em quatro reportagens postadas no site da rádio CBN sobre a conquista da medalha de ouro da judoca Rafaela Silva, no dia oito de agosto de 2016. Na ocasião a atleta ganhou a primeira medalha de ouro para o Brasil, logo após sua conquista, foram se revelando detalhes da sua vida explorados na imprensa, como sua origem na Cidade de Deus no Rio de Janeiro, e sua derrota na Olimpíada em Londres 2012. Das quatro reportagens, duas são entrevistas sem edição de áudios, mas que tem um significado interessante, por que falam da superação da atleta, e por serem colocadas de forma separadas induzem um destaque a fala dela. Uma delas (com o título: ―Eu ia desistir do judô depois da derrota em Londres, diz Rafaela Silva‖). A entrevistada fala sobre o trabalho psicológico e que isso lhe deu segurança para as lutas, ―todo mundo comenta que minha cabeça é o diferencial‖. Como falamos nos itens acima existe uma busca ao passado que valida uma identidade de um determinado símbolo. Assim como na outra entrevista (―Rafaela Silva saía do treino chorando porque queria medalha‖), onde há uma legitimação à vontade da atleta para superar o que ela havia passado, os repórteres induzem a uma resposta da entrevistada. ―O que você diria para a garotada que está se inspirando em você? (...) Tudo parece impossível e improvável aí você vai lá e mostra o que é‖, perguntou um dos repórteres. O que leva a uma resposta de Rafaela, sobre sua vida, sobre crescer na comunidade, e sobre a falta de oportunidades e seu exemplo é o que naquele momento ela pode mostrar o que é ―uma criança que saiu da comunidade com cinco anos, começou a fazer judô por brincadeira e hoje é campeã mundial e olímpica‖. A judoca é sempre tratada no modo de individualização, identificada pelo seu passado e pela sua vitória, ela tem o poder da ação em relação ―a garotada‖. Nessas duas entrevistas podemos afirmar, que os repórteres tentam estabelecer ao que Van Leeuwen classificou de identidade relacional e a qual falamos nos itens anteriores. Pode ser que os ouvintes não se sintam identificados, mas o que ocorre é que há uma tentativa de relacionar a vida (familiar, de lutas, pobreza, dificuldades) de Rafaela Silva ao dos torcedores. Na terceira reportagem (―Rafaela Silva dá ao Brasil o primeiro ouro da Rio 2016‖), o repórter inicialmente fala sobre as ―derrotas‖ do judô nos dois dias anteriores, e que o judô estava pressionado para conquistar uma medalha. A narrativa nos lembra de uma história de contos de fadas. Usando verbos como ―começou‖ e depois ―terminou‖ que caracterizam a história de uma final feliz. E mais uma vez destacando a luta pessoal da atleta, que estava em um lugar de sofrimento, mas que consegue chegar ao topo. O repórter também afirma que durante a vitória, Rafaela teria relembrado toda a sua vida, desde pequena, e que se não fosse o judô ―poderia estar em um caminho bem mais nebuloso‖. Rafaela é representada tanto pelo que ela é (uma menina pobre, que teve uma infância difícil, como aquilo que ela ganhou a luta). Outro recorte da pesquisa é uma transmissão ―ao vivo‖ que foi disponibilizado no site (―Rafaela Silva encontra a família após o ouro Olímpico‖). Além das falas do repórter e do locutor da transmissão, também estão contidas falas do pai, da mãe, da irmã, do técnico e da própria Rafaela. Existe só aqui uma intenção de realizar uma identidade relacional, de criar uma ideia de família e ligar isso com o ouvinte. É interessante destacar que logo no início o locutor chama o repórter para uma ―roda de conversa‖, o que deixa a sensação de que todos os sujeitos, além do ouvinte, estão incluídos em um bate-papo. Esse talvez seja um dos materiais mais interessantes, porque a todo momento o repórter descreve a situação do ginásio, da família da atleta e dele mesmo de estar ali. Como falamos no item ―A linguagem do rádio‖, essa característica leva o ouvinte para a emoção do momento, os ruídos do ginásio, o barulho da torcida, a descrição da cena, deixa uma sensação de estar vivenciando o momento. E repórter se propõe a participar e se incluir em uma situação pessoal e familiar, como quando chega a se convidar para comer uma macarronada, quando diz ser o primeiro a entrevistar a judoca depois da medalha, quando descreve o reencontro da família, e da emoção de ter tocado na medalha (―Estou emocionado porque ela deixou eu tocar na medalha de ouro. Um momento único, minha primeira cobertura de olimpíada‖ / ―Queria transmitir a emoção que eu tive na conversa que eu tive com os pais da Rafaela, coração batendo a

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mil‖) além de uma tentativa de identificação relacional, é posto também na medalha um simbolismo de orgulho e que está no mais alto patamar da glória nacional. Ao mesmo tempo ele tenta colocar e relembrar a história de Rafaela, e com perguntas que chegam a induzir ou dar um significado da fala do outro, como quando pergunta ao pai se ele tem ―orgulho máximo‖ da filha. Quando a torcida começa a gritar que Rafaela é maior que o jogador brasileiro Neymar, locutor e repórter concordam e há uma discussão em torno disso. Ora, estão aqui discutindo quem melhor representa o Brasil, quem deveria ser um ―símbolo nacional‖ como falamos acima, em quem os brasileiros devem se identificar. Rafaela denominada de diamante, uma impessoalização da figura da atleta, se torna um símbolo de preciosidade naquele momento. ―Aconteceu em num momento super abençoado, super elogioso (o reencontro com a família), a família estava muito empolgada. E por onde ela passa aqui no parque olímpico, o momento é de emoção total, todo mundo sensibilizado (em relação aos torcedores), tem muita gente chorando só da chegada, porque tem o somativo, além da conquista, a emoção também pela humildade‖ diz o repórter enfatizando que a medalha de Rafaela está carregada por simbolismos de sua história. Em relação à classificação de identidade, Rafaela é classificada de ―judoca‖, ―atleta‖ e ―medalhista‖, sua história como ―superação‖, em seu passado ―pobre‖ ―difícil‖ e seu presente como ―abençoado‖, ―orgulhoso‖. Além disso tem a tentativa de uma identidade relacional que como falamos a cima refere-se a ―suas relações pessoais, familiares ou de trabalho‖ que no discurso tenta-se relacionar com os familiares e torcedores. Conclusão Durante essa pesquisa tentamos identificar nos discursos da Rádio CBN, elementos que propõe a construção de identidades através da figura de Rafaela Silva. Percebemos inicialmente que o veículo usa elementos textuais como vocabulários, indagações e outros e elementos estratégicos para tentar realizar uma identificação de Rafaela com o ouvinte. Mesmo que questão de identificação seja tomada com muito cuidado, porque para verificar se houve ou não é preciso estudar o ouvinte da Rádio, mas aqui a tratamos como tentativa do veículo em realizar o processo. Podemos afirmar também que os elementos discursivos que a rádio usa para se referir a Rafaela criam nela um símbolo de identidade nacional. ―Negra‖, ―pobre‖ e sua história de ―crescer em uma comunidade‖, ser ―derrotada‖ e depois ―conquistar o ouro‖ são características que dão a ela uma abstração para que ela se torne uma referencia de superação aos brasileiros. Principalmente aqueles que tem uma situação parecida com a da atleta. Além das estratégias textuais, a estratégia de usar ―ao vivo‖ e entrevistas da atleta nos oferecem uma representação do real, e leva o ouvinte para o momento do fato, e pode levar a uma identificação com a ―emoção‖ do momento. Podemos concluir que a rádio CBN faz, através de seu discurso, uma construção da identidade de Rafaela Silva, buscando elementos acional e pessoal da atleta para tentar realizar uma identificação com o ouvinte. As identidades da atleta são forjadas através de um discurso que narra a história pessoal da atleta e vitória para a conquista do ouro para assim criar a imagem de alguém que mesmo pobre conseguiu chegar a um patamar e que é motivo de orgulho. Referências CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 3 ed. São Paulo, SP: Paz e Terra. 1999. Cap. 1, 21-24. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social.1 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. 135 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


____________________. Análise Crítica do Discurso como método em pesquisa social científica. Linha D‘Água, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 307-329. 2012. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/47728/51460>. Acesso em: 24 abr. 17. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. JUNG, Milton. Jornalismo de Rádio. São Paulo: Contexto, 2013. ORTIZ, Miguel Ángel, MARCHAMALO, Jesús. Técnicas de Comunicação pelo rádio: a prática radiofônica. São Paulo: Edição Loyola, 2005. RAMALHO, Viviane. Constituição da Análise de Discurso Crítica: um percurso teórico-metodológico. In: Revista Signótica. UFG. v. 17, n.2, 2005. Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/sig/article/view/3731/3486>. Acesso em: 20 de dez. 2016. RESENDE, Viviane de Melo, RAMALHO, Viviane. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006. ______. Análise de discurso (para a) crítica: o texto como material de pesquisa. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011. SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tadeu (orgs.). Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. 5 ed. Petrópolis, RJ, 2000. VAN LEEUWEN, Theo. A representação dos atores sociais. In: PEDRO, Emília Ribeiro (orgs). Análise Crítica do Discurso: Uma perspectiva sociopolítica e funcional. Lisboa: Caminho, 1997. Cap. 5, p. 169-222. WODAK, Ruth. Do que se trata a ADC: Um resumo de sua história conceitos importantes e seus desenvolvimentos. In: Linguagem em (Dis)cursos. Tubaraão. V.4, n especial, 2004. Disponível em: < http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/297/313>. Acesso em: 27 de out. 2016 WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tadeu (orgs.). Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. 5 ed. Petrópolis, RJ, 2000.

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“NÃO VAI PODER IR NO MARACANÔ: FUTEBOL, IDENTIDADE(S) E MODERNIDADE1 Joaquim Kayk Breno Conrado2 Mayra Izaura de Moura3 RESUMO O presente artigo tem como objeto central o Futebol brasileiro durante a década de 2010, através da análise em torno das novas configurações dos espaços e das associativas de torcedores. Assim, o futebol moderno funciona como eixo condutor para o entendimento frente à inversão de valores vista nas arquibancadas das novas arenas. O esporte, antes pertencente ao povo, marginalizado e usado como dispositivo de controle das massas, passa a ganhar nova conotação após, principalmente, a Copa do Mundo de 2014. Com as novas arenas, o público vem passando por uma metamorfose: a massa vem dando lugar à elite, as gerais foram substituídas por poltronas confortáveis e os ambulantes de comida deram espaço a restaurantes cada vez mais ―gourmetizados.‖ Dessa forma, utiliza-se como fontes as crônicas esportivas produzidas pela imprensa esportiva brasileira durante esse período, sobretudo as crônicas publicadas no jornal Folha de São Paulo entre 2002 a 2014. Nesse sentido, discute-se a relação entre o futebol e a imprensa e as relações tecidas pelo futebol no âmbito das representações sociais. Palavras chave: História; Futebol; Modernidade; Imprensa; Crônica Esportiva.

Introdução

N

os últimos anos, principalmente na virada da década de 2010, os estádios de futebol passaram por grandes reformas, visando adequar-se aos padrões exigidos pela FIFA, tendo em vista a Copa do Mundo de 2014, na qual o Brasil foi o país sede. Nas principais capitais do país, sobretudo nos eixos Sul e Sudeste, onde o futebol possui maior visibilidade quando comparado a outros locais nos quais não há um desenvolvimento econômico tão grande, vem surgindo uma modificação no público que freqüenta os estádios de futebol, que, após grandes reformas, passaram a ser chamados de arenas.4 A modernização trouxe modificações tanto estruturais quanto de serviços. Com isso, as novas arenas passaram a se diferenciar dos antigos estádios. Na Inglaterra, ao longo da década de 1990, as arenas esportivas sofreram grandes modificações arquitetônicas, quando não eram inteiramente reconstruídos, com vistas a atomizar e conter a movimentação do público.5 Aqui, no Brasil, as arquibancadas – as famosas gerais – foram substituídas por cadeiras (nem sempre confortáveis), houve um aumentado número de camarotes, foram classificados diferentes setores. No interior das arenas, são encontrados pontos de alimentação, galerias, museus, apresentações de espetáculos, ou seja, as novas arenas se diferenciam, principalmente, por sua essência multiuso, oferecendo vários serviços, diversificando cada vez mais o seu público. Com todas essas ―vantagens‖ oferecidas, os preços cobrados por esses serviços sofreram grande alteração, refletindo diretamente na alta dos preços dos jogos de futebol. 1

Trabalho apresentado no GT Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduado em História pela Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: joaqconrado@gmail.com 3 Mestra em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí. Teresina – PI. Endereço eletrônico: mayra_de_moura@hotmail.com 4 As arenas no Brasil vieram para substituir os estádios. Sobretudo, com a Copa do Mundo de 2014, o estádio Olímpico do Grêmio, que, após reforma, passou a ser chamada arena do Grêmio. Outros grandes clubes, como Palmeiras e Internacional, seguiram os passos do Grêmio. 5 HOLLANDA, Bernardo; AZEVEDO, Anna; QUEIROZ, Ana. Das torcidas jovens às embaixadas de torcedores: uma análise das novas dinâmicas associativas de torcer no futebol brasileiro. Recorde, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, pp. 01-37. jan-jun. 2014. 137 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Essa diversidade de entretenimento em um único lugar acabou afastando os antigos ocupantes desse espaço, principalmente as camadas mais populares que ocupavam as gerais dos estádios. Somado a isso, as redes de televisão exerceram grande influência nessas decisões. Em termos midiáticos, uma mudança de estratégia pode ser observada por parte dos órgãos responsáveis pela cobertura dos jogos, sobretudo as redes de televisão. Estas, como patrocinadoras das competições esportivas, cada vez mais se impuseram e passaram a influir nas decisões sobre a organização do futebol brasileiro. Dentro de tal projeto, exerceram igualmente influência sobre o tipo de torcedor, e de telespectador, desejado em suas transmissões. 6

Hoje, observa-se um público totalmente diferente: jovens que dividem as atenções entre o jogo, o telão e a tela do celular; entusiastas; pessoas que passaram a freqüentar as arenas movidas pelo êxtase do novo. Todo esse novo público começou a substituir aqueles que antes roíam as unhas, que passavam a noite sem dormir após uma vitória ou uma derrota e, principalmente, aqueles que não possuem outro espaço para lazer, que encontram, no futebol, um refúgio para os problemas do cotidiano, muito embora o esporte bretão esteja inserido em seu cotidiano. Em suma, as novas arenas passaram por um processo de exclusão das classes populares e incorporaram, não, torcedores, mas sim entusiastas de classes mais abastadas que encontraram na modernização dos estádios um novo espaço de lazer. Para Marshall Berman,essa exclusão escancara o caráter paradoxal da modernidade. A experiencial ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, ―tudo que é sólido desmancha no ar‖.7

Assim, a modernização dos estádios de futebol, ao mesmo tempo em que aproximou a parcela da população que antes não ia aos estádios, afastou boa parte da massa, processo que vem se intensificando com os programas de sócio torcedor, que sacramentam a exclusão do povo. Nesse sentido, o futebol, assim como a modernidade, exige cuidado em sua análise. Entender esse esporte como mero instrumento de controle das massas pelo estado ou como um esforço para alavancar o futebol no país na busca de uma identidade nacional é furtar do esporte o que ele realmente é de verdade, já que esse esporte, além das dimensões políticas, envolve também dimensões econômicas, literárias, sociais e culturais. A investigação sobre o Jornal A Folha de São Paulo permitiu-nos através do entrecruzamento das suas linhas editoriais, com a crônica esportiva produzida, conhecer e refletir sobre os perfis desses cronistas esportivos, a análise histórica das séries elaboradas por eles, percebendo como a estruturação das novas formas de torcer foi sendo projetado dentro do discurso da imprensa esportiva . Todos esses aspectos que o ―futebol moderno‖ apresenta trazem à tona novos questionamentos, dentre eles: ―Identifiquemos então o ―futebol moderno‖ como o futebol-negócio, como a ideia de que tudo deve se tornar mercadoria estar sob o controle autoritário daqueles que acham que nada na vida deve existir para além do dinheiro. ‖ 8

O caráter elitista que o futebol no Brasil adquiriu nos últimos anos, agravado, sobretudo, após a copa de 2014, abriu o debate entre as Ciências Sociais, a Filosofia, a Antropologia e a História, que podem compreender a atual situação do futebol brasileiro, pois são capazes de caracterizar as influencias modernizadoras do início da década de 1990 e da virada do século, que metamorfosearam os diversos campos de análise e de influência social que o futebol possui. 6

Ibidem. p. 17. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 2007. p. 95. 8 SIMÕES, Irlan. ―Ódio eterno ao futebol morderno‖? 2016. Disponível em: <http://outraspalavras.net/posts/odio-eterno-ao-futebolmoderno/>. Acesso em: 19 de dezembro de 2016. 7

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Em vista disso, este trabalho estuda a influência da modernidade no futebol brasileiro e como isso reflete na mídia esportiva, mantendo sempre o seu discurso9, buscando cada vez mais um alinhamento com o que os ―outros‖ pensam sobre o futebol brasileiro, observando esse discurso a partir da crônica esportiva, de 2014 a 2016, principalmente a partir do jornal A Folha de São Paulo. Campo esportivo: o futebol globalizado O futebol moderno no campo é a exclusão da magia, do poético, sendo a incorporação absoluta da técnica, do treinamento e da previsibilidade. Fora das 4 linhas, é o grande domínio dos patrocínios em relação aos clubes, é a grande influência da mídia, são os programas de sócio torcedor e a exclusão das camadas populares das arquibancadas. Esses fatores redefinem o futebol como um megaevento, fazendo com que os clubes virem reféns das grandes empresas, adotando parcerias com as mesmas e excluindo o pobre do estádio por conta dos preços. O futebol, como megaevento, serve apenas para benefício das elites, uma vez que vira um evento de segregação, transformando o cotidiano e as formas de lazer dessa elite, pois, agora, o futebol passou a dividir o espaço de lazer das elites com o cinema, teatro, restaurantes, shows e uma porção de entretenimentos que priorizam as classes mais altas. Logo, o futebol (agora moderno), antes responsável por unir todas as tribos, acaba deixando o povo sem o seu ―ópio‖, pois, nessa modernidade do subdesenvolvimento, o ―e‖ é substituído pelo ―ou‖, no sentido de que rico e pobre não podem mais coexistir em determinado espaço, tornando o lugar ―ou‖ de rico, ―ou‖ de pobre, novamente, nessa modernidade imposta, as visões abertas da vida moderna – mais uma vez – foram suplantadas por visões fechadas: Isto e Aquilo substituídos por Isto ou Aquilo 10. Desde o início dos anos 1990 e, principalmente, a partir da redemocratização, o Brasil passou a ser inserido de fato no mundo, deixando de lado regimes antidemocráticos e, principalmente no decorrer dos anos 2000, com o advento da globalização11, a nossa sociedade foi aproximando-se das outras sociedades do globo, no sentido de ter-se uma maior facilidade do acesso à mídia. Essa massificação, sobretudo da internet, permitiu milhões de brasileiros conhecerem a cultura, a política e diferentes características das demais nações. Por outro lado, a globalização pode ter tornado os países de terceiro mundo cada vez mais dependentes das grandes potências, tal qual foi durante o colonialismo, o imperialismo. Para Milton Santos, esse tipo de globalização não irá durar. Primeiro, porque ela não é a única possível. Segundo, não vai durar como está porque como está é monstruosa, perversa. Não vai durar porque não tem finalidade 12 . Pablo González Casanova afirma: [...] a atual globalização mantém e reformula as estruturas da dependência de origem colonial e as não menos sólidas do imperialismo de fins do século XIX, bem como do capitalismo central e periférico que se estruturou entre 1930 e 1980. 13

Segundo ele, a globalização é em grande parte uma recolonização. Se pensarmos o futebol como uma matéria qualquer de exportação, tal como era a cana-de-açúcar, o café, podemos perceber que, de fato, há uma nova dependência brasileira de mercados maiores e mais ricos, como é o caso do mercado do futebol europeu. 9

Aqui, entendemos como discurso, as formações discursivas tal qual sugere Michel de Foucault, onde um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva. Para mais, ver em: FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2008. 10 BERMAM. 2007. 11 Ato ou efeito de globalizar(-se). 12 PENA, Rodolfo F. Alves. "Milton Santos". Brasil Escola. Disponível em: <http://brasilescola.uol.com.br/geografia/milton-santos.htm>. Acesso em: 26 de dezembro de 2016. 13 CASANOVA, G. Pablo. Globalidade, neoliberalismo e democracia. In: GENTILI, Pablo (Organizador). Globalização excludente. Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000. pp. 46-62. 139 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O Brasil cada vez mais cedo exporta jogadores. Os mais jovens vão para o mercado europeu e, quando começa a decadência, são mandados de volta para cá. Como existe um abismo entre o nível de competitividade entre esses dois mercados, muitos jogadores acabam se destacando novamente no cenário nacional e despertando o interesse de um novo mercado: o asiático. Ou seja, assim como foi durante a colonização e durante o imperialismo, as nossas matérias são retiradas a baixo custo (jogadores como Neymar14 se tornaram exceções) e os lucros auferidos são (mal) aplicados, na maioria das vezes, no pagamento de dívidas ou em contratações de jogadores que estão retornando do futebol Europeu. Nesse mesmo contexto, o futebol passou a sofrer as mesmas influências que as demais esferas da sociedade. Essas influências se dão principalmente no campo econômico, uma vez que o futebol passa a gerar exorbitantes lucros em propagandas, transmissões e transferências. Logo, ele acaba atraindo investidores e até mesmo compradores de clubes de futebol, como Paris Saint Germain, Manchester City, Chelsea, para citar alguns. Outra influência vem dos meios de comunicação, das emissoras que detém o direito de transmissões dos campeonatos e até mesmo da política que passa a regular e a formular leis que beneficiam (ou não) o esporte, como é o caso da lei Nº 9.615, de 24 de março de 199815. Essa lei corrobora as influências citadas acima, pois, ao passo que ela tenta dar mais transparência ao esporte, ela acaba transformando clubes em empresas, fazendo com que os mesmos obedeçam sempre à lógica do capital, afastando no nosso modo de ver a razão (ou a falta dela) da paixão pelo futebol, mas isso será discutido mais adiante. Tendo em vista esta perspectiva, o esporte bretão passa a se relacionar de forma ainda mais intensa e conturbada com o campo da política, da economia e da imprensa especializada, formando um ―time‖ interessante e desafiador para um estudo mais bem detalhado. Nas linhas que seguem, compreende-se a relação que se dá entre futebol, imprensa, economia e política. Analisa-se o discurso da mídia, a relação dos patrocinadores e a CBF, como entidade de representatividade política, tendo como palco principal as edições de copa do mundo entre os anos de 2002 a 2014. O recorte temporal tem um viés simbólico: 2002, o último título da copa do mundo para o Brasil, e 2014, o maior vexame já sofrido pela seleção, o trágico 7x1 para a seleção alemã. Assim, abordar-se a Confederação Brasileira de Futebol – CBF, como entidade de representatividade política, bem como suas relações com os patrocinadores (grandes empresas) entre os anos de 2002 e 2014. Nesse sentido, percebe-se como o futebol brasileiro sofreu interferência do capital estrangeiro e como isso influenciou nos papéis, nos discursos da mídia e nos (des)caminhos que ela deu ao esporte mais popular do Brasil.

Escrever e representar o jogo: a crônica esportiva e a criação do evento esportivo Dentro da perspectiva deste artigo, toma-se, como exemplo, as notícias em relação à seleção brasileira de futebol, sobretudo após derrotas e vitórias em copas do mundo, os discursos da mídia acabam sendo dissonantes, pois criam realidades diferentes para o observador, ou até mesmo uma realidade que o próprio meio de comunicação deseja criar. Com relação ao impacto causado pelo discurso da mídia na sociedade, o autor Édison Gastaldo discorre: Acredito que, embora não determine ou condicione comportamentos ou ações sociais, a mídia certamente atua como um fator de poderosa influência no campo social. Na medida em que o discurso da mídia articula determinados significados aos fatos enquanto oculta outros, é construída nesse discurso uma determinada ―definição de realidade‖, que, dada a imensa difusão social de seus veículos, tem grande possibilidade de tornar-se (ou ―manter-se‖) hegemônica,

14

Jogador do Santos Futebol Clube entre os anos de 2009 e 2013. Até o ano da publicação desse trabalho, era jogador do Barcelona Futebol Clube e camisa 10 da seleção brasileira. 15 A Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998 é popularmente conhecida como ―lei Pelé‖. Essa lei tem a intenção de dar mais transparência e profissionalismo ao esporte nacional. 140 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


colaborando assim de modo ativo na manutenção de uma dada relação de forças no interior da sociedade.16

O Brasil vem passando por um momento de mudança no âmbito esportivo, sobretudo no início da década de 1990. Percebe-se que os divisores de águas são sempre as copas do mundo, momento em que as atenções mundiais se voltam para essa competição. É no ápice dessa exposição global que surge os famosos momentos de reformulação do futebol, após uma conquista ou não do título mundial – sobretudo se houver uma derrota – que começa a se pensar o que está sendo feito de errado e como se pode melhorar para que voltemos a ser a melhor seleção, o país do futebol e todos os adjetivos cristalizados no pensamento do torcedor brasileiro. Na copa de 1990, o Brasil cometeu a heresia de perder para o nosso maior rival, a Argentina. No entanto, não era qualquer Argentina e sim a seleção de Maradona, Caniggia e companhia. O Brasil vinha de consecutivos fracassos. A última conquista havia sido na copa de 1970, em que conquistamos o tricampeonato. Em 1990, a seleção era pragmática e sem nenhum craque de verdade, jogando contra a seleção do melhor jogador do mundo. Não deu outra: mais uma derrota e amargos vinte anos sem a maior conquista do esporte. O caderno de esportes do jornal O Globo anunciou: ―Maradona 1 x Brasil 0‖17; O jornal Folha de São Paulo completou: ―Pragmatismo sem gols do Brasil acaba derrotado por Maradona‖ 18. Para as manchetes, é como se houvesse apenas um responsável pela derrota brasileira: Maradona! O jogador genial que não tínhamos, já que Romário ainda não era o ponto fora da curva que viria a ser em 1994. Nas linhas que seguem, o editor de esportes da Folha de São Paulo, Flavio Gomes, disse que a seleção do ―futebol-nada‖ (trocadilho com futebol-arte) deve ser esquecida. Em 1994, após a vitória do Brasil, a notícia era a seguinte: ―Que a taça carregue junto a auto-estima‖19. A identidade brasileira na notícia está atrelada diretamente à conquista futebolística, como falou Telê Santana em escrito para a Folha de São Paulo: ―esta é das raras horas em que somos todos iguais, o homem da arquibancada e o presidente da República. Um milagre que devemos ao futebol. Ao futebol tetracampeão do Brasil‖20. Já não há mais uma necessidade tão grande de reformulação, pois, como todos sabemos, o futebol é resultado. No dia 13 de julho de 1998, o jornal o Estado de São Paulo noticiava a goleada da França sobre o Brasil e questionava: ―O que houve com Ronaldo?‖21. Já a Folha anunciava que a França era a campeã do mundo e que o Brasil sofria a sua pior derrota. Assim como em 2014, não faltaram culpados para o fiasco. Zagallo, enaltecido na copa de 1994 como auxiliar técnico de Carlos Alberto Parreira, era duramente criticado por ter mantido Ronaldo (uma eterna incógnita naquele dia) ao longo da partida. Alguns já passavam a dizer que a seleção não passava de um punhado de bons jogadores, mas que juntos não formavam um time, e, é claro, se renderam ao modo elegante do francês Zinédine Zidane de jogar, da mesma maneira que se renderam ao Maradona em 1994. ―Eles são tão fortes em lances de um contra um, ou até mesmo de um contra dois, tocam a bola tão rápido e são tão habilidosos que não havia nada a se fazer‖22 . Essa frase foi dita pelo técnico da seleção alemã, Rudi Voller, em entrevista para a Folha de São Paulo após a derrota para o Brasil na final da copa do mundo de 2002. Sua frase, se dita no começo da competição, causaria estranheza aos torcedores, à imprensa esportiva e talvez até aos mais esperançosos, visto que a seleção vinha de sua pior derrota em 1998 e de uma classificação complicada nas eliminatórias, fazendo com que muitos desacreditassem no pentacampeonato. Porém, a falta de lógica do futebol proporcionou a essa seleção tão criticada alcançar a marca de uma das melhores seleções da 16

GASTALDO, Édison. ―O país do futebol‖ mediatizado: mídia e Copa do Mundo no Brasil. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 22, jul./dez. 2009, pp. 352-369. 17 Disponível em: <http://acervo.oglobo.globo.com/consulta-ao-acervo/?navegacaoPorData=199019900625>. Acesso em: 28 de junho de 2016. 18 Disponível em: <http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1990/06/25/2/>. Acesso em: 28 de junho de 2016. 19 Folha de São Paulo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/7/18/esporte/2.html>. Acesso em: 28 de junho de 2016. 20 Disponível em: <http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1994/07/18/435>. Acesso em: 28 de junhode 2016. 21 Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19980713-38253-nac-0001-pri-a1-not>. Acesso em: 28 de junhode 2016. 22 Disponível em: <http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2002/07/01/2>. Acesso em: 28 de junhode 2016. 141 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


história, a seleção brasileira tricampeã do mundo em 1970, ao obter a vitória em todos os sete jogos disputados. Tostão, ex-jogador e, na época, colunista da Folha, analisou da seguinte forma os anos que separam a derrota de 1998 para a consagração de 2002: O título não contradiz a péssima situação do futebol brasileiro fora de campo. No futebol frequentemente não há relação direta entre as duas coisas. As reformas não podem ser adiadas. São urgentes e inevitáveis. [...] a conquista serviu para mostrar que fizemos uma avaliação muito pessimista do futebol brasileiro. Ele não estava decadente, e os rivais não eram tão fortes. Porém as críticas serviram para melhorar. 23

É importante notar que a análise é feita por um ex-jogador e não por um jornalista. Por conta disso, as palavras dele podem estar envolvidas por sentimentos de nostalgia, o que, para nós, torna seu texto ainda mais precioso. Sempre nas derrotas havia e ainda há a tradição da mídia de ignorar trabalhos passados. É como se, tudo o que foi construído, o fora para ser posto abaixo na primeira falha. Isso nada mais é do que a própria manifestação da modernidade nas estruturas da sociedade, na cultura, nos meios de comunicação, na economia etc. Para Berman: Ainda as mais belas e impressionantes construções burguesas e suas obras públicas são descartáveis, capitalizadas para rápida depreciação e planejadas para se tornarem obsoletas; assim, estão mais próximas em sua função social, de tendas e acampamentos que das pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos, das catedrais góticas.24

A aplicabilidade dessa percepção do Berman se dá durante as derrotas e é difundida para a sociedade por meio da imprensa esportiva. No entanto, após as vitórias, boa parte das críticas são esquecidas por parte da imprensa. No entanto, elas não fogem da percepção de quem já esteve dentro das 4 linhas do campo, como foi o caso de Tostão. No momento, não há necessidade de se repensar o futebol, afinal, ―nós somos o país do melhor futebol‖. No entanto, após o título, houve uma modificação estrutural que merece destaque: a mudança do sistema de disputas do principal campeonato de clubes brasileiros. O campeonato passou a ser disputado no modelo de pontos corridos, uma influência direta dos campeonatos europeus, que já vinham, desde então, sendo no formato de pontos corridos, no qual o time com mais pontos ao final do campeonato é sagrado campeão. Esse modelo, considerado mais democrático, pôs fim às disputas emocionantes da chamada fase ―mata-mata‖, acabando, assim, com boa parte da imprevisibilidade do futebol, característica marcante do esporte bretão. Essa decisão levou em conta a importação de um modelo de fora, que se tornou cada vez mais comum no decorrer dos anos 2000. Os principais campeonatos do mundo já eram disputados em forma de pontos corridos. Coincidência ou não, após essa mudança não houve mais nenhuma conquista mundial brasileira. No ano seguinte, já sob o comando do técnico Carlos Alberto Parreira, a seleção decepcionou e foi eliminada da Copa das Confederações ainda na primeira fase. No jornal Folha de São Paulo, um pequeno destaque no caderno de esportes associava a ausência de Ronaldo ao fiasco na competição: ―Um fiasco histórico e a prova que, sem suas grandes estrelas, principalmente Ronaldo, o Brasil não é hoje nenhum bichopapão‖25. A eliminação não ganhou muito destaque nos principais cadernos de esporte. A Folha, por exemplo, deu estaque a disputa entre o Santos e o Boca Jr. Na época, a Copa das Confederações ainda não tinha o mesmo peso que as demais competições entre seleções do mundo. Só é possível ser notada uma importância maior a partir de 2005, quando esse torneio passou a ser disputado um ano antes da Copa do Mundo, servindo como um termômetro ou um indicador de favoritismo e também como 23

TOSTÃO. O Brasil é penta mundial. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. 3D, 1 de julho de 2002. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: companhia das letras, 2007. p. 123. 25 COBOS, Paulo. Sem estrelas, Brasil dá vexame histórico. Folha de São Paulo, São Paulo, p. 4D, 24 de junho de 2003. 24

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um evento teste. A verdade é que há um certo problema em ganhar essa competição, principalmente, para os torcedores mais supersticiosos. O Brasil, por exemplo, foi campeão em 2005, 2009 e 2013. No entanto, não obteve o mesmo êxito nas copas de 2006, 2010 e 2014. A trajetória, mediante a copa de 2006, foi uma das mais esperançosas possíveis, visto que o Brasil vinha de duas conquistas expressivas e, de quebra, sobre os nossos maiores rivais, os argentinos. 2x2 no tempo normal e vitória por quatro tentos a dois nos pênaltis na final da Copa América em 2004. Em 2005, nova vitória sobre os ―hermanos‖: 4x1. Relembrando os melhores momentos da seleção canarinha, Ronaldinho, Kaká e Adriano viviam as melhores fases de suas carreiras: uma combinação que não poderia resultar em outra coisa a não ser samba, quebrando todo o protocolo FIFA. Em 2006, a euforia era completa, pois a seleção estava repleta de craques, era a favorita, um time tão bom (e com o mesmo fim) quanto o de 86, que tinha Zico, Sócrates, Júnior, Muller, Casagrande, Falcão, Branco. A capa parece ter saído da mente de um famoso narrador responsável por eternizar o bordão ―ganhar é bom, mas ganhar da Argentina é muito melhor‖26, ao mesmo tempo que fortalece a rivalidade entre as duas nações, reforça também a relação da mística entre futebol e samba, elementos que compõe a cultura brasileira e que é vendida para o exterior.A revista Placar anunciava: ―Nunca fomos tão favoritos‖. O futebol é um dos maiores símbolos de identidade do brasileiro, senão o maior. A imprensa esportiva é um dos agentes de perpetuação tanto da identidade quanto da memória, sendo responsável por criar e manter viva no imaginário dos que acompanham o futebol, a partir da rememoração de fatos do passado. Fatos significativos do passado são rememorados para atender às demandas do presente. Como uma das estratégias, as narrativas jornalísticas são emitidas para as afirmações das identidades coletivas. Nesse sentido o jornalismo esportivo se configura como um dos veículos mais importantes na construção e manutenção da memória. Seu acesso fácil e sua leitura acessível proporcionam um intercâmbio de informações entre os diferentes setores sociais. Mitos, histórias de redenção, superação e tradições são construídos ao sabor das demandas sociais do presente.27

Um bom exemplo disso é a mística em torno da camisa 10. Após ser usada – magistralmente – por Pelé, a camisa virou um símbolo de bom jogador. Mais do que isso, a camisa remetia a qualidades específicas de um jogador que o diferenciava dos demais. Geralmente, ela é atribuída a jogadores de meio de campo, que possuem um estilo dito ―clássico‖ de jogar. Com efeito, a forma como o ―camisa 10‖ reside na lembrança dos atores sociais que divulgam a memória do futebol nacional indicam como este uniforme se tornou um símbolo que reforça, via futebol, a identidade nacional. Conhecer os significados que a mídia atribui à ―camisa 10‖ auxilia compreendermos o amálgama ―futebol-identidade nacional‖. 28

Da mesma forma que a mídia perpetuou a mística do ―camisa 10‖ ao longo dos anos, ela tenta(va), durante a primeira passagem do técnico Dunga, atrelar a disciplina e a rigidez características da figura técnica um fator determinante para a retomada dos títulos, tentou resgatar o sentimento de raça, pouco visto no mundial de 2006, na figura do novo treinador Dunga.

26

BUENO, Galvão. Galvão esquece corneta e retoma bordão: ―Ganhar da Argentina é muito melhor‖. Disponível em: <http://uolesportevetv.blogosfera.uol.com.br/2011/09/29/galvao-esquece-corneta-e-retoma-bordao-ganhar-da-argentina-e-muitomelhor/>. Acesso em: 19 de janeiro de 2017. 27 ABRAHÃO; DI BLASI; SANTORO. A ―camisa 10‖ do futebol como um símbolo na manutenção da identidade nacional – o discurso da mídia. Esporte e sociedade, Rio de Janeiro, ano 02, nº 6, jul./out. 2007. p. 2 28 ABRAHÃO et al. 2007 143 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Dunga é mais do que um nome, é um estado de espírito. Que faltou na Copa da Alemanha. É, também, uma experiência, o que não parece adequado para a seleção. Mas há tempo. É uma tentativa da CBF de ficar bem com a opinião pública, não necessariamente com o torcedor. 29

A mídia esportiva, nesse contexto, toma para si a missão de passar para o cidadão comum a imagem de um novo espirito dentro da seleção, resgatando a raça dos jogadores, passando confiança para o torcedor de que mudanças significativas aconteceriam. Mas, que mudanças esperar de alguém que jamais havia sido treinador? A resposta seria dada quatro anos depois no mundial da África, em 2010. O progresso tão cobrado pela imprensa esportiva é um progresso importado, muitas vezes seguindo o modelo europeu, que é tido, pela mídia, como o ideal a ser seguido. É um progresso contínuo, fixo, que, fora de campo, exclui aqueles que não possuem as condições financeiras para continuar indo ao estádio, que segrega o torcedor, que não é, ao mesmo tempo, um consumidor. É o progresso que não permite uma possibilidade de um olhar ao passado, tampouco uma reflexão de como esse progresso é tido. A crítica ao progresso é uma forma de libertar o anjo, é um salto do tigre em direção ao passado30, é perceber que de um passado tão vitorioso se encontram as bases e um ensinamento para um futuro, não necessariamente de conquistas dentro de campo, mas sim voltadas para um futebol verdadeiramente democrático, para que volte a ser como um dia já foi chamado: esporte do povo. Considerações finais A mídia tem papel decisivo nas mudanças que podem ocorrer no futebol brasileiro. No entanto, existem interesses financeiros que dificultam uma cobrança maior por parte da grande imprensa para com a entidade que gere o futebol brasileiro. Tornou-se mais difundido, sobretudo nas plataformas digitais, pequenos periódicos que surgem como alternativa aos grandes jornais esportivos. A parceria futebol-imprensa na formulação de uma patente oficial do esporte nos primeiros anos da década de 2000 foram consagrados com a correlação entre a modernização do futebol e especialização das colunas e dos cronistas em esportes, o período do no futebol passou por uma reformulação, deram lugar ao duplo processo de associação: a projeção da seleção brasileira de futebol e o início das narrativas da modernização do esporte por parte da imprensa. Sobre o processo de concepção do futebol nesse período, entendeu-se como a construção social da prática é necessária para a análise das relações de poder presentes na sociedade e espaços de jogo; outra de criação ideológica, em que se discutiu frente às idealizações e projeções sociais em que o futebol se relacionava e era praticado. Ao analisar os jornais da primeira década de 2010, viu-se como crescente o número de discursos sobre realizações novas formas de torcer, de ir ao estádio e vivenciar o futebol. Novas práticas culturais montam um cenário com perspectivas modernas frente aos estádios de futebol. Algo tão grande quanto o futebol requer a atenção necessária não só da mídia, do Estado, das empresas que patrocinam e dos torcedores, mas também dos pesquisadores. É necessário que cada vez mais o historiador volte os olhos para a temática, ajudando a firmar um assunto tão necessário para o entendimento do país, a partir desse esporte tão presente em nosso cotidiano, podemos perceber as mudanças e os fenômenos que ocorreram ao longo do século XX, suas consequências e desafios para o novo século.

29

KFOURI, Juca. Mais que nome, Dunga é estado de espírito. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 de julho de 2006. Disponível em:<http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2006/07/25/20/>. Acesso em: 20 de dezembro de 2006. 30 BENJAMIN, Walter. Disponível em: <http://mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/Teses%20sobre%20o%20conceito%20de%20hist%C3%B3ria.pdf>. Acesso em: 09 de janeiro de 2017. 144 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


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A RECEPÇÃO MIDIÁTICA DO FORRÓ CONTEMPORÂNEO EM TERESINA/PI E SEUS CONTEXTOS MEDIACIONAIS1 Janete de Páscoa Rodrigues2 Fábio Soares da Costa3 Isabela Naira Barbosa Rêgo4 RESUMO Este artigo analisa as mediações intervenientes no processo de recepção midiática do forró contemporâneo entre consumidores de mídia, moradores de Teresina/PI. Num viés qualitativo, o estudo empregou o método analítico descritivo. Foram entrevistadas 40 pessoas com perfis diversos, entre maio e junho de 2014. Os receptores estudados interagem com o forró por meio de diferentes tipos de mídia como rádio, TV e internet; mediações tecnológicas, situacionais, individuais e culturais foram identificadas no estudo, as quais se apresentaram de maneira simultânea e entrecruzada entre si. A mediação da cultura nordestina mostrou-se como grande norteadora na produção de sentidos de identidades entre os sujeitos/receptores a partir do forró midiatizado. Palavras-chave: Cultura; Forró; Mediações; Recepção midiática.

Introdução

O

forró é um estilo musical e dançante que identifica culturalmente a região Nordeste do Brasil. O termo forró remete à ideia de ―arrasta-pé‖, típico da maneira como se dança (Ferreira, 2001, p. 330). Porém o forró já sofreu inúmeras transformações e apresenta atualmente várias vertentes, tais como: pé-deserra, baião, universitário, eletrônico (contemporâneo) e outros. Hoje o forró faz-se presente em todos os meses do ano e não somente na região Nordeste. De acordo com Albuquerque Júnior (1999), foi através de Luiz Gonzaga que o estilo chegou também às regiões sul e sudeste do Brasil nos anos de 1940. Também há de se ressaltar a forte contribuição dos migrantes nordestinos que colaboraram para a difusão do estilo nessas regiões. Já na década de 1940 observa-se que através do forró muitos dos hábitos nordestinos foram divulgados em outras regiões do Brasil e que os meios de comunicação tiveram papel importante naquela época para os enunciados nordestinos tornarem-se discursos e criarem algumas marcas identitárias de nordestinidade a serem reconhecidas nacionalmente até hoje. Atualmente, o estilo ganha posição de destaque em algumas cidades nordestinas onde são realizadas grandes festas em torno do ritmo, como é o caso das festas de São João em Campina Grande/PB e Caruaru/PE. Teresina, por sua vez, apresenta-se como uma das capitais nordestinas onde mais se realizaram festas e shows nesse gênero musical na atualidade. A indústria fonográfica brasileira lança uma enorme quantidade de músicas de forró durante todo ano no Brasil que atraem um grande público aos locais de shows ao mesmo tempo em que constroem um grande número de seguidores deste estilo musical e dançante por meio da mídia (rádio, TV, DVDs, Internet e outras), o que gera alguns elementos de identificação da cultura nordestina por meio da linguagem e dos sentidos emitidos através das letras do forró eletrônico. 1

Trabalho apresentado no GT 01. Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Professora da Universidade Federal do Piauí . Teresina-PI. E-mail: janeteufpi@gmail.com. 3 Doutorando em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PPGED/PUCRS. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí – PPGCOM/UFPI. Teresina-PI. E-mail: fabiosoares.com@hotmail.com. 4 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí – PPGCOM/UFPI. Teresina-PI. E-mail: isabelarego.nbr@gmail.com. 147 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Enfatiza-se neste estudo a ideia de um receptor não mais como sujeito que apenas recebe as mensagens sem questioná-las, como verificado na teoria da agulha hipodérmica, mas sim como um sujeito que é influenciado por vários meios-instituições na construção de sentidos os quais ele negocia com aqueles emitidos pelos meios de comunicação. Assim, o receptor é vislumbrado numa concepção defendida por autores como Martín-Barbero (2001); Orozco Gomez (2000) e outros, que destacam que toda prática comunicativa moderna é uma prática demarcada pelas mediações dos diferentes campos sociais. Quando os diversos campos sociais travam interações entre si, ocorrem mediações, interações, contatos, e a grande tarefa comunicativa do mundo contemporâneo se dá em função das mediações, ou seja, do conjunto de formas de interação que os campos sociais realizam a sua maneira (MARTÍN-BARBERO, 2001). Estudar as mediações (características socioestruturais e culturais) dos receptores é estudar um receptor de mídia não mais vazio em suas relações com os emissores, mas sim receptores que trazem consigo ―instâncias mediadoras‖ as quais determinarão os efeitos e sentidos das mensagens. Martín-Barbero (2001) fala que mediação pode ser definida como o processo pelo qual os meios de comunicação adquirem materialidade institucional e espessura cultural, abordagem que supera os sentidos sobre estrutura econômica e conteúdo ideológico. Nessa esfera de entendimento, o objetivo desta pesquisa consistiu em analisarmos as mediações acionadas no processo de midiatização do forró contemporâneo ao enunciar e ofertar sentidos aos receptores de diversos meios de comunicação com os quais estes utilizam para interagir com o forró na cidade de Teresina/Pi. Nesta perspectiva, consideramos que tais receptores participam ativamente desses processos de produção de sentidos, e que cada sujeito interpreta os discursos ofertados pela mídia de maneira diversa e plural conforme seus contextos e subjetividades. Sobre as concepções teórico-metodológicas empregadas na pesquisa, trata-se de uma pesquisa qualitativa, com base em teorias da recepção propostas por autores como Martín- Barbero, Orozco Gomez, Garcia Canclini, Nilda Jacks e outros. Para tanto utilizamos a técnica da entrevista estruturada que foi aplicada diretamente aos receptores durante os meses de maio e junho de 2014 pelos próprios pesquisadores. O método analítico descritivo foi empregado na análise e descrição dos resultados da pesquisa de campo. O critério de seleção da amostra foi mediante convite pessoal feito a algumas pessoas conhecidas de forma a atender o perfil desejado no estudo, e constituir-se uma amostra composta por pessoas jovens e moradores de Teresina. Foram entrevistados 40 receptores midiáticos de forró, residentes na cidade de Teresina/PI, com idades entre 18 e 28 anos, sendo 18 do sexo feminino e 22 do sexo masculino. O nível de escolaridade da amostra foi composto por 17 indivíduos com ensino médio completo, 11 estão cursando o ensino superior, e 12 possuem nível superior completo. Todos os receptores entrevistados residem com os pais e irmãos, são solteiros e nenhum deles tem filhos. Mediações tecnológica e situacional na interação forró-receptor Para Jacks (1999), o processo de recepção não se dá somente no momento em que o entrevistado está em contato com o meio, este processo tem início bem antes, nas bases culturais do receptor. Neste foco, observamos a presença de uma multiplicidade de meios de comunicação na interação entre os sujeitos pesquisados e o forró. Rádio, TV, DVD e internet foram os mais citados pelos entrevistados como tipos de mídia que os receptores utilizam para interagirem com o forró. Canclini (1997, p.77) lembra que ―existe uma tendência internacional para que decresça a participação em instalações públicas (cinemas, teatros, salões de dança), enquanto cresce a audiência da cultura a domicílio (rádio, televisão e vídeo)‖ nas interações entre a população e as diferentes formas de cultura. Dentre os 40 receptores pesquisados, 12 disseram interagir com o forró através de vários tipos de mídia. Para estes, o rádio serve para que eles tenham os primeiros contatos com as musicas lançadas pelas bandas, e a partir desses contatos iniciais o receptor desenvolve gosto por determinadas musicas e decidi pela compra ou não de CDs, DVDs, ou ainda, por buscas dessas músicas na internet. Contudo, a maior parte dos receptores deste grupo afirma que acessa por meio da internet algumas rádios para ouvir forró, uma vez que 148 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


as emissoras locais costumam dar destaques para este estilo musical, além de ser um meio de comunicação muito acessível, dizem eles. Oito entrevistados afirmaram utilizar apenas a internet para interagirem com o forró. Segundo eles, além deste tipo de mídia proporcionar a escolha do que ouvir, a internet também possibilita salvar e arquivar as músicas selecionadas. Para alguns entrevistados, a internet funciona como um ―rádio virtual‖. Outros disseram que utilizam a internet para ver e ouvir forró porque permanecem a maior parte do dia conectados à este tipo de mídia, seja no trabalho ou em casa. Prefiro a internet porque sou muito impressionado, tipo, a banda tocou ontem, eu já quero o show hoje, e na internet é aonde as músicas chegam mais rápido. É uma forma muito prática da gente ficar o tempo todo por dentro das músicas que estão sendo lançadas, e escolher aquelas que gostamos logo. (Receptor 03, 2014).

Alguns participantes da pesquisa (seis deles) disseram que às vezes assistem as bandas de forró contemporâneo em DVDs porque as imagens mostradas na tela, quando acompanhadas do som das músicas, promovem sentimentos de alegria. Porém, estes relatam que quando o forró apresenta sentidos românticos, escutam tais músicas por meio de CDs. Apenas dois entrevistados declararam que ouvem diretamente o forró eletrônico por meio do rádio. Segundo eles, o rádio é um meio de comunicação de fácil uso e acesso, além de mantê-lo informado sobre as notícias do mundo e de sua cidade. O outro ouvinte de forró no rádio justifica o uso desse meio na interação com o forró, por acreditar que a televisão não visibiliza o forró, por isto ele ouve preferencialmente o forró no rádio. No entendimento de Martín-Barbero (2002), a tecnologia remete hoje não para a novidade de uns aparatos, mas a novos modos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e escrituras. O que a trama comunicativa da revolução tecnológica introduz nas novas sociedades não é tanto uma quantidade inusitada de novas máquinas, mas uma nova forma de relação em ter os processos simbólicos – que constituem o cultural e as formas de produção e distribuição dos bens e serviços. Corroborando nesta perspectiva, a maioria dos participantes do estudo (19 deles), percebe a internet como importante meio de divulgação do forró contemporâneo, por disponibilizar um grande acervo dentro deste estilo musical. Porém, essas pessoas destacam o rádio como sendo o meio de comunicação que mais divulga e populariza o forró atualmente na cidade. De acordo com Verón (1997, p. 12), o acesso ao sentido de que as mensagens são portadoras não compõe o processo de midiatização, mas está incorporado ao acesso a essas mensagens por parte dos indivíduos. Meios de comunicação são dispositivos tecnológicos de produção e reprodução de mensagens associados a determinadas condições de produção e a determinadas modalidades ou práticas de recepção destas mensagens. Quadro 1 – Tipo de mídia e situações em que os Receptores interagem com o forró – Mediações tecnológicas e situacionais Mídia Internet Rádio CD DVD

Nº de receptores 40 2 6 6

Local da interação No trabalho Carro e ambiente doméstico Ambiente doméstico Ambiente doméstico

Fonte: Pesquisa direta (Rodrigues; Soares; Rêgo, 2014)

Nesse processo de produção de sentidos por meio do forró midiatizado, percebe-se a participação das mediações tecnológicas de maneira associada às mediações situacionais, ambas discutidas por Orozco Gomez 149 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


(2000) na teoria das multimediações, à medida em se verificam diversas situações e contextos dos receptores usarem diferentes tipos de meios para interagem com o forró contemporâneo. Verificamos diferentes contextos de recepção entre os indivíduos que ouvem forró no rádio e aquele que ouve e assiste na TV, a diferença na recepção é apontada por alguns sujeitos da pesquisa quando eles distinguem os momentos adequados para se utilizar de cada meio. Ao assistir forró na TV, o receptor poderá observar as imagens ofertadas nos shows das bandas (coreografias, corpos das dançarinas e dos dançarinos, figurinos de dançarinos, cenários etc.). Já nas mensagens ofertadas pelo rádio, o receptor poderá voltar-se para si, ou seja, seria um momento dedicado aos seus próprios pensamentos, imaginações e sentimentos proporcionados apenas pela melodia, ritmo e pelas letras das músicas escutadas. Na perspectiva da mediação situacional defendida por Orozco Gomez (2000), 26 dos 40 sujeitos pesquisados, independentemente do tipo de mídia da qual se utilizam,escutam forró quando estão em casa, sendo que 16 desses escutam forró, sozinhos e 24 ouvem acompanhados da família. Também, 19 entrevistados relataram que utilizam o forró como forma de entretenimento; 16 disseram ouvir o forró enquanto estão fazendo suas tarefas domesticas. Também 5 dessas pessoas informaram ouvir o forró no ambiente de trabalho, portanto, acompanhados de colegas de profissão. Para alguns desses entrevistados, ouvir forró no local de trabalho ―ameniza o fardo do trabalho‖ (Receptor 2, 2014). Outro contexto mediacional situacional revelado por alguns sujeitos da pesquisa (nove deles), diz respeito ao hábito de escutar forró no percurso para o trabalho, ou seja, enquanto dirige seu carro. Embora, a maioria dos entrevistados tenha afirmado interagir com o forró midiático apenas como forma de entretenimento, há os que escutam forró sozinhos, especialmente aqueles com teor romântico. Segundo Orozco Gomez (2000), as mediações situacionais referem-se à maneira como o receptor recebe a mensagem. Para o autor há diferença entre assistir a um filme através da TV e assisti-lo em um cinema, assim como não é a mesma coisa assistir um filme você estando sozinho do que quando você está acompanhado. O autor faz referência também ao ambiente familiar em que a mensagem é recebida, como, por exemplo, as residências onde só há uma TV e que toda a família se reúne para assistir a um programa. Orozco Gomez (2000) coloca ainda como forma de mediação situacional o estado de espírito dos receptores, pois às vezes o receptor está querendo apenas distração, às vezes ele deseja informação, às vezes ele está cansado, outras vezes não. Nestas análises, percebemos as mediações situacionais presentes nas narrativas dos receptores, quando eles afirmam ouvir forró no ambiente de trabalho, em casa, no deslocamento para o trabalho, como também no momento em que essas pessoas dizem escutar o forró às vezes acompanhadas outras vezes sozinhas. Dentre os receptores que interagem com o forró em casa, todas são mulheres, que concebem estes momentos como nostálgicos por acionar memórias e lembranças de experiências amorosas passadas. Escuto forró em casa, limpando a casa, isso me entretém, danço, me solto. Isto me dá ânimo para fazer o serviço de casa; já quando estou mais triste já ouço um forró mais meloso para atender meu estado emocional, depende do meu estado de espírito eu escolho a música de acordo com o ritmo e a letra (Receptor 10, 2014).

Frente a isto, podemos vislumbrar que o receptor também age sobre os meios recriando suas mensagens. Ele também faz parte da produção, ou seja, também constrói produto ao modificar o uso para o qual este foi pensado. Com isto a cultura passa a ser entendida como uma rede de práticas e relações que constituem a vida cotidiana. Os estudos atuais percebem que o receptor continua a produção modificando usos, produzindo significados num processo sem fim (OROZCO GOMEZ, 2000). Mediação individual nas letras de forró contemporâneo 12, dos 40 entrevistados classificam as letras das músicas de forró como ―desprovidas de conteúdos‖. Não obstante, apesar da crítica feita ao conteúdo das músicas por estes sujeitos, os mesmos declararam se identificar com o forró no que diz respeito aos seus modos de vida e cotidianidade. Nesta mesma direção, mais 150 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


da metade dos sujeitos estudados (24 pessoas) relataram que gostam muito das letras de forró e disseram se identificar com suas mensagens pelo fato de despertarem emoções vividas no passado. As letras dizem muito sobre a vida das pessoas, basta você ouvir um forró, a melodia bonita, você encontrando ali um pouquinho da sua história, você já fica toda... (essa música parece comigo). Ou com uma amiga que passou por aquela situação (Receptor 1, 2014).

Destacamos entre os motivos mais citados pelas pessoas como razões para gostarem das letras de forró, o fato das letras falarem de relacionamentos amorosos, ―traições‖, ―do ato da paquera‖ e de estilos de vida – ―forrozeiro‖, ―pegador‖ ―patricinha‖, ―play‖ e outros. Assim, um dos receptores declarou se identificar, por exemplo, com a letra de um forró cuja letra diz: ―vai a pé, vai a pé, sem dinheiro e sem mulher‖ (Receptor 31, 2014). Este jovem atribui o fato de estar sem namorada ao fato de não possuir um carro. Alguns consumidores de forró midiatizado participantes desta pesquisa, geralmente do sexo feminino, fazem referência ao fato de muitas letras de forró apresentar conteúdo machista e que, por isso, impossibilita uma identificação pessoal destes com tais músicas. Há letras de forró que trazem o homem em primeiro lugar e a mulher lá embaixo. Por isto não tem como eu concordar com isso, afinal sou mulher e não gosto quando o forró mostra as mulheres dessa forma tão desvalorizadas, mesmo gostando do ritmo que é muito alegre (Receptor 23, 2014).

As mediações individuais, segundo Orozco Gomez (2000), são as inter-relações constituídas entre a informação que é passada e os contextos socioculturais que o sujeito se encontra ao receber tais informações. Assim no momento que uma pessoa interage com uma mensagem ofertada por meio das letras musicais do forró midiatizado e estas acionam processos de identificação com o receptor, ele certamente produzirá sentidos midiáticos enunciados no contexto da apropriação dessas mensagens que podem ser de oposição rejeição, de negociação ou de dominância (HALL, 2003). Mediação cultural na recepção do forró midiatizado Grande parte dos receptores investigados, 28 deles, reconhece sofrer influência do forró midiatizado em seus hábitos socioculturais. Para eles o forró participa nas suas decisões e concepções acercadas questões afetivas. ―muitas vezes até esqueço a briga por causa de uma música romântica ‖ (Receptor 40, 2014). Para alguns entrevistados, o forró participa de maneira tão significativa em suas vidas que chega a influenciar diretamente em suas ações. Quando eu fui traída, fiquei mal, mas aí ouvindo aquela música ―você pensou que eu iria chorar por você‖, eu resolvi dar a volta por cima e dei, eu mudei. Não cedi ao sofrimento e resolvi seguir por outro caminho diferente de ficar curtindo tristeza (Receptor 40, 2014).

Outra revelação importante nesta análise, diz respeito ao fato de que 27 das 40 pessoas componentes da amostra dizem frequentar regularmente aos shows de forrós, motivados pelas mensagens recebidas via mídia. No momento em que eles decidem ir a um determinado show, cada receptor faz essa decisão por conhecer e ter afinidade com músicas bandas que costumam escutar no rádio, ver na TV ou na internet. O forró veiculado pela mídia influencia esses receptores a irem aos locais de shows, a conhecerem outras pessoas, a conviverem com outros ambientes que não o familiar e o local de trabalho, o que culmina na construção de novas identidades à medida em que os leva a instaurarem novas mediações no processo de apropriação e uso das mensagens midiáticas sobre o forró contemporâneo . Neste aspecto o receptor mostra-se atuante no processo de recepção, filtrando aquilo que o interessa de acordo com as mediações ao seu entorno. Cada sujeito ao receber uma mesma mensagem a interpreta a sua maneira, de acordo com seus contextos e subjetividades. Martín-Barbero (2001) lembra que a comunicação é uma relação de troca, em que o meio e o receptor interagem e dessa interação surge não a mesma 151 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


mensagem que o emissor enviou, mas uma outra mensagem, que carrega consigo uma hibridação das ideologias do seu emissor e de seu receptor. Mediação cultural e individual na recepção do forró midiatizado Jacks (1994) lembra que a mediação cultural é o local de origem de todas as informações, pois é em sua cultura que os receptores são contextualizados, é o local onde os receptores significam as mensagens e é também a base norteadora de outras mediações como situacional, institucional, entre outras. Ao buscarmos identificar como os entrevistados vislumbram o forró no cenário cultural nordestino hoje, percebemos que os sujeitos investigados apresentam uma idéia de identidade cultural nordestina diversificada entre si. Alguns se pautam em noções de ―raízes‖ ―costumes‖, ―folclore‖, ―receptividade‖, ―humildade‖. Estes receptores se mostram nostálgicos e voltados para um ―Nordeste tradicional‖. No entanto há aqueles que revelam conceber o Nordeste como um lugar híbrido, diverso e de múltiplas culturas convivendo simultaneamente no tempo contemporâneo. A cultura nordestina para mim é aquela cultura bem enraizada, onde a culinária é marcante, o forró é marcante, as festas juninas, o forró tem uma porcentagem cultural no nordeste muito forte, até mesmo pelo fato de ele ser um estilo típico daqui. Aqui é que é feito o forró de verdade (Receptor 1, 2014). A cultura nordestina é muito rica, mas há aquela questão do preconceito, ah é nordestino, é o forró, é a paçoca, é a maria-isabel, então quando se fala em nordeste as pessoas remetem a isso e não enxergam que o nordeste é bem mais que isso (Receptor 12, 2014). Com a TV, a gente passa a ficar tudo a mesma coisa, gostando das mesmas coisas, até as gírias. Tipo, eu cresci na frente da TV, depois na internet, e lá era todo mundo, de todos os lugares, então eu sou uma pessoa normal, gosto de um monte de coisas de vários locais (Receptor 5, 2014).

