Anais ENDIS 2017 - volume 3

Page 1



ANAIS DO ENCONTRO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE

MÍDIA E DEMOCRACIA volume 3 | número 2 | agosto de 2017


ANAIS DO ENCONTRO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Francisco Hudson Pereira da Silva REVISÃO

Os autores ANAIS DO ENCONTRO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE é uma publicação anual do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Estratégias de Comunicação (NEPEC), vinculado à Universidade Federal do Piauí. CORPO EDITORIAL

Francisco Laerte Juvêncio Magalhães Francisco Hudson Pereira da Silva Pedro Júlio Santos de Oliveira Thalyta Cristine Arrais Furtado Thiago Ramos de Melo e-mail: nepec.ufpi@gmail.com CONSELHO CIENTÍFICO

Francisco Laerte Juvêncio Magalhães Lívia Fernanda Nery Viviane de Melo Resende João Benvindo Ribamar Jr. Cássio Miranda Maraísa Lopes AUTOR CORPORATIVO

Editora Universidade Federal do Piauí Campus Universitário Ministro Petrônio Portella, s/n - Ininga, Teresina - PI, 64049-550 ISSN 2525-6033


SUMÁRIO

Apresentação ▪ 6 Mìdia, Democracia e Cidadania Famíia arco-íris e suas conquistas: do armário para o direito ▪ 13 Joana Darc Rodrigues da Costa Comunicação política em pauta: um estudo sobre mídia, internet, democracia e participação política ▪ 20 Cristiane Soraya Sales Moura A representação dos coletivos na imprensa piauiense1 ▪ 30 Alberto Luís Araújo Silva Filho e Olívia Cristina Perez A hipótese do telespectador regional e o caráter hermenêutico do receptor no contexto midiático global ▪ 39 Julimar Pereira da Silva e Samantha Viana Castelo Branco Rocha Carvalho O impeachment em rádios universitárias: o poder de analisar, de prever e sentenciar e os portavozes do afastamento da presidente Dilma Rousseff em três emissoras ▪ 49 Roberto de Araujo Sousa Imagem, consenso e democracia: a propaganda política eleitoral do TSE e a imagem da democracia brasileira nas eleições de 2010 ▪ 58 Cristiano P. da Silva e Jaqueline Morelo Mídia Ninja: comunicação e democracia em redes ▪ 67 Ana Isabel Freire Monteiro dos Santos Marinho, Nathércia Vasconcelos Santos e Ana Maria da Silva Rodrigues Mídia, discurso e democracia: “assim caminha o Piauí”... ▪ 76 Osalda Maria Pessoa Religião e participação política: a mobilização dos evangélicos na política brasileira ▪ 84 Diarlison Lucas Silva da Costa


Discurso e Ideologia Análise da representação de Dilma Rousseff e Michel Temer nas capas das revistas Istoé e Istoé Dinheiro ▪ 97 Anabela Fernanda Riso Maia e Flávia Oliveira de Carvalho O sujeito escritor em manuais administrativos: jogos discursivos e ideologias ▪ 105 Edilene Oliveira da Silva e Claudiana dos Santos Diferenças constitutivas do sujeito-leitor ▪ 115 Claudiana dos Santos1 e Edilene Oliveira da Silva Interferência ideológica: uma análise a partir dos relatos de professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental ▪ 122 Ruth Ramos Roland e Hilda Maria Martins Bandeira Jornalismo local e futebol: os discursos nos jornais impressos teresinenses sobre a final do Campeonato Brasileiro (Série D) de 2015 ▪ 130 Antônio Francisco Fontes Silva e Paulo Fernando de Carvalho Lopes Dinâmica dos movimentos sociais pela educação e luta pela terra: identidade e as unidade de mobilização no fortalecimento do processo de conquista da terra ▪ 141 Edson Sousa da Silva Uma análise crítica do filme Twelve years a slave sob à ótica da crítica literária afro-americana ▪ 150 Brenda Karla Reis Brito, Francisco Welison Fontenele de Abreu e Renata Cristina da Cunha A UESPI em seu papel social: os egressos de Língua Inglesa da turma 2015.1 ▪ 158 Assunção de Maria Mendes da Silva e Afrânio Bezerra de Sousa Lugares, sujeitos e subjetividades: a análise do discurso jurídico na mediação de conflitos ▪ 167 Patrícia Rodrigues Tomaz e Adriana Rodrigues de Sousa Mil e uma vozes em Negro Drama: o discurso renovado pelo discurso ▪ 174 Antonio Daniel Felix e Joelma Mendes Soares Barbosa O manifesto de Elle: Análise de Discurso Crítica da moda sem medo ▪ 181 Ana Carolina dos Reis de Moraes Trindade Artesanato ceramista, ideologia do empreendedorismo, design e relações de saber-poder na Cooperart-Poty, Teresina-PI ▪ 189 Carol de Araújo Barbosa e Maria Dione Carvalho de Moraes O discurso de Paulo em defesa de sua autoridade apostólica e da veracidade de sua pregação na epístola aos Gálatas: um estudo à luz da análise crítica do discurso ▪ 197 Paloma Pereira Lopes e Vilmar Ferreira de Souza A cobertura de manifestações: uma análise do Jornal Nacional ▪ 207 Weslley Oliveira Pinto, João Victor dos Santos Silva e Milena Andrade da Rocha Discurso de denúncia social nas obras: O quinze e em Os sertões ▪ 213 Antonio Wadan Gomes Cavalcante e Fernanda Rodrigues Nascimento


As propagandas da reforma do Ensino Médio: análise de discurso, educação e ideologia ▪ 223 Isabella Nara Costa Alves, Edinilza Maria de Oliveira Silva Morais, Jennyfer Paloma de Oliveira Morais, Paula Poline Nascimento Santos e Dayse Rodrigues de Oliveira Discurso, Imagem e Imaginário A intertextualidade imagética na produção de sentidos em charges contra a ditadura militar brasileira: a reconversão do olhar sobre elas ▪ 234 Weslley da Silva Sousa A construção dos ethé do autor Abdias Neves no discurso literário da obra Um manicaca ▪ 242 Érica Patricia Barros de Assunção e João Benvindo de Moura Discursos sobre o autismo: estratégias de captação em uma matéria publicada pela revista Época ▪ 252 Ismael Paulo Cardoso Alves e João Benvindo de Moura A construção de imagens como estratégias argumentativas do jornal Diário do Povo do Piauí ▪ 262 André de Moura Carvalho e João Benvindo de Moura Um caso de aforização? ▪ 269 Luís Rodolfo Cabral A imagem da guerra: efeitos de sentidos nas foto-ilustrações do conflito entre Israel e Palestina ▪ 274 Thiago Ramos Melo e Adriana Carvalho de Moura La matérialité significante du corps dans les manifestions du groupe femen ▪ 283 Emanuel Angelo Nascimento Discursos midiáticos sobre educação física escolar: perspectivas comparadas ▪ 288 Fábio Soares da Costa, Isabela Naira Barbosa Rêgo, Camila de Barros Rodenbusch e Andreia Mendes dos Santos A fotografia digital e os novos desafios para o fotojornalismo ▪ 297 Cantídio Sousa Filho



APRESENTAÇÃO

O II Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade foi promovido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Estratégias da Comunicação (NEPEC - PI), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí, com apoio do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Análise do Discurso (NEPAD) e aconteceu entre os dias 26 e 28 de abril de 2017, no Centro de Ciências da Educação – CCE situado no campus Petrônio Portela - UFPI, na cidade de Teresina, Piauí. O evento teve como temática Mídia e Democracia, visando estimular o debate acadêmico científico entre estudantes, professores, pesquisadores e profissionais de comunicação e áreas afins. Dessa forma, pretendeu ampliar as discussões acerca dos estudos da linguagem a partir da difusão de trabalhos relacionados a essa temática, buscando, assim, inserir o Piauí no circuito de eventos relacionados à pesquisa sobre discursos. O II ENDIS abriu portas para pesquisadores das áreas de Comunicação, Estudos da Linguagem, Filosofia, História, Antropologia, Sociologia que atuam no campo de estudos sobre discurso, identidade e subjetividade. O evento contou, na edição de 2017, com seis eixos temáticos (grupos de trabalhos), além de oferecer minicursos, oficinas e palestras, que oportunizaram ao participante a produção de conhecimento interdisciplinar e a troca de experiência acadêmicas e culturais. Assim, os Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade apresenta o resultado das pesquisas apresentadas em forma de comunicação, resultado das investigações de pesquisadores e alunos, brasileiros e estrangeiros, que atuam nas áreas acima mencionadas, versando em pesquisa teórica e/ou empírica que trataram da temática do evento. Corpo Editorial

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 9


10 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


M D C Ă?DIA,

EMOCRACIA &

IDADANIA

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 11


12 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


FAMÍIA ARCO-ÍRIS E SUAS CONQUISTAS: DO ARMÁRIO PARA O DIREITO1 Joana Darc Rodrigues da Costa2 RESUMO Em busca da concessão de novos direitos, os homossexuais reivindicam, ao Estado e à sociedade o reconhecimento, e consequências, de seus relacionamentos. Essas reivindicações geram longas e calorosas discussões sobre a designação de família. Entre o que é e o que não é família, reside uma disputa legal ou/e jurídica, mas também uma disputa de sujeitos e de sentidos. Certos de que as designações de família se constituem no funcionamento enunciativo da língua, que é político e histórico, cf Guimarães (2002), apresentamos algumas observações sobre as designações projetadas no acontecimento e motivadas por pertinências sociais sustentadas por referencias, os quais conduzem as articulações projetados pelos sujeitos, como propõe Dias (2010-15). Observando as articulações, vemos que as designações de família são naturalizadas, apagadas e, às vezes, contraditórias, uma vez que são influenciados por discursos ainda conservadores. Palavras-chave: Família; Acontecimento; Referencial; Designação; Pertinência.

Introdução

S

uperado o estigma de portadores de doenças mentais, até a década de 1990, os homossexuais passam a se organizar para lutarem por seu direito de ter direitos, ou seja, de serem vistos como “sujeitos de direito”. Dentre questões como discriminação, homofobia, os homossexuais passaram também a reivindicar que a sociedade e o Estado lhes assegurassem direitos decorrentes do estabelecimento de vínculos afetivo-sexuais duradouros, garantindo assim direitos patrimoniais e previdenciários em casos de separação ou falecimento de um dos integrantes. A busca por esses direitos poderia ser feita por duas vias: através de grupos de militância homossexual, como por exemplo, o Grupo Matizes (PI)3, ou através de recursos junto ao Poder Judiciário. O principal desafio nessa reivindicação está na legislação brasileira, que até então somente reconhece e garante tais direitos apenas a casais heterossexuais cuja união resultava do casamento, como podemos conferir no artigo 1.514, do Código Civil de 1916: “O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados” (grifo nosso) ou da união estável. No Direito brasileiro a convivência entre pessoas do mesmo sexo não tem nenhuma regulamentação. Deste modo, o Poder Judiciário pátrio tem sido chamado para solucionar essa disparidade, inicialmente através de ações individuais que reivindicavam o direito de pessoas homossexuais incluírem seus companheiros à sua dependência, seja de pensão, INSS, imposto de renda e afins. Ou seja, de garantir a seus companheiros a proteção, tal como é feito nas uniões heterossexuais. Devido às constantes mutações do seio familiar, e tendo em vista que cabe ao Estado o dever jurídico constitucional de implementar as medidas necessárias para a constituição e desenvolvimento das famílias, a Constituição de 88, a Lei nº. 9.278/96 e o novo Código Civil (2002) vieram a reconhecer outras formas de família além daquela oriunda do casamento, possibilitando que as uniões homoafetivas também fossem incluídas nesse rol de proteção. Entretanto, a não expressividade legal e o conservadorismo ao 1

Trabalho apresentado no GT 02 do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 2 8 de abril de 2017. 2 Pós-doutoranda em estudos da Linguagem na Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Jodarc85@hotmail.com 3 Organização da sociedade civil, cuja missão principal é a defesa dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e travestis (LGBT) com sede fixa em Teresina (PI). Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 13


heterocentrismo dificultam a concessão desses direitos. Apresentamos, neste espaço de discussão, um pouco desses confrontos discursivos que ambicionam ou resistem à regulamentação jurídica e legal dessas uniões apropriando-nos da concepção de que os sentidos de família disputam entre conservadores e militantes o direito de ser. Do armário ao direito: entre gritos e silêncios Conforme a atual legislação, compreende-se, expressamente, como família aquela decorrente do matrimônio e, como entidade familiar a união estável e a comunidade monoparental (DINIZ, 2009). Entretanto, mesmo reconhecendo outras formas de família, deixa expresso a diversidade dos sexos entre os casais: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (Regulamento) § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. (Art. 226, CF)

Essa exigência é tratada no espaço de enunciação jurídico de duas maneiras: para alguns juristas pode ser compreendido como a exclusão das uniões homossexuais enquanto que para outros trata-se apenas de uma ilustração, devendo se estender, assim, proteção estatal a qualquer núcleo familiar, inclusive àqueles formados por pessoas do mesmo sexo. Entretanto, essas são leituras interpretativas, ou seja, a concessão desse direito aos homossexuais fica por conta de preceitos, concepções e julgamento jurídicos. Legal e expressamente, há três espécies de família, conforme a Lei Maior: 1) aquela que resulta do matrimônio (família matrimonial); 2) do companheirismo (família não-matrimonial) e 3) aquela que configura a monoparentalidade (família constituída por um dos pais e seus descendentes): deve-se portanto, vislumbrar na família uma possibilidade de convivência, marcada pelo afeto e pelo amor, fundada não apenas no casamento, mas também no companheirismo, na adoção e na monoparentalidade. É ela o núcleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa. É o instrumento para a realização integral do ser humano. (DINIZ, 2009, p. 13).

Cabe-nos observar que, mesmo embasada no princípio da igualdade, a Carta Magna faz distinção entre família e entidade familiar, colocando o casamento, ainda, como um critério fundamental para a constituição de família, deslocando, assim, a ideia de outras formas de famílias, aquelas não oriundas do casamento, chamadas não de família, mas de entidade familiar. Nas palavras da jurista Diniz (2009), “o casamento é, ainda, indubitavelmente, o centro de onde irradiam as normas básicas do direito de família, que constituem o direito matrimonial” (DINIZ, 2009, p. 04). Embora as mudanças no Direito de Família tenham sido significativas, considerando não apenas elementos institucionais, mas também afetivos, a legislação brasileira ainda se limita ao heterocentrismo. A própria lei que reconhece a união estável como entidade familiar (lei 9.278/1996) expressa a diversidade dos sexos para que a união seja reconhecida, não deixando espaço legal para o reconhecimento das relações entre pessoas do mesmo sexo. Tão tácita e natural é a heterossexualidade do casal que a lei não traz entre os possíveis impedimentos de seu reconhecimento a igualdade dos sexos, ou seja, a identidade sexual dos cônjuges não é questionada, pois pressupõe-se a diversidade. No entanto, não cabe ao Direito negar os fatos, até porque estes movimentam o espaço jurídico, provocando modificações e releituras das leis, atualizando-as conforme as necessidades da sociedade. E os homossexuais reivindicavam o seu direito de ter seus relacionamentos assegurados pelo Estado tal como os heterossexuais os tinha. E não só a união estável, mas também o direito a casarem, tendo em vista que, conforme os princípios constitucionais, todos são (deveriam ser) iguais perante a lei.

14 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Se, como esclarece Louzado (2011), o direito veio subsidiar os anseios da sociedade em cada momento histórico, não há motivos para que esse direito fosse negado. Com o decorrer do tempo, com a quebra de paradigmas, não cabe mais ao legislador deixar de outorgar direitos aos casais homoafetivos. Dessa forma, mesmo não havendo legislação que favoreça à concessão de direitos aos partícipes das relações homossexuais, a partir de 1996 constata-se importantes precedentes jurisprudenciais sobre o tema, principalmente os julgamentos do STJ reconhecendo a sociedade de fato entre homossexuais. a concepção jurídica tradicional do conceito de família não continha espaço para a consideração das uniões de pessoas do mesmo sexo, abrem-se a partir da segunda metade do século XX novas perspectivas, em virtude das transformações que desde então se verificam na realidade social e na evolução do direito (RIOS, 2001).

As primeiras conquistas em relação às uniões homossexuais foram relegadas ao campo obrigacional, o que implica em não reconhecê-las como família. Cabe ao Direito das Obrigações regulamentar relações entre duas partes em que uma está subjugada à outra, assegurando somente o patrimônio construído com a colaboração de ambas as partes enquanto que ao Direito de Família está assegurada a família, independentemente de sua origem. Assim, a primeira luta dos movimentos foi afirmar a competência das varas de família para julgar as ações envolvendo relacionamentos entre homossexuais. Com a redemocratização, os movimentos que brigavam pelos direitos homossexuais contaram com mais um apoio: os partidos políticos. Como explicam Simões e Facchini (2009), nos anos 1990 já havia militantes LGBT em partidos políticos e, nos anos 2000, começaram a se organizar setoriais e ações de políticas e de parlamentares. A partir de então, torna-se muito expressivo o reconhecimento das questões LGBT nas políticas e nos programas de governo. Além disso, ainda nos anos 1990, verifica-se uma progressiva construção da legitimidade das temáticas LGBT nos partidos, sendo um marco a proposição do projeto de lei sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo, em 1995. Embora já apresentada no legislativo, foi no âmbito do judiciário que os homossexuais tiveram suas primeiras conquistas, encontrando apoio, mas também resistência. A briga pelo reconhecimento das uniões homossexuais, uniões estáveis ou casamento, tem sido longa e intensa, dividindo os juristas entre os que compreendem esses direitos e aqueles que não veem nessas uniões um núcleo familiar. Tartuce (2014) explica que há dois posicionamentos bem delineados na doutrina e jurisprudência jurídica, tomando como base uma interpretação do artigo 226, parágrafo 3º da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe: “para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. O primeiro posicionamento é de que a união de pessoas do mesmo sexo não constitui uma entidade familiar. Isso porque não há casamento, não há família monoparental ou mesmo união estável. Essa corrente adota uma interpretação literal, tanto da Constituição quanto do Código Civil (1916) (art. 1.723). Segundo a literalidade das normas em questão, exige-se que a união homoafetiva seja reconhecida como uma sociedade de fato, com a aplicação da súmula 380 do STF, ou seja, o parceiro é um sócio, tendo direito a parte dos bens adquiridos durante essa sociedade, pelo esforço comum. A partir desse entendimento, a questão da união de pessoas do mesmo sexo gera consequências jurídicas positivas no que tange ao patrimônio, a ser resolvida pelo viés patrimonial e sempre de acordo com o Direito das Obrigações, salvaguardando a comunhão dos bens adquiridos como produto do esforço comum na constância da união e/ou indenização pelos serviços prestados no curso da convivência. O fundamento jurídico com a disposição deste raciocínio, como se vê, está na inadmissibilidade do enriquecimento sem causa de um às custas do empobrecimento injustificado do outro. É relevante que exista vontade preordenada dos parceiros de unir esforços para atingir objetivos econômicos comuns (BRITO, 2000, p. 52).

Sendo assim, pode o casal homoafetivo elaborar um contrato de parceria civil para disciplinar a aquisição de patrimônio e suas regras, bem como, para efeitos sucessórios, pode-se elaborar o seu Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 15


testamento, dando destino ao patrimônio do disponente. Tendo em vista todo o exposto, é perfeitamente possível que se reconheça uma sociedade de fato entre homossexuais. Sendo tal questão puramente de direito obrigacional. Não se cuida de estabelecer a existência de uma família entre estes parceiros, pois como defendemos, não há família. Os aspectos íntimos da convivência homossexual entre estes parceiros é matéria estranha que não precisa ser abordada, sendo essencial, entretanto, a prova de que houve colaboração, com dinheiro ou trabalho de um na formação do patrimônio do outro (BRITO, 2000, p. 53)

Logo, a parceria civil não se configura como uma relação de afeto, princípio fundamental para a constituição de uma família. Como pontua Dias (2000): Visualiza-se exclusivamente um vínculo negocial, como se o fim comum do contrato de sociedade não fosse uma relação afetiva de caráter familiar. E, ao fazer analogia com a sociedade de fato, e não como a união estável ocorre sua inserção no Direito Obrigacional, com consequente alijamento do Direito de Família (DIAS, 2000, p. 81-82).

Nessa concepção, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é menos aceitável que o reconhecimento de uma união estável. Segundo Brito (2000), a diversidade dos sexos, uma das características mais decisivas para que o casamento civil tenha validade jurídica, e a violação desse critério, resulta na nulidade ou inexistência desse casamento, tendo em vista que faltam elementos de fato que a natureza e os fins do matrimônio supõem. A autora, fundamentada em um referencial conservador, militante contra essas relações, argumenta que a caracterização da união homossexual como casamento é um erro que resulta da visão contratualista do matrimônio, e que ignora elementos essenciais da noção de família. Além do contrato, há também uma carga institucional que se reflete no interesse do Estado na organização familiar. Para ela, a família se justifica de modo primordial na realização afetiva, psicológica, e sexual do homem e da mulher, sem negligenciar a procriação humana. Contudo, paralela à corrente disposta a cima, há uma segunda corrente, tomado pelo referencial da igualdade de direitos e da liberdade dos sujeitos, que se consolidou como majoritária na doutrina e na jurisprudência nacionais, segundo a qual a união de pessoas do mesmo sexo constitui uma entidade familiar. Os praticantes desse referencial defendem a aplicação, por analogia, das mesmas regras previstas para a união estável, assegurando-se no artigo 4º da Lei de introdução ao Código civil, segundo o qual, face a lacuna da lei, o juiz deve invocar a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito para solver questões não normatizadas. Para essa segunda corrente, ocorre não uma interpretação literal dos textos legais no tocante à expressão “homem e mulher”, mas sim uma interpretação sistemática em que o rol das entidades familiares previsto no texto maior é considerado meramente exemplificativo ou descritivo e não taxativo, admitindo-se como união estável a união entre homens e entre mulheres. Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família, indicado no caput (NETTO LÔBO, 2009, p. 61).

Felizmente, essa interpretação, mesmo que resistente no início, tem sido cada vez mais praticada, e possibilitou grandes conquistas. A decisão que iniciou a concretização dos direitos homoafetivos foi pronunciada pelo Superior Tribunal Federal (STF) que, pela primeira vez, no ano de 2008, declarou que a união homoafetiva deve ser reconhecida como entidade familiar. Mesmo com decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo essas uniões como entidade

16 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


familiar, muitos são os juristas que não concordam com tal reconhecimento. Rainer Czajkowski (1996) argumenta que, por mais estáveis que essas uniões possam ser, elas jamais se caracterizam como uma entidade familiar, pois duas pessoas do mesmo sexo não formam um núcleo de procriação humana e de educação de futuros cidadãos. Entretanto, o corpo jurídico que defende esses direitos juntamente com os militantes não se intimidaram. Segundo Melo (2005), ao encontrar apoio jurídico, a comunidade LGBT passou então da simples demanda por parceria civil, que reconhece apenas alguns direitos de conjugalidade, à demanda por casamento, ou seja, pela equiparação total de direitos conjugais de díades compostas por indivíduos do mesmo sexo com aquelas formadas por parceiros heterossexuais. Em 2011, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, embasados em referenciais da igualdade, não discriminação e segurança jurídica, reconheceram, com eficácia erga ommes e efeito vinculante, a união estável para casais do mesmo sexo. As ações foram ajuizadas na Corte, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República e pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. A ação buscou a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Pediu-se, também, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Já na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o governo do Estado do Rio de Janeiro (RJ) alegou que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituição Federal. Com esse argumento, pediu-se que o STF aplicasse o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil, às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de Janeiro. Essa decisão adquiriu um reconhecimento histórica, uma vez que buscou pacificar a matéria no que pertence a inúmeras ações individuais que versavam sobre o assunto e estabeleceu uma base jurídica para uma futura legislação sobre os direitos matrimoniais. Agora, para que os homossexuais tenham sua união reconhecida juridicamente basta que sigam os tramites cartorários. A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela analogia, implica a consideração da presença de vínculos formais e a presença de uma comunidade de vida duradoura entre os companheiros do mesmo sexo, assim como ocorre com os companheiros de sexo diferentes, valorizando sempre, e principalmente, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia, da não discriminação em virtude do sexo ou orientação sexual (LOUZADO, 2011, p. 271).

Em 2013, dando efetividade à decisão do STF, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução que obriga todos os cartórios do país a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. O STF assegurou aos homossexuais o direito de ter a união estável reconhecida e assim constituir entidade familiar. Sabemos que a lei que regula a união estável prevê a conversão da união em casamento, entretanto, essa implicação somente ficou assegurada aos casais do mesmo sexo depois da resolução n. 175 de 14 de maio de 2013, a qual obrigou os cartórios a realizar a conversão da união em casamento e também a realização direta de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Podemos então concluir que, no âmbito jurídico, com as duas grandes decisões do STF ao reconhecer as uniões homoafetivas como entidade familiar e a do CNJ garantindo o direito ao casamento, o movimento LGBT concluiu sua meta. Todas as decisões competentes ao judiciário já foram realizadas. Entretanto, devemos advertir que tais decisões não são capazes de romper o conservadorismo e o preconceito existente, muitos são os desentendimentos quanto ao assunto tanto no corpo jurídico quanto fora dele. Podemos citar o voto dos ministros que, embora unanimemente a favor da união estável, discorrem sobre as contrariedades em suas justificativas quanto, e principalmente, ao âmbito religioso. As famílias devem receber tratamento protetivo do judiciário e do Estado e por isso, atualmente, a

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 17


busca do movimento está voltada para a legalização de seus direitos. Muitos são os projetos de leis instaurados para atualizar e incluir os homossexuais na legislação brasileira. Infelizmente, o legislativo se mantem como uma base muito conservadora, tendo, inclusive, projetos que versam contra o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar e a grande resistência está, principalmente, entre os religiosos. A igreja se mantém contra as uniões entre pessoas do mesmo sexo, muito embora já seja possível perceber uma flexibilização (humanização) no tratamento dos religiosos em relação aos gays. Em 13 de outubro de 2014, durante o Sínodo Extraordinário da Família, convocado pelo Papa Francisco para refletir sobre a forma como a Igreja lida com questões relacionadas à família, o papa juntamente com bispos e alguns casais, discutiram estratégias de como poderiam aceitar e respeitar as orientações sexuais dos fieis sem comprometer a doutrina católica sobre família e matrimônio. Embora o texto do documento não sinalize uma mudança drástica na condenação dos atos homossexuais e em sua oposição ao casamento gay, ele usa uma linguagem menos condenatória e mais passiva. Contudo, advertimos que isso não significa um possível reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essas relações são condenadas na bíblia, embasamento fundamente para a legislação da igreja. Porém, observamos que o movimento LGBT luta pela legalização do casamento civil e não religioso. Como afirma Louzado (2011), os dogmas da igreja devem ser para aqueles que escolhem ser igreja, não devendo manifestar-se com relação a leis civis que visem à proteção de direitos de uma minoria. Parece ser necessário, mais uma vez, separar a Igreja do Estado. Considerações finais Em síntese, podemos dizer que, embora as mudanças no direito de família tenham sido significativas quanto ao reconhecimento de diferentes organizações familiares, considerando não apenas elementos institucionais, mas também o princípio da afetividade, observa-se que a legislação brasileira ainda se limita ao heterocentrismo, deixando as relações homossexuais legalmente desamparadas. Entretanto, não cabendo ao Direito se omitir frente às necessidades da sociedade, mesmo não havendo legislação quanto à concessão de direitos aos partícipes das relações homossexuais, a partir de 1996, constata-se o início de importantes precedentes jurisprudenciais sobre o tema. Hoje, embora já ocorram decisões que garantam direitos a esses casais, inclusive ao casamento, muitos são os desentendimentos quanto ao assunto tanto no âmbito jurídico e legal quanto, e principalmente, no âmbito religioso. Diante de tal constatação, apresentamos, nesta pesquisa, um estudo semântico-enunciativo dos sentidos de família nas discussões existentes nos âmbitos judiciais e infra-judiciais, haja vista as flexibilizações nas legislações ordinárias e especiais que visam salvaguardar reconhecimento e os direitos de relações homoafetivas, apoiando-nos na concepção de que os sentidos são produzidos e provocados a partir de uma ordem de acontecimentos histórico-sociais. Como bem observa Pereira (2007), “a partir do momento em que o texto constitucional passou a mencionar a família e dizer que ela se constitui pelo casamento civil é sinal de que o contexto talvez apontasse outras direções” (PEREIRA, 2007, p. 17). Assim pensamos os efeitos de sentidos: os acontecimentos sociais provocam uma ordem de pertinência que garantem os acontecimentos enunciativos, lugares de projeção dos sentidos. Nessa direção, o linguístico significa no enunciado pela relação que mantém com o acontecimento em que funciona (GUIMARÃES, 2002). Motivados em observar os acontecimentos e as mudanças da sociedade, e como estas são discursivisadas, uma vez que a relação com o real é histórica, nossa pesquisa se justifica pela importância que tem a significação na vida do homem, de uma comunidade. Assim, acreditamos poder contribuir para refletir sobre a designação de expressões usadas para referir aos relacionamentos e aos seus partícipes, nos discursos que sustentam esses embates e os sentidos ali construídos, pois não se trata apenas de uma decisão jurídica seja ela contra ou a favor, mas das construções dos sujeitos enunciadores em seus dizeres que acabam por dizer mais do que suas decisões finais.

18 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Em síntese, as concepções de família, construídas nas discursividades conforme o referencial que conduz os sujeitos em suas enunciações e as pertinências sociais, são sustentadas em um espectro que vai de um grupo extenso às relações monogâmicas. Inicialmente, sob referenciais da liberdade de formato e regulação própria de cada grupo, o qual tinha como preocupação maior a sobrevivência, família designava o grupo de pessoas unidas pelo grau de parentesco ou não, que vai sofrendo alterações conforme referenciais da religião, economia e da propriedade. Essa concepção converge para a relação monogâmica. Mais tarde, sob os referenciais religiosos, família passou a designar um sacramento cuja organização e finalidade eram ditadas pela igreja. Em decorrência de acontecimentos sociais como a separação da Igreja do Estado, o surgimento do Estado Laico, a imigração de novas crenças que divergiam da Igreja Católica, família deixa de ser regulamentada apenas pela igreja, confluindo para o casamento laico, tal como trazido no Código Civil de 1916. Sob esse novo referencial, família designa o casamento civil entre um homem e uma mulher e se constitui sob o poder do homem. O aparecimento de casais que não eram casados, mas que tinham convivência como se casados fossem buscando direitos, principalmente, patrimoniais, provocou o início de uma atualização na designação de família que agora passa a designar o núcleo regulamentando pelo casamento ou simplesmente pela convivência. Sob um referencial dos princípios da igualdade e liberdade, família designa três formatos diferentes de núcleos (casamento, união estável e monoparentalidade). Atualmente, respondendo às pertinências enunciativas provocadas pelo movimento LGBT, família ora designa núcleo de afeto e convivência que independe da identidade sexual dos partícipes, ora designa o núcleo constituído por casal heterossexual ou por um dos pais e seus descendentes, tal como dita a legislação brasileira. A busca pela legitimidade de uma designação de família que assista os interesses de todos os sujeitos está em questão. Referências BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado. 1988 BRASIL. Código Civil. Código de Processo Civil e Constituição Federal. Organização por Yussef Said Cahali. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 1725 p BRITO, Fernanda de Almeida. União afetiva entre homossexuais e seus aspectos jurídicos. São Paulo: LTr, 2000. DIAS, Luiz Francisco. Pertinência enunciativa e sustentação referencial: nos limites do sintático e do semântico. In: Desenredo. Passo Fundo, v. 9, n. 2, 2013g. DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. 304 p. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: Direito de Família, 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do Acontecimento. Campinas: Pontes. 2002. LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Evolução do conceito de família, in DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 264-274. MELLO, Luiz. Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. ORLANDI, Eni. Puccinelli. As formas do silêncio. Campinas, Pontes. 1992. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. _________, A Família – Estruturação Jurídica e Psíquica. In: Direito de Família Contemporâneo – Doutrina, Jurisprudência, Direito Comparado e Interdisciplinaridade. Belo Horizonte, Ed. Del Rey, 1997. RIOS, Roger Roupp. A homossexualidade no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Esmafe, 2001 SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 5: Direito de Família, 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2014.

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 19


COMUNICAÇÃO POLÍTICA EM PAUTA: UM ESTUDO SOBRE MÍDIA, INTERNET, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA1 Cristiane Soraya Sales Moura2 RESUMO O presente artigo teve como objetivo realizar um estudo sobre algumas teorias da comunicação política desenvolvidas por pesquisadores do Brasil e do mundo, com o intuito de fazer um levantamento dos conhecimentos construídos até o momento sobre a temática. A pesquisadora entende que, só com a redemocratização na década de 80, as pesquisas sobre a relação da comunicação midiática e da política começaram a ganhar impulso no Brasil. Este trabalho pretende sintetizar algumas contribuições sobre temas como democracia, participação política, eleições, mídia, internet, teoria do agendamento e a espetacularização midiática da política brasileira. A intenção é suscitar o interesse de outros pesquisadores para estudar e analisar questões relativas à comunicação política, sobretudo em sua relação com a internet e redes sociais. Palavras-chave: Comunicação Política; Mídia; Democracia; Internet; Participação Política.

Introdução

A

comunicação política é uma área do universo da comunicação que tem como objetivo fazer uma mediação entre o campo político e os meios de comunicação. Desde o surgimento da comunicação política até os dias atuais, vários pesquisadores têm se ocupado em estudar a estreita relação entre mídia e política. Este artigo busca apresentar alguns estudos sobre a relação entre comunicação e política. Venício Lima (2004) afirma que, tomando como referência a sua origem, o termo comunicação possui uma ambiguidade que não foi resolvida até os dias atuais. Segundo o autor, a confusão se dá em torno de dois extremos: transmitir e compartilhar. O primeiro vocábulo refere-se a um processo unidirecional, enquanto o segundo se trata de um processo comum ou participativo. No entanto, a diferença é que o ato de transmitir pode ser realizado de maneira manipulatória, enquanto o compartilhar informações possibilita uma comunicação participativa. Comunicação é o processo de tornar comum ou, simplesmente, transmitir ideias, informações e mensagens. Seu primeiro grande meio foi a palavra impressa. O homem utilizava anteriormente o gesto, o som e a palavra falada e manuscrita, cuja importância não deve ser menosprezada. Mas nenhum reunia as características dos hoje chamados meios de comunicação de massa - possibilidade para a reprodução do original com fidelidade e rapidez, bem como para sua difusão em larga escala. Contemporaneamente, a comunicação tornou-se quase sinônimo de meios de comunicação de massa (mass media) ou mídia. Heloíza Matos (2006:4) faz uma reflexão sobre alguns referenciais teóricos internacionais sobre o campo da comunicação política, tomando como referência os resultados de uma pesquisa global sobre o processo eleitoral em vários países do mundo e alguns exemplos brasileiros de campanhas. Sobre a relação da política com a comunicação, a autora afirma: “É possível pensar a comunicação sem a política. No entanto, não há política sem comunicação”. Ainda sobre essa relação, Fagen (1975) assegura que a atuação do poder político precisa se tornar pública e para tal utiliza a comunicação. Isso acontece independentemente do regime de governo (democrático ou autoritário), do estilo do governante, dos meios utilizados e das demandas dos cidadãos. Maria José Canel (1999:17) conceitua a comunicação política como “uma atividade pela qual se adotam e se aplicam as decisões para e na comunidade”. 1

Trabalho apresentado no GT 2 Mídia, Democracia e Cidadania do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero. São Paulo-SP. Endereço eletrônico: cristianesaless@bol.com.br 20 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Além da aceitação, aplicação e caráter vinculante, a comunicação política é fundamental para a organização da comunidade: no sentido de orientar os membros para a definição de objetivos e a identificação dos problemas, a busca de consenso e a percepção dos valores e tradições, permitindo a escolha entre as várias opções que lhe são oferecidas (MATOS, 2006:5).

Nesse sentido, Matos (2006:5) afirma que as revisões conceituais pioneiras da comunicação política como campo próprio (Dan Nimmo e Sanders, 1978 e 1981; Fagen, 1966; Chafee, 1975; Meadow, 1980; Trent e Friedenberg, 1995) apresentaram algumas peculiaridades, como “o caráter comunicativo, a intencionalidade da mensagem e seus efeitos, com consequências para o funcionamento do sistema político (embora restringindo a análise ao uso e distribuição do poder) e, ainda, uma relação de interdependência entre a atividade política e a comunicativa”. No Brasil, as pesquisas sobre comunicação política cresceram e se diversificaram com alguns dos principais pesquisadores da nova área (Venício Lima, Antonio Rubim, Heloíza Matos, Wilson Gomes, Afonso de Albuquerque, Murilo Soares, Vera Chaia, Fausto Neto, Mauro Porto, Maria Helena Weber e outros). As principais abordagens estão relacionadas à análise das mensagens e seus efeitos no comportamento político do cidadão, ao cenário de representação política e aos estudos de campanhas eleitorais em geral (estratégias de campanha, horário político eleitoral, organização e efeitos dos debates políticos e, sobretudo, a mediação da campanha pelos meios de comunicação). Entretanto, Matos (2006) destaca que a televisão e as relações da imprensa com o candidato e os profissionais da campanha passaram a ocupar lugar de destaque nas pesquisas da comunicação política. Blumler (apud MATOS, 2006) afirma que a mídia intervém mais na cognição que nas atitudes e que esses atos são decorrentes de um aprendizado contínuo que se constrói através da repetição de novas práticas construídas pela mídia. O autor conclui afirmando que o processo de comunicação política moderna poderia ser comparado com a força quase irresistível de um imã, obrigando a todos aqueles que entram no seu campo de ação a se adaptarem. Ou seja, o processo não só altera a recepção das mensagens, os temas e os termos usados no embate político, como é capaz de influir ou mudar as perspectivas e escolhas dos cidadãos. [...] Blumler mapeia as implicações do novo modelo para a pesquisa de comunicação política, e sugere alguns campos de estudo a explorar: processo de geração de notícias e seus resultados políticos; teorias que norteiam as ações dos profissionais de comunicação política; análise comparada de campanhas seguindo a lógica do partido e a lógica da mídia; e, ainda, uma recomendação que incide sobre a preocupação deste artigo, a crescente importância da política local (sugerindo que, ao lado de estudos de campanhas nacionais e majoritárias, expande-se o rádio e a tv regional-local como canais de comunicação política) (MATOS, 2006:6).

André Gosselin (1995), tendo como referência Weber, Goffmann e Mead, apresenta uma proposta com cinco modos de agir no campo da comunicação política: o teleológico (ações estratégicas e intencionais visando a um objetivo, como por exemplo, o voto); a ação axiológica (composta de valores, normas e ética de convicção); o agir emocional (com o intuito de persuadir para alterar o comportamento do receptor); ações rotineiras (para otimizar a percepção das mensagens planejadas); e, por fim, uma ação dramática. “Neste caso, a ação política combina elementos racionais (propostas e programas da campanha) com apelos emocionais; e também a ação comunicativa, que tem como objetivo a aproximação de universos comuns com a finalidade de atuar politicamente (de modo mais vantajoso para os participantes do processo – candidatos e eleitores, cidadãos e Governo)” (MATOS, 2006:7). Com relação à comunicação política contemporânea, Matos resume afirmando que A comunicação política contemporânea é a dimensão que objetiva influenciar e controlar as percepções da opinião pública sobre temas e acontecimentos políticos tornados públicos na mídia. Neste caso, a persuasão está presente independente do processo eleitoral, o que justifica o uso permanente do marketing e a manutenção de profissionais de comunicação para monitorar,

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 21


através de pesquisas de opinião, o desempenho dos governantes no exercício do poder ou dos candidatos em busca dele (MATOS, 2006:8).

Segundo John B. Thompson (1998), o exercício do poder nas sociedades contemporâneas está intimamente ligado aos meios de comunicação e faz uso dos seus recursos disponíveis para atingir seus objetivos. A mídia amplia o poder comunicativo e persuasivo nas relações políticas. O autor afirma ainda que com o advento dos meios de comunicação houve uma reconfiguração do espaço-tempo e as interações presenciais perderam espaço. O desenvolvimento dos meios permitiu aos indivíduos o acesso às informações e lugares distantes sem precisar sair de sua cidade. As novas tecnologias proporcionaram uma ruptura entre espaço e tempo. Do ponto de vista do autor, a mídia tornou-se o principal campo de interação social, gerando uma nova forma de relacionamento e reordenando a conduta dos indivíduos. Neste novo contexto da contemporaneidade, os políticos e o campo da política precisam adequar suas imagens e ações à nova realidade econômica, social, cultural e política. Atualmente, o Estado brasileiro regula o espectro eletromagnético e é ele quem concede as licenças para as emissoras de rádio e televisão. Porém o rádio e a televisão ainda são regidos por um código do início da década de 1960 (Lei 4.117, de agosto de 1962) desatualizado e que precisa ser revisto. Israel Bayma (2008) afirma que 85% das emissoras de rádio e televisão brasileiras estavam sob o controle de políticos no ano 2000. O que se pode perceber é que os meios de comunicação no Brasil estão concentrados nas mãos de alguns poucos e antigos grupos familiares. Além disso, é perceptível o forte vínculo dos meios com as elites políticas locais e/ou regionais. Este fato é extremamente importante, sobretudo em períodos eleitorais, quando os políticos proprietários de emissoras de comunicação utilizam os veículos para favorecer o candidato que lhe trará maiores benefícios. Não se trata apenas do apoio do político ao candidato aliado, pelo peso que seu cargo na candidatura, mas do uso dos meios de comunicação e da credibilidade que eles têm perante os eleitores para beneficiar um dos concorrentes da disputa eleitoral. O rádio é utilizado frequentemente pelos políticos como palanque durante as eleições, sobretudo pela sua abrangência e por ser um veículo de discurso mais popular que se aproxima mais do discurso político. Há algum tempo, reconhecendo a importância do meio sonoro, até as rádios comunitárias estão sendo instrumentalizadas pelos políticos. A oligopolização da mídia acarreta implicações muito sérias para a consolidação da democracia. A mídia é um importante aparelho de representação da realidade, o que a torna um poderoso instrumento de construção e/ou manutenção de ideologia (LIMA, 2004). O sistema brasileiro de comunicações foi constituído tendo como principal referência o tradicional modelo liberal de sociedade capitalista norte-americano. De acordo com esse modelo, a mídia é um negócio privado como outro qualquer. Com o processo de redemocratização do Brasil (1982-1985) e com o fim da censura imposta à mídia, os meios de comunicação passaram a funcionar com certa autonomia. Essa autonomia, permitida pelo Estado brasileiro, e a crescente importância dos meios de comunicação no cenário político do País criaram uma certa imunidade para a mídia brasileira, que hoje tornou-se o único poder “incontrolado” no Brasil. O Espetáculo Midiático da Política Brasileira Originalmente o termo espetáculo vem da palavra latina spetaculum e significa “tudo que atrai e prende o olhar e a atenção”. Já no dicionário o termo quer dizer representação teatral; exibição esportiva, artística, etc. e cena ridícula ou escândalo. Segundo Rubim (2002:11), “o espetáculo instala uma relação de poder. E o poder, muitas vezes, afirma-se como e através da produção de espetáculos”. O autor afirma ainda que

22 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O espetáculo remete também à esfera do sensacional, do surpreendente, do excepcional, do extraordinário. Daquilo que se contrapõe e supera o ordinário, o dia-a-dia, o naturalizado. A instalação no âmbito do extraordinário potencializa a atenção e o caráter público do ato ou evento espetacular. A ruptura com a vida ordinária, condição de existência do espetáculo, pode ser produzida pelo acionamento de inúmeros expedientes, em geral, de modo intencional, mas, em alguns horizontes, até mesmo de maneira não prevista (RUBIM, 2002:11).

Existem alguns recursos midiáticos que potencializam a dramaticidade da cena, como cenários, movimentos, gestos, expressões corporais, sonoridade, vestuário, pronúncia, etc. No entanto, “o reconhecimento disso não pode fazer esquecer que a vida cotidiana e a política não midiatizada também possuem suas modalidades específicas de encenação e que a dramaticidade e a teatralidade também estão umbilicalmente presentes na vida cotidiana e na política” (RUBIM, 2002:12). A política tem uma relação muito íntima com o espetáculo. Este relacionamento não é novo, ele existe desde a antiguidade e vem se adaptando as mudanças ocorridas nas sociedades. A rigor, pode-se afirmar, sem medo de errar, uma premissa constitutiva desse texto, o espetáculo como um momento e um movimento imanentes da vida societária, de maneira similar às encenações, ritos, rituais, imaginários, representações, papéis, máscaras sociais etc. Portanto, o espetáculo deve ser compreendido como inerente a todas sociedades humanas e, por conseguinte, presente em praticamente todas instâncias organizativas e práticas sociais, dentre elas, o poder político e a política. A questão a ser enfrentada não diz respeito então aos relacionamentos, historicamente existentes, entre espetáculo, poder político, política e vida em sociedade, mas a uma espécie de atualização desse problema: como o espetáculo, o poder político e a política se relacionam em uma nova e contemporânea circunstância societária, estruturada em rede (Castells, 1996-1998) e ambientada pela mídia (Rubim, 2000 e 2001)? (RUBIM, 2002:1).

A sociedade contemporânea se caracteriza pela presença significativa dos meios de comunicação na organização e manutenção do modelo capitalista. Debord é, sem dúvida, um dos pesquisadores de maior relevância no âmbito das reflexões sobre esse modelo de sociedade ou, na expressão do próprio autor, a sociedade do espetáculo. Em seu livro clássico A sociedade do espetáculo, Debord defende que a sociedade capitalista transforma tudo em mercadoria, e isso se dá, sobretudo, pela importância da mídia na sociedade. Para o autor, o capitalismo está intimamente ligado ao espetáculo. Além disso, há um afastamento entre realidade e representação, e essa separação é que viabiliza a espetacularização da sociedade. A mídia tornou-se o principal instrumento na configuração desse modelo, em que “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (p. 13). O autor complementa ainda que “Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante da sociedade” (DEBORD, 1997:14). Na visão do pesquisador, no atual modelo espetacular da sociedade, as relações sociais são intermediadas por imagens, aumentando assim a alienação das pessoas. O espetáculo torna a realidade uma “simples aparência”, o “parecer” se sobrepõe ao “ser”. No entanto, apesar de ser um autor de referência para os estudos sobre a espetacularização, é preciso considerar as formulações de outros autores sobre a temática. Rubim (2002:3) entende que a obra de Debord se prejudica ao apresentar uma conotação sempre negativa sobre o espetáculo. Entre outros questionamentos, Rubim aponta que o pensamento do autor reduz o espetáculo a um “determinismo econômico, intrinsecamente mercantil e capitalista, que interdita ao espetáculo qualquer outra alternativa de realização, econômica e/ou ideológica, fora de uma dinâmica capitalista e suprime até mesmo a perspectiva da existência de contradições em seu processo de produção”. Na contramão das concepções deborianas, hoje parece assentado teoricamente que não existe a possibilidade de uma relação direta, não mediada, com realidade; que a representação não só faz parte da realidade, como aparece como dispositivo imprescindível de sua construção social e que

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 23


o estatuto de realidade da representação nada fica a dever àquele atribuído ao restante da realidade, aliás, só possibilitada através do recurso às mediações (RUBIM, 2002:4-5).

Schwartzenberg (1978), em seu livro O estado espetáculo, aborda a relação entre espetáculo e política no contexto de uma sociedade ambientada pela mídia. Em sua análise, a espetacularização da política e do Estado se dá por meio do crescimento e da importância da lógica produtiva da mídia, que faz prevalecer o entretenimento, gerando uma “despolitização” da política e do Estado. Desde sempre, a política é composta de uma série de rituais que são produzidos com vistas a uma representação deles para a sociedade. A dimensão estética desses eventos é ainda mais relevante na contemporaneidade. Os meios de comunicação possibilitam que os eventos, antes expostos de forma restrita no espaço e no tempo, possam atingir um número de pessoas antes inimaginável em um mesmo momento. Essa nova era da visibilidade transformou a política em refém da imagem, dos recursos midiáticos, da representação. É bem verdade que o espetáculo e os rituais sempre existiram na política, mas há que se levar em conta que o alcance e a “profissionalização” das encenações são infinitamente maiores nas sociedades ambientadas pela mídia. A ágora grega, o senado romano, a coroação do rei, o parlamento moderno, a posse de presidente, as manifestações de rua, as eleições, enfim toda e qualquer manifestação da política, anterior ou posterior a nova circunstância societária, supõe sempre encenação, ritos etc. A mudança acontecida, portanto, não diz respeito à dimensão estética ou espetacular da política, mas a potência e a modalidade de seu acionamento em uma nova formação social. Assim, uma reflexão que queira enfrentar verdadeiramente o problema da espetacularização da política em uma contemporaneidade estruturada em rede e ambientada pela mídia não pode deixar de reconhecer o recurso à emoção, à sensibilidade, à encenação, aos ritos e rituais, aos sentimentos, aos formatos sociais, aos espetáculos. Em suma, a tudo aquilo que, em conjunto com o debate e a argumentação racional, conformam a política. Por conseguinte, eles não podem ser considerados como atributos advindos tão somente da contemporânea espetacularização da política (RUBIM, 2002:9).

Weber (1999:107) propõe uma categorização sobre os espetáculos políticos produzidos no ambiente midiático. São eles: o editorial, o articulado, o autônomo e o arbitrário. O modelo editorial reúne os eventos políticos construídos pela mídia como espetaculares. Não se trata apenas do editorial em si; pode ser identificado em outros gêneros discursivos, mas todos comandados pela instituição midiática. O espetáculo político articulado se realiza através da interação obrigatória entre mídia e política com o intuito de representar um evento de caráter excepcional e conjuntural, como eleições, reformas constitucionais, etc. O autônomo trata-se de um modelo que se baseia no surgimento de um importante e imprevisível fato político que obriga a mídia a alterar seu padrão de cobertura. E, finalmente, o espetáculo político arbitrário é um tipo de espetáculo que é controlado pelo campo da política, obedecendo às normas legais, sem qualquer tipo de interferência da mídia, destituindo-a de seu poder de decisão empresarial ou editorial, como na propaganda partidária ou político-eleitoral brasileira. Rubim (2002:20) tem uma visão mais otimista da espetacularização. Para o autor, existe uma diferença entre midiatização e espetacularização. Existem muitos fatos políticos que são apenas midiatizados ou divulgados pela mídia - estes constituem boa parte das mensagens políticas veiculadas. “Midiatização designa a mera veiculação de algo pela mídia, enquanto espetacularização, forjada pela mídia ou não, nomeia o processamento, enquadramento e reconfiguração de um evento, através dos inúmeros expedientes” (recursos midiáticos que potencializam a dramaticidade da cena). Existe toda uma região da política não propensa ao espetacular, porque muitas vezes aversa à publicização para ter vigência e eficácia. Mas a zona não espetacular da política não se limita aos acordos, alianças, conversas, avaliações e projeções sigilosas. Existe uma outra dimensão constitutiva da atividade política que não interessa e parece tornar inviável o espetáculo midiatizado. Trata-se, como visto acima, da política ordinária, daquela que se realiza

24 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


cotidianamente no dia-a-dia, sem grandes apelos, intensas mobilizações ou questões socialmente polêmicas. Uma parcela significa da política se exerce justo nessa dinâmica e uma parte dela quando comparece à mídia não adquire ou se submete a nenhum tratamento espetacular (RUBIM, 2002:27).