Todos os entrevistados acreditam que o forró se apresenta como o vetor de maior identificação do povo nordestino por ressaltar diferentes aspectos da cultura tradicional ainda presentes no imaginário de grande parte dos sujeitos locais (vaquejada, sertão e outros). Porém, estes entrevistados dizem não possuir qualquer vivência com esses elementos da cultura do Nordeste. A cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, ou retorno ao passado. Mas uma produção. Possui sua matéria prima, seus recursos, seu ―trabalho produtivo‖ depende de um conhecimento da tradição enquanto ‗o mesmo em mutação‘ e de um conjunto efetivo de genealogias. O que o desvio através do passado faz é nos capacitar, através da cultura, a produzirmos novamente a nós mesmos. Por isso, não se trata do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão a nossa frente. Estamos em constante processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (HALL, 2003, p. 44) Todos os entrevistados afirmaram ter tido os primeiros contatos com o forró ainda na infância por meio do rádio e da TV, e atribuem o gosto por esse estilo musical em razão da influencia da família e do grupo de amigos. Lembrando Canclini (2000), componentes da cultura popular contemporânea constituída a partir dos meios eletrônicos (como no caso do forró), não se apresenta como resultado de diferenças locais, mas da ação difusora e integradora da indústria cultural. A noção de popular construída pelos meios de comunicação, e em grande parte aceita pelos estudos nesse campo, segue a lógica do mercado. O forró faz parte da nossa cultura, mesmo pessoas como eu, que não gostava muito, ele faz parte da nossa vida, na infância, na adolescência, porque é o nosso ritmo, é o que mais se ouve aqui no Nordeste. Os pais meio que impõe esta cultura para os filhos desde cedo. Só que o forró deles era outro, bem diferente deste que toca hoje. Era o Luiz Gonzaga, né...(Receptora 9, 2014)

Mediação cultural e individual – relações de gênero na recepção do forró

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Orozco (2000) afirma que a mediação individual surge do próprio sujeito tanto enquanto indivíduo cognoscitivo e portador de emoções específicas, como de sua condição de sujeito social e membro de uma cultura. Em ambas as situações, a organização do sujeito – indivíduo - se desenvolve em diferentes cenários. Assim, questões de sexo, idade e etnicidade podem ser incorporadas no contexto das mediações individuais. O autor acredita que existem diferenças nos modos em que homens e mulheres assistem TV, bem como nos critérios de seleção das programações. Contudo, existem alguns estudiosos que enfatizam o papel fundamental da cultura nesta mediação. E, embora reconheçam as diferenças biológicas de gênero, eles relativizam o papel das condições naturais sobre as audiências. A metade das mulheres entrevistas (nove) vislumbra o homem nordestino cantado nas letras do forró, como um homem ―grosseiro e machista‖. Na opinião dessas mulheres, as músicas retratam a realidade, uma vez que o nordestino ainda hoje é muito conservador e machista em relação à mulher. O homem nordestino, falando a verdade, é um homem sem vergonha, machista ao extremo, ciumento, que vê a mulher não como uma parceira, mas sim como um acessório, o homem nordestino tem uma identidade muito forte, porque eles tem assim um 'Q' de homem, de macho, parece que são descendentes de cangaceiros, todos, rsrsrs...(Receptor 18, 2011).

Essas mulheres justificam suas opiniões ao fazerem referencias às suas próprias experiências de vida familiar e social. Relataram que os pais ofereciam tratamentos humilhantes às suas mães, marcados por traições conjugais e outros comportamentos de natureza machista. Para elas, embora esta realidade se apresente de maneira menos explicita e com outras configurações, continua ainda muito forte entre os homens do Nordeste. Assim, os contextos socioculturais vividos pelas entrevistadas contribuem na construção das imagens acerca do ser masculino do Nordeste que elas possuem até hoje. O homem nordestino é muito machista, medroso em relação à mulher, sem atitude, e quando a mulher toma a atitude, ele reprova, eles ainda são muito atrasados. O homem é muito possessivo, se coloca sempre em primeiro lugar. A mulher nordestina ainda é muito submissa (Receptor 19, 2011).

Ainda no cruzamento entre mediação cultural e a mediação individual, diz respeito ao fato dos homens abandonaram sua função de provedor da suas famílias para assumir uma vida de festas e liberdade, assim como narram as letras das músicas de forró contemporâneo. Com isto a mulher está assumindo o papel de chefe de família sozinha. O que as obriga se tornarem cada vez mais autônomas e independentes no mercado de trabalho. Outro aspecto abordado pelas mulheres investigadas, diz respeito ao fato de algumas mulheres entrevistadas atribuíram as traições conjugais cometidas por mulheres contra seus parceiros, às letras cantadas pelas cantoras das bandas de forró. Por exemplo, o forró cuja letra diz: ―hoje eu vou pra balada, hoje eu vou me divertir, não dependo de homem pra sair por aí‖. Vê-se que as mulheres estudadas refutam as constantes apologias aos comportamentos e concepções machistas presentes nas letras do forró contemporâneo, que costumam se referir às mulheres como: ―raparigas‖, "interesseiras", fúteis, entre outras. Trotta (2009) concorda que o forró eletrônico, com um ritmo mais voltado para os jovens e o espaço urbano, desenvolveu mudanças em suas temáticas, e agora está voltado para questões sexuais e de relacionamentos, mas que continua, através de suas letras, acentuando as diferenças entre sexos, com letras de caráter machista. Na opinião dos homens participantes da pesquisa, também eles percebem o homem nordestino sendo mostrado no forró contemporâneo sob um viés machista. No entanto, eles defendem que tais formas de enunciá-los são apenas estereótipos herdados do passado. Embora, todos homens entrevistados se reconheçam "forrozeiros" e "pegadores" quando se assumem frequentadores e participantes ativos das práticas forrozeiras. Porém, eles defendem que os homens do Nordeste apresentam outras marcas de identidades não machistas e importantes que não são tratadas no forró e na mídia. 153 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Considerações finais Constatamos neste estudo que os receptores midiáticos investigados apresentam concepções sobre o forró contemporâneo de maneira negociada com os sentidos produzidos e enunciados pela mídia. Os consumidores do forró midiático se mostraram ativos no processo emissão-recepção, desde a escolha da mídia pela qual ouvem forró no rádio, assistem na TV ou na tela do computador, até a escolha das letras das músicas em conformidade com seus contextos de vida e subjetividades. Percebemos que o forró é apontado pelos receptores como elemento de identidade cultural nordestina, embora este estilo de música e de dança esteja voltado atualmente para questões, geralmente, sexuais e amorosas. Entretanto, os receptores asseguram que se ―sentem mais nordestinos‖ ao interagirem com o forró que, segundo eles, é ―um estilo de música tipicamente nordestino‖. Nos sentidos enunciados pelo forró midiático, identificamos nas narrativas dos sujeitos/receptores, mediações atreladas aos seus contextos situacionais, individuais, institucionais e culturais quando eles negociam as mensagens produzidas e ofertadas no forró contemporâneo via mídia. A presença de medições tecnológicas foi detectada quando os receptores afirmaram utilizar diferentes tipos de meios (rádio, DVD, TV, internet e outros), conforme seus contextos de situação e objetivos de consumo na interação com o forró. Observamos com isto que as tecnologias apresentam-se neste processo de midiatização como importante elemento de mediação, hora disputando poder de enunciação de sentidos, outras horas mostrando-se consensual no diálogo com as demais mediações intervenientes nesse processo comunicacional. Averiguamos que valores e ideologias constituídas historicamente nas relações entre os sexos, de que os homens que namoram muito são ―cabras machos‖ e as mulheres namoradeiras são ―garotas safadas‖, é que ainda nos dias atuais, versões machistas enunciam sentidos de masculinidade e de feminilidade nas bandas de forró do século XXI. Frente a isto compreendemos que o forró por si só atua como elemento mediador ao ofertar sentidos culturais de nordestinidade sobre o que é ser homem e ser mulher e tantos outros sentidos produzidos e negociados na recepção midiática do forró contemporâneo que contribuem no processo de ressignificação de identidades dos seres nordestinos de hoje que clarificam a estreita relação entre o cultural e o individual. Martín-Barbero (2001) acredita que a mediação cultural participa de maneira geral nas interações sociais e na interação destas com os meios. Orozco Gómez (2000) esclarece que o indivíduo receptor é produto e membro de uma cultura que condiciona e orienta os dispositivos de percepção dos sujeitos, influenciando assim suas respostas às mensagens produzidas pelos meios. Verificamos que as mediações se apresentam no contexto da recepção do forró midiatizado de forma multifacetada e simultânea, constituindo-se naquilo que Orozco Gomes (2000) denomina de multimediações, ao observarmos um entrecruzamento dialógico entre as mediações culturais, tecnológicas, situacionais e institucionais instauradas na recepção do forró midiático entre jovens teresinenses. Referências ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife/PE: Fundação Joaquim Nabuco, Massangana; São Paulo/ SP: Cortez, 1999. GARCÍA CANCLINI, Nestor. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 3 ed. Edusp. São Paulo, 2000. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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GOTHIC FICTION IN VIDEOGAMES: REFLECTIONS ABOUT RESIDENT EVIL 6 AND THE ITS SURVIVAL HORROR GENRE1 Lukas Rodrigues dos Santos2 Renata Cristina da Cunha3 RESUMO Este trabalho tem como tema a relação entre a Literatura Gótica e o jogo eletrônico Resident Evil 6, que tem como gênero o Survival Horror. Os jogos eletrônicos são discutidos na atualidade por serem um novo meio de comunicação e permitiram uma nova abordagem nessa atividade. Os jogos do gênero Survival Horror possuem, em sua essência, uma temática que prende o jogador por possuir elementos familiares, vistos na Literatura Gótica. Dito isso, esta pesquisa irá mostrar os elementos góticos no jogo eletrônico Resident Evil 6. Para isso, este trabalho busca responder a seguinte questão norteadora: Sendo Resident Evil 6 um jogo eletrônico do gênero Survival Horror, quais são os elementos góticos encontrados neste jogo eletrônico? Para responder este questionamento, elaboramos como objetivo geral: Encontrar os elementos góticos dentro do jogo eletrônico Resident Evil 6. Especificamente, buscamos: contextualizar a Literatura Gótica, mostrando suas principais características; classificar os jogos eletrônicos, identificando o gênero Survival; explicar e analisar as campanhas do jogo Resident Evil 6, identificando os elementos góticos. Para alcançar estes objetivos, uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo e abordagem exploratória fundamentada nos seguintes autores: Narciso (2014), Zagalo (2013), Lovecraft (1927), Sousa e Negreiros (2015), entre outros, no segundo semestre de 2016 e primeiro semestre de 2017. Os dados apresentados mostraram evidência dos traços góticos em grande parte do jogo eletrônico. Não apenas este jogo, mas em vários jogos do gênero Survival Horror. Os cenários, personagens e até mesmo tramas deste tipo de jogo eletrônico possuem elementos góticos presentes em várias obras desta literatura como Frankenstein de Mary Shelley (1818), O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Robert Louis Stevenson (1886), entre outros. O autor Niedenthal (2009) afirma que o gênero Survival Horror constitui uma nova forma de Gótico, uma em que o próprio jogador faz parte das ações. Palavras-chave: Literatura Gótica; Survival Horror; Resident Evil 6.

Introduction

H

. P. Lovecraft (1927) said that the oldest and strongest emotion of humankind is fear, and the oldest and strongest fear is the fear of the unknown. For a little boy everything is new, everything is unknown. Everything would make someone feel goosebumps. When I was about ten, I played my first Survival Horror game. It was called Resident Evil. Many years have passed and I am still playing video games. Some of them, the Survival Horror games. When I thought about what video game I should research, Resident Evil came to my mind instantly. Said that, I decided to find gothic elements in Resident Evil. However, the whole franchise is too big, then decided to focus on a single videogame. That made me give a long thought about it. According to Niedenthal (2009), the Resident Evil series (1996-2017) have so strong gothic characteristics that he says that survival horror games constitute a new form of the Gothic. Resident Evil 6 was the chosen game. The reason I choose this game was this variety of information. I could work with the horrific situations of two first campaigns and the characters and dramatic characteristics of the two last ones. This study is the result of an exploratory and bibliographic research performed in four stages. Initially the collection of bibliographical documents that provided information about the emergence of the gothic fiction, 1

Trabalho apresentado no GT.01 Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduando da Universidade Estadual do Piauí. Parnaíba-PI. Endereço eletrônico: lwckahs@gmail.com 3 Professora Doutora da Universidade Estadual do Piauí-PI. Endereço eletrônico: renatasandys@hotmail.com 156 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


besides the works of authors like Mary Shelley, Bram Stoker and Horace Walpole and the videogame Resident Evil itself. Next, a review of the found documents was undertaken, based on the following criteria of inclusion and exclusion: we kept as a source of research the documents that presented characteristics of Gothic Fiction in the video game Resident Evil 6. The documents that prevented and/or contradicted the characteristics of the Gothic Fiction in Resident Evil 6, as well as the documents that did not allow the relation between the videogame and the Gothic Fiction, were considered as part of the exclusion criteria for this research. In a third phase, summary records were prepared for the material of analysis to list the relevant aspects identified in the consulted documents in general and not only in relation to the bibliographic material, allowing the points related to the research to be identified from the contact with the documents highlighted used. Finally, an analysis was performed condensing the aspects related to the research theme in order to achieve the previously established objectives. Said that, we believe that the achievement of this research will instigate many others to come. Many academics who did not know what could initiate their will as a researcher may find in this work a new point of view and awake their writing. Socially, as this work is a bibliographic work, it drinks much of the literature, which is, undoubtedly, a source of information that shows people how the world was by the eyes of the author. Personally, that work showed me how numerous are the options of a researcher. In addition, how insignificant a theme can seem to be and how interesting it can become. Researching is an art, showing different point of views on different subjects increase the human capacity, creating new ideas all the time. Those ideas helped me, as a researcher to find out the essence of a work. In terms of organization, this essay is divided into three chapters, besides the introduction and conclusion. In the first chapter, we discuss the characteristics of Gothic Fiction. In the second chapter, we talk about the Resident Evil 6 video game. In the sequence, we analyze the Resident Evil 6 campaigns by the lens of the gothic fiction characteristics intending to obtain answers to our restlessness of novice researcher. Chapter 1 Gothic fiction in Survival Horror: the dark realm of survival horror Whenever anyone asks about gothic literature, people always answer the classics Bram Stoker‘s Dracula, Mary Shelley‘s Frankenstein or the contemporary Stephenie Meyer‘s Twilight. However, why is gothic called gothic? What is its background? According to Burgess (2016, p.1.): The term ―Gothic‖ originates with the ornate architecture created by Germanic tribes called the Goths. It was then later expanded to include most of the medieval style of architecture. The ornate and intricate style of this kind of architecture proved to be the ideal backdrop for both the physical and the psychological settings in a new literary style, one which concerned itself with elaborate tales of mystery, suspense, and superstition. The height of the Gothic period, which was closely aligned with Romanticism, is usually considered to have been the years 1764-1840, but its influence extends to the present day.

Said that, in fiction, gothic represents the works of the time that could be described as mysterious works. This way, we can say the gothic scenario is full of surprising devices. Gothic architecture in Survival Horror According to Narciso (2014), the Middle Ages were essential to the development of architecture in Europe. As the thought of the time where God as the center of the universe, people built thinking this way. The gothic architecture, in this point is essential to the understanding of virtually ambient like those in the Resident Evil video games, as they reproduce horrible places.

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Hunyad Castle represents the religious characteristics of Gothic architecture. The big and high tower represents the will of people to be close to God, as Narciso (2014) explained. Morris (2015) explained that castles, abbeys and manors were the setting of most gothic novels. Morris (2015, p. 1) defended: ―Gothic novels were written to develop feelings of fear and terror in a reader – and were set in evocative, crumbling old castles, abbeys and manors. Hunyad Castle is an example of a spooky, gothic castle‖. Gothic literature, the first step in Survival Horror Gothic literature is believed to be born in England with the gothic romance of Horace Walpole, The Castle of Otranto from 1764 (Narciso, 2014). H. P. Lovecraft was not only a storywriter of this genre, but he also made a study about this genre called Supernatural Horror in Literature in 1927, which he studied the idea that fear is the most intense emotion and the fear of the unknown marks each individual. In his own words: The oldest and strongest emotion of mankind is fear, and the oldest and strongest kind of fear is fear of the unknown. These facts few psychologists will dispute, and their admitted truth must establish for all time the genuineness and dignity of the weirdly horrible tale as a literary form the oldest and strongest emotion of mankind is fear, and the oldest and strongest kind of fear is fear of the unknown. These facts few psychologists will dispute, and their admitted truth must establish for all time the genuineness and dignity of the weirdly horrible tale as a literary form (LOVECRAFT, 1927, p. 12).

He meant that it is easier to remember something that made us feel afraid than anything else. França (2010, p. 73) said: ―(…) fear, by its emotional intensity, would be a legitimate feeling to be produced in works of art‖. It is known, for sure, that many works of art appeal to the macabre and the horror to affect the viewer. Lovecraft (1927) adds that the reader needs to use his or her imagination to fully understand written works. He defends: The appeal of the spectrally macabre is generally narrow because it demands from the reader a certain degree of imagination and a capacity for detachment from everyday life. Relatively, few are enough from the spell of the daily routine to respond to rappings from outside (…) (LOVECRAFT, 1927, p.12).

Lovecraft (1927) adds that the reader and the writer need to reach and appeal to a ―cosmic fear‖ (p. 15), that is to say, a fear that transcends the reader and appeals to the unknown in a supernatural situation with no explanation. Monsters in Gothic Literature According to Sousa and Negreiros (2015), great literary works in the world of gothic literature marked the XIX century. Those works used monsters to describe human feelings. They listed examples like ―The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde‖ (1886) by Robert Louis Stevenson, that portrayed the human anger; ―The picture of Dorian Gray‖ (1891) by Oscar Wilde, which pictures the vanity of Dorian Gray; and the obsession of Victor Frankenstein in ―Frankenstein or the Modern Prometheus‖ (1818), by Mary Shelley. However, what is a monster? According to Sousa and Negreiros (2015, p.193): Monsters seem to be creatures which have a grotesque form, they are very ugly and they have strange proportions on their bodies (…) the word monster is related to the meaning of showing and advertising people about something.

Said that, we can say that monsters will frighten people, warning only by showing up that they are dangerous and lethal. As they are ugly and have strange proportions, seeing the image will cause disgust, as explained Coale (2012, p. 102): ―A monster size and requires strength and must be strange and terrifying. It is

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both frightening as tremendous: a confrontation of emotions that distort and crush our sense of scale and limit‖. Those warnings usually would warn us of bad things. Stephen King (2012, p.34) adds: ―the answer can be that we invent horrors to help us to support the true horrors‖. About Frankenstein‘s Shelley (1818), Sousa and Negreiros (2015) describes the nameless monster as ugly, but his ugliness is not related only to his bad essence, also to the sins and the ambition that it represents, ―in other words: the secrets of human universe (p.200)‖. By this representation, they mean the reasons he was made. Dr. Frankenstein is fascinated by the mystery of life. His ambition to explore the unknown, trying to be the pioneer of the world by creating life. His sin was to want a knowledge only God possessed, ―He wants to take the knowledge of creation and use it for his own purpose‖ (SOUSA AND NEGREIROS, 2015, p.203). His ambition became his obsession. Chapter 2 Beyond videogames: let’s talk about Resident Evil 6 Videogames have been a communicative process with true power lately. Many kinds of video games produced and many different kinds of art, concepts and information are seen using those games. Loguidice and Barton (2009) affirm: ―(…) video games have not followed a nice, neat linear evolution, and even the most original-seeming game had plenty of predecessors and influences, whether it was an earlier game or some other cultural phenomenon‖. Today, games have a different background from the first games. We can say that game producers need to think in other facts like the technological advances and a difficult public. As Teixeira (2008, p. 38) says: The emergence and consequent popularity and accelerated massification of the video game industry as well as the development of digital information and communication technologies have resulted in widespread awareness of the multi-level potentialities of the simulation culture present in video games and computer games beyond mere entertainment.

However, what is exactly a videogame? As the own words define, according to Narciso (2014), a video game is a game in a video, which the player can interact with the images and ambient in the screen usually with a character. Usually a television or monitor makes themselves necessary. As Teixeira (2008) affirms, it is remarkable the amount of abilities that the player will develop by playing video games. He lists some examples like the ―eye-hand‖ ability, activating many parts of the brain and acquiring experience when having to make a decision. He also explains about the ability to interpret meanings in many artistic and cultural areas. When the player needs to decide between using a resource or saving it to combine with another resource later, it will develop the economic view of the resources of the player. Resident Evil 6 Resident Evil 6 is an electronic game published and produced by Capcom in 2012. The game brings back some of the main characters of previous games who were never seen together before. The game presents four campaigns, consequently, four protagonists. They are Leon Kennedy, Chris Redfield, Jake Muller and Ada Wong4. RE6 put together two characters never seen together before. They were Chris Redfield and Leon Kennedy. Two main protagonists that had a heroic background. Now they were in the same game but not actually together. To understand that, we must understand the plot of the game. Even that the game presents the campaigns of Leon, Chris, Jake and Ada – in that order. The game, as we already explained, is divided into four campaigns, however, each campaign is divided into five chapters.

4

Ada Wong first appeared in RE2, helping Leon during his gameplay. She appeared again in RE4, again with Leon, but this time she did not help him. All RE fans learned that if there is Leon, there is Ada. 159 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Chapter 3 The gothic fiction in Resident Evil: an analysis of the gothic elements Analysis of the campaigns We choose to use all campaigns, explaining about the part of the partners of each character. Some enemies were analyzed as they had a deep influence in the gothic fiction, as we will see next. We played the game, noting the characteristics of the gothic fiction as places, characters, enemies, feelings, among others. We shall see these characteristics analyzed ahead. Leon S. Kennedy, partner Helena Harper As we start the game, we see a scene with Leon in Tal Oaks Ivy University. In chapter one, we a playing with Leon when we kill the president Benford in the behalf of Helena Harper. In this moment we a living a bioterrorist attack. This scene is very specific. Leon‘s face is focused while he yells to the zombie president to stop. The president, however, is not himself anymore. It is his body, but the person inside is completely dead. This fixed camera contributes to the horror because it afflicts the player, as he does not know what the monster is going to do. Loguidice and Barton (2009, p.2) explains that well, when they say: (…) the environments or rooms could be shown only from a certain fixed camera angle that was dependent upon the player character‘s location. The technique allowed for dramatic, predetermined camera angles, but also meant that the player didn‘t always have a clear view of the action. Arguably, this feature made the engine work well for horror, as such camera angles are a quintessential aspect of most horror films – you know something is around the corner, but can‘t make it out until it is too late.

This fixed camera is a characteristic of the first RE video games, coming back in RE6 as an evolved characteristic. The zombies in RE are long dated as the main enemies of the character we play. We need to survive them, which usually are shown as horrific monsters with putrid bodies. This kind of feature gets to mess with the player‘s mind, causing fear. As Carrol (1999, p.43) defends: Horrific monsters are threatening. This aspect of the design of horrific monsters is, I think, incontestable. They must be dangerous. This can be satisfied simply by making the monster lethal. That it kills and maims is enough. The monster may also be threatening psychologically, morally, or socially.

Perron (2009) defends that those creatures need to be, besides horrific, demoniac in their own being, being able to provoke apprehension in the player by having contradictory physical concepts. As Perron (2009, p.43) explains: ―(…) the creatures transgress distinctions such as inside/outside, living/dead, insect/human, flesh/machine, and animate/inanimate‖. Those concepts of transgression we will see along this analysis in other creatures. After the events with the president and Helena, she reveals to Leon that she is involved in this bioterrorist attack, making a confusion in Leon‘s head, but also in the player‘s head. Burgess (2016) affirms that mystery is one of the characteristics of Gothic literature when he compared the origin of its name remembering the Gothic architecture and its mysterious designs. Harris (2015) also mentions the mystery as a gothic element. Giving support to our theory of the mystery as a gothic element present in this specific moment of RE6, Harris (Harris, p.1) defends: The work is pervaded by a threatening feeling, a fear enhanced by the unknown. This atmosphere is sometimes advanced when the characters see only a glimpse of something (…). Often the plot

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itself is built around a mystery, such as unknown parentage, a disappearance, or some other inexplicable event.

After the events at the Ivy University, we finish chapter one. In chapter two, we, as Leon alongside with Helena, head to an old cathedral, where Helena promises answers to our character. Leon and Helena now are at the city cemetery, the only way available to reach the cathedral. This cemetery, however, is no ordinary cemetery. The place is full of big chapels well designed with the more beautiful of the Gothic architecture can provide. Besides, the place is full of dead bodies rising from the floor during a storm full of lightening and thunder. Kennedy (2016) defends that the scenario is very important in gothic fiction. He mentions, for example, that surprising devices are a characteristic of the gothic fiction. In this particular part of the game, the player is frequently surprised by a zombie coming up from the floor or by the sound of a thunder. The light produced by the lightening is also a characteristic that scares the player. As Leon and Helena arrives in the cathedral, we can see the whole structure of the place. Again, we find the gothic architecture for all over the place. Leon and Helena see the first mutation in that cathedral when they met a monster that expels a gas that transforms people into zombies. Gonçalo Júnior (2008) explains about monsters with uncontrolled powers. The monster Leon and Helena are facing inside the church can be described as one of those as his power to transform people into zombies were out of its control. When we, as Leon and Helena, finally defeats the monster, Helena tells Leon the truth behind the death of Adam Benford. Someone who was using her sister Deborah as hostage, which became a monster, forced her. Now they have to face Deborah as a monster. The peak is when Helena has to kill her own sister to survive. Deborah has already became a monster with no conscious. Harris (2015, p.2) adds, ―Crying and emotional speeches are frequent‖. In chapter four, we arrive in China. At this point, the player sees Simmons as the great villain of the video game, but we will later see that another character who also wanted her revenge from him manipulated all his actions. Simmons becomes a giant monster to fight Leon and Helena when someone injected the C-Virus on him. Sousa and Negreiros (2015, p. 197) defended that: The aesthetic appearance of a monster is an interesting point to analyze because a monster is generally represented as ugly, a grotesque creature with a deformity in its body, a being which is not a beautiful thing to see and also something strange to the human eyes.

Simmons was, indeed, ugly. At the end of chapter four, when we thinks we defeated Simmons, he is a monster that looked like a centaur. As Leon and Helena defeat him, chapter four ends. At the end of chapter five, Leon and Helena defeats Simmons. They use the information Sherry gave to Leon to clear their names. Helena is considered innocent, but Leon cannot avoid that she loses her job. Chris Redfield, partner Piers Nivans In Chris‘ campaign, he starts chapter one six months after his loss of memory. Chris is in Lanshiang in the middle of the chaos. He has lost his memory and he is trying to retrieve it. His mission is to contain the destruction caused by the C-Virus epidemic in town. He is with Piers and his team. The J‘avos Chris has to face can be analyzed as ―hybrid creatures that possessed souls and supernatural powers‖ if Sousa and Negreiros (2015, p. 191) are trying to say that those hybrid forms mix humans and animals. J‘avos are creatures, which looked like humans but have one or more grotesque part of their bodies. About this time, we come to the end of chapter one. In his great American Gothic Fiction: An Introduction (2004), Lloyd-Smith tries to answer the question ―What is American Gothic‖, in his attempt, he settles gothic writers' interests, which are very much seen in Chris‘ trauma as explain Lloyd-Smith (2004, p. 6):

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Gothic interest in extreme states and action can also be seen to correlate with widespread social anxieties and fear. Significant among these are fears having to do with the suppressions of past traumas and guilt, anxieties concerning class and gender, fear of revolution, worries about the developing powers of science (…).

The trauma Chris suffered due to the big guilty he absorbed is very well explained here when we see Gothics interest. Said that, Chris‘ emotions are undoubtedly a reference to gothic fiction. The grotesque takes part when the BSAA team finds mutations inside a building. Jeha (2007, p.7) defended that ―monsters embody everything that is dangerous and horrible in human experience‖. When Chris finds those mutations inside the building, he would never imagine how they would mark him as a horrible experience. After killing some of those mutations, Chris and his team find a blue dressed woman who identifies herself as Ada Wong. She asks them to follow her when actually she is taking them to a trap. This event marked the end of chapter two and the beginning of chapter three. Now we are back to China. Chris recovered his memory and his anger are just becoming bigger as he remembers of Ada Wong. Chris receives a message from his headquarters informing the location of Ada Wong. Chris, already consumed by rage, goes to an aircraft carrier, where Ada is supposed to be. As Chris finally reaches her, another character also reaches her. They fight for her custody. However, at this time, Chris is possessed by pure evil. He wants to kill Ada at any cost. When they finally stop the fight, Chris and Leon are pointing their guns one to another. Leon yells: ―She is a key witness, we need her‖. Chris answers: ―I lost all my men because of her!‖ Chris almost kills Ada or Leon to reach Ada. Leon is dealing with an insane Chris. He has to be careful otherwise Chris will do something he will regret later. When Leon finally convinces Chris to arrest her, Ada distracts them while escaping again. As Harris (2015, p.2) affirms: ―characters suffer from raw nerves and a feeling of impending doom‖. After that, Leon calms Chris down. Chris has his consciousness back. When Chris finally finds Ada, she is near to a cliff when a man in a helicopter shoots her. At this moment Chris receives a call from Leon, Chris tells him that Ada did not make it and Leon asks him to save Sherry and Jake, telling Chris who is Jake. As this call ends, also ends chapter four. In chapter five, Chris and Piers head to save Sherry and Jake. Therefore, they leave. Leaving Chris and Piers to fight Haos. The last monster Ada left to spread C-Virus. Haos has no conscious, so we come to the definition of monsters again that, according to Sousa and Negreiros (2015), ―monster‘s actions are considered evil‖. As Chris and Piers defeat Haos, the place is about to be explodes. They immediately head to the emergency capsules. The place explodes and Chris is safe. By this time, chapter five ends along with Chris‘ campaign. Jake Muller, partner Sherry Birkin In chapter one, we see Jake running from authorities in Edonia at the same time Chris is in the country. At this time, his partner is presented to us. She is Sherry Birkin 5. Sherry received the mission of taking Jake to US, so his blood could be analyzed and they could create a vaccine for the C-Virus, a new virus used as Bioorganic weapon. However, Jake makes jokes about her proposal and asks money to go with her. As they sets the agreement, Jake and Sherry departs to US. However, in their way, they will find Ustanak, a monster created by Neo-Umbrella to capture Jake. He is a giant monster with a mechanical arm. His face is full of scars and we can see only one eye. Perron (2009), as we already mentioned, defends this kind of characteristic in monsters when he says they are half flesh, half machine. Sousa and Negreiros (2015) also

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In RE2, Leon and Claire are playable characters. When we choose Claire, we found Sherry as a little girl during the campaign. In RE6, Sherry has grown and became a DSO agent. 162 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


mentions that monsters in gothic fiction need to be grotesque, causing fear to the reader. In this case, the player. Ustanak brings to the player this true characteristic of the gothic fiction: the grotesque. Ustanak has physical characteristics of gothic fiction. However, those characteristics would be useless if he would not be the monster he is by his actions. His obsession with his mission is his stronger characteristic. When we remember gothic literature, we take the nameless creature created by Dr. Frankenstein. He became intelligent by his own, deciding that all that happened to him was his creator‘s fault. That created in the monster‘s mind, the obsession for vengeance. He wanted to destroy Dr. Frankenstein‘s life (ENKI, 2008). During Jake‘s campaign, Ustanak obsession is capturing Jake. In their escape attempt, Sherry and Jake find a plane. They depart to US, but before they took height, Ustanak crashed the plane. They use parachutes to survive the fall. Sherry is badly wounded, but surprisingly for Jake, Sherry also has a special lineage. Her special blood makes her wounds heal very fast. This marks the end of chapter one. After a conversation, they leave the place walking, where they find a cave. This place is the scenario of chapter two, which, according to Hogle (2009), is a place usually used as setting for gothic fiction stories. They are able to pass through the cave, but Ustanak captures them on the other side. Ada Wong is the one giving him orders. Jake and Sherry are taken to a Neo-Umbrella laboratory in Lanshiang, China. That ends chapter two. As Hogle (2009) mentioned, laboratories were also settings for gothic stories. As they finally leave the complex, ends chapter three. Sherry and Jake want to contact Sherry‘s commander. The feeling of suspense is present when we cannot predict from where the danger is coming. Harris (2015) mentions this feeling when he says: ―The work is pervaded by a threatening feeling, a fear enhanced by the unknown‖. We feel threatened by anything in this part. After this part, Neo-Umbrella captures Jake and Sherry again. Ending chapter four. In chapter five, Jake and Sherry are being prisoned in an underwater facility when someone releases them. A very intense moment is when Jake and Sherry find Chris and Piers. Chris reveals that he killed Jake‘s father. Jake pointed his gun to Chris‘ face, but he did not shoot. The scene, however, is very tense, showing that ―the narration may be highly sentimental, and the characters are often overcome by sorrow (…)‖, as Harris (2015, p. 1) affirms. As Victor Frankenstein decided to face his creation after so many bad things the creature did (SHELLEY, 1818). Jake also decides to face Ustanak in the end of chapter five when the monster tries to stop Jake again. After a long battle, the monster falls into a fire and dies. This may be a demonstration that the character is not able to defeat the monster as Clery (2008) defended when she said that the atmosphere of oppression created by the narrator only showed the powerlessness of the characters. Ada Wong, solo campaign Ada‘s campaign starts as she receives a message from Simmons to go in a submarine that belonged to him. In Ada‘s campaign, as she is alone, we need to avoid any contact with the enemy. Ada ends chapter one as she leaves the submarine with the information about a doppelganger. In chapter two, she goes to Tall Oaks to investigate her doppelganger. She finds Leon and Helena there, who she helps defeat Deborah-mutation. After those events, Ada sees the video that showed another Ada emerging from a cocoon. Finishing chapter two. Now Ada is in China, where her doppelganger is supposed to be. There she follows Chris and Piers, while they are hunting ―her other self‖. She uses the opportunity to help Jake and Sherry when they are being chased on a boat. Here, chapter three ends. Ada follows Chris and Piers to an aircraft carrier. There, she sees Simmons‘ men shooting the other Ada while Chris watches. She waits and goes to see her doppelganger on the floor. Here we finally see the two Adas together. We can state this fact as another gothic element, as Webber (2003), affirms that the doppelganger is a gothic creature. The woman reveals to be a monster and attacks Ada. Ada kills her and find some information in the process. That woman was Carla Radames, a scientist Simmons used to transform into Ada‘s clone. Simmons was obsessed by Ada. She rejected him, which made him create his own Ada. In this part, 163 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


we can say that Carla and Simmons had both Dr. Victor Frankenstein and the nameless creature characteristics. Simmons was obsessed by Ada and he wanted her by any cost. His obsession reminds her the nameless obsession for destroying Frankenstein‘s life. At the same time, Simmons was able to create his own Ada. Said that, he had both characteristics. Carla Radames was a genius before her change of identity. She was studying the progenitor virus when she created the C-Virus. However, she was obsessed by her virus and this obsession made her test and create many monsters. In the end, Simmons used her to create his Ada. Simmons and Carla relationship are a constant change of personality and interests. First Simmons wanted Carla to create the virus he claimed to be necessary for the planet stability. Then, this same character, obsessed with a global issue, changes his interest to a woman he defined as unique. Then, Carla, who lived to create the C-Virus, left all her plans to initiate a vengeance with unshakable will. She wanted to destroy, not only Simmons life, but also his idea of a stable world. Besides that, Carla wanted to blame Ada for everything she was doing. She entailed her miserable life to Simmons and Ada. During one of her calls to Ada, she revealed her plans about launching missiles to the entire world while being Ada. As she states: ―And the world will blame you‖. When she was still a scientist, we can say that her hunger for knowledge about the virus is similar to Frankenstein hunger for the secret of life. When she became Ada and retrieved her memory, she became the nameless creature. Hungry for vengeance against her creator. Ada also finds out that Carla was the one who used the C-Virus on Simmons, transforming him into a monster and having her revenge. After Ada finds out about all this information about Carla Radames, she leaves to finish her business with Simmons, ending chapter four. As Ada arrives in town, she sees that Simmons is a monster and he is fighting Leon and Helena. She helps them and they finally destroy Simmons. Ada leaves to her lonely secret life, ending chapter five. Conclusion The Gothic Literature was school of great works that marked the time and still nowadays has its works. A genre has lived forever in old works as Frankenstein, Dracula; and new ones as Twilight series and Interview with the Vampire. We can see that those stories evolved and travelled in time until nowadays. Maybe, the future gothic stories will be told by video games. Survival horror video games. As Nidenthal (2009, p.166) defends: Echoes of the themes, settings, and ambience of Gothic literature are so frequent in games from (…) Resident Evil (Capcom 1996-2009) series that it is possible to argue that survival horror games constitute a new form of the Gothic, one in which player activity drives the unfolding of the action.

Resident Evil 6 is a videogame of the Survival Horror genre. With this knowledge, we wanted to show the Gothic elements in the electronic game Resident Evil 6. Then, we asked: being Resident Evil 6 an electronic game of the genre Survival Horror, which are the gothic elements found in this electronic game? During this research, we analyzed the videogame and the campaigns available. We saw many gothic elements during our analysis, since architecture to monster‘s characteristics. We can exemplify with the cathedral we see playing with Leon that has the same characteristics of the old castles present in the gothic stories. Also, the character of Ustanak, a true monster that could easily come from the Dr. Frankenstein‘s lab. A main goal was elaborated to answer this question: To find the gothic elements within the electronic game Resident Evil 6. To achieve this main goal, we elaborated three specific goals: contextualize the Gothic Literature, showing its main characteristics; classify the electronic games, identifying the genre Survival Horror and explaining the electronic game Resident Evil 6; analyze the campaigns of the game Resident Evil 6, identifying the Gothic elements. All goals were achieved. We found gothic elements in RE6 during the analysis, we contextualized about the gothic fiction to show later in the videogame all that characteristics. We contextualized gothic fiction in 164 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


chapter one by showing gothic literature and its characteristics. We explained about RE6 in chapter two, explaining first what kind of game this is and what are its characteristics. We showed the contextualized elements in the videogame comparing the videogame plot with the characteristics showed before and comparing to gothic literature works and characters. Researching video games are truly interesting. Many new researchers, who demonstrate little interest in this field, may find their interest in the videogames world. Besides, nowadays the amount of different video games is enormous. In this research, we used the Survival Horror genre, using Gothic fiction as a basis. There are many other options, though. The video game Assassin‘s Creed is remarkable in its presentation of historical facts. There are Renaissance, American Revolutionary War and even the French Revolution as themes in this game. Another interesting videogame is The Last of Us, who shows an apocalyptic world destroyed by bacteria. This subject may be a true reality someday, so researchers may find a good subject in the people‘s reaction to something like that. This research showed us the great world of Gothic fiction. From books to movies and even video games. So many interesting stories, so many ways to write. It is a vast world of knowledge. We learned the unthinkable during this research, things never imagined and things once imagined to be impossible to do. This was a trial for us. A trial that showed us that this is just the beginning. Learning is never enough. References ARGAN, G. C. Arte Moderna. São Paulo: Schwarcz. 2006. Original work published in 1992. ARSENAULT, D. Video Game Genre, Evolution and innovation. Eludamos Journal for Computer Game Culture. Vol. 3, No.2. 2009. BURGESS, A. 2016. About Education. What is Gothic Literature?. Source: http://classiclit.about.com/od/britishliterature7/fl/What-is-Gothic-Literature.htm. Access in September 2016. CARROL, N. The Philosophy of Horror: or Paradoxes of the Heart. New York: Routledge, 1990. CERALDI, A. Análises: Resident Evil 6. Source: http://residentevil.com.br/resident-evil-6/analises. 2012. Access in September 2012. CEVALLOS, S. Horror in Gaming: Dissecting the Emotional Experience of Survival Horror. USA. Savannah College of Art and Design. 2013. CLEARWATER, D. A. What defines video game genres? Thinking about genre study after the great divide. Dept. of New Media, University of Lethbridge. 2011. CLERY, E. J. Introduction. The Castle of Otranto. By Horace Walpole. Oxford: Oxford UK, 2008. COALE, S. Os sistemas e os indivíduos: Monstros existem. In Julio Jeha (org). Monstros e monstruosidades na literature. Editora UFMG: Belo Horizonte. P.102-124. 2007. ENKI, Y. The modern and the types of gothic ambivalence: The theory of the gothic from the modern to the postmodern. Istanbul Bilgi University. 2008. FRANÇA, J. BARROS, F. M. A Atualidade do Gótico. Soletras Revista. São Gonçalo, RJ, Brasil. Pages 27-32. 2014. GRACE, L. Game Type and Game Genre. Retrieved February. 2005. GRIP, T. The Self, Presend and Storytelling. Source: http://unbirthgame.com/TheSelfPresenceStorytelling.pdf. 2012. GONÇALO JR. Enciclopédia dos Monstros. São Paul: Ediouro, 2008. GONÇALVES, D. F. O Fantasma de Strawberry Hill: pseudotradução e a proposta estética de Horace Walpole (a partir de uma leitura dos prefácios de O Castelo de Otranto). Revista TradTerm, vol.21, 31-50. 2013. Source: http://myrtus.uspnet.usp.br/tradterm/site/images/revistas/v21n1/o5_dircilene21f.pdf. Access in November 2016. HAND, R. Proliferating horror: survival horror and the Resident Evil franchise. University of Mississippi Press, USA. 2004. 165 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


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UM LIVRO DE CONCRETO: AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO, O INTERDISCURSO E A IDEOLOGIA EM UM MURO NA 1 PERIFERIA DE TERESINA Anyelly Gardênia Costa Silva2 João Benvindo de Moura3 RESUMO Este trabalho tenciona investigar as condições de produção, o interdiscurso e os aspectos ideológicos presentes em frases escritas em um muro da periferia de Teresina. O corpus desta pesquisa é constituído por um conjunto de, aproximadamente, duzentas frases devidamente fotografadas, das quais foram selecionadas duas – considerando-se o tipo discursivo mais recorrente (religioso) – as frases selecionadas são provenientes da Bíblia e classificadas, portanto, como pertencentes ao tipo discursivo religioso cristão. Tais frases foram reproduzidas em um muro pelas mãos de uma moradora da localidade, aqui reconhecida como artista urbana. Tal artista ao escrever variados discursos naquele suporte transforma o espaço público em privado para depois transformá-lo em público novamente. Por meio desse ato, ela agrega valores ao meio em que está inserida e faz uso da linguagem como meio social. Dessa maneira, esse sujeito-artista se apropria da linguagem como um trabalho simbólico e faz daquele pedaço de rua um lugar de interpretação particular, colocando lado a lado diversos tipos de discursos de uma forma bem democrática. Este trabalho trata-se de uma pesquisa qualitativa cuja base teórica está centrada nos postulados da Análise do Discurso de linha francesa, representada, sobretudo Orlandi (1983, 2007) e Courtine (2014), dentre outros. No campo da ideologia, lançamos mão dos estudos de Chauí (2012). Os resultados apontam para a constituição do tipo discursivo religioso inserido em um contexto de arte urbana, cujas condições de produção remetem desde ao cativeiro da Babilônia e da Assíria até a era cristã, chegando à reprodução de toda essa memória histórica e social em um muro de concreto de uma grande cidade, em pleno século XXI. Nesse percurso, as relações interdiscursivas e ideológicas estão presentes por meio de formações discursivas diversas. Destarte, as análises discursivas dos enunciados presentes naquele muro dialogam entre si, vindo a estabelecer uma rede de significados, pois a palavra é um signo ideológico por natureza, assumindo os sentidos que lhes são impostos pelo contexto histórico e social no qual está inserida. Palavras-Chave: Discurso; Condições de produção; Ideologia.

Introdução

A

cada passo dado pela cidade de Teresina uma nova história é contada em seus muros. Todavia, o fato de andarmos tão apressados pelas ruas, avenidas, esquinas, becos e vielas de nossa cidade nos conduz a não analisarmos as diversas manifestações culturais que nos cercam. Os discursos verbais e não verbais escritos nos muros da urbe são carregados de sentido, pois trazem consigo um contexto, uma situação e uma memória, deixando traços no ambiente urbano de formações ideológicas e discursivas diversas. Vamos trabalhar a cidade por meio de seus discursos, como nos sugere Orlandi (1983). Entendemos que a perspectiva da Análise do Discurso nos filia a um tipo de investigação que coloca em foco a materialidade histórica e ideológica que constituem os textos verbais e não verbais da cidade, lançando luz sobre os gestos que os sustentam e permitem seu funcionamento. Esta investigação, portanto, faz uma reflexão sobre as condições de produção e os efeitos de sentidos presentes em discursos escritos em um muro que cerca uma congregação religiosa cristã católica localizada no bairro Memorare, na periferia de Teresina. Ao tomarmos o espaço e as condições em que aqueles discursos 1

Trabalho apresentado no GT.01 - Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço Eletrônico: anyelly111@hotmail.com 3 Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí. Teresina- PI. Pós-doutorando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte - MG. Endereço Eletrônico: jbenvindo@ufpi.edu.br 168 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


foram reproduzidos, entendemos esse ato como uma prática social que permite aos cidadãos, que compartilham desse universo discursivo, atribuírem novos sentidos para o espaço urbano. No entanto, para compor esta pesquisa discutiremos também as questões que envolvem sujeito, sentido, história e ideologia. Para responder aos nossos questionamentos, este estudo pauta-se teórico e metodologicamente pela Análise de Discurso, que se interessa pelo estudo da língua como funcionamento para a produção de sentidos. No âmbito dos estudos da linguagem, vale ressaltar que o termo discurso refere-se justamente à relação entre os usos das línguas e os fatores extralinguísticos presentes no contexto de uso. O corpus desta pesquisa compõe-se de um conjunto 238 frases, inscritas em um muro com mais de quinhentos metros de extensão compreendendo a rua José Marques da Rocha e a rua Barras, no bairro Memorare, zona Norte de Teresina. Tais frases foram fotografadas e classificadas nos seguintes tipos discursivos: religioso, literário, filosófico e político. Por razões metodológicas priorizamos o primeiro tipo, por ser esse o mais recorrente dentro desse universo de frases. Este estudo surge, portanto, com a intenção de tentar compreender as diferentes práticas da linguagem, ou seja, como o sujeito se expressa em diferentes formas e, além disso, busca compreender a língua enquanto trabalho linguístico e social. Pois é na relação entre linguagem e sociedade, na medida em que uma exerce influência sobre a outra, que ―recorremos ao sistema da língua para dar vazão às relações sociais em nossas trocas linguageiras, ao mesmo tempo em que essas relações sociais são constituídas através das variadas formas em que a linguagem pode se manifestar‖ (MOURA, 2012, p. 14). Esta proposta de trabalho se justifica por sua relevância acadêmica, pois poderá contribuir juntamente com outras pesquisas da mesma área para a reflexão de como os discursos dentro do espaço urbano se constituem a partir da relação imaginária de sentidos entre o sujeito e o espaço em que ele está inserido. Desta forma, ao significar a cidade, o sujeito significa a si mesmo na e pela cidade, de forma que o ambiente urbano, em sua totalidade, constitui-se a partir de séries de atravessamento e disputa. Princípio de conversa: a Análise do Discurso Antes de nos atermos especificamente ao conceito que nos guiará nesta pesquisa, julgamos necessário discutir sobre a linha teórica que nos orienta, a fim de delimitarmos nosso campo de estudo. Como arcabouço teórico, este trabalho está inserido na corrente histórico-ideológica da Análise do Discurso de Linha Francesa, doravante (ADF). Essa disciplina teve origem na França entre as décadas de 1960 e 1970 e teve como marco inaugural o ano de 1969, com a publicação da obra intitulada Análise Automática do Discurso (AAD), de Michel Pêcheux, bem como o lançamento da importante revista Langages, organizada por Jean Dubois. Nessa vertente teórica, Pêcheux desempenhou um papel fundamental para constituir a corrente da AD, pois ele investigou as relações entre discurso, formação social e ideologia. Para ele, o processo históricosocial tem participação direta no ato da produção do discurso, determinando a forma de organização interna desse. O sujeito que surge como parte integrante desse processo discursivo é o ―porta-voz‖ de uma ideologia. E seu ato é antes de tudo social do que individual. A AD surgiu na conjuntura política e intelectual da França entre filosofia e prática política e se constituiu no espaço de questões criadas pela relação entre domínios disciplinares que são ao mesmo tempo uma ruptura com o século XIX: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise. Portanto, a AD é herdeira dessas três regiões do conhecimento e tem como instrumento de trabalho o discurso. Essa disciplina interroga a Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele. (ORLANDI, 2007, p. 20)

Dessa forma, a AD nasce tendo como base a interdisciplinaridade. E desse modo, ao trabalhar esse três campos de conhecimento, a Análise do Discurso rompe suas fronteiras e movimenta o campo das Ciências Sociais, iniciando uma busca crescente pelo estudo da linguagem, mais precisamente pela relação entre o uso da linguagem e o momento social, político e histórico em que tal uso se dá. 169 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Como o próprio nome denuncia o objeto de estudo da AD é o discurso. O conceito de discurso é concebido como algo sócio-histórico, pois considera primordial a relação da linguagem com a sua exterioridade. Nesse contexto, a exterioridade refere-se às condições de produção do discurso: o falante, o ouvinte, o contexto da enunciação assim como o contexto sócio-histórico. Para a AD, o discurso não é visto como mero transmissor de informações, mas como o efeito de sentido entre os locutores, por meio do qual se faz a mediação entre o homem e sua realidade natural. Para a AD, a linguagem vai além do texto, trazendo sentidos pré-construídos que são ecos da memória do dizer. Dessa maneira, a linguagem permite a construção de sentidos diversos, os quais estão dentro do processo discursivo. O discurso passa a ser o lugar no qual emergem significações conforme se delimitam as condições de produção do discurso. Após esse breve comentário sobre a linha teórica que nos guiará nesta pesquisa, passaremos agora a discorrer sobre o discurso religioso. Discurso Religioso O discurso religioso, em razão de sua presença marcante dentro da sociedade, tem sido atualmente alvo de estudo de várias áreas de conhecimento. A Análise do Discurso por meio de vários instrumentos teórico-metodológicos também contribuiu para explicar o funcionamento desse discurso, analisando a maneira de como ele é construído. Para Althusser (1918), a ideologia religiosa cristã pode ser tomada como exemplo de estrutura formal de qualquer ideologia, seja ela: política, moral, jurídica etc. Porém, diferentemente do que ocorre nesses discursos em que o sujeito enunciador fala aos coenunciadores por si mesmo, no discurso religioso o sujeito fala do lugar de Deus, servindo de instrumento de transmissão da palavra divina, sem se deixar confundir como o próprio Deus. Pois ―Deus se define a si mesmo portanto como o Sujeito por excelência, aquele que é por si e para si : ―Eu sou aquele que é, e aquele que chama o sujeito, o indivíduo, que pelo próprio chamado está submetido‖ (ALTHUSSER ,1918, p.101). Segundo Orlandi (1983), nesse tipo de discurso, aquele que representa a voz de Deus não exerce nenhuma autonomia no discurso, portanto não pode modificá-lo de maneira alguma. Por não haver espaço para trocas de informações no discurso religioso, em que interpretação própria passa a ser a da Igreja e o texto próprio é o da Escritura Sagrada, não se pode atribuir qualquer sentido a essa forma discursiva, por esse motivo o discurso religioso tende a ter um caráter monossêmico. Por ser Deus o único locutor, a verdade professada por Ele é imutável e inquestionável e deve ser aceita pelos homens. É o que Eni Orlandi (1983) chama de desnivelamento fundamental ao se referir a essa relação entre locutor (Deus) e ouvinte (homem), segundo essa autora, locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo totalmente diferentes e essas ordens são afetadas por um valor hierárquico, em que o plano espiritual domina o plano temporal e, dessa forma, o sujeitohomem não pode modificar o que se fala em nome de Deus. Essa propriedade que particulariza o discurso religioso, em que sujeito (homem) nunca poderá ocupar o lugar do enunciador (Deus), Eni (1983) denomina de não reversibilidade entre os planos espiritual e temporal. Essa relação é fixa, imutável. Condições de Produção (CP) Para a Análise do Discurso a noção de condições de produção é essencial. Pois é esse o processo que liga o discurso à sua exterioridade. Segundo Courtine no livro Análise do discurso político comunista endereçado aos cristãos, as origens sobre a noção das condições de produção são de três ordens: inicialmente, a análise de conteúdo se encontra praticada na psicologia social, que logo nos trabalhos de Berelson (1952) é assumida explicitamente como objeto de análise das condições de produção dos textos. A segunda origem seria a sociolinguística, aqui a noção de CP é vista de maneira indireta, pois ao estabelecer uma relação de causa e causa efeito, ela admitirá como variáveis sociolinguísticas: ―o estado social do emissor, o estado social do destinatário, as condições sociais da situação de comunicação (gênero de discurso), os objetivos do 170 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


pesquisador (explicação histórica etc.)‖ (MARCELLESI, 1971a, p. 3-4 apud COURTINE, 2012, p.2). Por fim, é no texto Discourse Analysis, de Z. Harris (1952), que se situa a última origem dessa noção. Nesse texto, segundo Courtine, a origem do termo é tratada de maneira implícita, pois aparece correlacionada ao termo ―situação‖. Orlandi (2007), apoiada nos estudos de Pêcheux, considera que essas condições de produção compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação, sendo que em sentido estrito remetem para as condições de enunciação: o contexto imediato. Mas se tomadas em sentido amplo, incluem o contexto sóciohistórico, ideológico. Portanto, a ação do contexto não se restringe a fatores imediatos, pois nas condições de produção estão presentes as formações imaginárias, ou seja, as imagens que o falante tem de si próprio e de seu ouvinte. Para Mussalim (2012), o sujeito por não ter acesso às reais condições de produção de seu discurso, representa essas condições de maneira imaginária. Dessa forma, a autora retoma a noção de jogo de imagens no discurso anteriormente apresentada por Pêcheux. Esse jogo de imagens mesmo estabelecendo as condições de produção do discurso, ou seja, aquilo que o sujeito pode/deve ou não dizer, a partir do lugar que ocupa e das representações que faz ao enunciar, não é preestabelecido antes que o sujeito enuncie o discurso, mas este jogo vai se constituindo à medida que se constitui o próprio discurso. (MUSSALIM, 2012, p.160)

Ou seja, o sujeito não é livre para dizer o que quer, pois esse ato é determinado pelo lugar em que ele ocupa no interior da formação ideológica a qual está submetido. Porém, as imagens que ele constrói ao enunciar só se organizam durante o próprio processo discursivo. Esse aporte sobre noção de condições de produção tem nos possibilitado afirmar que o discurso é constituído tendo como base a organização social dos seus coenunciadores, portanto, o lugar no qual esse discurso é proferido exerce influência significante no mesmo e na imagem que esses coenunciadores têm de si e querem passar ao outro. Ambos se valem de formações imaginárias para fundarem suas estratégias discursivas. Portanto, durante esse jogo, à medida que as imagens que os sujeitos vão construindo ao enunciar vão definindo e redefinindo o seu processo discursivo. Ideologia O termo ideologia foi utilizado inicialmente, em 1801, no livro Eléments d´Ideologie, pelo pensador francês Destutt de Tracy. Na obra, ele atribui à origem das ideias humanas às percepções sensoriais do mundo externo. Alguns anos mais tarde, em 1812, Napoleão Bonaparte, em um discurso perante o Conselho de Estado, utilizou o termo ideologia como o de ―ideia falsa‖ ou ―ilusão‖, ao afirmar que seus adversários eram apenas metafísicos, pois o que pensavam não tinha conexão com que estava acontecendo na realidade, na história. Anos mais tarde, Augusto Comte no livro Cours de Philosophie Positive atribui ao termo dois significados. O primeiro sentido vai ao encontro do que postulavam os ideólogos franceses, que continuava sendo uma ―atividade filosófico-científica que estudava a formação das ideias a partir da observação das relações entre o corpo humano e o meio ambiente, tomando como ponto de partida as sensações‖ (CHAUÍ, 2012, p.31). Outro significado atribuído ao termo, segundo a mesma autora, seria ―o conjunto de ideias de uma época, tanto como ―opinião geral‖ quanto no sentido de elaboração teórica dos pensadores dessa época‖ (CHAUÍ, 2012, p.31). Mas foi somente a partir dos preceitos de Marx e Engels que a Filosofia desenvolveu uma noção de ideologia, que tinha como propósito refletir sobre o funcionamento social e suas transformações históricas. Ou seja, a ideologia apareceria para assegurar as relações dos homens entre si e com suas condições de existência e assim adaptar os indivíduos as suas tarefas fixadas pela sociedade. Nas palavras de Santaella (1996):

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É a ideologia que fornece aos indivíduos de uma dada formação social uma certa homogeneidade nos modos como interpretam o mundo, nas suas maneiras de sentir, querer, julgar e de conformar às suas condições de existência. (SANTAELLA, 1996, p. 214)

Destarte, o grupo dos que detém o poder, fazendo uso do discurso, domina a consciência social e dissemina ideias e valores através das artes, escola, filosofia, ciência, religião, leis e do direito. Neste sentido, inclusive no/do cotidiano, o pensamento de todas as classes esta sob o jugo de um determinado modelo. A ideologia é um dos meios mais utilizados para exercer a dominação, já que seu fim é fazer com que determinada ideia ou crença se estabeleça como verdade e demande seus efeitos sem demonstrar evidentemente os interesses que estão em questão. Isto ocorre pela necessidade da ideologia não permitir uma aproximação com o todo, com o contexto formador da realidade que é a linguagem, o que o processo ideológico tende a encobrir. Uma vez que em uma sociedade de classes, a ideologia da classe dominante busca conformar os homens à imutabilidade do sistema para garantir sua reprodução e preservação. A ideologia é um instrumento invisível de dominação de classes. Pois esse sistema de ideias dispõe de esquemas explicativos da realidade a partir do ponto de vista dos que dominam sem deixar que os sujeitos envolvidos nas ações se manifestem espontaneamente. Portanto, a ideologia abafa a essência dos acontecimentos, valorizando assim a aparência desses, a interpretação. Tinha um muro no meio do caminho: religião, literatura e disputas de sentido A maior recorrência entre as frases encontradas no muro da rua José Marques da Rocha com a rua Barras no Bairro Memorare, zona norte de Teresina são de conteúdo religioso, razão pela qual destinamos o nosso trabalho para uma análise mais aprofundada acerca desse tipo discursivo. Para esta pesquisa selecionamos duas imagens que remetem a textos do Antigo Testamento e do Novo Testamento. Iniciaremos as análises com um trecho de um discurso enunciado por um profeta do Antigo Testamento. É importante pontuar que as condições de produção dos discursos bíblicos constituem a primeira parte da análise, desvelando, assim, o contexto histórico, social e religioso no qual foram produzidos, e caracterizando o discurso de cada enunciador. Em seguida, analisaremos os efeitos de sentido que cada enunciado produz nos sujeitos que se deparam com aquele livro a céu aberto. Passemos então às análises: Iniciaremos essa seção analisando a imagem que remete ao discurso presente no livro de Provérbios. Essa compilação é um dos sete livros sapienciais do Antigo Testamento. Juntamente com ele estão os livros de Jó, Salmos, Eclesiastes, Cântico, Sabedoria e Eclesiástico. O livro de Provérbios possui 31 capítulos e é composto, em sua maioria, pelos discursos do rei Salomão, mas também podemos encontrar nesse livro os discursos do profeta Agur e do rei Lemuel. Conforme enuncia em sua introdução, esse livro visa ensinar ao homem a alcançar a sabedoria por meio da disciplina, fornecendo instrução moral. A maioria dos versículos é de autoria do rei Salomão, o filho de Davi, que pediu a Deus o dom da sabedoria. As frases que o compõem são de fácil memorização e condensam muita sabedoria em um espaço resumido. Diferentemente das condições que cercam outros livros da Bíblia, nesse não há enredo, não existem personagens o foco é a sabedoria.

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Imagem 1- Arquivo Pessoal

A imagem acima reproduz um versículo da primeira compilação dos provérbios de Salomão. Na Bíblia, a seção na qual esse discurso se encontra, faz referência aos vários estados da vida, tanto da virtude como dos vícios. No discurso em análise, Salomão surge como instrumento de transmissão da palavra divina e enuncia aos cristãos acerca do cuidado com as palavras que proferem. No capítulo 13, versículo 3 da Bíblia esse discurso já havia sido dito, conforme mostra o excerto seguinte: ―Quem vigia sua boca guarda sua vida; quem muito abre seus lábios se perde.‖ No capítulo 21, versículo 23, esse discurso é escrito mais uma vez, agora da seguinte maneira: ―Aquele que vigia a sua boca e a sua língua , preserva a sua alma da angústia.‖ Nota-se aqui um processo interdiscursivo, uma relação entre o já dito (Provérbios,13-3) e o que se está se dizendo (Provérbios, 21-23). Como observado acima, ao comparar as duas maneiras em que o discurso é apresentado na escritura, nota-se uma estratégia de fixação através da paráfrase, possibilitando ao receptor estabelecer a mesma relação de sentidos entre ambos os enunciados. No contexto em que a frase exposta se encontra, o discurso religioso pode produzir um efeito de sentido que instigue o imaginário do grupo social no qual está inserido a pensar na língua como instrumento de poder, enaltecendo a força das palavras e o risco proveniente da ausência de ponderação em relação ao discurso proferido. Em outras palavras, o texto parece evocar a máxima de quantidade de Grice 4, enaltecendo a necessidade de falarmos apenas o necessário. Acreditamos que a artista urbana, ao selecionar tal enunciado, intenciona uma preservação da língua diante de situações que poderiam levar os sujeitos a angústias desnecessárias, orientando-os a demonstrar sabedoria diante de situações que exigem um pouco mais de prudência antes de falar. Uma frase como essa, escrita em um muro, remeterá quem a ler a uma filiação de dizeres, a uma memória, vindo a identificar tal enunciado em uma situação já vivenciada em sua própria história. Ao escolher tal enunciado para compor seu livro de concreto, a artista – urbana ativa seu saber discursivo, faz uso de sua memória e aciona o processo de interdiscurso, pois, conforme Orlandi (2007), só se pode dizer, formular algo, se nos colocarmos na perspectiva do interdiscurso, da memória. Na condição de enunciadora, ao optar por esse e pelos outros duzentos enunciados que compõem toda a extensão daquele mural, a artista revela sua visão de mundo, utilizando-se de dizeres que já fizeram sentido em um momento particular e agora se encontram reeditados em um suporte de concreto para, assim, produzirem novos sentidos. Após a análise discursiva da imagem que contém um trecho do livro de Provérbios e os efeitos de sentido que esse discurso causa no meio no qual esta inserido, passemos agora à análise da segunda imagem que contém um discurso de um profeta do Novo Testamento. 4 De acordo com as Máximas Conversacionais de Grice (p. 42), quando há exagero na enunciação proferida, viola-se a máxima de quantidade. 173 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Um evangelho, uma frase e muitos discursos A título de contextualização, o novo Testamento é composto por 27 livros que foram escritos após a morte de Jesus Cristo, há mais de dois mil anos. As mensagens presentes nesses livros giram em torno dos ensinamentos de Cristo e têm como base os quatro evangelhos. A palavra evangelho é de origem grega e significa boa-nova. Portanto, os evangelhos seriam escritos que contam a boa-nova da vinda entre os homens daquele que se fez ―filho do homem‖. O Evangelho, antes de ser um livro, foi uma palavra pregada: ou seja, antes de ser lido, ele foi ouvido. Para Orlandi (1983), o discurso religioso se diferencia dos demais tipos de discurso por haver nele um desnivelamento fundamental na relação entre locutor e ouvinte. Nesse tipo de discurso, o locutor é do plano espiritual, no caso do Antigo Testamento: Deus, e no Novo Testamento passa a ser Jesus Cristo, e o ouvinte é do plano temporal, no caso os homens, que ao ocuparem o papel de representantes dessas vozes não podem modificá-las. Diferentemente do que acontece no Antigo Testamento, no qual os profetas apenas ouviam a voz de Deus, no Novo Testamento os evangelistas puderam conviver pessoalmente com Cristo, e ao ocuparem o papel de interlocutores puderam acrescentar aos seus escritos não só os discursos proferidos por Jesus, mas também o comportamento desse e suas atitudes perante a plateia. Segundo a Bíblia, os evangelistas são quatro: Mateus, Marcos, Lucas e João. Nos escritos deixados por esses discípulos é possível encontrar uma grande quantidade de histórias em comum, na mesma sequência e, por vezes, utilizando exatamente a mesma estrutura de palavras. Esses relatos semelhantes que se referem à vida e aos discursos proferidos por Jesus nos levam a perceber em várias passagens uma forte presença interdiscursiva. Desses Evangelistas, apenas dois eram discípulo de Cristo. Portanto, é pela discussão sobre as condições sócio-históricas que cercam a vida e os escritos do Evangelista Mateus, que iniciaremos essa análise, para, depois, adentramos na análise da imagem que contém um trecho do seu discurso. Mateus, cujo nome de batismo é Levi, segundo a Bíblia Ave Maria (2013), levanta-se como discípulo (patente religiosa instituída por Cristo) quando servia ao rei Herodes em Cafarnaum na Galileia, coletando impostos sobre os produtos que passavam da estrada de Damasco para o Mar Mediterrâneo. É o próprio Cristo que o chama para segui-lo. A palavra trazida por Mateus teria, segundo seu evangelho, a intenção de demonstrar para os judeus que Jesus era o Messias, o salvador que Deus tinha prometido enviar ao mundo. Esse livro provavelmente foi escrito entre os anos 50-65 d.C. E foi considerado o manifesto da Igreja de Jerusalém e, por conseguinte, o documento fundamental do início da fé cristã. O evangelho segundo São Mateus é composto por 28 capítulos e está dividido da seguinte maneira: I- Infância de Jesus; II- Tríduo inicial; IIISermão da montanha; IV- Ministério de Jesus na Galileia ;V- Ministério de Jesus na Judeia e IV- Paixão e ressurreição de Jesus. O trecho do discurso que passaremos a analisar se encontra na divisão III e apresenta como subtítulo: ―confiança em Deus‖

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Imagem 2- Arquivo Pessoal

Na imagem acima, o interlocutor, no caso Mateus, enuncia uma mensagem que não lhe pertence, característica primordial no discurso religioso. O discípulo se apresenta apenas como porta-voz do real emissor, Jesus Cristo. Ao propor uma busca pelo reino de Deus, faz valer a regra soberana de que Deus é um ser infalível e todo-poderoso e ter um relacionamento correto com Ele deve ser visto como uma prioridade na vida do homem. O diálogo nesse versículo é substituído por um monólogo, isso acontece porque a mensagem professada por Jesus é reorganizada pelo seu porta-voz, que a torna uma verdade imutável e inquestionável. Podemos constatar a presença desse discurso mais adiante em Lucas (12-31), como mostra o excerto: ―Buscai antes o Reino de Deus e a sua justiça e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo‖. Por meio do uso do já-dito se instaura o interdiscurso, processo bastante comum na construção do discurso religioso. Como mencionado, o discurso é social e atua como agente transformador da realidade. A moradora e artista, por meio da frase analisada acima e movida por suas ideologias cristãs, faz uso desse discurso e se dirige aos indivíduos, que por aquele trecho trafegam, para transformá-los em sujeitos. Conforme assegura Eni (2007), é por meio da ideologia que o indivíduo é interpelado em sujeito. E a ideologia é ―a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos‖ (ORLANDI, 2007, p.46). É por meio da ideologia que o sujeito se constitui imaginariamente se espelhando no outro. Portanto, ao escolher o evangelho de Mateus esse sujeito busca por meio desse discurso plantar no meio em que está inserido o mesmo sentimento de confiança que Mateus demonstrou ter há mais de dois mil anos. A autora se espelha no ato de confiança desse apóstolo e ao fazer uso desse enunciado tem como intenção transmitir a ideia de que Deus suprirá todas as necessidades daqueles que confiam e que arriscam tudo por Ele. Para Orlandi (1983), o fato de nesse tipo de discurso o locutor ser Deus, faz com que o enunciador seja eterno e infalível, sendo os homens meros mortais, falíveis e dotados de poder relativo. Partindo-se dessa assimetria, uma intenção possível para este discurso seria a demonstração do poder supremo exercido por Deus, estando o mesmo no topo de todas as outras prioridades. Como é sabido, a ideologia religiosa cristã pode ser tomada como exemplo de estrutura formal de qualquer ideologia. A artista – urbana movida por suas visões de mundo faz uso de seus saberes discursivos e de sua arte para interpelar os indivíduos enquanto sujeitos. Por meio dos textos religiosos que reproduz nossa artista exerce ainda que de forma inconsciente, certa influência em quem por ali transita, produzindo adesão ou rejeição, amor ou repulsa.

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Considerações finais Estudar os discursos presentes no muro da rua José Marques da Rocha com a rua Barras foi um período de longo aprendizado e desafio. Com tantas idas e vindas àqueles trechos foi possível perceber que as teorias se tornam mais claras e vivas quando testadas pelo analista por meio dos seus dispositivos teóricos, pois é por meio desses que o analista reflete não ―apenas no sentido do reflexo, da imagem, da ideologia, mas reflete no sentido do pensar‖ (ORLANDI, 2007, p. 61). Como conclusões muito provisórias, talvez mais como possibilidades de trabalhos futuros, ao tecermos nossas considerações, ousamos afirmar que a análise discursiva dos enunciados presentes naquele muro dialogam entre si, vindo a estabelecer uma rede de sentidos. Nossa artista urbana ao escrever variados discursos naquele suporte transforma o espaço público em privado para depois transformá-lo em público, novamente. Por meio desse ato, ela agrega valores ao meio em que está inserida e faz uso da linguagem como meio social. Embora essa prática de escrever em propriedade particular constitua crime contra o patrimônio, compreendemos que ela deve ser estudada livre de pré-conceitos e pré-julgamentos, para que só assim possamos tentar compreendê-la dentro de seus próprios termos e significados. Referências ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 2. ed. Trad. de Valter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985. Bíblia Sagrada Ave Maria. 91º edição. São Paulo. Editora Ave Maria. 2013. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. Coleção primeiros passos; 13. São Paulo: Brasiliense. 2012. COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: EdUFSCar, 2014. MOURA, João Benvindo de. Análise discursiva de editoriais do jornal Meio Norte, do estado do Piauí: A construção de imagens e as emoções suscitáveis através da argumentação. 2012. Tese (Doutorado em Linguística). Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte – MG. MUSSALIM, Fernanda (Org.); BENTES, Anna Christina (Org.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras, v.2. 1ed. São Paulo: Cortez, 2012. ORLANDI, E.P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 4. ed. Campinas, SP, 2007. ORLANDI, Eni de Lourdes Puccinelli. A Linguagem e seu Funcionamento: as Formas do Discurso. 2.ed. rev. e aum. Campinas, SP: Pontes, 1983. SANTAELLA, Lúcia. Produção de linguagem e ideologia. 2. ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Cortez, 1996.

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A CONTRIBUIÇÃO DO ENSINO SOCIOLÓGICO PARA AS RELAÇÕES SOCIAIS 1 Lorenna Ferreira Santos 2 RESUMO A Sociologia possui um papel fundamental para a produção de uma postura intelectual crítica e construtiva perante a vida social dos indivíduos através de uma compreensão científica acerca das relações sociais e dos fenômenos que, assim, se constituem, provocando a sustentação do cumprimento dos ideais de cidadania e de transformação social. O objetivo deste trabalho tem por finalidade a importância da propagação do ensino deste conhecimento para a sociedade, a fim de assegurar a solidariedade e coesão da mesma. A metodologia utilizada para a elaboração deste feito é bibliográfica, utilizando autores como: Zigmund Bauman e Tim May, Émily Durkheim, Praxedes e Piletti, etc. Os resultados esperados se restringem á progressão das relações sociais, a partir deste ensino, por meio do aprimoramento de fatores educacionais, políticos e sociais determinantes á este objetivo.

Palavras-chave: Sociologia; ensino; conhecimento; relações sociais. Introdução

A

Sociologia tem um papel indispensável para a formação do pensamento crítico pela sociedade e na sociedade. Eis a importância da difusão e propagação deste conhecimento para a construção de um mundo melhor, no qual, os indivíduos – a partir do contato com esta ciência – passam a entender e compreender como a sociedade funciona, ultrapassando preconceitos e intolerâncias, compreendendo de melhor forma a realidade alheia, sua cultura, seus valores, pensamentos, etc., Ou seja, o pensamento sociológico influencia o desenvolvimento da humanidade, no sentido de construir a cidadania entre a sociedade através da compreensão desta nas relações sociais por ela estabelecidas. Bauman e May em ―Aprendendo a pensar com a Sociologia‖ destacam o papel da Sociologia como algo que ultrapassa a restrição do acúmulo de conhecimentos científicos. A Sociologia, neste caso, estuda a relação entre o indivíduo e a sociedade, levando em consideração a ação humana no meio social e suas consequências. A figura do individuo é acatada como tendo um papel muito importante para os procedimentos de análises sociológicos, pois, a partir do momento em que este se torna integrante de redes de dependência mútuas ou interdependência social, passa a ser um objeto de estudo da Sociologia – especificamente por esta característica. As ações humanas, como um todo, são estudadas pelas ciências humanas e sociais, porém, diferenciam-se pela especialidade que cada uma destas exercem no processo de análise deste mesmo objeto, elevando estas ações á serem categorizadas pelas suas especifidades, ou seja, são ciências que estudam a sociedade em aspectos distintos. A Sociologia, por exemplo, trabalha com o mesmo objeto das ações humanas, todavia, diferenciando-se pelo aspecto de necessidade de efetivação destas ações sendo dependentes de interação com o social. Desta forma o conhecimento sociológico se faz necessário não só para compreender as relações de interação do homem á sociedade em um processo de análise cientifica, mas, também, para compreender-nos como seres dependentes de um todo, além de proporcionar uma melhor percepção em relação ás diferenças ou diversidades entre os indivíduos, levando á uma superioridade nas formas de vivencia humana baseadas no 1

Trabalho apresentado no GT Linguagem, Cultura e identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Cientista Social, graduada pela Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: lohsafe@gmail.com 177 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


respeito e compreensão dessas diferenças, tendo, assim, um papel relevantemente necessário a fim de alcançar os ideais de cidadania e bem-estar-social, atuando, também no exercício do que chamamos de alteridade – o que diz respeito á colocar-se no lugar do outro – interpretada por DaMatta (2000, p. 43) como numa perspectiva de transformação ―do familiar em exótico e do exótico em familiar‖, ou até Wright Mills: ―Ver o similar como diferente e o diferente como similar‖ A Sociologia, neste caso, funciona como um ―filtro‖ de análise das relações sociais proporcionando um maior entendimento, científico e verdadeiro acerca das relações que estabelecemos na nossa vivência humana. Pensar sociologicamente é dar sentido à condição humana por meio de uma análise das numerosas teias de interdependência humana [...] pode nos tornar mais sensíveis e tolerantes em relação à diversidade, daí decorrendo sentidos afiados e olhos abertos para novos horizontes além das experiências imediatas, a fim de que possamos explorar condições humanas até então relativamente invisíveis. [...] Pensar sociologicamente, então, tem um potencial para promover a solidariedade entre nós, uma solidariedade fundada em compreensão e respeito mútuos, em resistência conjunta ao sofrimento e em partilhada condenação das crueldades que o causam (BAUMAN; MAY, 2010, p.22-23).

A importância do pensamento e ensino sociológico para a compreensão social A função da Sociologia, em geral é estabelecer o estudo da sociedade e das suas relações, tendo a ação humana como objeto, assim como as demais áreas das ciências humanas, porém, sua peculiaridade é estudar a ação humana que é influenciada ou estabelecida socialmente, entre grupos, entre o individuo e o grupo ou entre os indivíduos, porém, objetivando o aspecto social, sem este recorte a Sociologia não pode se diferenciar dos outros conhecimentos humanísticos. É a partir dessa peculiaridade que ela se torna autônoma como ciência humana e social. Os sociólogos perguntam que consequências isso tem para os atores humanos, as relações nas quais ingressamos e as sociedades das quais somos parte. Em resposta, formatam o objeto da investigação sociológica. Assim, figurações, redes de dependência mútua, condicionamentos recíprocos da ação e expansão ou confinamento da liberdade dos atores estão entre as mais preeminentes preocupações da sociologia (BAUMAN; MAY, 2010, p. 13).

Para Write Mills, a ―imaginação sociológica‖, nesse sentido, diz respeito á compreensão dos fenômenos sociais não, somente, como um problema particular, mas, como uma preocupação social também, ou seja, interpretar, até mesmo os fatos da vida privada integrando-os á realidade histórico-social, Ou melhor, para compreendermos os problemas pessoais devemos interpretá-lo como consequência de um âmbito social maior e exterior á nós, ao mesmo tempo em que é composta por nós mesmos – a sociedade – levando em consideração o contexto histórico relacionado e a realidade social referida: É a capacidade de associar a realidade social do meio em que vivemos ao comportamento particular. Isto será posteriormente evidenciado como uma forma de contribuição da Sociologia para o bem-estar das relações sociais. Mills (1969, p.11) afirma: ―O que precisam, é de uma qualidade de espírito que lhes ajude a perceber o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro dele mesmo. É essa qualidade que poderemos chamar de imaginação sociológica‖. Schaefer (2006) interpreta essa teoria como um instrumento que pode ser utilizado como uma ―lente‖ a fim de compreender o mundo e as relações sociais de uma forma nova e diferenciada, distanciando-se da limitação compreensiva comum. A Sociologia é o estudo da vida social humana, dos grupos e da sociedade. É um empreendimento fascinante e irresistível, já que seu objeto de estudo é nosso próprio comportamento como seres sociais. A abrangência do estudo sociológico é extremamente vasta, incluindo desde a análise de encontros ocasionais entre indivíduos na rua até a investigação de processos sociais globais. A maioria de nós vê o mundo a partir de características familiares a nossas próprias vidas. A sociologia mostra uma necessidade de assumir uma visão mais ampla sobre porque somos e por que agimos como agimos. Ela nos ensina que aquilo que encaramos como natural, inevitável, bom ou verdadeiro, pode não ser bem assim e que os ―dados‖ de nossa vida são fortemente

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influenciados por forças históricas e sociais. Entender os modos sutis, porém complexos e profundos, pelos quais nossas vidas individuais refletem contextos de nossa experiência social é fundamental para a abordagem sociológica. (Giddens, 2005, p. 1)

Como a sociologia extrai seus estudos da realidade comum, ela é a ciência que mais tem proximidade com o senso popular social, mais conhecido como senso comum, por este motivo às discussões populares e o discurso sociológico lida com o mesmo objeto. Porém, qual a diferença entre o conhecimento sociológico e o senso comum? Este último determina o individuo como autônomo perante a sociedade. a Sociologia, por sua vez, tem este como resultado dos fenômenos sociais. Os estudos sociológicos se remetem á análise da sociedade com rigor de neutralidade, se afastando, justamente, deste senso comum para o desenvolvimento do conhecimento científico. Pois, o procedimento de análise sociológica que não se afasta das pré-noçoes, corre um sério risco de perder o rigor cientifico (Durkheim, 1895), dessa forma, podendo ser direcionado a um caráter determinista ou até mesmo preconceituoso, que não compreenda as diferenças entre os indivíduos. Para fundamentar estes conceitos, ou até mesmo a diferença que determina cada um destes consideramos as seguintes referencias: Marcelo Petter de Vargas afirma que ―Uma boa ideia só existe quando transcendemos os limites do senso comum, desconstruindo para depois construir‖. Já, June Smith aborda o senso comum como ―ver as coisas por dois prismas - a forma como queremos que elas sejam e a forma como elas têm que ser.‖, além de Thomas Huxley que diz: ―A ciência é apenas senso comum treinado e organizado" . Desta forma podemos entender este conceito – senso comum – como um tipo de conhecimento limitado que abrange a forma popular de idealização do mundo e os fenômenos sociais que neste se desenvolve, diferenciando-se do conhecimento científico, mesmo que utilize a sociedade como o mesmo objeto de construção, ou seja, senso comum e conhecimento sociológico se distinguem pelo motivo do segundo conceito mencionado ser cientifico – construído pelo processo de análise, refutação e comprovação cientifica dos fenômenos sociais estudados, através de observações e experimentações, sendo constituídos não pelos achismos e determinismos do pensamento popular, mas, por procedimentos que fundamentam a veracidade ou, até mesmo, falsidade dos fatos estudados. Para todos aqueles que acham que viver a vida de maneira mais consciente vale a pena, a sociologia é um guia bem-vindo. Embora repouse em constante e íntima conversação com o senso comum, ela procura ultrapassar suas limitações abrindo possibilidades que poderiam facilmente ser ignoradas. Quando aborda e desafia nosso conhecimento partilhado, a sociologia nos incita e encoraja a reacessar nossas experiências, a descobrir novas possibilidades e a nos tornar, afinal, mais abertos e menos acomodados à ideia de que aprender sobre nós mesmos e os outros levam a um ponto final, em lugar de constituir um processo dinâmico e estimulante cujo objetivo é a maior compreensão. Pensar sociologicamente pode nos tornar mais sensíveis e tolerantes em relação à diversidade, daí decorrendo sentidos afiados e olhos abertos para novos horizontes além das experiências imediatas, a fim de que possamos explorar condições humanas até então relativamente invisíveis. Tendo compreendido melhor o modo como surgiram os aspectos aparentemente naturais, inevitáveis, imutáveis e permanentes de nossas vidas – mediante exercício de poder e meios humanos –, nos parecerá muito mais difícil aceitar que eles sejam imunes e impenetráveis a ações subsequentes – incluindo aí as nossas próprias ações. O pensamento sociológico, como um poder antifixação, é, dessa maneira, um poder em seu próprio direito. Ele torna flexível aquilo que pode ter sido a fixidez opressiva das relações sociais e, ao fazer isso, abre um mundo de possibilidades. A arte de pensar sociologicamente consiste em ampliar o alcance e a efetividade prática da liberdade. Quanto mais disso aprender, mais o indivíduo será flexível diante da opressão e do controle, e portanto menos sujeito a manipulação. É provável que ele também se torne mais efetivo como ator social, uma vez que passa a ver conexões entre suas ações e as condições sociais, assim como a possibilidade de transformação daquelas coisas que, por sua fixidez, se dizem imutáveis, mas estão abertas à transformação. (BAUMAN; MAY, 2010, p. 19).

Segundo Bauman e May aprender a pensar com a Sociologia é saber entender o mundo em que vivemos de maneira compreensiva e abrangente, analisando a importância do comportamento humano e da 179 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


dinâmica das relações da sociedade, ou seja, interpretando o mundo social e as relações em que estabelecemos neste meio, interdependentemente, e suas consequências, tendo consciência acerca destes fatos. Mills, em ―A imaginação sociológica‖ afirma que aprender a pensar com a Sociologia é aprender a cultivar a imaginação da maneira como foi abordado. Ainda na perspectiva destes autores, a questão central da Sociologia é representada pela seguinte interrogação: ―Como os tipos de relações sociais e de sociedades em que vivemos tem haver com as imagens que formamos de nós mesmos e de nosso conhecimento, nossas ações e suas consequências?‖ (BAUMAN; MAY 2010, p. 20). Essa questão resume a própria discussão sociológica e direciona o olhar para o individuo nessa mesma perspectiva. Dessa forma, a resposta é: as relações que são construídas na sociedade são determinantes nas formas de ser, pensar e agir das pessoas, ou seja, os fenômenos sociais como estímulo para a construção das ações dos indivíduos. Assim, a Sociologia, como ciência (humana e social) tem a função de analisar essas relações e suas consequências nas ações humanas, buscando compreendê-las da melhor forma, como já ressaltado. A partir dessa definição, pode-se estabelecer uma ligação com o conceito de fato social para Durkheim: ―Eis, portanto uma ordem de fatos que apresentam características muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele. Por conseguinte, eles não poderiam se confundir com os fenômenos orgânicos, já que consistem em representações e em ações; nem com fenômenos psíquicos, os quais só têm existência na consciência individual e através dela. Esses fatos constituem, portanto uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada a qualificação de sociais.‖ (DURKHEIM, 2007:2).

Dessa forma: ―É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, (...) que é geral na extensão de uma sociedade dada, e, ao mesmo tempo, possui existência própria, independente de suas manifestações individuais.‖. (DURKHEIM, 2007:13).

Á vista disso, toda forma de ser, pensar e agir do ser humano é influenciada por imposição social. Esta estabelece uma consciência coletiva nos indivíduos que assegura o consenso entre estes, desenvolvendo, assim, a manutenção da sociedade. Esta consciência se remete ao conjunto de crenças e sentimentos comuns dos indivíduos e se afirma no meio social, independente das vontades individuais, se perpetuando de geração a geração de maneira coercitiva e inconsciente aos indivíduos. Dessa forma, o fato social atinge os caracteres de exterioridade, como fora das consciências individuais, coercitividade, como imposição independente das vontades individuais e generalidade, como um fenômeno que atinge a todos os indivíduos que estabelecem, de alguma forma, a integração com o meio social em que vivem. (PILETTI; PRAXEDES, 2010, p. 24 á 26). ―O objetivo da educação para ele é o de criar o ser social com base em uma forma de coação permanente exercida sobre a criança pelo meio social para moldá-la à sua imagem e da qual os pais e professores não passam de representantes e intermediários‖. (PILETTI;PRAXEDES, 2010, p.27).

Nesta afirmativa Piletti e Praxedes relaciona o fenômeno da educação para Durkheim como um exemplo de fato social, podendo ser evidenciado na nossa realidade social através do processo de formação da criança, que sempre está cercada de ―intermediários‖, cuja função é orientá-la a como viver em sociedade – independente de sua vontade – á obedecer às regras institucionais – como de família ou escola – para que a sociedade se mantenha organizada. Ou seja, os padrões de vida estabelecidos socialmente, são repassados ao indivíduo em formação pelas instituições sociais para que estes possam viver harmonicamente em sociedade. Dessa forma, para Durkheim, a educação é como instrumento de reprodução da consciência coletiva para o desenvolvimento da solidariedade entre os indivíduos.

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O principal objetivo do autor em estudar a educação como um fato social foi estabelecê-la como uma ferramenta primordial para a manutenção da coesão, ou seja, organização social dos indivíduos, em detrimento da anomia (instabilidade, desorganização) social. É através deste fato social, como diz Durkheim, que a sociedade se mantém em consenso. Assim, como podemos associar a importância do conhecimento sociológico á esta discussão? Como associar o ensino deste conhecimento á temática referida? Como a Sociologia pode contribuir positivamente ao nosso mundo contemporâneo levando em consideração os incalculáveis desafios sociais que vivemos atualmente? Retomando Bauman e May, na mesma obra referida, as principais contribuições á este fim dizem respeito á efetivação da Sociologia como modo de pensar – se refere á todo o discurso que foi abordado acima, provocando uma transformação da forma de vivencia dos indivíduos a partir da transformação da forma de pensar destes, acerca da vida humana e social – e como disciplina – á sistematização do conjunto de acúmulo de conhecimentos sociais. Estas duas estratégias elaboradas por estes autores são fundamentais para atingir o objetivo até aqui proposto. A contribuição da primeira estratégia foi minunciosamente explicada no transcurso acima. Porém, não podemos deixar de evidenciar neste feito a relevância da sociologia como disciplina através da transposição deste conhecimento por meio do ensino, ou seja, da educação. A educação como fato social construído por Durkheim é defendida pelo mesmo como instrumento de sustentação da solidariedade e coesão social pelas características de fundamento do fato social que já foram redigidas neste texto. Desta maneira, o fenômeno da educação é reconhecido como supremo para o bem social e se tratando de conhecimento sociológico, o ensino deste também é consideravelmente significativo á este fim, visando a construção de indivíduos que compreendam as relações sociais, as reflexões dessas relações nas ações dos indivíduos, enfim, a compreensão estabelecida de uns acerca dos demais indivíduos. No decorrer deste escrito, foi expendida a importância da Sociologia como ciência para as relações sociais; a educação como fato que faz parte dessas relações sociais e é intimamente relevante para a constituição das mesmas, sendo interpretada como uma via de mão dupla. E, por fim, como a Sociologia, como disciplina, pode contribuir para a formação dessa sociedade coesa e harmônica que compreenda as diferenças sociais entre si? Através da consolidação do seu ensino nas diversas instituições educacionais, seja na Educação Básica, Profissional, Superior, etc., pois, é por meio da aprendizagem deste conhecimento que os indivíduos alcançam uma postura intelectual crítica e construtiva perante a vida social em que estão inseridos. Eis a necessidade de maiores estudos, reflexões, representatividade e reconhecimento da Sociologia como disciplina escolar, para que, mesmo que já tenha sido institucionalizada – na grade curricular do ensino médio, da Educação Básica, no Brasil – possa ganhar maior legitimidade no âmbito educacional, relacionado à valorização da disciplina nas escolas em detrimento dos conhecimentos que são reconhecidos como mais importantes, como, por exemplo, Português e Matemática; maior carga-horaria da disciplina na grade curricular, pois, esta, se detém a apenas uma aula por semana no currículo das turmas do ensino médio; consequentemente melhores condições de trabalho para os professores, etc. Com o aprimoramento de fatores políticos, sociais e educacionais o resultado obtido tende a formar indivíduos que compreendam melhor o mundo em que vivem, tendo uma perspectiva crítica a respeito dessa realidade, direcionando á atuação da cidadania por meio destes, possibilitando, assim, uma sociedade menos desigual e possivelmente mais harmônica. Eis a magnitude do conhecimento Sociológico para o mundo. Contribuições finais A Sociologia se instrumentaliza enquanto modo de pensar e enquanto disciplina como constituiu Bauman e May e é por meio desta instrumentalização que o conhecimento sociológico possibilita uma maior compreensão das relações sociais e do meio em que vivem através da viabilização de um pensamento critico, compreensivo, tolerante ás diferenças e construído pelo respeito, auxiliando na formação de um bem estar social maior por meio das estratégias ideológicas mencionadas. É um processo de conscientização acerca do comportamento humano com o meio e das relações de interdependência entre o individuo e a sociedade, ou seja, de compreensão dos fenômenos sociais estabelecidos socialmente. Por meio desta argumentação se 181 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


fundamenta a ideia de como aprender a pensar com a Sociologia através da imaginação sociológica estabelecida por Write Mills. Deste modo, tomamos a Sociologia como um conhecimento necessário para a constituição das relações que estabelecemos na sociedade, pois, a partir desta, o processo de conscientização de quem somos como indivíduos compositores de um meio dinâmico e dependente do mesmo, é constituída, promovendo uma maior facilidade no entendimento e compreensão das nossas diferenças, para assim, possibilitar o alcance do ideal de cidadania e bem estar social. Por este fato podemos concluir e frisar a magnitude da propagação do conhecimento sociológico através da educação – fenômeno estabelecido como fato social para Durkheim – ou seja, da Sociologia como disciplina para a constituição do ensino da mesma a fim de alcançar a formação de sujeitos críticos e compreensivos. Referências MILLS, Wright C. A imaginação sociológica. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. 246p. SCHAEFER, Richard T. Sociologia. 6ª edição. São Paulo: McGraw-Hill, 2006. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6067. Informação e documentação: sumário; apresentação. Rio de Janeiro, 2003 _________, NBR 14724; Informação e documentação: trabalhos acadêmicos; apresentação. Rio de Janeiro, 2011. BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. ÉMILE, Durkheim. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2005. PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Sociologia da Educação. - 1.ed. - São Paulo: Ática,2010 SILVA, Ileizi Luciana Fiorelli. Metodologias do Ensino de Sociologia na Educação Básica. Caderno de Metodologias de Ensino e de Pesquisa de Sociologia? LENPES (Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de Sociologia). Orgs. SILVA, Ileizi Luciana Fiorelli; LIMA, Angela Maria de Souza; NUNES, Nataly; LIMA, Alexandre Jeronimo Correira GIDDENS, ANTHONY. Sociologia. 4 ed. Porto Alegre:Editora Artmed,2005 ,p. 24-27 DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000 MARTINS, Carlos Benedito. O que é Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1988 LAKATOS, E. M. & MARCONI, M. A. Sociologia Geral. São Paulo: Atlas, 1999 GOMES, Cândido. A Educação em pesrspectiva sociológica. São Paulo: EPU, 1985 BOUDON, R. BOURRICAUD, F. Dicionário crítico de Sociologia. São Paulo: Ática, 2000 TOMAZZI, Nelson Dácio. (coord.). Iniciação à Sociologia. São Paulo: Atual. MEKSENAS, Paulo. Aprendendo Sociologia. São Paulo: Loyola.

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A NOÇÃO DE AUTOR E AUTORIA NAS TELENOVELAS GLOBAIS: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA1 Nina Nunes Rodrigues Cunha2 RESUMO Este artigo, de fundo teórico e experimental, procura dar conta da questão de autor e autoria nas telenovelas globais, analisando, na medida do possível, os conceitos formulados por Bakhtin para a construção da telenovela. Mas não somente os conceitos que se veiculam à criação estética, bem como àqueles decorrentes desta relação, tal qual a construção do self. Palavras-chave: Bakthin; Autoria; Autor; Telenovela; Self.

Introdução os últimos anos, as produções de Bakhtin têm recebido bastante atenção em diferentes áreas do conhecimento. Embora sejam notadamente mais utilizadas nos estudos de linguística e de estética literária, se adequam a qualquer campo que envolva o agir em sociedade, uma vez que este autor traz o sujeito humano e suas relações para o centro de suas preocupações. Neste artigo, de caráter teórico e experimental, buscamos associar a noção de autor e autoria deste pensador às autorias das telenovelas da Rede Globo de televisão. De cunho filosófico, os conceitos que envolvem autor e autoria, perpassam inúmeros trabalhos de Bakhtin, com o desenvolvimento pautado em seu próprio amadurecimento como pensador. As elaborações levantadas a respeito da relação autor e herói chegam até mesmo a ultrapassar a criação estética e o discurso linguístico, trazendo para o debate uma das problemáticas mais relevantes da Psicologia: a discussão sobre a formação do self. Embora a análise empreendida por Bakhtin sobre autoria na obra de arte se relacione à criação verbal, mais precisamente à criação literária, e não a uma produção midiática televisiva, procuramos analisar esta possível aproximação, ressalvando as particularidades da telenovela enquanto gênero ficcional capaz de congregar áudio, vídeo e interpretação.

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Autor e autoria: diálogos possíveis a partir de Bakhtin Bakhtin e o mistério sobre suas próprias autorias O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) foi um dos maiores pensadores do século XX, intitulado como pensador por ser um filósofo assistemático (CLARK E HOLQUIST, 2008), com pensamentos diversificados sobre várias questões importantes da sociedade. Segundo Schaiderman (2008), apesar de ser um homem profundamente religioso, foi capaz de engendrar sólidas abordagens marxistas. Mas nada que cause espanto, afinal de contas, foi ele mesmo quem postulou a natureza dialógica do ser-humano. Assim, um pensador que pregou a constante incompletude do homem, não poderia apresentar feições finalizadas e estáticas. Afora a pluralidade de suas visões sobre temas cruciais, uma das suas empreitadas mais relevantes foi a de pensar o dialogismo como uma concepção de mundo plenamente desenvolvida. Os escritos mais acentuados nesta perspectiva foram os primeiros elaborados pelo autor, revelando desde o princípio sua ampla base filosófica sobre a qual repousa seu pensamento em linguística, crítica literária e teoria social. (CLARK E HOLQUIST, 2008). 1

Trabalho apresentado no GT 1: Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí, pesquisadora da linha de Mídia e Produção de Subjetividades. 183 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Ao evocar as ideias deste autor sobre autoria, fica difícil não mencionar o mistério que envolve sua própria carreira a este respeito. Apesar da vasta produção de conhecimento, ao todo Bakhtin assina apenas dois livros ao longo de sua vida, um sobre Dostoiévski, em 1929 e um ensaio, em 1960, sobre Rabelais e a Cultura do riso na Idade Média. (FARACO, TEZZA, CASTRO, 2006). Entretanto, alguns livros sobre filosofia da linguagem e teoria literária são associados ao seu nome, como ―Freudismo‖ e ―Marxismo e Filosofia da Linguagem‖ ambos assinados por Valentin N.Voloshinov e ―O método formal nos estudos literários‖ assinado por Pavel N. Medvedev. Estes autores não representam apenas pseudônimos, os dois de fato existiram e compartilharam das ideias de Bakthin. Durante dez anos, de 1919 a 1929, participaram, juntamente com outros pesquisadores, de um grupo de estudos denominado de ―Círculo de Bakhtin‖. Autor e autoria em Bakhtin: eu e o outro e a formação do self As questões acerca de autor e autoria permeiam quase todas as produções de Bakhtin, baseando-se em fundamentações filosóficas com variados desdobramentos de acordo com os trabalhos desenvolvidos. Segundo Clark e Holquist (2008), o modo como os valores assumem a forma de expressão, introduzindo diferenças em um complexo mutável, para Bakhtin é o que se pode denominar de atividade autoral. Ou seja, a enunciação, formulada de acordo com outros enunciados existentes, seria uma forma de autoria. Autorar corresponde a um evento que pode ser chamado de ato, podendo ser tanto uma ação física, quanto um pensamento, uma elocução ou mesmo um texto escrito. ―Destarte, todos nós que efetuamos declarações compreendidas como tais, quer faladas quer escritas, somos autores. Nós operamos a partir de um ponto de vista e moldamos valores como formas.‖ (2008, p.37) De acordo com Clark e Holquist (2008), Bakhtin concebe a alteridade como o fundamento de toda a existência e postula o diálogo como a estrutura primeira de qualquer indivíduo. A consciência humana seria então encarregada de processar o intercâmbio contínuo entre as atividades do ―eu‖ e tudo que é o ―não-eu-emmim‖. A distinção entre eu/outro marcaria a oposição primária que dá seguimento a todas as outras diferenças, de tal modo, o mais alto princípio estrutural da subjetividade se daria com a tomada de consciência da alteridade. Dessa forma, a arquitetônica de autoria, como uma construção de textos (não somente escritos), trabalha para garantir a eficácia da relação estabelecida com o outro. Assim, a atividade autoral age em paralelo com a formação da self. Esta perspectiva sobre o self solapa o entendimento de uma subjetividade absoluta, completa, essencial. A subjetividade bakhtiniana só pode existir dialogicamente, tal qual a linguagem. Ambos, sujeito e língua, são permeados por enunciados alheios e pela presença fiel do outro, marcados pelo princípio da respondibilidade. O sujeito precisa ser responsável (ou responder) por si, uma vez que ocupa um lugar singular no mundo, com uma existência fundada na interação com a alteridade. O self é, então, o resultado sempre mutável daquilo que o sujeito responde aos outros, a partir do lugar que ocupa. O círculo bakhtiniano rompe com as duas principais correntes epistemológicas dadas a compreender a linguagem e a consciência do sujeito: o subjetivismo idealista e objetivismo abstrato. Nas compreensões formuladas pelo grupo, a subjetividade é considerada menos uma abstração metafísica do que um fato básico da vida, que não tem significado ―em si mesmo‖, se não houver a relação com o outro e com a sua capacidade criadora de resposta. A consciência se torna real de acordo com as objetivações sociais, não existindo ato meramente individual. (VOLOSHINOV/BAKHTIN, 1995). A diferença, postulada por Bakhtin, entre os seres humanos e os animais é a de que estes possuem a capacidade de autorar, exatamente pela responsabilidade que assumem perante o outro, ao respondê-lo. Bakhtin, no seu texto ―o autor e o herói‖ (1997), compreende a constituição da subjetividade amparada em três categorias consonantes: a imagem que tenho de mim, – o eu-para-mim-mesmo –; a imagem que tenho do outro, – o-outro-para-mim – e a imagem que o outro tem de mim, – eu-para-o-outro –. Nesta conformação subjetiva interacional, sobretudo quando relaciona ―o-outro-para-mim e eu-para-o-outro‖, Bakhtin promulga a ideia de ―excedente de visão‖. De acordo com a localização, somente o outro pode ver certas coisas sobre o sujeito, que este, por ocupar um lugar diferente, não pode. O lugar ocupado por cada um é único, tanto as 184 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


coisas possíveis de enxergar, quanto aquelas que não podem ser enxergadas, são distintivas do ―eu‖, ao tempo em que ambas ajudam a constituí-lo. Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver (...). (BAKHTIN, 1997, p.43)

Bakhtin imagina a formação da subjetividade como uma conversação, uma luta de vozes falando de diversos lugares e posições, permeadas por diferentes graus e tipos de autoridade. A subjetividade embora formada através do outro, não se funde nele, o sujeito sempre cria respostas novas às imagens que lhes são dadas pelos outros. Assim, a vida pode ser encarada como um acontecimento permanentemente aberto, uma vez que ocorrem modificações constantes de acordo com o olhar do outro, responsável por dar acabamento ao sujeito. (OLIVEIRA, 2001). A presença da voz dos outros nos enunciados do sujeito, não faz com que este apenas reproduza ou pratique um princípio de plágio, mas gera exatamente um novo enunciado (irrepetível) - do qual o sujeito, ao apropriar-se criativamente, torna-se autor. Nesse sentido, Clifford (apud Magalhães, 2005) apresenta a dificuldade para, em uma pesquisa etnográfica, dar voz e definir a autoria dos outros autores participantes (vozes), sem privilegiar apenas oautor da redação final. O modo dialógico em que se dá a constante construção de enunciados acaba dificultando a identificação de autorias. O sujeito, enquanto autor de enunciados, de acordo com a interação com os outros, só pôde ser pensado, através da relação entre ―autor e personagem‖. Para isso, Bakhtin analisou a forma com que autores literários lidam com personagens na construção ficcional, essas proposições sobre a conformação do ―herói‖ pelo autor, acabaram extrapolando a estética/poética para adentrar uma das questões mais complexas da humanidade: a construção subjetiva. Além da construção subjetiva, de grande valia para qualquer estudo que envolva os seres-humanos, nos deteremos a autoria, para, em seguida, analisar como esta se coloca na telenovela brasileira. A noção de autoria na criação estética Logo no início do seu texto sobre ―O problema do herói na atividade estética‖ (1997), Bakhtin explica que diferentemente da vida, em que não nos interessa o todo do homem, mas apenas os atos isolados que confrontamos e que nos dizem respeito, ao tempo em nós mesmos somos menos aptos para perceber o nosso próprio todo, na obra de arte, o autor ocupa uma posição de princípio, produtiva e criadora, que o habilita a enxergar tanto as nuances das manifestações individuais, quanto o herói em sua totalidade. (BAKHTIN, 1997) Mas há uma distinção quando se trata de autorias, para Bakhtin há o sujeito físico, o autor-pessoa e o sujeito não-físico, o autor-criador. De acordo com Faraco (2008), o autor-pessoa corresponde ao escritor, ao artista. Enquanto o autor-criador atua como o portador da função estético-formal de engendrar a obra, constituindo o objeto estético, uma vez que lhe fornece forma, como viga principal capaz de sustentar toda a criação. O posicionamento valorativo do autor-criador é que o torna possível a criação do herói e seu mundo, para o qual este providencia acabamento estético. Ou seja, o autor-criador transpõe sua posição axiológica sobre certa realidade vivida para outro plano de valores, organizando a unidade da obra, é ele quem dá forma ao conteúdo. O ato criativo envolve um complexo processo de transposições refratadas da vida para a arte. (FARACO, 2008) Nos processos semióticos, pensados pelo Círculo de Bakhtin, há sempre um reflexo e uma refração de mundo. A enunciação não seria um simples processo de descrição ou reprodução da realidade, mas uma organização interpretativa e heterogênea da experiência. Por essa razão, Bakhtin (1997) afirma que não interessa a análise psicológica do ato de criação, mas a forma com que esse ato toma materialidade na obra. 185 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O artista que luta por uma imagem determinada e estável de um herói luta, em larga medida, consigo mesmo. Os mecanismos psicológicos desse processo não poderiam, tais como se apresentam, ser objeto de nosso estudo, pois só temos acesso indireto a eles através do que ficou depositado deles na obra de arte; em outras palavras, só através da história ideal de um sentido e das leis que lhe regem a estruturação. (BAKHTIN, 1997, p. 27)

A distinção entre o autor-pessoa e autor-criador perpassa um deslocamento na linguagem, linguagem no sentido dado pela heteroglossia, como um ―conjunto múltiplo e heterogêneo de vozes ou línguas sociais, isto é, um conjunto de formações verbo-axiológicas‖ (FARACO, 2008, p.40). Dessa forma, na construção criativa da obra há uma complexa condução envolvendo línguas sociais, onde o escritor direciona as palavras para vozes alheias e entrega a unicidade do todo artístico a uma só voz. O autor-criador apresenta-se sempre como uma segunda voz, sua voz não é a voz direta do autor-pessoa, mas um ato de apropriação de vozes sociais. Sem o deslocamento, não há uma criação artística autêntica, sendo assim, o autor-pessoa tem que trabalhar numa linguagem fora da sua linguagem. Bakhtin apresenta esse necessário deslocamento (...) dizendo que as ideias do escritor, quando entram na obra, mudam sua forma de existência: transformam-se em imagens artísticas das ideias, isto é, não são as ideias do escritor como tais que entram no objeto estético, mas sua refração. (...) Mesmo que o escritor coloque ideias na boca do herói, não são mais suas ideias porque estão precisamente na boca do herói e se conformam ao seu todo. (FARACO, 2008, p.4041)

Essa perspectiva de deslocamento, na atitude de tratar de uma linguagem estando fora dela, remete ao princípio da exotopia, possibilitado pela posição do autor em relação ao herói. Esta relação compõe-se de maneira assimétrica, exterior e superior, se apresentando como condição necessária à criação artística. De acordo com Bakhtin (1997), a criação necessita de elementos exteriores à consciência. ―A divindade do artista reside em sua participação na exotopia suprema. Mas essa exotopia aos outros e ao seu mundo não é, claro, senão uma maneira específica e fundamentada de participar do acontecimento existencial.‖ (p. 205). Ou seja, a tarefa do autor consiste em aproximar-se da vida pelo lado de fora, criando visões e imagens de mundo. Sendo assim, a relação criadora está marcada pela exotopia, pelo fato de uma consciência estar fora da outra, de uma consciência ver a outra como um todo acabado, o que ela não consegue fazer consigo mesma (TEZZA, 2003). O autor é o responsável por dar acabamento a imagem de sua personagem, inacessível a própria personagem. Este acabamento vem de fora, é o outro (autor) que o completa. O autor vê e sabe tudo sobre o herói, ele vê as particularidades e o herói em conjunto, vê até mesmo aquilo que o herói nunca enxergaria de si, esse ―excedente de visão‖ (BAKHTIN, 1997, p.183) beneficia a visão e o saber do autor sobre o herói. De acordo com o acabamento essencial dado pela exotopia, Bakhtin (1997) revela a importância de que pelo menos duas consciência estejam envolvidas no ato estético. Para Michel Foucault, que também se preocupou com a questão da autoria em ―Quem é o autor?‖ (2002), o que há é uma função autor, compreendida como uma posição enunciativa, onde este é identificado pelos próprios textos que produz, que podem não corresponder a um único ―eu‖, mas a uma variedade de ―eus‖. Esta função autor permite não só a produção e circulação de discursos na sociedade, tal qual pensou Bakhtin. Mas permite, em uma obra literária ou texto científico, estabelecer a fiabilidade da construção, além de permitir o reconhecimento dos diversos ―eus‖ que as integram. Além de Foucault (2002), Roland Barthes (1984) também se deteve na questão das autorias. Para ele, o autor, semelhante a Bakhtin, também ocupa uma posição valorativa em relação ao personagem, à medida que o seu papel na construção estética é o de ordenar escritas que o antecedem. Em Barthes, quem fala é a linguagem, não o autor, uma vez que esta seria anterior; quando o autor assume uma linguagem, ele se constitui de algo que já está dado. Posição similar a de Bakhtin, para quem o sujeito não é independente, nem o fundador da sua própria linguagem, já que este se forma na interação com a alteridade, atravessado por diferentes usos da língua estabelecidos de acordo com o contexto. As elaborações sobre autoria de Bakhtin ganharam maior aperfeiçoamento através dos estudos

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dedicados às obras de Dostoiévski (1821 – 1881), as obras do escritor russo autor trouxeram uma grande inovação, ao tratar da inconclusibilidade humana. Com estas obras, pela primeira vez, os aspectos incompletos do homem permearam a construção estética do personagem, através de certa liberdade dada ao próprio personagem. Para Bakhtin, ele (Dostoiévski) cria ―não escravos destituídos de voz [...] porém gente livre, capaz de postar-se ao lado de seu criador, capaz de não concordar com ele e até de rebelar-se contra ele‖ (BAKHTIN apud CLARCK E HOLQUIST, 2008, p.259). Na visão de Bakhtin, Dostoiévski cria uma nova espécie de unidade em seus romances, uma unidade expressiva referente ao caráter dialógico entre várias ideias e vozes opostas. Bakhtin compreende a obra de Dostoiévski como um romance polifônico, obtendo este entendimento através da elaboração de sua teoria do discurso. (CLARCK & HOLQUIST, 2008) Para Bakhtin: Todo pensamento dos heróis de Dostoiévski [...] percebe a si mesmo, desde o próprio início, como uma réplica em um diálogo não-finalizado. Tal pensamento não é impelido para um todo bem torneado, acabado, sistematicamente monológico. Ele vive uma vida tensa nos limites do pensamento de alguém mais, da consciência de uma outra pessoa. (BAKHTIN apud CLARCK E HOLQUIST, 2008, p.261)

Este conceito de polifonia (um dos mais complexos da obra bakhtiniana) serve para ilustrar a relação entre autor e criação, correspondendo à relação essencial entre o eu e o outro, através de uma arquitetônica de respondibilidade. Entretanto, segundo Faraco (2008), com a inserção deste termo, Bakhtin teve de modificar o olhar sobre a questão da exterioridade, o autor-criador não daria mais o acabamento final, mas uma espécie de dialogia. No entanto, este termo (polifonia) acabou destituindo-se de seu caráter teórico inicial, sendo utilizado mais comumente em livres associações. Autoria nas telenovelas brasileiras Telenovela brasileira: uma telenovela global? Embora a telenovela represente apenas um gênero dentro da vasta programação da televisão. No Brasil, esta se apresenta como um dos mais importantes produtos midiáticos televisivo. A primeira telenovela diária surgiu em 1963, na TV Excelsior, com a exibição de ―2-5499 Ocupado‖, baseada na obra do argentino Alberto Migré. A década de 70 marcou o início da hegemonia da Rede Globo na produção de telenovelas, a emissora contratou Janete Clair para criar uma novela tão contemporânea quanto ―Beto Rockfeller‖, a autora reescreveu a radionovela ―Véu de Noiva‖ e, no ano de 1969, a adaptação conquistou sucesso. Nas décadas de 1970 e 1980, confirmou-se o jeito brasileiro de fazer novela, através da colaboração de grandes novelistas e poetas foram abordados temas atuais. A partir dos anos 90, as telenovelas assumiram um maior valor mercadológico, continuaram a abordar temáticas afinadas ao contexto social e político, responsável por fidelizar o público desde seu surgimento. Entretanto, mediante leve esgotamento nos modelos e nas temáticas, a Rede Globo inovou na inserção de novos costumes e valores televisivos, buscou novos tratamentos estéticos e narrativos. (VASSALO LOPES, 2003) Para Vassalo Lopes (2009), essa consolidação da telenovela como o gênero mais popular e rentável da televisão brasileira está fortemente vinculada a proximidade estabelecida com a realidade social do País. A oposição instituída com os dramalhões sentimentais mexicanos, feitos para fazer chorar, marcou a ascensão da telenovela no Brasil, sobretudo com as implementações modernizantes instituídas pela Rede Globo neste segmento, por essa razão, ao falar de telenovela brasileira, fica difícil não mencionar a contribuição desta emissora.

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A questão de autoria na telenovela global Antes de traçar o paralelo entre telenovelas globais e a questão de autoria, há de se fazer as diferenciações necessárias para que se compreendam as peculiaridades do produto analisado. Diferente da obra escrita, analisada por Bakhtin, a telenovela congrega recursos de áudio e vídeo, não apenas a produção textual. Neste sentido, é feito um script e este é transferido para o ―ato‖, isto é, a cena, a representação dramática, interpretada por atores com os recursos disponibilizados pela equipe técnica, figurinistas, iluminação, direção de arte, entre outros. Além disso, a telenovela não é uma obra fechada tal qual um livro, quando ela inicia, alguns capítulos já foram gravados. No entanto, no decorrer da trama, a produção continua, ficando suscetível à modificações de acordo com a recepção por parte do público (interesses mercadológicos na ―resposta‖ da audiência) e outros imprevistos que porventura ocorram. Situamos aqui algumas questões que envolvem a ―respondibilidade‖ dos autores para com o público e para com o gerenciamento da própria empresa em que trabalha. O que ocorre é que os enunciados formulados na obra têm de responder, em alguma medida, a exigências. Sendo assim, quando se fala de autoria nas telenovelas globais, em geral, as pessoas recordam de autores expressivos e que conformam temáticas, que de certa forma os identifica. Quando se trata do clima de bossa nova carioca, a presença de pelo menos uma personagem Helena e casos corriqueiros de família, atribuise logo a autoria à Manoel Carlos. Da mesma forma, quando se trata de conflitos multiculturais, a autoria é logo associada à Glória Perez. No entanto, fica a pergunta: como se processa a autoria nas telenovelas? De acordo com Jacob & Weber (2009), no debate sobre a autoria nas telenovelas, três tendências tomam a frente. A primeira delas considera que as circunstâncias de produção das telenovelas tendem cada vez mais a diminuir a autonomia necessária para o exercício da função de ―controle da obra‖ pelos roteiristas denominados de autores. A segunda perspectiva apregoa relativo controle dos autores de telenovelas na influência exercida na condução do enredo. A terceira tendência admite também que o roteirista titular funciona como o autor nas telenovelas brasileiras e se utiliza do caráter histórico para sustentar essa definição de autoria. Associando dimensões contextuais e textuais das telenovelas para evidenciar traços estilísticos dos roteiristas autores. Nesta perspectiva, Jacob & Weber (2009) acreditam que a função de autoria na telenovela é definida pela autonomia imaginativa empregada na produção e circulação comercial de um enredo, não concordam com o argumento das limitações inventivas impostas pelo rígido controle do padrão da Rede Globo de qualidade. Para elas, o papel dos gestores da emissora é de lançar ―mão de mecanismos que põem em operação dispositivos facilitadores da posição de autor das telenovelas. Dispositivos que podem agregar maior ou menor capital simbólico para a própria emissora e para os profissionais envolvidos‖ (2009, p. 81) Este ponto gera algumas controvérsias, pois há aqueles que acreditam no cerceamento criativo por conta de padrões financeiros, de um produto elaborado para ser consumido e para gerar consumo em cima de outros produtos. No caso da Rede Globo, desde 2008 existe uma direção geral responsável por gerenciar todo o entretenimento exibido pela emissora. Entendemos que essa atitude de considerar o roteirista principal como autor, acaba ofuscando a contribuição de muitos outros profissionais envolvidos na criação estética da obra, sejam eles os demais roteiristas, figurinistas, cenógrafos, iluministas, diretores de cena e técnicos ou as próprias vozes das histórias reais em que se baseiam. O caráter dialógico da produção, que vai desde a captação de recursos e desenvolvimento de pesquisas até o produto final veiculado na TV dos brasileiros, faz com que seja difícil identificar um único autor, embora algumas marcas do enredo façam com que as autorias sejam associadas a A ou B, como estimula a terceira tendência apontada acima. Para Barthes (1984), ―a explicação da obra é sempre procurada pelo lado de quem a produziu, como se, através das alegorias mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só pessoa, o autor, que nos entregasse a sua confidência‖ (1984, p.50). Como se antes disso não houvesse uma linguagem, dá qual o autor, ainda que quisesse, não poderia ser o criador. Sendo assim, a produção de um enredo sempre está amparada naquilo que já foi dito, naquilo que já foi feito ou falado. Como apregoa Voloshinov/Bakhtin 188 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


(1995), todo enunciado - quer se trate de uma simples frase ou um romance - comporta começo e fim, pois antes de seu início, há os enunciados dos outros e, após seu fim, os enunciados-respostas. Em termos de um autor-pessoa, pensamos não só no roteirista que produz o script, mas no autor que possui o poder valorativo de enxergar os personagens e os núcleos da trama em sua totalidade, uma presença onisciente, ainda que não se trate da voz de uma terceira pessoa dentro da própria trama, o autor-criador. O autor de uma telenovela, tal qual de um livro, traz recursos recortados e interpretados da vida cotidiana para a obra, com uma confluência de diversas línguas e vozes sociais, se utilizando do que Bakhtin (1997) denominou de heteroglossia. Um mesmo enredo, construído na trama televisiva, emprega diversos núcleos e temáticas diferenciadas, instalando diversos pontos de tensão, que podem ou não se unir em determinado momento. Essa produção tão difusa, nos deixa com a impressão de que, mesmo que quisesse, o autor não teria disponibilidade suficiente para vivenciar todas as realidades que expõe. Imaginamos então que ele sai dos limites da sua linguagem e das suas convicções para adentrar o mundo dos personagens, ainda que não faça isso se utilizando diretamente da única voz do autor-criador. Na produção do ato artístico, reside um emaranhado jogo de deslocamentos envolvendo várias línguas sociais, essa voz criativa se apresenta como uma segunda voz, não a voz direta do autor enquanto sujeito, mas a apropriação interpretada de vozes sociais, que o autor se encarrega de organizar para compor o todo estético. Até mesmo as partes da realidade vividas pelo autor, que já são por natureza atravessadas por diferentes valores, no plano da obra recebem outros sistemas valorativos. No ato artístico, aspectos do plano da vida são destacados (isolados) de sua eventicidade, são organizados de um modo novo, subordinados a uma nova unidade, condensados numa imagem autocontida e acabada. E é o autor-criador – materializado como uma certa posição axiológica frente a uma certa realidade vivida e valorada – que realiza essa transposição de um plano de valores, organizando um novo mundo (por assim dizer) e sustentando uma nova unidade. (FARACO, 2008, p.38-39)

De acordo com Bakhtin (1997), estas vozes na boca do herói ganham outra forma de existência. No caso da telenovela, imaginamos logo que a própria interpretação concebida pelo ator, já modificaria o próprio enunciado, à medida que seu entendimento representacional pode não estar em sintonia com a forma com que o autor, responsável pelo acabamento do personagem pela sua visão privilegiada, o imaginou. O princípio da exterioridade e a ideia de exotopia (BAKHTIN, 1997), na telenovela, encontram-se compartilhados com o poder interpretativo e de envolvimento do ator na execução daquilo que foi pensado pelo autor. O acabamento do herói, neste caso, seria conjunto, os dois (autor e ator) dão vida ao personagem e o enxergam por completo, embora cada um a sua maneira particular, com as experiências que lhe cabem. Somado a isso, há a contribuição dos diretores de cena, que também dão seus toques finais ao construto ficcional. Para melhor visualizar esta condição, recorremos às ideias que Bakhtin desenvolve sobre as obras de Dostoiévski, em que o próprio herói encontra-se habilitado a ver seu mundo e a ter consciência deste mundo, ao se enxergar dentro dele através do olhar dos outros personagens. Essa autonomia vem a calhar com a materialidade dada ao herói pelos olhos do ator, que o empresta face, gestos e voz, sem que o autor tenha completo domínio sobre isso. Em muitos casos, a entrega do ator à construção do personagem é tamanha, que este sofre para dissociar a ficção da realidade. Mas afinal, mesmo que só uma interpretação, o ator ao viver um herói, interiorizaria uma outra forma de existência dentro de si, não seria, neste caso, o ―outro‖ presente naquilo que se é? Bom, este assunto renderia um novo trabalho. Mas vale lembrar que com os estudos sobre Dostoiévski, a posição do autor-criador, também acabou sofrendo um deslocamento, onde o excedente de visão sobre o herói e o seu mundo alcançaram, na verdade, o sentido da heteroglossia. Isto é, a voz do autor-criador (tal qual um narrador onisciente) se utilizando de uma visão excepcional não só dos personagens, mas dos múltiplos e heterogêneos dizeres sociais engendrados na obra. No caso da telenovela, ainda que não exista um autor-criador, tal qual Dom Casmurro (de Machado de Assis), o autor enquanto mente inventiva por trás do enredo, possui uma visão geral, refletida e refratada da heteroglossia que envolve a obra. 189 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


As elaborações sobre Dostoiévski também nos ajudam a analisar a produção de personagens inconclusos, que não possuem uma finalização estática. Neste sentido, as telenovelas globais ainda apresentam certo dualismo entre bons e maus, mas há uma tendência recorrente na atualidade, que é a de produzir personagens com nuances, de acordo com a relação estabelecida com os outros personagens da trama. Sílvio de Abreu, em ―A Favorita‖, brincou com essa questão, deixando no ar quem realmente seria a grande vilã da trama, Flora (Patrícia Pillar) ou Donatela (Claudia Raia). João Emanuel Carneiro em ―Avenida Brasil‖, não fez suspense sobre o perfil das protagonistas, mas foi criando situações que deixavam na dúvida a posição ocupada por Rita/Nina (Débora Falabella) e Carminha (Adriana Esteves), a depender dos ângulos de visão ou da própria vulnerabilidade da conformação subjetiva de ambas3. Mas, no entanto, ao findar da trama, em geral os posicionamentos a respeito dos personagens são fechados, diferente dos heróis realmente inacabados de Dostoiévski. Como já foi dito, a análise da criação estética na obra ficcional empreendida por Bakhtin, acabou extrapolando a noção de autoria para chegar a um entendimento sobre a conformação subjetiva do indivíduo. Assim, a relação autor e herói nos encaminha para a formação do self, suscitando o interesse em vinculá-lo aos pensamentos formulados sobre a produção de telenovelas. Este sujeito bakhtiniano, só pode ser pensando na relação com os seus outros sociais, em diálogo constante com os seus pares e com a realidade que o cerca. Os autores de telenovela, ao produzirem personagens para ficção, utilizam, de alguma maneira, de características e marcas do contexto social em que estão inseridos, para, assim, construir seus ―heróis‖. Embora não tão complexos e inconclusos, por conta de exigências do próprio meio para o qual produzem, mas buscando sempre trazer marcas que dialogam com o contexto sociocultural em constante mutação. Para compreender tal afirmação, basta assistir alguns capítulos de telenovelas produzidas há alguns anos e comparar com as telenovelas atuais. Neste caso, percebe-se que as mudanças não envolvem somente as paisagens culturais e o contexto social, mas principalmente a conformação dos personagens/sujeitos elaborada pelos autores, comprovando o quanto o caráter dialogal da construção subjetiva do homem pode ser utilizado na ficção. Mas voltando para a questão de autoria, podemos pensar essa edificação contemporânea das telenovelas, de acordo a construção do romance pensada por Bakhtin (FARACO, 2008), em que o autor possui a responsabilidade de tensionar palavras ditas anteriormente, ou seja, discussões e debates já em voga na sociedade. Este poder dos ―autores‖ de tratar temas da realidade do País, enunciado através de vozes sociais, acabou tornando-se a principal marca da telenovela brasileira, sobretudo das produções da Rede Globo. Conforme França & Simões (2007), este é um dos motivos pelo qual a telenovela ocupa importante lugar na cultura e na sociedade brasileira, uma vez que edifica um cotidiano na tela em estreita relação com o contexto social em que se situa, trazendo para a construção dos personagens as preocupações, valores e os dramas que cruzam a vida dos telespectadores e despertam sentimento de identificação. Os discursos midiáticos telenovelísticos travam diálogos com o contexto sociocultural em que estão situados. A telenovela brasileira encontra-se marcada pelo presente em que vivemos, mantendo uma visível interação entre os sujeitos que produzem e os sujeitos que consomem, numa relação de retroalimentação (respondibilidade) que toma como pano de fundo a realidade brasileira. Em cada época de sua existência histórica, a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano, a impregnar-se dela, a alimentar-se da seiva nova secretada. É apenas na medida em que a obra é capaz de estabelecer um tal vínculo orgânico e ininterrupto com a ideologia do cotidiano de uma determinada época, que ela é capaz de viver nesta época (é claro, nos limites de um grupo social determinado). Rompido esse vínculo, ela cessa de existir, pois deixa de ser apreendida como ideologicamente significante (BAKHTIN, 1995, p.119).