Muitos autores contemporâneos afirmam que a mídia, sobretudo a televisão, tornou-se o espaço privilegiado da luta política na atualidade não só em períodos eleitorais, como também nas ações políticas rotineiras. Esse fato não quer dizer que as ações tradicionais do fazer política (comícios, passeatas, carreatas, etc.) desapareceram; ao contrário, elas continuam a existir, mas adaptando-se à nova realidade da política. Hoje esses eventos são pensados e planejados para ganhar visibilidade na mídia e, assim, ter uma maior repercussão perante o eleitorado. Albuquerque (1994) entende que a sociedade midiatizada reorganiza a atividade política na contemporaneidade. Ele defende que, com a modernização das tecnologias de comunicação, o espetáculo passou a ser utilizado como “princípio organizador da vida política”. No entanto, a espetacularização não é exclusividade do campo político, ela se faz presente também no campo cultural. A atual sociedade ambientada pela mídia tem uma forte tendência ao espetáculo. Isso se dá porque o capitalismo beneficia a indústria cultural e do espetáculo, que subordina a todos com sua “lógica de produção mercantil-entretenimental”. Schwartzenberg (1978) apresenta uma classificação de alguns tipos de políticos mais freqüentes. Entre eles estão o Herói, o Igual a Todo Mundo, o Líder Charmoso, a Prima Dona e o Nosso Pai. Essa tipologia identifica cada um dos personagens com algumas características específicas de como cada líder se apresenta para o público. Todos os candidatos, ou pelo menos quase todos, se relacionam com algum arquétipo e seguem a linha escolhida (que mais tem a ver com o perfil do político) durante toda a campanha. Assim como Collor se enquadrava no tipo político de Líder Charmoso e Lula no tipo Igual a Todo Mundo. Essa tipologia apresentada por Schwartzenberg trata-se dos mitos políticos mais frequentes produzidos pelos marqueteiros, que procuram ajustar o candidato adequadamente a um desses modelos. Essa mitificação dos políticos não é novidade, ela existe desde a antiguidade. No entanto, foi só com o advento dos meios de comunicação de massa, sobretudo com o rádio e a televisão, que esses mitos políticos (assim como a espetacularização da política) ganharam visibilidade nacional e até mundial. O mito é um elemento que ajuda a compor o cenário de representação espetacular da política brasileira. Democracia, Eleições e Participação Política A democracia representativa tem alguns problemas que não podem ser deixados de lado. A representação dos cidadãos pelos políticos eleitos se dá pela impossibilidade de reunir todos os cidadãos em um espaço público para deliberar e decidir os assuntos públicos, como acontecia nas sociedades antigas. A distância e a falta de tempo das pessoas nas sociedades modernas são alguns dos fatores que dificultam o processo de deliberação direta. Esse fato gera uma disputa entre alguns atores políticos que desejam atuar no campo da representação política. A disputa se configura nas eleições, que, por sua vez, fizeram surgir uma área composta por profissionais e especialistas na mediação entre os atores políticos e os eleitores. O problema é que, muitas vezes, o eleitor não conhece a essência do candidato que ajudou a eleger, tudo o que sabe dele é apenas uma imagem produzida. Além disso, em muitos casos, os interesses dos candidatos eleitos divergem totalmente das necessidades dos seus eleitores. Segundo Mauro Porto (2007:21), a “teoria democrática clássica está baseada no pressuposto de que cidadãos bem informados elaboram e expressam com liberdade suas preferências e de que estas preferências influenciam de forma efetiva o processo de tomada de decisão dos governantes”. No entanto, o problema é que existe um vácuo entre as expectativas da teoria democrática e o desempenho real dos cidadãos. Como fazer com que os cidadãos desempenhem tal papel diante do cenário de desigualdade social, econômica, política e cultural em que vivem na sociedade atual? Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 25


A democracia brasileira, organizada com o regime presidencialista, tem a campanha eleitoral como parte integrante do processo que rege o regime democrático. Esse regime só permite aos cidadãos que participem do sistema político a cada dois anos através das eleições e essa participação se restringe a escolher um dos candidatos conforme o que aparenta ser mais conveniente para o eleitor. É só nesses momentos que os eleitores podem avaliar e julgar os seus representantes. No modelo constitucional das democracias liberais, o voto é o momento crucial de expressão da soberania popular. Ao menos em tese, através da eleição os cidadãos concedem sua autorização para que alguns de seus pares exerçam o poder político; e, ao mesmo tempo, manifestam seu veredito sobre o desempenho passado de seus representantes, reelegendo-os ou substituindo-os (MIGUEL, 2003:1).

Gomes (2005:58) afirma que a baixa participação democrática é o diagnóstico sobre o padrão democrático das sociedades contemporâneas. “O que todos vêem como problemático é o sistema de práticas, instituições e valores da política contemporânea à medida que se constata a sua distância de um padrão de democracia considerado ideal”. O pesquisador relata ainda as características que uma democracia efetiva deveria ter para satisfazer aos requisitos básicos de participação democrática: a) um volume adequado de conhecimento político estrutural e circunstancial, um estoque apropriado de informações não-distorcidas e relevantes, suficientes para habilitar o cidadão a níveis adequados de compreensão de questões, argumentos, posições e matérias relativas aos negócios públicos e ao jogo político; b) possibilidade, dada aos cidadãos, de acesso a debates públicos já começados e possibilidade de iniciar novos debates desta natureza, onde a cidadania deveria exercitar a oportunidade de envolver-se em contraposições argumentativas, de desenvolver os seus próprios argumentos, de envolver-se em procedimentos deliberativos no interior dos quais pode formar a própria opinião e decisão políticas; c) meios e oportunidades de participação em instituições democráticas ou em grupos de pressão - mediante ações como voto, afiliação, comparecimento a eventos políticos ou através de outras atividades políticas nacionais ou locais; d) habilitação para e oportunidades eficazes de comunicação da esfera civil com os seus representantes (em níveis local, nacional ou internacional) e para deles cobrar explicações e prestação de conta.(GOMES, 2005:59).

É com base na ausência destes requisitos que muitos pesquisadores se apoiam para analisar uma possível crise o modelo de democracia representativa, ou de democracia liberal. Alguns dos indícios desta crise seriam o desinteresse da população na vida política, a indiferença dos eleitores, o distanciamento entre a classe política e o público, informação política distorcida ou excessivamente dependente dos meios de massa, a carência do sentimento de soberania popular e a desconfiança generalizada com relação à classe política. Devido à ausência destes requisitos básicos e de todos esses indícios identificados, a democracia atual é vista como incapaz de exercer o ideal de democracia nas sociedades contemporâneas. (GOMES, 2005) A Agenda da Mídia A hipótese do agenda setting foi desenvolvida pelos americanos Malcolm McCombs e Donald Shaw (1972) com o intuito de investigar a capacidade de agendamento da mídia na campanha presidencial de 1968 nos Estados Unidos, além de confrontar o que os eleitores afirmaram serem as questões chaves da campanha com o conteúdo expresso pelos meios. Os autores pretendiam averiguar também se as ideias que os votantes julgavam como temas mais relevantes eram moldadas pela cobertura jornalística dos meios de comunicação. Para a realização da pesquisa, foi feita uma pergunta de triagem com a finalidade de identificar os eleitores que não tinham seu candidato definido. A opção por esses eleitores justifica-se como sendo provavelmente os mais abertos ou suscetíveis à informação eleitoral. Paralelamente à realização das entrevistas, foi feita uma análise de conteúdo nos meios de comunicação local, regional e nacional.

26 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Nesse estudo, McCombs e Shaw concluíram que o mundo político é reproduzido de modo imperfeito pelos diversos órgãos de informação. Contudo, as provas desse estudo, de que os eleitores tendem a partilhar a definição composta pela mídia acerca do que é importante, sugerem fortemente a sua função de agendamento. Essa conclusão sugere que os meios têm uma relativa influência sobre os eleitores. Se avaliado dessa forma, os meios teriam uma influência direta sobre as opiniões das pessoas. Todos esses estudos já identificavam a coincidência dos temas da mídia e dos temas das conversas interpessoais, mas não conceitualizavam como agenda setting. Muito antes de se ter o conceito de agenda setting, a imprensa já exercia seu papel de "estruturadora" de percepções e cognições a respeito dos acontecimentos da realidade social. Nos dias atuais a mídia também desempenha esse papel, como, por exemplo, na cobertura de eleições, fazendo enquadramentos restritos do assunto, ou seja, acentuando um ou outro ângulo. No resumo clássico de Cohen (1963), “a mídia pode não ser muitas vezes bem-sucedida dizendo às pessoas o que fazer, mas a mídia é incrivelmente bem-sucedida dizendo à sua audiência sobre o que pensar” (LIMA, 2004:220-221).

A escolha do campo político para as investigações de McCombs e Shaw revela o potencial que a temática possui. Uma vez que a cobertura de uma campanha eleitoral dura em torno de seis meses, os pesquisadores possuem material suficiente para aplicar os esquemas metodológicos na busca pela comprovação da hipótese do agendamento. Durante o período eleitoral, muitos elementos podem emergir de uma cobertura jornalística e se refletir na opinião dos receptores. É nesse momento que os candidatos e partidos estão mais vulneráveis ao julgamento da imprensa e da sociedade. Outra justificativa pela escolha do processo eleitoral se dá pela natureza do assunto. A eleição possui um caráter democrático, mobilizando a população de um país, estado ou município. Neste sentido, observa-se que a hipótese do agenda setting torna-se relevante nos estudos de comunicação. Embora não seja a única linha de investigação que estuda as relações da mídia com a sociedade, conforme a sociedade e os meios de comunicação modificam-se, surgem novas perspectivas para o entendimento dessa relação. HGPE x Mídia: a disputa pela agenda pública É bem verdade que a mídia impõe temas de seu interesse à agenda pública de discussão. No entanto, no período eleitoral, ela não é a única fonte de informações para os eleitores, apesar de ter maior relevância e credibilidade. O Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) é um espaço eletrônico concedido aos candidatos no período eleitoral e serve como alternativa às mensagens políticas impostas pela mídia aos cidadãos, já que as mensagens do HGPE não sofrem interferência dos veículos. Antonio Albino C. Rubim (2003) alega que há um possível descompasso entre a agenda pública construída pela mídia e a agenda pública produzida pelo HGPE. Ele afirma que esse fato pode ser identificado em um estudo de Mauro Porto. Enquanto o tema do emprego e do salário foi enfaticamente tratado no horário eleitoral por praticamente todos os candidatos, servindo de mote central inclusive para algumas candidaturas, como a de José Serra, ele solenemente foi desconhecido pelo Jornal Nacional, pois a temática foi tratada em apenas 1% das 602 matérias do telejornal dedicadas ao pleito presidencial (RUBIM, 2003:17).

Assim, o HGPE pode ser usado pelo candidato para tentar colocar em discussão temas que julgue importante para sua campanha e que estão fora da agenda pública da mídia no momento da eleição. Geralmente os temas alternativos apresentados pelo HGPE têm mais chance de emplacar na sociedade se for um tema que Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 27


corresponda aos anseios da maioria da população na conjuntura eleitoral. Para isso, quase sempre os candidatos fazem uso das pesquisas de opinião para adequar seus discursos e temas introduzidos nos programas. Ainda dentro desta discussão, o HGPE é um importante instrumento na disputa política, pois concede tempo de rádio e televisão a todos os candidatos, tornando a competição um pouco mais justa 3. Na atual era da visibilidade midiática, o HGPE é uma peça-chave no processo eleitoral e passou a ser usado por partidos e políticos com o objetivo de obter maior tempo de transmissão. Para isso, os partidos políticos fazem alianças e coligações com vistas a conseguirem maior tempo de exibição, já que o tempo é distribuído, em parte, de acordo com as bancadas no Legislativo. No entanto, é preciso dizer que o HGPE também tem suas limitações, sendo a mais relevante a desigualdade dos recursos para a produção dos programas. Além disso, existe a crítica de que “o predomínio das técnicas de marketing político tem pasteurizado o conteúdo do horário eleitoral, comprometendo sua destinação inicial, que era gerar o debate político e esclarecer a cidadania” (MIGUEL, 2003:3). Apesar de suas limitações, o HGPE deve ser visto como um importante instrumento de alternativa ao discurso da mídia. No entanto, é preciso levar em conta o seu caráter propagandístico. Ademais, o horário permite uma relativa igualdade de condições para os concorrentes a cargos públicos. Internet, Democracia e Participação Pública Conforme a sociedade e os meios de comunicação modificam-se, surgem novas perspectivas para o entendimento dessa relação. É bem verdade que a mídia impõe temas de seu interesse à agenda pública de discussão. No entanto, ela não é a única fonte de informações para os eleitores, apesar de ter maior relevância e credibilidade. Em um novo contexto de convergência midiática, a agenda da internet e das redes sociais surge como alternativa à agenda da mídia tradicional. As redes sociais estabelecidas através da internet permitem ao cidadão uma maior expressão das suas opiniões e interesses. Através das novas tecnologias muitas pautas foram criadas e protestos organizados, conferindo assim uma participação mais efetiva das pessoas no agendamento das discussões políticas. Os meios de comunicação interativos e descentralizados, como a internet, possibilitam novas formas de ação política antes impossíveis de serem realizadas. De tal modo que a função de organizador do debate político, que era concentrado nos gatekeepers, passou a sofrer a interferência dos meios interativos graças às suas características, como acessibilidade, interatividade e facilidade de se tornar um emissor. Um fator essencial na transformação do quadro de dominação que a mídia vem exercendo sobre a população brasileira é, indubitavelmente, o surgimento dos novos atores sociais através de um meio mais aberto que possibilita a reação da sociedade às imposições dos interesses das empresas de mídia. Ainda que o acesso à internet seja restrito a apenas uma parcela da população, o conteúdo disseminado na rede ultrapassa as fronteiras virtuais, chegando a se tornar objeto de conversas, discussões e comentários fora do mundo virtual. Em parte das discussões sobre internet e democracia, entende-se que o acesso aos meios de comunicação em rede é fundamental para melhorar os níveis de participação civil na vida pública. A internet traz consigo grandes expectativas sobre as possibilidades de participação democrática. No entanto, os recursos tecnológicos por si só não mudam o cenário de participação pública e a cultura política. A internet não frustrou expectativas de participação política porque tampouco poderia formular promessas de transformação da democracia. É um ambiente, um meio que, como ainda é claro 3

A legislação brasileira concede dois tipos de espaço para a política no rádio e na televisão. A propaganda partidária, destinada à difusão dos programas dos partidos políticos, veiculada fora do período de campanha, e a propaganda eleitoral, para a divulgação das candidaturas. Além disso, os candidatos têm direito a spots inseridos durante a programação normal. O tempo é distribuído segundo alguns critérios, entre os quais o número de parlamentares do partido ou da coligação. 28 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


para todos, está pleno de possibilidades, desde que as sociedades consigam dela retirar tudo o que de vantajoso à democracia pode oferecer. E aparentemente a sociedade civil e o Estado não têm ainda conseguido explorar plenamente as possibilidades favoráveis à democracia que a internet contém. (HAMLETT, 2003 apud GOMES, 2005:75).

Em suma, a internet em si não tem a capacidade de transformar e devolver as oportunidades de participação política de que a democracia ideal necessita. Mas ela traz consigo um mundo de possibilidades favoráveis à efetivação dos requisitos básicos para uma democracia mais participativa. a questão hoje não é tanto como a internet vai mudar a vida política, mas, sobretudo, o que pode motivar mais pessoas a ver-se como cidadãos de uma democracia, a envolver-se na política e – para aqueles que têm acesso – a empregar as possibilidades que a rede ainda oferece. Algumas respostas deverão ser encontradas na rede mesma, mas a maioria reside nas nossas circunstâncias sociais (DAHLGREN, 2001:53).

Referências ALBUQUERQUE, Afonso de. O conceito de espetáculo político. Eco/Publicação da Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, I (5): 11-27, 1994. BAYMA, I. F. C. 2002. Dados sobre a concentração da propriedade dos meios de comunicação e o coronelismo eletrônico no Brasil. Disponível em: http://www.eptic.com.br CANEL, Maria José. Comunicación política. Madrid: Ed. Tecnos, 1999. DAHLGREN, P. The Public Sphere and the Net. In: BENNETT, W. L. e ENTMAN, R. M. (Org.) Mediated Politics: Communication in the Future of Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo – Comentários sobre a sociedade do espetáculo, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. FAGEN, R. Política e comunicação. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. GOMES, Wilson. Internet e participação política em sociedades democráticas. Porto Alegre: Revista Famecos, agosto 2005. GOSSELIN, André. La communication politique. Cartographie d´un champ de recherche et d´activités. Paris : Hermès, 1995. LIMA, Venício. Mídia: teoria e política. São Paulo: Perseu Abramo, 2004. MATOS, Heloíza. Hibridização nas práticas de comunicação eleitoral: mídias, tecnologias e formas tradicionais de campanhas. Grenoble: Trabalho apresentado ao Colóquio Internacional da XXIX Intercom e modificado para o VIII Colóquio Brasil-França, 2006. MCCOMBS, Malcolm; SHAW, Donald. The agenda-setting function of mass media. New York: Public Opinion Quaterly, vol. 36, nº 2, 1972. MIGUEL, Luis Felipe. Discursos cruzados: telenoticiários, HPEG e a construção da agenda eleitoral. Trabalho apresentado 2003 RUBIM, Antonio Albino Canelas. Cultura e política na eleição de 2002: as estratégias de Lula presidente. Trabalho apresentado 2003 RUBIM, Antonio Albino Canelas. Espetáculo, política e mídia. Trabalho apresentado na Compós, 2002. SCHAWARTZENBERG, Roger-Gérard. O Estado Espetáculo. São Paulo: THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade – Uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.

Difel,

1978.

WEBER, Maria Helena. Comunicação e espetáculos da política. Porto Alegre: Editora da Universidade – UFRGS, 2000. (1999)

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 29


A REPRESENTAÇÃO DOS COLETIVOS NA IMPRENSA PIAUIENSE1 Alberto Luís Araújo Silva Filho2 Olívia Cristina Perez3 RESUMO O presente artigo tem por objetivo constatar como é construída a imagem de novos tipos de organização da sociedade civil chamadas coletivos, formas de mobilização recentes ainda pouco exploradas pela literatura. O propósito desse trabalho é avançar a discussão descrevendo de que modo as narrativas da imprensa piauiense contribuem para a construção política da imagem desses novos movimentos perante a sociedade local. Para tanto, é utilizada a técnica da análise do conteúdo a partir da sistematização de dador do portal dos três jornais com maior tiragem no estado do Piauí. Com isso, o artigo contribui para uma maior compreensão acerca do papel da mídia na representação dos movimentos sociais. Palavras-chave: imprensa; movimentos sociais; coletivos.

Introdução

O

estudo sobre movimentos sociais no Brasil tem sido marcado por momentos de intensos debates interdisciplinares, e às vezes de refluxos, que ultrapassam as fronteiras da demarcação científica e ganham espaço em uma variedade de áreas do conhecimento como a ciência política, a sociologia, a antropologia, a filosofia e áreas afins, como o campo das pesquisas sobre mídia. O avanço na produção de reflexões teóricas e empíricas é latente quando se observa o surgimento de uma gama de modalidades de engajamento e reivindicação política na arena pública dos últimos anos. Após as Jornadas de Junho de 2013, tem sido uma inquietação constante dos acadêmicos a emergência de uma riqueza de formas de mobilização e de pautas permeáveis à investigação científica. Os movimentos sociais começaram a ser interpretados pelo paradigma marxista como formas de mobilização ligadas à classe trabalhadora com vistas à mudança na ordem capitalista vigente. A partir da década de 1960 começaram a proliferar nos Estados Unidos movimentos que não tinham questões de classe como pauta de luta, mas sim questões ligadas à conquista de direitos relacionados à identidade e cultura como: feminismo, raça, paz mundial. A literatura que se voltou ao estudo dessas novas demandas formou a teoria dos novos movimentos sociais. Autores como Touraine (1994) e Melucci (2001) são representantes dessa corrente. Conforme Melucci (1989), os movimentos sociais não lutariam apenas por bens materiais ou para aumentar sua participação no sistema: eles lutariam por projetos simbólicos e culturais. A luta por reconhecimento e garantia de direitos relacionados a identidades não cessou – pelo contrário, se ampliou. Hoje as pautas dos movimentos versam também sobre outros marcadores sociais da diferença, tais como: orientação sexual, deficiência, região, idade e escolaridade. Além da ampliação das pautas, ampliaram-se os atores. Crescem os movimentos sociais que se auto intitulam coletivos. Os coletivos são organizações jovens bastante presentes nas redes virtuais e universidades. São organizações fluidas e horizontais que propõem a discussão entre seus membros e 1

Trabalho apresentado no GT “Mídia, democracia e cidadania” do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduando em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí e bolsista PIBIC/UFPI pelo projeto “Teorias da ação coletiva e novas formas de mobilização da sociedade civil: a gênese dos coletivos que atuam com a temática de gênero no Estado do Piauí” do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Marcadores Sociais da Diferença (CNPq) 3 Professora de Ciência Política na Universidade Federal do Piauí. Coordenadora do projeto “Teorias da ação coletiva e novas formas de mobilização da sociedade civil: a gênese dos coletivos que atuam com a temática de gênero no Estado do Piauí” do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Marcadores Sociais da Diferença (CNPq). 30 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


seguidores de questões relacionadas ao acesso à cultura, educação e discriminação por gênero, raça e orientação sexual. São eles os objetos de reflexão do presente trabalho. Para se ter uma ideia do fenômeno, foi feita uma pesquisa qualitativa prévia que conseguiu detectar todos os coletivos que atuam na cidade de Teresina. O processo de montagem de uma lista desses movimentos na capital teve início no ano passado por meio da pesquisa em sites da internet e do estabelecimento de contatos informais dos quais se extraiam informações, principalmente dentro da Universidade Federal do Piauí. Com o desenvolvimento da técnica da bola de neve ou snow ball, foi possível obter a indicação de mais uma série de coletivos relacionados a todas as temáticas, o que gerou uma expansão significativa das informações disponíveis aos pesquisadores, mostrando a eficácia do referido método para a construção de investigações qualitativas. A lista informal inicial era dotada de apenas três coletivos: Batuque Feminista, Kátias Coletivas e Coletivo de Gays Mirindiba. Mesmo antes de chegar nesses nomes foi necessário um criterioso processo de eliminação e inserção de movimentos que se auto intitulam coletivos ou não. Com as rodadas “corpo a corpo” com membros e lideranças dessas mobilizações até março de 2017, a lista ficou da seguinte maneira: Quadro 1- Coletivos em Teresina Nome do coletivo Temática abordada Coletiva Batuque Feminista Gênero, raça e sexualidade. Kátias coletivas Gênero e sexualidade Coletivo de Gays Mirindiba Gênero e sexualidade Coletivo GPTRANS Gênero e sexualidade Coletivo RUA Movimento estudantil Coletivo de Mulheres Olga Benário Gênero Coletivo Movimento Mulheres em Luta Gênero Coletivo Atitude Preta Raça Coletivo UJS Movimento estudantil Coletivo Resistência Movimento estudantil Coletivo ENECOS Movimento estudantil Coletivo Correnteza Movimento estudantil Coletivo Verdes Movimento estudantil, meio ambiente. Coletivo UJC Movimento estudantil Coletivo UJR Movimento estudantil Coletivo JUNTOS Movimento estudantil Coletivo Salve Rainha Arte e cultura Coletivo Piauhy Estúdio das Artes Arte e cultura FONTE: Elaborado pelos autores

No quadro 1 é perceptível a importância que ocupa o movimento estudantil como um todo para a formação dos coletivos na cidade de Teresina, já que nove dos dezoito coletivos detectados ao final da montagem da lista empírica. Mas como será que os mesmos são apresentados pela mídia piauiense? É essa a pergunta que guia a pesquisa. Pretende-se compreender os coletivos a partir da representação feita pela mídia, ou, em outras palavras, como a mídia entende e apresenta os coletivos do estado do Piauí. Representação e mídia são dois conceitos que casados deram vazão para uma série de estudos no país sobre campanhas eleitorais ou mesmo sobre estereótipos sociais, a exemplo do arsenal de produções realizado nas décadas de 1990 e 2000 por Luís Felipe Miguel, Veníncio Lima, Flávia Biroli, Antônio Rubim, Marcos Filgueira, entre outros que entenderam a importância do papel da comunicação para a política nos seus

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 31


escritos. O marco desse período foi a revista Comunicação & Política, fundada em 1995, que aproximou estudiosos da comunicação dos de outras áreas como a ciência política (RUBIM, AZEVEDO, 1998). A agenda de pesquisa sobre movimentos sociais, entretanto, ainda não conseguiu captar essa linha e por essa razão são escassos os estudos sobre representação dos movimentos sociais na mídia. Portanto, mais do que fazer um simples exercício descritivo, esse trabalho é também um esforço, em nível local, de expor os discursos e impasses relacionados ao local dos coletivos na imprensa, análise que poderá ser replicada em espaços maiores e com outros tipos de movimentos. Metodologia O presente trabalho traz uma análise de conteúdo acerca da maneira pela qual os três portais ligados aos jornais mais lidos do estado do Piauí (Cidade Verde, Meio Norte e Portal O Dia) retratam os coletivos. Utilizou-se o mecanismo de busca nos portais citados. Em tais mecanismos foi digitada a palavra coletivos e os resultados foram sistematizados no sentido de verificar quais as principais abordagens da imprensa piauiense sobre essa forma de mobilização social. As notícias foram coletadas no mês de abril de 2017. Por se tratar de uma pesquisa exploratória sobre um fenômeno pouco estudado, optou-se pela seleção da mídia piauiense com base no critério de conveniência. Após a escolha do local, verificou-se os jornais mais lidos e os portais da internet ligados a esses jornais: Portal Cidade Verde, Portal Meio Norte e Portal O Dia. Após as buscas foi encontrado um total de 135 notícias que ou faziam referência aos coletivos ou tinham os coletivos como temas centrais. A análise de conteúdo foi a ferramenta utilizada para captar as sutilezas e os tratamentos, positivos ou negativos, pelos quais a imprensa mobiliza as informações em torno dos movimentos e as fornece aos internautas. Além disso, foi utilizada a técnica das entrevistas no caso do coletivo Salve Rainha, o mais abordado dentre as notícias, para se conhecer um pouco mais a respeito do trabalho da organização com base no olhar de um dos seus membros. Trechos da “sabatina” são reproduzidos abaixo. Sabe-se que a internet está longe de constituir o mesmo peso que a categoria telespectadores possui, tendo em vista que cerca de 42% dos brasileiros não tem conexão alguma com a rede (EBC, 2016). No entanto, considera-se fundamental o estudo da forma como os movimentos sociais são tratados já que a mídia reproduz e produz ações, mesmo na web. Resultados Após a consulta aos portais eletrônicos, foi verificado que o Portal Cidade Verde é o que mais noticia os coletivos. A distribuição de notícias sobre coletivos nos portais está sistematizada no quadro 2: Quadro 2 - Distribuição de notícias sobre coletivos Nome do portal Número de notícias sobre coletivos Cidade Verde Meio Norte O DIA Total

84 18 36 135 FONTE: Elaborado pelos autores

O Portal Cidade Verde predomina entre os três sites mais lidos a respeito dos coletivos. Isso se deve a sua ação incisiva na cobertura acerca da tragédia envolvendo os idealizadores do Salve Rainha. Um ponto a se destacar é que sem a ocorrência de tal fato as 135 notícias que compõem a totalidade das matérias detectadas seriam bem menos da metade encontrada na sondagem dentro dos três portais. “O Dia” é um exemplo. Nele, apenas notícias relacionadas ao Coletivo Salve Rainha aparecem.

32 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Boa parte dos coletivos listados no quadro 1 não aparece em nenhum momento nos portais de notícias selecionados. A invisibilização com os coletivos do movimento estudantil, que contraditoriamente são os detectados em maior número no projeto, suscita hipóteses. Talvez as percepções que fundam os imaginários emitidos na mídia eletrônica também possuam razões de ser: ligadas a visões de mundo que englobam proprietários dos meios de comunicações ou jornalistas como um todo (RIBEIRO, 2004). Os coletivos mais citados são os seguintes: Quadro 3- Coletivos citados pela mídia piauiense Nome dos coletivos exibidos nas notícias Número de vezes em que é exibido Coletivo Salve Rainha 126 Coletivo UJS 03 Coletivo de Gays Mirindiba 02 Coletiva Batuque Feminista 01 Coletivo GPTRANS 01 Coletivo Movimento Mulheres em Luta 01 Kátias coletivas 01 FONTE: Elaborado pelos autores

O quadro 3 apresenta uma hegemonia do Coletivo Salve Rainha no campo das notícias que fazem menção ou se focam em coletivos. O movimento criado em 2014 aparece cento e vinte seis vezes nos portais analisados. O que torna o coletivo Salve Rainha o mais abordado pela imprensa piauiense quando são realizadas as buscas em portais? A atratividade artístico-cultural promovida pelos movimentos ou outros acontecimentos que evidenciaram o seu nome diante da sociedade local? Certamente, a segunda resposta é a mais coerente. Sobre o coletivo, um de seus membros foi entrevistado e fala da sua criação, bem como do acidente ocorrido com o idealizador do movimento e das consequências advindas disso para a equipe estruturada inicialmente: “(...) começou com o Júnior, ele morava aqui, era formado em jornalismo. Ele foi morar um tempo em Florianópolis. Quando ele voltou, ele se juntou com um grupo de amigos querendo montar o que eu te falei: um café com uma galeria de arte. Como ele nunca teve verba pra isso, ele foi procurando uma mediação, de implantar a ideia dele, de uma maneira social e sem fins lucrativos, onde ele pudesse realmente promover o trabalho dele. Até um dia que ele, quem sabe, conseguisse o que ele queria que foi... Cara, o sonho dele era receber esse quiosque. Que ele nunca na vida esperava que fosse receber esse quiosque. Três dias depois, ele sofreu um acidente, morreu. E a gente teve que ser mais forte do que nunca, porque ele não tinha uma relação muito próxima com a família, então a família dele era a gente. E mesmo durante... e o irmão dele também tava durante o acidente e o irmão dele também era do coletivo. E... a gente teve que realmente sustentar o café, sustentar a associação. Tinha temporada chegando, tinha esse café que a gente, caiu aqui mesmo de paraquedas. Sem saber, sem nenhuma noção de cozinha, de atendimento, de absolutamente nada...” (MEMBRO DO COLETIVO SALVE RAINHA, 08/04/2017)

A maioria esmagadora das notícias nas quais o coletivo Salve Rainha aparece tem a ver com o acidente dos irmãos idealizadores do projeto que obteve ampla repercussão no noticiário local. Ainda falando sobre a criação do coletivo, o membro relembra o seu idealizador: “Por convite dele. Como eu te falei, era bem menor. Basicamente o que era o coletivo? Era um bando de bicha de saias num domingo de festa e no centro de Teresina num lugar underground. Um lugar cult underground. E ele convidou a gente mesmo, porque tinham que ser bichas ousadas, porque tinha que ter muito sangue no olho. Vontade e amor à arte mesmo. Porque não tinha o que fazer, só o amor mesmo, a vontade de amar a arte, de proliferar a arte, a dança, enfim, a cultura. E começou assim, com o convite dele, ele era uma pessoa apaixonante’ (MEMBRO DO COLETIVO SALVE RAINHA, 08/04/2017)

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 33


Outro fato que contribuiu para o coletivo ganhar um espaço desproporcional na mídia em relação a outros movimentos sociais diz respeito ao episódio de nudez protagonizado pela dupla Ana Larousse e Léo Fressato em uma das intervenções realizadas pelo coletivo. Por ter se dado em um local público da cidade de Teresina, o Parque da Cidadania, e por ir de encontro a alguns paradigmas moral da comunidade local, a “nudez” logo virou um eficaz divisor na opinião pública, despertando paixões a favor e contra a postura do coletivo em ter permitido que a apresentação artística se desse de tal maneira. Quanto à abordagem do acidente, o “Salve Rainha” é um elemento que subsome, tornando-se objeto de menção. A maneira pela qual a imprensa repercute o caso exibe um tratamento antagonizado dos fatos com notícias que põem de um lado as vítimas do acidente e de outro o motorista alcoolizado responsável pela tragédia. De um lado, é dada a voz para que o pai das vítimas fale, para que os promotores acusem, para que a juíza diga quais serão as próximas providências a serem tomadas em relação ao criminoso. Do outro, não há uma narrativa do motorista que por meio das imagens amplamente divulgadas do acidente ocorrido na Avenida Miguel Rosa acabou por ser condenado de imediato pela opinião pública. Além da produção do antagonismo vítima versus culpado que mobilizou uma série de comentários nas redes sociais a partir das notícias reproduzidas pelos principais portais, a mídia piauiense evidenciou o caso também como ocorrência de conscientização e de comoção. De conscientização na medida em que serviu como “gatilho” para expor a pauta da violência no trânsito causada pela ingestão de bebidas alcóolicas. De comoção tendo em vista que são várias as notícias que expõem a tragédia emocional do pai, o desespero dos amigos, a dor de todo um grupo que acompanhava o trabalho das vítimas. Dos três acidentados, dois vieram a falecer. O velório notadamente distinto também foi objeto profundo para matérias, bem como a repercussão que o acidente obteve junto às autoridades públicas: repercussão essa que levou a homenagens seguidas aos irmãos mortos, que iam desde desfiles de sanfoneiros até a promulgação pelo prefeito Firmino Filho em parceria com a Secretaria de Cultura de que o nome do novo museu a ser inaugurado em Teresina levaria o nome de Júnior, o idealizador do movimento de ocupação de espaços abandonados da cidade como o antigo prédio da Câmara Municipal e o Sanatório Meduna. “Salve Rainha” é um nome apenas, o acidente tornou-se o foco. As notícias foram base de construção para toda uma narrativa. Uma narrativa que teve múltiplos “centros” conforme passava o tempo após o acidente. Notícias de dentro do hospital, como a de uma enfermeira que tirou uma “self” durante a cirurgia de Júnior ou do estado de saúde dos acidentados, e notícias de fora desse local que corriam a todo vapor no que diz respeito à imputação de penas ao sujeito responsável pelo acidente. A narrativa e o que se pode obter dela fez do coletivo Salve Rainha não só um movimento promotor de atividades lúcidas que atraem jovens durante a realização de suas temporadas, conforme destacam notícias anteriores com uma abordagem bastante positiva, mas o transformou sobretudo em uma reunião de pessoas da cena cultura municipal que agora viviam a dor. Quando do caso do episódio de nudez, as particularidades dos indivíduos desaparecem. “Salve Rainha” deixa de ser um termo subsumido ou um nome que acompanha notícias trágicas e passa a ser “o movimento”, “o coletivo”, “o evento” no qual tem lugar a polêmica, a nudez, o escândalo. Nesse caso, uma opinião pública se manifesta amplamente nas redes sociais revoltada com a ocorrência do episódio em parque público. A mídia cumpre aqui o papel de noticiar o fato e ainda expor vídeos gravados no momento em que a dupla protagonizava o fato. O simples ato de despir-se leva ao debate dos principais portais a questão da legitimidade do movimento. Nesse fato, como no acidente, a Prefeitura de Teresina se levanta em apoio, o que mostra a abertura da gestão municipal para o coletivo; a relação intrínseca de um movimento social com as arenas institucionais do Estado (ABERS, BULOW, 2012; GURZA LAVALLE, SZWAKO, 2015). Ora o movimento é mencionado, ora o movimento protagoniza a notícia. O importante é perceber é que como nunca um movimento auto intitulado coletivo é mencionado com tamanha frequência pelos veículos mais lidos da imprensa local. Os outros coletivos exibidos nas notícias por não estarem envolvidos em fatos de tamanha proporção aparecem escassamente. Mas não aparecem dessa forma principalmente por não terem tanta evidência em termos de público. São movimentos de reivindicação política, muitas vezes conhecidos apenas por aqueles que participam ou conhecem sujeitos que participam. 34 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Não promovem atividades artístico-culturais na mesma frequência do Salve Rainha e nem do mesmo tipo: abertas, plurais e em espaços de grande visibilidade como o Parque da Cidadania ou Sanatório Meduna (local que também despertou debates sobre a legitimidade das intervenções do movimento). O apoio consistente da Prefeitura desde a terceira gestão Firmino Filho (2013 – 2016) também ajuda na evocação do movimento pela imprensa, já que declarações públicas da prefeitura tanto em relação ao apoio cotidiano quanto em relação aos fatos mais midiatizados que se passaram ajudaram no fomento ao número de notícias que trouxeram o coletivo de forma mencionada ou de forma central. Mas os incentivos da prefeitura por si só não explicam essa centralidade no noticiário. A tragédia dos idealizadores sim. O Coletivo de Gays Mirindiba reforça isso, já que pouco foi noticiado, embora seus membros estabeleçam um vínculo significativo com a gestão municipal. Nas duas notícias em que aparece, o Coletivo de Gays Mirindiba aparece nas duas vezes de maneira mencionada. Nessas duas menções, o que há são destaques da atuação da prefeitura no que diz respeito à abertura de “janelas de oportunidades” à sociedade civil. Uma delas é de 2010 e fala sobre a inauguração do Conselho Municipal LGBT em Teresina, primeira cidade do Nordeste a ter um mecanismo de participação social dessa natureza. Outra de 2016 destaca o ritual de posse dos conselheiros municipais LGBT. O Coletivo GPTRANS é mencionado nessa notícia. Por sinal é a única vez na qual é mencionado no âmbito da pesquisa global dos três portais. O Coletivo União da Juventude Socialista, por sua vez, aparece três vezes. Também como menção nas três vezes. Duas notícias são do Portal Cidade Verde: uma relacionada a um manifesto local por uma educação pública de qualidade e sem militarização no qual a entidade do movimento estudantil assina; a outra é referente a ocupação de um prédio de INSS em Teresina pelos funcionários, fato que contou com a solidariedade de membros do coletivo. Ambas as notícias são de 2016. No Meio Norte, mais uma notícia em que aparece a UJS. Dessa vez do ano de 2012. A notícia fala da pretensão de algumas entidades de se reunirem a favor da redução do ICMS do Diesel. Uma delas era a UJS. Os demais coletivos aparecem apenas uma vez. Juntamente com o Coletivo GPTRANS estão: a Coletiva Batuque Feminista, o Coletivo Movimento Mulheres em Luta e o Kátias Coletivas. A Coletiva Batuque Feminista aparece em uma notícia de 2014, ano de sua criação, no Portal Cidade Verde. A matéria relata a realização do primeiro encontro do Batuque Feminista que ocorreu na Universidade Federal do Piauí em maio daquele ano. O Coletivo Movimento Mulheres em Luta aparece em uma notícia de 2013 relativa a um show que o movimento promoveria relacionado a segunda edição do evento beneficente “Mulheres São Fortes” que arrecadaria fundos para que membros do coletivo participassem de um encontro nacional de mulheres em Belo Horizonte. Já a notícia acerca do Kátias Coletivas é do ano de 2015 e está presente no Portal Cidade Verde. Na toada do Movimento Mulheres em Luta e da Coletiva Batuque Feminista, a matéria também é relacionada à divulgação de um evento promovido pelo movimento: o Talk Show “Telúrica dos Sentidos” que ocorreu na Universidade Federal do Piauí. A diferença elementar é que era uma notícia que divulgava o evento após ocorrido e não antes como no caso do Coletivo Movimento Mulheres em Luta e da Coletiva Batuque Feminista, que chegou a ter o cartaz com a programação do evento que realizaria exposto na matéria. Somados todos os coletivos exibidos pela imprensa piauiense, em seus três portais mais lidos, as abordagens predominantes por coletivo foram as seguintes: Quadro 4 – Abordagens predominantes Nome do coletivo Abordagem predominante Coletivo Salve Rainha Tragédia envolvendo membros do movimento Coletivo UJS Reivindicação política Coletivo de Gays Mirindiba Parceria com o poder público Coletiva Batuque Feminista Divulgação de evento Coletivo GPTRANS Parceria com o poder público Coletivo Movimento Mulheres em Luta Divulgação de evento Kátias Coletivas Divulgação de evento FONTE: Elaborado pelo autor (2017)

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 35


A abordagens majoritárias dentre as predominantes nas notícias foram a de “divulgação de evento” e a de “parceria com o poder público”. Porém, isso se dá quando isolamos os tipos de abordagens. Como se pode ver, no total de notícias a tragédia envolvendo os membros do coletivo Salve Rainha faz com que o coletivo lidere com folga a lista dos mais visibilizados no âmbito dos portais da cidade de Teresina. Algumas manchetes relacionadas à temática dos coletivos podem ser observadas nas imagens abaixo. Todas as ilustrações se relacionam com o movimento de maior visibilidade: Imagem 1 – Notícia do Portal Cidade Verde

Imagem 2 – Notícia do Portal O DIA

36 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Imagem 3 – Notícia do Portal Meio Norte

Considerações finais Os coletivos enquanto movimentos sociais que vem ganhando cada vez mais espaço nos espaços acadêmicos e também fora dos mesmos ainda são objeto de estudo de poucos pesquisadores na literatura nacional. Sinais disso são a ausência de uma definição teórica sobre “coletivos” e a escassez de estudos de caso a respeito. Estudos que abordem a representação dos coletivos na imprensa são inexistentes, o que aponta para uma lacuna grave nos estudos sobre movimentos sociais. Aponta também para a perca da oportunidade de um importante diálogo entre as correntes da literatura de comunicação e as correntes da literatura em ciência política que tem se debruçado sobre os movimentos sociais e sobre a sociedade civil como um todo. Dessa forma, o presente artigo caminha no sentido de propor, descritivamente, uma análise do conteúdo de notícias relacionadas a modalidades de engajamento e reivindicação políticas. Como se pode observar, os três portais mais lidos da imprensa piauiense possuem um fluxo de notícias relativamente numeroso a respeito desses movimentos sociais. No entanto, essas notícias estão extremamente concentradas em um veículo de comunicação, em um dos coletivos e em um fato específico envolvendo membros desse coletivo que chamou a atenção da sociedade local quando divulgado. Duas hipóteses podem ser aventadas a partir daí e devem servir para que outros pesquisadores as explorem: o fato de que o Portal Cidade Verde possui maior abertura para notícias relacionadas aos movimentos sociais, inclusive com abordagens por vezes positivas, e a de que o imaginário de antagonismos ainda é decisivo, mesmo que indiretamente, para que algumas atuações contra hegemônicas, comumente marginalizadas, ganhem espaço na pauta de veículos de comunicação prestigiados, como é notório no caso do Piauí. Referências ABERS, Rebecca; VON BÜLOW, Marisa. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade? Sociologias, ano 13, n. 28, 2011. p.52-84. LAVALLE, A. G. e SWAKO, J. 2015. Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate. Opinião Pública, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, p. 157-187. MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: Movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. RIBEIRO, Pedro José Floriano. Campanhas eleitorais em sociedades midiáticas: articulando e revisando conceitos. Revista de Sociologia Política. Curitiba, 22, p. 25-43, jun. 2004. RUBIM. A.A.C. AZEVEDO. F.A. Mídia e política no Brasil: textos e agendas de pesquisa. Texto apresentado no Seminário Temático, “Mídia, Política e Opinião Pública” – ANPOCS, 1997. Lua Nova Nª43 – 98. TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Tradução de Elia Ferreira Edel. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 37


Sites consultados

Cidade Verde Meio Norte O Dia

38 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A HIPÓTESE DO TELESPECTADOR REGIONAL E O CARÁTER HERMENÊUTICO DO RECEPTOR NO CONTEXTO MIDIÁTICO GLOBAL

1

Julimar Pereira da Silva2 Samantha Viana Castelo Branco Rocha Carvalho3 RESUMO A proposta do artigo é uma reflexão sobre a hipótese do telespectador regional, que emerge com a criação dos grupos midiáticos regionais a partir anos 1970 no Brasil, momento em que veículos de comunicação iniciam a produção e difusão em suas programações de conteúdos regionais. Para tanto, se fará uma revisão bibliográfica de autores que pensam e teorizam sobre Jornalismo Regional e TV Regional, bem como, sobre o caráter hermenêutico do receptor, que por longo tempo foi encarado por estudos acadêmicos como um sujeito passivo diante do processo comunicacional, mas que passou nos últimos anos 30 anos a ser considerado como produtor de significados. Este olhar vai ao encontro modo de pensar atual, que é caracterizado pelo redimensionamento da noção espaço e tempo, principalmente impulsionado pelas Tecnologias da Comunicação e Informação (TICs), conquistas que evidenciaram a interdependência dos processos de globalização, regionalização e localização. Palavras-chave: Regionalização; Jornalismo Regional; Telespectador Regional; Dispositivo; Polemológico.

Introdução

E

m um contexto marcado pela velocidade das interações, devido às transformações técnicas, que ajudaram a encurtar distâncias, do redimensionamento das noções de tempo-espaço, devido às inovações advindas das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), falar em globalização da informação se tornou lugar comum. Embora a informação seja compartilhada em escala cada vez mais transnacional, e porque não dizer global, a regionalização dos grupos midiáticos, que começa nos anos 1970 e segue até os dias atuais, remete ao processo localizador das apropriações dos conteúdos que são disponibilizados diariamente aos telespectadores. O surgimento dos grupos de mídia regionais no Brasil fez emergir, conforme a hipótese levantada, um sujeito, que tem caráter hermenêutico, e, portanto, ativo, produtor de sentidos e transformador dos produtos que consome por meio de seus usos e práticas em prol dos seus interesses, ou seja, o telespectador regional. O presente ensaio intenta refletir sobre a hipótese do telespectador regional, que anseia por um jornalismo regional que responda às suas demandas seja no meio televisivo ou em outros suportes. A reflexão consiste em revisão bibliográfica sobre Jornalismo Regional (Camponez, 2012); TV Regional (BAZI, 2001). Faz-se premente um olhar sobre o caráter hermenêutico do receptor, encarado como produtor de significados, como expressam Thompson (1998) e Rosseto (2007). Em Agamben (2009), são significativas as contribuições sobre “dispositivo”, “subjetivação” e “dessubjetivação”, processos que se manifestam com a multiplicidade de dispositivos na atual fase do capitalismo. Por fim, é em Certeau (1998) que o telespectador regional ganha substância, pois, se estabelece uma relação com as noções de

1

Trabalho apresentado no GT 02 - Mídia, Democracia e Cidadania do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestrando em Comunicação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí (PPGCOM/UFPI). Endereço eletrônico: julimarsilvareporterj@gmail.com. 3 Orientadora: Jornalista. Graduada em Comunicação Social - Habilitação Jornalismo, pela Universidade Federal do Piauí. Mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo. Doutora em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 39


“estratégia” e “tática”, que demonstram o papel do sujeito que produz por meio dos usos e práticas sociais, resultantes daquilo que consome. A regionalização televisiva no Brasil e o jornalismo regional Somente 30 anos depois da inauguração da televisão no Brasil, que surgiu em 1950 em São Paulo, é que o processo de regionalização midiática começa a acontecer efetivamente nos anos 1970, com a produção de conteúdos na própria região em que o veículo de comunicação está instalado. A Rede Brasil Sul (RBS) é um exemplo pioneiro no Rio Grande do Sul. A família Sirotsky criou um dos maiores grupos de mídia regionais do país, afiliado à Rede Globo em 1978. Em 1979, outra afiliada das Organizações Globo, a Rede de Emissoras Pioneiras de Televisão (EPTV), também foi criada. Outros exemplos são percebidos em diferentes regiões no país, na sua grande maioria tendo a Rede Globo como “cabeça de rede”. As Organizações Jaime Câmara (OJC) no Centro Oeste; a Rede Amazônia de Rádio e Televisão (RART) na região Norte; Zahran no Estado do Mato Grosso; Verdes Mares no Ceará; TV Mirante no Maranhão; Rede Clube de Televisão no Piauí são destaques, (CABRAL, 2006). Ou seja, as tevês regionais não apenas ligadas a Rede Globo, mas ao Sistema Brasileiro de Televisão, Record e Bandeirantes, são instalados em diferentes regiões do país: “consideramos uma televisão regional aquela que retransmite seu sinal a uma determinada região e que tenha sua programação voltada para ela mesma” (BAZI, 2001, p.16). Peruzzo (2005) elenca três motivações para a instalação de grupos midiáticos no interior do Brasil: o primeiro deles é mercadológico, ou seja, a captação de publicidade no interior do país; o segundo, o relacionamento com o território, que para além da noção de território do ponto de vista geográfico aglutina outras dimensões, de “base cultural, ideológica, idiomática, de circulação de informação e etc” (PERUZZO, 2005). Dimensões como as de familiaridade no campo das identidades histórico- culturais (língua, tradições, valores, religião etc.) e de proximidade de interesses (ideológicos, políticos, de segurança, crenças etc.) são tão importantes quanto as de base física. São elementos propiciadores de elos culturais e laços comunitários que a simples delimitação geográfica pode não ser capaz de conter (PERUZZO, 2005, p.74).

As TICs reconfiguram a noção tempo e espaço com o surgimento do ciberespaço, ampliando a ideia de espaço público, que historicamente só se constitui mais claramente com o advento da imprensa na Idade Moderna. Antes, o entendimento de “esfera pública” se confundia com o que era privado, pela dificuldade dos governantes de separarem os interesses dos seus grupos ao exercício do poder. O entendimento de “esfera pública” na compreensão de Lévy (2005) é construído pela imprensa. O “espaço público” é caracterizado pelo que é tornado público por meio de informações divulgadas nos “jornais, revistas ou livros, nitidamente distinta de uma esfera privada [...] a imprensa criou um espaço público capaz de reunir milhões de pessoas dispersas em um vasto território e falando a mesma língua” (LÉVY, 2005, p. 368). O rádio, o cinema e a televisão dão projeção ampliada durante o século XX a esta noção. Com as transmissões realizadas com o auxílio dos satélites, a esfera pública que era reforçada no seu aspecto nacional, ganha dimensões ainda maiores a partir dos anos 1960. A popularização da Internet no final dos anos 1980 e o surgimento da World Wide Web em 1994, foram importantes avanços que permitiram a emergência do ciberespaço, reforça Lévy (2005, p. 369), introduzindo elementos até então impensados: “a interconexão geral, a desintermediação e a comunicação de todos com todos”. É dentro deste contexto que se insere o telespectador regional. Este ator interage no ciberespaço e busca pertencer à sociedade em rede. No entanto, fazer parte da network society significa estar imerso no espaço dos fluxos, que, como lembra o sociólogo italiano Andrea Miconi (2008, p. 267-268), é caracterizado pela inclusão e pela exclusão “pode incluir apesar da distância, mas também exclui apesar da proximidade geográfica, atendendo àquela dupla lógica de inclusão e exclusão que constitui a gramática elementar da rede”.

40 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Neste contexto, a ideia de jornalismo regional também não é unanime. A seguir, são apresentadas três compreensões, que se mostram complementares quando entendidas em suas inter-relações: a primeira, lançada por Lacerda (2006, p.65), destaca que no Brasil o jornalismo regional, tributário da visão norteamericana, que seria inspirada no Civic Jornalism (JC) incorporando as noções de “responsabilidade objetiva” e “compromisso social”; um segundo entendimento, bem próximo do anterior, aludido pelo pesquisador português Carlos Camponez (2012, p. 36-37), defende uma ética da proximidade no jornalismo a partir da demarcação da atuação do meio de comunicação. O seu intento é que a imprensa possa equilibrar aspectos mercadológicos, éticos e deontológicos, por meio do conceito de pacto comunicacional “realizado no contexto de comunidades que se reconhecem com base em valores e interesses construídos e recriados localmente [...] onde intervêm critérios como espaço geográfico de implantação do projeto editorial”. A terceira compreensão do jornalismo regional é a do jornalista Carlos Nascimento (2012, p.13), que está mais sintonizada com a ideia de uma comunicação menos bairrista e mais interdependente, por acreditar que “a primeira condição para existir um jornalismo regional é que seja universal”, significa que o olhar do telespectador deve também ir além dos seus limites territoriais de sua vivência, por isto, defende que os meios de comunicação tenham essa preocupação. O telespectador regional entre a organização dos relatos sociais e a reestruturação do espaço público Canclini (2010), ao perceber como as organizações sociais e o próprio indivíduo se constituem no espetáculo multimídia, a partir do século XX, assevera que “a identidade é uma construção que se narra”. A frase desnuda o caráter histórico das identidades, que se modificam ao sabor do contexto, ou seja, são construídas e transformadas pelas pessoas, por meio dos usos que fazem de suas tecnologias, que contribuem para a ressignificação das suas vidas e criações. Ponto importante a esta abordagem, se mostra quando ressalta a contribuição do rádio e do cinema no processo de organização dos relatos das identidades, ao tempo em que são propagadores do sentido de cidadania nas sociedades nacionais. Os meios de comunicação aparecem como veículos agregadores de acontecimentos coletivos e dos relatos cotidianos, mas não apenas isto, dos “hábitos e gostos comuns, os modos de falar e de vestir que diferenciavam uns povos dos outros” (CANCLINI, 2010, p.129). Os meios de comunicação, ao fazerem parte da vida social, promovem a emergência de personagens até então desconhecidos, como no caso da imprensa escrita, os leitores; no rádio, os ouvintes; no cinema, o espectador; e com o advento da televisão, o telespectador. Cria-se um hábito de ouvir e assistir as emissoras. Se o cinema e o rádio nos 1940 e 1950 do século XX foram responsáveis por narrativas que embalavam os ouvintes e espectadores, que eram fascinados pelas transmissões, a chegada da televisão, no Brasil, que no princípio era uma novidade e causava estranhamento, logo em seguida, passa a ser algo familiar. Tudo isso, graças à popularização dos aparelhos receptores que ficam mais baratos e acessíveis a uma população que se foi acostumando a acompanhar imagens em movimento, com atrações do teatro que eram retratadas na tevê, e posteriormente, com suas produções próprias. Quando nos anos 1970, os grupos de mídia começam a produzir conteúdo regional no Brasil, emerge, além de um telespectador mais próximo dos veículos de comunicação, um indivíduo, com maior possibilidade de interferência no que viria posteriormente se designar de televisão regional. Essa intervenção se dá através das sugestões de pautas, por exemplo. A produção jornalística desenvolvida em emissoras pertencentes a grupos de mídia regionais nos moldes que permanecem até os dias atuais, ligados a uma emissora nacional (cabeça de rede), foi um formato que permitiu a integração nacional, e apesar de destinar pouco espaço às emissoras sediadas nas capitais dos estados (praças), representou uma aproximação entre a emissora, o jornalista e o telespectador das notícias, relevando uma experiência não permitida até então. Este fenômeno já se fazia presente no veículo impresso, entre o leitor, repórter e o jornal; no rádio entre o ouvinte, radialista e a veículo e etc, mas com outros significados, sem as imagens em movimento.