3

Percebe-se que os nomes dos autores foram citados, pois mesmo com as várias contribuições e cerceamentos que uma produção novelística sofre, o poder criativo na lida com os personagens não cessa de ser associado ao roteirista principal, que embora não dê o acabamento final (por conta de outras interferências: como a interpretação do ator e direcionamentos técnicos), foi quem o idealizou. 190 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Ainda que este trabalho não trate das pretensões ideológicas, fica difícil não fazer esta referência ao falar de Bakhtin. Percebemos que quando o autor produz uma obra, baseia-se nas ideologias do cotidiano daquele contexto, caso contrário, seu entendimento cairia por terra. Por essa razão, os autores das telenovelas globais não cessam de dialogar e de trazer vozes ideológicas do dia-dia. Os enunciados produzidos acabam deixando marcas do universo ideológico por trás de sua formulação. Por esse mote, compreendida como um bem cultural, a telenovela no Brasil pode ser interpretada como um texto sociocultural que muito diz sobre a sociedade contemporânea e aspectos da conformação subjetiva dos sujeitos que nela vivem. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a análise empreendida, compreendemos que existe muito mais a ser estudado do que foi exposto nestas linhas, principalmente pela densidade da proposta lançada. Tal qual apregoa o autor base deste artigo, enunciados sempre responderão a outros enunciados, de acordo com os diálogos que nunca cessam de acontecer. Por essa razão, finalizamos sem fechamento, mas com a consideração de que a cada nova leitura, novas indagações surgirão. Também nos fortalecemos com o entusiasmo lançado sobre aqueles que se dedicam a estudar produções ficcionais, ao perceber o quanto Bakhtin produziu em cima de uma construção ficcional literária. Assim, entendemos que estas obras artísticas têm muito a nos dizer e, consequentemente, muito a se estudar. Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Sao Paulo: Perspectiva, 2008. FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. 4ed. São Paulo: Contexto, 2008. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar, 2003. FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de. Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petrópolis: Vozes, 2006. FOCAULT, Michel. Quem é o autor? Portugal: Veja/Passagens, 2002. FRANÇA, Vera; SIMÕES, Paula Guimarães. Telenovelas, telespectadores e representações do amor. ECO-PÓS- v.10, n.2, julho-dezembro 2007, pp. 48-69. JACOB, Maria Carmem.WEBER, Maria Helena. Autoria no campo das telenovelas brasileiras: a política em Duas Caras e em a Favorita. In: SERAFIM, José Francisco (org). Autor e autoria no cinema e na televisão. Salvador: EDUFBA, 2009. MAGALHÃES, Laerte. O autor, a autoria e a autoridade. In:BRANDÃO, Saulo Cunha de Serpa; LIMA, Maria Auxiliadora Ferreira. Ensaios reunidos: coletânea do mestrado em letras-UFPI. Teresina: Halley, 2005

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“ARCA DAS LETRAS” - PRODUÇÃO DE SENTIDOS SOBRE A POLÍTICA DE INCENTIVO À LEITURA VOLTADA PARA O 1 RURAL: UMA PESQUISA EM CURSO NO RURAL TERESINENSE Milane Batista da Silva2 Maria Dione Carvalho de Moraes3 RESUMO A produção de sentidos da leitura de textos escritos está diretamente relacionada ao tipo de suporte na qual se lê e ao meio cultural em que se vive. Para que o hábito da leitura extrapole as fronteiras escolares, bibliotecas e salas de leitura devem estar mais próximas das pessoas. Em localidades rurais, no Brasil, observa-se que políticas de cultura não têm protagonismo como em áreas urbanas. O Programa Arca das Letras, instituído na última década, por demanda de movimentos sociais, apresenta-se como uma política de incentivo à leitura voltada para áreas rurais, visando a disponibilizar acesso a livros. Na pesquisa, em curso, focalizamos a experiência do Programa em localidades rurais do Município de Teresina-PI, buscando compreender a produção de sentidos dos atores sociais envolvidos. Palavras-chave: Arca das Letras; Política Pública de Cultura – Produção de Sentidos, Rural Teresinense.

Introdução

U

ma criança, aprendendo a ler, sente dificuldade de reunir letras e formar palavras. No entanto, a dificuldade é superada quando ela passa a entender a palavra que foi formada, atribuindo-lhe sentido. Ler, então, é atribuir sentido às palavras. Esta atribuição de sentidos, repousa em signos constituídos, uma vez que existiam outros signos que o foram, anteriormente (BAKTIN, 1997). Para Paulo Freire (2006), este processo tem a ver com o que ele chama de leitura de mundo a qual precede a leitura da palavra que, por sua vez, implica a continuidade da primeira. Nesta perspectiva, Dell‘Isola (1996) afirma que uma vez que deciframos, compreendemos, interpretamos, avaliamos o signo, somos sujeitos praticantes de leitura e, como tal, lemos palavras, formas, cores, sons, volumes, texturas, gestos, movimentos, aromas, atitudes e fatos, interagindo com outros, através de diversas formas de linguagem, na leitura que fazemos do mundo. No mundo contemporâneo, a leitura de textos escritos é parte importante das capacidades exigidas na decifração do mundo. No entanto, no Brasil ainda há desafios a serem vencidos, nesta área. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2016), 56% da população brasileira é constituída de leitore/as, ou seja, de quem leu, por inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos últimos três meses. Deste/as, 19% costumam ler livros em formato impresso ou digital, em bibliotecas. E a mesma pesquisa informa que 4% da população brasileira ainda não sabem ler, e que 23% afirmam não gostar de ler. No que tange a políticas de incentivo à leitura, no Brasil instituições envolvidas, destacam-se, conforme Weiers (2011): Fundação da Biblioteca Nacional, do Ministério da Cultura (MinC), desde 1990; Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER), desde 1992, também do MinC; Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), desde 1997, do Ministério da Educação (MEC), e o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), desde 2006, do Conselho Diretivo de membros do MEC e MinC, da comunidade acadêmica, da Academia Brasileira de Letras (ABL) e da Câmara Brasileira do Livro (CBL). No caso do PNLL, o poder público, através do 1

Trabalho apresentado no GT 01 - Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Teresina - PI. Endereço eletrônico: milane.batista@gmail.com. 3 Dra. em Ciências Sociais; Pós-Doutorado em Sociologia. Profa. na Universidade Federal do Piauí (UFPI) Centro de Ciências Humanas e Letras (CCHL) Departamento de Ciências Sociais (DCIES). Programas de Pós-Graduação: Políticas Públicas (PGPP); Sociologia (PPGS); Antropologia (PPGAnt) E-mail: mdione@uol.com.br 192 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Minc e do MEC, desenhou ações voltadas à leitura e ao livro com destaque para bibliotecas e formação de mediadore/as, considerando o papel dessas instâncias no desenvolvimento social e na construção da cidadania (BRASIL, 2007). No entanto, tais políticas de incentivo à leitura não alcançam regiões rurais, nem povos rurais são costumeiramente incluídos no universo das pesquisas relacionadas ao tema. Como observa Martins (2014), a implantação de políticas públicas no rural brasileiro é marcada pela história de conflitos e interesses do capitalismo agrário que dificultam uma política de desenvolvimento nacional, com ênfase na reforma agrária. Assim, na luta pela reforma agrária e questões correlatas, a demanda por bibliotecas, dizem Soares (2007) e Soares e Carneiro (2010), passou a compor pautas de reivindicações de movimentos sociais e sindicais, como parte do processo de desenvolvimento educacional, cultural, e do trabalho, no campo. Tal demanda, como afirmam Silva e Moraes (2016), faz-se presente nas últimas pautas do ―Grito da Terra‖4, assim como de documentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de outros grupos da sociedade civil organizada. O Programa Arca das Letras, instituído em 2003, pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), no primeiro governo de Luis Inácio Lula da Silva, pode ser visto como resultante de uma ―militância alternativa pela leitura‖ (SOARES; CARNEIRO, 2010, p. 18) e visa, segundo o texto do próprio programa, a criar bibliotecas rurais e a formar agentes locais de leituras. O Programa foi conduzido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) até 2016. Com a extinção desse ministério, no governo Michel Temer, foi vinculado à Secretaria Especial de Agriculta Familiar e do Desenvolvimento Agrário (SEAD) sob a Coordenação-Geral de Ação Cultural da Secretaria de Reordenamento Agrário vinculado à Casa Civil da Presidência da República. Curiosamente, o Arca das Letras, apresenta vinculação institucional diferente das demais políticas de incentivo à leitura no Brasil, normalmente desenvolvidas pelo MEC e pelo MinC. O Plano Nacional de Cultura (PNC), nas suas metas, mostra a relevância das bibliotecas como fator de acesso à cultura letrada. E, embora, embora não se apresente como uma política vinculada ao Minc, é uma política de cultura, de incentivo à leitura de textos impressos, destinado a regiões rurais com carência de mecanismos voltados a este fim. As ―arcas‖ são minibibliotecas cuja base física é uma caixa-estante de madeira que comporta uma coleção de aproximadamente 200 livros, contendo o acervo constituído de exemplares de literatura nacional, internacional, infantil e infanto juvenil. Além de obras literárias, científicas, infantis e outros títulos, são encaminhados às localidades material de trabalho, carimbos com identificação da biblioteca, fichas de controle de empréstimo, marcadores de página e calendários, destinados a facilitar o funcionamento, por exemplo, a operacionalização de empréstimos dos livros. As bibliotecas são instaladas nas casas de agentes de leitura ou nas sedes de uso coletivo (associações comunitárias, pontos de cultura, igrejas), de acordo com a escolha da localidade e disponibilidade de agentes. Nestas bibliotecas, o corpo profissional é voluntário, sem qualquer tipo de remuneração pela prestação dos serviços, sendo responsável não só por controlar o empréstimo de livros. Entre suas competências, está a de divulgação do Programa e ampliação do acervo. Ruralidades e políticas públicas de cultura no Brasil Moraes (2014; 2015) considera que políticas de cultura no país ainda não apresentam protagonismo em programas de desenvolvimento rural. Mesmo no Programa Territórios da Cidadania (PTC), diz a autora, em cujo texto aparecem referências a cultura, o carro-chefe são políticas de transferência de renda, econômicas, e sociais. Conforme Cortes e Lima (2012), um dos resultados de estudos sobre estratificação, estrutura social, desigualdade social, e as relações com as instituições políticas, no Brasil, foi a constatação de que existem

4

Mobilização de caráter reivindicatório, da agenda sindical da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura (CONTAG), desde 1995, com apoio das Federações Sindicais Estaduais (FETAG´s) e dos Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR´s). Reúne agricultore/as familiares, trabalhadore/as sem-terra e assalariado/as rurais do país, em Brasília. 193 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


oportunidades desiguais de acesso a bens e serviços e que disso decorrem possibilidades diferenciadas de exercício de influência sobre processos políticos. Sobre políticas culturais no Brasil, a literatura refere a relação entre governos autoritários e intervenções do Estado na cultura, políticas de cultura, no Brasil, têm caráter tardio, sendo inauguradas na Era Vargas (1930-1945). Durante muito tempo, a ação do Estado restringiu-se à preservação do conjunto dos símbolos formadores da nacionalidade tais como o patrimônio edificado e as obras artísticas ligadas à cultura erudita. Manifestações populares foram classificadas como folclore nacional e estudo de políticas de cultura, no país, é objeto de interesse recente. (RUBIM, 2007; CALABRE, 2007; VENTURA, 2005). Ventura (2005, p. 79) é enfática quando fala sobre política cultural na contemporaneidade, ―as principais iniciativas na área de política cultural se deram em regimes autoritários ou em Estados social-democratas, de modo que a combinação entre democracia liberal e pluralista e política cultural é um fato novo no processo contemporâneo‖. Daí, o desafio do processo democrático de conciliar igualdade social, pluralismo cultural, cidadania, e economia política. Políticas de incentivo à leitura, como parte integrante de políticas de cultura, foi objeto de estudos no campo das práticas culturais como na conhecida pesquisa realizada na França, por Pierre Bourdieu sobre diversas práticas de fruição cultural, sob encomenda do Ministério da Cultura daquele país, dentre as quais frequência e custos de financiamento de equipamentos culturais e práticas de leitura (GHEZZI; CATELLI, 2013). Tais políticas de incentivo remetem, ainda, a temas que envolvem discussões acerca da própria historia do livro e do mercado editorial que transformou o livro em um produto do mercado capitalista. Como diz Zilberman (2001), embora as políticas não deixem de valorizar a leitura, como ideia, seu sucesso depende de a leitura ser igualmente prezada enquanto negócio, porquanto, o livro é, também, mercadoria que impulsiona o mercado capitalista e, nesta ótica, o próprio ato de leitura é visto como um consumo, com a obra literária significando status e ―riqueza cultural‖, conceitos que se aproximam do que Bourdieu (2007) define como distinção, em sua crítica às hierarquias culturais. Assim, a própria existência de políticas de incentivo à leitura interpela-nos para um debate de como esse mercado inviabiliza o acesso a livros por pessoas com menor poder aquisitivo. Assim, leitura tem sentido amplo como experiência sociocultural e seu estudo ajuda a desvendar elementos importantes da vida social. Como parte desta problemática, atribui-se à biblioteca pública papel (re)socializador e político, de agregar pessoas de diferentes classes sociais e atuar como incentivadora do hábito da leitura. Ás chamadas bibliotecas comunitárias atribui-se a função social de proporcionar ambiente de leitura próximo dos locais de moradia de leitore/as. Segundo a referida pesquisa retratos da leitura no Brasil (2016), a falta desta proximidade é uma das razões citadas por leitore/as e não leitore/as citadino/as como justificativa de não terem lido mais ou não terem lido nos últimos três meses. Assim, associa-se ambiente e condições favoráveis como essenciais à prática da leitura. Ora, em localidades rurais, a presença de bibliotecas é algo bem distante da vida de seus/suas habitantes, embora seja responsabilidade do Estado dispor de bibliotecas e centros de leitura para esses povos. A própria instituição do Programa Arca das Letras é indicativa desta situação de falta. No entanto, impõe-se pensar sobre ruralidades pela ótica da cultura, no sentido referido por Williams (1958) e Canclini (2009) sobre a necessidade da ação afirmativa da diversidade cultural na busca da redução da desigualdade social. Para Silva e Moraes (2016) uma dimensão desta desigualdade pode ser vista na disparidade ontológica entre rural e urbano, no Brasil, e as consequências desta, inclusive, no que tange à prática de leitura, problema importante e antigo na história brasileira, em especial, entre povos rurais. Além do mais, como observa Moraes (2014), o texto brasileiro sobre ruralidades e desenvolvimento ainda não trata com a devida atenção o papel de políticas culturais no âmbito das ruralidades. Para Ghezzi e Catelli (2013), observa-se uma tendência, em estudos sobre práticas culturais, de guiarem-se por um ponto de vista predominantemente economicista, revelando como cultura pode ser um bom negócio, em detrimento da concepção da estreita associação com cidadania. Aliás, esta associação é enfatizada como uma das bases discursivas do Plano Nacional de Cultura (PNC), em áreas urbanas e rurais, cujo capítulo terceiro diz: 194 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O acesso à arte e à cultura, à memória e ao conhecimento é um direito constitucional e condição fundamental para o exercício pleno da cidadania e para a formação da subjetividade e dos valores sociais. É necessário, para tanto, ultrapassar o estado de carência e falta de contato com os bens simbólicos e conteúdos culturais que as acentuadas desigualdades socioeconômicas produziram nas cidades brasileiras, nos meios rurais e nos demais territórios em que vivem as populações. (BRASIL. PNC, 2012. Não paginado. Grifos nosso).

O entendimento é que a cidadania cultural contribui para a superação de desigualdades, para o reconhecimento das diferenças reais existentes entre os sujeitos em suas dimensões social e cultural (CALABRE, 2007; VENTURA, 2005). Simis (2007) lembra que política de cultura é parte das políticas públicas que, genericamente, significam escolha de diretrizes gerais com ação direcionada para o futuro, cuja responsabilidade é de órgãos governamentais, com vistas ao alcance do interesse público pelos melhores meios possíveis. No que tange ao tema em apreço, tem a ver com produção, difusão, acesso, e fruição. Nesta perspectiva, impõe-se pensar políticas de cultura com respeito à diversidade cultural, nos termos de uma ―democracia cultural‖ – pela compreensão de cultura como qualidade de todos os seres humanos, reconhecendo-se conhecimentos e saberes próprios de cada povo, região – e não de uma ―democratização da cultura‖5 como se só quem fosse detentor/a de saberes letrados tivesse cultura e que esta deveria ser ―expandida‖ para outros povos, grupos e pessoas, ― sem cultura‖. Sobre leitura como prática cultural e o Arca das Letras Roger Chartier diz que cada leitor/a, espectador/a, ouvinte, produz uma apropriação inventiva da obra ou do texto que recebe, portanto, o/a leitor/a interpreta o texto conforme o meio em que vive, suas vivências e vicissitudes que o autor define como ―conjunto dos condicionamentos que derivam das formas particulares nas quais o texto é posto diante do olhar (...)‖ (CHARTIER, 1999, p. 19), ou seja a leitura corresponde a uma elaboração de significados que não estão apenas nas palavras escritas mas precisam ser construídos pelo/a leitor/a6. Para Dell‘Isola (1996, p. 166), trata-se de um processo interpretativo e subjetivo: ―a leitura, produção tão ativa quanto a produção textual, acontece ao dar ao texto nova vida, ao desencadear um processo criativo de compreensão e interpretação em face do mundo exterior percebido e do mundo subjetivo de cada leitor‖. A produção de sentidos, proporcionada pela leitura relaciona-se a um processo interpretativo. Spink e Lima (2000) ao falarem em rigor no processo de interpretação, na pesquisa, lembram que a partir do século XIX a interpretação passa a ter caráter inacabado, uma vez que esta é, sempre, interpretação de alguém sobre um fenômeno, o que, como tal, é uma interpretação sobre si mesmo/a, com base em vivencias e saberes construídos no meio sociocultural. A leitura, portanto, é ―[...] determinada pelas condições sociais, culturais, históricas, afetivas e ideológicas do[a] leitor[a], portanto, é variável, porque o texto apresenta lacunas que convidam o[a] leitor[a] a preenchê-las.‖ (DELL‘ISOLA, 1996, p. 168). O processo de atribuição de sentidos reporta à simbolização, à cultura, condição essencial da existência humana (GEERTZ, 2008). Como produtora e produto de seres humanos, é construída pelo meio na qual somos inseridos e refletida através do que Bourdieu (1989) refere como habitus. Para Raymond Williams, a ―cultura é de todos‖ (WILLIAMS, 1958, p. 1), o que significa que toda e qualquer sociedade humana, classes, 5

O modelo de política de democratização cultural pauta-se em uma perspectiva colonizadora, civilizacional, da hegemonia da cultura erudita como objeto central de políticas culturais, mundo afora, visando a ―levar cultura‖ a desprovido/as. Via de regra, a problemática da acessibilidade a bens culturais é tida pela ótica de cunho físico e financeiro, como demonstrado por Pierre Bourdieu, na França dos anos 1960. (BOTELHO, 2009). Outra perspectiva – Democracia Cultural - ganhou forma, também na Europa, a partir do final dos anos 1960, com auxílio da UNESCO e com definição mais ampla de cultura, voltando-se ao reconhecimento da diversidade cultural e à busca de melhor entendimento da integração entre cultura e vida cotidiana (RUBIM, 2009). 6 O autor não faz flexão de gênero em seu texto. Mas entendemos necessário fazê-lo, uma vez que o gênero é uma da dimensões das ― vivências e vicissitudes‖ referidas. 195 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


grupos, etc, produzem cultura. A cultura da escrita é uma das expressões culturais que na sociedade contemporânea implica no valor atribuído à leitura. Esta cultura escrita, apesar da crescente dominância das tecnologias eletrônicas, ainda tem a leitura de livros, em sua forma física, como um valor, embora não se possa delimitar até quando, nem que novos sentidos são/serão produzidos. Como lembra Roger Chartier, o significado da obra muda conforme o formato: ―[...] A obra não é jamais a mesma quando inscrita em formas distintas, ela carrega, a cada vez, um outro significado (CHARTIER, 1999, p. 71). Isso poderá ser decisivo na continuidade da cultura escrita, mas independente do formato, ―a leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados‖ (CHARTIER,1999, p. 77). Para o autor, a liberdade leitora não é absoluta, mas cercada por limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura. Ou seja, a compreensão do texto está diretamente ligada à vida, às razões da leitura e aos meios pelos quais a leitura se realiza. Do rolo antigo ao texto eletrônico, observa-se a longa historia das maneiras de ler, com rupturas que põem em jogo a relação entre corpo e texto, os possíveis usos da escrita, e as categorias que asseguram sua compreensão (CHARTIER, 1999)7. Desde os primeiros anos de vida procuramos nos comunicar através do choro para nos alimentar, mas é na escola que aprendemos a ler e exercer o hábito da leitura. De fato, observa-se consenso social em relação a que a escola seja o lugar político-socio-cultural no qual o incentivo ao hábito de ler, para além dos livros pedagógicos, deve ser atividade trabalhada em conjunto com as demais atividades educativas. Mas, as gerações mais jovens, lembra Chartier (1999) lêem coisas diferentes daquilo que o cânone escolar define como leitura ―legitima‖. Segundo ele, a leitura, em sua plenitude, com textos densos e mais capazes de transformar a visão de mundo, bem como as maneiras de sentir e de pensar, deveriam ser mais acessíveis. Para Freire (2006), a leitura direcionada pela escola deve cumprir papel educador mas não se deve limitar-se a ela. O estimulo à prática da leitura de outros textos em ambientes como casa, bibliotecas, salas de leitura, etc, são fundamentais para o desenvolvimento do senso crítico e da leitura de mundo (FREIRE, 2006). Mas mesmo em áreas urbanizadas, no Brasil, há necessidade de bibliotecas e ambientes de leitura. No que se refere a lugares mais afastados dos grandes centros, e áreas rurais, é comum que não se disponham de ambientes – ou se disponham de forma escassa - para acesso ao livro e à leitura. Mais que isto, esta ausência nem sempre é tida como prioridade em termos de resolução na agenda pública. Sobretudo, quando se considera que áreas rurais sofrem da conhecida representação hierárquica, em cujo âmbito ocupa posição de inferioridade, na relação rural-urbano, no país. Apesar das ressignificações em curso, muitas das quais atribuindo a rural novos sentidos e significados (CARNEIRO, 2008; MORAES E VOLELA, 2013; WANDERLEY, 2009; 2011), os paradigmas de urbanização progressiva; de desaparecimento do rural; de rural como elemento residual; de povos rurais pensados a partir apenas do ângulo do que se define como necessidades básicas, ainda informam estatísticas e políticas públicas, e o direcionamento de recursos 8 Arca das letras no rural teresinense: Uma pesquisa em andamento O Programa Arca das Letras abrange 11.404 Arcas em todo Brasil e foi implantado em 2.509 municípios, atendendo a um total de 1.280.760 famílias. Ao todo, foram distribuídos mais de dois milhões de livros e capacitados mais de 20 mil agentes de leitura (MICHEL, 2016). Atualmente, há cerca de 533 arcas instaladas em localidades rurais do Estado do Piauí, desde 2004. Deste total, 30 comunidades estão na zona rural do município de Teresina segundo o Relatório Estadual de Bibliotecas Arca das Letras entregues no Piauí (PORTAL da Cidadania, 2016). Este estado encontra-se na sexta colocação entre os que receberam bibliotecas. 7

Dell‘Isola (1996) fala do texto verbal ou não-verbal como produção de sentidos que veicula diferentes linguagens. Para que haja compreensão da leitura, é necessário, antes de tudo, a comunicação entre os seres. Apesar de sofrer as constantes modificações de cada era vivida pelos seres humanos, com origem na pintura pré-histórica até à era do computador, a linguagem humana, em sentido amplo, é perpetuada e existirá enquanto houver a necessidade de se estabelecer contato comunicativo com o outro. 8 No que tange a políticas públicas, Cortes e Lima (2012) dizem que os critérios de diferenciação e de estabelecimento de hierarquias sociais são considerados como fundamentados na posse desigual de recursos e na posição social que os indivíduos e grupos ocupam nas estruturas sociais. 196 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Segundo o painel de indicadores gerenciais da SRA, entre os anos de 2004 a 2016 o Piauí recebeu 548 bibliotecas (BRASIL, 2016). Buscando pensar a experiência do Programa, para além dos indicadores numéricos, a pesquisa, em andamento, vem sendo realizada na zona rural do município de Teresina no Piauí, visando não a uma avaliação em termos de sucesso ou fracasso do programa, nem a uma busca do sentidos da linguagem de textos escritos dos livros, mas a compreender sentidos atribuídos por gestores/as publico/as, agentes de leitura, leitores e leitoras, e mesmo pessoas não-leitoras das localidades onde o Programa foi implantado. Interessa compreender como a experiência do Programa, no rural teresinense, é significada. Até o momento, visitamos 23 localidades (fig 1), das trinta existentes: AEFAPI, Alegria, Angolá I, Angolá II, Boquinha, Campestre Norte, Centro dos Afonsinhos, Coroatá, EFA Baixão do Carlos, EFA Soinho, Eldorado dos Carajás – Cacimba Velha, Formosa I, Herdeiros de Canudos, Jacu, Lagoinha, Lagoa dos Afonsinhos, Nova Laguna, Passagem de Santo Antônio, Recanto Santo Antônio, Santa Rita, Soinho, Soturno e Tapuia, entretanto outras oito ainda serão visitadas.

Figura 1 - Mapa parcial do município de Teresina-PI, com indicações das localidades com presença do Programa Arca das Letras. Fonte: Google Earth (marcadores acrescentados por Milane Batista da Silva).

Nessas visitas, buscamos identificar, em um primeiro momento, a presença do programa, através de indícios físicos e outros. Conversamos com agentes de leitura, professore/as, diretore/as de escolas e outras pessoas, usuárias ou não, dos livros. Por um lado, ouvimos relatos de que ele foi bem recebido por pessoas que receberam os livros e fizeram uso deles. Algumas falas referem a relevância do programa para aquelas localidades, com destaque aos primeiros anos, inclusive, com narrativas de progresso pessoal a partir da utilização de livros do Arca e o estímulo para a leitura e por avançar nos estudos. Também há falas sobre interesse de jovens e idosos pela maior aproximação a livros. Por outro, foram relatadas situações de insucesso do Programa. Dentre diversos motivos, o de que o Programa teria sido ―deixado de lado‖ com o passar do tempo. Uma das queixas principais é a sensação de abandono, ―por parte do governo‖. Uma das questões que emerge dessas narrativas reporta à própria ideia original do Programa de que as localidades, através de agentes de leitura, se tornassem independentes, buscando maior aproximação às pessoas das localidades e a doação de mais livros para ampliação do acervo. Mas apenas em 2016, o extinto MDA iniciou uma avaliação do programa a fim de se entender a situação em todo o país, a qual foi levada a cabo

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pela Escola de Formação Quilombo dos Palmares (EQUIP), com término em fevereiro deste ano no Estado do Piauí. Pesquisas estão em andamento sobre o resultado desta avaliação. A pesquisa vem revelando que a maior parte das localidades pesquisadas recebeu o Arca não por iniciativa própria de seus/suas habitantes. Foi o programa, por intermédio, seja da PMT, seja de alguém ligado ao Movimento dos Sem Terra (MST) ou, ainda, a algum gestor público, que se propôs para exercer a atividade de agente de leitura. Pelos relatos, nota-se, por um lado, que houve envolvimento e interesse por parte de agentes em serem mediador/as no acesso dos livros a habitantes das localidades; por outro, que algumas localidades não contaram com agentes de leitura tão engajados nos afazeres do programa. Não é de se estranhar, no entanto que mesmo aquele/as interessado/as se sentissem abandonado/as pela gestão do Programa, ao longo do tempo. Aliás, a referida ausência de acompanhamento aparece nas falas como um fator de desestímulo. Assim, nas localidades até então visitadas, nesta pesquisa, que mantêm os móveis-arcas em casas de agentes de leitura, e/ou em associações de moradores, em sua maioria, o Programa já não está ativo. No caso das Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), o acervo do Programa foi incluído ao existente na escola. Assim, nestas situações, observam-se acervos maiores do que o distribuído pelo Programa, e maior acesso a esses livros por aluno/as da escola. Isto significa que o acervo do Programa continua sendo utilizado nas bibliotecas das EFAs. No entanto, observa-se, aí, a limitação do acesso a esses livros a aluno/as da escola. Vale lembrar que a Associação das Escolas Família Agrícola do Piauí (AEFAPI) é uma entidade que fez parceria com o MDA para receber as arcas e fazer a distribuição destas para as EFAs, no estado. Abaixo, uma síntese da situação do Programa nas localidades visitadas (quadro 1). 1 2 3

LOCALIDADE/ENTIDADE AEFAPI Alegria Angolá I

4

Angolá II

5 6

Boquinha Campestre Norte

7

Centro dos Afonsinhos

8

Coroatá

9 10 11

EFA Baixão do Carlos EFA Soinho Eldorado dos Carajás

12 13

Formosa Herdeiros de Canudos

14

Jacu

15 16 17 18 19

Lagoinha Lagoa dos Afonsinhos Nova Laguna Passagem de Santo Antonio Recanto Santo Antonio

20

Santa Rita

SITUAÇÃO IDENTIFICADA A PARTIR DE RELATOS ORAIS Parceira com o extinto MDA: arcas para distribuir para as EFAS Inativo. Livros deteriorados por chuvas Inativo. Livros utilizados predominantemente por crianças. Queixa de falta de renovação dos livros, pelo MDA Inativo. Relatos de casos de progresso pessoal a partir da experiência da leitura, viabilizada pelo Arca Inativo. Agente repassou a função e abiblioteca para professora da escola da localidade Ativo. A arca encontra-se em uma creche com crianças de idade média entre três e cinco anos. Inativo. Acervo foi utilizado, predominante por jovens. Com o tempo, agentes foram-se afastando devido a compromissos com emprego e família Inativo. Agente conta que o programa ―foi extraordinário‖ e que adolescentes da região ajudavam com a responsabilidade da Arca Ativo. Aluno/as da escola utilizam os livros Ativo. Aluno/as da escola utilizam os livros Inativo. Antigo assentamento do MST. Nos primeiros anos teve êxito, mas agentes dizem que as pessoas perderam o interesse por falta de renovação dos livros Inativo. Agente casou e mudou-se, sem deixar outra pessoa responsável pelo Programa Inativo. Foi coordenado pelo MST e frequentado por crianças da região, mas desativado por falta de devolução dos livros. Agentes não se sentiram incentivadas a continuarem com o Programa. Parcialmente ativo. Livros levados para uma ―creche‖ que, segundo a agente, é da PMT, com atendimento a pessoas idosas e adolescentes. O acervo do programa foi incorporado à biblioteca da creche. Inativo. Inativo. Agente ―dava‖ livros do programa para membros da família. Inativo. Agente mudou-se sem deixar outra pessoa responsável pelo Programa Inativo. Houve pouca procura de livros pela população local Inativo. Agente conta que ―a história de Tiradentes e do descobrimento do Brasil foram conhecidas por alguns moradores a partir dos livros do programa‖. Com o tempo os livros não foram devolvidos Parcialmente ativo, embora com pouca frequência de leitore/as. O agente de leituras relata que viajou para outros Estados pelo Programa

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Soinho

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Soturno Tapuia

Inativo. Esposa de agente conta que o Arca das Letras ―serviu porque desperta o conhecimento da leitura‖ Inativo. Agente viajou para outros Estados pelo programa Ativo. Agente levou os livros para uma escola local e desenvolve trabalho no Clube das mães, na escola

Quadro 1 – Síntese da situação do Programa nas localidades visitadas. Por Milane Batista da Silva e Maria Dione Carvalho de Moraes, 2017.

Considerações finais Políticas de incentivo à leitura como o Programa Arca das Letras, implantação de bibliotecas, e pontos de cultura, sobretudo, em áreas rurais, merecem destaque, sobretudo, no que tange à construção da cidadania. Nesse sentido, o Programa Arca das Letras, ao proporcionar acesso a livros impressos a pessoas que não convivem com a proximidade de bibliotecas, pode ser visto como um passo nesta direção, em um país, com índices significativamente baixos de práticas de leitura. Claro está que não basta simplesmente ser leitor/a do acervo disponibilizado pelo Programa para ter consciência dos direitos e para conquistá-los. A luta por direitos é uma constante e a história prova que ganhos sociais não são lineares. A leitura no entanto é fundamental para que nessa disputa de poderes não se aprofundem, ainda mais, as desigualdades. Além do mais, um olhar sobre este Programa, no município de Teresina, vem apontando para a necessidade de refletir sobre questões que dizem respeito à natureza da experiência tanto no que tange à sua dimensão institucional, como política pública, quanto à dimensão vivencial das localidades envolvidas e cuja situação buscamos examinar. Até o momento, constatamos uma diversidade de situações indicativas de que atores sociais envolvidos com o Arca das Letras interagem em diversas formas, através de sua própria leitura de mundo, com a experiência do Programa em suas localidades. Na perspectiva de apreensão desta produção de sentidos, a pesquisa vem registrando sinalizações de atribuição de significado relevante atribuído ao Arca das Letras nas localidades pesquisadas, principalmente, como indicam os relatos, nos primeiros anos de implantação. Por outro lado, registramos a recorrente fala sobre a falta de acompanhamento e de incentivo por parte da gestão pública, como indicador do desestímulo de agentes de leitura e da continuidade do Programa, à exceção das EFAs. A pesquisa vem indicando muitas questões, a exemplo de algumas, como: o Programa Arca das Letras, apesar de ter-se expandido Brasil afora com números impressionantes, tem-se mantido em termos institucionais e como demanda política de povos rurais? Institucionalmente, qual o cenário de sua vinculação ministerial? Teria a força política necessária para ser abraçado pelo Minc e pelo MEC? Teria, ao longo dos seus quatorze anos de existência, indicadores não só quantitativos, mas qualitativos, que contribuam com a política nacional de cultura e com as políticas de incentivo à leitura, no país? Esta pesquisa não tem a pretensão de abordar tão amplo leque de questões nem de respondê-las. Mas funda-se na urgência de examinar com as localidades que viveram/vivem a experiência do Programa, suas virtualidades e problemas. O entendimento é de que pesquisas como esta, em andamento, são importantes para contribuir com a empreitada. Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. BOTELHO, I. Democratização cultural. Desdobramentos de uma idéia. Blog acesso. São Paulo, 2009. Disponível em: http://www.blogacesso.com.br/?p=66. Acesso: 20 jun., 2009. BOURDIEU, P. Introdução. A distinção. Crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007, p. 9-14. ______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. BRASIL. Ministério da Cultura. As metas do Plano Nacional de Cultura. São Paulo: Instituto Via Pública; Brasília: Minc, 2012. 216p. 199 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


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PIXO – O GRITO DA (AV.) BOA ESPERANÇA: A COMUNICAÇÃO COMO REIVINDICAÇÃO DE DIREITOS1 Sarah Fontenelle Santos2 Glaudson Lima Gomes3 RESUMO Observamos as pixações inscritas nos muros dos moradores da Av. Boa Esperança, Zona Norte de Teresina, como forma de exercer o direito à comunicação (PERUZZO,2010) em defesa do direito à moradia e à cidade (LEFEBVRE,2001). A Av. Boa Esperança, localizada na região norte onde a Prefeitura Municipal de Teresina (PMT), em parceria com o Banco Mundial, vem implementando o Programa Lagoas do Norte (PLN), projeto de requalificação urbana, em torno das 11 lagoas da região norte da cidade. Para implantação da Segunda Fase do Programa, se prevê a desapropriação de cerca de 210 imóveis para duplicação da avenida. Neste contexto os moradores têm resistido a fim de permanecer em suas moradias, onde desenvolveram laços com a comunidade e a terra que preservam a cultura e a religiosidade de matriz africana onde suas casas são utilizadas para professar a fé e possuem estreitos laços com a mata e com o rio Parnaíba e que as remoções prejudicam essa continuidade como aponta relatório do IPHAN. Assim, o trabalho parte sob o olhar a partir do sul, essa visão teórica ―Defende a ‗opção descolonial‘ – epistêmica, teórica e política – para compreender e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva‖ (BALLESTRIN, 2013,p. 89). Spivak, apud Ballestrin 2013, em seu artigo ―Pode o sabalterno falar?‖, aponta que este subalterno é aquele cuja a voz não pode ser ouvida e critica a intelectualidade que quer falar em seu nome. Busca-se aliar esta contribuição teórica ao processo histórico da internacionalização das comunicações na América Latina, África e Oriente Médio no contexto de guerras psicológicas e choques de ideologia capitaneadas pelas potências (MATTERLART,1994), bem como sua atual conjuntura de concentração nas mãos de poucas famílias, compreendemos que os gritos inscritos nos muros das cidades comunicam vozes silenciadas. Hoje as corporações transnacionais ainda implementam uma corrida por lucros compensatórios por conta da recessão pós-2008 (MORAES,2013) e em níveis regionais o coronelismo eletrônico (SANTOS, 2006) se encarrega de manter o status quo em todo o mapa brasileiro. Se as indústrias culturais seguem retirando o direito à comunicação ―podemos considerar a pichação resistiva, fruto da rigidez que imperava no modelo fordista, industrial, assumido e reproduzido pelas sociedades capitalistas‖ (POSTALI & SILVA, 2014). Assim, oferecem uma possibilidade de tomada de consciência social. Torna-se interessante destacar que os próprios moradores - e não os habituais pixadores/comunicadores que desafiam a cidade na calada da noite – que utilizaram este recurso como um grito de desabafo visto o silenciamento da pauta nos meios de comunicação tradicionais do estado. Ao longo da avenida chama atenção frases como ―Firmino (atual prefeito) adoeceu nossos idosos com ameaça de desapropriação‖; ―A história da Boa Esperança são os moradores‖; ―Lagoas do Norte para quem?‖; ―Lagoas da Morte sem os moradores é mentira‖. Palavras-chave: direito à comunicação; direito à moradia; comunicação popular, direito à cidade.

Introdução

1

Trabalho apresentado no GT Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Professora na Faculdade de Ciência e Tecnologia do Maranhão (Facema), Mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Endereço eletrônico:fontenellesarah@gmail.com 3 Advogado do Sindicato dos Docentes do Instituto federal de Educação, Ciências e Tecnologias do Piauí, Pós-graduando em Direito Tributário pela Faculdade Adelmar Rosado (FAR), membro da Comissão de Direitos Difusos e Coletivos da OAB-PI. Endereço eletrônico: glaudsonlima@gmail.com. 202 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O

presente trabalho tem por objetivo analisar as inscrições nos muros dos moradores da Av. Boa Esperança, local onde cerca de 2 mil famílias correm o risco de desapropriação para alargamento da avenida, como parte da segunda etapa do Programa Lagoas do Norte. Chama atenção como as pixações se valem de artíficio para o exercício do direito à comunicação (PERRUZO, 2010) que por sua vez, buscam os direitos à cidade (HARVEY, 2013) e à moradia. No entanto, também observamos faixas e outras intervenções urbanas artísticas. A metodologia utilizada é a observação participante que estabelece uma relação face a face com os observados (SCHWARTZ & SCHWARTZ apud HAGUETE,1999). Partindo da compreensão de uma comunicação popular insurgente sob o desejo de romper o silêncio dos povos então colonizados, nos aproximamos dos diálogos propostos a partir das Epistemologias do Sul (QUIJANO, 2005; BALESTRIN, 2013). Buscando romper a lógica do saber eurocentrado, compreende-se a necessidade de pensar rotas que transbordem o ideal modernizador que exclui o protagonismo das populações. Um pouco ao Norte ―A cidade não para. A cidade só cresce. O de cima sobe e o debaixo desce‖ (Nação Zumbi). Para compreender o atual momento da comunidade residente na Av. Boa Esperança, em defesa de suas moradias é necessário compreender seu processo histórico e é de lá que fomos buscar essas raizes. Provocados pela comunidade por meio de ofício, o IPHAN disponibilizou o relatório no dia 14 de junho de 2014 o qual relata sobre o posicionamento da comunidade e alguns aspectos sobre o PLN (Programa Lagoas do Norte) a partir do Marco de Reassentamento Involuntário da 2ª Fase do projeto. Ao discorrer sobre a história da área atingida o relatório relembra que a área fora pertencente aos índios Potis até metade do século XVII (Relatório IPHAN. 2014. p 3. apud CHAVES, 1998, p 161, 162) que se iniciou naquela região em 1760 a cidade de Teresina, com traçado em xadrez no centro a Igreja de Nossa Senhora do Amparo. Também o relatório aborda o histórico do desenvolvimento aplicado a capital piauiense ao dizer que: A ideia de modernidade que acompanha o nascimento da cidade de Teresina vem, ao longo desse século e meio, sendo implementada de forma autoritária por sucessivos governos, sobretudo desde o período Vargas, em que fica patente o processo de ―limpeza‖ do espaço urbano. As casas de palha que foram se instalando nas proximidades do centro foram destruídas de forma criminosa e afastadas para fora do perímetro da cidade. Nos anos do regime militar, o processo de limpeza urbana é continuado com os investimentos no sistema viário, calçamento, etc., privilegiando a valorização do setor imobiliário e dos segmentos abastados da sociedade da região central, em detrimento dos mais pobres, para os quais o plano diretor previa a construção de moradias populares na região periférica. (IPHAN. RELATÓRIO. p 4. apud MOURA. REIS FILHO. A URBANIZAÇÃO EM TERESINA. 2014. Pp159 – 190.)

Sobre a cidade moderna apontada pelo IPHAN, é possível recorrer à Dussel. Segundo o teórico, o problema fundamental da nossa identidade latino-americana está na oposição à interpretação hegemônica de Modernidade, pois esta se apresenta necessariamente eurocêntrica, porque indica como pontos de partida fenômenos que necessitam de explicações unicamente da Europa para justificar os processos ( apud ADAMS; MORETTI, 2011). Tomando, como base este pensamento é possível articular a análise dos processos de colonização na cidade à Beira do Rio Poti, junto às comunidades ribeirinhas da Av. Boa Esperança, uma vez que este modelo de cidade tem um modelo hegemônico Europeu, ou seja, não é pensado pelos sujeitos que nela habitam. Ainda destaca-se a colonização pelo fato de se tratar da construção de uma cidade patrocinada pelo Banco Mundial, logo, atendendo os seus interesses, antes de reconhecer a história local. IPHAN informou que a ocupação da região da Av. Boa Esperança ocorreu a partir de 1960, região ocupada principalmente pelos vaqueiros com permissão dos proprietários das quintas e vacarias da região 203 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


onde cresceram e ajudaram no desenvolvimento da região que se tornou esses bairros de hoje da zona norte.Relatório também abordou a necessidade da realização de estudo de impacto ambiental conforme art. 2º da Resolução 001/1986 do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA – e define que : (...) impacto ambiental é qualquer alteração do meio ambiente que direta ou indiretamente afete a saúde, a segurança e o bem-estar da população e as atividades sociais e econômicas (art. 1º). (IPHAN. 2015. p 5.)

Ressalte-se que as comunidades se reconhecem como tradicionais e ribeirinhas, pois há mais 50 anos construiram suas vidas, primeiro com o barro, talhando e modelando nas próprias coxas as telhas que cobririam as casas da elite mafrense. Contradizendo o CONAMA, as atividades com o famoso barro do Poti foram drasticamente afetadas ao longo do rio devido a primeira etapa do PLN. E ainda, as famílias são vazanteiras e pesqueiras com um profundo apego aos modos de viver comunitário camponês, e apesar de já afetadas pelo fluxo da modernização os quintais ainda são ornados de vazantes. Na figura 1, abaixo, é possível ler no muro ―50 anos, não são cinquenta 50 dias. Exigimos respeito, Prefeito‖, demonstrando o impacto na história. No que compreende ao patrimônio histórico ressalta-se que a região foi uma área ocupada pelos indígenas e que ainda poderia haver artefatos arqueológicos nas margens das lagoas e do rio Parnaíba, que ―o ofício do vaqueiro está em processo de registro como patrimônio cultural brasileiro‖ o que demonstra a importância da preservação dos mesmos na sua localidade para apresentação das suas narrativas como relatos da história de Teresina. Além da verificação da existência de comunidades tradicionais de terreiros que preservam a cultura e a religiosidade de matriz africana e que apontam que suas casas são utilizadas para professar sua fé e que possuem estreitos laços com a mata e com o rio Parnaíba e que as remoções prejudicam essa continuidade (IPHAN. 2015. p 7).

Fig 1.: ENDIS (Foto: Ronaldo Moura)

Destaca-se também a existência de grupos de capoeira na região e que o ofício dos mestres e a roda são registrados do IPHAN e que devem ser preservados. Assim é uma comunidade com grande expressão cultural e de grande relevância para Teresina. Como expresso no corpo do relatório que esses grupos representam uma ―manifestação cultural de grande interesse do ponto de vista da estruturação de uma política de salvaguarda do patrimônio imaterial.‖ A comunicação e a cidade: a que (m) será que se destina?

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A cidade, este todo disforme, completo em sua incompletude de ser, com suas formas, seus quardrados, grafismos e polinofonias. A cidade é este todo complexo que de um lado se mostra elegantemente clean e do outro lado se mostra aturdidamente caótico. Como então comunicar em um espaço tão polifônico? Sendo este um espaço que delimita lados, a comunicação na cidade obedece ao padrão do sistema capitalista que reúne as condições da produção comunicacional nas mãos de quem pode pagar por ela. Mas como a comunicação é este instrumento de direito, os setores da sociedade que não podem pagar por ela se arrumam em tentativas mil de (re) existir e ganhar visibilidade na cidade. É o caso de muitas pixações inscritas nos muros. Desta feita, compreendemos que a tinta spray soa como arma nas mãos dos moradores da Av. Boa Esperança clamando por seus direitos à cidade e à moradia, uma vez que sua demanda não configura entre as prioridades a serem denunciadas nos meios de comunicação oficiais e comerciais da cidade. Por direito à comunicação recorremos às compreensões internacionais. Todo mundo tem o direito de comunicar. Os elementos que integram esse direito fundamental do homem são os seguintes, sem que sejam de modo algum limitativos: a) o direito de reunião, de discussão, de participação e outros direitos de associação; b) o direito de fazer perguntas, de ser informado, de informar e os outros direitos de informação; c) o direito à cultura, o direito de escolher, o direito à proteção da vida privada e outros direitos relativos ao desenvolvimento do indivíduo. [...] (UNESCO, Um Mundo e Muitas Vozes, 1983, p: 288)

Também recorremos à Perruzo (2010) ao afirmar que o debate sobre o direito à comunicação volta à tona para reafirmar preceitos legais, historicamente conquistados, destacando-se na contestação ao desrespeito aos direitos dos setores mais oprimidos na sociedade. É ela também quem nos afirma que este direito não se restringe apenas no ato de receber informações, característica, aliás, superinflada na sociedade dita da informação, onde muitas vezes o excesso se reduz em uma (in) comunicação impraticável nos termos de efetivar diálogos. De outro lado, Peruzzo (2010) vai afirmar que direito à comunicação se trata de sair da compreensão do direito individual e ir ao encontro do direito coletivo, direito dos grupos humanos, dos movimentos coletivos e das diversas formas de organização social de interesse público. Além disso, está ligado também ao direito de receber, produzir e gerir esta comunicação, tendo assim as condições materiais e imateriais para garantir tal tarefa. No entanto, longe ainda estamos de conjugar direitos coletivos. Obedecendo à lógica do sistemamundo capitalista, a cidade reluz como um grande mercado pronto a fisgar o seu consumidor/interlocutor, sua política e gestão estão voltados para garantir o pleno desenvolvimento deste modelo que conforma um modelo de cidade cada vez mais distante da garantir de direitos. A comunicação neste contexto cumpre seu papel uma vez que seguem a mesma lógica de concentração monopólica ou oligopólica destoando do Artigo 5 da Constituição Federal. A título de justificar as desesperanças nas indústrias culturais, por parte daqueles que gritam em seus rabiscos, torna-se necessário delinear que na área de radio difusão três conglomerados nacionais e cinco grupos regionais midiáticos atingem 100% do território brasileiro (CABRAL,2015). Segundo a pesquisadora, dentre os princiapais conglomerados estão Globo, SBT e Record. Em nível regional segundo Donos da Mídia, no Piauí atuam somente 3 grupos de comunicação: o Sistema Clube de Comunicação, o Grupo Tajra e o Sistema Integrado Meio Norte. Ressalte-se que o grupo Tajra destacado pelo Donos da Mídia, na verdade, dividem-se em dois, que apesar de controlados por pessoas da mesma família, têm redes diferentes, sendo elas Cidade Verde e TV Antena 10. Ainda segundo o mesmo estudo, o Estado totaliza 10 redes de TV atuando, sendo 3 redes de grupos religiosos. No total, são 139 o número de veículos que produzem comunicação no estado.

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Porque insurgem os colonizados: comunicação e contra colonização Sob o silêncio e a negação de dizer a sua palavra, forma-se um Sul Global, sem o qual a modernidade e colonialidade jamais existiriam, tampouco o sistema-mundo vigente. Para falar de comunicação é preciso saber do local de onde se fala e o local de fala de quem diz a palavra, que nem sempre poderá tocar o chão prático das diferentes experiências vivênciadas. A perspectiva da contra colonização aposta na construção de um conhecimento insurgente, vindos das reivindicações de vozes latino-americanas, africanas e outras, historicamente silenciadas, e que pretendem atualmente construir espaços para dizerem a sua palavra. Esta perspectiva vem enunciando, ao mesmo tempo o esquecimento assegurado pelo conhecimento, de base ocidental, colonizado, como parte do processo de opressão aos povos originários e setores populares. Assumindo variadas contribuições teóricas o Grupo Modernidade/Colonialidade atualiza o pensamento crítico latino-americano e epistêmico, teórico e política – para compreender e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva‖ (BALLESTRIN, 2013,p. 89). Assim, os estudos em torno do Giro decolonial ou das epistemologias do Sul visam colocar em questão os explorados, oprimidos e subalternos. Para Spivak, apud Ballestrin 2013, em seu artigo ―Pode o subalterno falar?‖, aponta que este subalterno é aquele cuja a voz não pode ser ouvida e critica a intelectualidade que quer falar em seu nome. Ela assim como outros autores aponta fortes críticas ao que se tornou moda, dentre os ―pós‖, o póscolonialismo ligados a um pós-modernismo ou pós- estruturalismo. Para ela, é impossível qualquer resistência ocorrer em nome dos subalternos que não seja imbricado no discurso hegemônico. ―Nesse caso, o subalterno permanece silenciado e aparece como constituição de mais um ―outro‖, uma classificação essencialista que acaba por não incorporar a noção de différance ou hibridismo‖ (BALLESTRIN, 2013,p. 93). É preciso que sejam protagonistas da contra colonização os mesmos sujeitos que sofrem a opressão e tantas vezes nem o sabem. A partir de então, quando florescem em protagonismo, estes sujeitos coletivos criam espaços, estruturas e linguagens de onde possam emanar o direito de dizer sua palavra. Insurge dos muros, por meio das pixações um modo de contra colonização que rabisca a história, tecendo direitos embotados. Rasgam a cidade cinza como expressão popular de outros mundos possíveis. No entanto, este giro contra a colonização dos corpos, das formas, dos dizeres e das culturas, necessita conhecer a história até então distorcida para construção de futuros pedagogicamente calcados em um presente de transformações. Aníbal Quijano (2005) nos provoca a querer aprender a nos libertar do espelho eurocêntrico, onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. Cabe a nós, colonizados, refletir e deixarmos de ser o que não somos. Outra questão importante levantada pelo autor é que o capital como sistema mundial e global só se torna possível com a América e não poderia ter existido de outra maneira, sendo que foi a partir deste eixo que as demais formas foram articuladas como mercado mundial. Somente desse modo o capital transformou-se no modo de produção dominante. Assim, o capital existiu muito tempo antes que a América. Contudo, o capitalismo como sistema de relações de produção, isto é, a heterogênea engrenagem de todas as formas de controle do trabalho e de seus produtos sob o domínio do capital, no que dali em diante consistiu a economia mundial e seu mercado, constituiu-se na história apenas com a emergência da América (QUIJANO, 2005, p. 10).

É precisamente esta força que deve ser desvendada. A força de que foi este Sul Global quem civilizou o mundo e não o contrário, através da força de trabalho, das riquezas materiais e culturais. Desvelar-se junto às suas memórias também é caminho para construir a emancipação que quebra espelhos disformes. Da mesma forma, do local onde surgiu o desenvolvimento da capital de Teresina, estas antes habitadas pelos indígenas Potys, desde a construção da cidade até aqui sentem o poder da colonização que apaga as memórias, os modos de tradicionais de produção e reprodução, seus hábitos e cultura em nome de uma civilização e modernização que anula sujeitos e suas histórias. Esta força contra colonizadora pode ser notada

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nas inscrições abaixo cumprindo o papel de propagar outra comunicação para alcançar as consciências dos transeuntes.

Fig 2.: ENDIS (Foto: Ronaldo Moura)

Sobre a comunicação e a colonização é válido destacar que desde que os meios de comunicação aportam os países do eixo sul cumprem a demanda de internacionalização do sistema. Destacam-se autores como Mattos (2010) e Matterlart (1994). O primeiro aponta que no Brasil as telecomunicações foram pensadas a partir da Escola de Superior de Guerra (ESG), onde os países tido de Primeiro Mundo utilizavam os meios de comunicação para promover o desenvolvimento nacional em perspectiva ocidentalizada. Já Matterlart (1994) os processos de internacionalização da comunicação em contexto das guerras psicológica e choques de ideologia, quando os países que disputavam hegemonias igualmente colonizavam comunicação dos países conquistados. Da análise: das paredes que se expressam Dizem os muros da cidade de Teresina ―Pixo é comunicação‖ e ainda ―Pixo porque existo, você me vê?‖. Inscrições comuns que por si só desafiam a lógica da cidade onde a propriedade suplanta e sufoca qualquer direito. Acontece que a cidade capitalista desde a sua formatação progressivamente gestada com a industrialização ia pouco a pouco negando subjetividades caminhando rumo a padronização dos sujeitos. Dizer que pixo é uma comunicação e que ela retira da invisibilidade direitos de existências coletivas é demonstrar como o modelo de cidade que se apresenta nega sujeitos. De outro lado, desafiando a lógica de criminalização da compreensão do que sejam as intervenções urbanas, Postali e Silva (2014) afirmam que pixações, grafites e estêncil tem a finalidade de comunicar diretamente com o grosso da população. Baseados no teórico Beltrão, os pesquisadores afirmam que estas ferramentas da cidade cumprem as quatro principais funções da comunicação: informar, opinar, fornecer elementos da educação e divertir. Destaca-se que as inscrições na Av. Boa Esperança recorrem aos mecanismos possíveis e convenientes, como no poema de Leminsky ―Na luta todas as armas são bem- vindas, pedras, noites e poemas‖. Da mesma forma, a comunidade utiliza várias formas de propagandear a defesa de suas moradias em nome de outro modelo de cidade. Das que aqui destacamos estão as pixações nos muros, as faixas afixadas nas portas das casas e intervenções de artistas. Merece ainda realce o trabalho do fotojornalista e artista urbano Maurício Pokemón, que com o trabalho intitulado ―Existências‖ têm levado a pauta dos moradores para salões de arte do Piauí e de outros estados do país, bem como suas intervenções urbanas já ganharam as ruas de Juiz de Fora (MG), São Paulo (SP) e Curitiba. 207 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Fig 3.: ENDIS (Foto: Maurício Pokemón)

As inscrições na cidade desafiam a ordem, a lógica de uma cidade ornamentada nos parâmetros da higienização, estimulam outras consciências a pensar junto, sobretudo, convidam à uma ação coletiva. Para Beltrão apud Postali e Silva (2014) as inscrições na cidade ―desafiam, estimulam, excitam e incitam os transeuntes à ação‖ (BELTRÃO apud POSTALI; SILVA, p. 27, 2014). Desta forma as inscrições nos muros se tornam uma forma de comunicar com aqueles que só têm como acessar a informações pelos meios de comunicação tradicionais, como Televisão, rádio, portais de notícias, estes nem sempre aptos a divulgar as pautas comunicatárias tomando como base a complexidade e a raiz dos direitos demandados.

Fig 4.: ENDIS (Foto: Ronaldo Moura) Além disso, servem como uma rede de comunicação popular e comunitária a medida que convida os demais moradores a implementar uma luta coletiva. Demarcar a porta de casa é uma forma de demonstrar solidariedade na luta por direitos coletivos. Como demonstrado na figura 4, os moradores e moradoras demonstram resiliência e coragem em defesa de suas casas. Esta expressão popular coaduna com o pensamento de Beltrão, para quem ―incisos e desenhos acompanham as gerações como expressão do pensamento e dos desejos dos menos favorecidos‖ (BELTRÃO apud POSTALI e SILVA, p. 26, 2014).

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Desde seus primeiros rabiscos de pixações, munidos de tinta spray, os ativistas urbanos combatiam o modelo de cidade fordista e industrial, deste modo registravam e ainda registram frases para entendimento do público. As frases rápidas e cheias de simbologia na Av. Boa Esperança agem como contra propaganda da política desenvolvimentista e higienista do poder público, massivamente festejada como ideal de cidade a ser construída para Teresina, nos meios de comunicação. Considerações finais Como buscamos apresentar, as inscrições (sejam elas pixações ou faixas) e intervenções artísticas que ocupam os muros na Av. Boa Esperança, assumem o compromisso de subverter a lógica da comunicação hegemônica, pondo no lugar e com suas próprias mãos, uma comunicação popular e insurgente. Se de um lado o modelo colonizador insiste em desconstruir e reconstruir a cidade sob os auspícios do capital, é precisamente a força contra colonizadora dos sujeitos que responde à conjuntura a insistir na construção de outra cidade coletiva. Vale citar Harvey, para quem cada sujeito é arquiteto da cidade A questão do tipo de cidade que desejamos é inseparável da questão do tipo de pessoas que desejamos nos tornar. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas cidades dessa maneira é, sustento, um dos mais preciosos de todos os direitos humanos (HARVEY, 2013,p.27).

É também Harvey (2013) quem vai nos dizer que se a cidade não se encontra alinhada aos direitos, então ela precisa ser mudada. Segundo o teórico, este direito não pode se restringir apenas ao direito de ir e vir nas cidades tradicionais, mas ao contrário, só pode ser formulado como um renovado e transformado direito à vida urbana, configurando-se como o direito de mudar a cidade de acordo com o desejo de nossos corações. A resistência dos Moradores da Av. Boa Esperança em preservar o direito à moradia e à cidade procuram também apresentar à sociedade as condições de alienação, preservação do meio ambiente nas situações comuns de seu cotidiano. Por meio do exercício do direito à comunicação, os moradores se propõe, portanto, como células vivas e motoras na construção de uma cidade contra colonizadora, oposta ao modelo desenvolvimentista e eurocentrada, rasgando em tintas sentimentos e preceitos que impõe às periferias apenas o dever de aceitar a modernização. Referências ADAMS, Telmo; MORETTI, Chero Zanini. Pesquisa participativa e educação popular: epistemologias do sul. Edu.real. Porto Alegre, v.36,n.2,p. 447-443, mai/ago. 2011. BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, no11. Brasília, maio agosto de 2013, pp. 89-117. HAGUETTE, Teresa Maria Frota. Metodologias qualitativas na Sociologia. Petrópolis (RJ): Vozes, 1999. HARVEY, David. A Liberdade da Cidade: ―In‖: HARVEY,D; MARICATO,E; et al.Cidades rebeldes, São Paulo, Boitempo, 2013, (pag. 27 a 34). MATTERLART, Armand. Comunicação-mundo: história das ideias e das estratégias. trad. Guilherme João de Freitas Teixeira – Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. MATTOS, Sergio. História da televisão brasileira – Uma visão econômica, social e política. Petrópolis: Vozes. 5. ed. rev. ampl. 2010. PERUZZO, Cicilia M. Krohling. Comunicação nos movimentos sociais: Exercício de um direito humano. Rev. Acadêmica da Federação Latinoamearicana de faculdades de comunicação social, Diálogos da Comunicação, n 82, setembro-dezembro, 2010.

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Quijano, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Coleção Sul Sul, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Set. 2005. THÍFANI, Postali; Silva, Paulo Celso. Da. A pichação e outras inscrições como canal popular de comunicação urbana. In: Mídia & cidade / Paulo Celso da Silva e Wilton Garcia (organizadores) – Sorocaba: MidCid, 2014. IPHAN. Manifestação sobre a 2ª etapa do Programa Lagoas do Norte na comunidade impactada. Informativo Técnico nº 68 de 2015. Teresina, 2015. ARANTES, O. VAINER, C. MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. LEFEBVRE, H. O Direito à Cidade. Tradução Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro 2001.

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A

OBJETIFICAÇÃO DA MULHER NA PUBLICIDADE E O DISCURSO PRESENTE NA CONTRIBUIÇÃO PARA A 1

DESIGUALDADE DE GÊNERO

Socorro Nayra Vieira Silva e Sousa2 RESUMO A publicidade é, atualmente, um dos fatores que mais contribuem para a construção e difusão de estereótipos e ideias. O presente trabalho busca analisar, a partir de alguns anúncios publicitários, de que forma ocorre a objetificação da mulher em algumas propagandas e de que forma o discurso presente nesses tipos de anúncio contribuem para a conservação da desigualdade de gênero em nossa sociedade. Para alcançar os objetivos aqui propostos, utilizou-se de teorias da análise do discurso onde foi possível relacioná-las ao contexto social dos anúncios. O embasamento teórico deste estudo se vale de autores como ORLANDI (2000), dentre outros. Palavras-chave: Análise do discurso; Mulher; Publicidade.

Introdução

A

desigualdade de gênero pode ser percebida ao longo da história da humanidade, desde os seus primórdios até os dias atuais. Essa desigualdade pode ser manifestada através de diversas maneiras como o assédio moral, violência física ou verbal, diferença nos salários e até mesmo na divisão das tarefas domésticas, entre outras formas de violência que passam despercebidas no nosso cotidiano. A objetificação sexual de mulheres é uma dessas formas de violência que, muitas vezes, passa despercebida em nossa sociedade. De acordo com Heldman (2012) esse tipo de objetificação ocorre quando uma pessoa, seja ela do sexo masculino ou feminino, é tratada como um mero objeto sexual. Ela se dá no momento em que a individualidade pessoal é retirada de um indivíduo e este passa a ter seu corpo comparado a um objeto ou a uma mercadoria. Isso se dá quando vemos, por exemplo, corpos sem rosto ou servindo de apoio para outros objetos. O que pode ser visto em diversos anúncios publicitários, principalmente os de algumas marcas de cerveja. A Análise do Discurso se ocupa da análise da estrutura textual para então compreender as criações ideológicas que se apresentam no texto. O discurso é uma construção linguística juntamente com o contexto social em que os textos são desenvolvidos. A propaganda é a divulgação de uma ideia, uma crença, é também uma maneira de anunciar determinado produto, com o intuito de levar o espectador a comprá-lo. Sendo assim, a escolha de marcas linguísticas para compor argumentos é importante para que haja a eficácia discursiva em qualquer propaganda. O presente estudo se baseia na pesquisa bibliográfica e tem como objetivo analisar, a partir de alguns anúncios publicitários, de que forma ocorre a objetificação da mulher em algumas propagandas. Bem como, entender de que forma o discurso presente nesses tipos de anúncio contribuem para a permanência da desigualdade de gênero em nossa sociedade. Análise do discurso, ideologia e publicidade Segundo Orlandi (2010), a Análise do Discurso se constituiu entre três áreas do saber: a Linguística, a Psicanálise e o Marxismo. Para entendermos melhor sobre o surgimento da AD, a autora tece comentários 1

Trabalho apresentado no GT.01 – Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduanda da Universidade Federal do Piauí. Teresina – PI. nayralibras@gmail.com 211 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


sobre a influência que cada área exerceu sobre a área de Análise do Discurso. Começando pela Linguística, podemos observar que a língua não é transparente, pois a mesma não tem sua própria forma de materialização. Já com o Marxismo podemos observar a materialidade, o homem faz história, logo ela é materializada. Já a Psicanálise nos mostra que o homem não é transparente nem para ele mesmo. A AD, assim, vai mostrar que o ―sócio - histórico e o linguístico se relacionam de maneira constitutiva e não periférica‖ (ORLANDI, 2010, p. 14). A AD utiliza a teoria da interpretação. Para isso ela tem por objetivo a reflexão de como a linguagem, a história e o sujeito se relacionam, sendo seu objeto de pesquisa o discurso. O propósito do analista do discurso é buscar e mostrar como os sentidos estão sendo gerados no discurso. Para entendermos um pouco mais esse cenário da publicidade é importante que vejamos como a ideologia aparece nessa área, já que a propaganda aborda e transmite uma ideia a ser passada para o interlocutor. A "ideologia" é um conjunto de representações dominantes em uma determinada classe dentro da sociedade. Várias classes são existentes na sociedade ocorrendo assim o embate de ideologias diferentes. A visão de mundo de determinada classe é a ideologia, a maneira como ela representa a ordem social. Como não há uma relação direta entre as representações e a língua, assim, a linguagem é determinada em última instância pela ideologia. A essa determinação em última instância, Pêcheux (1990) denomina "formação ideológica" ou "condições de produção do discurso". Várias formações ideológicas são constituídas em uma sociedade, sendo que cada uma equivale a "formação discursiva". Por isso, os processos discursivos estão na fonte da produção dos sentidos e a língua é o lugar material onde se realizam os "efeitos de sentido". A ideologia inquiriu o sujeito a tomar um lugar na sociedade. A reprodução dessa ideologia é assegurada por "aparelhos ideológicos" (religioso, político, escolar etc.) em cujo interior as classes sociais se organizam em formações ideológicas ("conjunto complexo de atitudes e representações"). Um dos aspectos da materialidade ideológica é o discurso, somente assim tendo sentido para um sujeito quando o mesmo reconhece pertencer a uma determinada formação discursiva. Estão representados no discurso os valores ideológicos de uma forma social que designam o lugar que o destinador e o destinatário se atribuem mutuamente (Pêcheux, 1990, p.18). A sedução e a persuasão são recursos chave na hora de imbuir o sujeito a consumir um produto com superioridade a outro na publicidade contemporânea. Ela atua na subjetividade do indivíduo, com firmeza, de modo a capturá-lo, e faz com que seus apelos, diante ao produto, sejam atendidos. O poder de sedução da publicidade é talvez um dos mais ativos e eficazes dos nossos dias. Diariamente nos rendemos a um sem número de mensagens, que não só manipulam nossas mentes, ditando-nos regras de consumo, como também, e principalmente, refletem os sistemas de referência de cada sociedade, funcionando como um verdadeiro diagnóstico psicossocial de uma época. (VESTERGAARD, 1988, p. 119)

Essa sedução está cada vez mais ligada à publicidade atualmente, pois o discurso apelativo nos textos e imagens que contém nesse meio, leva ao consumidor a um anseio enorme para a compra ou consumo de determinado produto. A publicidade também interfere na capacidade subjetiva do consumidor, usando a criação de dogmas para induzir juízo de valores quanto a produtos e serviços, forçando sua aquisição (GAMA, 2006). A ligação de elementos convincentes que incorporem valores sociais ao produto em questão é onde se encontra o êxito do anúncio publicitário em divulgação. É por isso que o discurso publicitário ultrapassa a objetividade econômica de uma transação comercial e procura não apenas vender um produto, mas uma imagem ou uma maneira de ser e de ter que se vincula a essa compra, extrapolando assim o plano puramente material. Superando o plano material e adentrando o imaginário coletivo, a mensagem publicitária atua despertando ilusões e colaborando com as vigas de sustentação de uma determinada ideologia. Às vezes a sutileza de alguns anúncios publicitários se tornam muito perigosos do ponto de vista ideológico, pois a norma que eles evidenciam é tão natural que o leitor a aceita como inquestionável, não submetendo a um exame de razão, aceitando-a como verdade absoluta. Segundo Carvalho (2006, p. 13), ―a publicidade impõe, nas linhas e entrelinhas, valores, mitos, ideais e outras elaborações simbólicas, utilizando os recursos próprios da língua que lhe serve de veículo‖. 212 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Desse modo, o sujeito, na publicidade, acaba sendo, muitas vezes, reduzido à primordial e simples condição de consumidor. Aborda-se o ser como meio de chegar ao ter. Perdendo-se assim a dimensão do ser como sujeito pensante e transformador de sua sociedade. Para proceder a uma análise crítica do discurso publicitário, não podemos dissociá-lo das estruturas sociais sobre as quais se apoia, pois de acordo com Carvalho, (2006, p. 17), ―o discurso publicitário é um dos instrumentos de controle social, e para bem realizar essa função, simula igualitarismo, remove da estrutura de superfície os indicadores de autoridade e poder, substituindo-os pela linguagem de sedução‖. A desigualdade de gênero e o movimento feminista A sociedade brasileira é organizada de maneira patriarcal desde a colonização, quando o homem era o centro da sociedade exercendo soberania tanto de suas terras quanto de sua esposa, filha ou irmã. Apesar de muitos avanços desde a colonização, a crença de que o homem tem um papel superior em relação à mulher perdura, mesmo que de forma amenizada, perdura até os dias de hoje marcando a chamada desigualdade de gênero. A partir da década de 1970 começa a surgir no Brasil uma série de movimentos feministas que contestavam o modelo social vigente e pediam direitos iguais para mulheres e homens, ou seja, os movimentos feministas têm por objetivo: ―reivindicar para a mulher seus direitos na qualidade de ser humano e, consequentemente, a igualdade em relação ao homem‖. (VIDAL, 2005, p. 47) O movimento feminista surgiu na Europa no século XIX. Este movimento apropriou-se dos conceitos de gênero com intuito de questionar a inferiorização da mulher em relação ao homem, bem como sua subordinação. Algumas das pautas iniciais do movimento foram a reivindicação do direito à propriedade, ao voto, direitos trabalhistas e etc: O movimento resignificou o poder político e a forma de entender a política ao colocar novos espaços no privado e no doméstico. Sua força está em recolocar a forma de entender a política e o poder, de questionar o conteúdo formal que se atribuiu ao poder e as formas em que é exercido. Distingue-se dos outros movimentos de mulheres por defender os interesses de gênero das mulheres, por questionar os sistemas culturais e políticos construídos a partir dos papéis de gênero historicamente atribuídos às mulheres, pela definição da sua autonomia em relação a outros movimentos, organizações e o Estado e pelo princípio organizativo da horizontalidade, isto é, da não existência de esferas de decisões hierarquizadas. (ALVAREZ, 1990, p. 32)

Os primeiros grupos feministas a surgirem no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro e em São Paulo, estavam engajados a outras causas como o fim da escravidão, o fim da ditadura e etc. e reuniam mulheres de a classe média: ―O programa das feministas, neste sentido, incluía reivindicações ―específicas‖ (creche, mudanças na legislação da família, etc.) e ―gerais‖ (o fim da ditadura, uma sociedade socializada, etc.)‖ (MORAES, 1997 p.30). Muitas mudanças se devem à luta constante dos movimentos feministas, uma dessas conquistas é a Lei Maria da Penha (11.340/2006) que institui um aumento no rigor das punições referentes a crimes domésticos, a Lei do Feminicídio, que inclui na lei 13.104/2015 os crimes praticados contra mulheres devido ao fato de serem do sexo feminino, aumentando com isso a pena; entre outras leis e conquistas. Apesar de a mulher estar conquistando cada vez mais espaço dentro da sociedade, as desigualdades entre gêneros ainda perduram e não foram superadas. Apesar de todos os avanços ainda é possível ver casos de mulheres que são agredidas diariamente pelos seus maridos, que sofrem com diferenças no ambiente de trabalho e com o modo como a sociedade as encara. Mesmo com todas as conquistas tanto na esfera social quanto na esfera do trabalho, muito ainda deve ser discutido.

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A objetificação da mulher e a padronização da beleza na publicidade Apesar do conceito de objetificação sexual datar da década de 1970, esse fenômeno ainda pode ser percebido atualmente. De acordo com Heldman (2015), esse conceito se refere ao processo em que uma pessoa é tratada ou representada como um mero objeto sexual. Uma das muitas formas de objetificação sexual, segundo a autora, é a reprodução de corpos sem cabeça ou com o rosto coberto, pois isto acaba por retirar a individualidade que é comunicada através do rosto ou olhos. Utilizar corpos nus ou seminus em uma propaganda objetiva atrair a atenção dos consumidores seduzindo-os e induzindo-os à compra dos produtos. O corpo nu se associa com a ideia de prazer que, de forma direta ou indireta, se associa também ao consumo do produto vendido: A indústria cultural, fruto do desenvolvimento capitalista, trouxe a mercantilização do erotismo e da sensualidade, utilizando o desejo e o sonho como principais ingredientes para obtenção do lucro. Com esse objetivo, imagens eróticas e linguagem ambígua invadem todos os meios de comunicação de massa, e os anúncios publicitários são constituídos de ícones sexuais que apelam ao consumo. (JORDÃO, 2005, n.p.)

Sendo assim, ao exporem modelos atraentes, com pouca roupa e com um corpo definido, os anúncios têm o objetivo de provocar o desejo sexual no público masculino bem como o desejo de consumir o produto que esta sendo vendido, ao mesmo tempo em que provoca no publico feminino a vontade de copiar o corpo que esta sendo exposto, mesmo que este não seja seu objetivo principal. O valor social que se atribui ao homem é a ascensão advinda do dinheiro, do sucesso e do destaque, enquanto que o valor atribuído ao sexo feminino é a beleza corporal. Sendo assim, acaba-se por criar um padrão de beleza a ser seguido por aquelas mulheres que desejam ‗se encaixar‘ socialmente. A objetificação não afeta somente o modo como a mulher enxerga a si mesma, mas também na maneira com que a sociedade olha e trata a mulher. Não é raro verificarmos a presença da mulher em anúncios de produtos que não se destinam a ela, ou seja, produtos voltados para o público masculino. Em casos como este, a mulher é colocada como um elemento persuasivo, como um mero objeto que está ali para chamar a atenção e despertar o desejo de consumo do homem. É perceptível nesses tipos de anúncio vermos mulheres que não expressam seus próprios sentimentos, pensamentos ou mesmo opiniões, ou seja, ela está ali apenas como um objeto que agrade aos olhos masculinos. O que acaba por intensificar a inferiorização da mulher em relação ao homem: A injeção de erotismo na representação de uma mercadoria não erótica (as publicidades que juntam uma atraente imagem feminina a uma geladeira, uma máquina de lavar ou uma soda) tem por função não apenas (ou tanto) provocar diretamente o consumo masculino, mas de estetizar, aos olhos das mulheres, a mercadoria de que elas se apropriarão; ela põe em jogo junto ao eventual cliente a magia da identificação sedutora; a mercadoria faz o papel de mulher desejável, para ser desejada pelas mulheres, apelando para seu desejo em serem desejadas pelos homens. (MORIN, 2002, p.121)

Mesmo com os avanços da publicidade se comparada a décadas anteriores, onde a mulher era inferiorizada de uma maneira muito mais desvelada, não é possível dizer que a desigualdade na representação de gênero não é uma realidade. Ainda é comum perceber anúncios que utilizam a figura feminina para vender produtos de limpeza ou para crianças. O que fortalece a ideia de que a mulher é a responsável pelas tarefas domésticas e cuidados dos filhos.

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Análises

Fig. 1: Imagens do vídeo Vai Verão

Essa parte da propaganda da cerveja Itaipava se passa em um bar que é localizado em uma praia. Verão está vestida com uma blusa branca e alças que é amarrada abaixo dos seios deixando à mostra sua barriga. A mulher veste ainda uma minissaia vermelha que mostra bem suas pernas. Na continuação do vídeo, a ―Verão‖ que é representada por uma mulher, está limpando uma das mesas do bar, é chamada por um cliente que diz: ―Verão, me vê uma Itaipava, por favor‖! A moça então responde: ―vou pegar‖ e começa a se deslocar até o balcão do bar. Ao caminhar, o vento faz com que sua saia esvoace, o que exibe ainda mais partes do seu corpo. O cliente então observa a moça enquanto diz: ―Vai Verão, vai Verão‖. Em frente à garçonete há uma mesa com dois clientes que dizem: ―Vem Verão, vem Verão‖. A mulher chega ao balcão e pede uma Itaipava ao garçom que logo a entrega e diz: ―Vai Verão‖. Ao iniciar o trajeto de volta à primeira mesa, enquanto o vento novamente esvoaça sua saia e deixa á mostra partes do seu corpo, o cliente da primeira mesa inicia o chamado: ―Vem Verão‖ e os clientes da segunda mesa em coro começam a dizer: ―Vai Verão‖. É possível notar que, tanto os clientes, quanto o garçom que está no balcão, ao proferirem ―Vai Verão‖ ou ―Vem Verão‖ o fazem com um tom de desejo. No final da propaganda o narrador fala ―O Verão é todo nosso. Itaipava, a cerveja 100%. Beba com moderação‖. A última cena mostra Verão segurando uma cerveja Itaipava dizendo para o garçom: ―Vai vender tudo‖! Na publicidade acima percebe-se o uso de verbos no imperativo, muito comuns em textos publicitários, e que, segundo Carvalho (2006, p.45) representam uma ordem ou convite à ação. Na propaganda podemos perceber a presença de verbos como ―Vai‖ na frase ―Vai verão‖, de acordo com Carvalho (2006, p. 103): ―há palavras quase neutras e outras bastante marcadas pelos usos sociais‖. Para a autora, são inúmeras as ―palavras que focalizam e cristalizam certa carga cultural diferenciada‖. Fairclough (2001) afirma que a prática do discurso consiste na forma de produção, distribuição e consumo do discurso. Quanto à distribuição da propaganda, ocorre em horários de maior audiência na Televisão aberta como em intervalos de novelas e costumam passar também na época do verão, devido ao local onde a cena é gravada. Os vídeos também são disponibilizados na rede social de vídeos Youtube. Logo no início da propaganda podemos constatar a presença de uma mulher que está dentro do padrão de beleza imposto pela sociedade. Uma mulher que se veste de forma sensual, deixando à mostra sua barriga e pernas, o que chama a atenção dos homens e desperta não só o desejo sexual, mas também o desejo de consumir a cerveja.

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O desejo despertado pela garçonete fica explícito na forma como os clientes chamam a garçonete: ―Vai Verão‖ ou ―Vem Verão‖. Essas palavras no imperativo indicam um discurso com certa ambiguidade, já que o período em que a propaganda foi lançada corresponde ao verão e o apelido da mulher que está servindo a cerveja na propaganda também é verão, além de indicar um chamamento, passa também uma ideia de dominação masculina e uma subordinação da mulher, que prontamente atende aos chamados cheios de desejo dos clientes, que são todos homens. O fato da ―Verão‖ estar trajada com uma roupa que não é típica de garçonete, ou seja, estar vestida de modo sensual deixa claro a objetificação da mulher que nesta propaganda é colocada como um mero objeto, que está ali apenas para servir os clientes e aguçar a imaginação daqueles que estão assistindo à propaganda. Um corpo que é alvo do desejo masculino. A escolha de uma modelo com o corpo bem torneado e definido reforça ainda o padrão de beleza valorizada na sociedade atual, o que desperta o desejo de muitas mulheres que se obrigam a entrar nesse padrão para serem aceitas e mais bem vistas no meio social e desejadas pelo sexo masculino.

Fig. 2 Fonte: Google Imagens

O slogan dessa propaganda ―Para bom bebedor meia palavra basta‖ nos remete a um provérbio bastante conhecido – ―Para um bom entendedor meia palavra basta‖. O fenômeno exposto, segundo Maingueneau (2008), denomina-se captação. ―Captar um texto significa imitá-lo, tomando a mesma direção que ele‖. A polifonia construída por meio da enunciação proverbial é muito comum nos discursos publicitários. Esse recurso impele ao interlocutor a associar a propaganda ao dito popular explícito. A palavra ―tesão‖ não se encontra totalmente explícita no cartaz, ela aparece cortada pela figura de uma mulher com o corpo sarado e trajando apenas roupa de banho. A mulher aparece entre a palavra tesão para reforçar a ideia de que a cerveja em questão desperta o tesão tanto quanto a mulher que está exposta. Levando o consumidor a desejar não apenas a bebida, mas também a figura feminina do cartaz. Novamente aqui vemos a mulher sendo colocada como um mero objeto a fim de despertar os desejos do sexo masculino. Considerações finais O que vemos em comum entre os dois anúncios analisados é a presença de uma figura feminina. Nas duas propagandas nos deparamos com mulheres com o corpo definido, bronzeadas e trajando poucas roupas, deixando seus corpos bem à mostra. Assim, os anúncios passam a ser uma vitrine que expõe não somente a cerveja a ser vendida, mas também a mulher. Esse tipo de publicidade fortalece a imagem da mulher

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sexualmente desejada, da mulher dentro dos padrões estabelecidos pela sociedade e como objeto de desejo de qualquer homem. Podemos perceber através deste rápido estudo que os discursos empregados nas propagandas analisadas contribuem para o fortalecimento do machismo dentro da nossa sociedade. A mulher, como já foi dito anteriormente, é vista como um objeto que está ali simplesmente para atender aos pedidos e desejos dos homens. O modo como ―Verão‖ está trajada, ajuda a aguçar o desejo sexual do espectador e, com isso, despertar o desejo de consumo da cerveja citada. Assim, também induz a ideia de que a mulher é inferior ao homem. A objetificação sexual da mulher não afeta somente no modo como o homem a percebe, mas também influencia na maneira como ela própria se vê. Pois ao colocar uma modelo de corpo definido, a propaganda, mesmo que de forma indireta, contribui para a manutenção de um padrão de beleza que deve ser copiado por aquelas mulheres que queiram ser bem vistas na sociedade e desejada pelos homens. O que acaba por gerar também um tipo de competição pela atenção masculina. Esse tipo de exposição da mulher contribui ainda para que o homem se torne mais tolerante ao assédio sexual. Contudo, os variados discursos presentes na propaganda acima, nos mostram que a cada dia que passa a utilização de elementos discursivos para incitar a persuasão no consumidor é muito grande. O interlocutor passa a ter papel fundamental para a construção do sentido da propaganda, interpretando as imagens e os textos empregados nesse meio. As escolhas visuais e linguísticas, operadas pelo interlocutor da propaganda, são de suma importância e estão intrinsecamente ligados à produção do discurso publicitário, tendo como propósito ―orientar o interlocutor na construção de sentido‖ (Koch, 2004). A Análise do Discurso vem com a importância de comprovar que os recursos utilizados no meio publicitário, trazem uma carga imagética e ideológica bem acentuada para o imaginário do interlocutor. A AD evidencia que as escolhas linguísticas são de extrema importância para a construção do sentido. Como visto na análise acima, as frases ―Vai verão‖ e ―Vem verão‖, nos remetem ao tratamento da mulher que participa da cena, pois a cerveja por si só não possui poder de venda no imaginário do consumidor, sendo necessária a atribuição da imagem da mulher para que o interesse pelo produto desperte no consumidor. Contudo, o discurso que a propaganda produz é de forte ideologia masculina, com fortes traços sexuais, observados pela roupa que a mulher usa na cena, e é a favor do estereótipo utilizado em relação a mulher ter a função de despertar o prazer masculino. Nos anúncios em questão, a figura feminina não é a consumidora, nem a espectadora. A imagem do seu corpo é um recurso de marketing e ideológico utilizado para vender o produto, embora a propaganda incita o uso do produto especialmente para o público masculino, através dessas imagens, o uso do produto também é para mulheres. Isso nos mostra que as escolhas linguísticas e imagéticas são extremamente ambíguas e carregadas ideologicamente de valores eróticos, o que provoca no ―receptor‖ uma ambiguidade entre a mulher e a cerveja, como se ambas fossem ―consumidas‖. Referências ALVAREZ, Sonia. Engendering democracy in Brazil: Women‘s movements in Transition Politics. Princeton: Princeton University Press. 1990, p 32. CARVALHO, Nelly. Publicidade a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 2006. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001 GAMA, Helio Zaghetto. Curso de Direito do consumidor. 3 ed. rev. ampl. e atual. Rio de janeiro: Forense, 2006. p. 104-105. HELDMAN, Caroline. Sexual Objectification. Part 1: What is it? 2012. Disponível em: <http://carolineheldman.me/2012/07/02/sexual-objectification-part-1-what-is-it/>. Acesso em 01 de abril de 2017. HELDMAN, Caroline. Sexual Objectification. Part 2: The harm. 2012. Disponível em: http://carolineheldman.me/2012/07/06/sexual-objectification-part-2-the-harm/. Acesso em 02 de abril de 2017.

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JORDÃO, Flávia Patrícia. A coisificação da mulher em anúncios publicitários de cerveja. Bauru: Programa de PósGraduação em Comunicação UNIMAR Marília, 2005. Disponível em: http://www.unimar.br/pos/trabalhos/arquivos/e8e819dd3dd27f0c348e7d7241df43d6.pdf. Acesso em: 02 de abril de 2017. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004. MORAES, Maria Lygia Quartim de. O Feminismo e a vitória do neoliberalismo. In: Mônica Raisa Schpun (Org.). Gênero sem fronteiras, oito olhares sobre mulheres e relações de gênero. Florianópolis, SC: Editora Mulheres, 1997. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. 9º ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, V. 1Neurose, 2002. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2008. OLIVEIRA, Cristiane Mandânelo de. Brincando de Desconsertar o Masculino: Um Olhar Sobre a Produção para Crianças de Ana Maria Machado. 2006. 125 P. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Campinas-SP: editora Pontes, 2010, 9ª. Ed. PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 1990. VESTERGAARD, Torben & SCHRODER, Kim. A Linguagem da Propaganda. São Paulo: Martins Fontes, 1988. VIDAL, Marciano. Feminismo e ética – Como ―feminizar‖ a moral. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

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A IMPORTÂNCIA DA TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA NA FORMAÇÃO DOCENTE 1 Yêda Juliana Sousa Pinheiro 2 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar a importância da transposição didática para o ensino e aprendizagem do ensino de Sociologia na educação básica, problematizando esta como um elemento para a constituição da identidade docente, correlacionados com os saberes docentes, do saber-fazer, saberensinar e o saber-ser. Considerando os aspectos pertinentes do processo de formação profissional, que perpassam a formação acadêmica e a vivência da realidade educacional, e neste está imbricado a relação entre a teoria e a prática, compreendemos que o universo da escola e da universidade necessitam ser contextualizados, abordando sobre o que representa o papel do professor, da escola e do ensino. A pesquisa de campo foi realizada na Unidade Escolar Professor Joca Vieira, escola estadual da rede pública de ensino de Teresina-PI com os educandos do ensino médio. A imersão neste campo se realizou através da participação como integrante do Pibid de Sociologia-UFPI, que proporciona a experiência do licenciando adentrar o universo escolar, para conhecer seu campo de atuação profissional e constituir a sua prática pedagógica e possibilita o educando refletir sobre o significado e o sentido do ´´ser professor``. A metodologia adotada foi a observação participante, a análise do discurso e revisão de literatura. O referencial teórico envolveu pesquisas sobre a formação de professores, o papel da didática nesse processo e a importância da linguagem como mecanismo que reivindica e assinala um discurso construtor de conhecimentos e redes de sociabilidades operacionalizadas na relação entre professor e educando, como BOLZAN(2009), CHEVALLARD(1991),LIBÂNEO(2015), OLIVEIRA(2013), PIMENTA(2012), GOMES(2012), FREIRE(1997). Portanto destarte propomos compreender como a linguagem é constituída no âmbito escolar como se realiza a operacionalização do processo ensino e aprendizagem através do papel da didática na formação docente, elencando que o ato educativo é situacional isso corrobora então com o desenvolvimento de uma prática pedagógica que leve em conta, o contexto sociocultural que esta inserida e isto se apresenta nos limites teóricos e metodológicos desta, relacionados a relevância da transposição didática que interconecta os discursos dos professores e educandos e facilita a construção de uma melhor interação , resultando numa aprendizagem efetiva e a produção de novos conhecimentos, e evidencia a consciência do ato de ensinar como algo que é político, destarte se destaca o aspecto de intervenção na realidade social, que necessita do conhecimento das experiências vividas pelos educandos, contudo vale ressaltar a importância do PIBID, em se repensar a identidade docente e observar as lacunas dos currículos da formação de professores. Palavras-chave: Didática; Identidade Docente; Linguagem; PIBID; Sociologia.

Introdução

O

presente trabalho tem como objetivo analisar a importância da transposição didática para o ensino e aprendizagem do ensino de Sociologia na educação básica, discutindo este elemento para a constituição da identidade docente, correlacionados com os saberes docentes, do saber-fazer, saber-ensinar e o saber-ser, problematizando as habilidades e competências reivindicadas pela prática docente. A pesquisa de campo foi realizada na Unidade Escolar Professor Joca Vieira, escola estadual da rede pública de ensino de Teresina-PI com os/as educandos/as do ensino médio. A imersão neste campo se realizou através da participação como integrante do PIBID de Sociologia-UFPI, que proporciona a experiência de licenciandos/as a adentrarem no universo escolar, para conhecer seu campo de atuação profissional e constituir a sua prática

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Trabalho apresentado no GT 01- Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduanda em Licenciatura Plena em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: yjuliana17@gmail.com 219 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


pedagógica, possibilitando refletir sobre o significado e o sentido do ´´ser professor``e compreender como se estabelece a conexão entre a teoria e a prática. A metodologia adotada foi a observação participante, a análise do discurso e revisão de literatura. O referencial teórico envolveu pesquisas sobre a formação de professores/as, o papel da didática nesse processo e a importância da linguagem como mecanismo que reivindica e assinala um discurso construtor de conhecimentos e redes de sociabilidades operacionalizadas na relação entre professores e educandos, como BOLZAN(2009), CHEVALLARD(1991),LIBÂNEO(2008), OLIVEIRA(2013), PIMENTA(2012), GOMES(2012), FREIRE(1997). Portanto, pretende-se compreender como a linguagem é constituída no âmbito escolar, como se estabelece a operacionalização do processo ensino e aprendizagem através do papel da didática na formação docente ,elencando que o ato educativo é situacional e contextual, isso corrobora então com o desenvolvimento de uma prática pedagógica que leve em conta, o contexto sociocultural que esta inserida e isto se apresentam nos limites teóricos e metodológicos desta. Este contexto também desvela outra variante condicionante para uma aprendizagem efetiva que é a realização da transposição didática que interconecta os discursos dos professores e educandos e facilita a construção de uma melhor interação e comunicação, pois ambos possuem contribuições a fazer na produção de novos conhecimentos. Essa prática de discurso funciona como um mecanismo de avaliação para a prática docente, ou seja, dessas expressões se analisa o entendimento da turma sobre o que o professor está propondo, bem como a linguagem se insere como fator crucial para a efetivação de uma relação dialógica, pois quando se ensina também se aprende. Contudo vale ressaltar a importância do PIBID, em se repensar a identidade docente e observar as lacunas dos currículos da formação de professores, correlacionando o papel da Didática e a prática do estágio supervisionado de ensino. O trabalho será dividido em 3 partes: 1.A imersão no campo de pesquisa, abordando os aspectos metodológicos; 2.Professora, fala na nossa língua!- Papel da Transposição Didática, apresenta a fundamentação teórica; 3.Contribuição do PIBID- Sentidos e significados do ´´ser professor``, explicita as análises da pesquisa sobre a representação do professor, da escola e do ensino de sociologia. A imersão no campo de pesquisa A pesquisa de campo foi realizada na Unidade Escolar Professor Joca Vieira, escola estadual da rede pública de ensino localizada no bairro Noivos de Teresina-PI com os educandos do ensino médio. A imersão neste campo se realizou através da participação como integrante do PIBID de Sociologia-UFPI, em que atuo desde dezembro de 2014. A realização desta pesquisa se mostra pertinente, levando em consideração os desafios da profissão docente, e aos estudos que destacam a didática como uma potencialidade do processo de ensino-aprendizagem, mas também enfatizar a construção da identidade docente nos fazendo refletir sobre quais são os saberes necessários para exercer essa prática que se reverbera de pluralismos, e é sobretudo um ato político, situacional e contextual. Destarte, a observação participante se realizou nas turmas do ensino médio da escola, e podemos perceber o perfil das turmas correlacionados ao interesse pela disciplina de Sociologia, considerando principalmente a construção e realização da prática pedagógica, evidenciando portanto, a relação entre o saber-fazer e o saber-ensinar. E estes saberes se apresentam como constituintes do processo da formação da identidade docente, relacionados às questões dos currículos, tanto das especificidades da formação docente e o da educação básica, do papel do professor no sistema didático, a epistemologia da ciência ensinada e o cotidiano escolar. A pesquisa se realizou com a análise de dois discursos, o dos professores e dos educandos para observar como se realiza a transposição didática, mas sobretudo para analisar os saberes docentes em sua operacionalidade. Partindo da concepção do discurso de Foucault, na qual discurso é uma dispersão, isto é, é formado por elementos que não estão ligados por nenhum princípio de unidade (Brandão, 1993). Um discurso é

um conjunto de enunciados que têm seus princípios de regularidade em uma mesma formação discursiva (Foucault, 1998, p. 135). 220 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Portanto, analisa-se a constituição desses discursos como uma forma de aproximação do conhecimento científico transformado em conhecimento escolar, e este processo reivindica a prática de uma linguagem que seja compreensível e assimilável pelos educandos, considerando uma abordagem que proporcione atividades e experiências que envolvam e estimulem a aprendizagem reflexiva-ativa. Este acesso ao conhecimento se realiza através das interações verbais, habilidades e sensibilidade situacional da prática pedagógica, ou seja, da aplicação de estratégias de ensino e isso aponta a importância crucial do planejamento na prática docente, pois este vai definir quais são os conteúdos, os objetivos, as metodologias, as avaliações da disciplina, que serão aplicadas na sala de aula, mas devemos compreendê-lo como algo dinâmico, que depende da realidade ao qual vai ser desenvolvido, destarte deve conhecer os modos de aprender, as características socioculturais dos estudantes. E nesta abordagem no contexto escolar os discursos nos fazem refletir sobre o poder de saber, e compreender a lógica da produção de enunciados dentro da cultura escolar, destarte, para analisar a interação e comunicação entre professor-aluno é necessário levar em conta, as posições e locais de onde se fala, e como esta fala é produzida e autorizada. Considera-se, portanto que para que ocorra uma comunicação e interação na prática docente, devemos entender que esta ação é intencional e deve provocar e buscar fazer sentido inter-relacionando com os motivos dos sujeitos desse processo, e este é um desafio para os/as professores/as pois estes são interesses múltiplos, então terá que buscar uma unidade na diversidade. Assim, podemos problematizar o papel e representação do professor, destacando que este não é um mero transmissor de conteúdos de ensino, mas é sobretudo um incitador e produtor de novos conhecimentos. Outra questão que se apresenta é a relação dos alunos com o objeto de saber ensinado, mas a problematização do papel da transposição didática na formação docente, se refere a capacidade de construir novas abordagens concretas do saber a ensinar, de modo a elaborar um discurso criativo e crítico e oferecer os instrumentos do saber, tendo em vista a produção da autonomia do educando. A construção dos saberes escolares estão em consonância com o papel desempenhado pela educação escolar, determinando que a função desta é proporcionar um ambiente social de apropriação dos signos culturais, dentro dessa dinâmica os/as professores/as constroem uma prática que é social, e um ato político pois está inserido num projeto social mais amplo, e a sua identidade é relacionada aos saberes ao ofício de ensinar, pois compreendemos que a educação é uma forma de intervenção no mundo, como nos aponta o autor Paulo Freire (FREIRE,1997). Como pode-se analisar, a construção da identidade docente está vinculada ao modelo de formação de professores. Contudo, a construção da transposição didática na disciplina de Sociologia, se relaciona com as competências que se desvelam na escolhas de certos temas e problemas a serem trabalhados, colocando em evidência o papel do/a professor/a como mediador/a do conhecimento, e que este deve está atrelado a formação ética e da personalidade dos/as discentes, e isto leva a compreensão que a profissão docente se caracteriza pela busca incessante do saber, compondo um processo intenso e dinâmico de acordo com as trocas nas relações sociais estabelecidas intra e extramuros da escola. “Professora, fala na nossa língua!”- O papel da transposição didática no contexto escolar Para compreendermos como se operacionaliza a prática pedagógica relacionada a constituição da identidade docente, devemos analisar o que representa e determina o que é ´´ser professor/a``, nestas concepções está imbricada a relação entre os saberes docentes, e dentro dessa perspectiva devemos refletir sobre o lugar da didática nesta constituição e as formas de organização curricular, do modelo de formação docente e didático-pedagógica, pois estes aspectos colaboram para a constituição da configuração da identidade profissional. Contudo, para entendermos como se forma essa identidade apontamos a análise de Pimenta (2007) onde esta coloca que ´´ a identidade não é um dado imutável. Nem externo, que possa ser adquirido, mas é um processo de construção do sujeito historicamente situado``(p.18). 221 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A frase que enuncia esta segunda parte do presente trabalho- ´´ Professora, fala na nossa língua!``, se refere à dificuldade apresentada pelos alunos/as na compreensão da abordagem dos conteúdos na sala de aula da disciplina de Sociologia, enfatizando a relevância do papel da linguagem no processo didático-pedagógico. E com isso, busca-se analisar qual é o papel da didática na formação docente, bem como a construção da transposição didática como um dos saberes docentes indispensáveis para a efetivação de um processo de ensino-aprendizagem de qualidade. Assim, pretendemos verificar qual o papel da didática, relacionado ao espaço desta na formação docente que na maioria das vezes se apresenta como uma dimensão técnica de ensino, tendo como temática central o planejamento, execução e avaliação do ensino. Mas o contraponto a esta abordagem nos cursos de formação de professores se desvela na concepção da multidimensionalidade do processo de ensinoaprendizagem. A didática, como nos aponta Libâneo (2015) ´´ fornece os marcos teóricos e conceituais que fundamentam os saberes profissionais a serem mobilizados para a ação docente de modo a articular na formação profissional a teoria e a prática``. Destarte, esse campo do conhecimento se refere ao estudo dos meios e mecanismos do processo ensino-aprendizagem, a relação entre o conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico-didático, entre outros. Torna-se fundamental analisar a didática como um processo que possui as dimensões técnica, estética, político-social e ética que correspondem aos questionamentos sobre o processo de ensino-aprendizagem: O quê? Por quê? Para quê? Para quem?. Todavia, considerando estas dimensões não podemos realizar uma discussão pautada no ´´como fazer`` alguma coisa, dissociado do ´´o que fazer``, pois neste processo da formação docente, se realiza a consecução da reflexão-ação-auto-reflexão e potencializa uma aprendizagem significativa para aquele que aprende e aquele que ensina. E essa perspectiva crítica do papel da didática nos evidencia que mais do que compreender a dimensão técnica, deve-se principalmente saber como integrar no processo de aprendizagem o desenvolvimento cognitivo, afetivo-emocional, de habilidades e a formação de atitudes. Destarte, a didática não pode se suprimir ao ensino de meios e mecanismos do processo educativo, mas deve buscar construir uma ligação entre as opções político-filosóficas, pois a ação pedagógica é também ideológica, que se desvela na seleção de conteúdos, e é explicitado na constituição de saberes profissionalizantes e o exercício da prática pedagógica. Entretanto, faz parte deste processo de formação docente a capacidade de imaginação e compromisso afetivo-ideológico, ou seja, a conscientização da responsabilidade social da sua profissão, na conexão entre sociedade, educação e política, compreendendo que o ato educativo não é neutro. Isso corrobora com a questão dos saberes docentes, quando Tardif (2002) expõe: Os saberes da formação profissional (as ciências da educação e da ideologia pedagógica, ou seja, saberes pedagógicos); saberes disciplinares (correspondentes aos diversos campos do conhecimento); saberes curriculares (os programas curriculares expressos em objetivos, conteúdos, métodos, ordenados pela instituição escolar); e os saberes experienciais (saberes específicos desenvolvidos pelos professores na prática de sua profissão) (TARDIF,2002, p.36).

Estes saberes demonstram que na ação docente estão correlacionadas, características, cognitivas, práticas e dinâmicas, que se desvelam assim como o saber-fazer, o saber-ensinar e o saber-ser, relativos aos métodos, práticas e a identidade. Analisamos que estes saberes estão relacionados ao trabalho do professor e são saberes sobre, no e para o trabalho. A constituição da identidade docente também é algo construído na relação e mediações que se realizam na prática educativa, em diferentes tempos e espaços, no qual os/as professores/as se apropriam e significam as experiências vivenciadas, conscientes do seu papel de intervenção na vida dos estudantes, e no seu próprio processo formativo, que é dinâmico, contextual e situacional. Na qual necessita mais do que o conhecimento específico da disciplina que ensina, mas o reconhecimento do desenvolvimento da dinâmica escolar.

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Levando em consideração o papel da didática, analisamos o distanciamento que nos evidencia Libâneo (2015), afirmando que no processo de formação acontece a dissociação entre a formação disciplinar e a formação pedagógica nos currículos , por exemplo, no caso da disciplina de Sociologia, temos o conhecimento das Ciências Sociais, e disciplinas pedagógicas, como a didática e o estágio. Portanto, este autor aponta como crítica deste processo, a necessidade da articulação entre o conhecimento didático-pedagógico e o conhecimento disciplinar, ou seja, a relação entre a lógica dos saberes a ensinar e os modos de aprender, destarte entre os conteúdos específicos e as metodologias. É importante salutar a imbricação no desenvolvimento desse processo , a relação entre o plano epistemológico (ciência ensinada), plano pedagógico-didático (processo ensino-aprendizagem) e as práticas socioculturais dos alunos. E neste aspecto se apresenta o desenvolvimento da transposição didática como uma concretização da relação desses saberes em situações pedagógicas contextualizadas, visando a apropriação e aplicação do saber pelos educandos. Segundo Chevallard ( 1991, p.39) o processo de transposição didática ocorre quando: Um conteúdo de saber que tenha sido definido como saber a ensinar, sofre, a partir de então, um conjunto de transformações adaptativas que irão torná-lo apto a ocupar um lugar entre os objetos de ensino. O ‗trabalho‘ que faz de um objeto de saber a ensinar, um objeto de ensino, é chamado de transposição didática.

Sendo assim, a importância da transposição didática para o ensino e aprendizagem do ensino de Sociologia na educação básica, se realiza quando, como destaca Chevallard (1991), se estabelece a relação entre o saber científico ou saber de referência, neste caso as Ciências Sociais e o saber ensinado, a Sociologia, envolvendo a dimensão epistemológica do ensino. Com isso, se operacionaliza uma reorganização do saber visando a compreensão pelos/as educandos/as. Portanto, esta reivindica do/a professor/a, a capacidade de realizar esta transposição, que leva a compreender como determinados temas e problemas podem ser organizados, representados e adaptados as diferentes habilidades e interesses dos/as estudantes. E nesta transposição didática se apresenta como um mecanismo didático-cognitivo de transposição do conteúdo de ciências sociais. A partir da adequação da linguagem acadêmica própria do ensino da graduação para o ensino escolar, constituindo uma abordagem que não comprometa a densidade do saber sociológico, este é um desafio do/a professor/a de Sociologia que é relacionar a teoria e a prática. Neste contexto analisamos que este desafio se potencializa na concepção de uma formação instrucional dos/as docentes dos cursos de licenciatura em Ciências Sociais, pois para a prática pedagógica é necessário o conhecimento do conteúdo, mas este deve estar relacionado com o conhecimento pedagógico do conteúdo, portanto entre o conteúdo e a forma do ensino. Portanto, este processo se caracteriza como uma construção e reconstrução do saber do/a professor/a e do/a educando/a, isso reflete a necessidade da unidade entre a lógica investigativa do objeto de ensino, o método de pensamento e a atividade de estudo concreta e a interiorização desse saber pelo estudante, corroborando para a transformação dos conteúdos de ensino em objetos do pensamento. A recontextualização discursiva é efetivada pelo/a docente no domínio de métodos e técnicas de ensino, deve levar em conta a forma na transmissão/assimilação/apropriação, na qual sempre se realiza com base nas situações vivenciadas pelos educandos e em suas experiências enquanto seres históricos, ou seja, a construção e a reconstrução desse saber devem estar atreladas às necessidades destes, e compreender o papel da prática docente em tornar essa aprendizagem significativa a partir do que o estudante já sabe. Na elaboração dessa transposição didática como nos aponta Chevallard (1991), é recomendado o exercício da ´´vigilância epistemológica`` que funciona como um recurso para impedir a falsificação do saber de referência decorrente das transformações que sofre até chegar na condição de saber ensinado, e coloca-se como uma questão vital desse processo o afastamento do senso comum. Com isso, observamos que a prática dessa transição é influenciada pela formação, o conhecimento, a experiência e, sobretudo, na interação que o/a professor/a estabelece com o/a educando/a, pois não se trata

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só da transmissão de conteúdos, mas na efetivação de uma relação dialógica produtora de saberes e habilidades que se constroem paulatinamente no processo de ensino-aprendizagem. Essa perspectiva nos faz refletir sobre a compreensão da função social da linguagem, e compreender que a postura e o tratamento que o/a professor/a possui diante e para o conhecimento determina a forma como esse educando constituirá sua aprendizagem e relação com o saber, na sua produção de autonomia. E em relação ao ensino de Sociologia, a prática docente deve fazer o/a educando/a entender o sentido da disciplina correlacionando com a realidade deste/a, pois podemos destacar que o papel dessa disciplina dentro das orientações curriculares, é servir como um instrumento para a formação e exercício da cidadania, assim como despertar nesses a capacidade de ver a realidade em que vivem com outro olhar para além do senso comum, ou seja, constituir a imaginação sociológica como ferramenta para o desenvolvimento intelectual e cognitivo do/a educando/a na compreensão da realidade social na qual estão inseridos e que atuam como seres históricos, sociais e culturais. Assim, analisa-se que a prática da transposição didática perpassa todos os saberes docentes, constituindo uma reflexão contínua do processo de ensino, e elenca-se como parte constituinte da relação entre a escola e a sociedade, pois suas demandas estão imbricadas, e a prática pedagógica crítica-reflexiva, só é realizável quando como nos coloca a concepção de Paulo Freire sobre a produção do conhecimento, este é percebido e concebido como um ato de criar e recriar coletivo que corrobore para uma consciência crítica do papel da escola na vida do/a educando/a, e a apropriação desses saberes apreendidos nesta devem funcionar como instrumentos de luta na construção de uma sociedade mais democrática. Contudo, pode-se inferir que a escolha dos conteúdos a ensinar é resultante da sua relevância social, e no processo da prática docente se apresentam os limites teóricos e metodológicos do ensino, relacionados ao papel da didática na formação docente, como exposto, desde a constituição da maneira de como ensinar até limites da realização de metodologias, como a exibição de um vídeo na sala de aula que não pode ser realizada por causa da estrutura física da escola. Destarte, se apresenta como instrumento na busca da superação desses limites, a necessidade na prática docente do conhecimento e reconhecimento da cultura escolar, a linguagem e identidades dos jovens, e a mudança da percepção do conhecimento da forma contemplativa para uma concepção do conhecimento ativa, produtora de novos sentidos e significados, portanto encarar a educação, não como mera reprodutora de conteúdos de ensino, mas como uma formação para a vida. Contribuição do PIBID- Sentidos e significados do ´´ser professor/a`` Como nos aponta Oliveira sobre o objetivo do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid),lançado em 2007 pela CAPES: As atividades desenvolvidas pelo PIBID nas escolas, estreitam a relação da formação inicial nas universidades – nos cursos de licenciatura – com a prática profissional dos professores nas escolas, pois permitem que os licenciandos incorporem elementos necessários a formação de sua identidade profissional docente. (OLIVEIRA, 2013, p.14)

Portanto, este também visa a associação entre a teoria e a prática, e busca a relação entre a Universidade e a Escola pública, e corrobora para a reflexão sobre o papel do professor, da escola e do ensino de Sociologia. Considerando a participação no Pibid de Sociologia-UFPI, evidencia o objetivo do programa que consiste em proporcionar o contato inicial com a sala de aula para os licenciandos e formação continuada para os/as professores/as de Sociologia relaciona a reflexão sobre o sentido e o significado do´´ser professor/a``, e isto se evidencia também na concepção do bolsista que é proporcionado ao contato com a dinâmica escolar antes do Estágio supersionado, consistindo numa oportunidade da interligação entre a pesquisa, ensino e a extensão. Para analisar esta prática é crucial, abordarmos a especificidade da disciplina de Sociologia, pois esta se apresenta para os/as educandos/as sobre ´´o quê`` todo mundo sabe, ou seja, cada um tem uma 224 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


explicação. Nesta disciplina, se relaciona com a especificidade do curso de Ciências Sociais evidenciando dois desafios, ligada à sua especificidade epistemológica, e a legitimidade institucional da disciplina, ligada à sua intermitência no currículo escolar. Na experiência, a observação participante realizada foram as aulas da referida disciplina, e o programa possibilita ao bolsista, a elaboração de planejamento de aulas, a busca por novas metodologias, dinâmicas, a partir do reconhecimento da realidade escolar e dos sujeitos presentes nesse contexto. Portanto, sobre a representação do significado do ´´ser professor/a`` o programa, corrobora na mudança de percepção sobre a profissão docente, e se caracteriza pela valorização e incentivo à docência, compreendendo o professor como um sujeito histórico social ativo na construção de uma sociedade mais justa e democrática, e como nos aponta Gomes (2012) sobre esta representação ― ser professor é gestar em si a sensibilidade pedagógica da inconformidade, da inconcretude, enfim, lançar-se na docência com criticidade e criatividade, sendo atrevido e audacioso na procura do seu voo.``(2012,p.05). Compreende-se então que a identidade docente é construída no fluxo de trocas e compartilhamento das experiências vivenciadas. E na representação sobre a escola, a inserção no programa constrói a prática pedagógica alicerçada da concepção de que a escola é um campo possível de pesquisa, evidenciando esta como instituição social, que carrega sistemas simbólicos, produz e reproduz conhecimentos e valores, ou seja, esta funciona como um laboratório vivo, para o futuro cientista social e rompe com a dicotomia entre o ser pesquisador e o ser professor, pois toda pesquisa tem um princípio educativo, visando a transformação da realidade social. Sobre o ensino de sociologia, Oliveira destaca que: Considerando que, no PIBID ao fazermos análises e discussões sobre as metodologias de como ensinar a Sociologia no Ensino Médio, acabamos pensando a própria grade curricular do Curso de Licenciatura, atentando para a necessidade de que as diferentes disciplinas precisam contemplar, também, uma dimensão prática no campo de trabalho dos professores que estão em formação, a fim de promover vínculos entre o pensar e o fazer (OLIVEIRA, 2012,p.16).

Ao analisar a configuração da dinâmica do programa, podemos perceber algumas lacunas no curso, visando buscar alternativas para melhorar as teorias e as práticas realizadas, pois isto compromete a atuação profissional do docente sendo avaliada de forma concreta no processo de ensino-aprendizagem na escola, melhorando as condições da sua formação e atuação. O desafio do/a professor/a de Sociologia, se concretiza na abordagem que este/a constrói sobre a Sociologia, e isto vai estar interligado a representação dos educandos sobre a disciplina, então na sua prática deve sensibilizar este para construção de uma imaginação sociológica, destacando o papel dessa ciência de fazer a ponte entre o sujeito e a realidade, e contextualizando a função das Ciências Sociais, que é o saber de referência e esta trabalha na busca da compreensão e interpretação do sentido e da realidade humana que define o interesse prático, mas não como técnico e manipulador e sim como ético, político e principalmente emancipador. Considerações finais Podemos analisar que a importância da transposição didática se constitui como um saber docente indispensável para a prática pedagógica e a construção da identidade profissional, e em relação ao processo de ensino-aprendizagem do ensino de Sociologia, é necessário neste processo o exercício da ´´vigilância epistemológica`` contra a dogmatização e a simplificação do conhecimento (re)construído e veiculado na/pela escola, portanto ter uma postura reflexiva sobre o currículo, de modo a repensá-lo criticamente, destacando o papel ativo do/a professor/a no processo de reflexão-ação e auto reflexão que deve acompanhar o seu pensar e fazer no cotidiano escolar, devendo integrar nas suas interações pedagógica- didáticas o conhecimento teórico-científico e as formas de conhecimento local e cotidiano, partindo da representação e dos significados dos/as educandos/as.

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Com a ausência da transposição didática no ensino de Sociologia, verificamos que se operacionaliza numa transposição mecânica de conhecimentos adquiridos na academia, sem relação com o mundo social dos educandos, corroborando para uma incompreensão no processo educativo dos saberes ensinados. Outro fator que se observa também é a dissociação do universo da sala de aula com o contexto sociocultural (DAYRELL, 1996) dos estudantes, e assim se estabelece uma fronteira entre o conhecimento de referência e o conhecimento escolar, que não leva em conta a representação dos discentes, tendo em vista que o processo de ensino é dinâmico, dialético, contextual e situacional, evidenciando o papel da sociologia de estimular nos/as educandos/as o pensar sobre o cotidiano, as relações sociais, incitando nestes/as a busca da produção de novos saberes. Nesse sentido, a transposição didática é salutar na constituição e aprimoramento da identidade docente, que é um processo intenso e contínuo, assim, a importância do Pibid se encontra no eixo norteador da prática educativa que é como nos aponta Paulo Freire ´´ a prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer``(1997,p.17), consubstanciando numa intervenção consciente na realidade orientada que é o contexto escolar. Suprimindo as lacunas do curso de Licenciatura em Ciências Sociais, que é expressa na dissociação da formação disciplinar e a formação pedagógica. Referências Bibliográficas BOLZAN, Doris Pires V; POWACZUK, Ana Carla H. A construção da professoralidade do professor do ensino superior. In: III Encontro Sul Brasileiro de Psicopedagogia, 26 a 29 de outubro de 2009-PUCPR. CHEVALLARD, Yves. La transposición didáctica. Del saber sábio al saber enseñado. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 1995. DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sociocultural. In____: (org) Múltiplos olhares sobre a educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense, 1998. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Editora Paz e Terra, 1996. GOMES, Santana dos Santos. Didática, Práticas docentes e o uso das tecnologias no ensino superior: saberes em construção. In: 37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis. OLIVEIRA, A; BARBOSA, V.S.L. Formação de professores em ciências sociais: Desafios e possibilidades a partir do Estágio e do PIBID. Revista Eletrônica Inter-Legere (ISSN 1982-1662) Número 13, Julho/Dezembro, 2013. LIBÂNEO, José Carlos. Formação de Professores e Didática para Desenvolvimento Humano. In: Educação & Realidade, Porto Alegre, Ahead of print, 2015. PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores: identidade e saberes da docência. In: Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez, 2007. TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. pp. 9-325.

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O ÚLTIMO PEDAÇO DE ILUSÃO: FLANNERY O’CONNOR, A IDENTIDADE E O REAL1 Victor Bruno2 RESUMO Flannery O‘Connor, apesar de ainda ser relativamente desconhecida no Brasil, é talvez a escritora que melhor comente sobre a condição do homem moderno. Sua abordagem é espiritual e suas histórias são mais contos sobre nossa condição de pequenez ante à grandeza do espírito do que narrativas com começo, meio e fim. Por isso mesmo, isso lha dá uma posição privilegiada no mundo confuso que é o da modernidade. A partir de um de seus contos, ―The Enduring Chill‖, cujo protagonista é um jovem escritor frustrado com a sua condição no mundo, este artigo tenta traçar um breve panorama sobre o homem atual, uma criatura que cremos ser perdida num mar de ideologias que se contradizem, sem uma bóia para se sustentar e sem nenhum tipo de redenção em vista. Na nossa abordagem, nos perguntamos quem é esse homem e quais são suas possibilidades? Utilizando uma das maiores escritoras do século XX, propomos uma pequena jornada em busca da nossa identidade como seres humanos e da identidade da modernidade. Palavras-chave: Flannery O‘Connor; Eric Voegelin; estrutura da realidade; catolicismo; desordem da identidade.