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 41


Quando a televisão chega ao Piauí com a TV Rádio Clube em 1974, este processo é iniciado no Estado. Os piauienses de Teresina, em sua maioria, passam a experimentar um novo hábito, o de assistir a televisão local, que mais tarde, chega a outros municípios (CALAND, 2014). O surgimento de outras emissoras: TV Cidade Verde; Rede Meio Norte; TV Antena 10; e TV Antares, para citar as mais antigas, abre-se mais espaço para que flashes da realidade sejam evidenciados em horários pré-estabelecidos em suas grades de programação, além de permitirem algum grau participação das pessoas, tanto da capital, quanto do interior do Piauí. Ou seja, o telespectador regional a que nos referimos é aquele sujeito que tem: proximidade com o veículo de comunicação; consegue pautar assuntos do conteúdo da emissora com frequência; e além de se vê na tevê, deseja que suas demandas sejam resolvidas. Os veículos de comunicação reconfiguram o espaço público, passando a dar significados ao mundo fenomênico, que ao ser capturado pelo equipamento eletrônico, a câmera filmadora, já não é mais o mesmo, que será exibido alguns minutos ou horas depois. Este processo até a exibição pode ser entendido, deste modo: a imagem colhida, a entrevista gravada, a reportagem editada, passam por diversos processos que tornam a mensagem audiovisual, um produto, ideologicamente redimensionado, que será transmitido como espelho da realidade objetiva percebida pelas retinas daqueles que vivem em outro tempo, o tempo da vida e não o tempo da realidade editada dos meios de comunicação. O conteúdo filmado e editado recebe tratamento especial através de programas de edição. Até mesmo quando da exibição de uma reportagem, antes ou depois, um comentário verbalizado pelo apresentador do programa de televisão pode interferir ou não, na maneira como o que é exibido, será ou não percebido pelos telespectadores, dentro de suas possibilidades, a partir do que lhe é mostrado como resultado dos enquadramentos eleitos pela equipe de reportagem e que chegará ao telespectador, aqui chamado de telespectador regional, que está em sua residência no horário da exibição do conteúdo: “No jornalismo de televisão a ideologia é transmitida por um sistema de linguagem que rege a maneira como é capturada a imagem até a forma como é encadeada a narrativa – a edição” (CURADO, 2002, p.170). Os grupos de mídia regionais, que também estão dentro desta lógica, são organizados em consonância com os preceitos do capitalismo monopolista e em “rede”: A “rede” é um tipo de organização empresarial monopolista, que possibilita uma concentração técnica e burocrática da produção e diminui os riscos para os seus elevados investimentos. A rede é também especialmente vantajosa para os investidores publicitários. (SODRÉ, 2010, p.102).

Ou seja, a informação é entendida como mercadoria e produto ideológico de um sistema que se mantém com base no lucro. É dentro desta lógica, que se busca entender o telespectador regional, que muda sua atuação, conforme os meios de comunicação são redimensionados na sociedade cada vez mais imersa no sistema global. O caráter hermenêutico do telespectador regional, as organizações de mídia e a sociedade em rede O convite à participação na sociedade capitalista se apresenta um tanto paradoxal. Embora participação tenha se tornado um tema frequente na literatura após a queda dos regimes de governos autoritários e emergência das democracias, observa-se que a questão desperta interesse favorável e contrario. Tradicionalistas acreditam na possibilidade de manejar o povo a partir da sensação de participação, diferente do que pensam os progressistas. Os defensores de uma participação mais efetiva acreditam que ela “facilita o crescimento da consciência crítica da população, fortalece seu poder de reivindicação e a prepara para adquirir mais poder na sociedade” (BORDENAVE 1994, p.12). Na tentativa de lançarmos um olhar mais ampliado e menos inquisidor sobre a questão tratada, uma reflexão sobre os estudos de recepção demonstram que a percepção acerca do leitor do texto artístico na estética da recepção saiu de uma ótica que o encarava como um ator passivo, para a de produtor ativo. A estética da recepção passa a considerar que a obra de arte, se constitui a partir da relação 42 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


entre autor, obra e leitor. Rosseto (2007), quando discute a estética da recepção, ao tempo em que apresenta as contribuições teóricas de Hans Robert Jauss (1921-1997), pertencente à escola crítica-estética alemã, acredita que a obra de arte não pode prescindir do leitor, e em neste caso, o ouvinte ou espectador como fator essencial. Essa abertura de perspectiva rompe com a noção marxista que concebia a obra de arte sendo constituída apenas com a presença do seu autor e obra. Ao atribuir significados a aquilo que ler, Rosseto (2007, p.47) destaca que “esta orientação serviu para precisar que ler não é só decodificar os signos do sistema da língua, como também construir significados”, por conseguinte, o receptor sai da condição de mero indivíduo passivo para alçar a de agente do processo de significação da realidade. Uma obra de arte é um produto de teias de efeitos comunicativos, caminhos que abrem para a configuração de um real sentido e estimulado pela sensibilidade e experiência. Qualquer produto acabado necessita de um destinatário – um ser concreto, com planos vivenciais, com uma ótica produzida por sua própria situação contextual, além da sensibilidade provocada por sua cultura, gosto pessoal – que irá se defrontar com esta obra, abrindo assim um caminho de diversidades e diálogo que se manifesta com uma riqueza de ressonâncias condicionada pela relação dialógica entre literatura e leitor (ROSSETO, 2007 p. 48-49).

Percebe-se o telespectador como um sujeito que interfere na realidade, não somente recebendo, mas também, produzindo sentidos, seja aceitando ou recusando determinados conteúdos, ou transformando em algo útil em sua vida. A reflexão nos convida a compreender que a mensagem recebida ganha diferentes interpretações, conforme cada indivíduo. A hipótese do telespectador regional, deste modo, entende que o sujeito é ativo no processo de produção de sentidos sobre a realidade e apresenta características peculiares que merecem atenção das emissoras de televisão, neste contexto de interdependências, tais como: um sujeito de múltiplas referências local, regional, nacional e global; um sujeito transformador dos conteúdos produzidos pela mídia em prol dos seus interesses; um produtor de conteúdos sobre a realidade onde está inserido; além de ator social ou agente de soluções em prol da coletividade. Ou seja, o telespectador regional, é um indivíduo que se apropria dos dispositivos, os transforma e dar novo significado. Como telespectador, ele não quer somente aparecer na TV, mas ter suas questões discutidas e resolvidas. John B. Thompson (1998) avança na tentativa de pensar o indivíduo por meio de um processo hermenêutico de apropriação dos produtos da mídia. Este ator, de acordo com o sociólogo, vive em um contexto que tem o seu processo de globalização intensificado com a comunicação via satélite e em rede. A inquietação veio assim que Thompson (1998) sentiu a necessidade de fazer uma reavaliação da “teoria do imperialismo cultural”, desenvolvida nos anos 1960 por Herbert Schiller em “ Mass Communications and American Empire”, em que atribuía toda supremacia em âmbito internacional aos Estados Unidos da América do Norte (EUA) após a Segunda Guerra Mundial. Ao considerar que os argumentos de Schiller já não são mais satisfatórios para explicar a realidade do final do século XX, devido, dentre outros motivos, à reestruturação do eixo econômico, político e comunicacional, Thompson (1998) sugere que se considere a globalização da mídia a partir do entendimento de que a difusão dos conteúdos acontece de forma globalizada, mas que a apropriação se dá de modo localizado: No sentido de que ela sempre envolve indivíduos específicos que estão situados em contextos social-históricos particulares, e que contam com os recursos que lhes são disponíveis para dar sentido às mensagens da mídia e as incorporar em suas vidas (THOMPSON, 1998, p.155).

Thompson (1998) apresenta em três temas as transformações nos padrões de apropriação dos produtos da mídia pelo indivíduo receptor ao levar em conta o eixo global- local, e define como primeiro tema que a globalização não elimina a percepção localizada dos conteúdos transmitidos considerando o “caráter hermenêutico da apropriação”. No segundo, pensa a “acentuação do simbólico distanciamento dos contextos espaço-temporais da vida cotidiana”, o que permite aos indivíduos a se distanciarem da sua realidade, ou das condições de vida nas quais estão inseridas para viver outra, “simbolicamente e

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 43


imaginativamente”, numa espécie de simulação de outra vida. Como terceiro ponto destacado, ainda na apropriação localizada dos produtos midiáticos, o sociólogo acredita existir “uma fonte de tensão e de conflito potencial”, ou seja, os produtos da mídia possibilitam ao sujeito se distanciar e olhar o contexto em que vive e convive sob outro prisma, o que lhe vai permitir questionar as práticas tradicionais, reafirmá-las ou esmaecer alguns aspectos retirando parte deles e reforçando outros. Ressalta-se que o telespectador regional deve ser entendido em meio a grupos midiáticos e corporações com atuação transnacional e transcontinental. Essas empresas trazem propostas uniformizadoras de seus conteúdos que negociados entre setores, a exemplo do informacional, através de agências de notícias, mostram-se alinhadas ao sistema político, econômico, cultural e comunicacional dominantes, tornando-se agentes operacionais, que nas palavras de Moraes (2005) terminam por serem propagadoras constantes do “discurso hegemônico” com base na ideologia do consumismo, reforço do neoliberalismo, defesa da desregulamentação do setor, implicando em redução do Estado e na mínima participação dos governos nas decisões econômicas, ou seja, estão em defesa de um sistema econômico que, em tese, se autorregula. Em suma as organizações de mídia projetam-se, a um só tempo, como agentes discursivos, com uma proposta de coesão ideológica em torno da globalização, e como agentes econômicos proeminentes nos mercados mundiais, vendendo os próprios produtos e intensificando a visibilidade de seus anunciantes (MORAES, 2005, p.191).

Embora pareça um processo simples, não se pode entendê-lo a partir de uma relação de causa e efeito. A multiplicação de dispositivos e meios de comunicação (Telefone celular, DVD, Webcams, MP3, TV interativa, Internet, Blogs, Web Sites, Portais de notícias, Redes Sociais, etc), possibilita um novo tipo de negociação, que ultrapassa o entendimento, por vezes raso, da dinâmica da relação global, regional e local. Esse novo tipo de negociação permite aos indivíduos entrarem em contato com outras maneiras de viver a vida, que são compartilhadas por meio da “cultura da virtualidade real”. Casttells (1999, p. 415), afirma que a sociedade em rede está sofrendo influência poderosa do “novo sistema de comunicação, mediado por interesses sociais, políticas governamentais e estratégias de negócios”. Ou seja, o mercado global, que se sustenta na recepção localizada das atividades desenvolvidas pelos conglomerados, como destacou Thompson (1998), tem ressonância em Moraes (2005), que percebe certo “sincretismo cultural” por meio das relações que se manifestam de modo interdependentes nesta esfera “glocal”. As corporações implementam políticas de produção, comercialização e marketing em mercados geograficamente dispersos, absorvendo certas particularidades socioculturais dos países em que operam. Mesclam o global e o regional na fusão “glocal”, muitas vezes em parceria com operadores e fornecedores locais. Os dados provenientes preciosos para uma adaptação mercadológica sólida. Claro que, para os titãs de mídia e entretenimento, importam pouco os indicadores de miséria, desemprego e desigualdades sociais; eles querem, isto sim, explorar os potenciais de consumo existentes (MORAES, 2005, p.196).

Percebe-se que a noção de região na perspectiva territorial é superada com a interferência das TICs. Bauman (1999) chama de “compressão tempo/espaço”. A comunicóloga Cicilia Peruzzo (2003) também se aproxima dessa abordagem, ao pensar as aproximações e distanciamentos da particularidade do fazer comunicacional no atual contexto, pois, as referências não estão mais cristalizadas, dentro de uma geografia na perspectiva da territorialidade, mas na relação entre as instâncias indo do global ao nacional e do regional ao local: Tanto o local como o regional só podem ser compreendidos na relação de um com o outro, ou deles com outras dimensões espaciais, como o nacional e o global [...] O local só existe enquanto qual, se tomado em relação ao regional, ao nacional ou ao universal (PERUZZO, 2003, p. 04-05).

44 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Compreensão compartilhada por Castells (2005) ao analisar as transformações experimentadas pela humanidade com a chegada da Internet em 1969, mas que ganha notoriedade a partir de 1994, a partir da existência de um browser da World Wide Web. A Internet “se trata de uma rede de redes de computadores capazes de se comunicar entre si [...] um meio de comunicação, de interação e de organização social” (CASTELLS, 2005, p. 255- 256), e se constitui como a base do que chama de “sociedade em rede”, uma nova forma de sociedade que se faz e refaz em suas relações sociais, econômicas, culturais e políticas por meio de uma diversidade de dispositivos. Embora os relacionamentos e interações sejam potencializados pela vastidão e velocidade do mundo virtual, ou pela complexidade com que se manifesta no ambiente virtual, um agente diferencial neste processo, que tem papel fundamental, é o ser humano, que “habita” o ciberespaço de que fala Lévy (2005). Antes de habitar o ciberespaço ele habita um espaço geográfico e está em inter-relação constante com diferentes outros espaços do contexto local, regional, nacional ou global. O telespectador regional, na atualidade, transita por estes espaços de modo temporário. De acordo com Castells (2005, p.265) “a sociedade se apropria das tecnologias, adaptando-as ao que a própria sociedade faz”, apontando o aspecto localizador da recepção da tecnologia e, por conseguinte, dos conteúdos que por ela também chegam aos indivíduos, que dela fazem uso, indo ao encontro do que entende Peruzzo (2003), que ressalta somente ser possível compreender o regional na negociação ou relação entre o global e o local. Telespectador regional como um sujeito de táticas em meio a estratégias O telespectador regional que se constitui, neste sentido, como um indivíduo um ator social caracterizado por uma atuação ativa, dentro das possibilidades que são criadas por ele mesmo no processo de diálogo com os dispositivos que lhe cerca, precisa conviver com um processo de dessubjetivação do sujeito para conseguir sobreviver. Agamben (2009) define o sujeito, como sendo “o resultado da relação e por assim dizer do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos”. O dispositivo com o qual o ser vivente negocia sua condição de existência é entendido de forma ampla pelo filósofo italiano: Chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – porque não – a própria linguagem, que talvez é o mais antigo dos dispositivos em que há milhões e milhões de anos um primata-provavelmente sem se dar conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar (AGAMBEN, 2009, p. 40-41)

A proliferação de dispositivos na atual fase do capitalismo conduz a processos de subjetivação cujos resultados não são sujeitos reais, mas espectros de sujeitos, segundo o autor. Embora pareça existir uma crise dos processos de subjetivação, Agamben (2009, p.42) percebe que a quantidade de dispositivos nos tempos hodiernos levou “ao extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal”. O que define os dispositivos na atual fase do capitalismo, não é mais a produção de um sujeito, mas de um processo de “dessubjetivação”: É que processos de subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar a recomposição de um novo sujeito, a não ser de uma forma larvar e, por assim dizer, espectral. Na não-verdade do sujeito não há mais de modo algum a sua verdade (AGAMBEN, 2009, p. 47).

Numa descrição um tanto pessimista do cenário no qual estão envoltas as sociedades contemporâneas, que em sua visão se apresentam como corpos inertes, o sujeito que é capturado no Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 45


dispositivo não constitui subjetividade, mas um número na audiência para ser encontrado: ―expectador que passa suas noites diante da televisão recebe em troca da sua dessubjetivação apenas a mascara frustrante do zappeur ou a inclusão no cálculo de um índice de audiência‖ (AGAMBEN, 2009, p.48). Mas as ideias de Certeau (1998) dão um sentido outro, ao papel do sujeito, quando investiga as práticas e os usos sociais dos produtos consumidos pelos que denomina “sujeitos ordinaries”, as pessoas comuns, consideradas consumidoras, mas que em sua percepção, também são produtoras. O pensador francês entende que é necessário um olhar mais atento sobre o que fazem os indivíduos com aquilo que eles recebem ou consomem. Certeau (1998) elabora o modelo polemológico para tentar explicar o jogo de forças entre fortes e fracos, visando demonstrar como os fracos empreendem suas ações táticas, em meio às estratégias condicionadoras da vida social, o Estado. Neste sentido o modelo polemológico será caracterizado por apresentar as categorias “estratégia” e “tática”: Chamo “estratégia” o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um “ambiente”. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito com um próprio e por, portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta. A nacionalidade política, econômica ou científica foi constituída segundo esse modelo estratégico [...] Denomino, ao contrário, “tática” um cálculo que não pode contar com um próprio, nem com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o outro. Ela se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. Ela não dispõe de base onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias. O próprio é uma vitória do lugar sobre o tempo. Ao contrário, pelo fato de seu não-lugar, a tática depende do tempo, vigiando para “captar no vôo” possibilidades de ganho. (CERTEAU, 1998, p.46-47).

Bricolagem é o termo utilizado para descrever a arte de “dar golpes” desse sujeito ordinário, o indivíduo comum, que não se apropria completamente dos produtos que lhes são disponibilizados, mas os transforma por meio de “táticas” e astúcias em algo do seu interesse. Neste sentido, não se pode prever que o telespectador regional seja aquele indivíduo que exposto a um conteúdo disseminado pelos veículos de comunicação se mostre passivo. Pelo contrário, ele é o sujeito que transforma aquilo que recebe e dá outro sentido. Certeau (1998, p.39) exemplifica: “A análise das imagens difundidas pela televisão (representações) e dos tempos passados diante do aparelho (comportamento) deve ser completada pelo estudo daquilo que o consumidor cultural ‘fabrica’ durante essas horas e com essas imagens”. Tal como aponta Certeau (1998) em sua caracterização dos usos e práticas dos sujeitos ordinários, nesta hipótese o telespectador regional também não é proprietário, nem tampouco administra ou é conhecedor dos processos burocráticos pelos quais a informação, que vai ao ar, é trabalhada. Mas ele é consumidor e se constitui como um sujeito que aprendendo e apreendendo no jogo de forças, utiliza suas táticas diante das estratégias dos meios de comunicação. Considerações finais O contexto, no qual vai se revelando o telespectador regional, é composto por um conjunto de elementos que funcionam, hora como obstáculo, hora como possibilidade, para exercício da sua condição de sujeito em uma perspectiva hermenêutica diante do mundo fenomênico ou da vida social. Este sujeito vive em um território, mas a sua relação com o mundo e suas dimensões real ou virtual, está para além da sua fixação territorial na sua manifestação geográfica. Os dispositivos são instrumentos que ajudam o telespectador regional na evidência de suas demandas, que são sociais, econômicas, culturais, comunicacionais, políticas, espirituais etc., dando “golpes”, utilizando suas astúcias, gravando vídeos e com isto ele é um produtor, sugerindo pautas ou enviando um texto às emissoras. Negociação é uma capacidade que precisa ser exercitada com habilidade pelo sujeito social – telespectador regional, sujeito ordinário, nesse jogo com regras muitas vezes desconhecidas, mas que é

46 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


convocado, e tem que obedecer a uma lógica na qual ele não foi convidado a decidir sua feição, mas que precisa sobreviver utilizando-se de suas “táticas”. A participação do telespectador regional no contexto da informação produzida a partir de uma lógica capitalista, para servir de consumo obedecendo a leis de mercado, precisa ser mais efetiva, pois, por mais que estes sujeitos sejam convidados, na democracia liberal, a exercitar a sua cidadania por meio de rituais eleitorais que lhes possibilitam a escolha de representantes, “por não possuírem nem administrarem os meios de produção material e cultural, sua participação macrossocial é fictícia e não real” (BORDENAVE, 1994, p.26). A existência de veículos de comunicação regional através de concessões públicas é uma oportunidade impar no século XXI, de aprimorar aspectos ainda pouco desenvolvidos, como um maior envolvimento da sociedade no processo de decisão do que está sendo produzido, sobre a eleição de temas que estejam em sintonia com as demandas que de fato contribuam para progresso social, econômico, espiritual e cultural da sociedade. Para tanto, há a necessidade da prática de um jornalismo regional que contemple de uma forma democrática e equânime a complexidade da sociedade. A discussão é ampla e os desafios de se pensar um tipo de jornalismo regional que corresponda aos anseios de uma sociedade, que muda em velocidade cada vez maior, também são grandes. Referências AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. [Tradutor: Vinícius Nicasto Honesko]. – Chapecó SC: Argos, 2009. BAZI, Rogério Eduardo Rodrigues. TV regional: trajetória e perspectivas. Campinas, SP: Alínea, 2001. BAUMAN, Zygmunt, 1925. Globalização: as conseqüências humanas. tradução Marcus Penchel. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. Tradução de: Globalization: the human consequences. CABRAL, Eula Dantas Taveira. A regionalização da mídia televisiva brasileira. In: FADUL, Anamaria e GOBBI, Maria Cristina. Mídia e Região na Era Digital: diversidade cultural, convergência midiática; Prefácio de José Marques de Melo – São Paulo: Arte & Ciência, 2006. p. 274:il.,Quadros, 21 cm. CALAND, Francisca Aparecida Ribeiro. Regionalização e Jornalismo Comunitário: o quadro Calendário da Rede Clube de Teresina. 106 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós- Graduação em Comunicação do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2014. CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e Cidadãos: Conflitos multiculturais da globalização. 8. ed. 1a. reimpr. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010. 228 p.; 14 x21 cm CAMPONEZ, Carlos. Jornalismo regional: proximidade e distanciações. Linhas de reflexão sobre uma ética da proximidade no jornalismo. In: CORREIA, João Carlos (Org): Ágora Jornalismo de Proximidade: limites, desafios e oportunidades. Labcom.Books, 2012. CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede; tradução de Roneide Venancio Majer com colaboração de Kauss Brandini Gerhardt – São Paulo, SP: Paz e Terra, 2000. ______. Internet e sociedade em rede. In: MORAES, Dênis (org.). Por uma outra comunicação. 3. ed. – Rio de Janeiro, RJ: Record, 2005. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano – Artes de fazer – 3ª ed. - Petrópolis, RJ: Vozes 1998. CURADO, Olga. A notícia na TV: O dia-a-dia de quem faz telejornalismo. São Paulo: Alegro, 2002. LACERDA, Vera Lúcia de Lima. Jornalismo regional e a construção da cidadania: a ponte entre a comunidade e os poderes constituídos – estudo de caso do programa “O bairro que eu quero” TV Morena/MS / Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2006 LÉVY, Pierre. Pela ciberdemocracia. In: MORAES, Dênis (org.). Por uma outra comunicação. – 3ª ed. – Rio de Janeiro, RJ: Record, 2005. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 47


MICONI, A. Ponto de virada: a teoria da sociedade em rede. In: DI FELICE, Massimo (Org): Do Público para as redes: a comunicação digital e as novas formas de participação social. – 1.ed. –São Caetano do Sul, SP: Difusão Editora, 2008 MORAES, Dênis. O capital da mídia na lógica da globalização. In: MORAES, Dênis (org.). Por uma outra comunicação. – 3ª ed. – Rio de Janeiro, RJ: Record, 2005. NASCIMENTO, Carlos. Imprensa regional: abrir-se para o mundo. In: SAVENHAGO, Igor (Org). Jornalismo Regional: estratégias de sobrevivência em meio às transformações da imprensa. Jundiaí, Paco Editorial: 2012. PERUZZO, Cicilia M. Krohling. Mídia local e suas interfaces com a mídia comunitária. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – BH/MG – 2 a 6 Set 2003. . Mídia regional e local: aspectos conceituais e tendências. Comunicação & Sociedade. São Bernardo do Campo: Póscom-Umesp, a. 26, n. 43, p. 67-84, 1o. sem. 2005. ROSSETO, Robson. Pedagogia do Teatro: Um estudo sobre a recepção, 2007, 100f. Dissertação (Mestrado em Teatro) - Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis 2007. SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala; função e linguagem da televisão no Brasil. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 8.ed. 2010. THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia; tradução de Wagner de Oliveira Brandão; revisão da tradução Leonardo Avritzer. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

48 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O IMPEACHMENT EM RÁDIOS UNIVERSITÁRIAS: O PODER DE ANALISAR, DE PREVER E SENTENCIAR E OS PORTA1 VOZES DO AFASTAMENTO DA PRESIDENTE DILMA ROUSSEFF EM TRÊS EMISSORAS Roberto de Araujo Sousa2 RESUMO Este artigo objetiva, a partir do suporte teórico da análise de discursos pelas perspectivas de Milton José Pinto e Antônio Fausto Neto, identificar o poder de analisar, o poder de prever e sentenciar e quem são os porta-vozes do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff a partir dos discursos postos em circulação nas rádios universitárias da Universidade Federal do Ceará (UFC), da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Foram analisadas as edições de um radiojornal de cada emissora no período de 09 a 13 de maio de 2016, semana em que foi votada no Senado Federal a admissibilidade do processo de impeachment, que culminou no afastamento da então presidente Dilma Rousseff e empossamento interino do vice- presidente Michel Temer. Palavras-chave: Rádios universitárias; radiojornalismo; impeachment; discursos.

Introdução

E

m tempos considerados turbulentos na história do Brasil, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, diversas perspectivas de observação deste episódio são possíveis. Uma delas é observar de que forma a mídia cobriu a sucessão dos episódios, que culminaram na interrupção do mandato da presidente eleita, mais especificamente como três rádios públicas – FM’s Universitárias, cobriram a semana da votação no Senado. Em menos de 30 anos de regime democrático - precedido por um período autoritário regido pelos militares - dois presidentes tiveram seus mandatos cassados por um processo de impeachment. O primeiro, Fernando Collor de Melo, em 1992, e o segundo, em 2016, que terminou com a finalização antecipada do mandato da presidente da república, Dilma Rousseff. A interferência da mídia na opinião pública é um aspecto que pode ser frisado no desenrolar dos acontecimentos do episódio recente da história do Brasil. Escândalos, denúncias, declarações envolvendo o partido da presidente, relação entre mídia e judiciário estão no centro da discussão, juntamente com inflação, alta do dólar, índice de desemprego, e outros fatores que levaram a um descontentamento parcial da população – diferente do que aconteceu com o ex-presidente Fernando Collor de Melo, também julgado por um processo de impeachment em 1992. Na superfície desta conjuntura, estão as acusações de crime de responsabilidade fiscal por três decretos suplementares, assinados pela presidente, sem a autorização do Congresso Nacional, e que justificaram para 2/3 (dois terços) dos senadores de que Dilma Rousseff deveria ter seu mandato cassado. No dia 12 de maio de 2016, o Senado Federal votou pela admissibilidade do processo de impeachment contra a presidente da república Dilma Rousseff, do PT. A votação, que teve como resultado 55 votos favoráveis e 22 contrários, decidiu pela aprovação da abertura do processo de impeachment contra a presidente. Com este resultado, a então presidente perdia o exercício das funções e assumia interinamente o vice-presidente Michel Temer, do PMDB, até que fosse concluído o processo, num prazo máximo de 180 dias. Dessa forma, as análises buscam identificar quais estratégias enunciativas utilizadas pelas rádios

1

Trabalho apresentado no GT 02 Mídia, Democracia e Cidadania do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Piauí. Teresina – PI. E-mail: jornalistarobertoaraujo@gmail.com. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 49


universitárias demarcavam o posicionamento a respeito deste processo dentro dos discursos emitidos pelos radiojornais na semana de 09 a 13 de maio de 2016. Foram escolhidas três rádios universitárias ligadas a universidades federais do Nordeste: no Maranhão, no Piauí e no Ceará. Dentro da programação dessas emissoras, foi escolhido um radiojornal diário, com tempo de duração semelhantes, mas com horários diferentes. Desta forma, é possível identificar o desenvolver dos acontecimentos durante um dia. Dentro do corpus escolhido, só não foi possível analisar a edição de 10 de maio de 2016 da Rádio Universidade FM, da UFMA, por não ter disponibilizado ao pesquisador a edição deste dia. Rádios universitárias - UFMA, UFPI E UFC Não existe uma legislação específica no Brasil para as rádios universitárias. Dentro do que definiu a Constituição de 1988, estas emissoras se inserem na radiodifusão educativa. Deus (2003), traz uma primeira conceituação do que seriam as rádios universitárias. Ela as define como emissoras que se propõem a oferecer programação educativa e cultural para a comunidade, e servem como laboratório para os estudantes da instituição de ensino. Partindo da legislação de que rádios universitárias são emissoras públicas, estas devem contemplar a heterogeneidade do público e pautar setores menos favorecidos. Para Zucoloto (2012), as rádios universitárias se inserem no que ela denomina “campo público” da radiodifusão, que congrega as emissoras não comerciais – estatais, educativas, culturais e universitárias. Ela esclarece que se fôssemos caracterizar a partir da Constituição de 1988, não seria possível reunir todas estas emissoras em um único grupo, por que a carta divide a concessão de radiodifusão em três grupos, de acordo com a sua natureza – público, privado e estatal. O Ministério das Comunicações também não possibilita um levantamento completo sobre estas emissoras do grupo denominado “campo público” por que lá, categoriza-se as rádios como: FMs comerciais, FMs educativas, rádios comunitárias, ondas médias, ondas curtas, ondas tropicais. A Rádio Universidade da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), entrou no ar em 28 de outubro de 1986, na frequência FM 106.9 MHz. Atualmente, a emissora é sintonizada na frequência 107.9 em São Luís. A rádio dá espaço à música maranhense e à música popular brasileira em geral. Desta emissora, foi escolhido para a análise o Jornal Rádio Universidade, exibido de segunda a sexta às 07h20 da manhã, e que tem entre meia hora e quarenta minutos de duração. É apresentado por Adalberto Júnior. O Jornal Rádio Universidade, da Rádio Universidade FM 106,9 da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), é dividido em blocos e quadros bem delimitados por vinhetas e trilhas. O programa conta com reportagens produzidas pelo núcleo de radiojornalismo da emissora, reportagens produzidas por agências, comentários de pessoas que compõem o quadro de jornalistas da emissora, entrevistas, leitura de manchetes de jornais e portais do Maranhão e do Brasil. A Rádio Universitária 96,7 da Universidade Federal do Piauí (UFPI) foi inaugurada oficialmente em 11 de setembro de 2011. Os primeiros programas foram Revista Universitária, Universitária Esportiva, Gira Poesia e Microfonia. A proposta da emissora é dar espaço para programação jornalística e educativo-cultural, e dar espaço à música piauiense. Desta emissora, escolhemos o radiojornal Jornal da Universitária, exibido também de segunda a sexta, às 18h, e que tem duração de cerca de meia hora. É apresentado por Natanael Souza. O Jornal da Universitária, da Rádio FM Universitária 96,7 da UFPI, inicia como uma vinheta que anuncia aquilo que deve ser a expectativa do receptor: “No ar, Jornal da Universitária. Os principais fatos do dia e as últimas notícias da hora”. Com uma trilha de agilidade, o locutor, Natanael Souza se apresenta e anuncia as “manchetes”, no espaço que é conhecido como “escalada”. A Rádio Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC) foi inaugurada em 15 de outubro de 1981. Com uma programação composta por programas jornalísticos, educativo- culturais e musicais, a emissora tem como missão “levar a educação não formal e a produção cultural da Universidade Federal do Ceará (UFC) à comunidade”. O jornal analisado desta rádio foi o Jornal da Universitária – 1ª edição, exibido de

50 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


segunda a sexta às 11h, e com cerca de vinte minutos de duração. É apresentado por Geraldo Oliveira e Tetê Carvalho. Análises - o poder de analisar, de prever e sentenciar e os porta-vozes Buscamos orientar nossa análise a partir do que Fausto Neto (1995) e Milton José Pinto (2002) sugerem para a localização de marcas enunciativas que possibilitem perceber discursos postos em circulação em espaços como radiojornais. Fausto Neto, em O impeachment da televisão (1995), analisa as operações enunciativas dos telejornais que interferiram no impeachment de Collor. Ao mesmo tempo em que o telejornal anuncia sua intervenção no processo político, enfatiza sua função de guarda e, notadamente, faz uma avaliação de sua performance no processo informativo. De um lado, os enunciados evocam a garantia de algo que foi e será feito pelos media no seu contato com o acontecimento: “De onde falamos”, anunciam os telejornais. “O TJ Brasil vai acompanhar até o final”. Ou prestando-se conta e, ao mesmo tempo, fazendo uma avaliação de seu desempenho: “A Rede Globo acompanhou minuto a minuto”. (FAUSTO NETO; 1999, p. 21)

Dessa forma, o autor aponta marcas que legitimam o jornalismo – tanto na televisão como no rádio – como lugar de “falar do mundo”. Assim, sugere que o lugar do jornalismo termino sendo utilizado como “palanque” para o desdobrar dos acontecimentos. O engendramento do fazer jornalístico com o acontecimento decorre de tal forma que o próprio campo político se ressignifica e passa a funcionar em uma lógica desvirtuada do habitual para adentar ao jogo enunciativo do campo midiático. “Os políticos já não se enfrentam entre si, mas o fazem intermediados pelos jogos enunciativos do discurso da atualidade, como espetáculo. De outro, os políticos compreendem que sem visibilidade irradiada é impossível fazer funcionar o discurso político” (FAUSTO NETO; 1999; p.32) A partir da enunciação que desencadeia no desdobramento de acontecimentos, a enunciação jornalística não só mostra, como apresenta expectativa e sugere caminhos a serem trilhados, bem como estrutura as possíveis “causas e consequências”. Poder de analisar O poder de analisar é o que garante aos dispositivos jornalísticos, mais especificamente a seus âncoras e apresentadores, o papel instrucional de análise e observação dos acontecimentos por meio de uma especialidade. No Jornal Rádio Universidade, da UFMA do dia 13 de maio de 2016, sexta-feira, o comentarista Paulo Pelegrini, jornalista da Rádio Universidade, faz um comentário relacionando ao papel que o governo petista teve no esporte. Não se trata, portanto, de uma análise política ou de uma análise a respeito do processo de impeachment, mas se utiliza do fato específico do impeachment, que encerra o governo petista, e elenca pontos – na maioria deles negativos – do papel dos governos de Lula e Dilma para o esporte no Brasil. O enunciador inicia com “O Senado decidiu pelo fim do governo Dilma Rousseff, encerrando, pelo menos até 2018, uma sequência de governos do Partido dos Trabalhadores que se iniciou em 2003”. Esta postura deixa claro dois pontos: o de que o Senado já havia dado o veredicto do fim do governo, sendo que o afastamento votado naquela semana não significava necessariamente o fim do governo – mas poderia significar. E, ainda, a possibilidade da volta do PT em 2018. (JORNAL RÁDIO UNIVERSIDADE; 13/05/16)

O enunciador critica o desempenho do Partido dos Trabalhadores ao relatar que o esporte foi “uma matéria usada exclusivamente para dar visibilidade internacional ao governo e ao Brasil”, uma referência aos

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 51


jogos Pan Americanos de 2007, Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016 (que viriam a acontecer dentro do governo interino de Michel Temer). O Senado decidiu pelo fim do governo Dilma Rousseff, encerrando, pelo menos até 2018, uma sequência de governos do Partido dos Trabalhadores que se iniciou em 2003. Nesses últimos 13 anos, o esporte foi uma matéria usada exclusivamente para dar visibilidade internacional ao governo e ao Brasil. O país sediou uma copa do mundo, e vai sediar uma olimpíada. A copa foi um evento esportivamente muito bem sucedido, mas sempre vai levar consigo a sombra de ter promovido o superfaturamento, farra do dinheiro público, ter criado elefantes brancos, e se envolvido com construtoras que o tempo provou, serem palcos de irregularidades de diversas naturezas. A olimpíada vai acontecer já com o governo dos opositores, possivelmente sob o comando de Leonardo Piciani, que deverá ser o ministro do esporte de Temer. E diferentemente da copa do mundo, tem tido pelo menos metade dos custos financiados por dinheiro privado. (JORNAL RÁDIO UNIVERSIDADE; 13/05/16)

O analista se coloca numa posição claramente contrária ao do governo petista. Critica que a pasta foi tratada como “menor” e ainda critica as indicações para ministros. Menciona que o ministério era entregue ao PCdoB, percebendo-se um certo tom de desdenho para com o partido, argumentando que o PT entregava o ministério como “prêmio de consolação” ao partido. Mas além dos grandes eventos, a rigor, em nível interno, o esporte foi tratado como uma pasta menor nesses últimos 13 anos. Durante a maior parte dos governos Lula e Dilma, o ministério foi entregue ao PCdoB, como prêmio de consolação ao apoio desse partido nas eleições. As maiores propagandas sempre se deram em torno da área social. O documento da política nacional de esporte, de 2004, por exemplo, nunca saiu do papel. E o conselho nacional de esporte limitou-se a carimbar as decisões do ministério, sem nunca pô-las em discussão. A única medida que ganhou notoriedade foi o estatuto do torcedor, de 2003 que, entre outros aspectos, impede que o regulamento do campeonato brasileiro de futebol mude a cada ano como era antes. No mais, o esporte apareceu nos noticiários muito mais de forma negativa, como nas denúncias de corrupção do programa Segundo Tempo, ou pela omissão do governo quanto às necessidades dos atletas, o calendário e as condições de trabalho nas diversas modalidades. Essas questões espinhosas sempre foram preteridas em função da inauguração de arenas, de instalações esportivas e de suas eternas reformas. Nesse aspecto vale lembrar o Pan de 2007, que ergueu em obras uma verdadeira cidade olímpica, incluindo um estádio como o Engenhão, que logo foi se deteriorando para poder ser reformado e consumir bastante dinheiro público, o que também aconteceu com o Maracanã. Paulo Pelegrini para o Jornal Rádio Universidade. (JORNAL RÁDIO UNIVERSIDADE; 13/05/16)

A Rádio Universitária FM da Universidade Federal do Ceará não se apresenta como um local de análise para os processos, não dispondo de espaços de comentaristas ou articulistas. No entanto, o poder de análise é percebido em uma reportagem exibida no dia 12 de maio, em que o enunciador pressupõe que o governo Temer gera dúvidas no que diz respeito a priorizar as universidades públicas, é apresentada a voz de uma especialista em filosofia política, professora da UFC, que sustenta a tese de que há um golpe e que o governo Temer pode não garantir os avanços sociais dos últimos anos. Repórter: (...) A professora da UFC, doutora em filosofia política Mirtes Amorim considera que houve sim um golpe político. Professora Mirtes Amorim: “É, no meu entendimento, com a votação do Senado terminada hoje pela manhã a gente tem a consumação do que eu entendo que foi um golpe. Um golpe contra a constituição, uma vez que os motivos alegados para o afastamento da presidente Dilma eles não têm sustentação e base jurídica” Repórter: Mirtes Amorim adverte que há receio de retrocesso nas políticas sociais.

52 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Professora Mirtes Amorim: “Eu creio que o presidente Temer terá enorme dificuldade de superar este momento, né. E o temor que nós temos todos é de que as políticas sociais que são, que foram a característica do governo popular do partido dos trabalhadores, essas políticas elas sofram grave retração, ou seja, que elas tenham exatamente uma diminuição” (...) (JORNAL DA UNIVERSITÁRIA, 12/05/2016)

A Rádio FM Universitária da UFPI não apresenta, no Jornal da Universitária, espaços para comentaristas ou articulistas. Na semana analisada, não há um espaço de análise, sem a apresentação de especialistas, se mantendo no papel de informar, e trazendo os “argumentos” por meio dos próprios atores políticos e das opiniões divergentes de pessoas da comunidade. Prever e sentenciar o processo de impeachment É possível, nas enunciações analisadas, perceber o poder de prever e sentenciar o processo de impeachment por parte dos enunciadores jornalísticos. O Jornal Rádio Universidade (UFMA), embora não faça uma cobertura com mais afinco por meio de suas equipes de produção, recorre à reprodução do que é noticiado nos jornais maranhenses. Dessa forma, este poder de prever e sentenciar termina sendo uma reprodução do que é apresentado em outras mídias Na edição do dia 09 de maio de 2016, dentro da leitura dos jornais do Maranhão, o tema é abordado na leitura do jornal O Estado do Maranhão. O enunciador jornalístico coloca: “Impeachment: Lula: o jogo não acaba na quarta; o ex-presidente Lula já admite a aliados que o afastamento de Dilma é inevitável, mas também vê um quadro menos desfavorável ao PT com possibilidades de recuperação até 2018. Valdir Maranhão é citado pelo doleiro Alberto Yousseff, e afastamento de Dilma é debatido na assembleia”. O enunciador que é polifônico e interdiscursivo, por se tratar de uma reprodução de notícia de um dos jornais impressos do Maranhão, já se utiliza do discurso do ex-presidente Lula de que “o jogo não acaba na quarta”, para considerar que os aliados de Dilma já estão convictos de que o afastamento aconteceria. A reportagem da Agência Radioweb, veiculada pela Rádio Universidade da UFMA também sentencia o impeachment como certo. O enunciador utiliza a marca “Governistas praticamente já jogaram a toalha”, se baseando na fala da senadora Vanessa Graziotin, que confirma ser muito difícil reverter os votos para o afastamento da presidente Dilma Rousseff. Ele afirma ainda que a senadora “sabe que é quase impossível” reverter a cena. Repórter: Nesta quarta-feira o Senado inicia a votação da abertura ou não do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Caso o relatório do senador Antônio Anastasia do PSDB seja aprovado, a presidente Dilma será afastada do cargo por até 180 dias. A expectativa é que a sessão se estenda noite a dentro. Só de discursos, devem ser mais de 14 horas. Além disso, o relator e o Advogado geral da União também falam. Já a votação, será rápida, ao contrário da Câmara, os senadores votarão eletronicamente, e sem declarar o voto em microfones. Mesmo com a previsão de uma longa sessão, o presidente do Senado Renan Calheiros espera encerrar a votação no fim da noite de quarta ou na madrugada de quinta. Senador Renan Calheiros: A expectativa é que tenhamos pelo menos a participação de 60 oradores, mas o objetivo é concluirmos a sessão ainda na quarta-feira. Repórter: A primeira senadora inscrita para falar é a gaúcha Ana Amélia, do PP. Ela votará pela abertura do processo contra Dilma, mas lamenta ver um governo chegar a esta situação. Senadora Ana Amélia: Não é um ato prazeroso pra nenhum parlamentar, mesmo que haja razões pra isso, preferíamos produzir para melhorar a qualidade de vida do povo brasileiro do que estar aqui discutindo essas questões. Repórter: Governistas praticamente já jogaram a toalha. Vanessa Graziotin, do PC do B, ferrenha defensora da presidente Dilma, por exemplo, sabe que é quase impossível barrar a abertura do processo.

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 53


Senadora Vanessa Graziotin: Eu acho que eles ganham a favor da admissibilidade com folga, mas para o julgamento do mérito nós estamos muito mais próximos dos 28 do que eles dos Repórter: A votação dessa quarta ocorre por maioria simples. Ou seja, metade mais um do plenário já é suficiente para afastar a presidente. Se afastada, o Senado começa a processar Dilma Rousseff e tem até 180 dias para julgá-la em definitivo. (JORNAL RÁDIO UNIVERSIDADE; 09/05/16)

Nos enunciados do Jornal da Universitária da rádio da UFC, percebe-se que estes não deixam de forma explícita a possibilidade do impeachment da presidente, mas de forma implícita. A edição do dia 09 de maio de 2016, uma reportagem já sugere uma composição ministerial de Michel Temer a partir de um encontro com aliados. “Todos são cotados para ministérios caso se confirme o afastamento da presidenta”. Locutora: Michel Temer reuniu-se com o ex-presidente do Banco Central Henrique Meireles. De Brasília, Jéssica Gonçalves. Repórter: o Vice-presidente Michel Temer recebeu nesse domingo no Palácio do Jaburu, residência oficial em Brasília, o ex-presidente do Banco Central Henrique Meireles, apontado para o Ministério da Fazenda de um eventual governo do peemedebista e também integrantes da cúpula do partido. A reunião começou por volta das cinco da tarde e durou mais de seis horas. Além de Meireles, participaram do encontro o Senador Romero Jucá, do PMDB do... de Roraima, os peemedebistas Eliseu Padilha, do Rio Grande do Sul, Geddel Vieira Lima da Bahia, e Moreira Franco do Rio de Janeiro. Todos são cotados para ministérios caso se confirme o afastamento da presidenta Dilma Rousseff. A reunião ocorreu três dias antes da votação no senado, prevista para a quarta-feira, que pode admitir a denúncia contra a presidenta. Temer passou o fim de semana em sua residência particular em São Paulo, e chegou ao Jaburu pouco antes da reunião. Ao vivo de Brasília, Jéssica Gonçalves. (JORNAL DA UNIVERSITÁRIA; 09/05/16)

Dessa forma, embora o enunciado não apresente diretamente e assegure o afastamento de Dilma, sugere que existe uma articulação em que torna isso possível. Na reportagem, a afirmação “todos são cotados para ministérios caso se confirme o afastamento da presidenta Dilma Rousseff”, o enunciador sugere que existe uma tendência ao afastamento, ao sugerir que é algo a ser confirmado. A Rádio da Universidade Federal do Piauí (UFPI) também não apresenta de forma explícita o poder sentenciar e prever o impeachment, embora seja possível encontrar algumas marcas no interior dos discursos emitidos no radiojornal da emissora. Na edição de 11 de maio de 2016, dia em que acontecia a votação no Senado, o locutor, após falar da votação no Senado referenciava à imprensa a lista de ministros de um suposto governo Temer: “Hoje também já foi divulgado aí na imprensa os primeiros nomes que devem compor o primeiro escalão do governo Temer”. Este enunciado, embora direcione à “imprensa” a divulgação da lista dos ministros, afirma “nomes que devem compor o primeiro escalão”, apresentando como certa a admissibilidade do processo e o consequente afastamento de Dilma Rousseff. Quem são os porta-vozes A partir da cobertura jornalística dos radiojornais das emissoras da UFMA, UFPI e UFC, podemos identificar alguns “porta-vozes” da movimentação do processo de impeachment no Senado. As rádios da UFC e da UFMA apresentam os senadores a partir do seu posicionamento e protagonismo nacional em estarem favoráveis ou contrários ao processo de impeachment. A rádio da UFPI, no

54 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


entanto, elenca os senadores da bancada piauiense para protagonizarem esta narrativa. O Senador Renan Calheiros (PMDB) está em todas as rádios, enquanto presidente da casa. A Rádio maranhense apresenta como “porta-vozes” alguns senadores. O primeiro que podemos mencionar é o Senador Renan Calheiros, do PMDB (AL). Como o presidente do Senado Federal à época da votação do impeachment, é apresentado como porta-voz do rito do processo, ditando os horários e a forma que a votação deve ser seguida. No noticiário posterior à sessão, é marcado como “quem dá o veredicto final”, no momento em que lê o resultado da votação e declara que a presidente vai ser notificada do afastamento. A Senadora Ana Amélia, do PP (RS), aparece como uma das senadoras favoráveis ao impeachment, carregando consigo o argumento de que o crime da qual Dilma era acusada, das chamadas “pedaladas fiscais” eram os responsáveis pela “crise” pela qual o Brasil enfrentava. Se dizia uma senadora independente, que tinha tal posicionamento por interpretar os fatos, e não por orientação partidária. O Senador Aécio Neves, do PSDB (MG) aparece como parceiro de Michel Temer e do PMDB na tentativa de “reconstruir” o Brasil e “salvá-lo”. Aécio, que foi o oponente de Dilma na eleição presidencial de 2014, aparece como uma das personalidades que apoia com afinco o impeachment e se coloca como apoiador em nome do “futuro da nação”. Já do lado dos contrários ao impeachment, figuras como a senadora Vanessa Graziotin, do PCdoB (AM) são ferrenhas defensoras do mandato da presidente Dilma Rousseff, acusam o impeachment de ser um “golpe” travestido de um processo legítimo no qual existe um processo maior por trás de tirar a presidente Dilma Rousseff. Nos radiojornais analisados, ela aparece como alguém que reconhece a dificuldade em barrar a abertura do processo de impeachment, mas se mostra confiante em virar o jogo antes do julgamento final. Senador Humberto Costa, do PT (PE), era líder do governo Dilma Rousseff no Senado, e durante o processo de impeachment se coloca como defensor do governo Dilma e se apresenta como opositor ao governo de Michel Temer, afirmando fazê-lo em interesse maior do Brasil. A rádio maranhense também apresenta o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, presidente da casa, como porta-voz do processo em dois momentos: ao afirmar, em uma reunião com líderes a OEA, que Dilma pode recorrer sobre o mérito do processo na suprema corte; e, após a admissibilidade do impeachment no Senado, já como “porta-voz” do rito do processo, já que, a partir de então, o presidente do STF comanda o processo. Na rádio da UFC, o senador Renan Calheiros também aparece na figura de “porta- voz” do rito do processo. A senadora Ana Amélia também é apresentada na condição de favorável ao impeachment. Além desses, o senador Ronaldo Caiado, do DEM (GO), também é colocado como “porta-voz” crítico ao governo petista, argumentando que o tom oposicionista é em função do “conjunto da obra” das gestões. Na emissora cearense também é apresentada a figura do senador Randolfe Rodrigues, da REDE (AP), que aparece como oposição ao governo Dilma, porém, não reconhece o impeachment como algo positivo, argumentando que o processo traria um governo ainda pior, com envolvidos nas investigações da operação Lava-Jato, que tomaria medidas anti-nação, e que, portanto, não seria capaz de tirar o país da crise. A emissora piauiense, como já dito, protagoniza os senadores da bancada piauiense. Embora na cobertura de nível nacional não apareçam como “porta-vozes”, são personagens de relevância dentro das articulações políticas. Senador Ciro Nogueira, do PP (PI), e presidente nacional do partido, carrega a imagem de parlamentar equilibrado, que reconhece os avanços do governo do PT, mas que faz seu voto favorável pelo impeachment por reconhecer que é preciso uma mudança para que o país possa se recuperar, e que Michel Temer seria esta solução. A Senadora Regina Sousa, do PT (PI) também aparece como ferrenha defensora de Dilma e do governo do Partido dos Trabalhadores. Denuncia que os parlamentares optam pelo impeachment não por vislumbrarem um futuro melhor para o Brasil, mas por conta de interesses pessoais e de familiares e pessoas próximas. Coloca o PT como oposição responsável durante o governo de Michel Temer.

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 55


Considerações finais Os radiojornais dispõem de estratégias diferentes para noticiar o ouvinte do processo de impeachment, bem como de que forma existe a relação nacional – local entre os processos. A cobertura do poder público se apresenta como algo ainda ineficiente, por não dispor de maiores reflexões dentro dos acontecimentos que se sucederam, e demonstram um desfalque dessas emissoras com a premissa discutida neste trabalho de jornalismo público As falas de Dilma Rousseff e Michel Temer não são identificadas nos radiojornais. As ideias pró e contra o impeachment sempre são enunciadas por porta-vozes como outros políticos ou, interdiscursivamente, pelos próprios meios. A Rádio Universidade FM da UFMA, ao passo em que busca aproximação com ouvinte a partir de uma entonação mais alegre, uso de trilhas diferentes e dinâmicas, se coloca como dispositivo que busca um afastamento no que se refere à cobertura do processo de impeachment. Dos quatro dias analisados do Jornal Rádio Universidade, não se menciona na escalada – que é o momento do jornal em que se elencam os principais fatos que serão apresentados – nenhuma matéria a respeito do processo de impeachment. Tal característica define a rádio como um suporte que busca priorizar a cobertura dos assuntos locais, no entanto, não deixa de apanhar os acontecimentos de nível nacional. Rádio Universitária FM da UFC apresenta uma imagem de emissora que acompanha os mais diversos acontecimentos, tanto do âmbito nacional ao âmbito local. Ao cobrir durante toda a semana os acontecimentos inerentes ao processo de impeachment, reflete a condição de emissora que lida com um público antenado no mundo da política. A emissora cearense se refere a Dilma Roussseff tanto como presidente como presidenta. As duas expressões, embora gramaticalmente sejam aceitas, não costumam ser usadas pelos meios de comunicação. A presidente Dilma, inclusive explicitava que preferia ser mencionada com a expressão no feminino. A rádio cearense, diferente das outras duas analisadas, no entanto, buscava demarcar o uso dos dois gêneros intercaladamente. A Rádio FM Universitária da Universidade Federal do Piauí busca mesclar o caráter local e nacional na cobertura jornalística do processo de impeachment. Entre a segunda e a quinta-feira da semana analisada, o impeachment é tema de pauta no radiojornal. Percebe-se, na cobertura desta emissora, a tentativa de dar vozes a personagens favoráveis e contrários ao impeachment – tanto na população, ao se ouvir as opiniões de pessoas a respeito dos protestos a favor da presidente, como ao noticiar a votação no Senado, e buscar dar voz aos senadores piauienses favoráveis e contrários ao impeachment. Referências DEUS, Sandra. Rádios universitárias públicas: compromisso com a sociedade e com a informação. Em Questão. Porto Alegre, Vol. 9, p: 327-338. FAUSTO NETO, Antônio. O impeachment da televisão – Rio de Janeiro: Diadorim, 1995. . “Tchau querida”: leitura do impeachment-revista. In. Animus, v. 15, n. 30, p. 62- 81, 2016. HAUSSEN, Doris Fagundes. O jornalismo no rádio atual: o ouvinte interfere? In: FERRARETO, Luiz Artur; KLOCKNER, Luciano (orgs.). E o rádio? Novos horizontes midiáticos. Dados eletrônicos – Porto Alegre: Edipucrs, 2010. KROTH, Maicon Elias. Contratos de leitura: narrativas do cotidiano como estratégia de captura da recepção no rádio. In: FERRARETO, Luiz Artur; KLOCKNER, Luciano (orgs.). E o rádio? Novos horizontes midiáticos. Dados eletrônicos – Porto Alegre: Edipucrs, 2010. LOPES, Cristiano Aguiar. Regulação da radiodifusão educativa. Brasília: Câmara dos Deputados, 2011. PINTO, Milton José. Comunicação e discurso: introdução à análise de discursos – 2ª ed. – São Paulo: Hacker Editores, 2002.

56 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


VALENTE, Jonas. Sistema público de comunicação do Brasil in Sistemas públicos de comunicação no mundo: experiências de doze países e o caso brasileiro. - São Paulo: Paulus, Intervozes, 2009. VERON, Eliseo. Fragmentos de um tecido – São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004. ZUCULOTO, Valci Regina Mousquer. A programação de rádios públicas brasileiras. Florianópolis: Insular, 2012.

Radiojornais analisados JORNAL da Universitária. Apresentado por Natanael Souza. Teresina: Rádio FM Universitária 96,7, 09 de maio 2016 JORNAL da Universitária. Apresentado por Natanael Souza. Teresina: Rádio FM Universitária 96,7, 10 de maio 2016 JORNAL da Universitária. Apresentado por Natanael Souza. Teresina: Rádio FM Universitária 96,7, 11 de maio 2016 JORNAL da Universitária. Apresentado por Natanael Souza. Teresina: Rádio FM Universitária 96,7, 12 de maio 2016 JORNAL da Universitária. Apresentado por Natanael Souza. Teresina: Rádio FM Universitária 96,7, 13 de maio 2016 JORNAL da Universitária – 1ª edição. Apresentado por Geraldo Oliveira e Tetê Carvalho. Fortaleza: Rádio Universitária FM 107,9, 09 de maio 2016 JORNAL da Universitária – 1ª edição. Apresentado por Geraldo Oliveira e Tetê Carvalho. Fortaleza: Rádio Universitária FM 107,9, 10 de maio 2016 JORNAL da Universitária – 1ª edição. Apresentado por Geraldo Oliveira e Tetê Carvalho. Fortaleza: Rádio Universitária FM 107,9, 11 de maio 2016 JORNAL da Universitária – 1ª edição. Apresentado por Geraldo Oliveira e Tetê Carvalho. Fortaleza: Rádio Universitária FM 107,9, 12 de maio 2016 JORNAL da Universitária – 1ª edição. Apresentado por Tetê Carvalho e Marco Fucuda. Fortaleza: Rádio Universitária FM 107,9, 13 de maio 2016 JORNAL Rádio Universidade. Apresentado por Adalberto Júnior. São Luís: Rádio Universidade FM 106,9, 09 de maio 2016 JORNAL Rádio Universidade. Apresentado por Adalberto Júnior. São Luís: Rádio Universidade FM 106,9, 11 de maio 2016 JORNAL Rádio Universidade. Apresentado por Adalberto Júnior. São Luís: Rádio Universidade FM 106,9, 12 de maio 2016 JORNAL Rádio Universidade. Apresentado por Adalberto Júnior. São Luís: Rádio Universidade FM 106,9, 13 de maio 2016

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 57


IMAGEM, CONSENSO E DEMOCRACIA: A PROPAGANDA POLÍTICA ELEITORAL DO TSE E A IMAGEM DA DEMOCRACIA 1 BRASILEIRA NAS ELEIÇÕES DE 2010 Cristiano P. da Silva2 Jaqueline Morelo3 RESUMO O estudo busca refletir sobre o papel desempenhado pela comunicação na formação de massa para o consenso da democracia incipiente no Brasil. Leva em consideração a recente história de sua implementação e a imagem vinculada a esta. Utiliza os conceitos de Jacques Rancière, para compreender os sentidos da democracia, Jean Baudrillard, ao discorrer sobre simulacros e massas, Wilson Gomes, para compreender o papel da propaganda política e analisa-se, através da semiótica, mais precisamente da gramática normativa de Peirce, a peça conceitual da campanha do TSE de 2010. Com isso compreende-se os caminhos tomados para legitimar a democracia pós ditadura militar, especificamente em um período de suposta tranquilidade que foi o ano de 2010. Palavras-chave: imagem; consenso; simulação; democracia.

Introdução

C

ompreende-se que vivemos hoje sob forte pressão da imagem. Esta se dissipa nas ações e práticas que intercalam a verdade existencial. Identificamo-nos com a reprodução da cultura exibida pela TV, a chamada cultura de massa, e alguns até se adéquam aos padrões tomando-os como vestais. Este estudo tem como tema o papel da Comunicação na formação do sentido de massa para a manutenção do consenso da democracia incipiente no Brasil. Tem por objetivo geral compreender a imagem, enunciada sobre a eleição, pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE –, na construção do imaginário acerca da democracia. E como objetivos específicos, apreender o sentido de massas e analisar a propaganda eleitoral da campanha, a respeito da eleição, desenvolvida pelo TSE e veiculada nos meios de comunicação de massa, no primeiro período do ano eleitoral de 2010. E teve como questão principal: Quais os significados presentes no discurso, incutido na imagem da democracia, veiculados na peça publicitária “Conceitual”, da campanha do TSE sobre as eleições de 2010? Partimos de alguns pressupostos, como o crescente desenvolvimento dos signos imagéticos tomando-os como um fenômeno. Consideramos também o aumento de profissionais, especialistas de diversas áreas, atuando no desenvolvimento da comunicação e da imagem. Desse modo, formulou-se a seguinte hipótese: Compreender a imagem para modificá-la tornou-se o termo chave da eficácia comercial ou política e esta intensifica a predisposição para um direcionamento do sentido do signo. A propaganda política eleitoral do TSE interfere no “processo de formação de significações” no qual a democracia está imersa, desenvolvendo assim, através da comunicação de massa, um simulacro político. Como método de procedimento, usamos o semiótico de Peirce, o qual questiona a veracidade de tudo que é compreendido como verdade. Dessa maneira, “a semiótica não se refere diretamente a realidade. Ela o prefere fazer por meio do signo e do texto” (IASBECK, 2008). Utilizou-se nesse estudo três técnicas: a documentação indireta 1

Trabalho apresentado no “GT.02 - Mídia, Democracia e Cidadania” do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduado em Relações Públicas pelo Centro Universitário Newton Paiva (2011). É integrante do Programa Polos de Cidadania (UFMG) e colaborador do Programa Cidade e Alteridade (Faculdade de Direto da UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais. Endereço eletrônico: cristpsilva@gmail.com 3 Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999), graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1995) e em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1988). Atualmente é assessora-chefe de Comunicação da Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social (Sedese-MG). Atuou como docente nos cursos de Publicidade e Propaganda e Jornalismo do Centro Universitário de Belo Horizonte - Uni-BH e nos cursos de Jornalismo e Relações Públicas do Centro Universitário Newton Paiva. E. eletrônico: jaquelinemorelo@gmail.com 58 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


através de pesquisa bibliográfica; a técnica de documentação direta intensiva, composta de: 1) Observação: a coleta de dados se deu através do download (no site do TSE – www.tse.gov.br) de comerciais exibidos na TV, durante o segundo semestre do ano eleitoral de 2010. Foi também utilizada à técnica de observação direta extensiva que consistiu em: 1) Análise do conteúdo por permitir a descrição sistemática do conteúdo da comunicação. (MARCONI; LAKATOS, 2001) A gramática especulativa, primeiro ramo da semiótica de Peirce e que será utilizada para a análise, ocupase do estudo dos tipos de signos e formas de pensamentos possibilitados pelo mesmo, sendo, dessa forma, uma teoria geral e a base de outras duas, a lógica crítica e a metodêutica ou retórica especulativa. É também considerada como uma ciência geral dos signos. Todo signo “está encarnado em alguma espécie de coisa, quer dizer, todo signo é também um fenômeno, algo que aparece à nossa mente” (SANTAELLA, 2007, p.33). O signo possui três propriedades formais, as quais são: suas qualidades, sua existência, e seu caráter de lei. A qualidade é chamada de quali-signo, quer dizer que é uma qualidade, que é um signo. Produz uma cadeia associativa que lembra, sugere, tem em si, um poder de sugestão. Existir significa: ocupar um lugar no tempo e no espaço, reagir em relação a outros existentes, conectar-se, sendo esta propriedade que confere o poder de funcionar como signo, a isso chamamos sin-signo, onde “sin” quer dizer singular (SANTAELLA, 2007). A lei é uma abstração e chamada de legi-signo. Mas uma abstração que é operativa não opera enquanto não encontra um caso singular sobre o qual agir. Santaella (2007, p.13) afirma que “a ação da lei é fazer com que o singular se conforme, se amolde à sua generalidade”. Imagem é uma palavra polissêmica, intrigando pensadores desde a escola clássica. Mas foi somente no fim século XIX e início do século XX que as imagens começaram a se desenvolver de maneira radical (SANTAELLA; NÖTH, 1997). Hoje, na alvorada das grandes transformações visuais digitais, as imagens permeiam diversos planos, desde o material até o mental. Segundo Santaella e Nöth (1997, p.15), a imagem pode ser dividida em dois domínios distintos: imagens como representações visuais, quando “[...] são objetos materiais, signos que representam o nosso meio ambiente visual”; e imagens como representações mentais, as quais permeiam o domínio imaterial. Contudo, ambos compartilham uma coexistência. Um não existe sem o outro. Há dois conceitos unificadores, nesses domínios, signo e representação, sendo que, na definição dessas últimas pode-se reencontrar esses mesmos domínios da imagem, ou seja, seu lado perceptível e seu lado mental, “[...] unificados estes em algo terceiro, que é o signo ou representação” (SANTAELLA; NÖTH, 1997, p.15). Para Baudrillard (1991) a imagem possui quatro fases sucessivas. Primeiro ela é um reflexo de uma realidade profunda, sendo considerada uma boa aparência, quando a representação é do domínio do sacramento. Em um segundo momento, mascara e deforma uma realidade profunda, é então uma má aparência, é do domínio do malefício. Neste ponto, as imagens ainda dissimulam que há algo, estas são uma teologia da verdade e do segredo, sendo que a passagem destes signos “aos signos que dissimulam não há nada, marca a viragem decisiva” (BAUDRILLARD, 1991, p.14). Em seguida, na terceira fase, a imagem mascara a ausência de realidade profunda, ou seja, finge ser uma aparência, sendo colocada sob o domínio do sortilégio. A imagem, já dissimula que não há nada, e introduz a era dos simulacros e da simulação (BAUDRILLARD, 1991, p. 14). Na quarta fase não tem relação com qualquer realidade. A imagem é o seu próprio simulacro puro, “já não é de todo o domínio da aparência, mas da simulação” (BAUDRILLARD, 1991, p. 13). Agora, após o real não ser mais o que era é quando o sentido de nostalgia é assumido em sua plenitude. Temos uma produção acelerada de real e referencial, desta forma vemos o aumento significativo de significados sem sentido na esfera social, anulando-a como um todo. Simular é fingir ter o que não se tem, e refere-se a uma ausência. Mas, simular não é fingir, pois este deixa intacto o princípio de realidade. Já “a simulação põe em causa a diferença do ‘verdadeiro’ e do ‘falso’, do ‘real’ e do ‘imaginário’” (BAUDRILLARD, 1991, p. 9). A simulação surge tão abstrata quanto é sua existência, e faz-se como o melhoramento dos momentos e dados coletados e relatados, o autor afirma que “[...] a simulação é a geração pelos modelos de real sem origem nem realidade: hiper-real”. (BAUDRILLARD, 1991, p.08) Na Teoria do Simulacro Baudrillard expõe o social como um agente sem nomeação, cuja autenticidade na atualidade é questionada por ele: “nossa ‘sociedade’ talvez esteja prestes a pôr fim ao social, a enterrar o social sob a simulação do social”. Descarta as definições presentes no social e a coloca dentro de uma perspectiva de desenvolvimento simbólica, dizendo que “não há definição do social senão nessa perspectiva panótica”. E ainda que Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 59


“este espaço perspectivo (em [...] política ou em economia) é só um modelo de simulação entre outros, e que só tem por característica o fato de que permite efeitos de verdade, de objetividade, inauditos e desconhecidos aos outros modelos”. (BAUDRILLARD, 2004, p.57). Para Baudrillard (1985, p.58) “o social só existe num espaço perspectivo, morre no espaço de simulação, que é também um espaço de discussão” e define o espaço de simulação como o da “confusão do real e do modelo”. Esse modelo é algo idealizado pelos nossos esforços de transformação do real, e pode também ser entendido como uma projeção do que queremos alcançar. Nessa perspectiva o real é hiper-realizado, onde não é “nem realizado, nem idealizado: hiper-realizado”. Contudo, o “hiper-real é a abolição do real não por destruição violenta, mas pela afirmação, elevação à potência do modelo, antecipação, dissuasão, transfiguração preventiva: o modelo opera como esfera de absorção do real”. (BAUDRILLARD, 2004, p.68) Para Baudrillard (2004, p.10) a massa não tem “realidade” sociológica. “Ela não tem nada a ver com alguma população real, com algum corpo, com algum agregado social específico”. Para o autor, as significações das massas nas representações imaginárias colocam-na em situações de flutuantes entre a passividade e a espontaneidade selvagem. Mas ela ainda pode ser salva, pode sair da inércia em um solavanco e fazer a revolução, diz o discurso. Ainda afirma que especificamente “as massas não têm história a escrever, nem passado, nem futuro, elas não têm energias virtuais para liberar, nem desejo a realizar: sua força é atual, toda ela está aqui, e é o silêncio” (BAUDRILLARD, 2004, p.10). Simulacro televisivo: a propaganda como meio de hiper-realização da imagem Para Gomes (2004, p.200) nas “sociedades democráticas, a luta contra o interesse oposto, diferente ou antagônico, transforma-se na disputa pela obtenção do consentimento da maioria.” Deste modo, seus elementos fundamentais encontram-se na discussão pública e na propaganda. Assim, a propaganda situa-se no momento em que “os grupos e sujeitos de interesses devem obter a sua legitimação, a validação, isto é, a sua admissão na esfera política escrita” (GOMES, 2004, p.201), ou seja, através do voto. É importante ressaltar que Gomes aplica sua análise ao conceito habitual de política e não ao proposto por Rancière, ou seja, enquanto práticas de manutenção da ordem, da partilha de cada um no seu lugar. Para Gomes (2004, p.201) a atividade da propaganda consiste “na exposição pública das posições, dos sujeitos que as sustentam e dos argumentos que se pretende defender contra qualquer posição contrária ou distinta”. Atua, assim, para “convencer um determinado conjunto de pessoas à adesão” (GOMES, 2004, p.204). Já a propaganda eleitoral, “sua adaptação consistiu na sua aproximação da publicidade comercial” (GOMES, 2004, p.204). Para o autor a propaganda política e a lógica da comunicação possuem três cenas. A primeira ocorre durante a metamorfose da propaganda à telepropaganda. Nela os “[...] meios de comunicação são normalmente instituições comerciais inseridas na economia de mercado" (GOMES 2004, p. 205). A segunda característica, as “[...] instituições de comunicação são parte de indústrias do entretenimento e da informação” (GOMES, 2004, p. 205). Tudo “deve necessariamente ser ou tornar-se interessante”. O interessante é o show é, justamente, a mostra, a exibição, a imagem, afirma Gomes (2004, p. 205). A terceira característica diz do domínio técnico e especializado (GOMES, 2004, p. 206). E por quarta, a princípio a comunicação midiática é uma concessão pública, mas os meios de comunicação são privados (GOMES, 2004). Este cenário identifica quem pode falar e quem não pode (GOMES, 2004, p. 208). A segunda cena é chamada de crítica da propaganda eleitoral midiática e Gomes (2004, p. 215) diz que “parece ser típico de uma situação democrática que os grupos de interesse possam interagir, mediando os próprios interesses, negociando as próprias pretensões” e ainda ter “consideração às pretensões dos outros que lhe são concorrentes”. Para Gomes (GOMES, 2004, p. 215) o comércio comunicativo é que constitui a dimensão política e pública. A propaganda eleitoral é uma instituição, criada para “dar a conhecer, “tornar públicos a identidade, os propósitos, as teses e princípios daqueles que solicitam o consentimento dos cidadãos” (GOMES, 2004, p.216). O autor afirma que como critério possui a “avaliação da eficácia, que inclui o fato de que o outro é superado” desta forma a “arte da propaganda nesse caso tem que ser a arte de persuadir, de realização e convencimento”(GOMES, 2004, p. 217).

60 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A terceira cena foi chamada de espaço legal e manutenção da lógica midiática. Nela, segundo Gomes (2004, p.217) “a sociedade, através do Legislativo, busca eliminar pela lei alguns problemas éticos evidentes que rondam a propaganda midiática”. Desse ponto “as sucessivas leis eleitorais exigem, todavia, que os meios de comunicação de massa deem tratamento equânime a todos os candidatos” (GOMES, 2004, p. 217). Configura-se então “uma soleira mínima de equidade, com base moral” (GOMES, 2004, p. 218). E conclui “a primeira soleira na entrada do mundo maravilhoso da comunicação é, certamente, o dinheiro” (GOMES, 2004, p.218). Análise Todo o material de análise foi consultado e extraído do site11 do Tribunal Superior Eleitoral, instância máxima no controle e execução dos métodos de validação e efetivação do modelo de Democracia, adotado no Brasil. As peças foram veiculadas nas Redes de Televisão a partir das seis horas até as vinte e quatro horas, no período de 31 de julho, último sábado do mês, a 3 de outubro de 2010, primeiro domingo do mês e dia da eleição, primeiro turno. Começaremos analisando as “Planilhas de Controle de Execução de Veiculação em Redes de Televisão”, destinadas, ao mercado internacional (primeira fase da campanha, tendo começado um dia antes do mercado nacional, conforme planilha) e nacional (primeira e segunda fase da campanha). A primeira Fase da “Campanha TSE – Eleições 2010”, contou com nove peças de propaganda de caráter institucional, conforme as referências classificatórias da “Planilha de Controle de Veiculação em Emissoras de TV Programação 1ª Fase da Campanha”. Os anúncios estão nos formatos 30” e 1’ e foram veiculados no período de 31 de julho a vinte e dois de agosto, do ano de campanha. Contou com os seguintes VT’s: 1ª) Conceitual; 2ª) Dois documentos; 3ª) Papel do presidente; 4ª) Compra de Votos; 5ª) Pesquise o passado. A segunda Fase da Campanha12 foi veiculada no período de 23 de agosto a 11 de setembro. Foi direcionada ao “Mercado Nacional” e nos formatos 30”, 45”e 1’. Teve sete anúncios: 1ª) Conceitual; 2ª) Acessibilidade; 3ª) Dois documentos (versão dois); 4ª) Identificação Biométrica; 5ª) Segurança na Urna; 6ª) Voto Facultativo e 7ª) Pesquise o Passado (versão um). A “Terceira Fase” veiculou dezoito VT’s, no período de 10 de setembro a 3 de outubro e também foi direcionada ao “Mercado Nacional”, com formatos de 30” e 1’. As seguintes peças publicitárias fizeram parte da Campanha: 1ª) Dois Senadores; 2ª) Voto Secreto; 3ª) Boca de Urna; 4ª) Procedimento de Voto; 5ª) Justificativa de Ausência; 6ª) Cola; 7ª) Pesquise o Passado (versão 01); 8ª) Compra de Votos; 9ª) Dois Documentos (Versão 03); 10ª) Identificação Biométrica; 11ª) Segurança da Urna; 12ª) Papel do Presidente; 13ª) Papel do Governador;14ª) Papel do senador; 15ª) Papel dos deputados – versão 02; 16ª) Dia, hora e documentos 1º Turno; 17ª) Voto em Legenda e Branco; 18ª Voto Facultativo – versão02. Optamos por analisar, aqui, somente a peça nomeada por “Conceitual”. Ela foi escolhida por integrar duas fases da campanha a internacional e a nacional, ser a maior em tempo e por sua denominação, ao remeter ao sensível, em seu título. Aqui descreveremos o objeto pesquisado, ou seja, a peça “Conceitual” e, em um segundo momento, iremos analisá-la através do olhar semiótico. Primeira Cena: A Máquina do Destino (0:00:0 0 – 0:00:04) Fala 1: “Você já imaginou se existisse uma máquina” - O ator (protagonista) posicionado / “onde você pudesse escolher o seu destino?” - no centro do cenário com o enquadramento do tórax para cima, e encerrando-se um pouco acima da cabeça. Lembra a bandeira nacional. Basta seguir as linhas presentes, os traços. Predominância do verde no fundo, sobrepondo em dégradés, clareando, por trás da cabeça do protagonista, do claro para o escuro, como nas figuras religiosas, como de Cristo, Buda, e messias diversos. O protagonista, de camisa azul, com a gola desabotoada, lembrando uma circunferência, age como índice. Enquanto narra à primeira frase, levanta o braço, esquerdo, lentamente, o movimento lembra a formação de uma circunferência. Possui uma aliança, no dedo anular da mão esquerda, símbolo de compromisso, casamento, e no braço um relógio de prata, símbolo de prosperidade, para um país, onde a maior parte dos religiosos possui uma religião cristã, ou derivada.

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 61


Quando fala, a palavra “máquina”, presente, na narração, direciona e sobrepõe a mão esquerda sobre o peito, mais precisamente sobre o coração. Na sequência, frisa o “o seu”, com um movimento rápido com a mão, direcionando o apelo ao telespectador, ao cidadão, ao cliente. Pula para o segundo cenário. Segunda cena: Diretas Já (0:00:04 – 0:00:09 ) Fala 2: “Você poderia escolher lutar pelos direitos ” / “de um povo e pelos seus ideais.” Agora a cena refere-se a uma manifestação, na rua, gritando por união e fortalecimento do povo: “O povo unido, jamais será vencido” (essa fala não aparece no texto corrido, somente falado). O cenário possui a “Bandeira do Brasil” (onde prevalece a cor verde); uma faixa que chamaremos faixa 01, atrás da “Bandeira”, tendo as seguintes características, retangular, branca, com os dizeres: “Diretas Já”, em caixa alta, vermelho. Do lado esquerdo, da faixa, temos a placa de madeira, também retangular, cortada por três faixas de cores: verde, azul e amarela; com os seguintes inscritos: Poder/ do/Povo, conforme a ordem das cores. Além desses elementos, o protagonista, com calça jeans preta, blusa cinza, cinto marrom, óculos pendurado na camisa, com três botões abertos, repetindo o gesto da multidão em perfeito uníssono, imagético e auditivo, fica expressamente em destaque na cena. A cena forma-se como um deslocamento, transição, a saber, da ditadura militar para a nova “Democracia Brasileira”. Prevalecem as cores amarela (na blusa de uma personagem, bandeira e placa), verde (bandeira), e branco (dois figurantes e faixa). A cena segue o modelo dos registros históricos. Uma multidão sendo filmada por uma câmera, estilizada e remetendo a outra tecnologia, mecânica, diferente das digitais (modernas). Até o momento, só aparece na cena o protagonista. Entra em cena a manifestante 1 (M1), mulher, jovem, camiseta amarela, calça jeans preta, bolsa marrom, à direita do protagonista. Após, entra o manifestante 2 (P2), homem, meia idade, megafone na mão, óculos e jaqueta jeans azul aberta sob camisa listrada, branca e cinza, à esquerda. No cenário, aparecem, atrás do balançar das mãos ferradas, segurando, a bandeira nacional, da M1, mais duas faixas. Uma chamaremos de “faixa 2”, e possui as seguintes características: branca e contém os dizeres: “Diretas Já”, em caixa alta e fonte preta. A “faixa 3”, é preta e tem os dizeres: “Voto já”, em caixa alta e fonte branca, lembrando escrita à mão. A câmera se posiciona de tal maneira, que parece que estamos participando do acontecimento, olhando de frente, de lateral, tremendo e sentindo junto aquela emoção. A câmera fictícia desaparece, reaparece a multidão, o povo unido, deixando o protagonista para trás, nos induzindo a outro cenário, a outro momento. Terceira cena: Soldado se rende (0:00:09 – 0:00:14) Fala 3: “Ou você poderia escolher a paz,” / “promovendo a união entre as pessoas.” Entra em cena um cenário, desolador, atrás de uma trincheira, um campo de batalha com três soldados, angustiados e desorientados, junto, as balas inimigas. Atrás dos soldados corre um quarto soldado (S4), na direção dos primeiros. Estão dispostos na seguinte ordem, da direita para esquerda, soldado 1 (S1), segurando uma arma (parece um rifle, todos seguram um parecido), centro, soldado 2 (S2), segura o capacete com a mão direta e a arma com a mão direita, o soldado 3 (S3), na esquerda, possui o capacete diferente dos demais, lembra o dos soldados norte-americanos. Todos possuem o uniforme verde escuro, lembrando musgo, e capacete, verde escuro (com exceção do S3). O verde prevalece nessa cena, mas parece ter um filtro meio marrom, dando a aparência de fim de tarde, envelhecendo a cena, meio sépia. A posição das armas dá a entender que estão apontando para quem assiste, ou seja, o telespectador ou público. Uma bomba explode e arremessa o S4, que esbarra a mão direita no F1 e a esquerda no F2, causando um desequilíbrio nesse e no F3, que serve de subterfúgio para a câmera se mover para esquerda. Nesse momento surge lentamente vindo da parte inferior, interna da trincheira, uma bandeira branca, improvisada, sendo erguida pela mão direita do protagonista, ou soldado 5 (S5), com rosto refletindo aflição e medo. Quando ele termina de erguer-se, sempre acenando as mãos, em meio às balas, a cena acaba, e passa-se para a próxima. Quarta Cena: Caçando o caçador (0:00:14 – 0:00:25) Fala 4: “Você poderia escolher entre a destruição.. .” / “... e a preservação,” / “zelando pelo futuro das próximas gerações.” Surge o protagonista, com camisa laranja com mangas brancas, e longas, encobrindo o braço, colete cáqui escuro médio, e bermuda verde jeans, agachado em primeiro plano, arrumando uma rede de caça. E a personagem 1 (P1), boné marrom, blusa verde, bermuda cáqui, cinto preto,

62 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


magra, loira, cabelos longos (aparece a fala). A câmera segue os movimentos dos passos dele, enquanto puxa uma corda, aproximando-se da personagem P1. Os dois escondessem atrás de um arbusto, enquanto aguardam a caça. A aparece o senhor 1 (S1), traja roupas de aspecto interiorano, de chinelo, e chapéu preto, calça jeans azul claro, com a barra dobrada para cima, e camisa marrom pólo. No mesmo instante a câmera gira e aparecem mais três personagens. Personagem 2 (P2), masculino, camisa verde, bermuda marrom claro. Personagem 3 (P3), feminino, branca, camisa verde, calça jeans, magra, bolsa marrom. Personagem 4 (P4), masculino, negro, camisa verde, calça marrom clara, boné meio esverdeado. Acabou–se a trama. O S1, ou a “caça”, é pego e todos correm, uns para segurar, “a caça”, que se mostra o “caçador”, e outros para resgatar as gaiolas e os seus ocupantes. A câmera faz uma panorâmica e mostra os Personagens coletando as gaiolas e as levando para o caminhão. Aparece o fiscal 1 (F1), masculino, calça jeans, blusa vermelha, colete preto, com os dizeres: “Fiscalização/ICMBio). Protagonista, P2 e P3, mais o P4 levando as gaiolas para o caminhão. Surge P5, enquanto P2 e P3 saem de cena, logo depois P4 e o protagonista fecha a caminhonete. Predomina a cor verde, nessa cena, relativo a natureza, o tronco das árvores e chão remetem, junto as roupas a uma cor sépia. Quinta Cena: Sorriso do palhaço (0:00:25 – 0:00:29) “E você poderia escolher a alegria” / “fazendo as pessoas sorrirem mais”. Novo cenário. Agora, o palco, possui um fundo florido, com as cores, vermelho, azul e amarelo, se destacando muito. Sua forma começa da direita para esquerda, com as características ditas anteriormente, surgem faixas em colunas nas cores azul e vermelho se intercalando, no centro algo que lembra uma entrada principal de um palco de teatro, com cortinas de fundo, azul, e de frente cinza. O palhaço (protagonista) entra em cena com um violino, pela direita, e roupas coloridas onde o amarelo, o branco, o vermelho, destacam-se. A câmera vai subindo enquanto o palhaço locomove-se para o centro da cena e recua em direção a esquerda. A plateia aparece conforme o palhaço anda, dando a entender certa forma de interação entre ambos. Foco no rosto do palhaço que sorri junto ao fim da fala. Sexta Cena: Pamonharia – o protagonista (0:00:29 - 0:00:49) Fala 6 (1ª parte) – “Você poderia escolher entre a omissão...” / “... e a atitude”. Uma loja com aspecto interiorano e tradicional. Os funcionários, abrindo a loja. O protagonista agora é um faxineiro, trajando calça cáqui, camisa amarela e bota branca, segurando uma vassoura com cabo cinza metálico, e quina superior azul, ao lado de um balde vermelho, com um pano branco, pendurado. As paredes exteriores da loja têm a predominância da cor amarela, na parte superior, com cerâmicas verdes e brancas. A câmera nos leva para dentro da loja. O telefone toca, e ganha o foco. Ninguém atende (parecem não escutar, somente o protagonista percebe o chamado do telefone). O faxineiro dirige-se para o balcão, olha para os lados para conferir se alguém está vendo. A parede no interior do estabelecimento, possui duas cores, a laranja, na parte superior, e a amarela na inferior, com predominância dessa última, com um cartaz verde pregado na parte superior; um balcão com um objeto azul, que lembra uma máquina registradora antiga. O protagonista atende o telefone e: “- Alô? É a pamonharia do seu Ramires, sim.” / “-Entrega? Fazemos, fazemos sim.” / “- Tá bom, obrigado!”. Enquanto dialoga o protagonista encobre a parte superior (azul) da vassoura (cinza prateado), e o leva rente ao peito. Fala 6 (2ª parte) – “E cada escolha sua traria uma consequência.” Na sequência há predominância das cores, amarelo, verde, azul, vermelho, nos respectivos graus de abundância na tela. No fundo, ainda embaçado, entra um personagem que demonstra ser o dono do estabelecimento, que tem o semblante sugerindo irritação. Os funcionários escutam em silêncio a aparente bronca do patrão, que ao final parabeniza o protagonista daquela ação, ou seja, o faxineiro: “- De quem foi a brilhante ideia de fazer entrega?” / “- Parabéns!” / “- Você agora é o meu gerente!”. Sétima Cena: Fim (0:00:49 – 0:01:00) “Nessa máquina aqui,” / “Você pode escolher o destino que quiser.” / “Nessas eleições, vote consciente” / “e ajude a escolher não apenas o seu futuro,” / “mas de todo o Brasil.” Volta ao cenário da “Primeira cena”, com algumas alterações. O plano da câmera é mais aberto, agora, aparece a “máquina”, sobre uma mesa branca, creme, o protagonista da cintura para cima, articulando muito as mãos, principalmente a esquerda. Como na primeira parte prevalece as corres verde e azul, junto à inserção do branco, no canto direito do protagonista. Termina cena com o Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 63


aparecimento do Brasão da Justiça Eleitoral, acima dos dizeres, em caixa alta, e fonte preta, “Justiça Eleitoral”, e um pouco abaixo o endereço do sítio do TSE (www.tse.jus.br) A mensagem em si e sua referência A peça estudada tem como marco convenções históricas, seu nome em si, “Conceitual”, remete a um princípio a ser seguido, é uma convenção popular. Como a publicidade é uma via de mão única, onde quem assiste deve somente escutar e ver, e principia, que este, o telespectador, no nosso caso, o cliente, o eleitor, como já visto em Gomes (2004), atenda a seu chamado, através da sedução proveniente da propaganda. Deste modo o que confere fundamento ao signo, de diversas formas, são legi-signos, apesar da presença marcante de quali-signos e sin-signos. Podemos ver nessas relações, através de sing-signos, a formação da bandeira nacional, construídas pelo protagonista, humorista conhecido, contratado por uma das maiores emissoras de TV do Brasil. Durante todo o tempo os modelos são expostos ao telespectador, e os movimentos são minuciosos, além da repetição das cores, verde, amarelo, azul, branco, vermelho, em maior ou menor grau, sendo o laranja a mistura do amarelo com vermelho, estas duas se expressam mais. Além disso, traça uma ligação entre o partido, presente no poder na época, e o amarelo da bandeira brasileira. As cores predominantes nas cenas são: azul, amarelo, verde e vermelha. As cores, as formas e as sutilezas abstratas das coisas, suas qualidades, são quali-signos, como visto. A cor vermelha, e a amarelo, apresentam-se, por vezes, metamorfoseadas em uma terceira, a laranja. Sabe-se que o amarelo é uma alegoria do ouro e das riquezas das terras brasileiras. Além, disso compõe junto as outras, excetuando-se o vermelho, a bandeira do Brasil. E esta última, a do partido (Partido dos Trabalhadores) e há oito anos (na época, 2010) no poder, através do sufrágio, concessão do poder para governar o país4. Sendo assim, também, a representação do Brasil perante as outras nações do mundo. O sin-signo é uma coisa, um evento existente, ou seja, pode ser um momento político, pois contém sua brevidade de vida, de existência, e se descreve através das imagens deixa das nas mídias e nos meios. Também o amarelo, sugere e, mais além, tornou-se uma convenção, não uma lei rígida propriamente dita, escrita e transcrita, mas uma convenção no modo de perceber o amarelo, como ouro e riqueza. Esse aspecto é o de um legi-signo. Além disso, podemos perceber ao longo dos sete capítulos da peça, essa continuidade e repetição das cores das bandeiras, outra combinação de elementos atuando como legi-signo. Na realidade poderíamos escrever aqui uma legislação de legi-signos, direcionados para a aceitação destas cores em nossas vidas. Mas estes se sobressaiam perante a análise contemplativa, ou seja, a procura pelo fundamento do signo. Considerações finais As peças publicitárias (comercias ou políticas – polícias) são ações intencionais, desenvolvidas através de pesquisas, e por profissionais especialistas nessas áreas. Portanto, utilizam-se de dados científicos, modelos, já abstraídos da convivência e da opinião pública. Levaremos em consideração, também, que a versão analisada foi obtida através do sitio do TSE, na rede digital. Essa, a grande rede, um ambiente explicitamente legi-signo, como visto. Bem, tendo em mente que o fundamento do signo é aquilo que lhe revela, enquanto coisa em si mesmo, é aquilo que mais se destaca dentro de suas características na primeiridade. Percebemos uma forte presença de qualisignos, mas, mesmo estas estão submersas ao prazer cientifico da técnica e da composição detalhada do roteiro e do sentido pretendido pelo contratante. O fundamento existe a partir de modelos, é desse modo, uma lei, portanto, um símbolo. Sendo assim, aqui, o objeto imediato representa seu objeto dinâmico, tendo as características de um legi-signo simbólico. Podemos, portanto, afirmar que seu objeto imediato é um copulante, que firma relações lógicas, previstas pelo homem, como exemplificado na sequência de cenas que constitui a peça publicitária. 4

Atualmente (2017) retirado da presidência, através de um golpe de Estado conforme Michael Löwy (2016) "Golpe de Estado pseudolegal, 'constitucional', 'institucional', parlamentar". Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2016/05/17/michael-lowy-o-golpede-estado-de-2016-no-brasil/ 64 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


As cenas agem em detrimento do roteiro e do ritmo do texto. O texto enfatizava constantemente a palavra “você”. Muito usada para designar igualdade, ou fala de superioridade a um subalterno. É também a palavra preferida no Marketing, direcionado para o consumo acelerado, e a hiper-valoração das coisas, produtos, pessoas, perante o mercado, sendo este também chamado de cliente. Deste modo, o eleitor é tratado como um cidadão, durante todas as cenas, o dono do poder de agir, de fazer, ele é o ator, o protagonista, autônomo e ativo, sempre tomando a frente das situações e si dando bem. É chamado a assumir seu papel de cliente e optar pela mercadoria. Esta, geralmente, só é conhecida por intermédio de outras peças publicitárias e matérias jornalísticas, através dos meios de comunicação, a propaganda eleitoral, do candidato, por exemplo. O objeto imediato é portanto o posicionamento do ator perante as muitas decisões da vida. Esta nos encaminha ao objeto dinâmico, as escolhas só podem acontecer dentro da democracia, assim o objeto dinâmico é o Estado em sua democracia representativa liberal definitiva. O signo, como visto, é divido em três níveis de interpretante, a saber, o imediato, o dinâmico e o final. O primeiro é interno ao signo, existe no nível abstrato e possui um potencial para ser interpretado. O imediato possui três categorias: emocional, energético e lógico. A primeira categoria é uma qualidade de sentimento, a segunda diz de algo existente, uma ação física ou mental; a terceira existe quando o signo é interpretado através de uma convenção interpretativa internalizada pelo intérprete. O final é um estado que não pode ser alcançado. Pelas características descritas acima, nosso signo, que é um símbolo, em seu fundamento, no primeiro nível possui uma relação de ordenamentos. Podemos perceber isso através do texto e a da palavra “Você ” em todos os sete passos do VT. Apesar disso, os aspectos icônicos são também marcantes, através das cores, e os indiciais através das ações sincronizadas, que nos remetem a algo, como no caso da bandeira, mas que também fazem parte de uma lei, o que nos leva ao segundo nível, do interpretante dinâmico. As convenções instauradas sobre nosso signo levam-nos a percebê-lo nesse nível do interpretante, como lógico, pois esse é o que mais age. Utiliza-se dos outros, enquanto convenções, através do drama das cenas, da ordem e das sequências. As cores inegavelmente são habituais ao cotidiano da República, e foram convenções criadas há mais de um século, assim como o vermelho que ganhou destaque com os movimentos comunistas, e a esse, se tornou referência durante muito tempo, como símbolo de união do povo. Aqui remete-nos diretamente ao partido então no poder. O interpretante final, nosso último passo, nos remete a questões inerentes ao futuro e a potencialidade máxima do signo. Desse modo, sua relação com a vida é de alto complemento, sem podermos saber de que maneira esse VT afetará as próximas gerações. Por ser uma peça publicitária, com fins comercias, ou seja, de angariar clientes, vender um produto, anseia-se que os mesmos se mantenham clientes. Se conseguirão manter-se como tais é uma incógnita. Assim, temos indícios de que a propaganda política institucional tornou-se reprodutora da disciplina das práticas mercadológicas e da promoção do consenso de democracia na esfera pública, sendo esta hiper realista, ou seja uma afirmação do modelo, tendo o próprio modelo como verdade.

Referências BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. 2.ed. São Paulo: Papirus, 1990. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Portugal, Lisboa: Relógio d’Água, 1991. ______. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. São Paulo: Brasiliense, 2004. GOMES, Wilson. Transformações da política na era da comunicação de massa. São Paulo: Paulus, 2004. IASBECK, Luiz Carlos Assis. Método semiótico. In DUARTE, Jorge; BARROS, Antônio. (Org.). Métodos e Técnicas de Pesquisa em Comunicação. São Paulo: Editora Atlas, 2008. LAKATOS, Eva Maria & MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos da metodologia científica. 4. ed. São Paulo P: Atlas, 2001. RANCIÈRE, J. O Dissenso. In NOVAES, Adauto (Org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.367-382. SANTAELLA, Lucia; NÖTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Editora, Iluminuras, 1997. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 65


SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada. São Paulo: Thomson Learning, 2007. ______. Linguagens líquidas na era da modernidade. São Paulo: Paulus, 2007.

66 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Mídia Ninja: comunicação e democracia em redes1 Ana Isabel Freire Monteiro dos Santos Marinho2 Nathércia Vasconcelos Santos3 Ana Maria da Silva Rodrigues4 RESUMO O presente trabalho discute questões como comunicação e democracia no atual contexto social, marcado pela expansão de movimentos em redes. É analisado o caso do coletivo Mídia Ninja, grupo que propõe uma comunicação alternativa, produzindo conteúdos de forma independente e colaborativa, se propondo a lançar novo olhar sobre temáticas sociais, políticas, econômicas e culturais que geram inquietações e debates na sociedade. Neste sentido, abordam-se conceitos como democracia (LÉVY, 2003; MORIN, 2003; LEÓN, 2003), movimentos em redes (CASTELLS, 2013), e comunicação alternativa (PERUZZO, 2006). De forma descritiva, são apresentadas as formas de atuação da rede de comunicadores Mídia Ninja e sua importância no contexto de debates sobre a democratização da comunicação brasileira. Palavras-chave: Mídia Ninja; Democracia; Movimentos em rede; Comunicação alternativa.

Introdução

A

s mudanças ocorridas na sociedade mundial, especialmente no ocidente, resultantes dos desdobramentos do processo de globalização têm sido discutidas por pesquisadores de variadas áreas ao longo de décadas. Tais mudanças, que se manifestam em questões econômicas, políticas, sociais, culturais e comunicacionais, contribuem para o surgimento de novas configurações do espaço público e para a ressignificação de processos sociais. Partindo da discussão acerca dos atuais modos de pensar e fazer comunicação, especialmente sobre o fazer jornalístico em um contexto de comunicação globalizada e colaborativa, o presente trabalho discutirá a importância da comunicação alternativa e a influência de uma rede de inteligência colaborativa para a constituição de novos espaços de jornalísticos, enfocando as práticas do coletivo Mídia Ninja: narrativas independentes, jornalismo e ação, rede que reúne comunicadores com o propósito de produzir e divulgar informações sobre pautas sociais de modo colaborativo. Para isso, realiza-se análise descritiva do site do referido coletivo, bem como de sua página na rede social Facebook e perfis no Twitter e Instagram. São discutidas questões como democracia e poder em tempos de redes digitais, entendidos como fundamentais para que se possa refletir sobre a comunicação no contexto contemporâneo. A Mídia Ninja é um movimento de comunicadores que tem como base para sua atuação ideias como colaboração e compartilhamento de conteúdos em rede. O coletivo iniciou suas atividades em 2013, “com o objetivo de realizar uma disputa de sentidos e imaginários na comunicação brasileira” (MIDIA NINJA, 2016, s. p.). 1

Trabalho apresentado no GT 2: Mídia, Democracia e Cidadania do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí, vinculada à linha de pesquisa Mídia e Produção de Subjetividades. Especialista em Gestão em Marketing Digital pelo Centro Universitário Uninovafapi. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí. Teresina, Piauí. E-mail: anaisabel_freire@hotmail.com 3 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí, vinculada à linha de pesquisa Processos e Práticas em Jornalismo. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí. Teresina, Piauí. E-mail: natherciavs@gmail.com 4 Doutora em Ciências da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Piauí. Graduada em Licenciatura em Educação Física e Bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí. Teresina, Piauí. E-mail: ams_rodrigues@hotmail.com Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 67


Inspirando-se em trabalhos como da rede Fora do Eixo5, que reúne coletivos políticos e culturais em todo o Brasil, o coletivo se destacou durante a cobertura dos protestos que tomaram as ruas do país em junho do mesmo ano. Aconteceu também no Brasil. Sem que ninguém esperasse. Sem líderes. Sem partidos nem sindicatos em sua organização. Sem apoio da mídia. Espontaneamente. Um grito de indignação contra o aumento do preço dos transportes que se difundiu pelas redes sociais e foi se transformando no projeto de esperança de uma vida melhor, por meio da ocupação das ruas em manifestações que reuniram multidões em mais de 350 cidades. Passe Livre. Porque a mobilidade é um direito universal, e a imobilidade estrutural das metrópoles brasileiras é resultado de um modelo caótico de crescimento urbano produzido pela especulação imobiliária e pela corrupção municipal. [...] Mas também disseram: “Não são os centavos, são nossos direitos”. Porque, como todos os outros movimentos do mundo, ao lado de reivindicações concretas, que logo se ampliaram para educação, saúde, condições de vida, o fundamental foi – e é – a defesa da dignidade de cada um. Ou seja, o direito humano fundamental de ser respeitado como ser humano e como cidadão. (CASTELLS, 2013, p. 182).

As transmissões realizadas nas redes sociais atraíram a atenção da sociedade para o olhar diferenciado lançado pela Mídia Ninja sobre os acontecimentos em questão. Apostamos na lógica colaborativa de criação e compartilhamento de conteúdos, característica da sociedade em rede, para realizar reportagens, documentários e investigações no Brasil e no mundo. Nossa pauta está onde a luta social e a articulação das transformações culturais, políticas, econômicas e ambientais se expressa. (MIDIA NINJA, 2016, s. p.)

Para atingir os fins aos quais se propõe o coletivo se apóia na estrutura da rede Fora do Eixo, bem como de outras organizações internacionais, que visam à produção de conteúdos relacionados a questões de cunho cultural e socioambiental. Enquanto rede, a Mídia Ninja é formada a partir da conexão entre mais de 100 coletivos espalhados por diversas cidades do país. Segundo informações do site do grupo, aproximadamente 700 pessoas contribuem para a produção do conteúdo divulgado na página do coletivo e nas redes sociais. Os colaboradores têm autonomia para decidir se assinam as produções de forma coletiva ou individual. No entanto, como afirma a Mídia Ninja (2016, s. p.), “[...] nenhuma produção de imagem, vídeo ou qualquer outro conteúdo é fruto da criação de somente um indivíduo, pois está ligada a um processo muito mais amplo que vai desde a concepção coletiva de uma peça até a difusão final de seus resultados por dezenas de pessoas”. Temáticas de cunho social, que evidenciam a luta por garantias e direitos dos cidadãos são recorrentes em suas publicações. Para o coletivo, as configurações atuais do jornalismo, propiciadas pelo crescimento da internet são fundamentais para o surgimento de novos espaços de discussões e trocas. Nesse sentido, Castells (2013, p. 170), ressalta a importância das redes interativas para a disseminação de mensagens de coletivos e movimentos sociais no mundo, quando afirma que [...] é essencial enfatizar o papel basilar da comunicação na formação e na prática dos movimentos sociais, agora e ao longo da história. Porque as pessoas só podem desafiar a dominação conectando-se entre si, compartilhando sua indignação, sentindo o companheirismo e construindo projetos alternativos para si próprias e para a sociedade como um todo. Sua conectividade depende de redes de comunicação interativas. Em nossa sociedade, a forma fundamental de comunicação horizontal em grande escala baseia-se na internet e nas redes sem fio. 5

O Fora do Eixo é uma rede colaborativa e descentralizada de trabalho constituída por coletivos de cultura pautados nos princípios da economia solidária, do associativismo e do cooperativismo, da divulgação, da formação e intercâmbio entre redes sociais, do respeito à diversidade, à pluralidade e às identidades culturais, do empoderamento dos sujeitos e alcance da autonomia quanto às formas de gestão e participação em processos sócio-culturais, do estímulo à autoralidade, à criatividade, à inovação e à renovação, da democratização quanto ao desenvolvimento, uso e compartilhamento de tecnologias livres aplicadas às expressões culturais e da sustentabilidade pautada no uso e desenvolvimento de tecnologias sociais. (FORA DO EIXO, 2016, s. p.) 68 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Diferente do que acontece nas mídias tradicionais, a internet é um espaço onde os usuários podem não apenas receber informações, mas serem produtores e atuarem também na difusão dessas informações. A abrangência da internet no mundo e o surgimento de cidadãos multimídia fazem com que a capacidade de construção e compartilhamento de opiniões no ambiente virtual seja potencializada. É importante destacar que o coletivo Mídia Ninja não se apresenta como um meio de comunicação imparcial, como é com acontecer com os veículos de comunicação tradicionais. Um dos princípios defendidos pelo grupo é o de que [...] nenhuma construção humana é capaz de ser imparcial, já que resulta da soma e do acúmulo de todas as suas experiências anteriores e de nossas visões de mundo. [...] Valorizamos a multiplicidade de parcialidades e buscamos alinhar a informação com um conjunto de valores e direitos sociais, com os quais temos compromisso e que para nós são fundamentais. Nossas pautas são nossas causas. (MIDIA NINJA, 2016, s. p.)

Este cenário de mídia alternativa, que propõe um novo olhar sobre acontecimentos sociais, ganha destaque diante do debate acerca dos monopólios midiáticos que comandam o mundo e que, muitas vezes, dão voz apenas a alguns setores da sociedade. Neste sentido, discussões acerca da democratização dos meios de comunicação e necessidade de ampliação de redes alternativas e comunitárias ganham destaque através de estudiosos da área e mesmo de movimentos sociais. Deste modo, são aqui discutidas questões relacionadas à democracia em tempos de movimentos em redes, a partir do caso do coletivo Mídia Ninja. Parte-se das discussões sobre comunicação, globalização e democratização (HARDT, 2003; MORIN, 2003; LÉVY, 2003; ARBEX JR, 2003; LEÓN, 2003), movimentos em rede (CASTELLS, 2013) e comunicação alternativa (PERUZZO, 2006). Comunicação alternativa e democratização dos meios Para que se possa entender a comunicação alternativa nas sociedades, é preciso observar este processo como resultante da estagnação do mundo, que chegou ao limite de sua capacidade de propiciar a seus habitantes o direito ao debate plural, confundindo cidadãos com consumidores, e esquecendo-se de dar dando voz e vez às minorias, as comunidades mais afastadas dos grandes centros, as classes menos favorecidas aos excluídos da sociedade sejam por cor, posição econômica ou opção sexual. A comunicação popular representa uma forma alternativa de comunicação e tem sua origem nos movimentos populares dos anos de 1970 e 1980, no Brasil e na América Latina como um todo. Ela não se caracteriza como um tipo qualquer de mídia, mas como um processo de comunicação que emerge da ação dos grupos populares. Essa ação tem caráter mobilizador coletivo na figura dos movimentos e organizações populares, que per passa e é perpassada por canais próprios de comunicação. (PERUZZO, 2006, p. 2)

Para Osvaldo León (2003), na medida em que se expande o monopólio de transmissão de ideias, informações e cultura, o que se verifica é que na média, a pluralidade e a diversidade cada vez contam menos em razão do sistemático estreitamento da gama de pontos de vista. De acordo com Morin (2013), o processo de globalização influenciou diretamente o surgimento de novas configurações da sociedade, que passa a ser percebida a partir de uma perspectiva abrangente, onde aspectos como economia, cultura, comunicação e civilização são entendidos de modo ampliado. De início, eram uns poucos, aos quais se juntaram centenas, depois formaram-se redes de milhares, depois ganharam o apoio de milhões, com suas vozes e sua busca interna de esperança, confusas como eram ultrapassando as ideologias e a publicidade para se conectar com as preocupações reais de pessoas reais na experiência humana real que fora reivindicada. Começou nas redes sociais da internet já que estas são espaços de autonomia, muito além do controle de

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 69


governos e empresas, que, ao longo da história, haviam monopolizado os canais de comunicação como alicerces de seu poder. (CASTELLS, 2013, p. 10)

Gimenez (apud PERUZZO, 2006, p. 6) entende que a comunicação popular “implica a quebra da lógica da dominação e se dá não a partir de cima, mas a partir do povo, compartilhando dentro do possível seus próprios códigos”. E neste sentido a comunicação dentro do ciberespaço possibilitou a troca de informações de forma rápida, levando conteúdo, debates e acesso a conhecimentos para pessoas de todas as idades e condições sociais, os indivíduos passaram a ocupar um espaço público, em um encontro que ocorre muitas vezes as cegas no ambiente virtual, mas que provoca afetações e debates mais amplos e profundos sobre a sociedade. Segundo Castells (2013, p. 11) “movimentos espalharam-se por contágio num mundo ligado pela internet sem fio e caracterizado pela difusão rápida, viral de imagens e ideias”. A comunicação popular e alternativa se caracteriza como expressão das lutas populares por melhores condições de vida que ocorrem a partir dos movimentos populares e representam um espaço para participação democrática do “povo”. Possui conteúdo crítico emancipador e reivindicativo e tem o “povo” como protagonista principal, o que a torna um processo democrático e educativo. É um instrumento político das classes subalternas para externar sua concepção de mundo, seu anseio e compromisso na construção de uma sociedade igualitária e socialmente justa. (PERUZZO, 2006, p. 4)

As instituições e as outras forças que controlam a vida social fazem parte, de uma relação dialógica de poder e contra poder, que sempre permearam a humanidade. De acordo com Castells (2013, p. 14), “as relações de poder são constitutivas da sociedade porque os que detêm o poder constroem as instituições segundo seus valores e interesses”. Desta forma o fortalecimento da internet permitiu a ampliação dos meios de comunicação, para a sociedade, em uma rede que pode ser considerada global e local, genérica e personalizada, que está em constante transformação. A partir desta reflexão, vale ressaltar que a revolução tecnológica, mais computadores e acesso a conexão de internet nas casas, bem como o aumento no número de telefones móveis em diferentes classes sociais vêm oferecendo mais espaço para discussões que aparecem em um momento bastante homogeneizado e estratificado das notícias publicadas pelos veículos que possuem o poder da comunicação. Neste cenário, a emergência por um debate sobre a democratização dos meios de comunicação se torna evidente, pois, de acordo com Arbex Jr. (20013, p. 385), “o monopólio da comunicação exercido pelas corporações da mídia tem consequências políticas, culturais, sociais e econômicas de longo alcance e profundidade”. O monopólio dos veículos de comunicação faz com que as notícias sejam tratadas como mercadorias, produtos que podem ser escolhidos não pelo interesse público e agregador ao debate social, e sim pelo valor de mercado que ela possui. Uma verdadeira busca pela audiência e pelo lucro, onde a mídia recorre muitas vezes a estratégias como sensacionalismo, glamourização do crime e erotização precoce das crianças, para angariar leitores e telespectadores. Traz a tona um verdadeiro “mundo do espetáculo”, ou a “espetacularização do mundo”, atenua ou até abole as fronteiras entre os gêneros “jornalismo”, “entretenimento” e “publicidade”. Produz telejornais que adotam a linguagem das telenovelas e das peças publicitárias, novelas que fingem ser “documentários” ou “reportagens” sobre comunidades culturais e movimentos sociais [...]. (ARBEX JR. 2003, p. 385)

Analisando a atual situação das concessões de meios de comunicação no Brasil, percebe-se o quanto o poder econômico é determinante para que o processo ocorra e determinadas empresas, grandes conglomerados de mídia continuem a difundir seus produtos, seja por meio de jornais, rádios ou canais de televisão. Diante desta configuração, a internet se mostra como meio mais rentável, e de fácil acesso para aqueles que querem produzir informação e compartilhar conhecimento. 70 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Para estimular a comunicação alternativa e a democratização dos meios, Arbex Jr. (2003) cita alguns passos práticos, que são fundamentais neste processo, como a participação efetiva da sociedade civil no Conselho de Comunicação Social, a transparência com relação ao processo de concessões de exploração de ondas de rádio e TV, implementação de uma ampla reformulação jurídica sobre a área de comunicações, com uma nova Lei de Comunicação Eletrônica, abrangendo o rádio, a televisão e as diversas modalidades de TV por assinatura, debates sobre a regulamentação do uso de novas tecnologias (TV digital) para ampliar os serviços à comunidade, além da necessária inclusão, na grade das emissoras, de programas que estimulem o espírito crítico, o exercício da cidadania, o respeito à cultura nacional e regional. É preciso que ocorra um estímulo a formação de veículos de comunicação regionais, para que se tenha um debate plural, dando espaço para conteúdos locais e troca entre as formas de produção cultural. Conforme afirma León (2003, p. 412), “a luta pela democratização da comunicação não é e nem será fácil”. Mesmo tendo em vista o grande poder alcançado pelas grandes corporações de mídia tradicional, a internet figura como uma importante ferramenta que possibilita e potencializa a comunicação alternativa, ampliando espaços de debates, dando nova configuração ao espaço público. Comunicação e democracia em mídias interativas Em um contexto de produção colaborativo, potencializado pelo desenvolvimento de novas plataformas de comunicação que possibilitam tanto o acesso quanto a realização de trocas de informações de modo rápido e interativo, torna-se fundamental a discussão acerca das práticas empreendidas neste novo espaço público, bem como seus reflexos para a compreensão de como tais interações se processam de modo democrático. Partindo das considerações do filósofo e sociólogo francês Pierre Lévy (2013, p. 367), o surgimento de uma nova esfera pública é propiciado em grande parte pelas mídias interativas e as comunidades virtuais desterritorializadas: “A Internet propõe um espaço de comunicação inclusivo, transparente, universal, que dá margem à renovação profunda das condições da vida pública no sentido de uma liberdade e de uma responsabilidade maior dos cidadãos”. Nesse sentido, Canclini é enfático ao apontar para as implicações das redes de comunicação e relacionamento existentes no ciberespaço, bem como seus efeitos para a constituição de uma sociedade democrática. A organização em redes possibilita exercer a cidadania para além do que a modernidade esclarecida e audiovisual fomentou para os eleitores, os leitores e os espectadores. Diariamente estão sendo difundidas informações eletrônicas alternativas que transcendem os territórios nacionais e são desmentidos em milhares de webs, blogs e e-mails os argumentos falsos com que os governantes “justificam” as guerras, a tal ponto que as emissoras de rádio e televisão, que repetiam a falsidade, às vezes se vêem obrigadas a reconhecer o embuste (CANCLINI, 2008, p. 30).