§ 1. Prolegômeno: apresentando Flannery O’connor

N

ão creio que haja no Brasil um escritor que se pareça — em matéria ou forma — com a sulista americana Flannery O‘Connor, autora morta precocemente pelo lúpus em 1964, aos 39 anos, e ainda a ser descoberta nestas plagas. Motivos? Vários. Não apenas porque o conto brasileiro seja estruturalmente diferente do conto americano (por razões que escapam ao interesse deste texto), 3 mas também por toda uma série de temas e abordagens a determinados assuntos essenciais para o desenvolvimento da sua prosa (como é o caso da sua abordagem em relação à espiritualidade, à religião e ao catolicismo) como também de assuntos que são muito caros à maioria prosadores brasileiros, mas que O‘Connor simplesmente ignora. 4 Não há em O‘Connor a mesma preocupação que Lima Barreto tem, por exemplo, em analisar a hipocrisia social das suas redondezas (e tanto aquela como este são ficcionistas obsessivamente regionais: O‘Connor com a sua Geórgia rural e Lima Barreto com o seu Rio de Janeiro de urbanização ainda incipiente, mas voraz), muito menos de analisar relações de classe ou de raça. Para O‘Connor, todos são iguais: igualmente humanos e pecadores. Flannery O‘Connor se encaixa num período muito peculiar da ficção americana. Ela se insere no meio de um grosso realismo linguístico inspirado por em James Joyce e William Faulkner (como evidenciado no uso quase obsessivo de dialetos locais pelas personagens),5 mas contraposto a um lirismo místico — eminentemente católico —, numa clara reverência e aproximação dos chamados Southern agrarians, o

1

Trabalho apresentado no GT Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduando em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí. E-mail: victorbruno@outlook.com. 3 Uma abordagem metódica e formal do conto moderno no contexto americano pode ser encontrada no artigo de A. L. Bader ―The Structure of the Modern Short Story‖ (1945). 4 O‘Connor, ao contrário do que se esperaria de uma escritora do Sul dos Estados Unidos, raramente trata de questões sociais e raciais. Sua abordagem, como pretendo demonstrar aqui, é eminentemente pessoal, espiritual e, consequentemente, universal. Para O‘Connor, o encontro do homem dificilmente se dá em estruturas e complexos sociais (i.e., ela nega a experiência humana como algo puramente materialista, o que é louvável), mas sim no campo da sua participação na estrutura do real — na methexis, assunto que abordarei em instantes. O‘Connor aborda o homem e sua experiência dentro do campo da ―igualdade circunstante‖ (v. EMBRY, 2008, pp. 42–43, 119). 5 Uma análise formalista do estilo de Flannery O‘Connor pode ser encontrada em Pollack (2007). 227 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


movimento literário liderado pelos sulistas John Crowe Ransom, Robert Penn Warren e Donald Davidson. 6 Inclusive o título de ―escritora agrária‖ muito agradava a autora (v. O‘CONNOR, 1980, p. 148). Portanto, seu uso intenso da oralidade e do dialeto local não tem o objetivo de acentuar diferenças de classes ou relativizar questões educacionais. Por exemplo, vejamos esta passagem de ―The Artificial Nigger‖, na qual a palavra ―ast‖ entra no lugar de ―ask‖ (perguntar), um exemplo de oralidade em sua escrita: ―Whyn't you ast one of these niggers the way?‖ Nelson said. ―You got us lost.‖ ―This is where you were born,‖ Mr. Head said. ―You can ast one yourself if you want to‖ (O‘CONNOR, 1971, p. 261).7

Quer dizer, a manutenção e a inclusão da oralidade dentro do contexto do trabalho da autora americana quer dizer menos uma forma de delineação social e mais uma compreensão, uma instalação completa do lugar geográfico na imaginação da autora. Isso quer dizer que o estilo de Flannery O‘Connor é verdadeiramente humano — e participa plenamente do entremeio entre a ideia e a realidade. Há, portanto, uma unidade na imaginação e na identidade da autora. § 2. A ficção em busca da ordem: “The enduring chill” Isso abre uma fresta para o real assunto deste ensaio. Há um conto de O‘Connor, chamado ―The Enduring Chill‖ (O calafrio permanente), no qual a personagem principal sofre um claro distúrbio na unidade da sua identidade e personalidade. Tal distúrbio é justamente rastreado à sua pretensa erudição, que o leva a se arvorar una ficção mental densamente elaborada. ―The Enduring Chill‖ é protagonizado pelo jovem Asbury, aspirante a escritor que infelizmente ainda nada publicou e ganha por isso alfinetadas de sua irmã. ―Mary George — O‘Connor nos informa — had said that the age most people published something was twenty-one, which made him exactly four years overdue‖ (O‘CONNOR, 1971, p. 361). O jovem aspirante está retornando para sua cidade, Timbersboro (fictícia), de Nova York, para onde foi com o intuito de fugir da ―slave‘s atmosphere of home‖ (ibid., p. 364) e de retorna para se tratar de uma doença aparentemente mortal. ―He looks a hundred years old‖, sentencia Mary George (ibid., p 363). Asbury é sofisticado e cita Joyce, quer escrever uma peça sobre os negros estivadores da sua mãe — à Zola em Germinal —, e é ateu. Macambúzio, não se sente compreendido por sua mãe. Antes, escreve-lhe uma longa carta — ―[i]t was such a letter as Kafka had addressed to his father‖ (ibid., p. 364) — e que lhe tomou dois cadernos inteiros. Apesar do seu ateísmo, em cima da cama do jovem escritor há infiltrações na parede, em forma de estalactites, que se parecem com um grande pássaro com as asas abertas, e mesmo que acreditar que ―God is an idea created by man‖ (ibid., p. 376), pede para que um padre jesuíta venha visitá-lo para ter uma conversa intelectual — apenas para caçar dele quando percebe que ele não é tão letrado quanto ele, Asbury. No fim, após uma patética conversa com os empregados negros da sua mãe, Asbury descobre que tem febre de Malta, contraída depois que bebeu leite não-pasteurizado num dia em que quis trabalhar com os empregados como laboratório para a sua peça à la Zola. Indignado por não morrer — e com medo que sua mãe 6

Os Southern agrarians são ainda pouco conhecidos aqui no Brasil, talvez porque lamentavelmente nosso imaginário sobre o Sul dos Estados Unidos ainda é desgraçadamente povoado pelas imagens sinistras da Ku Klux Klan e dos confederados escravocratas. Pena — o Sul americano tem grandes similaridades com o nosso Nordeste, algo discutido en passant por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala (2003, pp. 30–31; v. também FREYRE, 1977, p. 41). Os agrarians surgiram exatamente, diga-se, para revitalizar e tomar de volta a bela e lírica terra do Dixie, da América profunda, e reclamar a poesia inerente àqueles rincões rurais contra a modernização que eles viam (corretamente) como alienante e corrosiva do século XX. Há algum tipo de semelhança entre eles e o Movimento Nordestino da década de 30 (v. CARPEAUX, 1964, p. 305–320), mas essa comparação deve ser feita prudentemente. Uma introdução aos Southern agrarians pode ser encontrada em The Rebuke of History, de Paul V. Murphy (2001, pp. 31–61, 179 sqq.). 7 Para preservar o estilo e o ritmo da prosa de O‘Connor, decidi manter as citações no original. Além do mais, ―The Artificial Nigger‖ era, de acordo com a própria, seu conto que mais lhe agradava (O‘CONNOR, 1980, p. 209), então creio que é melhor deixar as coisas como são. 228 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


lhe descubra a carta kafkaniana — ele olha para a infiltração em forma de pássaro sobre a sua cama, que agora lhe parece, estranhamente, com uma manifestação viva do Espírito Santo que vem lhe pegar. Nesse brevíssimo resumo, já foram feridos três elementos que podem ser explorados na busca de paralelos entre a experiência do homem moderno — e também do brasileiro — e o trabalho de Flannery O‘Connor. São estes: o Espírito Santo (a religiosidade e a unidade do real), a arte (o trabalho de compreensão do real) e a localização do espaço geográfico (o mundo das mutações). Nenhum desses elementos são explicitados no conto acima, ou mesmo em outros trabalhos literários de O‘Connor na ficção: a sua prosa sempre tem um fundo eminentemente narrativo, apesar de haver um subtexto moral sempre muito forte — e, para a autora, necessário. Necessário porque, para O‘Connor, a ficção deve levar o leitor — e suas personagens, também — a um reencontro com a realidade (cf. O‘CONNOR, 1969, p. 112). Tal reencontro fica cristalino em ―The Enduring Chill‖. Asbury tem um desvio — vamos chamar assim — entre o que o real é e qual a sua leitura dele. Portanto, um problema de participação (methexis) na realidade. Isto é dizer, em outras palavras, que Asbury tem um problema de ―paralaxe cognitiva‖, um desvio psicológico típico da modernidade caracterizado pelo próprio desvio entre o eixo imaginativo e a experiência real do indivíduo (v. CARVALHO, 2011, Cap. 5; 2013, Cap. 14). Em ―The Enduring Chill‖, o problema de Asbury o leva a querer, voluntariamente, abolir sua participação no mundo dos vivos: o choca muito mais ter uma doença espúria (e não letal) como a febre de Malta do que morrer mesmo e nunca mais escrever nada. Abury não tem a unidade da sua consciência — e essa falta de unidade se traduz, como já dito num problema de methexis e também no seu duelo contra a divindade (que vem de forma simbólica na figura de um padre jesuíta muito velho e que ignora o ateísmo do protagonista). O problema de Asbury atinge também outras linhas. Raciocinando como O‘Connor, Asbury não crer no Uno, em Deus, não se traduz em um problema de espírito. Apologeta Flannery O‘Connor não é. A autora interpreta a realidade da existência de Deus como um fato cabal e consumado, sacramentado no momento da Revelação Divina. Isso significa que Deus é parte necessária da realidade, e a negação da Sua existência é simplesmente loucura e cedo ou tarde o real terá necessariamente que vencer e penetrar a Segunda Realidade na qual Asbury está vivendo (v. VOEGELIN, 1990a, p. 112). 8 Asbury vive uma completa ficção, um teatro mental de puro ressentimento e mentiras, cortando quase que completamente todo o seu contato com o real: para si, Asbury não é um jovem problemático, mas antes um artista (fracassado), desejoso de ser algo, de ser um James Joyce, mas cujas pretensões são tolhidas pela sociedade mesquinha e medíocre. Ele está, para si, isento de qualquer culpa. É evidente que nada disso é real — Asbury é ranzinza, somente; mas um ranzinza terrivelmente ressentido. A falta de coragem de Asbury em encarar isso é o que lhe faz entrar nesse teatro mental, a Segunda Realidade, e nunca mais sair de lá. Mas, como explica Eric Voegelin, a Segunda Realidade é um fenômeno dentro da Primeira Realidade (o real em si; vide ibid., p. 113), e evidentemente ele tem que ingressar nesse mundo de fantasia. Como acontece tantas vezes, a violação da Segunda Realidade pela Primeira é um evento traumático — simbolizado por O‘Connor como a aproximação do pássaro gelado do Espírito Santo: The fierce bird which through the years of his childhood and the days of his illness had been poised over his head, waiting mysteriously, appeared all at once to be in motion. Asbury blanched and the last film of illusion was torn as if by a whirlwind from his eyes. He saw that for the rest of his days, frail, racked, but enduring, he would live in the face of a purifying terror. A feeble cry, a last impossible protest escaped him. But the Holy Ghost, emblazoned in ice instead of fire, continued, implacable, to descend (O‘CONNOR, 1971, p. 382). 8

Há uma diferença fundamental entre ―The Enduring Chill‖ e outros contos da autora. Normalmente o fator ―descrença‖ não se traduz em uma revelação simples, como se se tirasse o coelho da cartola do mágico, como é o caso neste conto. Em outros (como ―Parker‘s Back‖, um dos últimos da autora), o ateísmo — ou a simples descrença — é vencido com a observação de que é justamente o descrente um dos filhos preferidos de Deus e escolhido para carregar a Palavra. Repito; O‘Connor não é apologeta. O fato do protagonista ser escolhido não faz o faz ser um missionário pregador, mas antes simboliza o retorno da unidade da consciência e a assimilação da verdadeira personalidade do indivíduo (que pode muito bem ser uma criança assassina, como é no romance The Violent Bear It Away). Em outros casos, a assimilação da personalidade e do sentido da vida de uma personagem implica em sua morte, como é o caso do conto ―Greenleaf‖ e do final de Wise Blood, romance de estreia da autora. 229 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Interpretemos o sinal do Espírito Santo: passemos adiante. § 3. Os dramas e as doenças da nossa idade O quadro de Asbury, portanto, é de grande desordem. Mas que espécie de desordem? Falei acima do Espírito Santo, da methexis, da identidade do ser com o estar. Mas tomados como elementos de uma narrativa ficcional eles aparentemente nada dizem sobre a ―vida real‖ e sobre nós mesmos — e o objetivo deste ensaio é mostrar como que O‘Connor escreve fala muito a respeito da nossa realidade enquanto homens e mulheres modernos. Viver em desordem é uma das piores coisas que podem acontecer com um indivíduo. Como disse um refugiado da União Soviética — que preferiu se manter em anonimato —, ―Much though I hated the Communists, I saw then that even the grim order of Communism is better than no order at all‖ (apud KIRK, 2008). Toda a história da humanidade, desde nossos primórdios nas cavernas até nossa entrada no terceiro milênio pode ser recontada como a nossa busca pelo encontro da ordem e da representação dentro dos contextos de vivência em comunidade. Era isso, e não outra coisa, que o homem de Lascaux queria quando se pintou naquelas primitivas paredes: buscar ou representar uma identidade de si e de seus grupos, balizado por certas atividades que dão liga à sua gente. Todas as culturas que já existiram viveram exatamente esse drama — Qual é a identidade da minha gente? E, como demonstrou Christopher Dawson, a perda da cultura inteira de uma sociedade implica a perda da sua própria identidade, estabelecendo assim o primeiro passo para o seu eventual desaparecimento (DAWSON, 2012, pp. 110, 114). Todas as civilizações têm uma força motriz dentro das suas próprias dinâmicas — normalmente variações de alguma atividade humana essencial para as suas sobrevivências — e que se erguem através do trabalho dos poetas e dos grandes fundadores culturais até atingir o patamar de mito fundador — ou modular — daquela sociedade (v. ibid., pp. 96–97).9 Mas então qual é o nosso ―mito modular‖? Já que aparentemente na nossa sociedade sentimos o mesmo drama de Asbury, só que de forma analógica, uma vez que o drama do esfarelamento da identidade é a pauta do dia em nossa sociedade. Primeiro temos que saber qual é a nossa sociedade. Chamo genericamente a sociedade que Asbury, você e eu vivemos de ―ocidental‖, já que, mesmo com todas as flexões possíveis, a cultura sulista americana e a brasileira são desdobramentos de uma unidade-mãe — a cultura ocidental. Essa cultura, por sua vez, se sustenta sobre três pernas — a cultura filosófica helênica, a legal romana e a espiritual israelita, ou judaicocristã (v. sobre o assunto SCHALL, 2003, p. 429 e KIRK, 2008, Cap. 1). 10 Não é possível falar em uma cultura ocidental sem mencionarmos esses três pilares, e só um lunático poderia negá-los. Mas a negação desses pilares é justamente o que vem desmantelando a unidade do ser no nosso tempo. Em outras palavras, é essa negação que adoece o nosso homem. Isso não quer dizer, naturalmente, que devemos aceitar cegamente todos 9

Que o leitor perceba que eu uso a palavra ―mito‖ em seu sentido original — ―narrativa‖ — e não na sua infeliz conotação moderna de fábula fantástica. 10 Esse modelo de ―tripé‖ — ou de ―triângulo‖ — se parece com aquilo que Eric Voegelin aborda em determinado momento da sua New Science of Politics (2000, pp. 178 sqq.) sobre o modelo trinitário da História tal como concebido por Joaquim de Fiore, um modelo que diz que supostamente haverá uma era do Pai, do Filho e do Espirito Santo e no qual só nessa última era poderemos compreender verdadeiramente a Revelação do Senhor. Voegelin condena tal interpretação da História como imanentista e gnóstica — o que é mesmo. O que ocorreu com o ―tripé‖ ocidental — e o que o faz escapar do gnosticismo de Fiore e de todos os outros que quiseram tornar a Terceira Era, a Era do Espírito Santo para si (como Hitler e os moscovitas do tempo de Ivan IV, o Terrível [v. VOEGELIN, 2000, pp. 181–83], uma neurose tipicamente russa infinitamente reeditada durante o regime comunista do século XX) — é que o tripéfundador ocidental não clama para si nenhum tipo de verdade transcendente e nem imanentista na qual a realidade divina se dá dentro do campo histórico. O triângulo ocidental se baseia numa construção puramente cultural e histórica, e não clama nenhum tipo de verdade que não seja aquela da sua própria existência (e a necessidade da sua sobrevivência). Ademais, dependendo de qual sociedade ocidental estivermos falando, podemos acrescentar uma quarta cidade fonte de cultura (no caso americano, o supracitado Kirk adiciona Londres na parada — v. KIRK, 2008, Cap. 1 e 4 e KIRK, 1993). No caso brasileiro, podemos dizer que nossa quarta cidade é Lisboa. 230 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


os feitos e o status quo. Ao contrário: o homem tem que, por princípio, estar alerta para preservar aquilo que deve ser preservado e mudar aquilo que deve ser mudado. Essa é a própria tensão-base do ser e, em última análise, o drama da vida em sociedade, uma vez que a identidade se forja justamente na dinâmica da preservação e da mudança (afinal de contas, uma personalidade se constrói nas coisas que adquirimos e remodelamos através dos anos). Mas tais operações de preservação e mudança dependem da saúde e preservação da ordem interior do nosso ser — e se Platão está certo e de fato a sociedade nada mais é do que o homem em larga escala, a doença da consciência do homem põe em cheque toda a estrutura da sociedade. Agora chegamos a um quadro de dualidade entre o macro e o micro. O macro é a sociedade — a ordem social, digamos —, e o micro é o homem mesmo, sua constituição psicossomática. Podemos agora responder à pergunta feita há pouco: Que espécie de desordem é essa que aflige Asbury? É de uma espécie doentia, daquela que suga até a última gota de força e vigor num ser. Só que, sendo uma ficção, é muito fácil de notar isso no conto de Flannery O‘Connor — afinal, estamos interpretando a história com o famoso ―distanciamento crítico‖. Mas como traduzir isso para a realidade? E nossa sociedade, através dos últimos três séculos, entramos numa espiral vertiginosa e maluca de compartimentalização da unidade da identidade. Esse processo não se dá no homem em si, individualmente; é antes a consequência de um fenômeno geral e que opera desde fora em sua mentalidade, através dos tempos. Em tempos passados, estava muito claro para os homens que havia uma unidade-base (ou, para sermos mais platônicos, ideal) da existência. O homem da sociedade cristã modelava sua vida à imagem da unidade-ideal da constituição humana. Essa imagem essencial, essa unidade-base, é a de Jesus Cristo, o ―novo Adão‖ e ―segundo homem‖ (1 Cor 15:45), que é o referencial macrocósmico (transcendente) ao qual o microcósmico (imanente) está subordinado.11 Isso se nota mais claramente quando observamos a popularidade de certas leituras nãobíblicas, mas de cunho religioso, como a Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, escrito por volta do século XV, livro escrito como forma de conselho e admoestação para monges e padres, e que, graças às suas linhas nas quais ―fremem as nossas paixões, revivem os nossos combates interiores, gemem as nossas misérias e aos nossos arrependimentos, exprimem-se, em toda sua força, as nossas mais nobres aspirações‖ (FRANCA, 1970, p. 9), ganhou enorme popularidade entre o público leigo desde então. Isso quer dizer que Tomás de Kempis conseguiu refletir e dar testemunho de uma verdade transcendente; que conseguiu, em seu livro, refletir como em filigrana a modulação desse homem que serve de unidade de referência para nós mesmos. Na Imitação de Cristo sentem-se as aspirações de um homem transcendente, sem máculas e pecados; um homem que consegue entrar pela porta estreita. Transfere-se, portanto, dentro da Imitação de Cristo, o referencial mítico da nossa sociedade. Nossa civilização cresceu à sombra, justamente, da realidade de um homem assim, de um homem que tinha exatamente tais qualidades — qualidades testadas na bigorna da Cruz e da Paixão e portanto reveladas aos olhos de todos como físicas e reais. Em outras palavras, nossa civilização floresceu com a imagem do homem ideal revelado. Porém, com a entrada da modernidade (que podemos marcar mais ou menos pelo século XVIII) atravessamos um complexo de dúvida e intensa imanentização do Eschaton, que é o processo no qual as coisas pertencentes à ordem da divindade são trazidas ao mundo imanente (i.e., o nosso; o mundo das mutações). Não é que não existisse tais processos de imanentização antes — como o já citado Eric Voegelin diz, a heresia gnóstica é a mãe da imanentização e a chave fundamental da natureza da modernidade (v. VOEGELIN, 2000, pp. 175 sqq.). Não faltaram, durante vários períodos da nossa história, seitas milenaristas que juravam de pés 11

Há dois estudos sobre esse tema. O primeiro é o de Olavo de Carvalho (2015, pp. 31–33) e o outro é o de René Guénon (s/d, pp. 14 sqq.). Note-se, contudo, que o estudo de Guénon fala do homem universal mais na perspectiva do esoterismo islâmico do que do cristão propriamente dito. ―A realização efetiva dos estados múltiplos do ser refere-se à concepção daquilo que as diferentes doutrinas tradicionais — diz Guénon — e notadamente o esoterismo islâmico, chamam de ‗Homem Universal‘; esta concepção estabelece a analogia constitutiva entre a manifestação universal e sua modalidade individual humana, ou, na linguagem do hermetismo ocidental, entre o ‗macrocosmo‘ e o ‗microcosmo‘‖ (GUÉNON, s/d, p. 14). Tomei, portanto, o cuidado de usar a nomenclatura que Guénon considera própria do ―hermetismo ocidental‖ ao me referir à unidade-base do homem dentro do contexto cristão de forma que não haja nenhum tipo de confusão. O Prof. Carvalho, no ensaio que referi acima, utiliza a nomenclatura (―homem universal‖) de Guénon. 231 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


juntos que sabiam a data do Apocalipse (ou que no mínimo ele estava próximo) ou que determinada figura política era o Messias Reencarnado (v. COHN, 1970, Caps. 1 e 6). Tais pensamentos nunca foram embora e nem ficaram relegados àquele período histórico tido como horroroso que foi a Idade Média; antes, se intensificam durante a modernidade, porém geralmente dissociado do elemento espiritual. Exemplo: o messianismo político é um fenômeno muito corriqueiro a partir do final do século XIX — normalmente ligado à algum tipo de revolução coletiva, como a Revolução de Outubro. Antes de ser uma novidade, é nada mais uma recapitulação do milenarismo igualitário tratado por Norman Cohn nos três últimos capítulos de seu livro The Pusuit of the Millennium. Além disso, a figura da pessoa messiânica intensifica-se formidavelmente nesse mesmo período uma vez que, não havendo mais a teologia da divindade, necessita-se de um outro tipo de teologia — e é essa nova teologia, um Ersatz da divindade, só que intramundano. Precisamos acreditar em algo — nem que esse algo seja um político (v. PAYNE e GROSSHANS, 1963 e BILLINGTON, 1980, Caps. 8–11). Portanto, o pensamento moderno sofre um processo de destaque, como se se arrebentasse da unidade estruturante da realidade. Junto à criação de mitos sobre o período espiritual anterior (genericamente chamado de Idade Média), inventa-se também a ―superação‖ das ideias daquele período, valendo-se dos novos recursos científicos e matemáticos que vêm a explicar fenômenos cujas explicações eram até então desconhecidas. Até o nome do novo período vem para realçar a nova ordem espírito-social: Iluminismo. E a reboque do esclarecimento que o período proporciona vem um novo fenômeno: o Progresso. Nessa nova ordem o deus é o Fato, aquela coisa material e visível, mensurável e quantificável. Diversas expressões de pensamento desabrocharão nesse tempo. Infelizmente — ou talvez felizmente — elas não são o tema deste ensaio, até porque seria necessário um tomo inteiro, ou mesmo mais de um, para se fazer um estudo dessa magnitude. Porém podemos perceber claramente que o abandono do nosso mito essencial e estruturador (a realidade de Cristo) deixou o homem moderno completamente perdido. Sem notar que, como falou Russell Kirk, o fato nada mais é que um fenômeno construído (i.e., acidental), e que só significa algo quando tomado em conjunto (KIRK, 1969, p. 351). À luz da descoberta que doutrinas mecanicistas e matematizantes — como, e especialmente, o positivismo comteano — o homem passa a pedir mais poesia e imaginação. Porém essa imaginação não é a verdadeira imaginação — a imaginação moral a qual se refere brevemente Sir Edmund Burke nas suas Reflexões sobre a Revolução em França. A imaginação moral é aquele arcabouço de imagens e valores internos que cada um de nós carrega e que nos permite ver as coisas para além da vã e crua matéria, que ―nos permite aumentar a estima da nossa dignidade humana‖ (BURKE, 1951, p. 74). A imaginação moral é aquele elemento imaginativo que nos faz perceber que um rei não é um mero homem, que o amor entre um pai e uma mãe é mais que um apanhado de descargas bioquímicas. Mas não foi isso o que o homem moderno — e o jovem Asbury é a maior exposição possível dessa frustração — pediu. Antes, aconteceu um completo desmonte da imaginação, seja ela moral ou outra qualquer, foi a confirmação desta previsão de Burke: On this scheme of things [do fim da imaginação moral], a king is but a man, a queen is but a woman, a woman is but an animal,—and an animal not of the highest order. […] Regicide, and parricide, and sacrilege, are but fictions of superstition, corrupting jurisprudence and by destroying its simplicity. The murder of a king, or a queen, or a bishop, or a father, are only common homicide,—and if the people are by any chance or in any way gainers by it, a sort of homicide much in the most pardonable, and into which we ought not make too a severe scrutiny (ibid., 74).

Ao contrário, essa imaginação que foi pedida é na verdade um movimento refratário à matematização que se erguia naquele tempo, portanto pegando o pior daquilo a que se opunha. A libertação aparente que ele teve do mundo dos fatos o desmontou quase que completamente (ou melhor, o desconstruiu) até que se descobrisse como um monte de átomos que se autocontradizem, sem nada significarem num todo senão que o homem não tem liberdade de seguir seus impulsos e é um organismo vítima dos mandos e desmandos dos outros, das verdades selecionadas e catalogadas por instituições que ele não escolheu e crente de mitos (agora como sentido de fábula) perfeitamente inexistentes. Sua única saída é crer que as verdades selecionadas pela

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sociedade são apenas algumas verdades e não querem dizer que exista de todo uma única verdade, mas uma coleção delas que podem ser usadas ou não na construção da nossa narrativa pessoal. Essa é a era do estruturalismo e do pós-estruturalismo, da verdade e da pós-verdade, da subjetividade, das narrativas políticas e da ideologia. É a era da persuasão. Entrementes, o homem também percebe que não dá para viver somente com a matéria e a carne: é necessário preencher a fome do espírito. Porém mesmo assim a fé também tem que ser ajustada aos novos deuses — primeiramente ao deus do Fato e depois ao deus do imaterial. Daí surgirem o Apostolado Positivista, fundado pelo próprio Auguste Comte e depois o kardecismo, compêndio de cristianismo com positivismo. Mas, mesmo assim, de fato ainda há uma estranha similaridade entre o Apostolado e o kardecismo com a velha fé cristã: ainda há o ramerrão da doutrina e do lugar sagrado, da fé praticada em ambientes internos e e do dogmatismo que exige aquiescências por parte do praticante. A nova fé tem que manifesta sua existência agora e já, e deve ser portátil, podendo ser praticada em qualquer lugar. Até porque a religião varia de ―subjetividade‖ para ―subjetividade‖ — e drogas como o LSD permitem um contato com elementos e visões transcendentes muito mais fortes e impactantes do que qualquer espírito falante. Doutrinas orientais são, nesse aspecto, muito mais flexíveis que as nossas, e daí, da década de 1960 em diante temos o magnífico desfile de importações de religiões e hábitos espiritualistas orientais — I-Ching, yoga, budismo, confucionismo, holismo, simbologias orientais mal interpretadas (yin e yang), todos no fundo substitutos da ladainha infernal do terço mariano tradicional. É a volta do velho simbolismo das eras iniciado por Joaquim de Fiore citado supra — porém sai a Era do Espírito Santo e entra a Nova Era de Fritjof Capra. Todos esses episódios da inteligência e da fé humana ocidental dos últimos três séculos (que certamente não foram contados nem em profundidade e nem integralmente nesses breves parágrafos) deram, de alguma maneira ou de outra, uma mão ao processo de compartimentalização que me referi há instantes. A compartimentalização fez com que a estrutura da unidade-base do homem se desfizesse e se desencontrasse. Aquele todo sólido, nítido ao qual se referia a Imitação de Cristo se liquefaz deprimentemente. Ou melhor, se desconstrói. O homem ainda está aí, vivo, mas não está mais em sua integralidade — e é essa ausência de integralidade que o faz estar perdido: não há mais um referencial de unidade, e sem unidade não há identidade, uma vez que a identidade é necessariamente um referencial integral e identificável de algum ser. Como um homem que não se reconhece mais como um todo pode sobreviver num mundo de permanente mutação? Simplesmente não pode. Daí que a enorme quantidade de ideologias e filosofias surgidas nos últimos três séculos, antes de o completar e guiar, o deixaram ainda mais sozinho. E como haveria de ser diferente, sendo criações meramente humanas, sem nenhuma unidade verdadeiramente transcendente? Asbury, o jovem escritor fracassado e ressentido de Flannery O‘Connor, surge exatamente como a imagem perfeita de uma humanidade que se diz cética, mas que anseia dolorosamente por algum tipo de chão, de âncora no mar revolto da vida na Terra. Ainda mais significativo é ―The Enduring Chill‖ datar do século XX, um século marcado pelo morticínio e pelo fracasso de tantas ideias políticas redentoras. Como eu sou um otimista, não acredito que todo esse processo de automutilação e de desmantelamento da nossa identidade irá nos matar — e parece que tampouco acredita O‘Connor. O leite que Asbury bebe, aos olhos de desprezo dos negros que ele acha que conhece (mas que no fundo sabe tanto sobre eles quanto sobre si mesmo: nada) é um símbolo perfeito para o que a humanidade fez consigo mesmo no período que tentei brevemente resumir acima: o leite cru não matará Asbury — muito para o seu desespero —, mas ferira-lo até que ele se recomponha e aprenda conviver consigo mesmo. Ser um ser humano é uma experiência dolorosa. A convivência com a dor, com a frustração e com a incerteza é parte não-negociável da nossa existência neste planeta. Com efeito, são exatamente essas sensações — especialmente quando contrastadas como aquelas mais agradáveis como o prazer, a segurança e o conforto — que originam aquele efeito que Aristóteles denominava de thauma (Θαῦμα), o espanto que inicia o processo filosófico. É o dolorido processo de espanto que nos faz perceber que algo está mexendo com a estrutura do nosso corpo — que há um arranhão da nossa unidade e nos faz partir em busca de descobrir que, se, afinal estamos sendo mexidos, espantados por alguma coisa, é porque temos uma identidade em estado estático que reage a certos fenômenos. O mundo nos convida a nos comovermos — e essa é uma das palavras 233 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


mais fortes e provavelmente mais belas de toda a língua portuguesa — enquanto entes viventes. E eis que surge a pergunta mais importante que um ser humano pode fazer em toda sua vida: Quem sou eu? Com ela se aprende a fazer todas as perguntas subsequentes. O homem que entra em estado de negação da sua própria natureza é um homem fadado à confusão. É deprimente, mas esse é o estado no qual a maior parte da humanidade se encontra nos nossos dias — e é o estado também de Asbury. Parece que tudo foi prometido ao nosso jovem escritor, algo que podemos notar através de sua arrogância e de sua certeza em seu conhecimento, por mais que exista um filtro de insegurança em suas ações (aliás, tal filtro existe justamente porque Asbury não consegue se instalar em sua própria identidade). Nossa humanidade, nos dias que correm, também acreditou em várias promessas — a promessa da ideologia, das ciências duras, do cálculo e da materialidade — e se vê atordoada com a descoberta de que tais promessas, ou mesmo de que o chamado progresso em nada progride se o preço que ele cobra é a nossa dissolução. Nós, como Asbury, bebemos do leite da falsidade e agora convalescemos da nossa própria febre de Malta, uma doença espúria, que podia ser evitada, mas que, apesar de dolorosa e incômoda, não mata. Tal é a nossa situação. E aqui está a chave: quando Asbury bebe o leite contaminado ele o faz sob o olhar compassivo, mas sábio, de dois funcionários negros de sua mãe — crendo que ao cometer tal ato ele estará se aproximando de algum tipo de verdade representada por aqueles dois homens. Os dois funcionários sabem que o leite está contaminado, porém nada fazem: deixam que Asbury se contamine de forma que ele aprenda uma lição. Da mesma forma, nosso espírito — e o espírito da Unidade — sabe perfeitamente o que a humanidade faz consigo, mas espera que ela mesma entenda suas ações e retorne à sua própria unidade. Porém, para fazer isso, ela primeiro tem que reaprender a fazer aquelas duas perguntas tão próprias do espírito humano: Quem sou eu? Creio que podemos dizer com certeza que assim como o paciente não se cura de uma doença que não sabe que tem, a humanidade não saberá reencontrar-se consigo mesma sem saber o que é aquilo que lhe faz está perdida. Resta agora nos reencontrarmos. E o reencontro será iniciado, creio eu, quando conseguirmos falar aquelas palavras daquele outro personagem fictício de vida desgraçada — mas desgraçada porque não conseguimos compreendê-lo — e que nossos tempos insistem em subjugar como um lunático, mas que no fundo é sapientíssimo: Don Quixote. ―Yo sé quién soy‖ — é isso o que ele diz é isso o que temos que aprender a dizer. Referências BADER, A. L. The structure of the modern short story. College English, vol. 7, no. 2, pp. 86–92, nov. 1945. BILLINGTON, James H. Fire in the minds of men: The origins of the revolutionary faith. Nova York: Basic Books, 1980. BURKE, Edmund. Reflections on the revolution in France. 1910. Reimpr. Londres: J. M. Dent & Sons, 1951. CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Letras & Artes, 1964. CARVALHO, Olavo de. A dialética simbólica. In ______. A dialética simbólica: Estudos reunidos. 2. ed. Campinas, SP: VIDE Editorial, 2015. ______. Maquiavel; ou, A confusão demoníaca. Campinas, SP: VIDE Editorial, 2011. ______. Visões de Descartes: Entre o gênio do mal e o espírito da verdade. Campinas, SP: VIDE Editorial, 2013. COHN, Norman. The pursuit of the millennium: Revolutionary millenarians and mystical anarchists of the Middle Ages. Ed. rev. e aument. Nova York: Oxford University Press, 1970. DAWSON, Christopher. Progresso & religião: Uma investigação histórica. Traduzido por Fabio Faria. São Paulo: É Realizações, 2012. EMBRY, Charles R. The philosopher and the storyteller: Eric Voegelin and twentieth-century literature. Columbia: University of Missouri Press, 2008. 234 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


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12

Os contos de Flannery O‘Connor referidos neste ensaio foram tirados, todos eles, dessa edição.

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G

ÊNERO &

S

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UBJETIVIDADE


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UMA MULHER SEM ESCOLHAS: A ÍNDIA DOMINGAS NA VISÃO DE SEU FILHO NAEL EM DOIS IRMÃOS, DE MILTOM HATOUM1 Jéssica Borges de Castro2 Vanessa de Carvalho Santos3 Wander Nunes Frota4 RESUMO Consagrado nacional e internacionalmente, o escritor amazonense de ascendência libanesa, Milton Hatoum, costuma retratar relações familiares conflituosas em suas obras entremeando, em seus enredos, experiências e memórias pessoais contextualizadas socioculturalmente pela Amazônia e pelo Oriente Médio. Em Dois irmãos (2000), a trama gira em torno da relação conflituosa entre os gêmeos Yaqub e Omar, integrantes de uma família de origem libanesa que vive em Manaus. Todavia, há um personagem coadjuvante, a índia Domingas, que desempenha papel relevante na trama hatoumniana por possuir um tal background capaz de embasar discussões relevantes acerca, por exemplo, de conflitos relacionados às questões de gênero e, nesse caso específico, ainda às questões de etnia índia e classe social na Amazônia. Nesse sentido, o presente trabalho analisa a personagem Domingas e sua relação com os demais personagens de Dois irmãos, do ponto de vista de Nael, filho de Domingas, que funciona como o principal narrador da história. Para tanto, utilizamos as contribuições críticas de teóricos como: Daou (1998), Marreiro (2014), Pontes Filho (2000) e Orum (2012). Palavras-chave: Gênero; Etnia Índia; Classe Social; Dois irmãos (2000); Milton Hatoum.

Introdução Zana teve de deixar tudo: o bairro portuário de Manaus, a rua em declive sombreada por mangueiras centenárias, o lugar que para ela era quase tão vital quanto a Biblos de sua infância: a pequena cidade no Líbano que ela recordava em voz alta, vagando pelos aposentos empoeirados até se perder no quintal, onde a copa da velha seringueira sombreava as palmeiras e o pomar cultivados por mais de meio século (HATOUM, 2000, p. 11).

O

escritor amazonense de ascendência libanesa Milton Hatoum tornou-se um dos nomes mais expressivos da literatura brasileira contemporânea, alcançando, ademais, prestígio em esfera internacional ao ter suas obras, até o presente momento, traduzidas para 13 línguas e publicadas em 14 países. Seus romances são caracterizados pela presença de conflitos familiares, marcados por reminiscências que conferem um tom autobiográfico às suas obras, além disso, todos eles são ambientados em Manaus e/ou cidades do oriente. Outra característica marcante das obras de Hatoum é a escolha cuidadosa do narrador e a forma como este último apresenta as demais personagens. Em Dois Irmãos, esta função é delegada à Nael, filho da empregada Domingas que presta serviços a uma família de origem libanesa que vive na Manaus do início do século XX. Ele se torna fundamental em relação a analise proposta para este trabalho, na medida em que nos descreve com propriedade a personagem central deste estudo. Além disso, é através de suas impressões que tomamos conhecimento desta história e são os 1

Trabalho apresentado no GT Gênero e Subjetividades do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduanda em Letras-Língua Inglesa e Literatura Inglesa na Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: <jessicaborgesdecastro@hotmail.com>. 3 Graduanda em Letras-Língua Inglesa e Literatura Inglesa, e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) na Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: <vannycarvalho11@hotmail.com>. 4 Orientador. Professor Associado II de Língua Inglesa na Coordenação de Letras Estrangeiras (CLE) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: <wander@ufpi.edu.br>. 238 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


seus olhos que nos guiam pela capital amazonense, entre os anos de 1920 e 1960, nos fazendo apreender as transformações ocorridas neste ambiente em que a trama se insere. Desta forma, a partir da perspectiva de Nael, este trabalho objetiva analisar a personagem Domingas e sua relação com os demais personagens de Dois irmãos, para tal utilizaremos as contribuições de teóricos como: Daou (1998), Marreiro (2014), Pontes Filho (2000) e Orum (2012 ). Contextualizando Manaus do século XX Por ali circulavam carroças, um e outro carro, cascalheiros tocando triângulos de ferro; na calçada, cadeiras em meio círculo esperavam os moradores para a conversa do anoitecer; no batente das janelas, tocos de velas iluminariam as noites da cidade sem luz. Fora assim durante os anos da guerra: Manaus às escuras, seus moradores acotovelando-se diante dos açougues e empórios, disputando um naco de carne, um pacote de arroz, feijão, sal ou café. Havia racionamento de energia, e um ovo valia ouro. Zana e Domingas acordavam de madrugada, a empregada esperava o carvoeiro, a patroa ia ao Mercado Adolpho Lisboa [...] Halim comprava carne enlatada e farinha de trigo que os aviões norte-americanos traziam para a Amazônia. [...] Conversavam em volta da mesa sobre isso: os anos da guerra, os acampamentos miseráveis nos subúrbios de Manaus, onde se amontoavam ex-seringueiros. (HATOUM, 2000, p. 22-23).

Dois irmãos possui como pano de fundo central a cidade de Manaus do século XX e em meio à narrativa é possível encontrar passagens em que personagens, deste romance de Milton Hatoum, relatam algumas das transformações sofridas pela capital amazonense durante este período de tempo. Assim, tendo em conta estes fatos, acredita-se que uma breve contextualização deste cenário se faz necessária neste ponto, no sentido de evitar perigosos anacronismos que certamente comprometeriam a atividade proposta para este trabalho: a análise da personagem Domingas no que se refere às questões de gênero, etnia índia e classe social. Deste modo, comecemos mencionando o ciclo da borracha: período entre os anos de 1879 e 1912 – revigorando-se por pouco tempo entre 1942 e 1945 – em que a extração e comercialização de látex para a produção da borracha foram atividades basilares da economia, trazendo riqueza, transformações sociais/culturais e modernidade – ou, ao menos, um sentimento de modernidade – à região amazônica. Neste período Manaus se transformou [...] numa cidade de intenso movimento comercial e com sensíveis alterações e incorporações urbanas. Além das sociedades comerciais, das instituições financeiras, dos meios de transporte, da estrutura de saneamento básico e das arejadas praças e calçadas, Manaus possuía uma vida cultural intensa. Sem qualquer exagero, a capital do Amazonas nada devia ao geral das cidades europeias da época (PONTES FILHO, 2000, p. 142).

Entretanto, toda a riqueza e desenvolvimento proporcionado pela atividade gomífera, nesta época, concentrou-se na capital. O interior do estado, onde se encontrava a mão-de-obra seringueira composta em sua grande maioria de imigrantes de estados nordestinos castigados pela seca e até mesmo de outros países em situação de conflito, assim como de índios da região, permaneceu relegado ao esquecimento. Com a perda do monopólio na produção da borracha, a capital amazonense entra em processo de estagnação e, posteriormente, de degradação. Assim, segundo Borges (2010), os trabalhadores dos seringais, então desempregados, migram para a periferia de Manaus e passam a formar o que mais tarde seria denominada de cidade flutuante: um aglomerado de casas de palafitas construídas nas margens dos igarapés que cortavam a cidade. E neste ponto da história Manauara, onde já se tem a existência da, agora extinta, Cidade Flutuante, Nael, em Dois irmãos, tece considerações importantes a respeito deste lugar e que envolvem diretamente a condição primeva e posterior de Domingas, como criança desamparada que fora levada para o orfanato após a morte do pai e como mulher sem pretensões maiores do que a de sobreviver através do que o destino lhe ofereceu:

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[...] Via um outro mundo naqueles recantos, a cidade que não vemos, ou não queremos ver. Um mundo escondido, ocultado, cheio de seres que improvisavam tudo para sobreviver, alguns vegetando, feito a cachorrada esquálida que rondava os pilares das palafitas. Via mulheres cujos rostos e gestos lembravam os de minha mãe, via crianças que um dia seriam levadas para o orfanato que Domingas odiava (HATOUM, 2000, p. 80-81).

E à medida que Manaus lidava com esse declínio, o restante do país vivenciava um período de modernização no final da década de 1950, época marcada pelas ideias entusiasmadas de Juscelino Kubitschek que tinha como objetivo equiparar o Brasil às nações desenvolvidas, com a implementação do Plano Nacional de Desenvolvimento marcado pelo mote ―cinquenta anos em cinco‖. Esta situação começou a mudar quando, através do Decreto-Lei 288/1967, criou-se a Zona Franca de Manaus como meio de impulsionar o desenvolvimento econômico da região Amazônica: Esse processo [de implantação da Zona Franca] foi acelerado a partir do regime militar de 1964 cujo ideal era impulsionar a modernização até o norte do país. Para tanto os militares compreendiam que era preciso uma efetiva intervenção do Estado como um veículo financiador, planejador, gestor e controlador da economia nacional (BORGES, 2010, p. 88-89).

Em Dois Irmãos, o eu-lírico relata a chegada dos militares à capital amazonense durante o período supracitado, expondo a percepção das personagens em relação a intervenção do Regime Militar na cidade: [..] havia correria e confusão no centro, que a Cidade Flutuante estava cercada por militares. // "Eles estão por toda parte", disse, abraçando o filho. // "Até nas árvores dos terrenos baldios a gente vê uma penca de soldados..." // "É que os terrenos do centro pedem para ser ocupados", sorriu Yaqub. // "Manaus está pronta para crescer." // Halim enxugou o rosto, olhou nos olhos do filho e disse sem entusiasmo: // "Eu peço outra coisa, Yaqub... Já cresci tudo o que tinha de crescer..." (HATOUM, 2000, p. 196).

E Milton Hatoum complementa esta questão afirmando em entrevista que a ―[...] Zona Franca foi uma violência para a cidade‖ (HATOUM, 2001, p. 19), isto porque afetou os hábitos, costumes e valores locais, especialmente aos que se referem à intensa cultura indígena presente naquela região, caracterizando, desta forma, mais uma das grandes mudanças experienciadas pela Manaus do século XX e que encontram-se imbricadas com a trama Hatoumniana. A mulher que não teve escolhas Domingas fechava os olhos e fingia dormir, e se lembrava do pai e do irmão. Chorava quando se lembrava do pai, dos bichinhos de madeira que fazia para ela, das cantigas que cantava para os filhos. E chorava de raiva. Nunca mais ia ver o irmão, nunca pôde voltar para Jurubaxi. As freiras não deixavam, ninguém podia sair do orfanato. As irmãs vigiavam o tempo todo. Espiava as alunas da Escola Normal passeando na praça, livres, em bandos... namorando. Dava vontade de fugir (HATOUM, 2000, p. 76).

É senso comum que no decorrer da história ocidental inúmeras mulheres se propuseram a lutar por liberdade e equidade de direitos. Todavia, várias foram as intempéries enfrentadas pelas mesmas, como a Santa Inquisição da Igreja Católica Apostólica Romana que se mostrou impiedosa com aquelas que desafiaram seus princípios e dogmas. Isso, entretanto, não foi um obstáculo para que uma onda feminista consistente se organizasse: [...] a chamada primeira onda do feminismo aconteceu a partir das últimas décadas do século XIX, quando as mulheres, primeiro na Inglaterra, organizaram-se para lutar por seus direitos, sendo que o primeiro deles que se popularizou foi o direito ao voto. As sufragetes, como ficaram conhecidas, promoveram grandes manifestações em Londres, foram presas várias vezes, fizeram greves de fome (PINTO, 2010, p. 15).

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No Brasil, esse movimento surgiu abertamente também devido à luta pelo voto. Pinto (2010, p. 16) afirma que as ―sufragetes brasileiras foram lideradas por Bertha Lutz, bióloga, cientista de importância, que estudou no exterior e voltou para o Brasil na década de 1910, iniciando a luta pelo voto‖. Desde então, a busca por mais direitos foi ganhando maior impulso, consolidando assim o movimento no país. Contudo, Em 1964, veio o golpe militar, relativamente moderado no seu início, mas que se tornaria, no mitológico ano de 1968, uma ditadura militar das mais rigorosas, por meio do Ato Institucional n. 5 (AI-5), que transformava o Presidente da República em um ditador. [...] Foi no ambiente do regime militar e muito limitado pelas condições que o país vivia na época, que aconteceram as primeiras manifestações feministas no Brasil na década de 1970. O regime militar via com grande desconfiança qualquer manifestação de feministas, por entendê-las como política e moralmente perigosas (PINTO, 2010, p. 16-17).

Percebe-se, desta forma, que tais manifestações ocorreram no mesmo período em que Hatoum desenvolveu sua trama. Enquanto as sufragetes nacionais lutavam em nome de mulheres como Domingas, a grande maioria delas não conhecia esse movimento e acabavam por aceitar o papel que lhes era imposto. Essa aceitação da função social naquele meio estava inclusa na educação recebida por elas desde a infância, fazendo com que essa submissão se tornasse algo natural. A personagem Domingas, em Dois Irmãos, é caracterizada por seu filho Nael como alguém que não teve escolhas: uma índia que logo na infância tornou-se órfã e foi mandada para um orfanato católico onde foi moldada para servir. Sua rotina, por dois anos, consistia em ser alfabetizada, rezar de manhã e ao anoitecer, limpar banheiros e refeitórios, costurar e bordar, e a noite deveria, assim como as outras internas, ficar longe das janelas, em silêncio e deitada na escuridão, sendo vigiada por uma das irmãs, Damasceno, que as observava com uma palmatória na mão (HATOUM, 2000, p. 75-76). Desta forma, é interessante ressaltar que o irmão de Domingas, talvez por ser do sexo masculino, permaneceu na aldeia, enquanto ela não teve a mesma oportunidade. A sombra servil de Zana [...] Vivia atenta aos movimentos dos gêmeos, escutava conversas, rondava a intimidade de todos. Domingas tinha essa liberdade, porque as refeições da família e o brilho da casa dependiam dela. A minha história também depende dela, Domingas (HATOUM, 2000, p. 25).

Foi durante o boom da borracha, no alvorecer do século XX, que Manaus tornou-se conhecida como ―Paris das selvas‖ (DAOU, 1998, p. 173). Esse título foi concebido, explica Marreiro (2014, p. 1-2), no momento em que ―grandes obras públicas foram erigidas, com a implantação de medidas que eram consideradas civilizadoras e modernizantes‖, devido a isso, a sociedade que a habitava, ou, suas elites, ―iniciaram uma identificação própria‖ que exaltava Manaus ―de forma ufanista e objetivando suas sincronias com o que era avaliado como moderno e civilizado em eixos do sudeste e fora do país‖, sendo o velho mundo o núcleo responsável por disseminar ideias e modelos a serem seguidos: As transformações empreendidas no final do século XIX em Manaus objetivavam, além da remodelação e ampliação dos espaços públicos e implantação de inovações na dinâmica do espaço urbano, a consolidação de um outro tipo de sociabilidade, que estava identificada com o padrão que estabelecia a vida moderna e cosmopolita, ou seja, o perfil dos habitantes da cidade deveria estar condizente com a nova postura que tinha a cidade: uma vida urbana estabelecida sob uma nova ordem (MARREIRO, 2014, p. 2).

Os resultados obtidos pela exportação da borracha podiam ser vistos, afirma Orum (2012, p. 3), ―na abundância de artigos de luxo importados de gosto e valor. Fotografias contemporâneas documentam o uso de vestuário de estilo europeu pelas classes média e alta no cotidiano‖, além disso, a circulação de capital em Manaus ―influenciou uma percepção própria que atravessava as divisões de classe criando uma aura de riqueza

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impenetrável‖. A elite, desta forma, encontrava-se responsável por grande parte dos recursos existentes e, este fato, ―permitiu à classe privilegiada viajar e adquirir experiência na Europa, onde foi exposta às tendências sociais, culturais e intelectuais do continente‖ (ORUM, 2012, p. 3), levando todos os costumes por eles vivenciados para a capital do Amazonas. Essa terra prometida, como era vista a capital do Amazonas durante sua Belle Époque, fez com que estrangeiros, mesmo depois do declínio da borracha na primeira metade do século XX, que buscavam uma fonte de renda melhor, viajassem até as terras amazônicas (EMMI, 2010, p. 2). Dentre os grupos que imigraram para a região estão os Árabes, estes que avistaram em uma Manaus recém-reformulada pelas tradições europeias, um refugio distante dos conflitos políticos e religiosos de seus países. Em Dois Irmãos, temos as vivências de uma família de origem libanesa na cidade de Manaus entre os anos de 1920 e 1960 e, em vários pontos da obra, a herança vinda deste país é observada, seja nas memórias de infância, nos nomes próprios dos personagens ou, até mesmo, na tão abordada viagem de Yaqub. É interessante perceber que mesmo com essa herança viva entre os personagens, Zana, mãe dos gêmeos, distrata sua cultura e o seu país de origem quando pensa em Yaqub vivendo no Líbano, colocando-se em um lugar de prestígio ao, indiretamente, comparar-se com a família libanesa de seu marido, devido à educação que rodeia sua família e sua posição naquela sociedade (HATOUM, 2000, p. 15). Durante a narração da estória, só percebemos o papel de Domingas através das descrições de Zana, como se esta primeira só existisse em função da segunda. A índia é descrita como ―[...] sombra servil‖ e ―[...] escrava fiel‖ de Zana (HATOUM, 2000, p. 34-35) e tais adjetivos são manifestados pelo filho de Domingas, que assistiu sua mãe sonhar acordada pelo desejo de liberdade: Zana não se despegava dele [Omar], e o outro [Yaqub] ficava aos cuidados de Domingas, a cunhantã mirrada, meio escrava, meio ama, "louca para ser livre", como ela me disse certa vez, cansada, derrotada, entregue ao feitiço da família, não muito diferente das outras empregadas da vizinhança, alfabetizadas, educadas pelas religiosas das missões, mas todas vivendo nos fundos da casa, muito perto da cerca ou do rnuro, onde dormiam com seus sonhos de liberdade [...] "Louca para ser livre." Palavras mortas. Ninguém se liberta só com palavras. Ela ficou aqui na casa, sonhando com uma liberdade sempre adiada. Um dia, eu lhe disse: Ao diabo com os sonhos: ou a gente age, ou a morte de repente nos cutuca, e não há sonho na morte. Todos os sonhos estão aqui, eu dizia, e ela me olhava, cheia de palavras guardadas, ansiosa por falar [...] Mas ela não tinha coragem, quer dizer, tinha e não tinha; na dúvida, preferiu capitular, deixou de agir, foi tomada pela inação (HATOUM, 2000, p. 67).

Ainda que morando ali antes do nascimento dos gêmeos, ela dormia em um quartinho no quintal e, mesmo Zana tendo certa consideração por ela, devido à fé das duas no mesmo Deus, era Domingas quem limpava a estátua para quem suas rezas se dirigiam e quem fazia todos os demais afazeres domésticos. A índia conhecia todos os membros da casa até em suas informações mais íntimas, mas sua presença não era fortemente notada devido ao seu papel naquele ambiente. Assim, quando os negros recentemente haviam descoberto o significado da liberdade, os índios, em Manaus, encontravam-se caminhando em direção oposta. Uma Manaus de contrastes "Olha as batuíras e as jaçanãs", apontando esses pássaros que triscavam a água escura ou chapinhavam sobre folhas de matupá; apontava as ciganas aninhadas nos galhos tortuosos dos aturiás e os jacamins, com uma gritaria estranha, cortando em bando o céu grandioso, pesado de nuvens. Minha mãe não se esquecera desses pássaros: reconhecia os sons e os nomes, e mirava, ansiosa, o vasto horizonte rio acima, relembrando o lugar onde nascera, perto do povoado de São João, na margem do Jurubaxi, braço do Negro, muito longe dali. "O meu lugar", lembrou Domingas. Não queria sair de São João, não queria se afastar do pai e do irmão (HATOUM, 2000, p. 74).

Antes do advento do ciclo da borracha, que culminou com o período conhecido como Belle Époque Amazônica, Manaus possuía uma composição populacional distinta: em 1852, havia cerca de 8.500 habitantes,

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destes, aproximadamente, 4.080 eram índios, 2.500 mamelucos, 900 brancos, 640 mestiços e 380 escravos (AMAZONAS, 1984). Após este período, segundo o censo demográfico populacional das capitais brasileiras entre os anos de 1872 a 2010, organizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população residente em Manaus, no final do ciclo da borracha, era de 75.704 habitantes. Esse inchaço populacional ocorreu devido à vinda de imigrantes de várias partes do Brasil, principalmente do nordeste, como também de outras nações, atraídos pelas supostas benesses advindas da exploração do látex: Belle Époque é um momento histórico onde a visão progressista assume papel primordial em todos os setores das atividades humanas, nesse momento, o homem acredita que tudo pode alcançar, tudo pode fazer. Marcado pela profunda arrogância das nações europeias que enriqueceram pela exploração imperialista de suas colônias nas Américas, na África ou na Ásia (BRAGA, 2016, p. 164).

Ainda de acordo com Braga (2016), essa ―arrogância‖ europeia estava relacionada ao fato dos imigrantes europeus, que compunham à elite manauara, adquirirem certas características pertencentes à cultura indígena como, por exemplo, o hábito de tomar banho diariamente, o uso da rede e a sesta, desprezando, assim, os demais elementos que não lhes convinham. Além disso, eles buscavam repassar a ideia de que Manaus possuía raízes genuinamente estrangeiras, retratando os índios como seres exóticos e envoltos de certo misticismo, fazendo assim com que a cidade, que era preponderantemente indígena, fosse submetida a uma tentativa de europeização. Entretanto, desvanecer as características culturais de um local não é tarefa fácil: Mesmo que se tenha uma grande propaganda, as cidades mantêm suas práticas cotidianas. Tornou-se imperativo ―desaparecer‖ com os índios de Manaus, visto que a cidade se tornava cada vez mais branca, o interessante é perceber que mesmo assim, o poder público, pôs no álbum da Exposição de Chicago, fotos de índios, talvez para apenas utilizar o índio como uma forma de excentricidade, uma vez que nas exposições internacionais, o diferente, o exótico despertava a atenção. No caso de utilizar indígenas, possivelmente o governo pretendia ―atrair olhares‖, de aventureiros do além-mar para a pouco explorada Amazônia de então (BRAGA, 2016, p. 179).

Em contraposição, os indígenas não tiveram a mesma liberdade de escolha, isto porque, rapidamente começaram a passar por um processo de aculturação por parte destes mesmos europeus. Todavia, alguns elementos resistiram a tal ação, como pode ser percebido na obra aqui analisada: Domingas, após a morte de seu pai, é levada da aldeia onde vivia, deixando para trás seus pares e sua cultura para se adequar a um novo cenário – europeizado. Entretanto, durante a narrativa, há passagens em que a mesma, numa tentativa de preservar as lembranças que a conectam à sua origem, mantém hábitos ligados ao seu contexto primevo, como por exemplo, entalhar em madeira pássaros de diversas espécies (HATOUM, 2000, p. 75). Considerações finais [...] Senti suas mãos no meu braço; estavam suadas, frias. Ela me enlaçou, beijou meu rosto e abaixou a cabeça. Murmurou que gostava tanto de Yaqub... Desde o tempo em que brincavam, passeavam. Omar ficava enciumado quando via os dois juntos, no quarto, logo que o irmão voltou do Líbano. "Com o Omar eu não queria... Uma noite ele entrou no meu quarto, fazendo aquela algazarra, bêbado, abrutalhado... Ele me agarrou com força de homem. Nunca me pediu perdão" (HATOUM, 2000, p. 241).

Em contraste ao indianismo romântico, onde o índio costumava ser retratado como "personagem principal", mas quase sem alma própria, ou melhor, como uma alma de costumes "europeizados", Hatoum dá vida a índia Domingas que, apesar de possuir hábitos advindos do contato entre a elite brasileira e europeia, mantém uma alma indígena. E mesmo ela sendo apresentada de maneira delicada, esta não pode ser encarada como uma personagem sútil, isto porque o seu percurso dentro da trama traz a tona múltiplas problematizações que abrangem desde a questão do gênero até as questões referentes à etnia índia e classe 243 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


social, mostrando que naquele período, para uma mulher nas suas condições, a possibilidade de se fazer escolhas era quase inexistente. Portanto, pode-se inferir a partir da análise da personagem Domingas proposta para este trabalho, tomando como base o contexto sócio histórico da Manaus do século XX, que ela reflete um problema social brasileiro ainda muito presente entre nós. Referências AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo e. (1852). Dicionário Topográfico, Histórico, descritivo da Comarca do Alto Amazonas. Recife. Meira Henrique Nova – Edição Facsimilar; Manaus: Associação Comercial do Amazonas – ACA – 1984. (Coleção Hiléia Amazônia, ―1‖). BORGES, K. A. P. Dois irmãos de Milton Hatoum: um olhar que vem do norte. 2010. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília, Brasília. BRAGA, Bruno Miranda. A cidade e suas representações: Manaus no século XIX (1850- 1883). Revista de Pesquisa Histórica, Recife, n. 34.1, p. 163-184. 2016. DAOU, Ana Maira Lima. A cidade, o teatro e o “paiz das seringueiras”: práticas e representações da sociedade amazonense na virada do século XIX. Tese de Doutorado apresentada ao programa de Pósgraduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1998. EMMI, Marília Ferreira. A Amazônia como destino das migrações internacionais do final do século XIX ao início do século XX: o caso dos portugueses. In: XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2010, Caxambu. Anais do XVII Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu: ABEP, 2010. HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ________________. A pátria sem fronteiras. [Junho, 2001]. Campinas: Jornal da Unicamp. Entrevista concedida a Álvaro Kassab. IBGE. População nos Censos Demográficos, segundo os municípios das capitais - 1872/2010. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=6&uf=00. Acesso em: 11/03/2017. MARREIRO dos Santos Junior, Paulo. Manaus da Bélle Époque: tensões entre culturas, ideais e espaços sociais. In: IV congresso internacional de história, 2014, Jataí. Anais do IV congresso internacional de história. Jataí: Editora UFG, 2014. p. 1-16. ORUM, Thomas T. As Mulheres das Portas Abertas: judias no submundo da Belle Époque amazônica, 1890- 1920. Revista Estudos Amazônicos, Belém, v. 7, n. 1, p. 1-23. 2012. PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, v. 18, n. 36, p. 15-23. 2010. PONTES FILHO, Raimundo Pereira. Estudos de História do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2000.

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DISSIDÊNCIAS

DO PENSAMENTO E DO DESEJO: DISCURSOS DISCIPLINARES E CONSTRUÇÕES SUBJETIVAS DA 1

JUVENTUDE TERESINENSE DOS ANOS 70

Laura Lene Lima Brandão 2 RESUMO As alterações comportamentais no curso dos anos 60 e 70 provocam uma intensa vigilância e discussão acerca da juventude e do consumo dos artefatos culturais. A imprensa de grande circulação projetava sentimento de preocupação quanto às transformações dos valores juvenis. Seguindo a tendência já em curso no Brasil, foi prescrito no Piauí um conjunto de medidas educativas e de controle da juventude, em destaque os discursos de higienistas, religiosos, médicos e urbanistas. Em desses sujeitos, foram empreendidas várias formas de disciplinarização através de instituições ligadas ao Estado, como o Exército, Igreja e a escola. O jovem passa a ser visto como vida a ser manejada, que deve prescindir ao estabelecimento de um novo campo de saber e de corpos que precisam ser monitorados. Além de ações institucionalizadas, a sociedade disciplinar operava pela vigilância panóptica e pela tentativa constante de manutenção do status quo como afirma Ronilk e Guatarri ― Há sempre um arranjo que tenta prever tudo o que possa ser da natureza de uma dissidência do pensamento e do desejo.‖ Entretanto, a criação de novas subjetividades e micropolíticas foi uma prática entre parcela da juventude teresinense. Esse trabalho se propõe a discutir a relação entre a disciplina e antidisciplina juvenis dos anos 70 em Teresina, partindo da análise dos discursos que deram corpo a esse debate, em destaque à imprensa alternativa e os jornais de circulação aberta. Palavras-chave: De três a cinco palavras-chave, separadas por ponto e vírgula.

Enquanto corria a barca dos anos 70

A

s manifestações culturais dos anos 70 refletiram o espírito de uma época de intensa contestação dos padrões sociais por parte de uma geração de jovens que buscavam liberdade através de ideais contraculturais, políticos, comportamentais e/ou revolucionários, pois foi marcada por novas experiências informadas por movimentos juvenis que eclodiam pelo Ocidente. Segundo Rosângela Patriota, ―esse período da história do século XX, sem dúvida, mudou o rosto da sociedade ocidental. Produziu movimentos que redimensionaram valores, ideias, objetivos e, ao mesmo tempo, alavancou reações conservadoras. Em verdade, sob a égide da expressão anos 60 e anos 70, estão agrupadas experiências díspares e, muitas vezes, contraditórias, que impedem a uniformização deste universo.‖ (PATRIOTA, 2005.p.02) Seguindo a tendência já em curso no Brasil, durante a década de 1970 foi prescrito no Piauí um conjunto de medidas educativas e de controle da juventude. Esse contexto é marcado pela tentativa do Estado de educar e disciplinar os corpos utilizando-se dos discursos de higienistas, religiosos, médicos, engenheiros e urbanistas.3 Em torno da juventude teresinense, foram empreendidas várias formas de disciplinarização por 1

Trabalho apresentado no GT Gênero e subjetividade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico:laurallbrandao@hotmail.com 3 Na perspectiva foucaultiana, o poder disciplinar tem como função maior ―adestrar‖ as multidões confusas. O poder disciplinar é fruto do deslocamento do poder soberano para o corpo social. A partir de então, o poder se exerceria em várias esferas, inclusive na forma de micropoderes. Tal poder se exerce sobre os corpos individuais por meio de exercícios especialmente direcionados para a ampliação de suas forças. Estes exercícios tinham como objetivo, o adestramento e a docilização dos corpos. ―É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado‖. Assim, a partir da segunda metade do século XVIII, há a emergência do poder disciplinar, tal qual foi definido por Foucault. Surgiram também as disciplinas que garantiram a articulação harmoniosa da sociedade. Desse modo, a disciplina passou a controlar os indivíduos, estabelecendo relações de poder reguladas pelas normas. Os dispositivos do poder disciplinar caracterizam-se pela minúcia e pelo detalhe. Nesse sentido, o corpo será submetido a uma forma de poder que irá desarticulá-lo e corrigi-lo através de uma nova mecânica do poder. As práticas disciplinares 245 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


meio de instituições ligadas ao Estado, como o Exército, a Igreja e a escola. O jovem passa a ser visto como vida a ser manejada, que deve prescindir ao estabelecimento de um novo campo de saber: de uma população que é preciso abarcar, de um novo corpo que precisa ser monitorado. A aplicação de formas de controle social à juventude funcionaria, como forma adequada de socialização, que percebia os jovens como incompletos, instáveis, e por isso mesmo mais perigosos. Acrescente-se a isso, para além de ações institucionalizadas, a sociedade disciplinar também era responsável pela vigilância panóptica e pela tentativa constante de manutenção do status quo, pois como afirma Ronilk e Guatarri: Tudo o que é do domínio da ruptura, da surpresa e da angústia, mas também do desejo, da vontade de amar e de criar, deve se encaixar de algum jeito nos registros de referências dominantes. Há sempre um arranjo que tenta prever tudo o que possa ser da natureza de uma dissidência do pensamento e do desejo. Há uma tentativa de eliminar aquilo que eu chamo de processos de singularização. Tudo o que surpreende, ainda que levemente, deve ser classificável em alguma zona de enquadramento, de referenciação. (GUATARRI; ROLNIK. 2007. p. 52.)