A capacidade das articulações de movimentos em redes de pautarem as mídias tradicionais pode ser percebida, por exemplo, durante a série de manifestações ocorridas em algumas capitais brasileiras, em junho de 2003. Enquanto os discursos jornalísticos produzidos por veículos de grandes conglomerados de comunicação davam conta de atos violentos, baderna e vandalismo protagonizado por estudantes e manifestantes, em sites de redes sociais como Facebook e Twitter, começaram a serem divulgados e compartilhados vídeos e relatos apresentando outros aspectos dos protestos, especialmente os relacionados à violência policial. A mobilização em torno de tais informações atingiu proporções tais que, assim como explica Canclini (2008), empresas de mídia tradicional foram, de certo modo, obrigadas a noticiar tais fatos, até então ignorados. Aconteceu também no Brasil. Sem que ninguém esperasse. Sem líderes. Sem partidos nem sindicatos em sua organização. Sem apoio da mídia. Espontaneamente. Um grito de indignação contra o aumento do preço dos transportes que se difundiu pelas redes sociais e foi se

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 71


transformando no projeto de esperança de uma vida melhor, por meio da ocupação das ruas em manifestações que reuniram multidões em mais de 350 cidades. [...] De forma confusa, raivosa e otimista, foi surgindo por sua vez essa consciência de milhares de pessoas que eram ao mesmo tempo indivíduos e um coletivo, pois estavam – e estão – sempre conectadas, conectadas em rede e enredadas na rua, mão a mão, tuítes a tuítes, post a post, imagem a imagem. Um mundo de virtualidade real e realidade multimodal, um mundo novo que já não é novo, mas que as gerações mais jovens veem como seu. (CASTELLS, 2013, p. 182-184)

A partir das potencialidades oferecidas pela internet, percebe-se que a necessidade de comunicação entre pessoas aumenta a cada dia. Como destaca Lévy (2003), as referências e informações acumuladas pelos indivíduos são formadas atualmente a partir dos conteúdos com o qual têm contato em websites e sites de redes sociais. Como afirma Castells (2013), as redes sociais na internet se constituem como importantes ferramentas de mobilização social. O diferencial de tais meios reside no fato de possibilitarem o relacionamento entre os usuários sem que haja necessidade de líderes ou mediadores, bem como a expansão de fronteiras dos movimentos. Nesse sentido, trabalhos como o do coletivo Mídia Ninja passam a ter cada vez mais espaço e representatividade no contexto social atual. O jornalismo colaborativo da Mídia Ninja O coletivo Mídia Ninja tem se destacado desde 2013 no cenário jornalístico brasileiro. A proposta do grupo já está descrita em seu nome: Ninja – Narrativas independentes, jornalismo e ação. Com o objetivo de promover uma cobertura plural dos acontecimentos sociais que despontam pelo país, o coletivo tem sua atuação concentrada prioritariamente nas redes sociais virtuais, como Facebook e Twitter e, mais recentemente, também no Instagram. O site (https://ninja.oximity.com/) é hospedado na plataforma Oximity, que conecta diversos coletivos em todo o mundo: A nossa rede de produção de conteúdo buscava uma estrutura alternativa para se estabelecer e deixar de ter o Facebook enquanto plataforma prioritária. O Oximity é uma plataforma global que conecta diversos coletivos e oferece de forma gratuita uma base muito sólida de hospedagem e gestão de fluxos, uma verdadeira alternativa pós-facebook. A parceria vai além do portal, já que ambos Mídia NINJA e Oximity buscam conectar e integrar diversos coletivos na construção de uma rede mundial de comunicação independente. (MIDIA NINJA, 2016, s. p.)

Na home principal, o site apresenta cinco matérias em destaque, com temáticas que variam desde cultura, política, economia, e atuações de movimentos sociais, como entidades juvenis, além de questões relacionadas aos diretos dos índios e negros. A atualização do site não é diária, talvez virtude da produção de conteúdos descentralizada, uma vez que é realizada de modo colaborativo, com a participação de coletivos de todo o país. O coletivo prioriza as imagens e títulos das matérias em detrimento de textos, durante toda a extensão da página principal do site.

72 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Fig. 1: Home do site Mídia Ninja (Fonte: ninja.oximity.com)

Não há espaço destinado à publicidade, sendo todo o espaço do site preenchido por chamadas e imagens. Ainda é possível encontrar no site um link que direciona o usuário para a rede social Twitter, constantemente alimentada com informações, sempre de modo colaborativo. Além de notícias, o coletivo produz ainda reportagens especiais, cujo foco está em temáticas políticas, sociais e culturais. Nas páginas internas do site, no canto inferior esquerdo, uma janela convida o leitor a seguir o autor da reportagem nas redes sociais; ao autor das matérias publicadas nem sempre é identificado e quando isso acontece as notícias são assinadas como de autoria do coletivo.

Fig. 2: Reportagem (Fonte: ninja.oximity.com)

A situação do cenário político brasileiro tem merecido destaque nas produções realizadas pelo coletivo, desde coberturas de atos contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a manifestações pródemocracia e produção de matérias especiais sobre tais acontecimentos, como a publicada em 11 de junho de 2016, com o título “Milhares saem às ruas de Brasília em defesa da Democracia”. Marcado pela diversidade, diversos coletivos e movimentos sociais coloriram o ato, numa demonstração de pluralidade que, por si só, é um contraponto ao governo monocromático de Michel Temer. Com performances e intervenções teatrais ao longo da marcha, militantes de variados segmento sociais deram seu recado de forma lúdica e criativa. [...] A sensação geral ao final do ato é de fortalecimento da trincheira construída para a defesa da

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 73


democracia e contra o desmonte do Estado brasileiro. Famílias inteiras puderam ser vistas nas ruas de Brasília nessa sexta-feira, em suas diversas configurações, mostrando que o Brasil do obscurantismo, do ódio e da exclusão pretendido pelos golpistas não tem mais lugar no século XXI. (MIDIA NINJA, 2016, s. p.)

Nas redes sociais virtuais, o coletivo é mais atuante que no site. Com produções próprias e compartilhamentos de conteúdos produzidos por outros coletivos ou mesmo portais de notícias nacionais e internacionais, o Mídia Ninja conseguiu reunir mais 900 mil seguidores no Facebook, 83 mil no Twitter e 49 mil no Instagram. Tanto no Facebook quanto no Twitter, o grupo realiza transmissões ao vivo de suas coberturas.

Fig. 3: Transmissão ao vivo de ato pela democracia (Fonte: facebook.com/midiaNINJA/)

Considerações finais Tendo em vista a importância da internet para a democratização da comunicação e o surgimento de espaços plurais para o diálogo entre os diversos grupos sociais, experiências como do coletivo Mídia Ninja representam a materialização de novas formas de fazer jornalismo. Como evidenciado por León (2003, p. 402), “a democratização da comunicação é antes de tudo uma questão de cidadania e justiça social, que se demarca no direito humano à informação e à comunicação”. Neste contexto de ampliação das redes de comunicação online, sites e páginas em redes sociais virtuais surgem como uma alternativa ao modelo comunicacional desenvolvido pelas mídias tradicionais, que prioriza discursos hegemônicos, preterindo as vozes e lutas de grupos com menos representatividade social, como negros, mulheres, LGBT’s, trabalhadores, por exemplo. A partir da discussão realizada até aqui, entende-se a Mídia Ninja como importante laboratório de comunicação alternativa e colaborativa online, cujo alcance deverá ser expandido, especialmente a partir de sua atuação nas redes sociais virtuais, grande canal de comunicação contemporâneo. Referências ARBEX JR, J. Uma outra comunicação é possível (e necessária). In: MORAES, D. de. (Org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003. CANCLINI. N. G. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras, 2008.

74 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. FACEBOOK. Mídia Ninja. Disponível em <https://www.facebook.com/midiaNINJA/> Acesso em: 11 jul. 2016. LEÓN, O. Para uma agenda social em comunicação. In: MORAES, D. de. (Org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003. LÉVY, P. Pela ciberdemocracia. In: MORAES, D. de. (Org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003. MIDIA NINJA. Quem somos. Disponível em < https://ninja.oximity.com/partner/ninja/about> Acesso em: 28 jun. 2016. ______. História. Disponível em < https://ninja.oximity.com/partner/ninja/history> Acesso em: 28 jun. 2016. ______. Perguntas frequentes. Disponível em < https://ninja.oximity.com/partner/ninja/faq> Acesso em: 28 jun. 2016. ______. Milhares saem às ruas de Brasília em defesa da Democracia. Disponível https://ninja.oximity.com/article/Milhares-saem-%C3%A0s-ruas-de-Bras-1>. Acesso em 5 jul. 2016.

em

<

MORIN, E. Uma mundialização plural. In: MORAES, D. de. (Org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003. PERUZZO, C. M. K. Revisitando os Conceitos de Comunicação Popular, Alternativa e Comunitária. XXIX Congresso Brasileiro de Comunicação. Brasília: Intercom, 2006. Disponível em < http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/116338396152295824641433175392174965949.pdf> Acesso em 5 jul. 2016. TWITTER. Mídia Ninja. Disponível em < https://twitter.com/MidiaNINJA> Acesso em: 11 jul. 2016.

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 75


MÍDIA, DISCURSO E DEMOCRACIA: “ASSIM CAMINHA O PIAUÍ”...1 Osalda Maria Pessoa2 RESUMO Vivemos em uma sociedade mediada pelos meios de comunicação. Essa mediação tanto interfere na agenda política, quanto no próprio fazer político, isto é, a mídia tem capacidade de produzir um discurso hegemônico a ponto de influenciar a política. Uma questão faz parte da centralidade da mídia em sua relação com o discurso, democracia e a cidadania: qual o papel da atual mídia na construção da democracia e da cidadania brasileira/teresinense? A interferência da mídia na política tem suscitado importantes questionamentos no nosso país. A liberdade de imprensa é uma conquista legítima e imprescindível a todo regime democrático de direito, entretanto, há que observar a necessidade de se impor limites, isto porque se o poder desta liberdade se excede, pode-se cercear a democracia e o respeito às decisões do eleitorado. No aprofundamento desta temática definiu-se como objetivo geral indagar sobre o papel influenciador da mídia e do seu discurso e os reflexos dessa influência sobre a liberdade democrática dos teresinenses no ato de escolher seu representante a Governador, em 1998. Estes estudos foram realizados com base em teorias, artigos e livros que fundamentaram as discussões acerca da democracia e da cidadania, aplicando-se, também, o método discursivo-recepcional, em que o eleitorado é o responsável pela atualização do discurso da mídia/propaganda em análise, além do indutivo com inquirições sobre o papel influenciador da mídia. Na discussão do papel da mídia e do seu discurso na construção da democracia brasileira/teresinense, bem como na análise da propaganda: “Assim caminha o Piauí..., veiculada em outdoor, foram abordados autores como Ataíde (2000), Santos (2002), Guareshi (2007), Ducrot (1984), Barthes (2001), Possenti (2002) Flores & Teixeira(2005), dentre outros. Como resultados, observam-se a influência da mídia/propaganda sobre a política praticada em Teresina na reeleição para Governador, em 1998; o impacto atribuído à mídia/propaganda sobre o eleitorado no cenário político local; os efeitos da propaganda analisada na formação da consciência político-cidadã dos eleitores. A consolidação da democracia passa pela efetivação da cidadania e do processo de obtenção do consenso sob o manto da responsabilidade que devem ter os cidadãos teresinenses na escolha de seu representante com o objetivo de fazer governar bem com o povo e para o povo. Palavras-chave: Mídia; Discurso; Democracia; Cidadania em Teresina

Introdução Os exemplos do passado (Golpe de 64, Diretas Já em 1985, Impeachments de Collor 1992 e Dilma 2016) não nos deixam esquecer a centralidade da mídia na política e sua parcela na construção da democracia e cidadania. O que foi visto nos últimos anos e o que ainda veremos nos próximos, devem ser lidos à luz de uma questão: qual o papel atual da mídia para a democracia brasileira/teresinense? Ou melhor, qual o papel que a propaganda em outdoor, ora em análise, ocupa/ou no espaço local ou no município de Teresina na campanha eleitoral para Governador, em 1998? Entra em jogo nesta questão nossa frágil democracia, que está carente de participação direta, de controle popular sobre os mandatos, de transparência e de espaços de participação, além do mais devemos conhecer as diversas opiniões que devem ser problematizadas de fato. Quando defendemos e lutamos pela democratização dos meios de comunicação, temos em vista exatamente a necessidade de que múltiplas vozes circulem nos espaços de socialização e construção dos sentidos e da cidadania. Temos a necessidade de indagar sobre esses meios, sobretudo, para que não sejam utilizados para atentar contra direitos, dissimular verdades, como vemos cotidianamente – um sistema de comunicação marcado pelo oligopólio midiático e pelo atrelamento aos históricos donos do poder.

Um dos papéis que a mídia cumpre na sociedade é exatamente de buscar apresentar respostas aos problemas sociais, porém o que acaba por fazer, devido aos seus próprios interesses e os da classe política, é 1

Trabalho apresentado no GT02: Mídia, Democracia e Cidadania do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017 na UFPI. 2 Doutora em Ciências da Educação pela Universidad Internacional Tres Fronteras. Asunción – Paraguay. Endereço eletrônico: osaldampessoa@outlook.com 76 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


influenciar as respostas que a sociedade deveria dar a esses problemas, construindo um discurso hegemônico, sendo que se coloca nestes estudos, que não é possível silenciar diante das defesas do fim da diversidade de pensamento, tomando-se como objetivos descobrir o papel e a importância da mídia na construção da democracia e da cidadania; refletir sobre os efeitos da mídia/propaganda nas micropolíticas fundadas no espaço local e analisar o discurso da propaganda “Assim caminha o Piauí”..., para se perceber seus efeitos na formação da consciência político-cidadã dos teresinenses. Como contribuições apontam-se a influência da mídia/propaganda sobre a forma como é praticada a política em Teresina na reeleição para Governador, em 1998; o impacto atribuído à mídia/propaganda sobre o eleitorado no cenário político local e os efeitos da propaganda analisada, na formação da consciência político- cidadã dos eleitores. Faz-se necessário interromper a lógica da manipulação cultural imposta, muitas vezes, pela mídia. É verdade que a liberdade de fazer política permite ao cidadão atuar e decidir sobre as questões públicas, criar espaços de discussões e cobrar a concretização de ações práticas por parte dos eleitos. Entretanto, tal liberdade vem sendo marcada por uma postura voraz dos meios de comunicação que limitam o exercício pleno desse direito fundamental – o ato de dizer e dizer com transparência – à medida que manipulam dados e fatos reais que prejudicam o poder de escolha dos eleitores.

O papel e a importância da mídia na construção da democracia e da cidadania brasileira/teresinense É fácil constatar a enorme influência da mídia na política. O livro de Thompson (2002) que trata sobre escândalo político, mostra que a política é, hoje, ininteligível sem que levemos em conta a variável mídia. A política e os políticos trabalham com um material especial, que é a credibilidade. A matéria prima da política é a credibilidade, um capital simbólico. Ora, a mídia é o meio de produção desse capital, tanto para construí-lo, como para destruí-lo, como é o caso dos escândalos de corrupção da Odebretch e dos seus envolvidos, divulgados na lista de Edson Fachin (Ministro do STF, em 04.04 2017) e dos demais. O que se propõe neste estudo é indagar sobre a importância e o papel que a mídia/propaganda exerce em nossa sociedade e no cenário político local teresinense. Se a mídia é tão importante devemos nos perguntar se ela está de fato a serviço da informação/desinformação, ou o que podemos fazer, se quisermos pensar em uma mídia democrática e cidadã? Depois da II Grande Guerra Mundial não fora mais possível fundamentar a sociedade em crenças ou nas relações de trabalho: ela se fundamenta agora na comunicação e na produção do conhecimento através da informação. A comunicação, os discursos constroem hoje, nunca visto dantes, o novo ambiente social. Para aprofundar sobre esse novo ambiente social e cultural, quatro assertivas podem esclarecer a importância do fenômeno dos meios de comunicação atualmente, segundo Guareschi (2007):

✓ a comunicação hoje constrói a realidade: hoje algo passa a existir ou deixa de existir, se midiado ou não; a mídia tem o poder de instituir o que é ou não real, existente; ✓ a mídia enfoca as representações sociais: não só diz o que existe, o que não existe, mas dá uma conotação valorativa à realidade existente, sendo em princípio, que o que é veiculado pela mídia, exerce seu poder influenciador; ✓ a mídia coloca hoje a agenda de discussão: que bom que podemos criticar os assuntos em pauta e não aceitá-los, mas o perigo reside em que a mídia tem o poder de selecionar e criar a pauta e nisso ela exclui os temas que podem causar contestações e mudanças; ✓ interação midiada: estabelece com os interlocutores uma comunicação vertical, tal fato tem a ver com a construção de nossa subjetividade.

Pelas assertivas, estamos contentes com o papel da mídia? Ela constrói de fato a democracia e propicia a cidadania? A mídia impressa no Brasil, mesmo passando por uma série de regulamentações, está longe de ser democrática. O termômetro que mede a democracia numa sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação. Mas o que se entende por democracia? A democracia implica soberania popular e a distribuição equitativa dos poderes, mas que tipo de poder é a mídia? Para que haja democracia numa sociedade, é necessário que haja democracia também no exercício do poder de comunicar. A democracia representa um valor ético e um conjunto de princípios que precisam ser perseguidos todo o tempo e se concretizará através de cinco pilares fundamentais: igualdade (dignidade das pessoas); diversidade (respeito às diferenças que singularizam as pessoas); participação (ter vez e voz, liberdade de se expressar); solidariedade (emoção mais forte que a humanidade pode viver e experimentar) e liberdade (respeito aos direitos, participação conjunta). Para Santos (2002):

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 77


[...[ o modelo hegemônico de democracia (democracia liberal, representativa), apesar de globalmente triunfante, garante que uma democracia de baixa intensidade baseada na privatização do bem público por elites mais ou menos restritas, propicie a distância entre representantes e representados, em um tipo de inclusão política abstrata feita de exclusão social (p.32)

Desses cinco pilares mencionados, que consolidam a democracia, o mais esquecido e excluído pela mídia é o da participação nas ações, na elaboração de políticas públicas. Na verdade esse deveria ser o papel fundamental da mídia: instituir grandes debates nacionais, em que todos os segmentos da sociedade civil organizada, fossem convocados a apresentar seu projeto e discutir a maneira de construir o país/cidade democraticamente. Nesse nível, a sociedade civil seria chamada a dizer a palavra, expressar suas opiniões e apropriar-se de seu discurso na construção de sua subjetividade e das intersubjetividades, rumo à conquista da cidadania. O atual conceito de cidadania “compreende não apenas o exercício do direito ao voto, como também, de fato, a participação efetiva na esfera pública por meio da manifestação popular acerca de suas necessidades e anseios” (MARSHAL, 1999, p. 46). A mídia deve ser a porta-voz de todos os grupos organizados da sociedade. Essa é sua função principal e constitucional. Ficamos surpresos ao descobrirmos o papel da mídia entre nós. A voz da maioria dos cidadãos é silenciada, uma vez que o eleitorado não tem a oportunidade de interferir no projeto de construção de seu país/cidade. Por que a mídia não discute sobre a mídia? Por que a legislação sobre a mídia não é veiculada? A mídia influencia poderosamente nas escolas, nas famílias e em todas as instâncias da sociedade, se ela não for crítica dela mesma, não atingiremos a uma verdadeira democracia na comunicação. A força da mídia não está apenas em construir a realidade, mas também em ocultá-la. É sintomático o alerta do sociólogo Boaventura de S. Santos (2002): Quem tem poder para difundir notícias, tem poder para manter segredos e silêncios. Tem poder para decidir se o seu interesse é mais bem servido por notícias ou por silêncio. Podemos concluir, pois, que uma parte do que de importante ocorre no mundo, ocorre em segredo e em silêncio, fora do alcance dos cidadãos. (SANTOS, 2002, p. 2)

Numa sociedade, nenhuma instância subsiste isolada da mídia, principalmente da política e dos direitos humanos. No momento em que a mídia for democratizada, os privilégios injustos de alguns irão desaparecer, porque os conhecimentos, as informações, a mobilização popular, as iniciativas de mudanças ocorrerão muito mais fáceis e rápidas. É impossível pensar uma sociedade democrática onde a mídia (informação e comunicação) é apropriada por poucos, que determinam e decidem quem pode ter acesso e que serviços serão disponibilizados. Mas a mídia não é onipotente. Também sabemos que a educação e a sociedade civil poderão iniciar esse processo de superação da dominação a que a mídia nos condena. Mas é necessário que seja uma educação libertadora, que faça perguntas, que questione a origem, os papéis e as práticas de nossas mídias e esclareça sua influência para a sociedade. Uma questão que se recoloca é da mídia como quarto poder. Afirmamos de peito estufado, que somos e vivemos uma democracia. Santos (2002) reforça a tese de que em paralelo ao modelo hegemônico de democracia Sempre existiram outros modelos, como a democracia participativa ou a democracia popular, apesar de marginalizados e desacreditados. Em tempos recentes, [...] a democracia participativa tem assumido nova dinâmica, protagonizada por comunidades e grupos sociais subalternos em luta contra a exclusão social e a trivialização da cidadania, mobilizados pela aspiração de contratos sociais mais inclusivos e de uma democracia de mais alta intensidade. (SANTOS, 2002, p. 32)

A mídia presta realmente um serviço público, com a tarefa de ser porta-voz dos seus membros na construção do país/cidade que se quer, propicia a prática de uma democracia de alta intensidade? É crucial discernirmos aqui dois tipos de poderes da mídia: um ilegítimo e outro democrático e legítimo. O ilegítimo pode também ser um poder usurpado; a mídia lhe atribui um poder que não é conferido pelo povo, todavia, baseado apenas em sua força econômica, política e ideológica. No Brasil, nove grandes grupos de famílias detêm a mídia eletrônica. A população brasileira é refém dessas nove famílias e não há equipes de sociólogos capazes de competir com essas equipes de publicidade. A mídia decide o que deve ser dito e o que não deve ser dito, o que os brasileiros não podem e não devem saber; percebe- se que seu poder é dominador, antidemocrático, não tem a chancela dos cidadãos. É inegável que por muito tempo a mídia agiu como crítica aos poderes constituídos e lutou pela liberdade de imprensa e contra a censura, mas com o passar do tempo o debate se desloca frontalmente entre o mercado x sociedade, entre o público x privado, o individual x o coletivo,

78 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


entre o egoísmo x solidariedade, desse modo está aí hoje, exercendo seu poderio praticamente sem controle algum, perdendo a força de atuar como um contrapoder. Contra isso, faz-se urgente um novo poder democrático e popular, vindo das organizações de base, uma imprensa popular com o objetivo de fiscalizar, monitorar, denunciar e confrontar esse quarto poder. Surge uma espécie de movimento da sociedade civil organizada, o que se pode chamar de quinto poder, que poderá ser constituído como legítimo, a partir de denúncias em centrais telefônicas, sobre matérias que violam os direitos humanos, que incitam a violência e dissimulam as verdades, bem como em sites que divulguem os mecanismos de participação democrática e, ainda, junto às Comissões dos Direitos Humanos de cada Estado e cidade. A mídia é o espelho que reflete o real, “o imaginário e o simbólico social, estes padrões de comportamento logo passam a ser considerados pelo povo como uma via alternativa para a conquista de vez e voz no discurso social” (ATAÍDE, 2000, p. 12), apesar de a vez e a voz do povo ser defendidas no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, no inciso IV “é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato” e, precisamente no inciso V”é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. De fato e de direito, isso acontece? Uma sociedade politizada e democrática deve saber criticar, dialogar com as informações ao invés de aceitá-las, como uma catequese. Além disso, o próprio Estado deve intervir nos casos em que a mídia, utilizando-se do seu direito constitucional de liberdade de expressão, extrapola suas finalidades e cerceia a liberdade democrática do cidadão, do eleitorado.

A mídia/propaganda nas micropolíticas fundadas no espaço local O poder local – local authority em inglês e communautés locales em francês emerge como uma das questões fundamentais junto à organização societária atual. Questionando-se qual seria o espaço ideal, ou com mais potencialidade, de atuação social para a resolução de conflitos e consecução de interesses, responder-se-ia, é o espaço local, uma vez que esta esfera permite um processo mais amplo de comunicação e controle, dado por meio de estratégias participativas arquitetadas mediante modelos representativos próprios. Dessa forma, aliadas às ações midiáticas, as políticas públicas trabalhadas no espaço local têm chances muito mais significativas de darem certo. Primeiramente, por que há muito mais identificação comunitária com os interesses em jogo e, em segundo, por que há, mais facilmente, como se chegar a uma decisão homogênea, sabendo quais as necessidades hierarquizadas em grau de urgência e quais as secundárias, levando-se em conta o coletivo. Como célula política da organização nacional, é no Município que se apresentam as condições propícias à participação popular, não só pela existência de uma relativa homogeneidade na composição de cada comunidade local como pela maior possibilidade de identificação dos interesses comuns e dos meios a serem utilizados para a sua realização. (MOURÃO, 2001, p. 315)

O exercício da democracia e da cidadania supõe, pois, a participação das pessoas na construção da cidade/município que se quer. A antiga Grécia surgiu, na tentativa de enfatizar o direito de participação na comunicação, isto é, o direito de manifestar-se e de ser ouvido, o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a cidade/município deve ou não realizar. A mídia impressa, na contemporaneidade, deve ser a nova ágora, análoga à praça onde os antigos gregos discutiam seus problemas sobre o projeto de cidade que queriam. A Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas afirma: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui o de não ser molestado por causa de suas opiniões, o de investigar e receber informações e opiniões e o de difundi-las, sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão”. (ONU, 1948, art. 19)

O perigo que se corre é que o modelo de democracia que está sendo construído, dentro da atual lógica dos interesses partidários, se distancia do conteúdo social, visto que os representantes do povo desvinculam-se dos interesses de seus eleitores, buscando, claramente, o centralismo nas propostas de suas siglas partidárias, sem o compromisso com o “agir em nome de”, facilitando com isso a criação de partidos sem ideologia definida – “partidos de aluguel”, que sobrevivem de votos de suas legendas. As mídias são formadoras de opiniões públicas e têm por dever a imparcialidade, não apresentando preferências políticas. Mas em contrapartida ocorre o marketing político, as pesquisas de opinião e a mídia de um modo geral têm determinado os rumos da política nas cidades, enquanto a ideologia dos partidos políticos parece cada vez mais se retrair. A ideologia, enquanto conjunto de ideias e pensamentos doutrinários de um grupo, orientada para a realização de ações sociais e políticas, é uma prática cada vez menos

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 79


frequente dentro dos partidos políticos e de suas bases de atuação. Como exigir da sociedade alguma ideologia se aqueles que se postulam a dirigir os rumos do seu futuro não se pautam em nenhuma? Uma coisa é certa, é através da política que se decide o destino do país/cidades e de nós mesmos. O momento do voto representa a prática pura da cidadania e, além disso, é o momento que a população influi diretamente, mesmo que sem perceber, na renovação democrática do país. Sobre o discurso político da mídia/propaganda, durante a campanha política para Governador, foi exposto em vários outdoors na cidade de Teresina, capital do Piauí, em 1998, no mês de outubro e no segundo turno, ocasião em que se fez uma referência à adesão do Prefeito de Teresina daquela época à campanha de reeleição do representante do Estado do Piauí, cujo candidato era Francisco de Assis Moraes Sousa – o Mão Santa. O outdoor também foi publicado no jornal Meio Norte. O texto em análise é o original: “Assim caminha o Piauí... quem atrasa, agora adianta, Senhor Prefeito?” Sob quais circunstâncias foi produzido o texto e o discurso do outdoor? Os outdoors foram encomendados a uma agência de publicidade pelo Sindicato dos Fazendários do Estado do Piauí, que fez à época oposição ao Governo do Estado, durante seu primeiro governo, por ter deduzido de seus vencimentos os valores referentes à produtividade e ajuda de custo. Com a probabilidade da reeleição do Governador em 1998, que receberia mais votos nas urnas com a adesão do Prefeito, no segundo turno, os fazendários através de seu Sindicato tentaram convencer a população de Teresina de que o Prefeito não mereceria credibilidade de seus eleitores em seu voto para Governador. A credibilidade é a matéria prima da política. Na relação entre o representante e seus representados mostra-se que não houve negociação, pois a demanda exigida pelos fazendários não fora atendida, ou seja, o Governo não abriu mão da redução de gastos, considerando a pauta desnecessária ou secundária. Com um eleitorado que se pauta cada vez mais nos conteúdos veiculados pela mídia (neste caso a mídia impressa) para orientar seu voto, os 20 (vinte) outdoors espalhados em diversos pontos da cidade de Teresina acabaram concentrando grande poder, a ponto de influenciar os votantes para o lado oposto, que não o da coligação do Governador Mão Santa. No momento em que a política incorpora a mídia para sua difusão, essa mídia pode centralizar a discussão e influenciar o cenário político, diminuindo a força da democracia, sendo a atividade política vista como prática mercadológica sob a ótica dos marqueteiros.

O discurso da propaganda e seus efeitos na formação da consciência político- cidadã A propaganda surge como força de persuasão que induz o eleitorado a agir de acordo com a ideologia dos partidos políticos ou conforme seus interesses ou de grupos que compõem a base aliada e, ainda, cumpre o objetivo de persuadir àqueles que fazem oposição, no caso o Sindicato dos Fazendários que acabam por orientar seu público-leitor, através do posicionamento dessa categoria trabalhadora. Em se tratando dos tipos de discursos, a propaganda veiculada tende para o equilíbrio tenso entre os dois polos – o polêmico. O discurso da propaganda em análise é polêmico: é por excelência uma formação discursiva persuasiva, sendo a sociedade fortemente influenciada por esse tipo de discurso. Essa tipologia se define pela concepção discursivo-interacional da linguagem, relacionando-se com o funcionamento e com as formações discursivas : aquilo que se deve e se pode dizer em determinadas condições de produção. Os tipos de discursos que se incorporam a diferentes noções de contextos, segundo Orlandi, (1996) estão abaixo relacionados: Autoritário: é o que tende para a paráfrase (o mesmo); e nele, procura-se conter a reversibilidade, a polissemia é contida; o objeto do discurso fica dominado pelo próprio dizer; o Polêmico: apresenta um equilíbrio tenso entre polissemia e paráfrase, a reversibilidade é disputada pelos interlocutores; o objeto do discurso não está obscurecido pelo dizer, mas disputado entre os interlocutores. (ORLANDI, 1996, p. 154)

A agência de publicidade e o Sindicato dos Fazendários consideram como leitor-modelo, o leitor teresinense, inserido em um ambiente social e cultural,capaz de polemizar sobre fatos de seu entorno, levando-se em conta que esse eleitor/ leitor possui certa consciência política dos fatos enunciados, pois faz uso do enunciado “Assim caminha o Piauí”... que se repete no título de um filme de grande sucesso no passado: “Assim caminha a humanidade”. Utiliza como linguagem visual a escala da evolução humana invertida - do homem ao macaco – para dar significação de retrocesso histórico, não obscurecendo o discurso pelo dizer, mas dando vozes, ou seja, o Prefeito estaria reforçando uma volta ao tempo, ao atraso do Estado do Piauí, apoiando para a reeleição, em 1998, o Mão Santa. Deve se considerar durante as condições de produção do discurso da propaganda que o eleitorado tem acompanhado atentamente a vida política do Estado. Em 1996, o então Prefeito, também candidato, criticava o candidato 80 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


à Prefeitura de Teresina, apoiado por Mão Santa com o seguinte slogan: “Quem atrasa não adianta” referindo-se aos salários atrasados dos servidores públicos estaduais. Tirando proveito do descrédito do então Governador, tentava convencer os eleitores de que o candidato do Mão Santa não merecia confiança. Desta forma, fica claro que há necessidade da interação entre locutor e receptor para se estabelecer o processo de significação, isto é, o leitor deverá perceber além do contexto linguístico, a situação de produção do discurso e ter uma leitura anterior que o permita se inscrever para tal e instaurar/restaurar os múltiplos sentidos. O que um autor gera, gera a partir de uma conjuntura dada e o sentido não poderá ser atribuído isolado do seu contexto de produção. Para Possenti (2002) é importante “analisar as condições de produção e os efeitos decorrentes do aparecimento dos enunciados”.

Análise da propaganda: “Assim caminha o Piauí... Quem atrasa, agora adianta, Senhor Prefeito?” Um dos aspectos que mais distingue os textos de propaganda é a sua simplicidade estrutural, ficando muitos elementos subentendidos ou recuperáveis apenas pelo contexto. A hermenêutica também está presente na propaganda em análise, devido ao uso da pergunta, criando cisma/tensão, pois o emissor interpela o receptor, sugerindo as possíveis respostas ou interpretação das mensagens. O texto do outdoor (“Assim caminha o Piauí... que atrasa, agora adianta, Senhor Prefeito?”) não apresenta inovações: não há rimas, aliterações, trocadilhos, prefixação, sufixação, utilizando-se um jogo de ideias através da antítese (“quem atrasa, agora adianta”). Por outro lado o advérbio agora ganha força por que remete à mudança de posicionamento político do Prefeito, em 1998, passando a ideia de desconfiança em sua palavra, uma vez que ontem (1996) dizia uma coisa e “agora” diz outra. O título “Assim caminha o Piauí”... possui informações de outros discursos, faz uma intertextualidade com o título do filme “Assim caminha a

humanidade”... “Assim caminha o Piauí... os fazendários questionam o futuro do Estado, se o eleitorado continuar reelegendo o mesmo governante, associando o modo como caminha o Piauí com o título do filme “Assim caminha a humanidade”... dá-se uma ideia de retrocesso, ocorrendo a metáfora entre os dois filmes com o mesmo discurso, uma relação intertextual, como também a figura de personificação através do verbo caminha. Flores & Teixeira (2005) identificam uma informação intertextual que se relaciona, especificamente com uma expressão linguística e, por extensão, a um texto prévio (anterior), que contribui para contextualizar expressões de uma história de uso da linguagem, referindo-se indiretamente a vozes interiores que contribuem com o mesmo discurso ou discurso semelhante. (FLORES & TEIXEIRA, 2005, p.108)

O discurso da propaganda, em análise, estabelece relações com os discursos de outrem, formando um conjunto de enunciados que se relacionam entre si, caracterizando a existência da polissemia/polifonia, fazendo uso de imagens e textos com duplicidade de sentidos, como o uso do jogo das palavras atrasa e adianta. A presença da intertextualidade é marcante, a partir de citações de outros discursos e de referências a outros contextos. A escala de evolução humana invertida faz alusão ao processo de evolução proposto por Darwin, a lei do mais forte, alterando o discurso anterior para confirmar o sentido pretendido no discurso atual – há retrocesso se a reeleição do Mão Santa acontecer ... ocorre uma intertextualidade quanto ao conteúdo. Barthes (2001) esclarece que “todos os textos são, em sua essência, intertextos. Desta forma, em diversos níveis, outros textos se encontram inseridos em cada um, sob forma mais ou menos reconhecível: os textos que pertencem à cultura do texto prévio e aqueles textos da cultura do entorno”. (BARTHES, 2001, p. 27)

A intertextualidade se estabelece, de um lado, entre os processos de produção e de recepção de um determinado texto e, de outro, entre o conhecimento prévio que tenham os participantes (o eleitorado teresinense) de uma interação sobre outros textos anteriores. Apesar de ser um discurso de formação política, faz uso de outra

formação discursiva, como a científica – quando utiliza a ilustração da escala de evolução do homem, reportando-se à Lei de Darwin em sua obra a Origem das Espécies. Quanto ao humor, utilizando-se de metáfora, satiriza o futuro do estado, comparando-o à escala evolutiva invertida. “Quem atrasa, agora adianta”, faz referência ao slogan da campanha a Prefeito de Teresina, em 1996, “Quem atrasa não adianta”, mantendo uma relação conflitante com o objetivo de passar a mensagem de que a palavra do Prefeito agora não merece mais confiança e por isso não deve ser seguida. Para Barthes (2001) Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 81


“As relações intertextuais verticais, entre um texto e outro, que constituem seus contextos mais ou menos imediatos ou distantes levam a considerar que os textos, historicamente, se encontram ligados em diversos níveis cronológicos, incluindo os textos mais atuais. (BARTHES, 2001, p. 30)

A expressão “Quem atrasa não adianta” (anterior) se conecta com a mais atual: “Quem atrasa, agora adianta, Senhor Prefeito?”, contribuindo para que as noções semióticas básicas evoluam. Para Ducrot (1984, p. 354) em uma perspectiva semiótica e social, “a intertextualidade é um potencial para a construção de significados que, por sua vez, têm funções interpessoais, ideológicas e textuais”. Em nível local, no contexto estrito ou mais próximo, que neste estudo é o eleitorado teresinense, os textos, gêneros e discursos transformam-se em objetos socioculturais. Como as relações intertextuais se conectam a discursos em uma extensa linha cronológica, essas relações adquirem características socioculturais e contextuais. Bakhtin (2004, p. 78) assegura que, no diálogo, “constroem-se as relações intersubjetivas, mas também a subjetividade”. Os sujeitos são, na verdade constituídos por diferentes vozes (a voz do Sindicato, dos eleitores teresinenses, dos candidatos) que fazem deles sujeitos históricos e ideológicos. Desta forma podemos classificar o discurso analisado como polêmico e com um forte poder de persuasão, uma vez que os conteúdos enunciados são dirigidos para o debate, ou seja, a voz que fala, voz da instituição (Sindicato) tenta derrocar a reeleição do Governador da época, tanto na citação “Assim caminha o Piauí” complementada pela ilustração da escala de evolução humana invertida, quanto na indagação: “Quem atrasa, agora adianta, Senhor Prefeito”?, apresentando argumentos que podem ser contestados, sendo que os enunciadores (fazendários) tiram partido da possibilidade dessa contestação ao deixar implícito que o Estado pode caminhar de outra forma se o eleitor/leitor concordar com sua/esta proposta de mudança de governante.

Conclusões Como resultados, indagou-se sobre a importância e o papel da mídia como influenciadora na forma de fazer política e na construção da democracia e da cidadania; observaram-se as mudanças provocadas pela mídia/propaganda sobre a forma como é vista e praticada a política em Teresina na reeleição para Governador, em 1998; percebeu-se o impacto atribuído à mídia/propaganda sobre os eleitores no cenário político local e os efeitos da propaganda analisada, na formação da consciência político- cidadã. A consolidação da democracia passa pela efetivação da cidadania e do processo de obtenção do consenso junto à esfera pública sob o manto da responsabilidade que devem ter os cidadãos teresinenses na escolha de seu representante a Governador. A mídia deveria contribuir mais na formação e construção da democracia e cidadania de um país/cidade, uma vez que promoveria o exercício da liberdade democrática, difundindo conhecimentos e informações, proporcionando o combate ao esquecimento social, fortalecendo a tão necessária e fundamental participação popular como forma de garantia de direitos, fazendo com que se deixe de praticar a democracia meramente representativa e se adote um modelo que privilegie a aproximação do cidadão com a realidade local. Visto sob esta ótica, as ações da mídia aliadas às políticas públicas trabalhadas de forma restrita ao espaço local têm chances muito mais significativas de darem certo. Primeiramente, por que há muito mais identificação comunitária com os interesses em jogo e, em segundo momento, por que há facilmente, como se chegar a uma decisão homogênea, sabendo que as necessidades hierarquizadas em grau de urgência e importância, não levarão em conta o individual, mas o coletivo. Referências ATAÍDE, Y. D. B. A educação e a cultura de paz. Revista FAEEBA. Salvador: UNEB. Ano 9, no. 14 (jul/dez), 2000. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, 2004. BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BRASIL. Câmara dos Deputados. Constituição Federal. Brasília, DF, 1988.

82 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


DUCROT, Osvald. Enunciação. In: Enciclopédia Einaudi: linguagem e enunciação. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984. FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. Introdução à Linguística da enunciação. São Paulo: contexto, 2005. GUARESHI, Pedrinho, A. Mídia e Democracia: O quarto poder versus o quinto poder. Revista Debates, Porto Alegre, v.1, n. 1, p 6 – 25, jul/dez, 2007.MARSHAL, T. H. Cidadania, classe social e status. Zahar: Rio de Janeiro, 1967. Apud, Luciano Fedozzi. Orçamento Participativo. Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Ambiental (FASE/IPPUR) 2ª edição, 1999. MOURÃO, Laís de Almeida. Gestão municipal democrática. São Paulo: Fundação Prefeito Faria Lima – CEPAM. Unidade de Pareceres e Informações Jurídicas – UPPIJ, 2001. ONU. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. ORLANDI, Eni Pulccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. São Paulo: Pontes, 1996. POSSENTI, Sírio. Discurso, Estilo e Subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 83


RELIGIÃO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: A MOBILIZAÇÃO DOS EVANGÉLICOS NA POLÍTICA BRASILEIRA1 Diarlison Lucas Silva da Costa2

RESUMO O presente artigo tem por objetivo analisar a relação entre o crescimento da participação evangélica no Congresso Nacional, que tem ocorrido de maneira mais intensa nas últimas quatro décadas, e o fenômeno político que a literatura tem chamado de “o voto evangélico”. O crescimento deste seguimento social tem apresentado novas formas de participação política dos fiéis a partir do interior das igrejas, nas arenas midiáticas como televisão e internet. Em primeiro lugar são destacadas as perspectivas sobre as formas de participação dentro das igrejas, as novas formatações de relações entre lideranças e fiéis no processo político, e como essa relação expressa resultados, para os evangélicos, na arena política. Posteriormente, são discutidas perspectivas sobre os fatores que levam os atores evangélicos a atuarem cada vez mais e de maneira a expressarem-se mais enquanto evangélicos na arena política, como a possibilidade de uma identidade entre estes atores, o voto evangélico, e questões socioeconômicas. Por fim os evangélicos são observados neste trabalho como grupo que tem apresentado comportamento eleitoral específico e que deve ser analisado como um fenômeno novo e que tem crescido de maneira considerável. Palavras-chave: Evangélicos; Participação Política; Comportamento Político

Introdução

O

presente trabalho tem por objetivo apresentar uma revisão bibliográfica sobre relação entre religião e política priorizando a as formas como a participação política dos grupos evangélicos no Brasil têm sido abordadas pelos estudiosos dos fenômenos políticos que envolvem a variável religiosa e a consideram como relevante no processo político. Analisar a participação política dos evangélicos é observar as suas formas de atuação em meio a um período no qual surgem e se fortalecem diversos movimentos sociais oriundos dos mais diversos grupos sociais. Este período de rápida mobilização de grupos sociais inicia durante o Regime Militar e continua desde então. Os grupos sociais engajados politicamente buscando cada vez mais espaços na arena política e com isso possibilitando maior consolidação do processo de redemocratização do país (ABERS, BÜLOW, 2011, BEM, 2006). Na literatura que se debruça sobre o processo de redemocratização no país é possível identificar que o conceito de democracia e democratização está intrinsecamente ligado à possibilidade de uma mais intensa ampliação da participação dos cidadãos na esfera pública enquanto atores políticos importantes, sem os quais não seria possível identificar um sistema que se propusesse democrático. De acordo com Machado e Burity, “de início, o restabelecimento da ordem democrática suscitou em diferentes setores sociais uma grande expectativa de revisão da cultura política do país, interpretada pelos especialistas como personalista, autoritária e clientelista” (2014, p. 603) Assim como os vários seguimentos sociais passaram por mudanças e conseguiram ampliar seu escopo de atuação política, os evangélicos também saíram em busca de ampliar suas ações políticas, o que também não foi diferente com diversas outras religiões. Este período citado não é o responsável pelo aparecimento dos movimentos sociais, mas foi nesse momento da história do país que eles se intensificaram e conseguiram maiores níveis de organização (BEM, 2006).