Entretanto, a sociedade disciplinar encontrou seu contraponto da rede antidisciplinar empreendida por fração da juventude teresinense do período, pois se a disciplina ―fixa, imobiliza e regulamenta os movimentos‖ (FOUCAULT, 977. p.181) e objetiva a perpetuação de uma sociedade composta de pares e de indivíduos dóceis e se utiliza de estratégias para fabricá-los, a rede antidisciplinar da juventude aqui estudada se constituiu na fuga do panóptico. Como sugere Michel de Certeau, entre o instituído e o praticado existe um intervalo sobre o qual transitam as astúcias dos consumidores. As possibilidades de fuga por meio do empreendimento de micropolíticas deu tom singular a alguns jovens teresinenses dos anos 1970. Entretanto, essas duas esferas se configuraram como prática em campos com reiteradas interpelações, sendo sintomáticas da existência de subjetividades flexíveis, que implodiram com a pretensa identidade iluminista. É necessário considerar que entre os modelos, existem o fluxo, a reinvenção e a criação de novas sínteses. Como afirmou Teresinha Queiroz, o foco de observação desses anos são as microrrevoluções e suas macrorrepercussões (QUEIROZ, 2006. p. 274). Discursos disciplinares: Escola, Igreja e Estado. As alterações comportamentais no curso dos anos 60 e 70 provocam uma intensa vigilância e discussão acerca da juventude e do consumo dos artefatos culturais. A imprensa de grande circulação da época projetava sentimento de preocupação quanto às transformações de valores juvenis. Ganha espaço nas páginas dos jornais um conjunto de discursos que problematizam o consumo dos jovens, a fim de alertar para as possíveis rupturas com o social, pois: Em geral, a juventude de uns trinta a cinquenta anos escolhia como modelos de personalidades de santos – sim, santos da religião – ou homens de ciência, de armas, que tivessem levado seu nome aos píncaros da glória por exemplos admiráveis. Homens e mulheres, claro. Atualmente, isso não mais acontece. [...] Provavelmente, uma pesquisa feita entre jovens ‗mais velhos‘ digamos dos dezoito aos vinte e dois anos, daria um resultado diferente. Esse resultado, sem dúvida, também iria referir-se a uma ‗devoção social‘ – que é o sinal positivo dos tempos que vivemos –, mas com interesses mais profundos. Depois, não adianta querer acusar os jovens de futilidade, de irresponsabilidade, é preciso não esquecer que eles formam sua personalidade com o material que nós, adultos, pomos ao seu alcance. (OS IDEAIS da juventude. Jornal do Piauí, Teresina, 10 out. 1970).

O texto aponta duas das bases da educação da juventude: a família e a religião. A responsabilidade seria da família na manutenção da ordem e pela conservação dos modelos sociais tradicionais. A religião, permitem o controle das operações dos corpos e a sujeição constante de suas forças, tentando impor uma relação de docilidade e utilidade. Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. 246 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


sobretudo o discurso cristão, contribuiria para manter a ordem familiar. O espaço dedicado a essas discussões na imprensa é revelador de mutações na instituição familiar, dado o momento de transformações culturais que se processava em nível nacional e regional, ainda que considerada a defasagem do segundo em relação ao primeiro, e a consequente reorientação nos rumos da fé e da tradição. Nessa perspectiva, os discursos apontavam para a necessidade da atuação da família para guiar e zelar pela juventude. Na reportagem abaixo, essa discussão se aplica ao carnaval: a juventude deveria ou não participar dessa festividade? O que está argumentado é que o carnaval apresenta: [...] condição de dificuldade para o problema da educação juvenil, em relevância, principalmente na infanto-adolescência. Muitos pais ficam hesitantes em se devem evitar ou deixar seus filhos menores, não apenas as mocinhas, mas os rapazes também, brincar o carnaval. Cremos que os falsos aforismas existencialistas que estão disseminados em profusão nos meios sociais, defendem para o elemento humano uma medida de satisfação completa de todos os seus desejos, como sendo isso uma condição para a felicidade. A vida é curta convém aproveitá-la. Logo, a mocidade ficará alheia, cheia de cuidados e de reveses da vida. Devemos deixá-la aproveitar o bom do viver. São essas as principais frases, cariando apenas em suas tonalidades, que os princípios deformados e deformadores do materialismo-existencialista, apresentam com

insistência às deliberações sociais.

A primeira vista, diante delas, ledo engano nos toma a alma. De fato – dizemos – a mocidade deve brincar, aproveitar a vida... Entretanto, nos esforçamos para pôr um pouco de profundidade em nossa reflexão, descobrimos coisas maravilhosas... vemos como colocávamos então, o conceito de felicidade muito baixo. [...] como sociedade procura apresentar valores de baixo nível, para as

perspectivas da juventude, a se formar assim distorcida e mal encaminhada na trajetória da vida.

Não que sejamos contra as expressões carnavalescas, contra a alegria natural e tão agradável da mocidade, contra a folia das noites momescas. Não. Mas é necessário que nós, principalmente a

família, muralha secular das tradições sociais, elemento ‗sine que non‘ da organização e do progresso dos povos, saiba defender seus deveres, para que possa usar de seus direitos.

As portarias de Dr. Juiz de Menores, para os festejos carnavalescos, que, diga-se de passagem, louvamos por seu espírito educativo-moral e por seu auxílio à tarefa formadora da família, não teriam oportunidade de serem transgredidas desde que os pais compreendessem como agir, diante dos excessos carnavalescos e diante da sofreguidão natural mas, controlável, da juventude. Pensemos bem. Será conveniente para uma garota de quinze e dezesseis anos, em seu período de formação ou mesmo um rapazinho, pois não devemos supor que a educação masculina possa

seguir caminho de desregramento, desde que eles serão os futuros pais, jogar-se quatro noites seguidas em clubes e em festas notívagas? Talvez suponham que exagero o que prova como já

está tornando natural a ideias de que a infanto-adolescência pode participar imune de todos os direitos da maioridade. Devemos sentir como estão sendo vulgares e chãos os ideais que oferecemos à mocidade. Estamos assim, substituindo os altos conceitos da vida organizada e condicionada para a produção intelectual, por uma geração desconhecedora do nosso poder humano-transcendental, frívola, fútil, vazia de ambição e amolecida no entorpecimento do tédio e da vadiagem não por culpa própria e não em toda a sua maioria, o que já é uma graça divina.[...] [Grifos nossos] (OS IDEAIS da juventude. Jornal do Piauí, Teresina, 10 out. 1970.

A citação é longa, porém necessária, pois ao longo da matéria, é trazido à tona um conjunto de discussões a respeito da formação do comportamento juvenil, apontando a importância da família como ―muralha secular das tradições sociais, elemento ‗sine que non‘ da organização e do progresso dos povos‖, ou seja, a família é apresentada como a principal instituição de disciplinarização dos jovens, que deveria educá-los com base na moral e no regramento comportamental. Ao apresentar a problemática dos espaços e práticas que deveriam ser interditados aos jovens e lançar o questionamento de que ―será conveniente para uma garota de quinze e dezesseis anos, em seu período de formação ou mesmo um rapazinho, pois não devemos supor que a educação masculina possa seguir caminho de desregramento, desde que eles serão os futuros pais, jogar-se quatro noites seguidas em clubes e em festas notívagas ?‖, há a aproximação do viés que pensa a juventude como um processo de desenvolvimento e ajuste que se constituem em temas de preocupação social, ou seja, por se tratar de uma fase de formação do caráter, deveria ser educada e contida segundo os princípios que 247 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


deveriam reger o corpus social, na medida em que ―serão os futuros pais‖. O foco tal da preocupação é com a coesão moral da sociedade e com a integridade moral do indivíduo. A juventude é ainda entendida como o futuro, faixa etária que deve ser bem educada com a finalidade de resguardar um futuro já previsto, por isso ―a juventude é um dos temas de maior atualidade, em realce máximo na imprensa, na literatura, preocupando famílias, estudiosos e governos.‖ Segundo reportagem, alguns jovens: Aos dez, doze anos para cima, resistem e começam a se reunirem em bandas. Vivem e veem coisas inimagináveis [...] a vida percorre como a leitura de gibis e de revistas (nem sempre convenientes), com muita televisão (idem) [...] A revista mostra-lhe tudo que a imaginação é capaz de conceber, e que uma censura benigna permite que se imprima. A televisão com programas onde há muita malícia, muita licenciosidade, disfarçada ou na, sobrecarregada de demonstrações inúteis, que exibem a vida como um perpétuo carnaval. E isso tudo para que? Para promover culturalmente a juventude ou para degradá-la? A maioria desses jovens cria-se sem exercícios físicos, em companhia apenas das tentações que foram inventadas especialmente para perturbálo. Jovens que só por um milagre, quando vindos de um lar sadio, poderão resistir a tal sedução para tornarem-se homens de verdade ou mães de família dignas. (JOVENS e jovens. O Estado do Piauí. Teresina, 7 abr. 1972).

Para a sociedade disciplinar, endossada pelo discurso dos jornais, parte do consumo juvenil que se popularizava nesses anos, como as músicas, os programas de televisão e as revistas, são as causas das alterações de ordem moral entre os jovens. A reportagem, endereçada aos pais, tenta alertar para necessidade de vigilância frente aos novos padrões de consumo, que em última instância, poderiam denegrir a juventude e impedir a concretização de futuros adultos responsáveis e ―mães de famílias dignas‖. O modelo jovem disciplinado, aquele próximo dos preceitos da Igreja e da família, defendido pela imprensa aberta era apresentado como o padrão de se constituir sujeito jovem. Era representativo da tradição familiar centrada na disciplina, no bom comportamento, na honra e no trabalho. Esse arquétipo analítico, longe de representar um quadro rígido, foi apenas uma das formas de constituição de sujeitos juvenis nos anos em estudo. Vale ressaltar ainda que esse, assim como os demais utilizados ao longo do capitulo, são quadros de referência e aproximações do real. Segundo o discurso eclesiástico, a amplitude do cinema, somada à propagação de filmes considerados impróprios, poderiam levar a sociedade a comportamentos que tendessem à violência, à perversão e ao desregramento da vida, sobretudo, na juventude, faixa etária em que o indivíduo passa pela formação do seu caráter. O que fica patente nesse período é a construção de discursos que reiteram essa perspectiva e que se apoiam no tripé Estado, trabalho e família na tentativa de disciplinar os jovens, promovendo uma formação em que tenha por objetivo: [...] lutar por um mundo melhor. E não é possível termos um mundo melhor sem lutarmos pelo bem estar físico, moral e espiritual do próximo, seja ele quem for. Assim, se enviamos às cidades do interior alguns jovens para cuidarem da promoção moral e espiritual da juventude com um apostolado bem interessante, por outro lado enviamos também aos bairros pobres de nossa capital outros jovens que irão ajudar a construir ou reconstruir casebres para os pobres [...].[Grifos nossos] (JOVENS e jovens. O Estado do Piauí. Teresina, 7 abr. 1972).

Os objetivos da implantação da disciplina Moral e Civismo descritos no decreto lei nº 869, de 12 de setembro de 1969 também direcionava-se nesse sentido, uma vez que defendia: a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana; d) a culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história; e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade;

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f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sóciopolítico- econômica do País; g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem comum; h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade. (BRASIL, 1969).

A partir dos parâmetros estabelecidos no decreto, a educação deveria priorizar ―o espírito religioso, as tradições, e o aprimoramento do caráter.‖ A reforma do ensino efetivada pelos militares propôs um modelo de socialização, que tinha como estratégia educar as crianças e os jovens nos valores e no universo moral conformando o comportamento e o vínculo familiar. Essa disciplina deveria ser ―ministrada com a apropriação e adequação em todos os graus e ramos de escolarização [...] em todas as atividades escolares, inclusive quanto ao desenvolvimento de movimentos de juventude, estudos de problemas brasileiros, atos cívicos, promoções extra-classe e orientações dos pais.‖ (EDUCAÇÃO moral e cívica é obrigatória. O Estado de São Paulo. São Paulo, 17 set. 1969). A institucionalização da disciplina de Moral e Civismo pelos militares procurou construir um ideário patriótico, baseado nos valores da moral, da família, da religião/fé e da defesa da pátria nos jovens e crianças. O tema da sexualidade juvenil se faz largamente presente nas discussões do período, na imprensa, sobretudo, revelando o tenso processo de remodelamento social, ligado, em particular, ao usufruto do corpo feminino, assim como o apelo à sexualidade em variadas áreas: propagandas, cinema e imprensa. Em 1969, a revista Realidade publicou uma série de reportagens sobre a intitulada ―escalada sexual‖ em cujo texto inicial expõe: Um anúncio de suco de tomate até pode ser erótico: aparentemente, não. Mas a publicidade descobriu que um apelo diferente baseado no sexo, ajuda a vender tanto suco de tomate como lençóis, máquinas de lavar ou cigarros, cuja promoção se faz na mesma linha. É que a propaganda tem de acompanhar a onda: no cinema, na televisão, no teatro, na literatura, o sexo cada vez mais domina soberano. (ESCALADA sexual. Realidade. São Paulo, out.1969.)

Essa tematização pode ser associada a rearranjos nos processos de ordem moral, como o enfraquecimento de normas religiosas, de ordem científica, pois as descobertas de produtos tecnológicos e de medicamentos anticoncepcionais reformularam as relações sociais no nível da subjetivação do corpo e da sexualidade e ainda de ordem econômica, quanto às novas relações impostas pela sociedade de consumo. Os grandes veículos de comunicação preocupam-se em discutir os remodelamentos sociais que se processavam, destacando a necessidade de olhos vigilantes no sentido da manutenção dos valores sociais já arraigados. As pesquisas apontam que, durante a década de 1970, foram efetuadas significativas transformações em relação aos anos anteriores no que se refere à moda, ao consumo e ao comportamento juvenis. Tais fatores de transformação nos modos de se vestir e comportar denotam também mudanças relacionadas à sexualidade. No período posterior à década de 1960, a moda promoveu a erotização dos corpos, em especial do corpo feminino, processo que ganhou destaque no âmbito social e no conjunto de discursos que visavam interditar essas práticas, revelando a tensão em torno desses processos, como mostra a reportagem abaixo: Padre Arruda Câmara aguarda apenas o momento oportuno para juntar uns votos e enterrar nos arquivos do Congresso Nacional o projeto de lei que torna obrigatória a educação sexual nas escolas. [...] Defendendo a educação sexual nas escolas está uma mulher loura, Júlia Steinbruch, deputada pelo MDB fluminense [...] afirma que os hippies e os homossexuais existem porque não tiveram educação sexual na infância. Com estes argumentos conseguiu que a Comissão de Justiça aprovasse o projeto de sua autoria. Mas terá ainda que vencer vários obstáculos para transformar seu sonho em realidade. [...] Entre os dois extremos se coloca Roberto Magalhães, 35 anos, Secretário da Educação de Pernambuco. Depois de ter consultado as professoras de seu Estado, que foram contra Roberto decidiu que em matéria de educação sexual, o melhor caminho é o silêncio. [...] Depois de ouvir o Conselho de Educação, o Secretário deu razão aos pais e proibiu

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as professoras de continuarem falando de sexo aos alunos. (EDUCAÇÃO. Veja, São Paulo, 18 set. 1968).

A educação sexual dividia opiniões, sua efetivação ou seu silêncio se justificavam pela possibilidade de aviltamento da juventude, gerando o descaminho e o risco de prática recorrente. No âmbito educacional mais geral, destaca-se a implantação e obrigatoriedade do ensino de Educação Moral e Cívica, estabelecida através do Decreto-lei nº 869, de 12 de setembro de 1969, antigos livros didáticos foram reestruturados e novos livros didáticos foram publicados a partir de 1970. Em alguns momentos chegou a ser ministrada como disciplina, em outros permaneceu como orientação pedagógica das escolas, permeando todas as disciplinas escolares. Um fator de mudanças no comportamento da mulher foi a pílula anticoncepcional, entretanto, ela não atingia todas as classes sociais. Havia, contra a pílula, o temor dos efeitos colaterais, ainda não totalmente conhecidos, e o preconceito, pois podia servir de instrumento de promiscuidade. O medo, a desinformação e a religiosidade foram alguns dos obstáculos à propagação da educação sexual e ao uso da pílula no Brasil. A reportagem abaixo discute um dos possíveis efeitos do uso de anticoncepcionais questionando se: Pílula não causa câncer A declaração do professor é decorrente de notícias procedentes nos Estados Unidos, segundo as quais cobaias inoculadas com anticoncepcionais teriam morrido em consequência de câncer uterino. Já o ginecologista Campos da Paz, uma das maiores autoridades neste campo da medicina, afirma que a experiência norte-americana é prova de que os seres humanos são bem diferentes das cobaias. E prossegue: Há mais de dez anos, vinte milhões de mulheres tomam pílula anticoncepcionais e não se registrou, até agora, nenhum aumento de morte por incidência do câncer uterino na população feminina. Reserva Outros médicos consultados a respeito das experiências dos cientistas americanos, mostraramse reservados quanto às consequências do uso dos anticoncepcionais. Afirmam que elas ainda estão na primeira fase e que nada indica haver perfeita identificação do seu uso. Para esses médicos, a pílula anticoncepcional torna-se prejudicial no organismo da mulher, quando é tomada em demasia e sem atender em hipótese alguma às necessidades do momento. (PÍLULA não causa câncer. O Dia. Teresina, 3 abr. 1969).

Os assuntos relacionados à prática sexual eram uma pauta polêmica que apontava para mudanças nas ações juvenis. Em meio à intensa discussão na imprensa, diante de uma possível revolução sexual, o que as fontes apresentam é a coexistência de posturas de conflito e de contradição, pois ao mesmo tempo em que algumas mulheres desafiam a opinião pública expondo seu corpo, seu desejo, sua feminilidade, outras se preocupavam em mascarar as suas experiências sexuais, ou reafirmar o não alinhamento a esse tipo de prática. A tensão social entre os novos remodelamentos e usos do corpo empreendidos nessa época era muito frequente. Os corpos estavam em intensa transformação, desnudaram-se e encontraram diversas maneiras de estar no mundo, sendo emblemáticos na transformação nos costumes e principalmente na moda. O que se vivia nesse período era o contraponto entre novos remodelamentos comportamentais e a permanência de comportamentos ligados à família tradicional. Essa tensão faz parte de um espectro maior de mudança nas próprias estruturas de pensar e subjetivar o corpo e o espaço. Práticas desviantes: construções subjetivas da juventude teresinense dos anos 70. As alterações nos horizontes femininos transformaram, no curso dos anos 70, os limites de suas práticas. Segundo Rolnik, é possível observar nesses anos as mulheres ―se desterritorializando do lar, do ninho, da família‖ (ROLNIK, 2006. p.88) conquistando gradativamente espaços públicos. As alterações de cunho econômico, que processadas no período e nas décadas que o antecederam, como a melhoria do nível de vida e poder de consumo das famílias de classe média, possibilitaram a aumento da escolarização feminina, no nível individual e coletivo, e a posterior ocupação profissional. No bojo desse processo e ressalvando as

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descontinuidades que marcam os processo históricos, ao abdicarem da vida apenas doméstica, as mulheres entraram em contato com o afluxo de novidades nas esferas do consumo, da moda e do comportamento. Em contrapartida às iniciativas da Igreja e do Estado, são localizados também discursos na imprensa que pensam a necessidade da gestação de um homem novo, que negue ou redimensione os padrões de comportamento e de controle de então e que se construa com grau de liberdade diante das instituições como a Igreja e o trabalho. A matéria, escrita por Luís Sarmento e publicada na revista Cirandinha aponta que: O caráter de cada um de nós está fundamentalmente impregnado de informações que, no correr da vida, recebemos tanto da escola, igreja, família, quanto dos meios de comunicação e dos que estão ao nosso redor. E que nós mesmos estamos colaborando para a manutenção da moral atual [...] Tomar consciência da irracionalidade de falsas verdades atuais, e alterar o seu, o meu próprio comportamento. Na busca de um ser humano emocionável, lúcido, saudável, autônomo e vivo. [...] A necessidade de refletir sobre um homem novo[...] As verdades atuais devem ser pensadas. Para deixar de ser verdade o preconceito, o moralismo, o basicamente falso. Tudo o que a Igreja Católica nos ensinou foi verdade tanto tempo? O prazer gera o pecado. O pecado a gerar o castigo. O castigo a gerar o sentimento de culpa. O sentimento de culpa a gerar a submissão. Sentir prazer? É pecado! Namoro, sonho, raiva, beijos? Pecados! Veniais ou mortais, do tamanho da culpa. Sentimentos e sensações suprimidos pelo medo, durante toda a vida. (SARMENTO, Luís. Reflexões sobre o homem novo. Cirandinha. Teresina, jul. 1984).

Intimamente relacionada às novidades de consumo em nível mundial, a chegada de novos artigos culturais nos lares teresinenses causava alterações percebidas, principalmente, se reduzida a escala de análise. Foi no plano microscópico,4 que foram engendradas as novas experiências e sensibilidades juvenis, reveladoras de uma juventude ansiosa pelo novo, e das remodelações de consumo dessa época, que ganha contorno de tensão na cidade. Luís Sarmento coloca em xeque as verdades apregoadas pela Igreja Católica e aceitas acriticamente pela sociedade, destacando que o homem novo seria aquele que não se sujeitaria e que consideraria que: Atrás do preconceito, do moralismo está o ser vivo. [...] alterar nosso mundo e ampliá-lo. E as verdades que fazemos hoje? [...] Com certeza a revolução pessoal envelhecerá se as raízes não forem postas à mostra: exercitar o pensamento, refletir sobre os desejos expressos pelos que estão ao nosso redor. Não tentar moldar crianças e jovens às nossas verdades atuais, tão duvidosas. É gastar muita energia para nada, é entortar o que cresce, é torná-los semelhantes a nós, no que temos de pior. Não é revolução: é manutenção da moral paralisadora. (SARMENTO, Luís. Reflexões sobre o homem novo. Cirandinha. Teresina, jul. 1984).

Desse modo, muitas discussões sobre as mudanças comportamentais e os padrões de referências morais e religiosas são colocadas à prova nessa década. Pois o homem dos anos 70 deveria ser renovado e ter novos padrões de referência que não apenas a religião cristã católica. A imprensa alternativa do período, palco de opiniões de fração da juventude teresinense que se distanciava dos modelos disciplinados de juventude, mostrou o outro ao jovem normatizado pelo discurso religioso. Segundo Edmar Oliveira: A história da falência do reino unido de Deus salpica de confetes a crença dos fiéis. E os infiéis?Ah, nesses coitados, berram coisas profanas enchendo a televisão nos comerciais de refrigerantes. O batuque nas latas de cerveja trovam hinos cantando aleluia [...]Contando que se conte contas de terço no patamar da igreja, a alma vai pro céu. Que o corpo ganhe o inferno, se a alma está salva. 4

A dimensão microscópica das ações humanas já foi discutida por alguns autores, destacando-se Michel de Certeau, Michel Foucault, Félix Guatarri e Suely Rolnik. Para os dois últimos, a micropolítica, antes de tudo, repousa sobre uma concepção singular do corpo e do desejo. Um corpo não se restringe a um organismo. Ao contrário, micro é a política do plano gerado pela linha dos afetos, primeiro movimento do desejo. Assim, a micropolítica refere-se à f o r ç a d o q u e acontece na política do desejo, da subjetividade e da relação direta com o outro. Conjectura-se que uma silenciosa revolução molecular tomava corpo no discurso e mais ainda nos gestos e nas atitudes durante os anos 70, esboçando o desinvestimento de uma política de subjetivação. Cf. GUATARRI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolíticas: cartografia do desejo. Petrópolis: Vozes, 2011. 251 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Vovó me ensinou as histórias dos castigos de Deus. Pra vovó, tudo só acontece se Deus quiser. Eu é porque sou desobediente. As vezes faço coisas que nem Deus quer. [...] Assim como as igrejas só existem nas praças, A fé só existe no altar. No patamar a missa acaba. [...] pecado é a coisa mais feia que existe. [...] E a ciência? Ah, essa é pregada pelos infiéis em oposição à fé. [...] confesso minhas culpas pela fé da minha avó. [Grifos nossos] (OLIVEIRA, Edmar. Vinho do meu sangue (ou Drácula tinha razão). A Hora Fa-tal. Teresina, jun. 1972).

O apego à religião é associado a uma experiência caduca, ensinada pelos avós. O tom de ironia que rege a matéria é antecedido pela constatação da ―falência do reino do céu‖, onde o medo do pecado e do inferno cede lugar à desobediência. Outro ponto nevrálgico na discussão acerca do discurso religioso se localiza no avanço da ciência e da técnica, que passa a guiar cada vez mais as práticas do período. Teresina se constituiu nos anos 70 através da dialética entre o provincianismo, que marcava parte significativa da população, e a busca pelo novo e pelo ―experimentar‖, sobretudo se focarmos o olhar na fração juvenil aqui estudada. Essa busca encontrava panópticos nos valores socialmente enraizados, configurando na cidade pontos de descontinuidades e transformações no viver cotidiano. Os jovens passam a ter espaço nos vários discursos que ecoavam na cidade, projetados sob o sentimento de medo quanto às transformações de valores que se observam nos ideais juvenis. Essas formas de construção de subjetividades de parcela da juventude, quando correlacionadas à busca intensa pela manutenção dos aspectos tradicionais da sociedade teresinense revelam o intenso conflito acerca do comportamento e da manutenção de uma sociedade composta de pares. Os discursos de interdição da sexualidade feminina tentavam dar continuidade ao modelo hegemônico e socialmente aceito de ser mulher. Entretanto, nesse período coexistem múltiplas vivências das jovens da capital. Se, por um lado, há a reafirmação dos papéis de mãe-esposa, há também o experienciar de outras possibilidades que se relacionam com os remodelamentos sociais, a modernização da cidade e ao acesso, ainda que restrito, das mulheres à escolaridade em níveis mais elevados, ainda que as famílias priorizassem a educação dos filhos, o que limitava o ingresso feminino no ensino superior. A gradativa ocupação da mulher nos espaços públicos ensejou mudanças nas perspectivas dos valores femininos. Entretanto, processos como esse guardam em si uma dialética de permanências e mudanças. Na medida em que se observam mudanças moleculares no comportamento das mulheres, sobretudo as jovens, observa-se também a tentativa de manutenção das práticas já arraigadas socialmente e, em alguns casos, o descompasso entre os discursos de modernização do comportamento feminino e a sua prática efetiva. As possibilidades de rearranjos comportamentais protagonizadas pelas mulheres jovens permitiram, novas configurações para a vivência feminina. Gradualmente, as mulheres passam a vivenciar de forma mais livre o espaço público. Entretanto, o acesso feminino a diferentes espaços da cidade gerava práticas distintas das que os teresinenses estavam acostumados, revelando um descompasso com a moral tradicional que associa a imagem da mulher àquela que deve se doar ao matrimônio e à maternidade, como fica evidente na entrevista de Claudete Dias: O casamento nunca representou realização para mim! Eu sempre vi nos casamentos na minha vida, desde o casamento de meus pais até o casamento do meu avô com a minha avó, eu sempre vi casamentos mal estruturados. [...] assim, eu formei a visão de casamento e acho que existe um modelo falido. [...] Para mim o casamento era uma coisa que não fazia parte da minha vida afetiva. [Grifos nossos] (DIAS, apud CARDOSO. 2012.)

A gestação de modelos femininos como o descrito por Claudete Dias foi permeada por conflitos e desterritorializações, durante os anos 70, sobretudo se considerar o valor concedido à contenção sexual da mulher até o casamento, nesse sentido era necessário instruir e ensinar as meninas se autorregularem frente às experiências relativas ao namoro e ao sexo. Segundo Cecília Mendes, ―as moças temiam se entregar, eu acho que pelo medo de não serem aceitas. Porque realmente a virgindade era um ponto que era valorizado.‖ (DIAS, apud CARDOSO. 2012).

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As marcas indesejadas pela sociedade mais conservadora começam a se fazer presentes em novas subjetivações comportamentais juvenis emergentes na capital. O modo hippie de ser jovem, uma das formas mais radicalizadas de empreendimento comportamental, representa o inconformismo com todas as formas de organização políticas e hierarquizadas, em destaque a família e o Estado. As práticas de morar, se vestir, de não trabalhar e de conviver empreendidas pelos hippies eram geradoras de medo ao ponto em que colocavam em dúvida as certezas quanto a manutenção do status quo construída na experiência informada pelos movimentos juvenis ocidentais, como o movimento hippie. Para esses jovens significou uma atitude politizada com o intuito de se colocar ―fora do sistema‖, e uma construção subjetiva no anti-modelo, no contraponto ao hegemônico. A convivência dos jovens aqui em estudo com alguns modelos alternativos mais radicalizados, como o hippie, exerce influências em suas marcações identitárias. Nessa perspectiva, era necessário segregar estes anti-modelos juvenis com vistas à manutenção de uma sociedade compostas por pares. Essa forma de subjetivar-se encontrava na sociedade disciplinar uma tentativa de separação do convívio social e de criação de fronteiras intransponíveis entre o que seria normal e o que seria anormal. Em Teresina, hippie era caso de polícia. Para tanto, foi realizada uma campanha contra a ―ameaça‖ hippie na capital, onde o capitão do DOPS Astrogildo Sampaio: [...] prendeu quatro ‗hippies‘ e em poder deles apreendeu cerca de um quilo de maconha que eles dizem haver adquirido dos índios no Maranhão. Os ‗hippies‘ são Antonio Tadeu Lima Cavalcanti, Sílvio de Sousa, João Batista Alves e Rubens Neves da Costa, os quais vão ter as malenas cortadas

pelo barbeiro da Polícia. Aliás, é pensamento do capitão Astrogildo prender, cortar o cabelo e deportar do Piauí todo ‗hippie‘ que aqui chegar. [Grifos nossos] (POLÍCIA quer cortar cabelo de ―hippies‖. A Hora. Teresina, 13 jun. 1972.)

Essas remodelações nos viveres juvenis, revelados, sobretudo através das novas práticas culturais, começaram a estabelecer momentos de descontinuidades e transformações no cotidiano da cidade. Muitas práticas sociais tradicionais foram redefinidas por meio de ações microscópicas que passaram a se contrapor aos padrões comportamentais socialmente definidos, ensejando novas condições de existir na Teresina dos anos 70. As novas construções subjetivas juvenis em Teresina revelam uma fuga do panóptico e foram representadas com desconfiança, pois se configuraram de forma contrária à moral defendida pelas instituições como a escola, a Igreja e a família. Teresina se constituiu nos anos 70 através da dialética entre o provincianismo, que marcava parte significativa da população, e a busca pelo novo e pelo ―experimentar‖, sobretudo se focarmos o olhar na fração juvenil aqui estudada. Essa busca encontrava panópticos nos valores socialmente enraizados, configurando na cidade pontos de descontinuidades e transformações no viver cotidiano. Os jovens passam a ter espaço nos vários discursos que ecoavam na cidade, projetados sob o sentimento de medo quanto às transformações de valores que se observam nos ideais juvenis. Essas formas de construção de subjetividades de parcela da juventude, quando correlacionadas à busca intensa pela manutenção dos aspectos tradicionais da sociedade teresinense revelam o intenso conflito acerca do comportamento e da manutenção de uma sociedade composta de pares. Referências BRASIL, Decreto-lei nº 869, de12 de setembro de 1969, que dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/ ListaPublicacoes.action?id=195811>. Acessado em: 13 set. 2014. CARDOSO, Elisângela Barbosa. Múltiplas e singulares: história e memória de estudantes universitárias em Teresina (1930 – 1970). Teresina: EDUFPI, 2012. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

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FILGUEIRAS, Juliana Miranda. O livro didático de Educação Moral e Cívica na ditadura de 1964: a construção de uma disciplina. Monografia apresentada a Universidade Católica de São Paulo em 2009. Disponível em: <http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/ arquivos/302JulianaMirandaFilgueiras.pdf. > Acessado em: 28 maio 2014. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. GUATARRI, Felix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 8 Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. PATRIOTA, Rosângela. História – Performance – Poesia: Jim Morrinson, o xamã da década de 1960. In: Fênix – Revista de História e estudos culturais. Uberlândia, v. 2 n. 3, jul-set. 2005. QUEIROZ, Teresinha. Do singular ao plural. Recife: Bagaço, 2006. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2006.

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O REINADO DE ELIZABETH I E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A TRANSFORMAÇÃO DA INGLATERRA EM UMA GRANDE 1

POTÊNCIA

Samara Carolina Sousa Nascimento2 Kelly Sales Oliveira3 Renata Cristina da Cunha4 RESUMO Por meio de pesquisa bibliográfica e histórica, este artigo visa buscar o entendimento acerca da impactante relação que a rainha inglesa Elizabeth I (1558-1603) teve na história e na transformação da Inglaterra em um grande e poderoso império. Elizabeth I ―A rainha virgem‖ possuiu um famoso e bemsucedido reinado e foi a última rainha da Dinastia Tudor. Dentre as maiores contribuições do seu governo está a descoberta do que vinha a ser a América. Dessa forma o objetivo deste artigo se encontra no intuito de fazer um relato histórico sobre um dos períodos mais prósperos e de uma das rainhas mais importantes e influentes da história da Inglaterra. Elizabeth transcendeu a sua coroa e se tornou uma das mulheres mais importantes e poderosa de todos os tempos. A metodologia utilizada nesse trabalho foi estabelecida por meio das reflexões inicias, explanação historiográfica e bibliográfica do tema, trazendo por último as reflexões finais acerca de todo o trabalho Palavras-chave: Elizabeth I; Inglaterra; Reinado

Introdução

C

omo se tem conhecimento Elizabeth I (a Rainha virgem) é considerada uma das figuras mais emblemáticas e notáveis da história da Inglaterra. Seu reinado ficou conhecido como a Era de Ouro e durou quarenta e cinco anos e de acordo com Hart (2008) foi um período marcado pela prosperidade econômica, por grande florescimento literário e o florescimento do teatro elisabetano além da ascensão da Inglaterra ao posto de maior potência naval e política da época. Graças a força e poder de Elizabeth I que a Inglaterra se tornou uma nação forte e independente fazendo que sua fama e poder de rainha ultrapassasse as páginas dos livros se mantendo viva na história e na memória das pessoas até os dias de hoje. Sua vida e seu reinado foram celebrados por escritores, poetas, dramaturgos e adaptados diversas vezes para as telas dos cinemas, teatro e televisão servindo assim de inspiração para muitos. Sendo assim o presente artigo analisa a trajetória histórica do reinado da rainha Elizabeth I (15581603) apresentando uma breve abordagem sobre sua vida, mostrando sua infância e enfatizando as figuras de seus pais Henry VIII e Anne Boleyn. Observamos que a Era de Ouro na Inglaterra foi uma época em que se viu o nascimento de Shakespeare, a derrota da Armada Espanhola, o aumento da riqueza e seu poderio além de aventureiros marítimos que descobririam o Mundo Novo e tudo isso se deve diretamente a figura emblemática de Elizabeth. Esta pesquisa foi de cunho bibliográfico, sendo que as considerações feitas são embasadas e baseadas em fontes existentes de pesquisas e diversos autores. Devo destacar que o interesse pelo tema

1

Artigo acadêmico elaborado dentro da disciplina de Cultura dos Povos do curso de Licenciatura Plena em Letras Inglês da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). 2 Graduanda de Licenciatura Plena em Letras Inglês da Universidade Estadual do Piauí, (UESPI), Campus Alexandre Alves de Oliveira. Email: sam2sousa@gmail.com. 3 Graduanda de Licenciatura Plena em Letras Inglês da Universidade Estadual do Piauí, (UESPI), Campus Alexandre Alves de Oliveira. Email: thekellysalles@gmail.com 4 Doutora em Educação (UfsCar), Mestra em Educação (UFPI), professora auxiliar da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) desde 2003 e da Faculdade Piauiense (FAP) desde 2005 e orientadora do presente artigo. E-mail: renatasandys@hotmail.com 255 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


surgiu devido as aulas de Cultura dos Povos do curso de Letras Inglês e a pesquisas prévias sobre esta incrível e emblemática mulher que tanto contribuiu para a formação de uma nova e poderosa Inglaterra. Elizabeth I: juventude Em 45 anos de reinado, Elizabeth I forneceu a Inglaterra força e poder necessário para se tornar a maior potência política, comercial e cultural do mundo no século XVI. Por ter vivido em uma época cujo poder monárquico não era apenas decorativo – teve que tomar todas as principais decisões de seu governo, ela tem com justiça grande parte dos créditos pelas conquistas e poder da Inglaterra. Elizabeth I nasceu em 1533, em Greenwich. Seu pai era o rei Henry VIII, que liderou a reforma religiosa na Inglaterra e fundou a Igreja Anglicana após o divórcio de sua primeira esposa Catherine de Aragon, para poder se casar com a sua amante Anne Boleyn que viria a ser a mãe de Elizabeth. Seu nascimento foi possivelmente o maior desapontamento da vida de seu pai. Henry queria um filho homem e herdeiro para sucedê-lo já que ele tinha uma filha, Maria, de sua primeira esposa, desapontado por não Anne não ter lhe dado um príncipe, ele foi forçado a romper definitivamente com Roma e a declarar a independência da Igreja Anglicana. Posteriormente Henry VIII se casou mais quatro vezes gerando mais dois herdeiros além de Elizabeth e Maria. Tendo em vista esses acontecimentos os primeiros anos da vida de Elizabeth foram consequentemente perturbados. De acordo com Hardy – Gould (2000) Anne Boleyn não conseguiu fornecer ao rei um filho homem e foi executada em acusações falsas de incesto e adultério em 19 de maio de 1536, alguns meses depois o parlamento declarou Elizabeth filha ilegítima a privando de seu lugar na linha de sucessão ao trono. De acordo com Hart (2008, pg.258) ― essa era a opinião da maioria dos católicos ingleses, que não consideravam legal o divórcio entre Henrique e sua primeira mulher‖. Apesar dessa questão parlamentar, a garota foi criada na casa real e recebeu uma excelente e distinta educação. Henry VIII morreu em 1547, quando Elizabeth tinha apenas 13 anos de idade. Os dois soberanos que antecederam o governo de Elizabeth não obtiveram muito sucesso. Edward VI, seu meio irmão reinou de 1547 a 1553, morrendo ainda jovem de uma grave doença. Rainha Mary I o sucedeu, casou-se com Felipe II, rei da Espanha, em 1554, seu governo durou cinco anos e foi muito infeliz por ser marcado pela perseguição aos protestantes o que lhe rendeu o apelido de (‗Bloody Mary‘ – Mary, a sanguinária) e pela insatisfação dos ingleses por sua aliança com a Espanha. Até mesmo Elizabeth foi mantida em cativeiro na Torre de Londres à mando de Mary porque ela acreditava que sua irmã queria roubar a sua coroa com isso sua vida se manteve em perigo durante muito tempo. De acordo com Silveira (2013) ―durante o reinado de Maria, Elizabeth adquirira uma agudeza política que lhe seria útil para o resto da vida‖ e quando Mary I morreu em 1558, sem deixar herdeiros. O partido católico voltou a empunhar seus argumentos sobre a ilegitimidade da herdeira e apoiava as pretensões de Mary Stuart da Escócia. No entanto, os erros do reinado anterior e a indiferença conhecida de Elizabeth sobre a controvérsia religiosa acabou sendo prontamente aceita tanto pelos protestantes como pela maioria dos católicos. Elizabeth foi coroada rainha da Inglaterra aos 25 anos já sabendo como seria complicado contemporizar e administrar seus recursos e sua vida. Conforme Maurois (1965, p. 264), ―desde a conquista normanda, nenhum soberano havia sido de sangue tão puramente inglês como ela. Por seu pai, Elizabeth descendia de reis tradicionais; por sua mãe, dum fidalgo do país‖. Começo do reinado Elisabeth tinha 25 anos de idade quando sucedeu à sua meia-irmã ao trono da Inglaterra, no dia 17 de novembro de 1558. Conforme Churchill (1960), a jovem rainha teve que enfrentar muitos problemas no começo de seu reinado, como a situação tensa com a Espanha que era uma suposta aliada mas mantinha espiões e aguardava o momento certo para atacar e a Escócia que cultivava velhos rancores da Inglaterra e seus soberanos e mandava exércitos saqueadores e que tinha constantes rebeliões; juntando o péssimo momento 256 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


político e financeiro com a grave divisão religiosa na Inglaterra entre católicos e protestantes uma grande instabilidade esperava por Elizabeth. A situação era bastante complicada devido: A rainha pobre, o reino exaurido, a nobreza pobre e decaída. Falta de bons capitães e soldados. O povo fora de ordem. A justiça não executada. Todas as coisas caras. Divisões internas. Guerras com a França e Escócia. Inimizades estáveis (ALLAN, 1996, p. 63).

Mas apesar de sua pouca experiência e de todos os conflitos Elizabeth conseguiu manejar alguns problemas com a ajuda de seus capazes e confiáveis conselheiros e ministros, muitos dos quais ficaram com ela a maior parte dos seus 45 anos de reinado como sir William Cecil5 que manteve a confiança de Elizabeth por quarenta anos e quando faleceu seu posto de conselheiro foi ocupado por seu filho. Assim a rainha conseguiu propor leis como o ato de supremacia e uniformidade (1559) que estabeleceu o anglicanismo como a religião oficial da Inglaterra, mas que manteve certas cerimônias católicas fazendo um equilíbrio entre a reforma protestante e a tradição católica. Apesar desse ato nem todos ficaram satisfeitos como por exemplo os puritanos6 que desempenharam um papel muito importante na História da Inglaterra, eles queriam que a reforma fosse mais radical, desafiando muitas vezes a autoridade política da rainha. Elizabeth enfrentou os católicos do exterior e os ataques interno dos Puritanos. Segundo Hart (2008) a situação religiosa se tornou mais complicada devido a influência da rainha Escocesa Mary Stuart, que era católica e também tinha chance de ser tornar rainha depois de Elizabeth I, em caso dela não viesse a gerar herdeiros com isso a sobrevivência do protestantismo e a permanência no poder de Elizabeth na Inglaterra era ameaçada constantemente por sua presença. Segundo Hart (2008, p.259) ― Isso significava que, no caso de uma rebelião bem-sucedida ou a morte de Elizabeth, a Inglaterra teria uma rainha católica de novo‖. Conforme Churchill (1960) durante os dezenoves anos em que Mary ficou encarcerada à mando de Elizabeth, houve muitos complôs e atentados contra a rainha, muitos desses atentados eram formulados com a ajuda da igreja católica, em 1570, o Papa Pio V emitiu uma bula papal excomungando Elizabeth e isentando seus súditos de obedecê-la. O papa seguinte, Gregório XIII, foi ainda mais longe, dizendo que não seria pecado invadir a Inglaterra e remover a rainha à força. Havendo provas de que Mary era cúmplice desses e outros atos contra a rainha, ela finalmente foi decapitada em 1587. Elizabeth assinou a sentença de morte contra sua vontade, mas seus ministros e parlamentares aprovaram a execução. A Europa católica ficou furiosa, especialmente Filipe II da Espanha. A armada espanhola Segundo Hart (2008, p. 259) ― Elizabeth tentou evitar a guerra, mas, devido ao caráter militante do catolicismo do Estado espanhol no século XVI, a luta entre a Espanha e a Inglaterra protestante era provavelmente inevitável‖. Filipe II da Espanha, havia tentado manter a predominância católica na Inglaterra ao propor Elizabeth em casamento quando ela se tornou rainha, mas ela recusou. Por anos, corsários ingleses saqueavam portos e navios espanhóis desafiado a sua supremacia colonial. Num ato de provocação, Elizabeth apoiou os esforços dos ―Países Baixos Espanhóis‖, que consistia no que hoje é a Holanda e Bélgica, eles eram na sua maioria protestantes e os ingleses haviam os ajudado a se libertar do domínio espanhol e católico, esse ato complicou ainda mais a situação entre os dois países. Mary I, também acreditava que era por direito Rainha da Inglaterra e que se ela conseguisse chegar ao poder Filipe 5

William Cecil (Lorde Burghley), filho de um yeoman enriquecido pela distribuição dos bens conventuais, fundou uma família que, como os Russell e os Cavendish, estaria ligada até a época atual ao governo do país. De acordo com Maurois (1965), embora todos estejam de acordo quanto à inteligência de Cecil e todas as testemunhas o confirmem, Macauley censura-o por ter sido mais da natureza do salgueiro do que da do carvalho. ―Prestava a mesma atenção aos interesses do Estado que aos da própria família. 6 Os Puritanos foram um fenômeno peculiarmente inglês, protestantes radicais eram incluídos exatamente no mesmo quadro punitivo que os católicos, e eles, eventualmente, se tornaram muito mais violentos e perturbadores do que estes últimos (HELIODORA, 1978, p. 54). 257 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


deveria conquistar o trono inglês após sua morte. De acordo com Hart (2008) estes foram os principais motivos para a Espanha de Filipe II, atacar a Inglaterra. Quando a guerra com a Espanha finalmente começou, na década de 1580, a soberana pode contar com o total apoio dos ingleses. Com o decorrer do tempo, Elizabeth ampliou consideravelmente a marinha de guerra inglesa, no entanto o rei Felipe II organizou rapidamente uma grande esquadra, a Armada espanhola e sua tarefa era derrubar a Inglaterra protestante, governada por Elizabeth I. A armada tinha tantos navios quanto a esquadra inglesa, mas a Inglaterra dispunha de maior poder de fogo. Uma grande batalha naval foi travada, as duas frotas trocaram tiros por toda a extensão do canal da Mancha e travaram duas batalhas menores. No entanto, a frota inglesa bloqueou qualquer chance da Armada Espanhola, que teve que recuar ao sul pelo canal inglês. Foi uma vitória incrível para os ingleses e fez de Sir Francis Drake 7, um herói mais aclamado do que já era; a batalha naval que ocorreu em 1588 terminou com a derrota da Armada Espanhola, e como consequência a Inglaterra ganhou destaque e se tornou a grande potência naval do mundo e com a derrota da Armada instilou muita confiança e liberdade nos protestantes. Teatro elisabetano O teatro elisabetano teve seu surgimento na segunda metade do século XVI ao início do século XVII. Aos poucos, contaminou a sociedade e se transformou em uma das maiores formas de expressão desse período. Segundo Heliodora (2014) ―A forma do teatro elisabetano é diferente de tudo o quanto se criou de espaço cênico antes ou depois dele‖, com isso grandes autores ingleses sugiram nesse período como Willian Shakespeare (1564-1616), poeta e maior autor dramático da literatura universal, Christopher Marlowe (15641593), escritor e dramaturgo britânico, que desenvolveram espetáculos que precisavam agradar a todos, por isso, nas peças, principalmente as de Shakespeare, é possível encontrar excertos de poemas líricos, ao lado de cenas de violência e sangue, trazendo também a fusão de comédia e tragédia formando assim um novo gênero teatral a ―Dramédia‖. Muitas peças famosas foram encenadas e escritas nesse período como: Antônio e Cleópatra, Henrique V, Romeu e Julieta dentre outras que mudaram e marcaram a literatura e teatro mundial. Além disso, Londres encheu-se de companhias teatrais que competiam entre si para atrair a preferência do grande público. Conforme frisa Ricardo Sergio (2009): Os atores eram profissionais e recitavam no meio, não diante do povo, portanto, o público não era simples espectador, mas um participante do drama. Não havia atrizes, seus papéis eram interpretados por jovens atores que assumiam um tom de voz feminino. A ausência de decoração e de "efeitos especiais" melhorava a concentração na expressão gestual, mímica e verbal dos atores. Não existiam interrupções entre um ato e outro, já que era escassa a cenografia.

De acordo com Hart (2008) p.300 ― Elizabeth certamente merece parte do crédito por esse desenvolvimento: encorajava o teatro shakespeariano contra a oposição das autoridades londrinas e dava generosos subsídios a Shakespeare‖. Nesse período, a literatura e o teatro tiveram seu ápice, com o público presenciando e aplaudindo obras cênicas de alto nível que para sempre mudariam a literatura e o teatro mundial. Os pretendentes de Elizabeth I Elizabeth, soberana com personalidade forte e única, sentia uma antipatia quase patológica pelo casamento e queria ser lembrada como a "Rainha Virgem" casada apenas com a Inglaterra. Durante grande 7

Francis Drake, foi um capitão inglês, vice-almirante do Reino da Inglaterra, corsário e um navegador famoso, e um político da era elisabetana. Elizabeth I da Inglaterra condecorou Drake como cavaleiro em 1581. Ele foi o segundo em comando da frota inglesa contra a Invencível Armada em 1588, subordinado apenas a Charles Howard e à própria rainha. Suas façanhas eram lendárias, tornando-o um herói para os ingleses, mas um pirata para os espanhóis, a quem ele era conhecido como El Draque. 258 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


parte da sua vida ela passou jogado habilmente com as inúmeras propostas que lhe atingiu das principais potências europeias, Elizabeth recusou diversas propostas de matrimonio de príncipes estrangeiros. Mais uma coisa parecia certa do ponto de vista do parlamento e de seus súditos: Elizabeth precisava se casar e gerar um herdeiro e todos estavam conscientes da grande responsabilidade que pesava sobre seus ombros, já que o casamento poderia depender de alianças internacionais da Inglaterra. Mas garantir a sucessão ao trono era uma questão delicada porque o pretendente que ela escolhesse controlaria não somente a rainha mas controlaria também a Inglaterra. Lorde Robert Dudley, ao qual mais tarde ela concedeu o título de Conde de Leicester8 era um dos pretendentes favoritos da rainha. Em todo o reino circulavam rumores da intimidade dos dois e de acordo com ALLAN, 1996, p. 66, ―monarcas estrangeiros divertiam-se com o boato de que a rainha da Inglaterra iria casar-se com seu estribeiro-mor‖ além do fato de Robert ser casado com uma mulher que estava morrendo causou um grande rebuliço na corte. Segundo Churchill (1960), Elizabeth pressentiu o perigo de se casar com o ambicioso Conde de Leicester, ao observar as reações da corte quando de sua profunda afeição por ele, já que a maioria desaprovava tal relação. Apesar de tantos pretendentes Elizabeth se recusava a casar. Em vão, reis e príncipes a cortejaram. Por diversas vezes expressara sua divergente opinião em relação ao matrimonio: ―Preferiria ser um mendigo solteiro a ser uma rainha casada‖ (ALLAN, 1996, p. 66) Elizabeth sempre levou seu dever como rainha e como chefe da Igreja muito a sério. Ela estava plenamente consciente de que qualquer assunto romântico poderia prejudicar seriamente sua credibilidade e sua honra e para o bem da Inglaterra, a rainha acabou decidindo se casar com a nação inglesa se tornado a famosa ―Rainha virgem‖9. Era de ouro A Era Elisabetana foi testemunha do surgimento de vários exploradores ingleses marítimos que se lançaram ao mar em busca de fama, riqueza e novas rotas comerciais para a China e o Extremo Oriente. Nesse período a frota mercante Inglesa foi reforçada consideravelmente e expandiu o raio de seus negócios graças ao estabelecimento de empresas comerciais patrocinados pela monarquia. Diversas viagens foram feitas para à Rússia, por Martin Frobisher e John Davis, para encontrar uma passagem para o Oriente. Segundo Hart (2008) ―Sir Francis Drake foi o primeiro capitão a realizar a circunavegação ao redor do mundo em seu próprio navio (de 1577 a 1580) aportando à costa oeste da América do Sul e do Norte‖. Outro que tentou a sorte no novo mundo foi Sir Walter Raleigh10 que era muito próximo de Elizabeth, ele patrocinou diversas tentativas de fundar colônias inglesas na América do Norte. Em honra à Rainha Virgem da Inglaterra, ele deu o nome de Virgínia ao primeiro território que havia conquistado no Novo Mundo. Embora as primeiras tentativas de colonização não obtiveram o sucesso esperado e tivesse acontecido o terrível incidente da ilha de Roanoke11, essas tentativas pavimentaram o caminho para as subsequentes colônias inglesas na América, acreditando nesse potencial, Elizabeth financiou novos empreendimentos mercantis e marítimos. Assim estava começando a fundação de um Império Britânico que alcançaria e dominaria todo o mundo. Elizabeth era sagaz e politicamente inteligente, a Inglaterra prosperou economicamente e culturalmente, seu reinado de quarenta e cinco anos, a Era Elisabetana, é considerada a época de ouro de uma 8

conde de Leicester, era filho de John Dudley, conde de Warwick. Mas apesar de ser o preferido da rainha, De acordo com Halliday (1990, p. 15), Leicester era impopular e inaceitável – suspeitava-se que tinha assassinado sua primeira mulher. 9 A Rainha Elizabeth se sentia envaidecida com os madrigais; gostava que lhe chamassem rainha das fadas ou Gloriana. E com o resultado de sua aversão ao matrimônio, ela passou a ser chamada de ‗Rainha Virgem‘. Embora seja claro que ela nunca se casou, seu status como virgem é de uma dúvida considerável. 10 Walter Raleigh foi um escritor, cortesão e navegador inglês nascido cerca de 1554 e falecido em 1618. Era o favorito da rainha Elizabeth I, que o armou cavaleiro em 1585. A sua grande ambição levou-o a explorar os territórios ingleses das Américas. 11 A Colônia de Roanoke foi um empreendimento financiado e organizado por Sir Walter Raleigh em fins do século XVI para estabelecer um assentamento inglês permanente na Colônia da Virgínia. Entre 1585 e 1587, grupos de colonos foram deixados ali com este intuito, todos os quais ou abandonaram a colônia ou desapareceram. O último grupo desapareceu após um período de três anos sem suprimentos vindos da Inglaterra, o que levou ao surgimento de um mistério que perdura até os dias de hoje, conhecido como "The Lost Colony" ("A Colônia Perdida") que virou uma lenda sem explicação. 259 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


das grandes nações do mundo, foi sob seu comando que a Inglaterra emergiu e se tornou uma grande potência mundial que se seguiu por vários séculos. Conforme explica Santos (2013) Durante seu governo destacaram-se os investimentos na indústria inglesa, a expansão econômica através da Companhia das Índias e o desenvolvimento no campo das Artes e da Literatura, como as publicações dos romances de alguns autores, entre eles, William Shakespeare, Edmund Spenser e Christopher Marlowe. Com essas atitudes, a rainha inglesa inaugurou um momento áureo para a sua nação.

O fim de uma era próspera e de uma grande rainha De acordo com Hart (2008, p.261) ‖ Elizabeth era cautelosa e conservadora, tinha aversão a guerras e derramamento de sangue, mas era firme quando necessária‖. Escolheu seus ministros com muita cautela, e parte do crédito pelas realizações de seu reinado se deve ao seu fiel conselheiro William Cecil (Lorde Burghley). Elizabeth nunca se casou, consequentemente não gerou herdeiros para a sua sucessão no trono inglês apesar da insistência de seus conselheiros. Segundo Churchill (1960), ―para o bem da Inglaterra, a rainha acabou decidindo se casar com a nação inglesa‖ e acabou ficando conhecida como a rainha virgem. Os últimos anos do reinado de Elizabeth foram conturbados, o problema de sucessão afligia o Parlamento, corte e todo o país que se preocupavam com quem iria governar a Inglaterra quando a rainha morresse além disso os conflitos com a Espanha e Irlanda aumentaram, divisões religiosas voltaram a incomodar, os impostos ficaram mais pesados e a economia foi atingida por colheitas ruins além dos altos custos das guerras, Elizabeth estava perdendo sua popularidade e prestígio. No dia 24 de março de 1603, Rainha Elizabeth I, filha de Anne Boleyn e Henry VIII, que já havia reinado por quase 45 anos, a última na dinastia Tudor, morreu no Palácio de Richmond com 69 anos deixando um legado que perdura até hoje. A Rainha passou por muitas ocorridos durante seu reinado, como: prisões, mandatos de execuções, rebeliões, grandes navegações e a exploração do novo mundo, traições, intrigas políticas, partidos sobre os possíveis herdeiros do trono, armadas e muitas outras situações que fizeram dela um marco na história do mundo. Elizabeth tinha reinado por quase 45 anos, e em uma época em que a idade máxima que se poderia esperar chegar era 35, a grande maioria da população nunca tinha conhecido outro monarca. A morte de Elizabeth foi lamentada por muitos de seus súditos, enquanto outros ficaram aliviados com sua morte. Elizabeth foi enterrada na Abadia de Westminster ao lado de sua meia-irmã Mary. A inscrição em latim da tumba, Regno consortes & urna, hic obdormimus Elizabetha et Maria sorores, in spe resurrectionis , se traduz para "Consortes em reino e tumba, aqui dormimos, Elizabeth e Mary, irmãs, na esperança de ressurreição". Um Rei escocês James I agora era o Rei da Inglaterra e consigo trouxe uma nova Dinastia a ―Stuart‖. Considerações finais Como foi visto, Elizabeth I transformou a Inglaterra em um Império mundial, forneceu ao país a mais forte marinha de guerra do mundo, desafiando seus rivais pelo domínio dos mares e da conquista do Novo Mundo, construindo as fundações do que viria ser mais tarde o Império Britânico já que o grande império alémmar foi construído depois de sua morte, seu jeito de governar era conservador e cuidadoso, mas apesar disso Elizabeth possuía a virtude e a capacidade de realizar grandes obras e mudar o curso da história. Durante seu reinado Elizabeth enfrentou intrigas palacianas, atentados, tristezas, rompeu definitivamente com a Igreja Católica e tantos outros obstáculos que transcenderam a esfera política para assim poder alcançar as diversas realizações políticas, marítimas além do desenvolvimento artístico e literário, foi durante seu governo que a grande maioria das obras shakespearianas foram escritas e produzidas. Ao recusar o casamento e produzir um herdeiro ela abdicou e dedicou totalmente sua vida a Inglaterra, se tornando uma santa na visão de seus súditos. Elizabeth I guiou a Inglaterra na reforma religiosa

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entre católicos e protestantes, venceu a armada espanhola e levou a Inglaterra a sua Era de Ouro, deixando um legado e uma marca que para sempre mudaram e influenciaram os rumos do mundo moderno. Referências ALLAN, T. História em revista. 5. ed. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: abril livros, 1996. CHURCHILL, W. História dos povos de língua inglesa: o novo mundo. São Paulo: IBRASA, 1960. HALLIDAY, F. E. Shakespeare. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. HARD – GOLD. Janet. Henry VIII and his six wifes. Oxford university press, 2000. HART. Michael. H. As 100 maiores personalidades da história. 11ed. Rio de Janeiro: editora Bertrand, 2008. HELIODORA, B. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. MAUROIS. A. História da Inglaterra. 4. ed. Trad. Carlos Domingues. Rio de Janeiro Irmãos Pongetti Editores, 1965. SANTOS, Fabricio. Elizabeth: A Era de Ouro da Inglaterra por professor Fabrício. Disponível em < http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/elizabeth-a-era-de-ouro-da-inglaterra-por-professor-fabr-cio> Acesso em 10 de fevereiro de 2017. SERGIO, Ricardo. O TEATRO ELISABETANO. Disponível em <http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/1719601> Acesso em 07 de fevereiro de 2017. SILVEIRA, José Renato Ferraz da. A Inglaterra elisabetana e os conflitos pelo poder. Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.6, n.16, p.9-23, fev-mai. 2013.

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VIOLÊNCIA CONTRA MULHER NA MÍDIA: ESTUPROS COLETIVOS EM SITES PIAUIENSES1 Michelly Santos de Carvalho2 Marciana Mineiro Viana3 Poliana de Morais Sampaio4 Tatiane Zeferino5 RESUMO Este trabalho visa fazer um mapeamento das notícias que a mídia piauiense produziu sobre a violência contra a mulher nos casos de estupro coletivo, nos sites: Meio Norte, G1-PI e 180 graus, de janeiro a dezembro 2016. Assim, observamos qual a abordagem seguida por estes meios de comunicação. Há uma naturalização da violência contra mulher? O estudo utilizou a metodologia da análise de conteúdo de Bardin (1977) e estabeleceu algumas categorias, tais como: quantidade de inserções sobre o tema; circunstância do estupro; localização do caso; entre outras. Verificamos durante a análise que todos os casos de estupro coletivo no Piauí ocorreram principalmente no interior do Estado, especialmente nas regiões sul e centrosul, locais onde predomina a lei do coronelismo e uma visão machista e patriarcal da sociedade. A partir dos relatos apresentados nas notícias notamos que os agressores e as vítimas no geral tinham a mesma faixa etária e conviviam nos mesmos espaços. As notícias analisadas habitualmente traziam um duplo entendimento ao leitor sobre a contextualização dos momentos anteriores ao estupro levando a uma culpabilização da vítima pela violência sofrida. Palavras-chave: Violência contra mulher; Estupro coletivo; Mídia; Piauí

Introdução

O

presente trabalho visa realizar um mapeamento do que a mídia piauiense produziu sobre a violência contra o sexo feminino, específicamente nos casos de estupro coletivo, em três sites: Meio Norte e G1 -PI, e 180 graus, no período de janeiro a dezembro de 2016. A temática da violência contra mulher possui uma gama de complexidades relacionadas principalmente ao predomínio de uma cultura machista derivada de uma sistema patriarcal que compõe a base das relações sociais entre homens e mulheres. Neste sentido, chamou-nos a atenção durante os estudos realizados no âmbito do Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Gênero – Lélia González, na Faculdade Adelmar Rosado, a quantidade de estupros coletivos que aconteceram no ano de 2016 e de maneira tão sequenciada. Assim, consideramos importante observar como a mídia piauiense tratou dos casos e como a abordagem dada poderia influênciar a formação de um imaginário que culpabiliza a mulher pela violência sofrida. Portanto, neste trabalho o leitor poderá acompanhar uma texto reflexivo a partir de alguns autores como: Marília Montenegro (2015) e Bruna Santos Costa e Luna Borges Santos (2012) a respeito da Lei Maria da Penha; sobre a violência violência contra mulher mulher na mídia a partir de Angela Andrade e Maria Lúcia 1

Trabalho apresentado no GT.04 - Gênero e Subjetividades do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho (Portugal), Professora da Universidade Estadual do Piauí – Picos e da Faculdade Adelmar Rosado (FAR) - Teresina. Coordenadora do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Gênero – Lélia Gonzalez (FAR). Atualmente é estudante da Pós-graduação LatuSesu em Direitos Humanos – Esperança Garcia na Faculdade Adelmar Rosado. Email: michellyscarvalho@gmail.com. 3 Estudante do 7º Período de Serviço Social na Faculdade Adelmar Rosado, bolsista PIBIC-FAR e integrante do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Gênero – Lélia Gonzalez. Email: m.m.vianasilva@gmail.com 4 Estudante do 7º Período de Serviço Social na Faculdade Adelmar Rosado, bolsista PIBIC-FAR e integrante do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Gênero – Lélia Gonzalez. Email:polychrys@hotmail.com 5 Bacharel em Serviço Social pela Faculdade Adelmar Rosado, integrante do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Gênero – Lélia Gonzalez. Email: tataty25@hotmail.com 262 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Magalhães Bosi (2003), bem como Paola Bonavitta e Jimena de Garay Hernárndez (2011); e finalmente, um levantamento e análise dos sites referidos anteriormente a respeito dos casos de estupro coletivo no ano de 2016. Vioência contra a mulher e a Lei Maria da Penha6 A Lei n. 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha, foi sancionada pelo então presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em 07 de agosto de 2006. A lei foi criada com a finalidade de punir agressores nas violências contra mulher e violência doméstica, já que há muito tempo existiam registros de violências contra o público feminino tanto no âmbito familiar quanto social. A violência contra mulher é um problema que afeta milhares de sujeitas em todas as classes sociais, em decorrência, principalmente, de uma cultura patriarcal presente nas estruturas da sociedade a qual coloca esse problema natural, cultural e histórico. Segundo Costa e Santos (2012, p. 207) o movimento de mulheres e dos grupos feministas foram muito importantes em todo o processo de elaboração e aprovação da Lei Maria da Penha através da pressão e articulação realizada junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, conseguindo com isso a materialização desse aparato legal. A referida Lei é também é designada de Maria da Penha em homenagem a uma das muitas vítimas de violência doméstica no país. A farmacêutica brasileira Maria da Penha Maia Fernandes 7 passou vários anos de sua vida conjugal sofrendo violência física e psicológica. No período, era casada com um professor universitário e economista colombiano, Marco Antônio Heredia Viveros, com quem teve três filhas. Em 1983, sofreu duas tentativas de assassinato pelo marido. Na primeira o economista disparou tiros de espingarda contra ela. Entretanto, para a polícia alegou que a casa teria sido invadida por assaltantes os quais teriam efetuado os disparos. Um dos tiros atingiu Maria da Penha e a deixou paraplégica. Após inúmeras cirurgias e quatro meses de internação, ela voltou para casa e mais uma vez o marido tentou matá-la, agora, através da eletrocução durante o banho. Depois de efetuadas as investigações a polícia concluiu que fora Marco Antônio Heredia Viveros autor do tiro que deixou Maria da Penha numa cadeira de rodas. A partir daí ela conseguiu sair de casa sob proteção policial e iniciou a batalha para condenação do agressor. A primeira condenação só veio oito anos depois do crime, em 1991. No entanto o Marco Antônio Heredia Viveros conseguiu ficar em liberdade. Maria da Penha, inconformada resolve fazer um livro no qual conta a história de todas as agressões sofridas por ela e pelas filhas, designado de ― Sobrevivi… posso contar‖ (1994). Maria da Penha enviou cópias para o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL-Brasil) e o Comitê Latino-Americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM-Brasil). Os dois organismos enviaram conjuntamente uma petição contra o Estado brasileiro, por conta da impunidade em relação à violência doméstica sofrida por Maria da Penha (caso nº 12.051). Quase vinte anos após o crime, em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, publicou um relatório no qual responsabiliza o Estado brasileiro por negligência e tolerância no que toca à violência doméstica contra as mulheres recomendando a revisão do caso de Maria da Penha (COSTA; SANTOS, 2012). No ano seguinte, faltando seis meses para a prescrição do crime, Marco Viveros foi condenado e cumpriu 1/3 da pena. Para Bruna Santos Costa e Luna Borges Santos (2012) a Lei Maria da Penha constitui inovadora em diversos aspectos. Segundo as autoras ―além das modificações do Código Penal, Código de Processo Penal e da Lei de Execuções Penais, o texto procura fugir de uma punição sistemática dos agressores e busca modificar valores sociais e institucionais.‖ (COSTA; SANTOS, 2012, p. 208). A evolução maior reside no fato de que ― (...) a 6

Este tópico retoma e atualiza o item ―Lei Maria da Penha: conquista dos movimentos feministas‖ pubicado no artigo “Violência Contra a Mulher na Mídia: Combate ou Reforço?‖ publicado nos anais do XVIII INTERCOM Nordeste – Caruaru –PE. 7 Informações retiradas do site Compromisso e Atitude. Quem é Maria da Penha Maia Fernandes. Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/quem-e-maria-da-penha-maiafernandes/>, acesso em 11 de fev. 2016. 263 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


legislação brasileira não respondia de forma satisfatória à realidade da violência de gênero, pois não protegia as mulheres de forma a garantir a dignidade e integridade enquanto seres humanos.‖ (idem, p. 209). Assim, o Art. 7º da Lei Maria da Penha tipifica as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher em: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Como foi possível observar acima o Artigo 7º evidencia cada uma das formas de violência contra a mulher da Lei. Segundo Virgínia Feix (2011) esse artigo em conjunto com os artigos 5º e 6º, constituem o núcleo conceitual e estruturante dessa Lei, pois justifica existência e finalidades da Lei Maria da Penha, delimitando o escopo de sua aplicação. Por isso é preciso, de acordo com a autora, promover uma interpretação sistemática da Lei levando em conta a legislação nacional e internacional já que ainda é pouco compreendida por aqueles que devem dar efetividade a lei. Desta forma, a Lei Maria da Penha conforme Feix (2011) é uma prova da possibilidade da utilização da política do Direito como instrumento para transformação social afim de por em prática a igualdade material e a justiça social projetada pelo artigo 3º da Constituição Federal. Destaca Feix (2011, p. 210) ―é a comprovação de que os direitos humanos não são realidades naturais, mas históricas, conquistados na organização e mobilização de grupos sociais que lutam e disputam politicamente por interesses contraditórios‖. Após a vigência da Lei 11.340/2006 a mulher passou a se sentir mais forte, pois para ela, o seu companheiro pensaria duas vezes antes de agredi-la novamente, depois da Lei Maria da Penha (MONTENEGRO, 2016). Entretanto não só de elogios vive a Lei, na análise que faz da mesma no livro ―Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica‖, Marília Montenegro aponta pelo lado do judiciário, como vem sendo tratada essas mulheres, e a ineficácia na resolução dos conflitos apresentados. Segundo Vera Regina Pereira de Andrade (2004, p. 26) ―se o espaço privado-familiar é um locus de incidência majoritária da violência sexual (...) pode-se interpretar que isto sucede – (...) porque, historicamente, na sociedade patriarcal, a família tem sido um dos lugares nobres, embora não exclusivo (...), precisamente do controle social informal sobre a mulher.‖ Essa violência contra a ―fêmea no lar‖ conforme a autora ―vai do pai ao padastro, chegando aos maridos ou companheiros, pode ser vista, portanto, (...) como uma expressão de poder e domínio; como uma violência controladora. E, num sentido último, como pena privada‖ (p. 26). Marília Montenegro considera que existe contradição na lei quando não cumpre o seu papel de proteger a mulher em situação de violência e colabora para continuação do ciclo de violência contra a mulher principalmente no âmbito doméstico. Isso ocorre principalmente porque muitas vezes ao ver o companheiro preso a mulher passa a considerar-se a agressora por ter colocado o mesmo naquela situação. Assim, muitas

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mulheres deixam de denunciar a violência sofrida porque muitas vezes gostariam apenas de pregar um susto no agressor e não o verem sendo preso já que na maioria dos casos elas têm uma relação afetiva forte com eles, são pais, filhos, namorados, maridos, etc. Destaca Montenegro: Com a nova lei não existe mais o momento conciliatório, a mulher, se desejar poderá renunciar, nos casos em que a lei faculta essa possibilidade, só que a agora essa renúncia será feita na frente das autoridades, deve informar o motivo pelo seu desinteresse no processo, embora ela tenha do até a delegacia e prestado a ―ocorrência‖ (MONTENEGRO, 2015, p. 119)

Conforme a autora houve redução do número de casos de violência doméstica com a vigência da Lei 11.340/2006, mas um dos fatos para essa redução pode ser esse medo de ver os companheiros presos e por isso as mulheres preferem ficar no silêncio e suportar as ―pequenas‖ agressões físicas ou morais. Marília Montenegro afirma que a lei tem grandes feitos no que se refere a prevenção e proteção da mulher em situação de violência, entretanto, possui muitos problemas no âmbito penal. ―Infelizmente, a lei se tornou mais conhecida pelos seus aspectos penais com o slogan midiático ―homem que bate em mulher agora é preso‖, e como sempre, as medidas de caráter penal, (...) são mais facilmente aplicadas do que as medidas de caráter preventivo e educacional‖ (MONTENEGRO, 2015, p. 197). Historicamente o sistema patriarcal prega que os homens possuem poder sobre as mulheres, questão vinculada principalmente a crença religiosa que as esposas devem respeito aos maridos, determinando tacitamente a superioridade masculina em relação às mulheres. O patriarcado é assim uma estrutura que tem alicerçado as relações sociais na atualidade. Ele age muitas vezes de forma sutil e leva a que a mulher se sinta culpada pela violência que sofreu e na maioria dos casos tenha vergonha e medo de falar sobre a sua situação. O que Marília Montenegro aponta no enxerto acima é que a Lei Maria da Penha não levou em conta que existem estruturas muito maiores (especialmente o patriarcado e as relações de gênero) que regem as relações sociais, sobretudo, no âmbito privado, sem deixar de mencionar que existe um sistema penal no país comprovadamente ineficaz e, ainda, que dispõe os crimes contras as mulheres como de segunda categoria. Mesmo quando são presos em poucos casos os agressores refletem sobre o que fizeram e o sistema não os obriga a fazer isso. Desta forma, quando saem da prisão continuam com a mesma postura e acabam por agredir outras mulheres. Tais aspectos acabam silenciando as vítimas e levando a continuação do ciclo de violência e não denúncia dos agressores. Apesar dos pontos mencionados por Marília Montenegro (2015), a pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Sinara Gumieri (2016) acredita que a Lei trouxe muitos avanços para as lutas feministas. ―A Lei Maria da Penha inaugura uma política de enfrentamento centrada no sistema de justiça criminal – para denunciar agressões ou buscar medidas protetivas, a porta de entrada são as delegacias‖ (GUMIERI, 2016, p. 12-13). Segundo a autora não foram elaboradas novas tipologias penais, pois as lutas que levaram a criação desta legislação solicitavam principalmente uma nova abordagem que reconhecesse a injustiça nas violências que as mulheres sofriam e, neste sentido, mobilizasse as instituições do sistema de justiça como delegacias, promotorias e juizados para o problema e prestasse um suporte para mulher na violência sofrida no âmbito doméstico e familiar. Destaca a autora ―tornar a violência visível como crime foi parte da estratégia de igualdade da Lei. Passados nove anos de sua criação, é preciso levantar perguntas sobre os efeitos dessa criminalização, sobre o dia seguinte do reconhecimento da violência doméstica como crime‖ (idem, p. 13). Mídia, Mulher e Violência Os meios de comunicação podem ditar como a população deve se apresentar diante dos fatos. A TV e rádio, e atualmente as mídias sociais, são meios utilizados para transmitir fatos, acontecimentos, propagandas, noticias as quais detém um poder tão grande que chegam a ditar como determinado indivíduo deve se portar diante de situações influenciando nos modos e comportamentos sociais.

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A hegemonia da mídia é fator decisivo pra inúmeras situações que vão desde o modo de vestir produzidos por novelas, a influências em decisões políticas, o corpo ideal, a representatividade da família ideal, a naturalização dos papéis que a sociedade impregna como o/a negro/a, na maioria das vezes, representando/a em papéis como empregado/a doméstico/a, motorista, bem como papéis secundários ou desvalorizados, como os de bandidos. Segundo Andrade e Bosi (2003) o mercado de trabalho para mulheres inicia-se quando esta se insere profissionalmente, afirmando sua emancipação com relação ao homem, é remunerada pelo seu trabalho e utiliza-se de métodos contraceptivos para não reproduzir. Desta forma, assinala os autores, que é construída uma nova subjetividade feminina em que é apreciada a estética corporal e a sua independência financeira e profissional. Ainda de acordo Andrade e Bosi (2003), essa valorização foi tão reforçada pelos meios de comunicação de massa que a partir do século XX se banalizou o corpo da mulher, expondo-o em propagandas, revistas, jornais, programas de TV etc., a fim de estabelecer um padrão de corpo feminino. Numa análise de produtos midiáticos na Argentina e México Paola Bonavitta e Jimena de Garay Hernárndez (2011) observaram poucas variações no conteúdo das mensagens transmitidas pela mídia nesses países. Mesmo com as diferenças socioculturais entre eles, não se observou variações aparentes nos produtos analisados. Persistia o estereótipo da mulher perfeita sem habilidade para realizar tarefas por sua conta, sempre disponível para o homem, com a obrigação do cuidado com os filhos e marido. Neste sentido, afirmam Bonavitta e Hernárndez que há uma nítida violência contra as mulheres quando a mídia reitera sempre a necessidade de perfeição destas devendo as mesmas serem/permanecerem atraentes, cuidarem dos afazeres domésticos e manter uma atividade profissional bem sucedida. Esse imaginário construído pela mídia influencia a violência dos homens para com as mulheres já que há sempre a busca por essa mulher perfeita. Por outro lado, o público feminino também é impelido a atingir esse ideal e, por não ser possível, há uma constante insatisfação da mulher com o seu corpo e sua posição na sociedade. Para além dos aspectos mencionados pela pesquisa de Bonavitta e Hernárndez o estereótipo disseminado pela mídia destaca ainda o ideal de mulher branca, jovem, loira, magra e heterossexual. Constróise e se dissemina uma imagem sexualmente desejável no imaginário masculino incentivando as mulheres a pensarem que devem ser ou se tornarem esse modelo para terem valor social, orientando assim uma mentalidade padrão na sociedade que visa, sobretudo, atender aos interesses da indústria e do comércio. Neste sentido, conforme Boris e Cesídio (2007, p. 462), antes a “mulher pura e recatada, virgem quando solteira, e, quando casada, devotada e dependente financeiramente do esposo‖, agora se apresenta como ―uma mulher sensual e provocante, estável profissional e financeiramente, mas submetida às imposições da mídia‖. Assim, na atualidade, a sociedade utiliza os espaços ocupados pela mulher do século XX como norteadores para estabelecer o que é determinado como correto e significativo fortalecendo o sistema patriarcal. Este determina a dominação masculina e coloca o corpo da mulher como um objeto de prazer e desejo dos homens. Bourdieu (2012) afirma que para compreender a dominação masculina é relevante que se faça uma analise nas estruturas inscritas na objetividade e na subjetividade dos corpos. Assim o corpo assumiu um significado de objeto de facilitador, um modelo de submissão ou atrativo, como algo natural e visto de uma perspectiva positiva. Rachel Soihet (2009) relata que nas formas de violência entre gêneros, a que é mais prejudicada é a mulher. E dentre as varias formas de violência, a autora destaca a violência simbólica, trazendo um estudo na perspectiva histórica considerando o fim do século XIX e a década de 1930, período marcado pela maior participação das mulheres na sociedade, evidenciando as relações de gênero. A exposição da mulher na mídia é recheada de diversos significados, porém o mais presente é de objeto sexual ou brinde, o físico é mais relevante que o intelectual, sua figura é interpretada como um atrativo para os consumidores que não visualizam muitas vezes essa estratégia como uma forma de violência simbólica sofrida pela mulher na atualidade.

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A mídia dissemina certos conhecimentos que contribui para construção de uma realidade comum na sociedade o que Jodelet (1999) designa de representações sociais. Assim, é naturalizado um valor pra a mulher. Ela é, assim, objetificada como um ―pedaço de carne‖ disponível para os homens. A exemplo disso podemos citar as propagadas de cervejas, que ostentam mulheres seminuas com corpos esculturais servindo homens. Aqui é importante observar que a mulher é utilizada como uma estratégia para passar a mensagem do patriarcado, o homem numa posição superior, assim, ―vende-se machismo e não produtos‖ (VALEK, 2015). Outra posição que a mídia assume (como já fora cita por Paola Bonavitta e Jimena de Garay Hernárndez) é fortalecer a atribuição dada pelo patriarcado da mulher como cuidadora, dona dos afazeres domésticos, favorecendo a divisão dos papéis, fator gritante do machismo, em que a esta é dado tal atribuição exclusivamente pela sua condição de mulher. Tal aspecto é algo naturalizado pela sociedade como é possível observar na fala do relator do projeto da terceirização, aprovado pela Câmara, deputado Laércio Oliveira (SDSE), quando menciona que a maioria dos trabalhadores do País no setor de asseio e conservação é do sexo feminino porque "ninguém faz limpeza melhor do que a mulher". E ai sobressai a pergunta: qual o modelo de mulher de sucesso que a mídia apresenta? De acordo com Aronovich (2012, p.127), quando os velhos preconceitos não são detectados eles se banalizam se perpetuam, formando um pensamento único e raramente contestado. Consumidores da mídia se acostumam a ver e repetir esses preconceitos como algo natural, cultural e tradicional, parte de ―é assim que as coisas são‖. Mas as coisas não têm que - nem podem - ser assim. É preciso mudar os estereótipos publicitários representados na mídia, especialmente aqueles que apresentam a mulher como extremamente vaidosa, interesseira, vazia, dona do lar e competitiva em relação às outras mulheres. Para que essa visão de mulher mude, é necessário que exista uma discussão com a própria mídia sobre a imagem que passa da mulher e uma conscientização da sociedade sobre o papel daquela como grande reprodutora da ideologia dominante que coopera de sobremaneira para a formação da subjetividade de cada um de nós. Odália (2004) afirma que a mídia interfere no processo de educação dos indivíduos. Todavia, tal processo é, muitas vezes, limitado ao senso comum. Valores são impostos e a manipulação ocorre sem se perceber, o que impossibilita a construção de um senso crítico. Metodologia de Análise Neste estudo utilizamos como ferramentas de trabalho a análise bibliográfica que segundo Carvalho et. al. (2004) caracteriza-se por colocar o investigador em contato com observações e pesquisas que já foram realizadas sobre determinada temática. O presente estudo contou também com a metodologia da análise de conteúdo de Bardin (1977). Para o autor a análise de conteúdo consiste num conjunto de técnicas utilizadas na análise das comunicações. Em suas palavras: ―não se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, será um único instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações‖ (BARDIN, 1977, p.33). Por meio deste método de análise faz-se uma descrição analítica dos conteúdos segundo procedimentos sistemáticos e objetivos na descrição do conteúdo das mensagens. Neste caso, constitui um tratamento da informação contida nas mensagens. Entretanto, a análise muitas vezes não se limita ao conteúdo, mesmo levando em consideração o continente (BARDIN, 1977: 34). A partir das ferramentas de trabalho supramencionadas, procedemos ao investigação. Iniciamente realizamos o estudo bibliográfico sobre a temática da violência contra mulher e violência contra a mulher na mídia. Em seguinda, após realizamos uma pesquisa exploratória sobre as notícias veiculadas sobre violência contra mulher, decidiu-se restringir a pesquisa para notícias sobre casos de estupro coletivo no Piauí noticiados por três sites (Meio Noite, 180 Graus e G1 –Piauí) durante o período de janeiro a dezembro de 2016. Depois, estabeleceu-se algumas categorias de análise (mês e ano; autor da notícia, tamanho da notícia, título da notícia, culpabiliza mulher) para catalogação do material por meio da análise de conteúdo (BARDIN, 1977). Fezse uma recolha minuciosa do material nos sites do G1-PI, Meio Norte e 180 graus. Foram selecionadas apenas as 267 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


notícias que tinham como foco principal noticiar ou fornecer mais dados sobre algum estupro coletivo que aconteceu no estado. Em seguida, elaborou-se algumas tabelas obre a quantidade de inserções sobre o tema em cada mês, quem eram os autores dos estupros, a relevância dada ao caso de acordo com o tamanho da notícia, como se constrói o título e se existe culpabilização da mulher, e quais os principais argumentos apresentados. INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA Os casos EM PAGEU DO PIAUÍ - Aconteceu em junho de 2016 quando menina de 14 anos foi violentada por quatro homens, no banheiro de um Ginásio da cidade. A madrasta da menina flagrou os indivíduos nus ao redor da garota desacordada. EM SIGEFREDO PACHECO - Ocorreu com uma jovem de 21 anos, em junho de 2016, após ver circular imagens suas numa rede social sobre uma noite em que havia saído com grupo de rapazes e era claramente violentada denunciou o caso às autoridades. Nas imagens, os acusados tocam nas partes íntimas da vítima que está desacordada e não esboça reação. No vídeo é possível ouvir os homens falarem com tom de deboche: "amanhã todo mundo preso em Sigefredo Pacheco". EM OEIRAS - Uma jovem de 26 anos é encontrada despida e machucada por seus vizinhos. O caso aconteceu em agosto de 2016. Segundo informações de testemunhas a jovem teria saído de uma festa com um grupo de rapazes que tinham oferecido carona pra garota. Eles aproveitam-se do fato dela está alcoolizada para cometer o crime. EM BOM JESUS DO PIAUÍ - O crime ocorreu com uma jovem de 17 anos, em maio de 2016. Ela foi encontrada numa obra abandonada por populares da cidade seminua, amarrada e amordaçada com a própria peça íntima que usava. Segundo a polícia cinco homens são suspeitos do crime. A vítima esteve com os agressores num momento de descontração quando eles aproveitaram para drogá-la e levar para o lugar onde o crime aconteceu. EM GEMINIANO - O caso ocorreu com uma menina de 11 anos, em julho de 2016, e foi denunciado por familiares da mesma. Segundo a polícia sete homens teriam abusado da garota mais de uma vez em locais diferentes (numa construção civil, campo de futebol e quadra esportiva). Os suspeitos do crime teriam ainda gravado vídeos de alguns momentos. Análise dos dados Observamos que nos sites analisados (G1 - PI, MN, 180 graus) foram noticiados seis casos de estupro coletivos durante o ano de 2016. No total tivemos 57 inserções nas três plataformas de notícia. Apenas um caso não entrou no processo de análise (Castelo Do Piauí) porque aconteceu em 2015 e as matérias eram sobre a repercussão do mesmo em 2016. Do total encontrado 26 peças (45, 6%) são do site G1 – PI, 20 são do site 180 graus (35%) e 11 são do portal Meio Norte (19%) (ver quadro 1). Algo que nos chamou muito a atenção foi o fato dos casos acontecerem de forma seqüencial. O caso de Bom Jesus do Piauí ocorreu em maio de 2016, o de Pajeú do Piauí e o de Sigefredo Pacheco, no mês seguinte, o caso de Geminiano ocorreu em julho e Oeiras no mês de agosto. A série de casos de violência de maneira seqüencial leva-nos a levantar a hipótese de que um caso poderia influenciar na ocorrência do outro. É como se fosse um ciclo vicioso da violência. Os agressores parecem se sentirem motivados e legitimados a cometerem os crimes com a divulgação dos casos na mídia. Essa hipótese leva-nos a inferir que tamanha violência é a expressão máxima do patriarcado e da dominação masculina sobre os corpos femininos. Para Flávia Timm o patriarcado é uma construção desigual que ―organiza socialmente, polariza, naturaliza e hierarquiza os corpos e as subjetividades, de maneira arbitrária, inclusive usando discursos científicos evolucionistas para consolidar a naturalização da desigualdade dos sexos, dos papéis sexuais e sociais‖. (TIMM, 2012, p. 186). 268 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


QUADRO 1 QUANTIDADE DE INSERÇÃO DE NOTICIAS SOBRE ESTUPRO COLETIVO NOS SITES DO PIAUI EM 2016.

2016

G1

MEIO NORTE

180 GRAUS

MAIO JUNHO JULHO

06 13 01

02 07 02

04 13 02

AGOSTO SETEMBRO TOTAL

03 03 26

00 00 11

01 00 20

Dados da Pesquisa

Assim, historicamente o patriarca manteve o poder sobre todo e qualquer indivíduo dentro da organização social da qual fazia parte. Suas decisões eram cruciais e inquestionáveis no âmago da sociedade. Neste sentido, na vigência deste sistema estabeleceu posições desiguais e hierarquizadas para os gêneros, justificando a sua superioridade em relação aos outros indivíduos na sociedade. Quando o comportamento da mulher não condiz com o modelo patriarcal toda e qualquer ação feita por ela será consequência própria em que a mesma descumprindo uma ordem superior, aqui representada pelo marido, será punida e diferenciada das demais. A partir deste entendimento e com base nas análises feitas podemos identificar quanto aos casos de estupro coletivo analisados que os mesmos ocorreram principalmente no interior do Estado, especialmente nas regiões sul e centro-sul, zonas onde há um menor índice de escolaridade, predomina a lei do coronelismo e uma visão machista e patriarcal da sociedade. Isso leva a uma naturalização da violência contra mulher e um rebaixamento para crimes de menor gravidade. Essa regra é quebrada quando há um grande índice de crueldade nos crimes. E mesmo nestes casos há sempre a interrogação ―o que ela fez para desencadear tamanha crueldade?‖. A partir dos relatos apresentados nas notícias observamos que os agressores e as vítimas no geral tinham a mesma faixa etária e conviviam nos mesmos espaços (escola, festas, casa de amigos, etc.) o que estabelecia uma certa relação de confiança. Destaca Timm (2012) que há uma naturalização do discurso de que as mulheres são passivas e submissas e os homens ―brutos‖ e agressivos, determinando a prática das relações entre os sexos e produzindo uma suposta inferioridade das mulheres em relação aos homens. Acontece que essa crença na superioridade masculina e na falta de controle dos extintos leva a que os agressores vejam nas garotas/mulheres alvos fáceis e de domínio público, ou seja, se não fosse este seria outro a fazer o mesmo. Tais aspectos são recorrentemente reiterados pela sociedade, seja nas pequenas ou nas grandes cidades através de ditos populares como: ―Prenda a sua cabrita, que o meu bode está solto‖. As notícias analisadas no geral destacavam que antes de a mulher/garota sofrer a violência ela estaria com os agressores noutro ambiente seja numa festa bebendo com eles ou numa mesa de bar. Assim ela estaria fora do padrão mulher estipulado pelo modelo patriarcal, trazendo um duplo entendimento ao leitor da noticia de que o estupro pode ter sido uma consequência dos atos da mulher, caracterizando assim a culpabilização da vitima pela agressão sofrida. Quem lê a notícia pode pensar: ―por que ela estava bebendo com eles?‖ ―Isso é que dá ficar embriagada!‖, ―se estivesse em casa nada disso teria acontecido!‖, ―uma mulher não pode ficar sozinha com tantos homens, ela estava procurando!‖, ―por que ela aceitou a carona dos caras?‖. Estas e muitas outras questões podem surgir na mente dos leitores dessas notícias pela forma como os casos são abordados, mas também pelos arquétipos e representações sociais sobre o papel da mulher na sociedade já formulados no imaginário dos leitores dos sites analisados. Sobre os aspectos supra mencionados, Elizabeth Rondelli (1998) considera que a mídia produz e replica uma cultura política onde a prática da violência tem sido o recurso mais utilizado diante da situação

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vigente. Assim, destaca-se esse discurso da violência autorizada das autoridades competentes, legitimado pela mídia, denotando a impossibilidade de estabelecer negociações ou consensos sociais mínimos. O recurso da ampliada visibilidade do material divulgado pela mídia leva a mulher a tornar-se construtora privilegiada de representações sociais, de forma específica, de representações acerca da violência, do crime, bem como dos sujeitos/as envolvidos/as neste cenário (RONDELLI, 1998). A produção de sentidos na mídia revela, conforme Rodelli, a existência de um caráter estruturado/estruturador desses discursos. Assim, como destaca a autor, a mídia atua com um determinado modo de produção discursiva, por meio da forma de construir suas narrativas, estabelecer suas rotinas produtivas as quais determinam alguns sentidos acerca do real no processo de entendimento e interpretação sobre os relatos. Considerações finais O sistema que rege o patriarcado manteve ao longo da história sua dominação sobre diversas formas de organização social impondo ao indivíduo regras e normas no qual privilegiavam uma pequena parte em detrimento de outra, escravizando principalmente a mulher subjugada por suas ações e desejos. Desta forma, as relações humanas neste sistema são constituídas desigualmente e de forma hierarquizada. Quando o comportamento da mulher não condiz com o modelo patriarcal toda e qualquer ação feita por ela será um descumprimento de uma ordem superior (aqui representada pelo macho) e como consequência o sistema aplica penalizações, orquestradas de forma violenta e muitas vezes corroboradas pela sociedade. Observamos isso quando nas matérias analisadas a mídia tenta de forma implícita ou não responsabilizar a mulher pela violência sofrida. ―O que ela fazia naquele horário na rua?‖. ―Por que ela estava bebendo com aqueles homens?‖. ―Ela foi violada porque contrariou o companheiro‖. ―Ela estava usando uma roupa muito curta‖. ―Ela fumava e bebia muito‖. São muitas as circunstâncias elencadas pela mídia que ratificam as várias ―artimanhas‖ do sistema patriarcal. Neste sentido, foi possível observar em nossa análise que os sites analisados ao mesmo tempo em que vitimiza a mulher também simbolicamente culpabiliza a mesma. Entendemos que a mídia tem um papel central na formação do imaginário do público e na construção de representações sociais sobre a mulher e sobre a violência. Assim, é imprescindível que a mídia comece a rever o seu papel de reprodutora de estereótipos da mulher e das violências contra o público feminino o qual muitas vezes é subjugado quando se banalizada as violências e as normatiza na sociedade. Existem formas de ajudar a melhorar essa realidade. Nossa proposta é fazer uma analise das produções que são apresentadas pela mídia, questionando principalmente o reforço do machismo e da dominação masculina, denunciando os casos de violência transmitidos em rede nacional como algo ―normal‖ (caso do Big Brother Brasil, por exemplo8). É necessário também repensar a forma de fazer as publicidades, os programas de TV e as novelas. Desconstruir a imagem da mulher como algo objetificado que tem sabor, gosto e serve para enfeitar ou melhorar a vida do homem. Outro ponto para debate seria a criação de uma legislação para os meios de comunicação para que o público pudesse discutir e questionar a produção dos conteúdos, pois a mensagem é para uma demanda diversa e a informação termina sendo muitas vezes chula, depreciativa e vulgar, com a mulher colocada quase sempre numa posição de submissão e pouco controle emocional. Assim, é necessário desconstruir esta naturalização da mulher na mídia para que esta saia da sua condição de objeto e passe a ser sujeito de sua própria história, com devido valor que possui não mais como um ―objeto decorativo‖ sem voz e inerte.

8

O participante do BBB 17 da Rede Globo, Marcos, encurrala Emily, também participante do programa, num canto e fala algumas coisas pondo o dedo no rosto da garota e gritando com a mesma tentando deixar claro quem estava no comando na relação. Marcos foi expulso pela direção do programa após pressão social por parte do movimento de mulheres e da repercussão negativa do caso nas redes sociais, e segundo a emissora por ter constatado por meio de uma longa conversa com a participante, que houve violência psicológica (OLIVEIRA, 2017). 270 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


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GABRIELLE BONHEUR CHANEL E A MODA SEM GÊNERO DA COMTEMPORANEIDADE1 Ramilton Talmo Vaz dos Santos2 Simone Ferreira de Albuquerque3 RESUMO  Este trabalho pretende fazer uma associação entre a moda lançada e difundida pela renomada, audaciosa e vanguardista estilista Gabrielle Coco Chanel no início do século XX, mais precisamente na década de 1920, com a moda sem gênero tão presente na contemporaneidade, fazendo uma análise dos códigos estéticos, sociais e culturais que desde há muito se associam e separam o masculino do feminino, exibindo os novos modos de vestir e de ver a vida, uma mudança de atitude. No momento atual, estilistas famosos e grandes magazines investem na moda sem gênero que ganha força total, disseminando e estimulando o uso das mesmas roupas, sapatos, cores e estampas por homens e por mulheres estabelecendo uma visão de igualdade social como o fez Chanel no início do século passado.   Palavras-chave: Chanel; Moda; Gênero.

Introdução

J

á no final da Pré-história os seres humanos passaram a se cobrir com folhas e peles de animais para se protegerem das temperaturas, para se diferenciarem entre si, por causas religiosas, por pudor ou simplesmente para adornarem-se (POLINI, 2007) e, com o tempo, esta tendência foi sendo suplantada pelo uso de fibras naturais como o linho e o algodão no Egito e a seda na China. Um pouco mais adiante, na Antiguidade Oriental, as vestes passaram a ser usadas para diferenciação social com cores e padronagens diferentes e, desta maneira, foram surgindo nas sociedades orientais várias formas de indumentária e ornamentos, para que as pessoas pudessem ser facilmente identificadas, em relação ao papel que desempenhavam dentro da sociedade. A partir do século X, com o final das invasões e o renascimento comercial e urbano, houve a formação das corporações de ofício dentre elas as dos tecelões e dos tintureiros, criando uma maior variedade, quantidade e qualidade de vestes.   Com o desenvolvimento das cidades e a reorganização da vida das cortes, a aproximação das pessoas na área urbana levou ao desejo de imitar. Enriquecidos pelo comércio os burgueses passaram a copiar as roupas dos nobres. Ao tentarem variar suas roupas, para diferenciar-se dos burgueses, os nobres criaram algo novo surgindo o conceito de moda como a conhecemos hoje (LAVER, 1989).   Para a Idade Moderna, o termo ―moda‖ surge como divisor de águas entre o que seria o masculino e o que seria o feminino. Foi durante o Renascimento Cultural na Itália que a moda passou a ser vista como um fator inteiramente relevante, que, além de dividir ainda mais as classes sociais por poder de aquisição, observadas diretamente em suas roupas, passou também a ser um estilo criado e direcionado para o sexo feminino e para o sexo masculino. Nesse período, homens e mulheres passaram a se vestir de forma diferenciada. Os trajes tornaram-se mais ajustados e curtos para o sexo masculino. E para as mulheres tornaram-se mais volumosos, com a introdução do corpete separado da saia. Essa divisão de estilos perpetuou-

1

Trabalho apresentado no GT 04. Gênero e Subjetividades do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduando do curso de Bacharelado em Moda, Design e Estilismo da Universidade Federal do Piauí. Teresina, PI. ramiltonvaz@hotmail.com. 3 Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí. Teresina. Professora do Curso de Bacharelado em Moda, Design e Estilismo da Universidade Federal do Piauí. Teresina. Piauí. simonefalbuquerque@ufpi.edu.br. 272 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


se ao longo de alguns séculos, pois a indumentária passou a ser um fator de empoderamento socialmente e culturalmente falando (MARTINS, FERNANDES, 2014). Desenvolvia-se a convicção de que homens e mulheres deveriam ocupar-se e até mesmo vestirse de maneiras adversas: as essências dos sexos passam a ser consideradas distintas. Masculinidade e feminilidade tornavam-se valores opostos, que correspondiam, cada um, a uma gama de elementos considerados antagônicos. (SANCHEZ, SCHMITT, p. 03, 2010).

E assim, adentrando ao século XIX, com a revolução industrial a indumentária se dividiu ainda mais. Desde o início deste século, a vestimenta masculina passou a ser cada vez mais neutra, com modelagens simples e cores escuras. Já as vestimentas femininas, ostentavam em um contexto de exuberância, luxo e competição no meio social em questão. Mais do que nunca, a moda ficou conhecida como fator primordial que marcou a ideia do que era feminino e masculino do século XIX.  Ideias machistas, colocações retrógadas e pensamentos arcaicos colocavam o homem em um patamar muito acima do da mulher. E foi assim ao longo de muitos séculos, até chegar-se no início do século XX.  O advento da Primeira Grande Guerra trouxe, devido ao abalo econômico, uma considerável estagnação na moda e foram poucas as variações e as informações com relação às vestimentas nesse período. A escassez de matérias-primas e de suprimentos provocados pelo conflito levou ao uso dos tons neutros e negros. (LAVER, 1989; BRAGA, 2009). Com o fim da guerra, em 1918, e a chegada da década de 1920 trouxe consigo os eventos sociais na vida das pessoas (trabalho, esporte, dança) que exigiam que as roupas se adaptassem, ajustassem-se aos novos tempos e as novas necessidades.  Chanel e os novos modos de vestir e de ver a vida A década de 1920 ficou conhecida como ―Anos Loucos‖, por se tratar de uma década revolucionária, pois trouxe muitas mudanças e novidades. As pessoas ansiavam por libertar-se das mazelas dos anos de guerra, o que favorecia o surgimento de novas sociabilidades, de novos costumes e de uma nova moda. (LAVER, 1989; BOUCHER, 2010). Foi um período de uma moda voltada para as roupas práticas, fluidas, com muitos bolsos e com cintos de amarrar. Houve o despojamento de volumes, os vestidos e as saias surgem com linhas retas, limpas, simples, com comprimento variando entre as panturrilhas e os joelhos. Não possuíam mangas ou apresentavam manguinhas curtas, os braços foram descobertos. A cintura ficou mais baixa e mais reta, os quadris e os seios não eram mais evidenciados (BONADIO, 2007). Essa nova silhueta dava-se pelo liberalismo ocorrido durante a guerra. A mulher passou a ser mais independente nesse período, com isso deixaria essa nova fase em sua vida refletir no seu estilo pessoal, que era mais leve, solto e sem deixar muito os contornos femininos à mostra. Elas não se sentiam mais obrigadas a seguirem parâmetros sociais. Como o uso do corselet4 por exemplo.  Surge um estilo andrógino5, de acordo com os novos tempos, tempos de emancipação feminina (LAVER, 1989; POLLINI, 2007). O corte dos cabelos tornou-se o símbolo da mulher moderna. Um cabelo curto aproximou a silhueta masculina e feminina.  Os demonstrativos da nova realidade, como as transformações das roupas, a nova configuração da cidade, o comércio de vestuário, a nova condição feminina, enfim, todo o contexto social do momento, impulsionaram as mulheres das camadas médias e das elites a ocupar o espaço público (BONADIO, 2007).  Foi um século de novos pensamentos e acontecimentos históricos, surgem algumas figuras de grande destaque 4

Corpete justo que vai até a cintura. É usado na moda íntima feminina para modelar e pode ter armação de barbatanas. Ainda pode ser usado à mostra, para compor um conjunto sensual. CATELLANI, Regina. Moda Ilustrada de A a Z. Barueri,SP: Manole, 2003. 5 Se refere a um visual que possui referências de ambos os sexos, gerando uma indefinição intencional, podendo ser aplicado tanto na moda masculina quanto na feminina. Mulheres com cabelos curtos e usando ternos ou homens de cabelos longos usando saias costumam ser exemplos mais marcantes de androginia na moda. No início dos anos 1970, falava-se mais em moda unissex, conceito em que peças de roupas podiam ser adotadas por ambos os sexos. Ao final dos anos 1990, a androginia tornou-se um tema proposto por muitos estilistas, e a escolha de modelos evidenciava mulheres praticamente sem busto e sem formas muito definidas. http://glossario.usefashion.com/ 273 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


colaborando com as mudanças, com a sociedade e com a moda. Um grande exemplo de mulher que revolucionou a época deste período foi mademoiselle Gabrielle Bonheur Chanel, conhecida por simplesmente Coco Chanel.   Gabrielle Bonheur Chanel nasceu em 1883, em uma família humilde, sendo uma das cinco filhas de seus pais. Com a passar dos anos, após a morte de Jeanne Dévolles, sua mãe, o seu pai, Albet Chanel, a colocou em um orfanato católico para meninas, vivendo lá por anos de sua vida.   Quando se tornou estilista, era tida com a ―ditadora da malha‖, admirada por usar um tecido até então utilizado na confecção de ―cuecas masculinas‖ o levando para o ramo do haute couture6. Além disso, Chanel se destacou com seus vestidos soltos e básicos, tailleurs7 de cardigã8. e os compridos e amplos casacos de bolsos enormes. Essas peças da estilista faziam cada vez mais o corselet ser deixado de lado dando lugar aos belos modelos confortáveis de Chanel. O corselet era uma peça odiada por Chanel, pois, para ela, sufocava as mulheres. Essa peça era tida um elemento que exacerbou a feminilidade ao longo de vários momentos seculares. Mas Chanel, sempre pensava na praticidade e no conforto de suas roupas, excluindo a ideia do coserlet de suas coleções (COSGRAVE, 2012). Aderiu também aos bolsos em seus modelos pois acreditava que tinham a ver com a mobilidade para a mulher do dia a dia, já que poderiam a partir daquele momento carregar objetos com mais facilidade. A inspiração para a inserção dos bolsos em seus modelos, veio do vestuário dos operários masculinos (COSGRAVE, 2012).  Com o contexto da Primeira Guerra Mundial, a mulher modificou o seu modo de vestir. Como as mulheres passaram a trabalhar para se sustentarem e sustentarem seus filhos - pois seus maridos estariam em guerra - Chanel modificou o guarda roupa dessas, trazendo roupas com uma nova identidade e com um novo ar de austeridade. Provando assim, serem ao mesmo tempo, roupas práticas e elegantes para o trabalho voluntario feminino da época. Essa era a nova mulher Chanel, uma mulher que se matinha elegante, mas com todo o conforto, presente até então só na indumentária masculina (COSGRAVE, 2012). Em torno dessa nova era da moda que se iniciava, o cenário se encontrava fértil para as novas e magnificas facetas do sexo feminino. É uma linguagem visual repleta de pistas sobre a moral e os valores da sociedade que a produziu (FIELL, DIRIX, 2014). Assim se deram as mulheres daquela época, as mulheres Coco Chanel.  Chanel inventou uma nova cultura, fundamentada em uma moral em que as mulheres podiam ser elas mesmas sem se preocuparem com a sociedade machista e patriarcal.    Foi na década de 1920 que Chanel alcançou seu auge como estilista. Nesse momento, também ficou bastante conhecida por trazer o conforto do dia a dia para os trajes de luxo da alta costura: ―Um belo vestido pode ficar lindo em um cabide, mas isso não quer dizer nada. Ele deve ficar lindo nos ombros, com os movimentos dos quadris, das pernas e dos braços‖, já dizia Coco Chanel (1920).  O novo estilo feminino que surgia em meio à sociedade tinha a ver com o estilo andrógino de ser. As moças procuravam ter a aparência praticamente igual à dos rapazes, eliminando as suas curvas através de roupas com cortes retos (FIELL, DIRIX, 2014). Esse novo estilo estava relacionado aos acontecimentos da época, como a liberdade feminina que ocorreu durante a guerra, a repercussão cinematografia na sociedade e ao desejo se parecerem cada vez mais com meninos. Coco Chanel, também aderiu em uma porcentagem a esse estilo.  Ela foi de estrema importância para os movimentos da época, inclusive na definição do estilo de vestir masculinizado das mulheres. Nessa história, ainda se destacaram as melindrosas, mulheres que eram representadas por todas essas características: cabelos curtos, silhueta reta, sempre de vestido tubinho e

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Alta-costura refere-se à criação em escala artesanal de modelos exclusivos, frequentemente bordados exclusivos com pedrarias e metais preciosos, vendidos por altos preços para clientes abastados. http://pt.wikipedia.org/wiki/Haute_couture. 7 Composto por casaco e saia, ou casaco e calça, o tailleur é um traje do guarda-roupa feminino, que foi consagrado pela estilista Chanel, que, por sua vez, simplificou o corte adaptando o uso para diversas ocasiões. Hoje, é referência como traje de mulheres executivas. A palavra tem origem francesa e significa alfaiate. 8 Casaco feminino e masculino de malha, com mangas compridas, sem gola, com decote em V e abotoado na frente. Popularizou-se pelas mãos de Gabrielle Chanel no século 20. SABINO, Marco. Dicionário da moda. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. 274 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


usando o seu chapéu cloche9. Essa mulher tinha uma aparência andrógina que lembrava a um menino, pois era a moda da vez ter e absorver características masculinas tanto físicas quanto de personalidade (FIELL, DIRIX, 2014).  Chanel nessa mesma época introduziu as calças compridas femininas em suas coleções. Elas tinham cortes impecáveis e eram bem engomadas. Assim como as roupas em estilo esporte, botões dourados nas roupas e o uso do tweed10 em suas criações. Essas novas peças introduzidas na Maison Chanel tinham a ver também com grande lado feminista de Coco. Ela exaltava todo o seu apoio à causa dessas mulheres em suas coleções. Trazendo a liberdade feminina, por meio de um ar de conforto e mobilidade nas roupas apresentadas. Já que esses termos eram praticamente excluídos de suas vidas. Para Hélène Lazareff 11 (1950), Chanel era uma percussora do feminismo e seu estilo clássico era o ideal para as mulheres que votavam, independentes e que ganhavam o próprio dinheiro.    Coco Chanel deixou o mundo da moda, mas antes de partir, consolidou um legado impressionante. Além de todo um acervo incrível deixado por ela, Coco foi uma percussora da moda sem gênero na história da moda. Mesmo que indiretamente, Chanel deu a indumentária feminina traços e detalhes que só haviam nos costumes masculinos. Podendo até, nesse sentido, um homem de estatura mediana usar um Chanel década de 1920 sem dar a entender ser uma mulher.   Após os anos de gloria de Coco Chanel, e seu estilo masculino imposto às mulheres, muitos foram os estilistas que quiseram retomar a ideia de moda feminina e masculina separadas inteiramente. Christian Dior, por exemplo, após os anos duros vivenciados durante a Segunda Guerra Mundial, em que mulheres tiveram de abdicar de todo o glamour e sofisticação que eram acostumadas (uma parte da Sociedade). Dior tentou retomar valores burgueses do século XIX, ligados às roupas em um novo contexto em moda. Com a coleção New Look de 1947, o costureiro impôs a mulher uma silhueta em Y12 , em que a mesma, amarrada por espartilhos apertados deixavam suas curvas a mostra dando um ar de feminilidade, perdida durante o contexto da guerra. Assim a imagem feminina retomou na década de 1950, como se a sociedade voltasse aos primórdios da idade moderna. Mas esse estilo não se manteve por muito tempo (LAVER, 1989).   Ao se adentrar a década de 1960, a moda unissex surge como um fator antecessor do que seria hoje a moda sem gênero. Foi através do costureiro Saint Laurent que a mulher ganhou novos valores. O costureiro, assim como Coco, remodelou uma vestimenta que era, até então voltada apenas para os homens e a partir daquele momento começa a ser usada por mulheres também. O smoking feminino era a mais nova febre do momento. A peça era idêntica a masculina, só que com uma modelagem mais ajustadas e pences localizadas. Dando um ar feminino a peça (MARTINS, FERNANDES, 2014).  No final da década de 1960 e o início da década de 1970, a moda torna-se cada vez mais polemica e os indícios de uma moda sem gênero tornam-se cada vez mais evidentes. Movimento de contraculturas, como Tropicalismo no Brasil e o Movimento Hippie nos EUA, por exemplo, foram responsáveis por uma moda mais

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Do francês cloche, que significa sino, é um modelo de chapéu feminino com o formato do mesmo. Foi criado em 1908 por Caroline Reboux. Muito popular durante os anos 1920, tornando-se obsoleto em meados de 1933. Tradicionalmente feito de feltro, proporciona um modelo justo e confortável, sendo utilizado em ocasiões especiais como bailes, cocktails e até mesmo em festas de casamento. Alguns tipos de amarrações eram fixadas nos clochês para indicar diferentes mensagens sobre a usuária: uma amarração com formato similar a uma flecha significava que a mulher era solteira, mas que já havia se comprometido com alguém; um nó firme significava que a mesma era casada; e o laço significava que a usuária estava solteira e disponível. O modelo ressurgiu em 2007, em versões modernas, mas que mantiveram o formato original. 10 Tecido de lã cardada, grossa e rústica, com tecelagem normalmente em ponto sarja ou espinha de peixe. As cores podem variar a partir da torção de diferentes lãs. Muito durável e resistente à umidade, é largamente utilizado na confecção de casacos e vestidos de inverno. Na moda, foi popularizado por Coco Chanel, que criou o famoso conjunto de tweed, até hoje referência de estilo de sua marca. Inicialmente denominado ―tweel‖, algumas fontes indicam que o nome tweed se disseminou por um erro de interpretação de um comerciante londrino ao receber uma carta de uma empresa escocesa fabricante do tecido, em 1830. Ele teria achado que o nome derivava do rio Tweed, que divide a Inglaterra e a Escócia. http://glossario.usefashion.com. 11 Foi uma jornalista de moda, diretora da Revista ELLE de 1945 a 1973. http://wikipedia.org. Acesso em 10/04/2017. 12 Silhueta onde o ombro é volumoso e afunilado na cintura, de onde desce reto. http://glossario.usefashion.com 275 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


alternativa, em que homens e mulheres usavam roupas de modelagem solta e cabelos compridos, sendo cada vez mais visível uma moda igualitária usada por ambos os sexos.    A moda sem gênero As décadas se passam e um novo século surge, o século XXI.  Com a chegada do novo milênio, a moda tornou-se praticamente independente para os sexos. Um novo conceito surge, e adentra as veias criativas dos criadores nacionais e internacionais. A moda sem gênero foi idealizada para que as roupas elaboradas a partir de seu conceito não carregassem símbolos associados nem ao mundo feminino e nem ao masculino. Tratam de peças neutras sem distinção dos sexos. Inclusive roupas que se desligam da ideia de unissex.    A moda sem gênero surge em um contexto social e cultural adepto a novas possibilidades. Mas, para entender sobre esse novo viés que a moda conceitual e comercial se tornou, precisa-se compreender um pouco mais sobre a transculturação que esse ramo passou até chegar a essa nova fase. Assim, precisa-se entender também, sobre o que seria uma moda sem gênero em meio a uma sociedade tão diversificada, como a sociedade atual. A transculturação é um processo que afeta diretamente o mundo da moda. Ela ocorre a partir do momento em que determinada sociedade entra em contato com acontecimentos novos. Segundo Berjman (2001), entender a transculturação é extremamente importante para a compreensão especifica de um povo e sua moda. Esse processo de transculturalidade ocorre em três etapas: a importação, a assimilação e a apropriação. Assim também ocorre com a indumentária ao logo de todo o processo. A partir do momento que uma mulher passa a importar, assimilar e a se apropriar de uma determinada indumentária, que até então não a pertencia, ela está sim passando por momento de transição. Um momento de reafirmação e imposição.  Quando se fala em gênero, ainda mais em sua relação com a moda, é importante entender o seu significado para a melhor compreensão dos vieses ao seu redor. Segundo Carlotto (2001), o conceito de gênero diz respeito ao conjunto de expressões, representações e reafirmações impostas a partir da diferença biológica dos sexos. Enquanto que para o conceito da biologia, o sexo diz respeito a um conjunto anatômico, para o conceito de gênero, o sexo é a forma como cada ser, sendo ele masculino ou feminino, quer se expressar socialmente falando.  Mas, quando a moda Genderless13 entra nessa sociedade, ela vem para desmistificar qualquer conceito biologicamente ou sociologicamente falando. A moda Genderless, está relacionada a um estilo de roupa que, através de um estudo anatômico, cultural e ergonômico do corpo humano foi criada para atender, sem distinção, ambos os sexos.  Essa moda vem trazendo um novo olhar, que vai além do que é feminino e masculino. A moda sem gênero não está ligada diretamente a questões de sexualidade, pelo contrário.  Essa moda veio para unir e agradar qualquer estilo de qualquer condição sexual. Mas, ainda hoje, o seu maior público consumidor ainda se restringe aos homossexuais. Isso se dá pela cultura despojada que essa parcela da sociedade tem (SILVA, 2016). A moda sem gênero vai além das cores azul e rosa. Ela vai além de modelos simples e sem contexto. Ela é sim algo inovador, que, mostra através de uma roupa, o quanto as pessoas podem ser livres e se sentirem libertadas perante as inúmeras opções de looks. Segundo Aberd (2016), a moda sem gênero seria uma nova forma de vestuário que ambos os sexos poderiam usar sem alterações na modelagem e no corte das roupas. Essa é a proposta dessa moda. Da mesma forma que Gabrielle Chanel impôs o uso da calça masculina às mulheres a tornando sem gênero especifico. A moda sem gênero hoje, impõe a sociedade roupas que trazem características homologas que ambos os sexos poderiam usar.  Na contemporaneidade, a moda genderless está cada vez mais presente nas semanas de moda nacionais e internacionais. Inclusive na própria passarela da Maison Chanel, hoje com direção criativa do renomado estilista Karl Lagerfeld. Na última temporada de verão 2017 em Paris, a grife lançou no desfile de

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Nova forma de vestuário que ambos os sexos poderiam usar sem alterações na modelagem e no corte das roupas. Aberd 2016.

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Spring-Summer 2017 Ready-to-Wear14 CHANEL a bolsa Gabrielle. Em homenagem a própria estilista fundadora da grife, a bolsa levou o seu nome. Além disso, a proposta de Karl é que a bolsa Gabrielle seja usada por todos, sem distinção de sexo. Em prova disso, a campanha do novo acessório teve a presença de nomes como: Kristen Stewart, Cara Delevingne e Caroline de Maigret e o ator e cantor Planell Willians. Em observação, percebe-se a ascensão da Maison de alta costura e a nova era do genderless ao mundo da moda. Mas, não só a Grife Chanel vem trazendo elementos do sem gênero para suas campanhas e desfiles. Saint Laurent, JW Anderson, Hermés, Givenchy, Prada e a Balmain, são outros fortes nomes a moda internacional com essa proposta de uma moda usada por todos sem distinção. No Brasil contemporâneo, a moda sem gênero também vem sendo bastante explorada. Nomes como João Pimenta, estilista mineiro, trouxe em seu último desfile masculino na SPW n°43 propostas de looks que poderiam facilmente ser usados por mulheres também. Esse mesmo estilista vem a frente da direção criativa da nova marca LAB Fantasma, lançada na edição n°42 da SPFW. A marca também traz, além de uma roupa estilo Sportswear para um público mais descolado, roupas também que buscam atender homens e mulheres ao mesmo tempo (LOPES, 2017) Nesse cenário, as Fast Fashions brasileiras também estão aderindo a nova fase da moda contemporânea. A Zara e a C&A, são exemplos primordiais a serem levantados.  No ano de 2016, a C&A lançou a campanha ―Tudo Lindo e Misturado‖, trazendo uma proposta que valorizou a igualdade de gênero e desmitificando a ideia de masculino e feminino.  No vídeo da campanha, modelos nus vestiam o que encontravam em seu caminho, não importando o que a roupa queria dizer, ou para quem supostamente ela fora pensada. Eles só vestiam.  Conclusão  Em detrimento dos dados bibliográficos levantados sobre a biografia de Coco Chanel e sobre a moda sem gênero da contemporaneidade pode- se concluir a real relevância que Gabrielle Bonheur Chanel teve como precursora da moda sem gênero em meados da década de 1920. Chanel impôs a mulher novos horizontes, pois sua intenção era simplesmente as proporcionar liberdade na hora de se vestir. E essa mesma liberdade estava correlacionada as possibilidades que a indumentária masculina poderiam oferecer a mulher no espaço social. Dessa forma fica evidente que Chanel, mesmo que de forma indireta, ofereceu a mulher uma moda sem gênero que as permitiu adentrar a sociedade machista da época. Mesmo após a sua morte, Chanel continuou a nutrir o mundo da moda. Muitos são os movimentos contemporâneos que bebem dos pilares de Chanel. A moda sem gênero é um movimento ligado diretamente a mademoiselle Chanel uma vez que ele se fundamenta na proposta de uma nova vestimenta. Uma vestimenta que quer unir o masculino e o feminino elaborando assim uma nova indumentária. Uma indumentária que encaixa perfeitamente na silhueta de ambos os sexos. Assim como fez Chanel na década de 1920, a moda sem gênero pretende suprir os desejos da sociedade com uma nova linguagem em temos de cultura, gênero, modelagem e design. Referências BONADIO, Maria Cláudia. Moda e Sociabilidade: Mulheres e consumo na São Paulo dos anos de 1920. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2007. BOUCHER, François. História do Vestuário no Ocidente. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2010. 14

Com o fim da Segunda Guerra Mundial foi necessário um esforço de otimização da produção industrial, principalmente nos países diretamente envolvidos no conflito, como é o caso dos Estados Unidos. A guerra reforçou o desenvolvimento da tecnologia da confecção, iniciada na década de 1930. Alguns problemas fundamentais foram resolvidos, como a grade de tamanhos por exemplo, que até então não existia. Com a produção das roupas em escala industrial, ficou mais rápido, fácil e barato produzir peças que antes eram somente feitas sob medida. Daí nasce o ready to wear, que em inglês significa pronto para usar. Mais tarde, durante uma viagem, essa expressão foi traduzida pelos empresários franceses Jean C. Weill e Albert Lampereur, ficando conhecida na Europa como prêt-à-porter. http://glossario.usefashion.com 277 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


BRAGA, João. História da Moda, uma Narrativa. São Paulo:Editora Anhembi Morumbi, 2009. CARLOTTO, Cássia Maria. O conceito de gênero e sua importância para análise das relações sociais. Serviço Social em Revista, Londrina, v.3, n.2, 2001.  COSGRAVE, Cosgrave. Vogue: Coco Chanel. Tradução: Ricardo Lísias. Local: São Paulo: Globo, 2012.  FIELL, Charlotte; DIRIX, Emmanuelle. A Moda da Década de 1920. Tradução: Laura Schichvarger. São Paulo: Publifolha, 2014.  LAVER, James. A Roupa e a Moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.  POLINNI, Denise. Uma Breve História da Moda. São Paulo: Editora Claridade, 2007.  SCHMITT, Juliana. SANCHES, Gabriel. A Moda Sem Gênero: conceituação e contextualização das tendências não binárias. São Paulo: Alameda, 2010. SILVA, Leticia de Sousa. A desconstrução do gênero sob a perspectiva do consumo de moda em TeresinaPI. 2016. Trabalho de conclusão de curso (TCC). Universidade Federal do Piauí, 2016. MARTINS, Patrícia, FERNANDES, Amanda In SABRÁ, Flávio. Modelagem: tecnologia em produção de vestuário: Rio de Janeiro: SENAI CETIQT, 2014. Fontes eletrônicas ABED, Mônica. Genderless, Não Gênero. Disponível em http://cinescontemporaneos.wordpress.com/2016 /06/17/genderless-nao-genero/>. Acesso em 06 de março de 2017.   BERJMAN, Sonia. O espaço verde público: modelos materializados em Buenos Aires. Disponível em: <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/bases/texto048.asp>. Acesso em 06 de março de 2017. Artigo científico. Não paginado.  COCO antes de Chanel. Direção: Anne Fontaine. França, 2009. 1h30mim. Son, Color.  Netflix. LOPES, Juliana in http://ffw.uol.com.br/desfiles/sao-paulo/n43/lab/1640795/. Acesso em 09/04/17).

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