1

Trabalho apresentado no GT Mídia, Democracia e Cidadania do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Na nota de rodapé, tamanho 10, justificado, deve ter a filiação (titulação máxima, instituição de origem por extenso, cidade e estado) e o endereço eletrônico. Ex.: Graduando da Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: email@email.com 84 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Nestas últimas quatro décadas a composição religiosa da população brasileira tem sofrido alterações profundas, principalmente no ramo religioso do cristianismo, que se dividem tradicionalmente entre católicos e protestantes. É visível de acordo com dados do IBGE o declínio numérico da população católica que em 1991 contavam com 83, % da população geral do Brasil, para 73,8% em 2000, e para 64,6% em 2010; enquanto que a população evangélica cresce de 9% em 1991 para 15,6% em 2000 e 22.2% em 20103 (MACHADO, BURITY, 2014). Desta forma, é apresentada na primeira seção deste artigo as formas pelas quais os autores observam as igrejas como espaço de participação política, o que acontece de político dentro dos templos, as mudanças das práticas puramente religiosas incorporando elementos políticos. Na segunda seção são apresentadas perspectivas teóricas sobre os fatores que levam a maior ampliação da participação política dos evangélicos tanto para entrarem na arena apolítica quanto nas articulações para eleição de representantes dos mesmos seguimentos religiosos. A igreja como espaço de participação política O tema da participação política, nas ciências sociais, tem se tornado cada vez mais estritamente ligado com as noções de democracia e processo de democratização de sistemas políticos, principalmente a partir da segunda metade do século passado, quando autores como Pateman (1992) desenharam teorias sobre a participação como elemento fundamental na definição de um sistema verdadeiramente democrático. As recentes experiências de novos modelos de participação política da sociedade civil têm trazido para o debate na ciência política as formas de participação utilizadas pelos diversos grupos sociais, e as formas como os atores exercem seus direitos políticos em busca de mais cidadania (BEM, 2006, p. 1138)). Dentre estes grupos pode-se destacar os evangélicos como seguimento social que vem ganhando atenção por se tratar de um grupo que tem apresentado crescentes níveis de participação política e tem sido alvo de diversas tentativas de cooptação pelos mais variados personagens políticos. As perspectivas científicas sobre a participação têm influenciado os mais variados estudos sobre a relação entre Estado e sociedade civil - representada através dos grupos que buscam espaço na esfera pública, no debate e apresentam demandas constantes em relação aos mais variados objetivos sociais e políticos (BEM, 2006, p. 1146). São perspectivas que não enxergam o povo apenas como o corpo político que dispõe do poder de voto para a constituição dos governos, mas como cidadãos que dispõem de diversas capacidades políticas que podem ser postas em prática na esfera pública para a proposição de demandas no processo tomada de decisão (CAPELA, 2007). Não é apenas no momento das eleições que os cidadãos podem exercer direitos políticos, mas em momentos e espaços delimitados pelas eleições. A partir da perspectiva da participação como elemento central para o entendimento das novas conformações políticas que se pretendem democráticas é que, neste artigo, é proposta a tentativa de analisar como a literatura recente tem abordado o seguimento social dos evangélicos na sua atuação política e quais fatores são identificados como determinantes para a participação política deste grupo na esfera pública. As igrejas têm passado cada vez mais a chamar a atenção dos estudiosos ao se caracterizarem como espaços de atuação política, pois dentro dos templos também se faz política. Os líderes religiosos apresentam grande capacidade de arregimentação de fiéis em torno de questões políticas e buscam cada vez mais levar para dentro das igrejas os debates que são estabelecidos nos âmbitos institucionais do Estado (MACHADO e BURITY, 2014). A politização dos grupos protestantes não é um fenômeno que acontece especificamente no Brasil (FRESTON 1993; FONSECA 2002; MACHADO e BURITY, 2014), mas tem sido constante nas últimas décadas em diversos países, principalmente da América Latina. Esta politização é marcada pela crescente participação direta de religiosos e membros das comunidades evangélicas na arena política, eleitoral ou não. Exemplos de 3

De acordo com os dados do IBGE, através de previsões, é possível que a população evangélica no país esteja próxima de 26%, o que pode significar que hajam cerca de 40 milhões de evangélicos distribuídos em todo o território nacional, e que estava parcela da população precisa ser vista pela ciência política com potencial de influenciar os processos políticos. Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 85


grandes mobilizações destes seguimentos sociais foram o apoio do movimento evangélico Maioria Moral a Ronald Reagan nos Estados Unidos e posteriormente a George Bush, e atualmente a grandes personagens políticos de “direita” no Brasil. São experiências que influenciam a formação da opinião pública, principalmente no interior das igrejas, onde a pregação é mais próxima dos fiéis e alcançam grande quantidade de eleitores. As pesquisas sobre o comportamento político dos evangélicos têm enfatizado mais aspectos institucionais e do papel de lideranças religiosas na criação de um espaço político onde os fiéis são influenciados a votar em representantes identificados com seus preceitos doutrinários (CARNEIRO, 1997; BORGES, 2007, TREVISAN, 2013). Entretanto, tem surgido cada vez mais, pesquisas que observam a participação política dos evangélicos como elemento que os definem enquanto integrantes de movimentos sociais, cujas pautas respondem a interesses compartilhados dentro da comunidade presente nas igrejas (MACHADO, 2006; BURITY, 2006; CAMPOS, 2005). Desta forma, observa-se a atuação destes indivíduos sob a ótica da participação via eleições e movimento social que tem objetivos e busca ampliação de sua atuação no espaço público tanto ao unirem-se para a eleição de representantes, quanto para a atuação em espaços públicos de deliberação. De acordo com Machado Segmento com discreta atuação no cenário político até os anos 1970, os evangélicos ganharam visibilidade durante a Assembleia Constituinte de 1988, quando a maioria de seus representantes se posicionou de forma alinhada nas discussões parlamentares, atuando como uma bancada religiosa, mais precisamente evangélica. As investigações sobre a inserção eclesial e o comportamento dos atores religiosos naquele contexto destacavam o fisiologismo, o conservadorismo e o corporativismo dos evangélicos, mas também a debilidade das teses do apoliticismo dos setores pentecostais, que constituem a maioria dos fiéis desse universo religioso. (MACHADO, 2006, p. 17)

Machado e Burity (2014) defendem que a crescente participação dos evangélicos na arena política pode ser interpretada a partir de dois vetores principais. Em primeiro lugar “ como forma de sobrevivência em uma ordem social em que as relações entre o Estado e os grupos religiosos sempre foram muito assimétricas” e “onde a agenda política” de outros movimentos sociais “vem se impondo e orientando as políticas públicas” (2014, p. 602). E, em segundo lugar, “como forma de construção de uma agência coletiva com pretensões de reconhecimento e influência” (Ibid, p. 603). Um estudo realizado por Borges (2007) demonstra que os evangélicos têm histórico de participação nas disputas políticas desde a década de 1930. Contudo, não era uma participação aberta aos indivíduos que se considerassem evangélicos, mas a tentativa de eleição de personagens da elite política brasileira que se lançavam na política não com a identidade religiosa, mas com o status que já tinham, enquanto participantes de velhas elites. Até a década de 1980 a participação dos evangélicos na política acontecia de forma ainda incipiente seja pelo número pouco expressivo, seja por questões ideológicas que marcavam o seguimento religioso na época. Os fieis das diversas denominações evangélicas mantinham uma posição de afastamento da política. É partir desta década que se torna possível falar em maior atuação dos atores evangélicos na política, com o protagonismo de duas das maiores denominações pentecostais, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e Assembleia de Deus ao lançarem candidatos oficiais e buscarem apoio dos fiéis. Estratégia executada com maior profundidade na IURD do que na Assembleia de Deus. De acordo com Mariano: os pentecostais abandonaram sua tradicional auto exclusão da política partidária, justificando seu inusitado ativismo político – antes proibitivo, porque tido como mundano e diabólico – com a alegação de que urgia defender seus interesses institucionais e seus valores morais contra seus adversários católicos, homossexuais, “macumbeiros” e feministas na elaboração da carta magna. Para tanto, propuseram-se as tarefas de combater, no Congresso Nacional, a descriminalização do aborto e do consumo de drogas, a união civil de homossexuais e a imoralidade, de defender a moral cristã, a família, os bons costumes, a liberdade religiosa e de culto e de demandar concessões de emissoras de rádio e tevê e de recursos públicos para suas organizações religiosas e assistenciais. Os pentecostais, ao mesmo tempo que faziam referência ao tradicional

86 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


adversário católico, aludiam a seus adversários laicos, como justificativa para “irmão votar em irmão”, seu novo lema. (MARIANO, 2011, p.250)

De todas as igrejas evangélicas, principalmente as de origem pentecostal, a IURD é a que teve maior protagonismo nas décadas de 1980 e 1990 no que se refere ao lançamento de candidaturas e de trabalho junto as bases, os fiéis, para atingir o objetivo de eleger representantes. Desde então a Assembleia de Deus tem conseguido eleger mais representantes. Entretanto, estas igrejas seguem a executar atividades de ampliação da participação dos fiéis seja por meio do voto, seja por meio da exposição constante destes às orientações dentro das igrejas. Crescimento da participação política dos evangélicos no Brasil O último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresenta para uma população total de 190 755 799 pessoas - e com estimativa de 205 000 000 para o ano de 20154 – o notável crescimento da população evangélica brasileira, de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010. Acompanhado a este crescimento é possível notar, também, um aumento na quantidade de parlamentares evangélicos segundo levantamento realizado pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) em 2014, mostrando que foram eleitos 81 parlamentares que se autodenominam evangélicos. Este crescimento também se faz acompanhado de uma maior articulação entre os parlamentares e seguimentos religiosos, distribuídos em diversos partidos políticos, e uma maior participação na chamada Frente Parlamentar Evangélica ou “Bancada Evangélica”. O crescimento populacional dos evangélicos não implica necessariamente o aumento de políticos evangélicos eleitos, mas é considerado na literatura (CAMPOS, 2005; MARIANO, 2011) como variável importante para se analisar a articulação interna das igrejas para a eleição de representantes, o que pode ser visto como potencial processo de ampliação da participação política deste seguimento social. Este crescimento da participação política dos evangélicos reflete também na distribuição de cargos importantes nas casas legislativas e no executivo que usa esta estratégia como forma de manter o apoio das igrejas. Isto é visível quando se observa que representantes evangélicos vêm ocupando mais e mais cargos importantes nos seguimentos do Estado5 como Eduardo Cunha que foi presidente da Câmara dos Deputados entre fevereiro de 2015 e julho de 2016; assim como outros políticos evangélicos como o deputado Marco Feliciano que presidia a Comissão de Direitos Humanos da Câmara. A organização dos evangélicos em torno da política partidária está crescendo de maneira tal que, para utilizar como exemplo, em 2015 foi agendado para o mês de outubro o 1º Congresso de Agentes Políticos Evangélicos do Brasil (que foi adiado para 2016, “tendo em vista o momento de grave instabilidade política e econômica do país”, como indica o site do evento6), organizado pela FPE, cujo objetivo seria alcançar um público-alvo formado por vereadores, prefeitos, deputados estaduais, deputados federais, senadores, governadores, vice-governadores, conselheiros tutelares, secretários municipais e estaduais, ministros, exdeputados, potenciais candidatos eletivos e lideranças evangélicas com temáticas sobre desafio legislativo, laicidade do Estado, marketing para políticos evangélicos, família, corrupção, cidadania e igreja. Este evento, assim como outros acontecimentos recentes que têm chamado a atenção para as formas de organização política destes grupos e também para o fato da união destes políticos em um seguimento que, apesar de atuar em conjunto em vários pontos – como a defesa do estatuto do nascituro, oposição à união civil 4

A referência a 2015 aqui realizada se dá em razão de a pesquisa em andamento abranger os períodos de 2002 a 2015. A pesquisa busca analisar os padrões de carreira política dos evangélicos nesse período e de 2015 é o ano de posse dos parlamentares eleitos em 2014. Assumir ou não o cargo eletivo é uma variável importante para a pesquisa. O IBGE disponibiliza previsão populacional, mas não é certo se o número é real na população. 5 Não se defende, neste artigo, que estes cargos sejam distribuídos apenas levando em consideração a variável religiosa, mas que esta, assim como as manifestações de outros movimentos sociais, tem se mostrado capaz de influenciar decisões políticas. 6 http://www.eventocapeb.com.br/ Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 87


de pessoas do mesmo sexo, entre outros –, é formado por parlamentares provenientes de partidos e seguimentos religiosos distintos, e que nem sempre compartilham os mesmos princípios e valores morais para a tomada de decisões políticas. Este é um dos pontos sobre os quais os estudiosos do comportamento religioso estão a analisar: as formas como atores oriundos de seguimentos religiosos diversos e ideologias políticas (devido à existência de diversas denominações evangélicas que as dividem entre históricas e pentecostais, entre outras formas de divisão, como divergências doutrinárias entre denominações de mesma raiz, como as diversas Assembleias de Deus que existem), muitas vezes diferentes, atuam em conjunto em momentos políticos específicos. Um dos fatores mais destacados na literatura para resolver este problema da diversificação dos atores evangélicos é a possibilidade da existência de uma identidade que os unifique em torno das questões políticas. É possível identificar na literatura sobre esta temática dois grupos de pensadores que analisam a formação de identidade entre os evangélicos sob duas perspectivas distintas: há aqueles que defendem a inexistência de uma identidade política entre eles devido a grandes diferenças históricas de formação, teologias, ideologias, doutrinas, como Mariano (2001), Fonseca (2002), Freston (1993) e Burity (2006); e os que defendem a existência desta identidade relacionada a aspectos específicos como o compartilhamento de valores e opiniões sobre moral familiar, sexualidade, entre outros, como Pierucci (2004), Machado e Mariz (2004), e ou mesmo a defesa de que a sua adoção por políticos seja devida a oposição à religião dominante, neste caso a católica, no intuito de uma afirmação de posição enquanto evangélicos na disputa política. Assim, a “ligação entre todos esses grupos seria o antigo preconceito típico de todo grupo minoritário que se sente perseguido pela religião dominante, no caso a Igreja Católica” (CAMPOS. 2005: 54) Outro fator importante geralmente enfatizado pelos estudiosos é o nível de participação política dos seguimentos religiosos que apontam para uma maior participação dos atores pertencentes às denominações de cunho pentecostal em relação aos “protestantes históricos”, e isto tem acontecido devido às grandes e dinâmicas transformações políticas pelas quais o país tem passado ao longo destas últimas quatro décadas, marcadas pela ampliação da participação política de diversos seguimentos sociais. Segundo Mariano, “até o início dos anos 1980 os pentecostais se auto excluíam da política partidária, realçando seu apolitismo com o lema “crente não se mete em política”. O ingresso dos pentecostais na política foi impelido “pelo temor de que a Igreja Católica estivesse disposta a tentar dilatar seus privilégios junto ao Estado brasileiro na Constituinte” (MARIANO, 2011: 250). O que nos anos 1990 fez com que candidatos políticos católicos adotassem uma “identidade católica” como recurso eleitoral. Mariano, então, apresenta que os parlamentares evangélicos adotam esta identidade com dois objetivos principais: aumentar a sua visibilidade em relação aos candidatos da religião dominante (Católica) como forma de afirmação do espaço político e religioso, e, em segundo lugar, consolidar o espaço eleitoral7 onde pudessem ter acesso para (re)eleições. Contudo, este autor não defende as identidades como um aspecto intrínseco da relação religião e política, mas como uma ferramenta utilizada pelos políticos para determinados fins eleitorais. Assim, não se pode falar em uma identidade geral compartilhada por todos os evangélicos para a atuação na esfera pública, mas em instrumentos de coação dos políticos na tentativa de conseguir sucesso eleitoral ao utilizar elementos de identificação específicos com este público. A ideia de uma pequena possibilidade de identidade geral em favor busca por mais espaço na arena política dominada por outros seguimentos sociais que mantém este domínio por muito tempo, é defendida por Freston ao afirmar que: ... a irrupção pentecostal na política reflete a concorrência religiosa. Com o lema de ‘liberdade religiosa ameaçada’, os líderes pentecostais deram início a uma concorrência com o catolicismo para espaço na religião civil. Tendo quase igualdade de praticantes, o pentecostalismo reivindica a igualdade de status na vida pública. A seita começa a ver-se como igreja de amanhã. Busca, também, recursos públicos como um direito justificado pelo tamanho numérico, como meio de levar adiante a expansão pentecostal... a politização pentecostal visa fortalecer lideranças 7

Espaço Eleitoral nesse sentido, corresponde às igrejas que os lançaram como candidatos oficiais.

88 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


internas, proteger as fronteiras da reprodução sectária, captar recursos para a expansão religiosa e disputar espaços na religião civil. (FRESTON. 1993, p. 181)

Joanildo Burity também defende a impossibilidade de unidade identitária entre os evangélicos ao afirmar que os padrões de ações dos evangélicos no campo político não seguem um alinhamento, em torno de um único caminho, que possa ser identificado, mas pode-se observar formas específicas de alinhamento quando se observa apenas concepções específicas, o que não pode ser visto a priori, como identificação geral dos atores deste grupo, nem fator que os leve a unirem-se indiscriminadamente da arena política. Segundo Burity: ...não há um alinhamento evangélico com uma única tendência partidária ou ideológica. Todas as análises e os resultados eleitorais ressaltam a pluralidade de opções partidárias e as divisões entre os evangélicos (...) no que se refere ao campo ideológico (...) ainda que as questões da sexualidade e da moral individual mobilizem os evangélicos e os aproximem em discussões e votações no parlamento, não se constituiu uma fronteira definidora de uma identidade englobante dos evangélicos na política. (BURITY, 2005.p. 198)

Campos (2005) defende que a participação dos evangélicos na política pode ser observada desde a década de 1930, mas que ainda existia, naquela época, aquela concepção de que “crente não se mete em política”, identificada por Mariano (2011) como um pensamento comum ao período anterior à ditadura militar entre os evangélicos, passando a perspectivas mais próximas da participação política dos atores deste grupo, como aquela de que “irmão vota em irmão” (TREVISAN. 2013). Esta perspectiva caracteriza os evangélicos como grupo social cujas ações políticas tendem, desde a reabertura democrática, para uma maior participação política. De acordo com Campos, os evangélicos no congresso iniciaram a tentativa de construção de uma identidade política com objetivos entre os quais se pode destacar, de maneira semelhante a Mariano, a tentativa de afirmação de posição política frente a religião dominante (a Igreja Católica) afirmando serem uma minoria perseguida. Apresenta-se, assim, uma mudança na forma de os evangélicos enxergarem a política e que, consequentemente, os levou a uma participação mais intensa. Hoje é notável a intensa presença deste grupo nas instituições políticas, contrariando o pensamento de que religião e política estão estritamente separados, pois levam para dentro destas instituições aspectos puramente religiosos quando se trata de tomada de decisões. De acordo com estes autores, assim como não existe uma identidade geral compartilhada pelos evangélicos, não é possível que haja nos representantes eleitos. Antônio Pierucci, ao analisar a atuação de deputados evangélicos na constituinte, defende que não existe uma identidade homogeneizante entre os parlamentares evangélicos, pois tinham muitas divergências de ordem política econômica entre si, mas que adotaram uma estratégia de evitar que estas questões divergentes entrassem em pauta, e para que os elementos que os unissem ocupassem um lugar central nas suas ações. Segundo Pierucci: (...) ao evitarem as controvérsias e divergências em matéria econômica, tratavam de delimitar um espaço homogêneo de representação, o seu espaço de representação enquanto evangélicos (...) recorte unificador e legitimador de seu espaço de representação como bloco, acima das divisões internas e aparentemente à margem dos grandes embates socioeconômicos. (PIERUCCI, 1996: 183).

Contudo, não são consensuais as explicações acerca da participação de políticos oriundos de partidos e seguimentos religiosos diferentes em um único grupo. Assim, Borges (2007) aponta a partir destes e outros autores pelo menos cinco razões para a atuação dos evangélicos em um grupo específico: 1- preocupação em evitar a aprovação de políticas que afetem a instituição familiar, como a permissão do aborto e do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (PIERUCCI, 1996); 2aumento da visibilidade das igrejas no espaço público, possibilitando a inserção dos evangélicos no debate político; 3- demanda por igualdade de status com a Igreja Católica (FRESTON, 1993); 4busca de maior liberdade religiosa e preocupação em assegurar os direitos de livre credo

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 89


conquistados, em situação percebida como sob ameaças (PIERUCCI, 1996; MARIANO, PIERUCCI, 1996); 5- fortalecimento de lideranças internas às igrejas, um objetivo ligado diretamente à criação e ao aumento de legitimidade dentro das organizações religiosas (FRESTON, 1993). (BORGES. 2007. p.79)

Para poderem se manter nos cargos ocupados e aumentar a sua influência os “Políticos de Cristo” 8 usam de vários meios coordenados com sua origem social, como demonstra Borges: Os “Políticos de Cristo” não apenas são eleitos com apoio de fiéis e de igrejas evangélicas, como também enfatizam tal vínculo na atividade parlamentar. A criação da “Frente Parlamentar Evangélica” em 2003 exemplifica este ponto por tratar-se de um grupo que tem tido significativa representação no Congresso Nacional, constituindo-se em uma das mais numerosas “bancadas” suprapartidárias. (BORGES. 2007. p.65)

Segundo Mariano (2011) esta atuação política de lideranças evangélicas no âmbito das igrejas, e envolvendo a disputa religiosa termina migrando para o espaço político, e influenciam e torna turva a concepção de um estado laico, pois as disputas religiosas ao entrarem no âmbito da política usam dos aparatos políticos para realizarem seus empreendimentos e alcançarem suas metas em relação ao apoio dos fiéis ou em relação a outras religiões, tanto no âmbito político como no religioso. O Fato de não ser consensual na literatura especializada a existência de uma identidade política entre os parlamentares evangélicos suscita não só pensar a definição de identidade discutida, assim como compreender os fatores que os levam a agir em conjunto e possibilite o entendimento de suas ações enquanto um corpo de atores políticos que tem aumentado seu espaço de atuação nas últimas décadas e que não passa despercebido, principalmente quando está na arena de discussões e decisões de temas considerados polêmicos com outras frentes parlamentares em visíveis disputas e de exercício de poder. Um outro elemento importante abordado na literatura sobre a participação políticaa dos evangélicos é a existência do que Campos (2005) chama de “o voto evangélico”, que consiste em um determinado padrão de comportamento político marcado pela influência de estímulos ideológicos dentro de grupos religiosos, e é um tema que tem chamado a atenção de diversos estudiosos nas ciências sociais por ser um demonstrativo da relação entre religião e política que cresce de maneira significativa a partir da década de 1980 entre o seguimento social dos evangélicos. Apesar de não haver consenso na literatura sobre uma definição particular deste conceito, é possível identificar elementos que ajudem a uma investigação quanto ao padrão ideológico e de voto. Para alguns cientistas sociais o voto evangélico é explicado em grande medida pelos mecanismos internos das religiões que enformam o voto a partir de determinados fatores como o nível de exposição dos fiéis às autoridades religiosas, medido pela taxa de participação em eventos, missas e cultos; pela influência da centralização da hierarquia religiosa ou pela forma de organização eclesiástica. (RODRIGUES, FUKS, 2014). Para outros estudiosos a explicação das particularidades do voto evangélico é encontrada não no fator religioso como influenciador mais forte, mas no nível de aprovação do governo, principalmente no que concerne à política e situação econômica do país. Mudanças importantes nos perfis socioeconômico dos evangélicos também são destacados com fatores importantes para a análise das transformações nas formas de atuação políticas deste grupo. Como defende Machado e Burity (2014) as mudanças profundas trazidas pelas últimas décadas levaram ao surgimento de uma geração mais escolarizada e profissionalizada, com maior acesso ao consumo, e também uma crescente capacidade de olhar criticamente para dentro (de suas tradições de fé) e para fora (condições sociais e políticas vigentes). Mas essa geração ainda se depara com uma liderança centralizadora 8

Definição proposta por Campos (2005), que faz a distinção entre os “políticos evangélicos” – aquele “que usava simplesmente as denominações evangélicas para produzir votos que os elegessem e depois procuravam defende-las na fronteira política”, e os “políticos de Cristo” – aquele se constitui como “um novo ator político-religioso, pois empresta a sua personalidade para ser usada como um instrumento da confissão religiosa que o escolheu candidato e fez dele o seu defensor na fronteira política”. 90 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


e que não acompanhou no mesmo ritmo e intensidade aquelas mudanças. Ainda persistem temastabu e visões defendidas por pastores pentecostais de que cabe à igreja fazer “trabalho social”. (MACHADO, BURITY, 2014, p. 621).

Essas mudanças são importantes para a análise política, pois diversos estudos apontam os evangélicos como grupo formado, em sua maioria, por pessoas pobres, com baixa instrução escolar, e que o maior número de fiéis dessas igrejas encontra-se nas regiões socialmente mais afetadas da sociedade (CAMPOS, 2005). Este ponto trona-se relevante para uma investigação que busque observar a tendência de pessoas deste grupo social a aderirem a propostas ideológicas específicas que se aproximem de sua realidade, e com isso travarem uma luta política voltada para esses princípios, em geral conservadores. Considerações finais Em geral os estudos sobre participação política e movimentos sociais das décadas de 1980 e 1990 não costumam enquadrar os evangélicos no escopo da atuação dos movimentos, pois os identificam enquanto atores cuja atuação política é circunscrita pelas fronteiras das igrejas, e por este motivo têm uma lógica diferente de atuação que precisa ser estudada sob perspectivas específicas. Os estudos que enfatizam os evangélicos como atores políticos atuantes, fazem parte de uma literatura bem mais recente que aborda a relação entre o crescimento populacional deste seguimento social, bem como o incremento das formas de participação das igrejas nos processos de escolha de representantes ou de apresentação de demandas ao Estado. Esta é uma perspectiva pouco presente nos estudos feitos sobre os evangélicos nas décadas anteriores a 2000, pois eram estudos que priorizavam a análise dos fatores que levavam elites religiosas a alcançarem o poder político e como elas agiam para manter este poder (BORGES, 2007; FRESTON, 1993, MACHADO, 2006). Não enfocavam os indivíduos participantes destes grupos sociais como atores importantes nos processos políticos pelo seu potencial de participação. Um exame profundo das concepções de política e das formas de avaliação da atuação políticas dos evangélicos e das lideranças religiosas (políticos ou não) é importante para que se possa entender como as relações internas das igrejas promovem influência no âmbito político ao atuarem como movimento social que busca maior entrada na arena política a ampliação da participação seja por meio da representação de políticos eleitos, seja por meio da atuação em arenas públicas onde haja deliberação (TREVISAN, 2013). À guisa de conclusão, pode-se afirmar, através do que vem sendo discutido na literatura, que a politização dos grupos evangélicos coloca um contexto cheio de novos desafios, pois os grupos destas últimas décadas têm sofrido transformações tão profundas que chegam mesmo a ter caraterísticas opostas às apresentadas no período anterior ao regime militar. Os atores que antes pensavam a política como um campo inteiramente secular passam a observá-lo como meio para a ampliação de seus objetivos. Estes grupos além de lutar pela sobrevivência, como apresenta Campos (2005), apresentam novas formas de atuação política para a consecução de objetivos inteiramente novos, como por exemplo a luta contra outras frentes parlamentares cujas propostas são opostas. Por um lado, enquanto aquela visão mais tradicional que “crente não se mete em política” tinha força nas concepções dos evangélicos anteriores à década de 1970, outra concepção surge – a de que “irmão vota em irmão - e mostra novos caminhos de “livrar a política do mal” trazido, principalmente pelas visões comunistas9 de outros movimentos sociais. Referências ABERS, Rebecca; BÜLOW, Mariza Von. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade? Porto Alegre: Sociologias, ano 13, no 28, set./dez. 2011, p. 52-84. ALONSO, Angela. Teorias dos movimentos sociais: balanço do debate. Lua Nova, 2009, no. 75. 2009. 9

Na história do protestantismo no Brasil é comum se verificar uma grande rejeição às perspectivas comunistas (MARIANO, 2011) Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 91


AVRITZER, Leonardo. Teoria democrática e deliberação pública. Lua Nova nº47. 2000. BEM. Arim Soares do. A centralidade dos movimentos sociais na articulação entre o estado e a sociedade Brasileira nos séculos XIX e XX. Campinas: Educ. Soc. vol. 27, n. 97, p. 1137-1157, set./dez. 2006 CAMPOS, Leonildo Silveira. De Políticos de Cristo - uma análise do comportamento político de protestantes históricos e pentecostais no Brasil. In: BURITY, Joanildo; MACHADO, Maria das Dores (org) Os votos de Deus: evangélicos, política e eleições no Brasil. Recife: Editora Massangana. 2005. BOHN, Simone R. Evangélicos no Brasil: perfil socioeconômico, afinidades ideológicas e determinantes do comportamento eleitoral. Opinião Pública, vol.10, nº. 2. 2004. BORGES, Tiago Daher Padovezi. Identidade política evangélica e os deputados estaduais brasileiros. Revista Perspectivas, São Paulo, v. 35, p. 149-171, jan./jun. 2009 ________. Representação Partidária e a Presença dos Evangélicos na Política Brasileira. Dissertação de mestrado, ciência política. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2007. BURITY, Joanildo; MACHADO, Maria das Dores (org): Os votos de Deus: evangélicos, política e eleições no Brasil. Recife: Editora Massangana. 2006. CAMPOS, Leonildo Silveira. Os Políticos de Cristo - uma análise do comportamento político de protestantes históricos e pentecostais no Brasil. In: BURITY, Joanildo; MACHADO, Maria das Dores (org) Os votos de Deus: evangélicos, política e eleições no Brasil. Recife: Editora Massangana. 2005. CAPELLA, Ana Claúdia. Perspectivas teóricas sobre o processo de formulação de políticas públicas. In: HOCHMAN, Gilberto; ARRETCHE, Marta; MARQUES, Eduardo. Políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007, p. 87-122. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2008. DAHL, Robert A. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. FONSECA, Alexandre B. C. da. Secularização, Pluralismo Religioso e Democracia no Brasil: Um estudo sobre evangélicos na política nos anos 90. Tese de Doutorado, Sociologia Universidade de São Paulo. São Paulo. 2002. FRESTON, Paul. Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese de Doutorado, sociologia (UNICAMP). 1993. LAVALLLE, Adrián, HOUTZAGER, Peter, CASTELLO, Graziella. Democracia, Pluralização da Representação e Sociedade Civil. Lua Nova: O futuro da Representação, nº 67. 2006. LAVALLE, A. G. e SWAKO, J. 2015. Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate. Opinião Pública, Campinas, vol. 21, nº 1, abril, p. 157-187. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 4 ed. São Paulo. Companhia das Letras, 2012. LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina. Rio de Janeiro: Vozes. 2000. MACHADO, Maria das Dores Campos. Política e Religião: a participação dos evangélicos nas eleições. Rio de janeiro: Editora FGV. 2006. MARIANO, Ricardo. Laicidade à brasileira. Católicos, pentecostais e laicos em disputa na esfera pública. Revista Civitas: Porto Alegre, V.11 n.2, maio-agosto 2011, pgs. 238- 258. ________. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola. 1999. MARIANO, Ricardo. Análise sociológica do crescimento pentecostal no Brasil. Tese de Doutorado, Sociologia (USP). 2001. MIGUEL, L. F. Teoria democrática atual: esboço de mapeamento. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, nº 59, p. 5-42, 2005. PATEMAN, C. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

92 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização e declínio do catolicismo in SOUZA, Beatriz Muniz; MARTINO, Mauro Sá (org.). Sociologia da religião e Mudança Social. São Paulo: Paulus. 2004. REIS, Fábio Wanderley. Mercado e Utopia. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. 2009. TILY, Charles. Democracia. São Paulo: Vozes, 2013. P. 15-39. TREVISAN, Janine Bendorovicz. Evangélicos pentecostais na política partidária brasileira: de 1989 a 2010. ANPUH Memória e Narrativas nas Religiões e nas Religiosidades. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. V, n.15, jan/2013 URBINATI, Nádia. O que torna a representação democrática. Lua Nova, São Paulo, 67: 191-228, 2006.

Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017 | 93


94 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


D

ISCURSO &

95 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017

I

DEOLOGIA


96 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DE DILMA ROUSSEFF E MICHEL TEMER NAS CAPAS DAS REVISTAS ISTOÉ E ISTOÉ DINHEIRO 1 Anabela Fernanda Riso Maia2 Flávia Oliveira de Carvalho³ RESUMO O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise do discurso das capas das revistas ISTOÉ do dia 28 de setembro de 2015 e ISTOÉ Dinheiro de 13 de maio de 2016 com imagens da então presidente do Brasil Dilma Rousseff e do então presidente em exercício Michel Temer, respectivamente. Para acrescentar informações sobre o possível posicionamento das publicações, também serão utilizados para a pesquisa o editorial da edição com Dilma Rousseff e o artigo que traz a opinião da ISTOÉ Dinheiro sobre o futuro do país sob o governo de Michel Temer. Em ambas as capas, Dilma e Temer aparecem fazendo um gesto semelhante, porém as capas possuem mensagens e intenções distintas. Utilizando o método da Análise de Discurso Crítica (ADC), buscaremos identificar diferenças de sentido entre as duas imagens e dos textos que as acompanham. Com esta pesquisa buscaremos também conclusões a respeito do posicionamento político da revista sobre momento político em que se encontrava o país nas datas de publicação das duas revistas. Palavras-chave: Ideologia. Presidente. Istoé

Introdução

E

m 2016, o Brasil vive um momento de instabilidade política. A então presidente da república Dilma Rousseff foi afastada do cargo após um pedido de Impeachment que gerou debates pelo país, tendo então como presidente interino Michel Temer. Visto que a revista ISTOÉ tem como carro chefe a política do Brasil, Dilma e Temer foram retratados em capas da publicação neste ano. Nas capas a serem analisadas neste trabalho, ambos aparecem fazendo um gesto semelhante: apontando o dedo para a câmera (ou para o leitor). Tendo como base textos de Análise de Discurso Crítica (ADC) e pesquisas sobre a linha editorial da revista, buscamos investigar os discursos por trás de cada capa, analisando imagem e título de cada uma e os significados do gesto mostrado em ambas as capas. Neste trabalho pretendemos pesquisar como se construiu discursivamente a imagem de Dilma Rousseff e Michel Temer nas capas da revista ISTOÉ e ISTOÉ Dinheiro. Mais especificamente observar como a ISTOÉ deixa aflorar seus traços identitários nas capas analisadas, identificar o posicionamento da revista em relação às formas de governo de Dilma Rousseff e Michel Temer e fazer um comparativo entre as duas capas, visto que, em ambas, os dois aparecem fazendo o mesmo gesto. O suporte metodológico utilizado é a Análise de Discurso Crítica (ADC), que se interessa em refletir sobre o discurso como ferramenta de produção de consenso e a linguagem como lugar, por excelência, de trabalho das ideologias. Esse tipo de análise traz à luz as técnicas utilizadas para como o discurso tem capacidade de ocultar desigualdades sociais e, do mesmo modo, de interferir e mudar a realidade, para assim, promover a ascensão das minorias. Utilizaremos diversos autores que são base para que tenhamos um suporte teórico e metodológico firme. Fairclough (2001), Van Dijk (2015), e também as brasileiros Magalhães (2003), Resende e Vieira (2013) são

1

Trabalho apresentado no GT.05 – Discurso e Ideologia do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduanda em Comunicação Social – Jornalismo na Universidade Federal do Piauí. Teresina – PI. anabelariso@gmail.com ³ Graduanda em Comunicação Social – Jornalismo na Universidade Federal do Piauí. Teresina – PI. flaviacarvalho96@gmail.com 97 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


alguns dos nomes que tem a acrescentar em nossa pesquisa, visto que todos refletem acerca da discussão sobre “discurso e poder”, que é o que abastece os estudos acerca da ADC. Os objetos É de suma importância fazermos um breve histórico sobre os objetos de nossa pesquisa, que são a revista e os personagens dos discursos das capas das revistas ISTOÉ do dia 28 de setembro de 2015 e ISTOÉ Dinheiro de 13 de maio de 2016 com imagens da então presidente Dilma Rousseff e do presidente em exercício Michel Temer, respectivamente. A ISTOÉ é uma revista semanal especializada em política e atualidades. Criada em 1976 e publicada pela editora Três, de propriedade de Domingos Alzugaray, a ISTOÉ inicialmente era uma publicação semanal, passando a ser mensal apenas em março de 1977. Em 1979, devido a dificuldades financeiras causadas pelo Jornal de República, a editora precisou vender o título ISTOÉ e em 1988 a revista passa a se chamar ISTOÉSenhor. Em abril de 1992, Domingos Alzugaray comprou a marca ISTOÉ, que voltou a ser o nome da publicação semanal. Em setembro de 1997 a editora lança a ISTOÉ Dinheiro, primeira publicação semanal voltada a economia, negócios e finanças do país. De acordo com o site do Palácio do Planalto, Dilma Rousseff foi primeira mulher a se tornar Presidente da República do Brasil. Dilma Vana Rousseff nasceu em 14 de dezembro de 1947, na cidade de Belo Horizonte (MG). Iniciou militância política aos 16 anos até chegar aos cargos de secretária e ministra. Em 2010, aos 63 anos de idade, Dilma Rousseff é eleita a primeira mulher Presidenta da República Federativa do Brasil, com quase 56 milhões de votos. Em 2014 foi reeleita, e no dia 1º de janeiro de 2015 foi empossada para o seu segundo mandato na presidência da república. Atualmente, encontra-se afastada do cargo por até 180 dias devido a instauração de um processo de impeachment.3 Michel Temer, então presidente interino da república federativa do Brasil. Foi vice-presidente da República do Brasil eleito, em 2010, juntamente com a presidenta Dilma Rousseff. Reconhecido pela habilidade política, ocupou por três vezes a presidência da Câmara dos Deputados e preside, há 11 anos, o maior partido do País, o PMDB. Entre as principais atribuições da Vice-Presidência está a defesa do interesse nacional em foros, encontros e negociações internacionais.4 Contexto das capas Setembro de 2015 O primeiro pedido de impeachment contra Dilma Rousseff foi assinado pelos juristas Helio Bicudo e Miguel Reale Júnior e entregue em 17 de setembro. As justificativas para o pedido foram crime de responsabilidade por atraso em repasse aos bancos públicos, gerar novos gastos sem aval do Legislativo e manter dívidas não contabilizadas. No editorial da edição da revista em questão - 23.09.15 (Edição nº 2390) -, escrito pelo diretor editorial Carlos José Marques e disponível no site da revista, a ISTOÉ critica a forma como a então presidente Dilma Rousseff lidou com os problemas econômicos do país, segundo a publicação, empurrando gastos para os brasileiros pagarem “Caso, por exemplo, do programa “Minha Casa, Minha Vida”, que passará a ser bancado pelo FGTS dos trabalhadores, e do PAC, que sairá do dinheiro reservado a emendas parlamentares”, explica o editor no texto. Ainda segundo a ISTOÉ:

3 4

Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/ Acesso em 24/07/16 às 10:30 Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/ em 24/07/16 às 10:46

98 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


“Dilma parece estar vivendo em outro mundo, fora da realidade, sem a menor ideia do que fazer, persistindo na gastança. Não entendeu nada sobre a gravidade da situação. Ou finge não entender e parte com apetite redobrado para cima do contribuinte, com o intuito de encher as burras e seguir na sua marcha de insensatez.” (MARQUES, Carlos José. Dilma empurra a conta à nação. [Editorial] ISTOÉ nº 2390, 18 set 2015.)

Maio de 2016 No dia 11 de maio, senadores se reúnem para decidir se Dilma Rousseff seria afastada por 180 dias enquanto é julgada por crimes de responsabilidade. No dia 12 de maio, por 55 votos a favor e 22 contra, o Senado Federal aprova a admissibilidade do processo contra a então presidente, determinando seu afastamento do cargo. Michel Temer assume o cargo interinamente. Logo no dia 13 de maio, dois dias após Temer assumir a presidência, a Istoé Dinheiro publica uma edição com o presidente interino na capa. No artigo de opinião sobre o assunto dessa edição, a ISTOÉ retrata Temer com otimismo, sempre o comparando a outros governos como os de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. No fim do artigo, Luís Artur Nogueira explica que no momento Temer não precisa se preocupar com a sua popularidade: “São temas desagradáveis que, numa reação automática dos eleitores, significariam perda de votos para o seu porta-voz. Temer não precisa se preocupar, por ora, com a sua popularidade. Ele está diante de uma oportunidade de ouro de virar o jogo da economia. É nesse aspecto que a esperança se renova. No entanto, o presidente terá pouco tempo para atender às expectativas da população e repetir o êxito de Itamar, FHC e Lula. Ou fracassará como Dilma.” (NOGUEIRA, Luís Artur. Temer e a oportunidade de ouro. ISTOÉ Dinheiro nº 967, 13 mai 2016)

A Análise de Discurso Crítica Utilizaremos como método a Análise de Discurso Crítica, que é orientada pelas reflexões acerca do discurso e poder, e de que forma esse discurso consegue sustentar ideologias, seja de forma explícita ou implícita. Ao destrinchar discursos, o analista expõe as desigualdades e dominações que vitimam as minorias. A Análise Crítica do Discurso (ACD) é um tipo de investigação analítica discursiva que estuda principalmente o modo como o abuso de poder, a dominação e a desigualdade são representados, reproduzidos e combatidos por textos orais e escritos no contexto social e político. Com essa investigação de natureza dissidente, os analistas críticos do discurso adotam um posicionamento explícito e, assim, objetivam compreender, desvelar e, em última instância, opor-se à desigualdade social. (VAN DIJK. 2015, p.113)

Segundo Vieira e Resende (2013, p.20), a análise de discurso crítica é transdisciplinar, pois rompe fronteiras epistemológicas e operacionaliza as teorias e estudos para uma abordagem sociodiscursiva. O termo surgiu a partir do linguista britânico Norman Fairclough, da Universidade de Lancaster, em que Fairclough criou uma ciência crítica sobre a linguagem ao unir aspectos linguísticos e socioculturais. Quando se trata de discurso e ideologia sempre é válido nos orientarmos através do arcabouço criado por Thompson para analisar as construções simbólicas ideológicas no discurso. Segundo Thompson (1995, pp. 81-9) citado por Vieira e Resende (2013, p.22), existem cinco modos gerais de operação da ideologia, são eles: legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e reificação. A legitimação seria as relações de poder representadas como legítimas, dissimulação são as relações de dominação ocultadas, negadas ou obscurecidas, unificação é a construção de uma identidade simbólica coletiva, fragmentação é a segmentação de indivíduos que possam representar uma ameaça ao grupo dominante e, por fim, a reificação seria a retratação de uma situação transitória como permanente e natural. A concepção crítica postula que a ideologia é, por natureza, hegemônica, no sentido de que ela necessariamente serve para estabelecer e sustentar relações de dominação e, por isso, serve

99 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


para reproduzir a ordem social que favorece indivíduos e grupos dominantes. (RESENDE; RAMALHO. 2013, p.49)

Nos orientarmos por esse caminho muito acrescenta na análise das capas, afinal, ambas apresentam o mesmo gesto, no entanto, apresentam nuances que transmitem sentidos e intenções completamente diferentes. PT x PMDB Para entendermos os possíveis posicionamentos que qualquer publicação possa ter a respeito de Dilma Rousseff ou Michel Temer, é essencial entendermos algumas bases do partido de cada um: PT e PMDB, respectivamente, bem como as vertentes ideológicas de cada um. Além disso, relembraremos a relação da revista ISTOÉ com os presidentes de ambos os partidos através da representação deles em capas da publicação. É importante ressaltar que PMDB e PT são os dois maiores partidos do Brasil. Partido de Dilma Rousseff, o Partido dos Trabalhadores (PT) foi oficializado como partido político em 10 de fevereiro de 1980 com a necessidade de promover mudança a vida de trabalhadores do Brasil. Nesse sentido, se destacou como principal líder do partido o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, que em 2002 se tornou presidente do Brasil. O PT é um partido de esquerda, defensor do socialismo democrático. Os mandatos de Dilma e Lula na presidência tiveram foco em áreas sociais como a busca pela erradicação da pobreza e da fome no país. Na história da ISTOÉ com presidentes do Brasil, o ex-presidente Lula foi capa da revista em muitas ocasiões durante seu mandato, sendo a grande maioria das capas de cunho negativo, assim como no caso do mandato de Dilma. Michel Temer pertence ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), o partido brasileiro com o maior número de filiados. O PMDB teve sua origem oficialmente em março de 1966 e nasceu do MDB, legenda de oposição ao regime militar de 1964, como resultado da extinção dos partidos e implantação do bipartidarismo pelo AI-2. O PMDB é considerado um partido de orientação centrista. Entre as figuras históricas dentro do partido estão Tancredo Neves, eleito presidente da República pelo Colégio Eleitoral em 1985, o senador Teotônio Vilela e Ulysses Guimarães, responsável por estabelecer a nova Constituição democrática para o Brasil após anos de ditadura militar. O partido até hoje não teve um presidente da República eleito por voto direto. Ideologia e a tomada de poder Em seu livro, “Discurso e Mudança Social”, Fairclough (2001) traz discussões sobre a teoria de Althusser, um dos principais estudos sobre ideologia. Para o autor, essa teoria enfrenta limitações e não abarca com totalidade os debates impostos, pois vê a ideologia apenas como um cimento social universal, marginalizando as lutas, contradições e transformações. Entendemos que as ideologias são as significações da realidade e estão presentes nas nossas relações/identidades sociais, e dominações. No entanto, em seu estudo Fairclough enxerga a ideologia além de uma composição estrutural, e frisa que devemos nos atentar também ao seu poder de transformação: As ideologias embutidas nas práticas discursivas são muito eficazes quando se tornam naturalizadas e atingem o status de “senso comum”: mas essa propriedade estável e estabelecida das ideologias não deve ser muito enfatizada, porque minha referência a “transformação” aponta a luta ideológica como dimensão da prática discursiva, uma luta para remoldar as práticas discursivas e as ideologias nelas construídas no contexto da reestruturação ou da transformação das relações de dominação. (FAIRCLOUGH, 2001. p.117)

Ao questionar se a ideologia é uma propriedade de estruturas ou de eventos, o autor conclui que a resposta é: ambas. Para ele, a ideologia está presente não só nas estruturas, como também nos eventos que 100 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


mantém ou transformam essas estruturas. Os eventos não são meras reproduções ideológicas, mas também transformações e provam que as lutas são possíveis. Com isso, conseguimos assimilar discussões acerca de ideologia e tomada de poder, que diz muito sobre os objetos analisados. Entende-se que o discurso utilizado pela ISTOÉ possui pretensão em criar um cenário favorável ao então presidente interino, ao tempo que deprecia a imagem de Dilma Rousseff. A tomada de poder se dá a partir do momento em que são cultivados discursos naturalizados na imprensa, criando-se cenários para transformações. Como foi o caso da presidente afastada. Análise de Capas Para fazermos uma análise de imagens trazidas por revistas é necessário ter como base alguns estudos a respeito dos sentidos que estas imagens podem carregar e do contexto em que cada uma está inserida. Os editoriais das duas edições também dão esclarecimentos a respeito do posicionamento da revista sobre o momento político e a atuação de Dilma Rousseff e Michel Temer. Para Magalhães (2003): As capas das revistas como espaços de materialidades discursivas, são lugares em que se encenam e insinuam atos e fatos imagísticos, rituais de sedução, persuasão e informatividades, segundo pontos de vista, maneiras de perceber (ver/ler) plástica e linguisticamente o mundo. (MAGALHÃES, 2003, p. 63)

Na capa da ISTOÉ de 28 de setembro de 2015, Dilma Rousseff aparece em uma montagem que a coloca em trajes semelhantes à lendária figura de Tio Sam – personificação dos Estados Unidos – porém, com as cores que representam o Brasil e levando a bandeira brasileira na cartola. O Tio Sam é a personificação dos Estados Unidos da América. Um senhor de cabelos grisalhos que veste as cores e elementos da bandeira norte-americana. O primeiro uso desse símbolo nacionalista é datado na Guerra de 1812 e seu primeiro esboço de ilustração em 1870. Há relatos de que o Tio Sam tenha sido criado por soldados norte-americanos do estado de Nova York, onde recebiam barris de carne com a inicial U.S estampada. Obviamente, as iniciais significavam United States, no entanto, os soldados faziam brincadeiras e apelidaram de “Uncle Sam” (Tio Sam em português), pois o distribuidor das carnes enlatadas se chamava Samuel Wilson. Em 1870, o cartunista Tomas Nast fez um esboço do que viria a ser o Tio Sam, a partir disso, a lenda ganhou uma face. Já sua versão conhecida, com o dedo apontado com a emblemática frase “I Want You for U.SArmy” (“Eu quero você para o exército dos Estados Unidos” em português), foi criada pelo artista James Flagg em 1917. A caricatura foi utilizada pelas Forças Armadas Americanas no recrutamento de soldados para a Primeira Guerra Mundial. Se o símbolo do Tio Sam recrutava soldados em prol do bem da nação, a imagem de Dilma fazendo o mesmo gesto possui um tom de autoritário, de que o brasileiro deve pagar o “rombo” deixado pelo seu governo. Na imagem, a então presidente do Brasil também aparece vestindo as cores e elementos da bandeira brasileira, assim como o Tio Sam também veste as cores norte-americanas. Acreditamos que o tom ameaçador dado a imagem de Dilma não tenha assimilação com o que representa o símbolo norte-americano.

101 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


ISTOÉ nº 23905 e cartaz com a figura de Tio Sam na Primeira Guerra Mundial, ilustrado por James Flagg em 1917

O aspecto da capa em questão é bastante limpo. O branco do fundo com as letras do logotipo da ISTOÉ e da frase principal contribuem para o contraste que evidencia as cores da imagem. A frase que acompanha a imagem – Dilma quer que você pague a conta”– , combinada à expressão facial de Dilma Rousseff, revela ao leitor um tom mais ameaçador do que convidativo. Acima do nome da revista encontra-se três destaques da edição, com títulos na cor vermelha. Diferente da capa com Michel Temer, Dilma Rousseff não aparece sorrindo nesta capa. Pelo aspecto ameaçador da imagem, a frase utilizada na capa e as informações do editorial da mesma edição, a revista demonstra se posicionar contra as medidas anunciadas pela presidente para os problemas econômicos do país. Segundo Magalhães (2003), as imagens veiculadas pela imprensa de fato tem a intenção de manifestar opiniões. Para o autor: A fotografia de imprensa constitui rede tecida pelas condições de engendramento de uma operação discursiva em ação constante na superfície da imagem. Participa de estratégias enunciativas. Veicula opiniões muito mais do que narra fatos. Opiniões estas, presas a regras do contrato que vinculam o suporte aos seus leitores e vice-versa, através de estratégias de fortalecimento e manutenção desses vínculos. São escolhas enunciativas operadas e determinadas num universo social de possibilidades. (MAGALHÃES, 2003, p. 91)

A revista ISTOÉ já utilizou em outras capas a imagem de pessoas apontando o dedo para o leitor, como um sinal de convocação ou ameaça. A mais recente é a capa de 22 de julho de 2016, trazendo o candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump com uma expressão ameaçadora semelhante à de Dilma Rousseff na capa analisada neste trabalho. A edição também se posiciona claramente contra o candidato e leva como título “A ameaça que Trump pode causar ao mundo”. Na capa da ISTOÉ Dinheiro, de 13 de maio de 2016, Temer já é presidente interino do Brasil. Ele aparece na mesma posição que Dilma, também fazendo referência a figura de Tio Sam. A expressão de Temer é sutil, nos passa a impressão de que “tudo vai dar certo”. Ao contrário da capa com a presidente afastada, que tem uma expressão facial ameaçadora e fora de controle. Na capa, o presidente interino convoca o trabalhador brasileiro para uma “reconstrução nacional”, a palavra “VOCÊ” em caixa alta nos passa um tom de convocatória. Ou seja, recuperar o que foi perdido no governo Dilma.

5

Disponível em http://istoe.com.br/436953_DILMA+EMPURRA+A+CONTA+A+NACAO/ Acesso em 28/07/16 21:57

102 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O discurso da revista ainda enfatiza que o brasileiro deve ter paciência com Temer, pois o mesmo tem pouco tempo para dar conta de tantos problemas. “Ele conta com VOCÊ”, “o tempo é curto e as reformas são urgentes”.

ISTOÉ Dinheiro Nº 9676

Na capa da edição Nº 967, especial Governo Temer, da ISTOÉ Dinheiro, Michel Temer é retratado apontando para o leitor, como mesmo gesto convocatório que remete ao Tio Sam. Nesta capa, porém, o então presidente interino não foi portado com a vestimenta de Tio Sam, como aconteceu na capa com Dilma Rousseff, mas com a roupa na qual o leitor está acostumado a vê-lo. O fundo da imagem também é limpo. Abaixo da imagem está a frase “Ele conta com você”, em que a última palavra se encontra com uma cor diferente e em caixa alta. O texto que segue vem nas cores vermelho e preto. Na parte superior está o nome da revista e acima dele outro destaque da edição. A cereja do bolo dessa edição da ISTOÉ Dinheiro está na citação de Michel Temer presente na capa: “Não fale em crise, trabalhe”. Reforçando que a partir de agora não existe mais a “crise” tão pautada pela mídia. Suas palavras nos passam a impressão de que o passado deve ser esquecido. Portanto, a mídia não deve mais agendar a crise, pois aparentemente, ela foi sanada. As capas apresentam várias nuances a serem questionadas. Afinal, os dois estão na mesma posição, com intenção de convocar os brasileiros: no caso de temer, os empresários e no caso e Dilma, a população em geral. No entanto, as capas possuem sentidos e intenções totalmente diferentes. Ao tempo que a imagem de Dilma é ameaçadora, e quer que o brasileiro “pague a conta”, a capa de Temer é serena, e nos passa a impressão de que está tudo sob controle. Todos esses questionamentos nos fazem refletir sobre os agendamentos da mídia e sobre como o discurso pode construir realidades, bem como pensar sobre como o contexto também é importante, e muda os sentidos. Considerações finais A revista ISTOÉ é bastante incisiva em suas críticas e as preferências e opiniões também são evidenciadas nos conteúdos da revista ISTOÉ Dinheiro. 6

Disponível em: http://www.istoedinheiro.com.br/revistas/revistas/20160513/ele-conta-com-voce/342 Acesso em 28/07/16 às 21:57 103 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A partir de todos esses questionamentos, podemos concluir que a revista ISTOÉ demonstra possuir um viés pró-impeachment, sendo notória sua preferência por Michel Temer. Afinal, ambos aparecem na mesma posição nas capas das revistas, porém, Dilma de forma pejorativa e o presidente interino de forma serena e confiante. A ISTOÉ nº 2390 deixa clara a oposição à forma como Dilma Rousseff lida com os problemas econômicos do país e com que, segundo a publicação, toma decisões que tornam a situação financeira de cada brasileiro ainda mais complicada. A mídia possui forte potencial de pautar as conversas diárias. Para a ISTOÉ Dinheiro, a partir do momento de Temer assume o poder, toda a crise tão pautada no dia a dia dos brasileiros desaparece. A revista faz questão de deixar claro para o leitor que não existe mais crise. A ISTOÉ Dinheiro Nº 967 sugere ao leitor a confiança no novo presidente em exercício, a tranquilidade e a certeza de que ele pode tirar o Brasil da tão pautada crise econômica em que o governo Dilma Rousseff, segundo a revista, inseriu o país. Referências FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília – Editora Universidade de Brasília, 2001. 316 p. MAGALHÃES, Laerte. Veja, isto é, leia. Teresina: Edufpi, 2003. 158 p. RESENDE, Viviane de Melo; VIEIRA, Viviane. Análise de discurso crítica. 2. Ed., 1ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2013. 158p. ROCHA, Sibila; GHISLENI, Taís Steffenello: Contratos de leitura Os vínculos entre emissor/receptor na passagem da sociedade midiatizada http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-rocha-jornalismo.pdf VAN DIJK, T. Discurso e poder. 2. Ed., 2ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2015. 281p. _____. Vieira, Viviane. Constituição da Análise de Discurso Crítica: um percurso teórico-metodológico: SIGNÓTICA, v. 17, n. 2, p. 275-298, jul./dez. 2005 Site da revista ISTOÉ (http://istoe.com.br) Site do Palácio do Planalto (http://www2.planalto.gov.br/) Quem era Tio Sam? Disponível em: <https://noticias.terra.com.br/educacao/voce-sabia/quem-era-o-tiosam,0208d8aec67ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html> Acesso em: 14 Jan 2017.

104 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O SUJEITO ESCRITOR EM MANUAIS ADMINISTRATIVOS: JOGOS DISCURSIVOS E IDEOLOGIAS¹ Edilene Oliveira da Silva1 Claudiana dos Santos2 RESUMO Este artigo traz parte de um projeto maior, o qual vem sendo realizado a partir de Manuais de escrita/de redação: educacionais, administrativos, jornalísticos etc. O objetivo é analisar e compreender efeitos de sentidos e ideologias que afetam o sujeito da escrita, a partir de um estudo histórico-discursivo baseado em arcabouços teórico-metodológicos de Pêcheux e Orlandi. Para este trabalho, selecionamos um Manual de escrita da área administrativa, o Manual de Redação Oficial: teoria, modelo e exercícios, de A. Oliveira Lima (2010). É a 3ª edição, publicada pela editora Elsevier, do Rio de Janeiro. Como síntese dos resultados, compreendemos o sujeito escritor atravessado por discursos gramaticais tradicionais num jogo com discursividades do novo/ do linguista, afetado por ideologias normativistas e capitalistas, mercadológicas fundamentalmente. Além disso, refletimos brevemente sobre esses efeitos de sentido efetivamente na escrita, nas práticas de ensino. Palavras-chave: Gramatização; Escrita; Análise de Discurso.

Introdução

A

escrita é significada enquanto tecnologia linguística por Auroux (1998). Segundo o autor, ela é uma tecnologia, pois instaura saberes, registra o conhecimento, faz acontecimentos existirem enquanto tais num espaço-tempo. A gramatização, por exemplo, surgiu pela escrita. E esse é o processo que documenta a língua, por meio de compêndios, como gramáticas e dicionários principalmente (AUROUX, 1992). Mas, há também os Manuais de escrita, os Livros Didáticos, os Manuais religiosos etc que documentam a língua. Esses documentos são denominados por Auroux (1992) de tecnologias ou instrumentos linguísticos. Nesse sentido, nosso trabalho parte desse processo de gramatização, visto que trabalharmos com um dos instrumentos linguísticos, o Manual de escrita. Utilizamos o Manual de escrita oficial, um instrumento linguístico inscrito na área Profissionalizante, considerando o Quadro de Documentação da Gramatização Brasileira-QDGB (BERNADO-SANTOS, 2016). Nosso objetivo foi mostrar como o sujeito escritor é construído nesse instrumento, a partir de textos das partes periféricas do livro e das noções teóricas da Análise de Discurso de linha francesa pechetiana. Nesse sentido, procuramos compreender também como a escrita vem sendo significada ao longo da história e aplicada no ensino básico, mediante as discussões quanto ao sujeito escritor a partir das análises realizadas. O trabalho está dividido em três partes basicamente: na primeira, apresentamos as noções teóricas que embasam as análises; na segunda, trouxemos as análises e na terceira, discussões finais, resultados obtidos. Gestos teóricos

1

Trabalho apresentado no GT 05-Discurso e Ideologia do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 1 Mestranda em Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Sergipe. Aracaju-SE. Endereço eletrônico: edileneoliver@live.com 2 Mestranda em Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Sergipe. Aracaju-SE. Endereço eletrônico: clauportugues10@hotmail.com 105 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A escrita é uma tecnologia, segundo Auroux (1998). É “a primeira revolução tecnolinguística da história da humanidade” (p. 64). É ela quem dá a possibilidade de registro, ela marca, constitui um lugar. Todo saber científico linguístico é escriturado e, só existe enquanto tal ao passar por essa tecnologia, antes são apenas conhecimentos epilinguísticos. O processo de gramatização surgiu, portanto, através da escrita. A gramatização é o nome dado ao processo de documentação da língua por meio de instrumentos linguísticos: gramáticas e dicionários principalmente, tentando homogeneizá-la, sistematizá-la. É, portanto, uma abordagem (meta) linguística. Um “lugar” de documentação da língua. Esse processo só foi possível por meio da “razão gráfica” (AUROUX, 1992, p. 82). É essa tecnologia que leva à sistematização/à instrumentalização de um saber linguístico, como vimos acima. É por meio dela que vemos a língua e a colocamos como objeto, uma vez que ela registra, marca, fixa, documenta, dá visibilidade a linguagem, faz a língua existir enquanto tal, politicamente falando. Faz nós existimos inclusive, uma vez que sem nome e sobrenome não somos ninguém para a sociedade (BERNADO-SANTOS, 2008). O processo de gramatização, segundo Auroux (1992), inicia-se na região da Europa, por volta do século V. Nesse sentido, o autor faz um estudo cronológico do desenvolvimento das concepções linguísticas europeias, do século V ao fim do século XIX, mostrando destaques importantes. “No curso desses trezes séculos de história vemos o desenrolar de um processo único em seu gênero: a gramatização massiva, a partir de uma só tradição linguística inicial (a tradição greco-latina)” (AUROUX, 1992, p. 35). No Brasil, a gramatização inicia-se em meados do século XIX segundo Guimarães (1996). Através de seu estudo cronológico, percebemos que de 1500 até a primeira metade do século XIX não havia estudos de língua portuguesa produzidos no Brasil. Após constantes debates sobre a língua portuguesa (Brasil X Portugal), os estudiosos da língua começam a pensar e, posteriormente, a elaborar gramáticas a partir de estudos propriamente brasileiros, iniciando, desse modo, o processo de gramatização. Com isso, em seguida, são publicadas diversas gramáticas visando à preparação de estudantes para provas/ vestibulares, como por exemplo, a de Júlio Ribeiro que se opõe às teorias portuguesas, buscando esse suporte em outros lugares (Inglaterra, Alemanha, etc.). A escrita fixa esse processo, textualiza-o. Pensando nisso, foi que decidimos estudar o sujeito da escrita a partir de Instrumentos linguísticos sobre escrita. Relação metalinguística ou ‘meta-escrita’. Para tanto, consideramos a abordagem teórico-metodológica da AD. Na Análise de discurso, em sua III fase, o sujeito é atravessado por diversos outros. Pechêux (1990) traz essa ideia a partir da psicanálise de Lacan. Em Lacan há um grande Outro, que é a linguagem. O sujeito é construído nesse Outro. E isso o torna dividido em vários outros. Os outros são as formações discursivas que o atravessam. Formações discursivas são regiões de sentidos comuns. Regiões oriundas de uma mesma ideologia, como afirma Orlandi (2012). “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dadaou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada- determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2012, p.43). Nessa perspectiva, o interdiscurso, enquanto um fio de discursos diversos em movimento na memória discursiva, já-ditos, juntamente com o intradiscurso- discursos do ‘agora, põe em funcionamento discursos ‘determinados’ pelas formações discursivas na e pela língua. É no interdiscurso que estão os já-ditos, as formações discursivas já existentes, as experiências, o contexto histórico já vivenciadas/do. Tudo isso é ideológico. O discurso também é. É, segundo Orlandi (2012), efeito de sentidos, é movimento. É “carregado” de ideologia, visto que “a materialidade da ideologia é o discurso” (ORLANDI, 2008, p.69). Ideologia é representação das práticas sociais, segundo Althusser (1998). É a ideologia que ‘transforma’ o indivíduo em sujeito, mediante a linguagem. O sujeito, portanto, é posição ideológica, construído na e pela linguagem (ORLANDI, 2012). A linguagem constrói textos (verbais ou não verbais). E são os textos que materializam o discurso. Segundo Guimarães (1995), “texto tem a ver com a ilusão de evidência ligada ao fato de que há sequências de linguagem que se caracterizam por ter um princípio e um fim” (GUIMARÃES, 1995, p.2). Nesse sentido, para a teoria enunciativa, o texto é um acontecimento histórico e linguístico, perpassado pelo 106 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


interdiscurso. É um recorte do interdiscurso, que colocamos em funcionamento pela memória do dizer. Desse modo, há apenas uma dispersão. O papel do sujeito escritor será construir uma unidade linguística, ainda que ilusória, como mostra Orlandi (1996). Para a autora, já na perspectiva da AD., o texto empírico/material possui começo meio e fim, contudo, tal processo é apenas uma ilusão, visto que o texto está sempre em construção, por leitores e escritores. Nesse sentido, não tem como pensarmos em um início e um fim. Ainda segundo a autora, um texto é sempre atravessado por várias formações discursivas, isto é, por diversos outros e pela condição de produção em que faz parte. A condição de produção, segundo Orlandi (2012), está em dois contextos: o imediato e o amplo. O contexto imediato é marcado linguisticamente, mostra o lugar em que está situado o objeto em análise, por meio de temas que são discutidos na materialidade textual mesmo. É a conjuntura mostrada na superfície do texto. O contexto amplo é sócio-histórico, ideológico. Não está n a superfície textual, está além dela, está no discurso. Traz elementos externos, toda a conjuntura sócio-histórica e ideológica em que o objeto está situado à tona. Nas nossas análises, utilizamos também as reflexões de Authier-Revuz (1990) sobre o outro, sobre a heterogeneidade no discurso. Para ela, a heterogeneidade pode ser marcada ou não-marcada linguisticamente. A presença do outro de forma marcada é vista a partir do discurso direto, indireto, das aspas etc. A não marcada está no discurso. O outro é uma construção do discurso. Segundo a autora, o dizer é sempre atravessado pelo inconsciente, que, por sua vez, é sempre atravessado por outros. Nesse contexto, Machado; Mello3, a partir dos estudos de Lacan (1985), afirma que, grosso modo, o inconsciente é incompleto. Busca-se completar por vários outros, o que torna o sujeito dividido, como veremos nas análises. Nesse sentido, o discurso é sempre atravessado por discursos outros. E a memória do dizer traz isso à tona. Todos esses outros são de experiências vividas, são ideológicos, são já-ditos oriundos de formações discursivas diversas. “Nenhuma palavra é neutra, mas inevitavelmente ‘carregada’, ‘ocupada’, ‘habitada’, ‘atravessada’ pelos discursos nos quais ‘viveu sua existência socialmente sustentada’” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 27). Por conseguinte, a heterogeneidade marcada é espaço para a heterogeneidade constitutiva, para os não ditos. “Elas manifestam a realidade desta onipresença precisamente nos lugares que tentam encobri-la” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 33). É espaço, brecha para vermos outros sentidos, não-ditos, efeitos de sentidos, ideologias. “As formas de heterogeneidade mostrada, que traduzem a ilusão do sujeito na sua fala, manifestam também, nós já o vimos, a brecha no domínio, pelo gesto que tenta colmatá-la” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 36). Nesse sentido, Orlandi (2008) afirma que percebemos os não-ditos em equívocos, em faltas/ falhas. “Todo enunciado está intrinsecamente exposto ao equívoco da língua, sendo, portanto, suscetível de tornar-se outro” (ORLANDI, 2008, p.60). E, conforme Pêcheux (1982), são os pontos de deriva, os estranhos. De fato, é nas entrelinhas, no estranho, no óbvio ou no não-óbvio que encontramos ‘pistas’ para compreendermos sentidos. A condição histórica de produção, categoria da AD., aponta também para esse movimento do outro (e de outros), considerando a conjuntura sócio-histórica de que o dizer faz parte. Análise do sujeito da escrita A gramatização levou a produção de manuais de ensinos bem regrados, além de gramáticas e dicionários. Dentre esses manuais, selecionamos o Manual de Redação Oficial: teoria, modelo e exercícios (LIMA, 2010) como objeto de acesso ao discurso sobre o sujeito da escrita. Quanto ao ‘objeto’ em que está situado o corpus, o Manual de Redação Oficial: teoria, modelo e exercícios (LIMA, 2010), observa-se que ele está circunscrito numa condição histórica de produção contemporânea, moderna (século XXI). É um Manual de escrita para pessoas interessadas em estudar para concursos públicos principalmente. A escrita apresentada nesse compêndio é aquela modelo de textos oficiais, regulamentada pelas comunicações administrativas de órgãos públicos federais e estaduais. O autor, A. Oliveira Lima, é bacharel em Jornalismo, bacharel e licenciado em Letras, com mestrado em Literatura Brasileira e, atualmente, ministra cursos na área de Redação Oficial (LIMA, 2010). 3

Disponível em http://www.filologia.org.br/ileel/artigos/artigo_148.pdf.

107 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Destacamos algumas sequências discursivas desde a capa. Vejamos: (1) “Atualizada de acordo com a nova ortografia” Nessa primeira sequência vemos o novo presente, discurso do moderno, por meio dos termos: “atualizada” e “nova”. O novo é da formação discursiva linguista. É a ciência linguística que traz novos estudos sobre a língua, a escrita, a leitura, sobre o ensino. Contudo, percebemos também nesse enunciado o discurso da gramática normativa, pelo substantivo “ortografia”. Tal substantivo é o ponto de deriva (PÊCHEUX, 1982), é o equívoco (ORLANDI, 2008). Em jogo, o novo e o tradicional/normativo. O que é atualizado e novo é a ortografia. Ortografia é parte da gramática normativa. O embate ocorre, o novo é evidenciado, mas, os sentidos do normativo prevalecem. (2) “Manual de Redação Oficial: teoria, modelo e exercícios” (Título). A sequência “teoria, modelo e exercícios” mostra passos determinados para se chegar a um fim também já determinado. O aluno tem que passar pela teoria que mostra como escrever bem, em seguida, precisa ver modelos prontos (determinados/selecionados) e, posteriormente, participar de uma ‘banca’ de exercícios (também já determinados) para fixar a teoria e o modelo, para aprender o que foi passado até então. Desse modo, o aluno segue regras, formas baseadas em leis e interpretações decididas por um grupo, por uma instituição de direito para se obter uma ‘boa’ escrita. Traz, portanto, essa sequência, o discurso do jurídico. É um ritual, assim como o ‘ritual’ jurídico, em que passos determinados por lei são seguidos para chegar a um resultado ‘correto’. Nesse sentido, como afirma Nunes (2003), a instância ideológica do jurídico é parte da formação de sujeitos, seja da leitura ou, nesse caso, da escrita. “[...] tal prática tende a um direito de regulamentação, à constituição de uma ‘Razão escrita’, e se aproxima, pois, do direito [...]” (NUNES, 2003, p.29). De outro modo, a partir de Authier-Revuz (1990), quando ela afirma que é pela heterogeneidade marcada linguisticamente que encontramos a heterogeneidade constitutiva, própria do discurso, vemos o discurso gramatical normativo. Nesse sentido, os termos “Manual”, “teoria”, “Modelo” e “exercícios”, presentes na Sequência discursiva, mostram especificidades próprias do discurso gramatical. É o ensino gramatical tradicional que traz Manuais (de alfabetização, de gramática etc). Em outras palavras, tais termos são paráfrases de “cartilhas”, “gramáticas de ensino”, “livro didático”; materiais que remetem a um ensino normativo, determinado por um órgão. Há o discurso gramatical e, também, o discurso jurídico, uma vez que o ensino gramatical é determinado, instituído, como faz o jurídico. A Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), a LDB, os PCN e outros documentos oficiais regulamentam o ensino, determinam normas, leis. É jurídico. Desse modo, a escrita é constantemente julgada, avaliada pelo professor, considerando o manual de redação. As normas determinadas estão nos Manuais, assim como estão nos Livros Didáticos, nas gramáticas. Segundo Baldini (1998), por exemplo, os instrumentos gramaticais são praticamente cópias da NGB. O sujeito da escrita é construído, portanto, por e para uma instituição. Não há autonomia. Ele é tomado por regras, determinações e levado a prosseguir por e para elas. Compreendemos, ainda, esse jogo discursivo pela categoria linguística da significação. Nesse sentido, por exemplo, entendemos que Manual é para ser seguido; teoria também, assim como modelo e exercícios remetem também a esse efeito de sentido. Se formos ao dicionário, observaremos esses sentidos. De acordo com o dicionário Aurélio (online), por exemplo, temos:

108 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


1.Teoria: conjunto de princípios fundamentais de uma arte ou ciência (paráfrase). 2.Manual: livro, guia que mostra noções para alcançar algo (paráfrase). 3.Modelo: “1 - Imagem, desenho ou objeto que serve para ser imitado (desenhando ou esculpindo).

2 - Molde, exemplar”(Aurélio online).

4.Exercícios: atividades que se pratica para aprimorar algo estabelecido (paráfrase). (https://dicionariodoaurelio.com/) O livro traz essas palavras com significações de dicionário. Destarte, todos esses exemplos trazem efeitos de sentidos que fazem parte da FD. gramatical normativa e da FD. jurídica, onde modelos, exercícios, isto é, processos que visam a repetição do mesmo sem nenhum tipo de reflexão são evidenciados. É posto, determinado os passos e apenas devem ser seguidos. Na folha de apresentação, destacamos os seguintes enunciados: (3) “[...] aspectos visuais do texto [...]” (4) “[...] fazer uma boa redação [...]” A partir dessas expressões representadas nas Sequências discursivas (3) e (4), percebemos o discurso do texto enquanto começo, meio e fim; enquanto material concreto, visível (“aspecto visual”). E, por conseguinte, o adjetivo “boa” aponta para o discurso positivo quanto a essa estrutura. Por antonímia, temos: “má redação”. Uma boa redação tem que seguir a estrutura, os passos apresentados no livro, isto é, tem que seguir um Modelo. Novamente o discurso do normativo, do estudo linguístico tradicional, baseado em modelos, exercícios, normas, estrutura a ser seguida etc e o discurso jurídico, que impõe, determina passos, normas. Apesar do discurso do novo aparecer, pela condição de produção e por ditos bem marcados, por meio de termos como “Atualizada” e “novo”, como vimos na sequência discursiva (1), a formação discursiva normativa prevalece, junto à instância ideológica do jurídico. A heterogeneidade marcada (através dos termos destacados) dá acesso a esses sentidos, como de fato AuthierRevuz (1990) aponta. (5) “Aqui estão o seu e o nosso esforço na direção do sucesso, pois a única coisa que desejamos é o seu êxito, que depende de vontade, esforço e dedicação que, juntos, colocarão a alegria da vitória ao seu alcance”. Essa Sequência discursiva (5) traz um discurso mais íntimo. Discurso do sucesso, do mérito. Demonstra proximidade com o leitor. Relação entre o eu e o outro de forma explícita, trazendo também, de forma não-marcada, o discurso mercadológico. O uso de expressões linguísticas, como os pronomes possessivos “seu”, “nosso” e a escrita do enunciado em primeira pessoa (“desejamos”) marcam uma aproximação maior entre o escritor e o leitor. Há o discurso religioso também. Ao usar o substantivo “vitória”, o religioso entra no enunciado. Nesse sentido, a moral e a religiosidade também influenciam na construção do sujeito escritor. Segundo Nunes (2003), “o modelo de interpretação esboçado na escola brasileira coloca em jogo uma ‘lógica’ da gramática, ao mesmo tempo em que ocorre a intervenção de elementos de uma prática retórica religiosa que se constitui desde os tempos coloniais” (p.30). Ainda podemos perceber o sujeito da escrita constituído num espaço econômico. Por isso, a presença de termos que levam a um discurso mais íntimo com o leitor, pois é especificidade da venda a aproximação com o consumidor. Logo, o sujeito da escrita também está no mercado, escreve-se para vender, para obter lucro, capital, status, reconhecimento. O sujeito construído pela ideologia capitalista também.

109 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Nesse sentido, a autonomia do sujeito escritor é apagada. O outro, ou melhor, outros são deslocados pela língua. O sujeito é, portanto, constituído de movimentos de formações discursivas em embates, em jogos. Ora prevalece o jurídico, ora o normativo, ora o linguista, ora o político, ora o econômico, ora o religioso... Considerações finais Desse modo, o sujeito da escrita é significado pelo discurso do normativo, do jurídico, do religioso, do econômico. Podemos dizer que é presente na construção do sujeito da escrita a instância ideológica normativa, a jurídica, a religiosa, a econômica. O normativo da língua surge com a gramatização da língua portuguesa no/do Brasil, processo de documentação linguística, do fazer gramáticas, uma vez que esse processo justamente tem o objetivo de unificar, homogeneizar a língua portuguesa, isto é, criar um padrão (determinado e a ser determinado) (AUROUX, 1992). Por conseguinte, com o surgimento da NGB, esse discurso cresce e perdura até hoje, ainda que tenham surgidos diversos estudos linguísticos, nesses últimos anos, com outro discurso. O discurso gramatical normativo está sempre nos não-ditos. Contudo, como afirma Orlandi (2012), é ao tentar não dizer/ encobrir, que se diz, visto que a marca, o dito é espaço para outros dizeres de outros alhures. Como afirma Authier-Revuz (1990), é a heterogeneidade marcada (o dito) apontando para a heterogeneidade constitutiva do discurso (“o não-dito”). Quanto às formações discursivas, elas aparecem em confronto, em sustentação, em gradação etc, como afirma Orlandi (2012): “É preciso, no entanto, ressaltar que a relação entre as diferentes formações discursivas no texto podem ser de muitas e diferentes naturezas: de confronto, de sustentação mútua, de exclusão, de neutralidade aparente, de gradação etc” (ORLANDI, 2012, p.76).

Nesse sentido, as formações discursivas do normativo e do linguístico estão em confronto, num embate discursivo em que, pela análise, vemos o normativo prevalecer, apesar de explicitar-se (no dito) o contrário. Compreendemos, portanto, as FD. do jurídico e do normativo sustentadas mutuamente, baseadas em leis bem determinadas e regidas. As FD. do religioso e do econômico também estão em jogo. Ambas se sustentam e o político sustenta todas as outras formações. A instância ideológica política prevalece, como base da constituição do sujeito. Uma base, contudo, que é carregada de outras instâncias ideológicas, e, nesse sentido, a instância ideológica normativa prevalece como dominante na construção do sujeito da escrita. “No entanto, como há a vocação totalizante do sujeito (autor), estabelece-se uma relação de dominância de uma formação discursiva sobre as outras, na constituição do texto” (ORLANDI, 2012, p.79). Percebemos, desse modo, a partir dessas análises, um sujeito escrita interpelado por várias formações discursivas, cada uma inscrita numa dada ideologia, o que configura o modo de produção do objeto, afetando a significação do sujeito da escrita. O sujeito é fragmentado, dividido, justamente por está ‘inscrito’ em diversas formações discursivas, mas a instância normativa prevalece. E é essa instância ideológica que perpassa o ensino desde os tempos remotos aos dias de hoje. Por essa reflexão, entendemos porque o ensino é como é, uma vez que ele é pautado por materiais (Livros, Manuais), os quais são constituídos numa condição de produção em que o sujeito é afetado pela ideologia normativa de forma preponderante. Referências ALTHUSSER, L. P. Aparelhos ideológicos de Estado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998. AUROUX, S. A escrita. In: A Filosofia da Linguagem. Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1998. __________. A Revolução tecnológica da Gramatização. Trad. Eni Orlandi. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992. AUTHIER-REVUZ, J. “Heterogeneidade(s) enunciativa(s).” In: Cadernos de estudos linguísticos, Campinas, UNICAMP – IEL, n. 19, jul./dez.,1990. GUIMARÃES, E. Texto e enunciação. In: Revista Organon, Porto Alegre/RS, UFRGS, v.9, n.23, 1995. LIMA, A. O. Manual de Redação Oficial: teoria, modelo e exercícios. Rio de Janeiro: Elsevier, 3ª ed., 2010. 110 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


MACHADO, B. e MELO, R. Psicanálise e linguagem: os sentidos e as suas bordas. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ileel/artigos/artigo_148.pdf. Acesso em: 03.11.2016. ORLANDI, E. Análise de discurso: Princípios e Procedimentos. 2. ed.Campinas: Pontes, 2012. __________. Os Efeitos da Leitura na Relação Discurso/Texto. In: Discurso e Texto: formulação e circulação de sentidos. Campinas/SP: Ed. Pontes, 2008. __________. Texto e Discurso. In: Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996. PÊCHEUX, M. “Análise do discurso: três épocas” (1983). In: GADET, F. et HAK, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Ed. Unicamp, 1990, p. 311-318. Dicionário Aurélio Online. Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/. Acesso em: 12/11/2016.

Anexos Anexo 1: capa do Manual de escrita analisado.

111 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Anexo 2: Orelha do Manual de escrita analisado.

112 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Anexo 3: Folha de apresentação do Manual de escrita analisado.

113 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Anexo 4: Folha de apresentação do Manual de escrita analisado.

114 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


DIFERENÇAS CONSTITUTIVAS DO SUJEITO-LEITOR Claudiana dos Santos1 Edilene Oliveira da Silva2 RESUMO A leitura se constitui como um gesto de interpretação, por sua vez, já marcados pela história e pela ideologia (ORLANDI, 1996). Em decorrência disso, realizamos um estudo acerca do sujeito-leitor, a princípio na Base Nacional Comum Curricular, observando-se as relações de sentido com outros referenciais do ensino. Procura-se estudar o sujeito, as ideologias e o interdiscurso através de postulados da Análise de Discurso de linha francesa. Buscou-se analisar a relevância das reformas das estruturas curriculares e os reflexos dessas mudanças na formação de leitores. Dentre os vários aspectos apresentados, a leitura foi abordada como prática discursiva e constitutiva das marcas do Outro, atravessado por um dizer que possibilita o deslizamento de sentidos provenientes do contexto histórico e ideológico. Palavras-chave: Leitura discursiva; Análise de discurso; Sujeito.

Introdução

N

o ensino brasileiro há uma constante preocupação com a organização das estruturas curriculares, com isso, a integração de crianças, jovens e adultos ao mundo contemporâneo, bem como às dimensões fundamentais da cidadania e do trabalho é um assunto de fundamental importância. Devido às mudanças constantes em nível político e econômico do Brasil, entende-se que é emergente repensar as reformas curriculares que orientam os diferentes níveis de ensino. Ao discorrer sobre currículo, somos direcionados ao mais novo documento que visa sistematizar os currículos da educação básica no território brasileiro, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O primeiro passo para a elaboração deste documento decorre das instâncias jurídicas, tendo em vista que a Constituição Brasileira de 1988 em seu artigo 210 prevê a criação de uma grade de conteúdos fixos a serem estudados no ensino fundamental. Em contrapartida, é preciso realizar uma reflexão acerca da denominação do documento que norteia e embasa este artigo. A nomenclatura do documento é Base Nacional Comum Curricular, chamaremos de BNCC. Percebe-se que há uma significação que fala antes e em outro lugar, no sentido de que algo que é basilar, é nacional e conserva em si o sentido de comum, conhecido por todos os brasileiros. Esse caráter de universalidade também transmite sentidos outros que não podem ser considerados como evidentes, há um sentido que não é tão transparente quanto parece ser. De acordo com Orlandi (2005), o fato é que há um jádito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer, é fundamental para se compreender o funcionamento do discurso, a sua reação com os sujeitos e com a ideologia. A observação do interdiscurso nos permite remeter o dizer da faixa a toda uma filiação de dizeres, a uma memória, e a identificá-lo em sua historicidade, em sua significância, mostrando seus compromissos políticos e ideológicos. (ORLANDI, 2005, p.32). Sabe-se que a organização curricular das escolas brasileiras está submetida ao aparato governamental. É sabido que existem outros documentos que antecedem a BNCC, a exemplo das Diretrizes Curriculares Nacionais e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para os ensinos fundamental e médio. Sendo assim, neste artigo busca-se salientar e explicar a partir de que ângulo, a leitura, em especial a formação do sujeito-leitor tem sido tratada e enunciada nestes documentos. Caberá a esta análise aprofundar

1

Mestranda em Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Sergipe. Aracaju-SE. Endereço eletrônico: clauportugues10@hotmail.com 2 Mestranda em Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Sergipe. Aracaju-SE. Endereço eletrônico: edileneoliver@live.com 115 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


tais ponderações a partir de pesquisas em sites governamentais, a exemplo do Ministério da Educação e outros portais que atendam a esta demanda. Em AD o estudo da língua se materializa a partir do discurso, sendo assim, pressupõe um sujeito que enuncia não na sua individualidade, e sim afetado pelo inconsciente e pela ideologia. Nessa perspectiva, na prática da leitura, o sujeito-leitor vai ocupar uma posição-sujeito em relação àquela ocupada pelo sujeito-autor, identificando-se ou não com ele. A leitura constitui-se, então, como momento crítico de uma relação entre autor / texto / leitor; e a interpretação é possível porque há o outro na sociedade e na história. É com esse Outro que se estabelece uma relação de ligação, de identificação ou de transferência que possibilita a interpretação (PÊCHEUX, 1990, p. 54). Sendo assim, a Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando (ORLANDI, 2007, p. 15). Nesse artigo o corpus de análise é um conjunto de sequências discursivas recortadas da BNCC, além disso, sustentamos a fundamentação teórica- metodológica na análise de discurso de linha francesa, a partir das contribuições teóricas de Pêcheux, Eni Orlandi, Eduardo Guimarães e Freda Indursky. Abordagem discursiva Estudar a língua na perspectiva da análise de discurso de linha francesa é considerar os esforços empreendidos por Pêcheux ao estudar o funcionamento dos discursos. A partir da propagação dos estudos linguísticos percebe-se que houve um deslocamento da forma de se estudar a língua, antes compreendida pelo viés dicotômico. Esse deslocamento propiciou uma nova forma de compreender os fenômenos linguísticos, em especial aqueles que consideram a existência de fatores externos à língua. Cabe a esta seção destacar que os estudos de Benveniste e Bakhtin foram primordiais para trazer um novo objeto de estudo ao cenário linguístico. Segundo Brandão ( 2004) , para Bakhtin a palavra signo é ideológica por excelência; pois produto da interação social, ela é lugar privilegiado para a propagação da ideologia, logo, a linguagem deixa de ser encarada como uma entidade abstrata e passa a ceder lugar para o discurso, sendo este o lugar em que a ideologia se manifesta concretamente. Com a abordagem do discurso no centro dos estudos linguísticos, surge o lugar propício para relacionar os elementos linguísticos aos extralinguísticos. O fato de a AD tomar uma unidade de análise maior do que a frase fez com que o estudo do "texto" passasse a ocupar lugar central nos estudos linguísticos. Sendo assim, é possível analisar a materialidade textual sob um viés que ultrapassa a superficialidade linguística; Através da análise de Discurso emergem novas formas de realizar uma análise dos elementos exteriores à língua, mas constitutivos dos sentidos que circulam nos enunciados linguísticos. Segundo Indursky (1998, p.112-13), o sujeito da linguística não passa de um lugar na estrutura da frase. A formulação de conceitos que individualizam as ações linguísticas é derivada dos estudos dicotômicos propostos por Saussure, criou-se uma língua independente do sujeito enunciador, dissociada do históricosocial. Já em AD, a materialização da língua pressupõe um sujeito que enuncia não na sua individualidade, e sim afetado pelo inconsciente e pela ideologia. É um sistema “pensado” no funcionamento da língua, com homens falando no mundo (ORLANDI, 2001, p. 40). A partir dessa reflexão, consideramos que no âmbito da educação brasileira delimitou-se um espaço para discussões acerca da melhoria do ensino de leitura, através de documentos que se instituem como referenciais para a melhoria do ensino de leitura no Brasil.

116 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A base nacional comum curricular e o sujeito-leitor Entende-se a Base Nacional Comum Curricular como um documento que apresenta os Direitos e Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento que devem orientar a elaboração de currículos para as diferentes etapas de escolarização. A partir da análise do segmento que trata do ensino de língua portuguesa no ensino médio, algumas sequências discursivas foram analisadas. Em consonância com os princípios teóricos da AD, o analista não procura desvendar as verdades ocultas presentes em um texto, o que se busca é compreender o dito/ não dito, por intermédio dos diferentes gestos de interpretação. Pretende-se compreender como se dá a constituição do sujeito-leitor, a partir de considerações tecidas na 2° versão da BNCC, especificamente na seção que trata do ensino de língua portuguesa e suas especificidades acerca da leitura no ensino médio. Observaremos como o discurso governamental rediz o que é preconizado em outros documentos oficiais, logo, será possível observar o funcionamento do interdiscurso, tendo em vista que o discurso o observatório das relações entre língua e ideologia. A leitura da BNCC retoma sentidos existentes na esfera do interdiscurso, sabe-se que na AD, o objeto de estudo é o discurso, mas o texto é a unidade de análise. Segundo Orlandi ( 2005), a análise do discurso nos coloca numa situação de reflexão, não somos conscientes de tudo e, portanto, nos permite uma relação menos ingênua com a linguagem. Sabe-se que em todo o dizer há um já dito, ou seja, em todo o discurso está presente o interdiscurso. É a partir desse pressuposto que analisaremos a seção- A língua portuguesa no ensino médio- através das marcas linguísticas apreenderemos como o sujeito-leitor é concebido na 2° versão da BNCC. Tendo em vista que este documento ainda está em processo de aprovação, esclarecemos que a Análise de discurso de linha francesa não procura encontrar o sentido oculto dos textos, uma vez que não acredita que ele exista. Pretende-se observar como cada sentido se constitui em cada formação discursiva. O documento se instaura enquanto uma extensão dos documentos norteadores do ensino, na educação básica. Caberá ao analista encontrar as pistas que nos leve a entender como o sujeito-leitor é delineado, visto que há um fomento para a formação de leitores proficientes que assumam a interpretação do que foi lido, sendo assim, esse sujeito está inserido em uma formação discursiva, inserido na história. Conforme Orlandi (2008): (...) Se temos, de um lado, a função-autor como unidade de sentido formulado, em função de uma imagem de leitor virtual, temos, de outro, o efeito-leitor como unidade (imaginária) de um sentido lido. Tanto a função-autor como o efeito-leitor atestam que no discurso o que existem são efeitos de sentidos variados, dispersos, descontínuos, sendo sua unidade de construção imaginária (onde intervêm a ideologia e o inconsciente). Vale assim dizer que o efeito-leitor é uma função do sujeito como a função-autor. É um efeito porque resulta desses confrontos. (ORLANDI, 2008, p. 65-66)

Nesse documento, os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento de Língua Portuguesa no Ensino Médio estão organizados, como no Ensino Fundamental, em quatro eixos: oralidade, leitura, escrita e conhecimentos sobre a língua e sobre a norma padrão. Orlandi (1999) reforça a questão da presença de múltiplos sentidos no texto. Segundo ela, os textos “não são documentos que ilustram ideias pré-concebidas, mas monumentos nos quais se inscrevem as múltiplas possibilidades de leituras” (p.64). Dessa maneira, percebe-se que os gestos de leitura empreendidos nesta análise não são organizados de forma estanques, se considera que há um sujeito atravessado pela história e pela ideologia, há também as condições de produção desse discurso, as quais compreendem fundamentalmente os sujeitos e as situações, tais condições são aqui consideradas como pertencentes a um contexto amplo, que deriva da forma como nossa sociedade considera a institucionalização do saber, a partir de uma memória que quando pensada em relação ao discurso, é tratada como interdiscurso. Sendo assim, Pêcheux (1999) afirma que: A memória discursiva seria aquilo que, em face de um texto que surge como acontecimento a ser lido, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados

117 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível (Pêcheux, 1999, p. 52).

Em decorrência dessas circunstâncias de enunciação coube neste trabalho fazer as análises acerca de como a BNCC considera o sujeito-leitor. Para isso é relevante entender o contexto amplo, no qual a importância do estímulo à leitura se insere. De acordo com pesquisas realizadas em sites governamentais, o MEC disponibilizou cerca de R$ 61,7 milhões para compra de obras literárias e livros didáticos, os quais serão distribuídos a escolas públicas de ensino fundamental e médio. Tais investimentos, não surgem por acaso, é válido registrar que o governo federal a partir da década de 1970 iniciou, por intermédio do Instituto Nacional do Livro, projetos de financiamento de obras literárias. Enquanto isso, a década de 1990 foi instituído o PROLER (Programa Nacional de Incentivo à Leitura) que tem como objetivo coordenar, disseminar, articular, ouvir as propostas, as ideias para a dinamização de experiências na área da leitura, realizadas nas diversas regiões do País. Em 1997, o Ministério da Educação, em parceria com a Secretaria de Ensino Fundamental (SEF) criou o Plano Nacional de Biblioteca Escolar (PNBE) com a intenção de prover recursos diversificados para a promoção da leitura no Ensino Fundamental. Em 2001 o MEC e a SEF criaram o Programa “Literatura em Minha Casa” com o objetivo de integrar nas práticas de leitura a escola e a família. Conhecendo essa realidade antecessora buscaremos apresentar a que tipo de leitor a BNCC se refere, como esse sujeito é significado, por isso, faz-se necessário ressaltar o que nos diz Pêcheux acerca do sentido da palavra: [...] o sentido de uma palavra não existe em si mesmo (isto é, em relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras são produzidas (isto é, reproduzidas). (PÊCHEUX, 1997, 160)

A partir dessa noção que somos levados a realizar um trabalho de leitura e compreensão do objeto em questão. Temos as seguintes sequências retiradas do texto da BNCC, especificamente na seção que trata do ensino de língua portuguesa, no ensino médio: SD(1): “A reflexão sobre essas escolhas e estratégias deve fazer parte das práticas de leitura que formam um

leitor literário. Trata-se de formar um leitor mais ativo, menos ingênuo ao percorrer o texto literário”. (p.508) SD(2): “Importa despertar no jovem o interesse pela leitura literária, possibilitar a descoberta de modos de ser tocado por um texto, escrito, às vezes, há tanto tempo, mas que evoca questões e novos olhares para o presente”. SD(3): “O documento, embora não nomeie os autores a serem lidos, indica critérios que orientam as escolhas de leitura no Ensino Médio, começando pelos autores contemporâneos e seguindo para autores da nossa tradição literária”. (p.508) A partir dessas enunciações, delineia-se um ensino de leitura que privilegia a prática da leitura no ensino médio através de obras consagradas, pois estas foram escritas por autores da tradição literária, é previsto o uso de obras contemporâneas também, mas não cabe a este trabalho descrever o dito apenas na superfície textual. Pretende-se aqui, discutir como a leitura é enunciada neste documento. Segundo Guimarães: A enunciação é um acontecimento de linguagem perpassado pelo interdiscurso, que se dá como espaço de memória no acontecimento. É um acontecimento que se dá porque a língua funciona ao ser afetado pelo interdiscurso. Ou seja, a língua funciona na medida em que um indivíduo ocupa uma posição de sujeito no discurso, e isso, por si só, põe a língua em funcionamento, por afetá-la pelo interdiscurso. A enunciação, deste modo, não diz respeito à situação. E, por ser assim afetada

118 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


pelo interdiscurso, a enunciação não é homogênea, é uma dispersão que a relação com o interdiscurso produz. (GUIMARÃES, 1995, p.66-67)

Dizer que a leitura é basilar para o desenvolvimento crítico do aluno, retoma outros discursos que são enunciados no cenário da educação. Observa-se que o leitor consagrado, é aquele que embasa suas leituras em obras literárias, é uma questão que evoca também a importância da autoria. Na BNCC se prevê a aprendizagem da língua e da norma padrão através das capacidades de leitura, escrita e oralidade. Ler, escreve Indursky (2001), “é mergulhar em uma teia discursiva invisível construída de já-ditos para desestruturar o texto e (re)construí-lo, segundo os saberes da posição-sujeito em que se inscreve o sujeito-leitor”. Podem decorrer questões concernentes ao texto e ao modo como o ensino de língua portuguesa tem sido moldado. A leitura não pode ser vista como um ato desvinculado das práticas sociais e, portanto deve-se considerar os diferentes efeitos de sentido resultantes da formação desse sujeito-leitor. A partir da análise desses fragmentos retirados da Base Nacional Comum Curricular, o sujeito leitor é significado como o leitor de obras literárias, assim as práticas de leitura auxiliam as de escrita e possibilitam a formação de um leitor menos ingênuo ao percorrer o texto literário, todavia, não devemos esquecer que estamos sujeitos à linguagem, a seus equívocos e sua opacidade. Os discursos são todos administrados, assim como também os sentidos são obtidos a partir das posições que os sujeitos ocupam, a ideologia afeta o dito e possibilita que o analista extraia o não-dito de sequências enunciativas que apresentam certa “transparência nas palavras”. Os conteúdos que compõem a Base Comum Curricular Nacional não foram escolhidos aleatoriamente, consideramos o movimento de diferentes formações discursivas. É nessa perspectiva que observaremos como é formulado o discurso de constituição do sujeito-leitor. Pêcheux (1975) afirma também que toda formação discursiva deriva de condições de produção específicas. Ele considera que a noção de ideologia é essencial para o desenvolvimento do conceito de Formação Discursiva. (BRANDÃO, 1998, p. 38). Uma das formas pela qual a instância ideológica funciona é a da interpelação ou assujeitamento do sujeito ideológico. Essa interpelação ideológica consiste em fazer com que cada indivíduo tenha a impressão de que é senhor de sua própria vontade) seja levado a ocupar seu lugar em um dos grupos ou classes de uma determinada formação social. As classes sociais, assim constituídas, mantêm relações que são reproduzidas continuamente e garantidas materialmente pelo o que Althusser denominou de AIE. (BRANDÃO,1998, p.46- 47)

É da Escola que se espera a formação e o incentivo de “bons leitores”, todavia o dizer de leitor está condicionada nessa materialidade da BNCC como o lugar do leitor literário. Outrossim, destaca-se que há outras demandas de leituras, tendo em vista que novas modalidades e ferramentas de leitura aparecem junto a esse “universo da tecnologia”, dessa forma, é preciso identificar que as vozes que apontam para esse leitor literário ainda estão condicionadas a uma formação discursiva da institucionalização do saber. Seguem as seguintes sequências: SD (4): “O ensino da Língua Portuguesa na Educação Básica deve proporcionar aos/às estudantes experiências que ampliem suas ações de linguagem, contribuindo para o desenvolvimento do letramento, entendido como uma condição que permite ler e escrever em diversas situações pessoais, sociais e escolares”. (87) SD (5): “A escola precisa, assim, comprometer-se com essa variedade de linguagens que se apresenta na TV, nos meios digitais, na imprensa, em livros didáticos e de literatura e outros suportes, tomando-as objetos de estudo a que os estudantes têm direito”. (p.87) Com essa ilustração de sequências discursivas identificamos expressões como contribuir, comprometer, desenvolver, as quais caracterizam a escola como propiciadora dessas experiências. Pretende-se ampliar as diferentes situações de enunciação tendo como ponto de partida o incentivo à leitura, 119 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


contribuindo para a prática do letramento. A linguagem vista em sua multiplicidade, já identificamos a constituição de um sujeito-leitor que precisa conhecer as várias linguagens. É o lugar desse leitor que está em jogo, sendo assim cabe ao professor seguir as “ novas diretrizes” estabelecidas pela BASE Nacional Comum Curricular. E nessa busca identificamos discursos contraditórios que se constroem pelo embate ideológico, próprio dessa formação discursiva. Considerações finais Este trabalho teve por objetivo discutir a posição do sujeito-leitor a partir da 2° versão da Base Nacional Comum Curricular, a partir das contribuições da Análise de discurso de linha Francesa. Demonstramos que há uma incessante preocupação da reformulação da estrutura curricular, o que demanda uma série de mudanças na forma como o sujeito leitor é significado. A partir de algumas sequências analisadas na BNCC, compreendemos a instauração de um leitor que é constituído em um lugar conhecido, o clássico, leitor literário. Da mesma maneira é a partir da prática da leitura que se preenche o espaço destinado ao sujeitoleitor. Salientamos que, como toda prática discursiva (social), a leitura é sujeita à instabilidade, à mudança e à historicidade. Tendo em vista que o sujeito e o sentido se constituem simultaneamente, na articulação da língua com a história, cabe ao sujeito-leitor ressignificar as diferenças encontradas no delinear de um amplo lugar, que é a linguagem, com seu funcionamento perpassado pela ideologia. Tendo em vista a amplitude do material selecionado como corpus para essa análise e a noção de que o espaço do dizer não é limitado, seguiremos com outras leituras e novos gestos de interpretação acerca dessa materialidade. Referências bibliográficas. INDURSKY, Freda. Da heterogeneidade do discurso à heterogeneidade do texto e suas implicações no processo da leitura. In: ERNST-PEREIRA, Aracy; FUNCK, Susana Bornéo (Org.). A leitura e a escrita como práticas discursivas. Pelotas: Educat, 2001. ___________ INDURSKY, Freda. O sujeito e as feridas narcísicas dos lingüistas. Gragoatá, Niterói, RJ: EdUFF, n. 5, 1998 Base Nacional Comum Curricular, 2ª versão – 2016. Disponível em <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/>acesso 19 de janeiro de 2017. Ministério da Educação e Cultura (MEC). Portal Brasil-Educação. Disponível em:<http://www.brasil.gov.br/educacao/2016/12/mec-destina-r-61-7-milhoes-para-compra-de-livros> Acesso em 08 de dezembro de 2016. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2007. ______. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. 2. ed. Campinas: Pontes, 2005. ______.Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996. ______. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 2008. GUIMARÃES, Eduardo. Texto e enunciação. Organon, v. 9, n. 23, 1995. HELENA, H. Nagamine Brandão. Introdução à Análise do Discurso, Campinas, SP: Editora da Unicamp,1998. PÊCHEUX, M. A análise de discurso: três épocas (1983). In:T. HAK:F. GADET. Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 4 Ed. São Paulo: Editora da Unicamp, 2010. p. 311-318. _______.Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et all. Papel da memória. Trad. e intr. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-57. ______. O discurso: estrutura ou acontecimento? Trad. Eni P. Orlandi. 5. ed. Campinas, SP: Pontes Editora, 2008. 120 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni P. Orlandi [et al.]. 3. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. SOARES, I. G. Políticas sociais de leitura no Brasil: os discursos do PROLER e PRÓ-LEITURA. 2000. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual de Minas Gerais, Minas Gerais, 2000.

121 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


INTERFERÊNCIA IDEOLÓGICA: UMA ANÁLISE ENSINO FUNDAMENTAL1

A PARTIR DOS RELATOS DE PROFESSORAS DOS ANOS INICIAIS DO

Ruth Ramos Roland2 Hilda Maria Martins Bandeira3 RESUMO O presente artigo é parte integrante do Trabalho de Conclusão de Curso, desenvolvido no ano de 2016 e que investigou a concepção de ideologia de três professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, sob orientação da Profª Drª Hilda Maria Martins Bandeira. O artigo tem por objetivo interpretar a compreensão de ideologia das professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental e sua influência no contexto educacional em que atuam. O trabalho está fundamentado nas discussões de Severino (1986), Marx e Engels (1991), Chauí (1994), Mészáros (2011, 2014) dentre outros. Os resultados mostraram que a compreensão de ideologia das professoras se firma em uma visão idealista, influenciando o modo como as mesmas interpretam o contexto educacional em que atuam. Ressaltamos a necessidade de uma sólida formação crítica-filosófica para que as interferências ideológicas sejam identificadas no âmbito educacional, pois o trabalho mostrou que as professoras que participaram da pesquisa restringem a compreensão de ideologia na busca e na apropriação das ideias. Portanto, houve predominância do nível de concepção descritiva de ideologia das professoras em relação aos níveis de concepção circunscrita e transformadora. Palavras-chave: Educação; Ideologia; Professores dos Anos Iniciais; Concepção.

Introdução

O

presente artigo é resultado da pesquisa realizada no Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “A concepção de ideologia de professores do ensino fundamental dos anos iniciais de uma escola pública de Teresina-PI”, este foi apresentado em julho de 2016 na Universidade Federal do Piauí, não só como requisito para obtenção do grau de licenciada, como também se apresentou como oportunidade de crescimento e desenvolvimento intelectual, além de permitir nos reconhecermos enquanto pesquisadores, que identificam as interferências ideológicas na realidade social. O artigo tem por objetivo interpretar a compreensão de ideologia das professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental e sua influência no contexto educacional em que atuam, mostrando que a compreensão de ideologia das professoras está diretamente relacionada com as interpretações da mesma a respeito do contexto educacional em que estão inseridas. Para alcance do objetivo proposto no artigo, buscamos responder a questão norteadora: Como a compreensão de ideologia de professoras influência o contexto educacional? A presente pesquisa é de abordagem qualitativa, pois, por meio dessa abordagem, compreendemos que os fenômenos não são neutros, mas são carregados de significações. A abordagem qualitativa permite que o pesquisador tente descrever a complexidade dos fatos, analisando, assim, a interação entre as variáveis para interpretar os dados, fatos e teorias. O campo em que se realizou a presente pesquisa foi uma escola pública municipal, localizada no bairro Marquês, zona Norte do município Teresina. Assim, para este estudo, contamos com a participação de três professoras que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental na referida escola.

1

Trabalho apresentado no GT Discurso e Ideologia do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduada em Pedagogia Pela Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: ruthrroland@hotmail.com 3 Doutora em Educação e professora Adjunta da Universidade Federal do Piauí. (UFPI). Endereço eletrônico: hildabandeira@ufpi.edu.br 122 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Para compreensão do tema apresentado, nos embasamos em autores como Marx e Engels (1991), Chauí (1994), Severino (1986), entre outros. Os estudos, bem como a empiria possibilitaram a criação da categoria ideologia como senso comum, idealista e crítica. Os estudos dos autores já mencionados e da empiria produzida mostraram que a formação política e filosófica do educador é primordial para que este identifique os fenômenos ideológicos no âmbito educacional, pois as professoras que participaram da pesquisa não privilegiam a ideologia em um viés crítico, em que há a possibilidade de transformação da realidade social e educacional. Diante das informações descritas e para melhor apresentação dos conhecimentos aqui expostos, este artigo está organizado em cinco partes, introdução, onde apresentamos a pesquisa, revisão de literatura, dividida em dois tópicos, onde discorremos a respeito da categoria ideologia e sua relação com o contexto educacional, discussão dos resultados, onde trazemos a discussão e interpretação dos dados da pesquisa, e por fim, a conclusão. A seguir, apresentamos a revisão de literatura, que está organizada em duas partes: “O que é ideologia”, trazendo a compreensão da categoria de modo geral, bem como a visão adotada neste trabalho, e “Ideologia e Educação”, na qual apresentamos como a categoria em estudo se relaciona ao contexto educacional. O que é ideologia Na presente seção, apresentamos a explicação do conceito de ideologia recorrendo a alguns pensadores. Nesse processo, nos deparamos com uma vasta quantidade de visões de ideologia, que nos levou a fazer algumas escolhas. Os estudos e discussões sobre ideologia se estenderam ao longo dos anos ampliando-se para todos os campos do pensamento e da atividade humana. Como uma categoria que se estendeu para todos os campos do pensamento humano, é que se faz necessário o estudo da ideologia, neste caso, em nosso campo de atuação profissional, o educacional, pois a ideologia influencia as ações do homem nas diferentes situações sociais. Por meio de um processo ideológico, os homens reproduzem as ideias e práticas dominantes como algo natural. Sendo assim, faz-se necessário conhecer como surgiu o termo ideologia e os principais conceitos, pois, o termo recebeu diferentes significações sendo usado em múltiplos sentidos até hoje. (WERNECK, 1982). Em sua história, o termo Ideologia é citado primeiramente por Destutt de Tracy, em seu livro Elementos de Ideologia, no ano de 1801, sendo considerada a ciência das ideias, em um sentido geral e apresentava-se como uma disciplina filosófica, servindo de base para todas as ciências que tivessem como objeto o estudo das ideias e das sensações. Além disso, para Destutt de Tracy, a função da ideologia seria indicar "as origens, os limites e o grau de exatidão dos conhecimentos do homem, a ideologia seria o verdadeiro método de conhecimento” (WERNECK, 1982). Em sua história, o termo Ideologia é citado primeiramente por Destutt de Tracy, sendo considerada a ciência das ideias, em um sentido geral e apresentava-se como uma disciplina filosófica, servindo de base para todas as ciências que tivessem como objeto o estudo das ideias e das sensações. Além disso, para Destutt de Tracy, a função da ideologia seria indicar "as origens, os limites e o grau de exatidão dos conhecimentos do homem, a ideologia seria o verdadeiro método de conhecimento” (WERNECK, 1982). Temos no marxismo o estudo sistematizado da questão ideológica, caracterizando a abordagem de Marx como abordagem clássica do tema (SEVERINO, 1986). Marx, em sua obra “A Ideologia Alemã”, realiza uma análise sobre o processo da divisão social do trabalho (MARX; ENGELS, 1991). Ao analisar a sociedade alemã, os autores mostram que “todas as formas de pensamento e de representação, elaboradas pela consciência humana [...] dependem diretamente das relações de produção e de trabalho [...]” (SEVERINO, 1986, p.7). Dessa forma coube a filosofia marxista a conquista fundamental e significativa nesse processo. Podemos dizer que a ideologia, segundo a perspectiva marxista, é o uso da atividade pensante como recurso de domínio (SEVERINO, 1986). 123 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Desse modo, neste trabalho ideologia é compreendida de acordo com Afanasiev (1968, p. 373), quando afirma que “ideologia é o conjunto de opiniões políticas, jurídicas, morais, artísticas e outras de uma determinada classe”. Através desse sistema de opiniões as classes expressam e fundamentam sua opinião na sociedade no intuito de defender seus interesses e alcançar os objetivos a que se coloca. Desse modo, não é possível que na sociedade dividida em classes como vivemos, haja apenas uma única ideologia, no entanto se faz necessário que as ideologias sejam observadas de modo concreto e histórico para que se vejam os interesses de qual classe ela expressa (AFANASIEV, 1968). Ideologia e educação Nesta parte apresentamos alguns aspectos da influência ideológica no contexto educacional, pois de maneira mais sutil as ideologias apresentam-se na educação, por esse motivo, por vezes a escola ou o pensamento pedagógico foi e ainda é visto como lugar de neutralidade, que apenas transmite conteúdos, sem, no entanto interferir ideologicamente, no conteúdo daquilo que ensina. Para explicitar a relação existente acima elencada, nos apoiamos em Severino (1986), para fazer um retrospecto de como a ideologia foi perspectivada no âmbito educacional. Sabemos que a educação é uma prática sócio-histórica e concreta, “é então um processo sócio-cultural que se dá na história de uma determinada sociedade, envolvendo comportamentos sociais, costumes, instituições, atividades culturais, organizações burocrático-administrativas” (SEVERINO, 1986, p. 54). Através do exposto e do estudo das ideologias, não parece haver uma relação clara entre ideologia e educação, já que tal categoria apareceu sempre ligada a um contexto eminentemente político-econômico-social. Isto decorre do entendimento de que a prática educacional não está vinculada a um processo políticoeconômico-social mais amplo, desse modo o pensamento pedagógico dedicava-se mais em buscar a eficiência e eficácia naquilo que transmitia do que o significado ideológico que carregava a educação. Após o século XIX, começa a ocorrer uma transformação, ainda que tímida, dessa visão da educação como espaço de neutralidade ideológica, e alguns pensadores passam a tratar dessa relação de forma mais direta. A partir de estudos apresentados por Gramsci (1968; 1976; 1978), Althusser (1979), Bordieu (1982), entre outros, a educação passa a ser vista como instrumento de um grupo social, seja ele dominante ou não, para o exercício da hegemonia4 destes grupos. Neste sentido, a educação tem um papel importante na disseminação e reprodução da ideologia de modo a favorecer a consolidação do consenso social preservando assim o bloco dominante (SEVERINO, 1986). Entretanto, a educação também apresenta um papel contra-ideológico de transformação da realidade visando o desenvolvimento de um cidadão crítico. A educação, como qualquer outra atividade humana, não é um processo neutro (SEVERINO, 1986). Por isso carrega características ideológicas e políticas que podem ou não reproduzir as ideias atualmente consolidadas, que não favorecem a reflexão e a crítica. É nesse sentido que apresentamos a importância de que os professores, como agentes da educação, tenham passado por uma sólida formação política e filosófica e que saibam utilizar os conhecimentos científicos, bem como desenvolver uma consciência crítica e reflexiva. As interferências ideológicas, em suas diferentes manifestações, seriam então reconhecidas pelo educador e estes poderiam conduzir suas ações na melhoria da aprendizagem dos alunos e melhoria da educação como um todo. Ao longo dos anos o termo ideologia foi utilizado por vários estudiosos, recebendo conceitos diferenciados e sendo aplicado em diferentes situações sociais e setores da sociedade, inclusive na educação. Como nos afirma Werneck (1982, p. 13): “o termo ideologia recebeu, através dos tempos, variadas acepções, sendo até hoje usado em múltiplos sentidos”. Mesmo sendo caracterizada com diferentes significações, em 4

A partir de leituras em autores estudiosos de Gramsci, hegemonia é entendida como uma ação que atinge não apenas a estrutura econômica e a organização política da sociedade, mas também age sobre o modo de pensar, de conhecer e sobre as orientações ideológicas e culturais. Nesse sentido, é função da educação a compreensão das contradições da realidade no sentido de transformála. (LEITE; SCHLESENER, 2007) 124 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


determinado momento a ideologia foi entendida como modo de conduzir e reafirmar as condições de existência do homem e nesse sentido, as instituições escolares seriam lugar onde se propiciaria a afirmação e reprodução das ideologias. É o que nos mostra Severino (1986, p. 41) quando expressa: [...] “a educação é lugar privilegiado da inculcação ideológica”. Conforme exposto, entendemos que os professores, como agentes da educação, devem possuir conhecimentos necessários sobre as manifestações ideológicas que interferem na educação, e assim atuar de forma crítica na condução de uma educação que tenha um papel contra-ideológico na sociedade, ou seja, uma educação que seja transformadora ao invés de reproduzir as diferenças e reafirmar as ideias sociais dominantes. Nesse sentido, o presente artigo vem interpretar como a compreensão de ideologia de três professoras de uma escola pública de Teresina/PI interfere no contexto educacional em que atuam. Discussão dos resultados No processo de construção do presente estudo, usamos a abordagem qualitativa, pois entendemos, de acordo com Chizzoti (2003) que há um relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito e o objeto, uma relação que não se separa entre a subjetividade do sujeito e o mundo objetivo, pois o sujeito, que é parte do processo, interpreta e atribui significado aos fenômenos. Na obtenção dos dados para a pesquisa, utilizamos a entrevista não estruturada, pois buscou-se obter das professoras entrevistadas o que elas conheciam a respeito do problema em estudo, para isso, utilizamos uma conversa guiada (RICHARDSON, 2011). As entrevistas foram realizadas no período de fevereiro a março de 2016, com três professoras de uma escola pública municipal de Teresina. Para o processo de análise de dados nesta pesquisa, utilizamos a técnica de análise de conteúdo. Para tanto, nos embasamos em Bardin (1977, p 42), que sobre o termo análise de conteúdo designa: Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.

Assim, o conteúdo das mensagens obtidas nas entrevistas realizadas foi submetido à análise no sentido de obter os indicadores ou conhecimentos acerca da temática pesquisada. Buscando-se atender ao objetivo deste estudo de interpretar a compreensão de ideologia das professoras e sua interferência no contexto educacional. Considerando o exposto e concordando com a proposta de análise escolhida, selecionamos os relatos obtidos por meio das entrevistas com as interlocutoras que revelam a compreensão das mesmas sobre a categoria ideologia. Tais mensagens foram retomadas diversas vezes, com o objetivo de explorar e interpretar seu conteúdo. Essa exploração da empiria permitiu elencar algumas características da ideologia que serviram à criação das categorias. Segundo Oliveira (2007, p. 93), “a palavra categoria está relacionada à classificação ou, a agrupamento de elementos que são sistematizados pelo pesquisador”. Assim, as classificações construídas a partir das leituras teóricas e da empiria permitiram identificar as concepções de ideologia das interlocutoras da pesquisa, como mostra o quadro a seguir:

125 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Quadro 01: Organização da empiria na construção e classificação das ideologias

Categorias elaboradas a partir dos dados empíricos e da literatura

Senso Comum

Características ✓ Parte de experiências pessoais ✓ Acrítico (baixo nível de

✓ Algo alcançável, que se busca;

criticidade); ✓ Utopia, ou algo distante da realidade.

✓ O que se deseja

✓ Separa a produção das ideias do

✓ Ideal; ✓ Ciência das ideias.

processo histórico real;

Idealismo

Informações retiradas das entrevistas

✓ Considera a realidade como algo

alcançar na vida.

ideal;

✓ Não percebe a característica de alienação da ideologia.

✓ Relação entre a produção das Crítica

ideias e a realidade histórica; ✓ Reconhece as diferenças de classe; ✓ Ideologia como instrumento de superação da exploração bem como de transformação.

✓ Conjunto de valores

criados por determinada classe.

Fonte: elaborado pela autora com base na revisão de literatura e da empiria

No quadro, apresentamos alguns relatos encontrados na empiria sobre a visão de ideologia das professoras, o que permitiu elencar três categorias. A partir das leituras dos dados e do trabalho de organização e interpretação, bem como de várias (re)visitas à literatura, apresentamos no quadro as categorias que emergiram da empiria e seus atributos, essas categorias foram utilizadas na interpretação e análise das informações. Análise da influência ideológica no contexto educacional Apresentamos que o contexto educacional também é marcado pela ideologia, mas essas marcas ideológicas nem sempre são percebidas, por não serem explícitas, por estarem carregadas de intenções diversas. No entanto, o modo como compreendemos a ideologia, permite entender como a educação se apresenta, que conteúdos ideológicos carregam, bem como a própria visão que o professor constrói dela. Nesse sentido, a concepção de ideologia das professoras, relaciona-se com a educação, pois a ideologia relaciona-se com toda a vida social. Os relatos a seguir, mostram como a concepção de ideologia das interlocutoras está relacionada com o modo como as mesmas interpretam a realidade educacional em que estão inseridas:

126 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Melissa: Mas é muito complexa essa questão da ideologia […] porque você acaba colocando de certa forma o seu ponto […] Porque na realidade é o que o sistema quer, não é? O sistema, no caso, é a rede municipal. […] de 2 em 2 anos tem aquela prova Brasil, então tem todo aquele cronograma, como se nós professores fôssemos preparar os alunos só pra tirar uma nota boa […] então eles querem só que a gente pegue tudo aquilo, os descritores, tem as habilidades, tudo pra gente desenvolver no aluno […] é muito fechado, entendeu? É só aquilo ali. Claro que tem professor que ele não vai seguir aquilo ali à risca, então depende de você, da sua prática trilhar outros caminhos a não ser só aquilo que eles querem. O que é que eles querem? Que o aluno faça aquelas atividades de acordo com a prova Brasil, ai você tem que saber trabalhar aquilo, mas trabalhar outras coisas. Maria: O que seria ideal? Pra mim seria que o aluno aprendesse e colocasse no futuro o que ele aprendeu que fizesse o uso desse aprendizado, […] que ele colocasse em prática durante um Enem, durante toda a sua base de educação infantil, ensino fundamental, ensino médio […]. O sistema é aquele macro, né, tudo que nós vamos fazer tem que ter um direcionamento, parte de cima para baixo, então o sistema como um todo, pra mim, na parte educativa é favorável em certos momentos […]. Moara: dentro da sala de aula por mais que a criança não tenha nem pai, nem mãe, nem ninguém por ela, ainda hoje faltando muito pouco para eu me aposentar, mas eu acho que eu vou me aposentar sem desistir da criança [...]. Eu não desisto da criança, todos os duzentos dias, até o último dia letivo eu não desisto dela. Eu ainda acredito no que eu possa alcançar.

Os relatos mostram que, para as professoras Melissa e Maria, há uma característica utilitária na educação, que deve atender às exigências do sistema educacional, que é trabalhar no sentido de preparar os alunos para os exames que os mesmos terão que realizar durante os estudos na educação básica. A professora Melissa destaca a Prova Brasil5, prova de português e matemática realizada de dois em dois anos que tem como objetivo avaliar a qualidade do ensino da rede pública. A professora Maria refere-se ao Enem – Exame Nacional do Ensino Médio6, prova que tem como objetivo avaliar o desempenho do estudante ao fim da educação básica e também é um dos critérios de seleção em Universidades e Faculdades públicas e privadas. O relato da professora Melissa mostra que esta segue as exigências do sistema, pois precisa preparar os alunos para obter boas notas nos exames de avaliação escolar, embora afirme que o professor não deve se limitar a isso. De acordo com Casassus (2009 apud Silva 2010, p. 433) há a possibilidade da redução dos currículos às áreas e tópicos abrangidos pela avaliação padronizada, e os professores podem acabar “ensinando para o exame”, fazendo com que “os professores ocupem o tempo a exercitar os alunos a escolher uma resposta entre as apresentadas”. Em seu relato, Melissa faz uma crítica a esse modelo de avaliação que é exigido pelo sistema educacional, segundo ela é “muito fechado e se resume às habilidades a serem desenvolvidas no aluno”, para ela é necessário que o professor vá além do que lhe é imposto, é preciso que o professor “trilhe outros caminhos”. Althusser, citado por Werneck (1982, p. 64), diz que os professores que tentam voltar contra as práticas que o sistema coloca são raros, pois “a maioria não tem um vislumbre de dúvida quanto ao trabalho que o sistema os obriga a fazer”. A professora Maria, compreende ideologia como algo que seja ideal, ou de acordo com a definição dicionarizada, como ciência de formação de ideias. Para ela, é importante que o aluno colocasse em prática o que é aprendido, de fato fazer a relação dos conteúdos da aprendizagem com a realidade é objetivo substancial na educação, tal relação leva o aluno a avançar no processo de entender o mundo, levando-o a agir para a 5 A Prova Brasil e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) são avaliações para diagnóstico, em larga escala, desenvolvidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC). Têm o objetivo de avaliar a qualidade do ensino oferecido pelo sistema educacional brasileiro a partir de testes padronizados e questionários socioeconômicos. 6 Tem o objetivo de avaliar o desempenho do estudante ao fim da escolaridade básica. O Enem é utilizado como critério de seleção para os estudantes que pretendem concorrer a uma bolsa no Programa Universidade para Todos (ProUni). Informações retiradas do site do MEC- Ministério da Educação. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/enem-sp-2094708791. 127 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


transformação do mesmo. No entanto, a professora resume esse saber a uma aplicação imediata, na resolução de exames. O relato da professora Moara, mostra que para ela, a família tem fundamental importância no processo de desenvolvimento escolar da criança, ao longo da entrevista ela destacou muitas vezes o problema da ausência familiar no contexto da escola, para Moara, essa ausência é o principal fator de insucesso da criança. No entanto, a família é influenciada pela ideologia dominante, muitas vezes explorada econômica e socialmente, podendo não perceber essa exploração, pois o seu modo de ver o mundo parte unicamente do senso comum, e segundo Germano (2011, p. 251), o senso comum caracteriza-se “por uma compreensão difusa de uma realidade marcada pela presença da ideologia dos grupos dominantes”. Nesse sentido, a educação é instrumento de transformação, desde que haja o compromisso com a formação de um cidadão crítico, não que seja isento de ideologias, mas que as interprete e a utilize como instrumento de mudança. O relato de Moara, mostra que sua concepção de ideologia, mesmo enquanto senso comum, a encoraja a dedicar-se à educação, a seus alunos. Pois ainda que para ela as situações da realidade não sejam favoráveis, como a ausência da família e seu tempo de serviço, ela acredita que pode alcançar uma mudança na educação. Para Leite e Schlesener (2007, p. 3836): a educação desempenha a função de formadora da consciência crítica, de meio de formação de uma nova cultura e de fonte de emancipação política para as classes dominadas. É no âmbito da luta de classes que se renova o significado da educação, da qual a escola é uma das instâncias, mas não necessariamente a única.

As análises demonstram que as compreensões de ideologia das professoras de fato relacionam-se com suas ações no contexto educacional e com a visão que elas possuem a respeito do sistema educacional em que estão inseridas. A partir desses relatos, percebemos que Melissa possui consciência crítica quanto à influência do sistema vigente sobre a ação docente, pois a mesma busca caminhos para ir além do que lhe é imposto pelas exigências do órgão a que está vinculada. As professoras Maria e Moara relacionam à educação suas visões de ideologia que é predominantemente idealista e como senso comum, respectivamente. Conclusão No presente estudo, objetivamos interpretar a influência de ideologia das professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental no contexto educacional em que atuam, por entendermos que a ideologia tem interferência no fenômeno educativo e dessa forma, compreendê-la é indispensável na interpretação da realidade educacional e social como um todo. Nesse sentido, apresentamos concepção de ideologia das professoras tem influência no contexto educacional em as mesmas atuam. Desse modo, a pesquisa mostrou que a compreensão de ideologia das professoras tem características do senso comum, idealista e crítica, no entanto o que predominou foi uma visão idealista de ideologia. O estudo em questão confirmou que o contexto educacional é marcado pela ideologia, que muitas vezes esconde a realidade social existente, nesse sentido o sistema educacional tenta reproduzir ideias dominantes, que ainda são de exploração e sustentação de desigualdades. Indo de encontro a essa realidade, a ideologia em uma perspectiva crítica permite ao indivíduo situar-se na sua realidade social. Pois, enquanto conjunto de opiniões pode servir de instrumento às transformações sociais. Nesse sentido, é função da educação e papel preponderante colaborar para a transformação social. Para isso, a formação política e filosófica do educador é primordial para que ele identifique interprete e compreenda os fenômenos ideológicos no âmbito educacional. Referências AFANÁSIEV, Victor G. Fundamentos de Filosofia. Rio de Janeiro: Progresso, 1968.

128 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. 4 ed. São Paulo: Moderna, 2009. BRASIL. Lei Darcy Ribeiro, 1996. LDB - Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. 5 ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenações Edições Câmara, 2010. CERVO, Amado Luiz. Metodologia científica. 6 ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2007. CHAUÍ, Marilena de Souza. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1994. CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2003. LEITE, Patricia de Moura; SCHLESENER, Anita Helena. Hegemonia: considerações acerca do pensamento de Gramsci. In: VII Congresso Nacional de Educação e V Encontro Nacional sobre Atendimento Escolar Hospitalar, 2007, Curitiba-Paraná, p.3831-3837. LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da Educação. São Paulo: Cortez, 1992. MÉSZAROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2014. _______. Estrutura social e formas de consciência, volume II: a dialética da estrutura e da história. São Paulo: Boitempo, 2011. MARX, Karl; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1991. RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2011. SEVERINO, Antonio Joaquim. Educação, ideologia e contra-ideologia. São Paulo: EPU, 1986. SILVA, Isabelle Fiorelli. O sistema nacional de avaliação: características, dispositivos legais e resultados. Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 21, n. 47, p. 427-448, set/dez, 2010. Disponível em <http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/eae/arquivos/1602/1602.pdf> Acesso em: 19 de julho de 2016. WERNECK, Vera Rudge. A ideologia na educação: um estudo sobre a interferência da ideologia no processo educativo. Petrópolis: Vozes, 1982.

129 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


JORNALISMO LOCAL E FUTEBOL: OS DISCURSOS NOS JORNAIS IMPRESSOS TERESINENSES SOBRE A FINAL DO CAMPEONATO BRASILEIRO (SÉRIE D) DE 2015 Antônio Francisco Fontes Silva1 Paulo Fernando de Carvalho Lopes2

RESUMO Este artigo faz um estudo de como os jornais impressos teresinenses O Dia, Meio Norte e Diário do Povo do Piauí trabalham, em suas capas, na edição do dia 15 de novembro de 2015, construíram discursos e imagens da equipe piauiense do River Atlético Clube, um dia após decisão da Série D do Campeonato Brasileiro de Futebol, disputada entre a equipe local e o Botafogo-SP, em partida realizada no estádio Governador Alberto Tavares Silva, o “Albertão”. O aporte teórico-metodológico utilizado fundamenta-se na Teoria dos Discursos Sociais, autores como Pinto (2002), Véron (2004), Fairclough (2001) e no conceito de Acontecimento proposto em Berger (2011), Henn (2011), Gadret (2011), Porcelo (2011) e Verón (2004). A metodologia utilizada é a Análise de discursos. Como resultado desta investigação foi possível perceber um contraponto entre os discursos dos jornais O Dia e Diário do Povo do Piauí , ao abordarem a participação do River-PI na final da Série D. Se por um lado, o Diário do Povo do Piauí é mais objetivo na descrição do fato, buscando um local “descentralizado”, por outro, o jornal O Dia assume a condição de maior aproximação com o seu públicoleitor. Indo na contramão dos outros veículos impressos da capital teresinense, o Jornal Meio Norte optou por não abordar o jogo do River, traz neste dia na manchete principal um enunciado que mostra o Piauí como campeão no aumento de crimes em compras online. Palavras-Chave: Discursos. Jornalismo local. Futebol. Acontecimento.

Introdução

P

elas inúmeras possibilidades que a temática sobre futebol propicia uma iniciativa de aproximação o tema proposto e os estudos linguísticos, sobretudo, tratado sob a ótica da teoria dos discursos sociais possibilita analisar as práticas discursivas e as relações de poder contidas nos enunciados que integram discursos do e sobre o vice-campeonato da equipe piauiense. Ao compreender o futebol como fenômeno social e tema da cultura do povo brasileiro, este estudo contribui para questionarmos suas condições de adaptação a realidade social e cultural, pois o mesmo, quando analisado dentro de uma perspectiva ideológica-discursiva, acaba por tornar-se mais que uma ferramenta de aprendizagem levando a reflexão linguística para além da sala de aula. Os estudos em comunicação nos permite compreender que o texto jornalístico está inserido em uma relação de estrutura discursiva, estrutura ideológica e estrutura social. No e pelo discursos concentram-se estratégias dos sujeitos para criar, fortalecer e perpetuar relações sociais, ideologias e de poder. Assim, podemos analisar a respeito da ação dos veículos impressos, e como os mesmos têm utilizado e se utilizam de estratégias de comunicação para firmarem os seus lugares de produção e circulação de sentidos. Os arcabouços teóricos construídos sob à luz da Análise de Discursos nos permite compreender as ideologias (sistemas ideológicos) como parte de um conjunto de uma determinada formação social. A análise de conceitos propostos por Verón (2004) e Fairclough (2001) permite nos situar melhor tanto sobre o que está diretamente ligado ao plano da produção, quanto ao que pertence ao plano da expressão do sentido. 1

Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Piauí. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) 2 Professor da linha de pesquisa Processos e Práticas em Jornalismo do Mestrado em Comunicação da UFPI. Membro efetivo do Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Jornalismo (NUJOC). Coordenador do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Discursos (JORDIS). 130 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Neste contexto, nossa análise se finda sobre os processos relacionados ao textos utilizados pelos suportes impressos para produzir seu(s) discurso(s). De mesmo modo, analisamos outros elementos, além do verbal, que constituem o modo particular de como os referidos jornais impressos construíram seu discurso. Toda análise dos discursos é, em última instância, uma análise de diferenças, de desvios interdiscursivos (sendo a identidade definida como o grau zero do desvio). É a identificação dos desvios que torna visíveis os traços das condições (de produção ou de reconhecimento) nos textos (ou, se preferirmos, que transforma as marcas em traços). Por isso, cada vez que um discurso nos interessa, precisamos encontrar um outro que será, por diferença o “revelador” das propriedades pertinentes ao primeiro. (VERÓN, 2004, pág. 69)

Assim sendo, desvelar o discurso jornalístico dos jornais O Dia, Meio Norte e Diário do Povo do Piauí sobre o vice-campeonato do River Atlético Clube, além de exigir uma reflexão sobre a questão da informação, exige também compreender os procedimentos que ordenam o discurso dos referidos veículos. Os três jornais apresentam como características, elementos que nos permitem falar em concorrência. O Dia é um dos jornais mais tradicionais do estado do Piauí (fundado em 1951), onde se coloca como um veículo de tradição, modernidade e compromisso com o leitor; fundado em 1987, o Diário do Povo do Piauí carrega o slogan “Diário do Povo do Piauí”, assumindo assim um caráter de identificação regional; fundado em 1995, o jornal Meio Norte é o mais jovem entre os três. Proveniente de uma organização midiática (jornais, rádios, emissoras de TV e portais de internet), o veículo carrega o estereótipo de ser “o jornal do povo” reforçando sempre o aspecto da regionalidade, de ser um veículo de Teresina, região do meio-norte do Brasil. A partir de observação destas e outras características e por meio do estudo das estratégias de produção de sentidos nos discursos dos referidos jornais, acerca do vice-campeonato da equipe do RiverPI, temos como objetivo geral reconhecer quais os lugares concorridos pelas mídias jornalísticas impressas de Teresina. Da ideologia ao poder Dentro dos estudos da Análise de Discursos há de se considerar que, em se tratando da produção de sentido, existem sempre relações de força e de poder. No que diz respeito ao discurso e sua organização, refletir sobre poder e ideologia pode conduzir o analista de discursos a posicionamentos eminentemente políticos. Tomando aqui como análise o Jornalismo, mais especificamente o impresso, compreendemos que a relação de ideologia e poder se estabelece no ajuste de um discurso social. Verón (2004) afirma que “poder” e “ideológico” são duas problemáticas estreitamente ligadas. O autor chama atenção para alguns aspectos dentro da concepção da ideologia. Para ele a produção significante é considerada como mecanismos de base do funcionamento social em relações enquanto condições de produção de sentido. De tal maneira o autor denomina o ideológico como sendo um sistema de relações entre um discurso e suas condições (sociais) de produção (pág.56), mas que o funcionamento de ideologias não é algo alheio apenas à sua denominação. Por sua vez, Fairclough (2001) afirma que as ideologias são veiculadas nas sociedades por meio do discurso onde as significações da realidade são materializadas dentro de práticas discursivas. Deste modo, as ideologias formam os sujeitos e colaboram para manutenção de poder. Entendo que as ideologias são significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação. (FAIRCLOUGH, 2001, pág. 117)

131 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Assim sendo, antes de pensar o sentido enquanto algo finalizado ou hermeticamente fechado, devemos sempre considerar os processos de construção de efeito e de sentido como algo sempre em transformação [...] porque os sentidos são produzidos por meio de interpretações dos textos e os textos estão abertos a diversas interpretações [...] (FAIRCLOUGH, 2001, pág. 118-119). Verón (2004) conceitua o discurso como uma prática social. Para ele, o discurso não designa apenas o objeto linguístico, mas qualquer conjunto significante avaliado como um lugar de produção de sentido, independente das matérias significantes em questão. O autor cita que apesar de o ideológico e o poder perpassarem pelos discursos, isso não significa que não haja senão o ideológico e o poder em um determinado discurso. Fairclough (2001) também entende o discurso como uma prática social. Ele trabalha a noção do discurso na concepção ideológica e hegemônica. No que diz respeito ao caráter ideológico, o discurso constitui, sustenta e transforma as relações de poder assim como as entidades coletivas em que existem tais relações. Como prática hegemônica, o discurso constitui, mantém, naturaliza e também ressignifica o mundo. Ao abordar a mudança na linguagem como método de estudo das mudanças, Fairclough (2001) afirma que o discurso é moldado e restringido pela estrutura social no sentido mais amplo e em todos os níveis. É importante que a relação entre discurso e estrutura social seja considerada como dialética para evitar os erros de ênfase indevida; de um lado, na determinação social do discurso e, do outro, na construção do social do discurso. No primeiro caso, o discurso é mero reflexo de uma realidade social mais profunda; no último, o discurso é representado idealizadamente como fonte do social. (FAIRCLOUGH, 2001, pág. 92)

Ao propor o conceito de „discurso‟ Fairclough (2011) considera a linguagem como prática social. Para o autor o discurso é socialmente constitutivo, pois o mesmo colabora para a construção de todas as dimensões das esferas da estrutura social. Deste modo, para ele, “o discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.” (FAIRCLOUGH, 2001, pág. 91). Ao se refletir sobre o aspecto ideológico busca-se então considerar a condição produtiva de qualquer fenômeno de sentido. Deste modo, a busca por desvendar o sentido (o ideológico) está marcada nos discursos e promove um tipo de análise que exceda os limites do texto, seja este um texto escrito, uma imagem, um som, etc. Conceito que se diz teórico, “ideológico” designa, portanto, não um objeto, não um conjunto identificável de “coisas” (que as chamaremos de ideias, representações, opiniões ou doutrinas), mas de uma dimensão de análise do funcionamento social. Trata-se do ideológico cada vez que uma produção significante (quaisquer que sejam seu suporte e suas matérias significantes em jogo) é considerada em suas relações com os mecanismos de base do funcionamento social enquanto condições de produção do sentido (VERÓN, 2004, pág. 56).

A questão da comunicação neste processo, fundamentada em hipóteses que por vezes diluem questões especificas das interações comunicacionais, mas que por outro lado reforça um aspecto da instrumentalização, coloca a comunicação não apenas e tão somente como campo onde o simbólico se constrói, mas como mecanismo de veiculação do mesmo. De mesmo modo, no plano das interações sociais assinala as controvérsias e conflitos, assim como os interesses que se associam no contexto estabelecido nas redes de produção de sentido. Na produção dos discursos, um dos elementos principais é a representação do que é dito em outro momento, em outro lugar, por outras vozes, e que determina o sentido do discurso atual. A questão ao

132 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


analisar os enunciados está em refletir sobre como as mensagens colocadas em circulação pelos meios de comunicação, em particular, nos suportes impressos teresinense, alvo desta pesquisa, constituem os discursos. Todavia, é relevante ponderar que, na produção dos discursos, os meios impressos utilizam uma articulação de elementos verbais e não verbais. O problema não é simples, pois uma única mensagem nunca produz automaticamente um efeito. Todo discurso desenha, ao contrário, um campo de efeitos de sentido e não um único efeito. A relação entre produção e recepção (prefiro chamar esta última de reconhecimento) é complexa: nada de causalidade linear no universo do sentido. Ao mesmo tempo, um discurso dado não produz um efeito qualquer. A questão dos efeitos é, portanto, incontornável. (VERÓN, 2004, p. 216)

A Análise de Discursos possibilita outras formas de ler e sugere que ao realizar essa prática devese pensar sobre o dito e o não-dito, pois ao longo do enunciado existe uma margem de significação naquilo em que não é propriamente o dito. O local de interpretação entre o dizer e o não dizer é o justamente o espaço em que o leitor “se move” e onde concentra a análise baseada nos conceitos discursivos propostos por Verón (2004). Trazendo estes aspectos para dentro da abordagem de construção deste trabalho, e fundamentado nas concepções de Fairclough (2001) e Verón (2004) sobre ideologia e poder consideramos a relação de poder exercida pela mídia como construtora de identidade unificada, assim como quando afirma que o futebol é “paixão nacional”, o que reforça a identificação e consumo por parte do „produto‟, pelos torcedores. Optamos, então, pela análise semiológica a partir da perspectiva dos estudos de Verón (2004) acerca da “semiologia de terceira geração” (VERÓN, 2004, p. 215) que se finda seus estudos na teoria dos “efeitos de sentido”. Do acontecimento ao acontecer Antes de analisar o acontecimento na sua essência, é necessário ter em mente a noção sobre o mesmo dentro da perspectiva da Análise de Discursos onde se configura em conceitos híbridos e heterogêneos. Para compreender a noção de “acontecimento” requer percebe-lo numa cadeia de relações bem mais complexas, dentro da qual o fato não é apenas o que é percebido, mas também tudo aquilo que é instigado a ser reconhecido. A operação complexa [denominação sem identificação + localização anafórica de um acontecimento] produz uma pluralidade de acontecimentos e, ao mesmo tempo, uma ordem em relação à importância relativa dos acontecimentos dentro do conjunto (VERÓN, 2004, pág. 117)

A inferência e estudo por diferentes pesquisadores acerca de denominar e conceituar o acontecimento promove entender o mesmo nos mais diversos sentidos. Muitos são os estudiosos que se dedicando ao estudo do acontecimento nessa área, tanto A fim de responder a problemas da centralidade do acontecimento, tanto para perceber o que configura um acontecimento jornalístico como para apontar suas relações com outros campos, estudiosos da área da comunicação buscam construir tipologias, traçar categorias analíticas de ricas discussões sociológicas e filosóficas. Seguindo essa linha, Verón (2004) trabalha a noção de acontecimento dentro de um enquadramento baseado na identificação. O autor se propõe a analisar sistematicamente a natureza dos “títulos” enquanto fenômenos discursivos (pág. 105), tomando sempre a metalinguística em primeiro lugar, e posteriormente o discurso que segue, aquilo que o qualifica, o nomeia enquanto acontecimento. O acontecimento assim se constitui o referente de que se fala. Um ponto inicial de significação.

133 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Verón (2004) ainda ressalta que uma das principais características da operação de enquadramento é adiantar-se em relação ao discurso enquadrado, pois todo “título” tem uma função referencial dentro do processamento da informação, pois [...] uma proporção bastante elevada de leitores da imprensa escrita não faz mais do que percorrer os títulos, dando ao próprio texto uma atenção muito pequena e fragmentaria. (VERÓN, 2004, pág.106). Objetivamos aqui delimitar a concepção entre acontecimento e acontecimento jornalístico. Ao significar o acontecimento, buscamos trabalhar na perspectiva jornalística de selecionar e salienta-lo em alguns aspectos como evento. O acontecimento como construtor social tem o potencial de transforma-se em notícia. Selecionar é incorporar determinados aspectos do acontecimento à notícia e excluir outros. Este processo, no jornalismo, é em grande medida determinado pelos conhecimentos que orientam a recolha das informações – critérios contextuais que levam a inclusões e omissões de ceras informações sobre um acontecimento específico (GADRET; PORCELO, 2011).

Deve-se ressaltar que nem todos os eventos se configuram em acontecimento. Para um fato tornar-se acontecimento leva-se em consideração primeiramente o potencial de atualidade, e em um segundo momento os potenciais de relevância deste em se manifestar e por fim, os impactos da promoção destes. O verdadeiro acontecimento não é unicamente da ordem do que ocorre, do que se passa ou se produz, mas também do que acontece a alguém. Se ele acontece a alguém, isso quer dizer que ele é suportado por alguém. Feliz ou infelizmente. Quer dizer que ele afeta alguém, de uma maneira ou de outra, e que suscita reações e respostas (BERGER, 2011, pág.145).

Um determinado evento tem mais probabilidades de ser configurado como um acontecimento quando é produto no nosso espaço e no nosso tempo. Podemos entender, portanto, o Acontecimento, analisado a partir dessas possibilidades, como fato não propriamente dito, mas também por interesse sobre os mesmo para sua promoção e veiculação na esfera midiática. Assim sendo, se faz necessário compreender como o poder discursivo tem a capacidade de construir diferentes versões de um acontecimento e como os veículos midiáticos tratam suas versões como realidade. Interessa-nos, portanto, definir a noção de “acontecimento” dentro do campo jornalístico antes de nos debruçarmos sobre o processo da sua eventual midiatização3. Aquilo que o jornalismo representa, o seu objeto semiótico, é o mesmo fundamento que dispara processos na história e na literatura: o acontecimento. Apreendido no sistema jornalístico, o acontecimento se manifesta de três formas básicas: na notícia, na reportagem e no texto de ideias (HENN, 2011, pág.79).

O acontecimento estabelece e baliza as operações realizadas pelas mídias jornalísticas para chegar a lugar legítimo do “real”, ou seja, promove as mudanças na produção e circulação dos acontecimentos, notícias e reportagens. O acontecimento, considera que dos inúmeros registros perceptíveis ao rompimento do cotidiano, o que representa a irrupção por excelência, tem assim um funcionamento anormal, e por isso é um acontecimento „digno‟ de tornar-se notícia. Cabe portanto, ao acontecimento, e apenas a ele, ser notícia, por um conjunto restrito de ocorrências, pertencente a um vasto universo de fatos que rompe e o cotidiano e torna-se evidente e digno de memória. 3

[...] o processo intenso e crescente da midiatização sobre a sociedade e suas práticas sociais, afeta de modo peculiar a cultura jornalística, seu ambiente produtivo, suas rotinas e a própria identidade dos seus atores (FAUSTO, 2009, grifos do autor). 134 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O evento O cenário da mídia impressa dos jornais de Teresina reproduz, na esfera simbólica, as desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais existentes na sociedade. Para melhor contextualizar os dados a serem analisados neste trabalho é interessante realizar uma breve incursão, trazendo alguns apontamentos necessários sobre a trajetória do River Atlético Clube na Série D do Campeonato Brasileiro para pensar essas matérias. Antes da final do 14 de novembro de 2015, em Teresina já sabia-se que o a equipe piauiense havia conseguido o inédito acesso a Série C do Campeonato Brasileiro. Ao contrário das tardes pouco movimentadas de um fim de semana normal na capital piauiense, essa foi bem diferente. A decisão do Campeonato Brasileiro da Série D, entre River-PI e Botafogo-SP, no estádio Albertão, mudou a rotina da cidade e levou um público de mais de 40 mil pessoas de acordo com dados fornecidos pela Federação de Futebol do Piauí (FFP) Três horas do início da partida decisiva, os portões do estádio já estavam abertos e os acessos no entorno do Albertão tomados de torcedores riverinos, e/ou mesmo de outros torcedores que conseguiram colocar as rivalidades locais de lado e foram em busca de um único objetivo: ver a conquista da competição pelo time da casa. Corpus Nosso corpus, conforme já dissemos, é constituído pelas capas dos jornais teresinenses O Dia, Meio Norte e Diário do Povo, publicados no 15 de novembro de 2015 (um dia após a partida final da Série D) nas quais a equipe do River-PI é uma figura central enquanto objeto da cobertura nos referidos suportes. A construção de sua imagem resulta de operações discursivas em que a equipe aparece em chamadas, fotos modelizadas ou fragmentos de fotos de algum instante que represente a partida decisiva, captado pelo trabalho de produção da capa. Analisamos 03 capas, a fim de relatar o que consiste em cada uma. Para identificar as estratégias discursivas aplicadas para construir a imagem da equipe do River-PI e qual é essa imagem, utilizamos, principalmente, como categoria de análise, a noção de discurso e contrato de leitura proposto por Verón (2004), detalhados anteriormente. A referidas capas trazem a construção do sujeito autor, neste caso o River-PI, em relação a final da Série D. As mesmas fazem uso de elementos linguísticos e não linguísticos, ou seja, elementos verbais e não verbais que atuam como significantes para a produção de sentidos no processo discursivo do referido objeto de estudo. A problematização se baseou em compreender as condições de produção, bem como a relação de intencionalidade existente entre um significante visual e um significado. Pela comunicação se produz uma ação no outro, estabelecidas pelas relações de poder. Considerando que toda relação envolve poder, onde capitais simbólicos são constantemente negociados, no jornalismo, este capital simbólico é negociado como informação, com a intencionalidade de convencer o leitor da forma que o enunciador enxerga o mundo. Verón (2004) justifica que a natureza da relações linguagem/imagem depende das propriedades respectivas que podemos identificar, em cada caso, tanto numa como na outra matéria significante. A partir da assimilação desses elementos, buscamos entender o contexto em que se encontram, já que os títulos que as acompanham servem, na maioria das vezes, para intensificar os sentidos produzidos e, assim, concluir a análise da produção de sentido político e ideológico que os jornais se valeram para a montagem de suas capas. Capa do Jornal O Dia

135 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O Jornal O Dia dedica sua capa inteira para ilustrar o feito da equipe piauiense. Mesmo diante do vice-campeonato da Série D, a abordagem do veículo privilegia a trajetória do time riverino com o resgate da autoestima do torcedor e o grande público que compareceu ao estádio Albertão no dia da decisão. A imagem obtida por uma tomada aérea mostra o estádio completamente lotado em contraste com as luzes da cidade. O título disposto de maneira centralizada no topo traz a seguinte afirmação: “vai-se o troféu, fica o orgulho!”. No enunciado proposto no título, o jornal trabalha com um caráter de proximidade como estratégia de aproximação com o leitor. O mesmo também evidencia a significação e entendimento quando se assemelha ao dito popular: “vão-se os anéis, ficam-se os dedos”. A ideia central é enfatizar o troféu como a representação do título perdido, mas a permanência dos “dedos”, traz à tona o significado que mais importante que isso é orgulho ter permanecido. O subtítulo que segue, reforça a ideia central da capa e coloca o feito da presença da torcida no estádio como algo que possa se repetir ainda por outras vezes na Série C. Subtítulo: “O Botafogo levou o título da Série D para Ribeirão Preto, mas o River reconquistou a torcida

piauiense, que tem agora no Albertão endereço certo para vibrar pelo time na Série C do Campeonato Brasileiro a partir do próximo ano”.

No decorrer da página, no canto inferior esquerdo apresenta o seguinte título: “Albertão lotado para ver o River”. O enunciado que traz consigo a palavra “lotado”, segue acompanhado da imagem de torcedores para destacar a forte do público no estádio. A mesma expressão “lotado”, faz alusão a foto de capa que ilustra o Albertão por um ângulo que evidencia todas as suas dependências ocupadas. Verón (2004) cita que [...] a natureza anafórica da ligação permite estabelecer entre o texto e a imagem uma relação discursiva que consiste em mostrar a imagem como uma espécie de prova de legitimidade da denominação [...]. Ainda na parte inferior, um convite ao leitor a percorrer as outras páginas do jornal para conferir o conteúdo produzido em “homenagem” ao feito da equipe. Ou seja, ao trabalhar a ideia de homenagem, subentende-se que algo valoroso foi realizado para merecer o feito. Em Análise de Discursos, quando se trata de composições texto/imagem, a imagem nunca pode ser analisada em si mesma; ela não é separada dos elementos linguísticos que a acompanham, que a comentam. Algumas das invariantes que caracterizam o NO na construção das capas dizem respeito à composição texto/imagem. (VERÓN, 2004, pág. 169)

No canto inferior direito, um terceiro enunciado faz menção a participação do torcedor ao abordar os agradecimentos do técnico Flávio Araújo: “técnico agradece apoio da torcida”. Neste enunciado, leva o torcedor a se reconhecer, como parte integrante e importante no processo. Verón (2004) explica que um contrato de leitura atua sobre o nível da enunciação dos discursos sociais. O enunciador constrói um lugar e posiciona de alguma maneira o destinatário. Ao apropriar-se da língua, trazendo elementos de identificação do regionalismo, o jornal O Dia coloca a sua posição de locutor (enunciador), ao mesmo tempo em que se refere ao leitor/torcedor (o destinatário), assumindo para este a condição de co-locutor, por consequência, a ligação entre estes são os „lugares” de fala nos enunciados da capa. Nos enunciados fica explicito o diálogo com o destinatário, sem interpelação direta, mas ainda assim existe uma cumplicidade no jogo de linguagem envolvendo o jornal e o leitor, com alguns valores culturais compartilhados. O jornal assume o que Verón (2004) classifica como enunciador cúmplice por colocar voz ao destinatário, interpretando o que ele diria. Várias campanhas publicitárias destacam a necessidade de uma autoestima para reconhecer os feitos ligados ao Piauí. O ideológico marca-se num ufanismo em dialogia com a baixa-estima do piauiense. Um enunciador jornalístico anuncia a importância do torcedor sentir orgulho de estado na final do campeonato. 136 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Figura 01 – Capa do jornal O Dia de 14 de novembro de 2015

Capa Diário do Povo O texto na capa é direto ao colocar a condição do segundo lugar ao River-PI, evidenciando o vice campeonato. A proposta da capa promove um olhar discursivo para a perda da competição. A forma como o enunciador River é vice-campeão brasileiro se coloca em cena também se marca como distante do leitor, estabelecendo a relação de poder de quem detém a informação, se dirigindo principalmente para aquele leitor que não tem essa informação ou para aquele em que esta não está clara. Verón (2004) destaca que na verdade, pode-se dizer que todo discurso produzido constitui um fenômeno de reconhecimento dos discursos que fazem parte de suas condições de produção. Deste modo, pela análise, observamos que jornal apresenta uma rede semiológica, com a significação, o resultado de um trabalho em conjunto de enunciado e imagem. As sequências enunciativas aparecem acompanhadas, então, de outras sequências que a ela se encaixam, ampliando assim o sentido. Ao tempo que o enunciado do título busca ser direto e objetivo, ao destacar a segunda colocação no torneio, imagem que complementa a capa faz dialogismo com o título, colocando uma segunda condição, a de derrotado. O zagueiro Índio, cabisbaixo, sendo amparado por seu companheiro de time, ilustra uma outra face da partida. Um discurso ou um conjunto de discursos (enquanto unidades textuais concretas, produzidas dentro do social) não constitui um objeto homogêneo: esta noção de “discurso” não é uma noção teórica e sim puramente descritiva. Deste ponto de vista, consequentemente, um “discurso” não tem unidade própria, todo discurso

137 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


sendo lugar de manifestação de uma multiplicidade de sistemas de condições, uma rede de interferências. (VERÓN, 2004, pág. 90)

Entendendo o ato de torcer como uma prática discursiva e o futebol como um tipo de discurso, o enunciado no canto direito logo abaixo da imagem reforça a presença do grande público no estádio Albertão, fator ainda assim, insuficiente para o time conseguir a taça: “Quarenta mil pessoas foram ontem a noite torcer pelo River na Série D do Campeonato Brasileiro contra o Botafogo-SP. Apesar de toda festa, o time piauiense acabou ficando como vice-campeão”. No enunciado, o termo “pessoas”, faz uma alusão que nem todos os que foram ao estádio, eram necessariamente torcedores riverinos. O “apesar” denota que nem mesmo todo o esforço e incentivo por parte do público foi suficiente para superar o adversário. Diante do enunciado existe, também, o reforço de uma condição de jogo (a questão numérica) que exalta o feito da equipe visitante: “com um jogador a menos

no segundo tempo, o Botafogo segurou a pressão, se trancou no campo defensivo e garantiu o empate em 0 a 0”. O enunciado termina fazendo um resgate e contextualizando o leitor a condição do empate ter garantido o título ao Botafogo-SP e não ao River-PI: “como o Botafogo venceu por 3 a 2 a partida de ida, em São Paulo, levou o título de Campeão Brasileiro da Série D”. No caso do jornal Diário do Povo, o enunciador se apresenta com afirmações, uso permanente de terceira pessoa, reforçando os aspectos de distanciamento do leitor. Como não há nenhum ensinamento e o enunciador se utiliza sempre do discurso sem atribuir a palavra ao destinatário ou interpelar, este se caracteriza como sendo enunciador não pedagógico com distância, reforçando o caráter ideológico da derrota. O destaque na manchete principal de um enunciado informativo em dialogia com as imagens onde é possível o leitor ver um frame da partida e um jogador consolando outro remete a constatação da desconfiança do time piauiense não ter condições de vencer. Figura 02 – Capa do jornal Diário do Povo do Piauí de 14 de novembro de 2015

138 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Capa do Meio Norte A estratégia de poder do Meio Norte é o “silenciamento”. Com o título: “ campeão em fraudes online”, o aspecto de disputa de poder aqui apresentado e revelado é outro. O silenciamento sobre o vice-campeonato do River-PI no jornal Meio Norte também entra em análise, porque no processo de análise de discursos, os assuntos ignorados têm tanta importância quanto aqueles incluídos no discurso, pois o reconhecimento se faz no outro. Se a análise dos discursos é comparativa, se trabalha relacionando superfícies discursivas uma com as outras, é porque é impossível saber, considerando isoladamente uma “unidade” discursiva qualquer, quais são os traços cuja detecção é pertinente para chegar à descrição operacional de uma certa economia discursiva. Por “unidade” entendo um fragmento discursivo qualquer, cujo recorte é proposto, por assim dizer, pela organização material dos discursos sociais (uma página, uma capa, um artigo, um livro, uma transmissão de televisão, um título, etc (VERÓN, pág. 162).

Apresentado anteriormente que o jornalismo não retrata a realidade no discurso produzido, mas o constrói como forma de legitimar o acontecimento como uma narrativa verosímil, entendemos que a produção discursiva no jornal Meio Norte implicam em situações organizacionais em que, outros acontecimentos também interferem em convenções pessoais, sociais e culturais. Com ênfase no enunciado crescimento sobre o título, o jornal Meio Norte coloca a condição de aumento nos números de casos de crimes virtuais ao feito da equipe do River, desconhecendo o feito da equipe e não valorizando o futebol. Entretanto, outra prática esportiva ganha espaço no suporte. O jornal traz em sua capa a imagem da modalidade do kitesurf, prática de desporto aquático que utiliza uma pipa e uma prancha para realização de manobras. A proposta ideológica do jornal, a partir do silenciamento da informação da partida, condena o acontecimento a „inexistência‟. Figura 03 – Capa do jornal Meio Norte de 14 de novembro de 2015

139 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Considerações finais O contrato de leitura pressupõe a existência de um lugar de articulação entre a produção e o reconhecimento dos discursos. Deste modo, este trabalho visou discutir os conceitos para entender as relações ideológicas e de poder dentro dos princípios teóricos da Análise de Discursos. A exposição dos conceitos abordadas neste trabalho favorecem ao entendimento de um fato que pode ser considerado ao mesmo tempo um acontecimento histórico e discursivo: o vice-campeonato do River-PI na Série D. Observa-se, pela análise dos enunciados, propostos principalmente nos títulos dos jornais O Dia, Diário do Povo do Piauí e Meio Norte como lugar indentitário, onde diferentes valores são usados como argumentos e pelos quais os jornais estabelecem estratégias ideológicas e de poder para que os leitores firmem, com os mesmos, pactos de fidelização, anteriormente explicado como o contrato de leitura. Assim, os limites deste artigo permitem considerar que há um contraponto entre os discursos dos jornais O Dia e Diário do Povo, ao abordarem a participação do River-PI na final da Série D. Se por um lado observa-se o Diário do Povo do Piauí na condição de ser mais objetivo na descrição do fato, buscando um local “descentralizado”, por outro, o jornal O Dia assume a condição de aproximação com o seu públicoleitor e adota no próprio espaço uma “autoapresentação”, como forma de estabelecer um espaço de confiança. Indo na contramão dos outros veículos impressos da capital teresinense, o Jornal Meio Norte optou por não abordar o jogo do River. Ao invés deste enfoque o jornal optou por um discurso diferente, em que o enunciado da manchete mostra o Piauí como campeão no aumento de crimes em compras online, relegando ao silenciamento o feito da equipe riverina. Referências BERGER, Christa. Trajetória de vida e acontecimento: Simonal na ditadura. In: LEAL, B.S; ANTUNES, E.; VAZ, P.B. Jornalismo e acontecimento. Percursos metodológicos. Florianopólis: Insular, volume 2, 2011. FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001. FAUSTO NETO, A. Mortes em derrapagem - os casos Corona e Cazuza no discurso da comunicação de massa. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1991. GADRET, Débora Lapa; PORCELLO, Flávio. O acontecimento político programado: os enquadramentos jornalísticos da posse de Dilma Rousseff. In: LEAL, B.S; ANTUNES, E.; VAZ, P.B. Jornalismo e acontecimento. Percursos metodológicos. Florianopólis: Insular, volume 2, 2011. HENN, Ronaldo. Acontecimento em rede: crises e processos. In: LEAL, B.S; ANTUNES, E.; VAZ, P.B. Jornalismo e acontecimento. Percursos metodológicos. Florianopólis: Insular, volume 2, 2011. VERON, E. El análisis del “Contrato de Lectura”, un nuevo método para los estudios de posicionamiento de los soportes de los media, en “Les Medias: Experiences, recherches actuelles, aplications”, IREP, París, 1985. Disponível em:< https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/viewFile/963/903>. Acesso em: 20 de jan. 2016. VERON, E. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo (RS): Unisinos, 2004.

140 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


DINÂMICA

DOS MOVIMENTOS SOCIAIS PELA EDUCAÇÃO E LUTA PELA TERRA: IDENTIDADE E AS UNIDADE DE

MOBILIZAÇÃO NO FORTALECIMENTO DO PROCESSO DE CONQUISTA DA TERRA.

1

Edson Sousa da Silva2 RESUMO Este trabalho pretende traçar as formas organizativas de grupos e movimentos sociais na denominada região do Médio Mearim desde os anos 80, quando, no processo de apropriação de terras, intensos conflitos foram travados não só nos campos de lutas físicas, e posteriormente, em espaços especificados ‘de debates burocráticos’ com o Estado, como a violência simbólica. Analisa, ainda, o fortalecimento da relação com as instituições estatais, com outros movimentos, tanto nacionais quanto internacionais; e como e qual o papel de agentes externos na mobilização e organização dos trabalhadores rurais e quebradeiras de coco babaçu no processo de luta pela terra. A primeira parte trata de como se formaram esses conflitos, os agentes envolvidos e na tentativa de perceber as estratégias de mobilização e organização usadas no processo de luta pela terra. Traz ainda os elementos envoltos nos embates físicos e violentos simbólicos, na construção de uma autoidentidade e as relações estabelecidas para o reconhecimento pelo Estado na questão da terra. No segundo item tende-se a identificar que elementos e dispositivos foram e são acionados pelos agentes sociais no processo de luta pela terra na região do Médio Mearim e a relação com a afirmação de uma identidade. Como e, que caminho é traçado para a autodenifição da identidade específica das quebradeiras de coco babaçu e dos trabalhadores rurais na região do Médio Mearim. E última parte, traz o envolvimento dos movimentos sociais e as questões educacionais, tendo na luta pela terra um espaço de fortalecimento do processo de luta por políticas públicas específicas. Perceber até que ponto há relações entre terra e educação nas formas organizativas dos movimentos sociais e agentes sociais do Médio Mearim. Palavras-chave: Identidade. Violência simbólica. Luta. Educação. Discurso.

Introdução

A

ntes de adentrar no debate sobre os conflitos por terra que eclodirem na região do Médio Mearim na década de 1980, quando por volta dos anos 1970 o usucapião era predominante. A forma usada para aquisição de terras sem uso pelos grandes proprietários3 era a compra direta dos trabalhadores, ou ainda, na lógica do usucapião tendo em vista as terras devolutas da região. Algumas leis complicaram o processo de luta por terra dando prioridade aos grandes proprietários. A Lei Sarney sobre as terras de domínio do Estado – Lei 2979, de julho de 1969, revogada em maio de 1986 pela Lei 4225 – veio intensificar a concentraram das terras nas mãos dos fazendeiros e surge as grandes fazendas4.

1

Trabalho apresentado no GT 05 – Discurso e Ideologia do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Doutorando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte – MG. Endereço eletrônico: edinhodim@hotmail.com 3 Para os agentes sociais diz-se de quem tem sob sua posso uma grande quantidade de terra, algo parecido como o latifundiário e com o fazendeiro, mas no que condiz as relações com as quebradeiras de coco babaçu e trabalhadores rurais são, aparentemente, evitam confrontos diretos. Os grandes proprietários possuem terras em várias comunidades da região do Médio Mearim e seu principal uso é para a pecuária extensiva. Eles mantem uma casa, a fazenda, na parte central da propriedade, nela reside o vaqueiro e sua família. O conjunto de significações do termo grandes proprietários de terra fez com que o use neste trabalho. Estarei usando neste trabalho os conceitos de grandes proprietários, latifundiário e fazendeiro. 4 O mesmo que grandes propriedades. São grandes extensões de terra utilizadas para o uso extensivo a pecuária, e principalmente a criação de gado. Também é o espaço físico onde estão localizadas as palmeiras de coco babaçu. No campo simbólico é o espaço dos conflitos armadas, derrubada de palmeiras de coco babaçu, local de quebra do coco e da resistência dos trabalhadores rurais e quebradeiras de coco babaçu, são chamadas de grandes propriedades. 141 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Com a permissão dada para a venda de grandes extensões de terra, e com a consolidação de títulos aos fazendeiros, os conflitos de terras com mortes, os problemas sociais e econômicos tornam-se um gargalo no Estado do Maranhão, devido a extensão de terras chamadas até então de devolutas. Há um movimento direcionado para o fechamento das fronteiras agrícolas com o aval jurídico do Estado (ARAÚJO, 2013). Na região do Médio Mearim, estado do Maranhão, a ocupação desde os anos de 1970 se deu por/e descendentes de nordestinos que aprenderam a “desbravar matas” e se depararam com situação da posse de terras pelos grandes proprietários. A dinâmica do desenvolvimento no período demonstra as contradições na relação de produção entre os trabalhadores rurais e quebradeiras de coco babaçu e proprietários das terras. O conceito para a denominada região do Médio Mearim utilizado nesta dissertação vai além do espaço geográfico qualificado pelos órgãos governamentais. Levo em consideração questões ambientais, culturais, sociais e econômicas para denominar o espaço da pesquisa. Somos então, “orientados pela intenção de apreender a gênese do conceito de região e das representações que lhes estão associadas” (BOURDIEU, 2010, 107). Quando se trata do processo dos conflitos agrários iniciados nos anos 80 expande-se até outros municípios fora dessa região, mas que tem características organizacionais, econômicas, culturais e ambientais similares, a saber: Paulo Ramos, Vitorino Freire, Pio XII, Bacabal, Alto alegre do Maranhão e Peritoró (LOHER, 2009). O relato de padres ligados à Igreja Católica e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) encontrados em jornais do período trazem uma síntese dos números dos conflitos violentos: terras conquistadas, trabalhadores mortos, lavradores expulsos e audiências com o Estado. Dois processos simultâneos acontecem: o primeiro o nível de organização dos trabalhadores se dá pela necessidade de sair da condição de subalterno (Spivak, 1985) e; a região se define nas relações de conflitos pois o número de municípios no estado do Maranhão em que os conflitos agrários dos anos 1980-90 se disseminaram se ampliou consideravelmente, como mostram as Atas de Registros e criações de Assentamentos como o de Aparecida em Ludovico – Lago do Junco; o de Santo Antônio em Centrinho do Acrísio; o de Aldeia em Bacabal; – Lago do Junco; o de Poço Dantas e Serra do Aristóteles em Poção de Pedras e Monte Alegre em São Luiz Gonzaga do Maranhão.. Mais profundamente é dizer que o conceito de região aqui tratado vai para além das fronteiras físicas. (BOURDIEU, 2010) Percebe-se que várias relações interligam a região do Médio Mearim, e a define em aspectos sociais, culturais e até políticos, à realidade não demarcadas pelos órgãos oficiais do Estado. E quando se trata do processo de luta pela terra, a região de conflitos vai além da representação oficial, carecendo de conhecimento e de um reconhecimento por parte de quem o compõe. (BOURDIEU, 2010). Alguns trabalhos já estudaram os conflitos agrários e a luta pela terra na região do Médio Mearim, como: Figueiredo (2005), Almeida (2008), Barbosa (2013). O diferencial que estou propondo nesta dissertação está em querer entender como os agentes sociais definem a região, os conflitos por terra e a luta por educação, dando uma visão de quem viveu o processo de luta, tratar de uma visão de dentro para dentro. Ainda sobre o que trata Loher (2009) quando explica sobre a atuação dos franciscanos no Maranhão e no Piauí entre 1952 a 2007, percebe-se a intima ligação dos movimentos sociais com a luta pela terra. Em seu conteúdo lista os assassinatos, os massacres, os locais de conflitos por terra e as interferências religiosas junto às quebradeiras de coco babaçu e aos trabalhadores rurais. Recordo-me na leitura do livro sobre a vinda dos franciscanos ao Maranhão, de histórias que escuto desde criança sobre os conflitos em Lago do Junco e na região, do assassinato de Manoel Monteiro na comunidade de Pau Santo5 e Antônio Fontenele na comunidade de Centro do Aguiar6 (Lago do Junco), da

5

Para maior detalhamento sobre a morte do trabalhador rural Manoel Monteiro na comunidade Pau Santo – Lago do Junco (MA) consultar Loher 2009. 6 O trabalhador rural Antônio Fontenele foi assassinado no dia 17 de maio de 1986, dentro de sua casa na comunidade de Centro do Aguiar – Lago do Junco (Loher 2009). 142 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


derrubada das casas na comunidade São Manoel7 (Lago do Junco), da queimada das casas na comunidade Aldeia8 (Bacabal) e principalmente da entrada nos assentamentos pelos pistoleiros 9 que utilizavam de armas para afugentar os trabalhadores, que por sua vez passavam dias escondidos no mato. Em algumas comunidades a luta pela terra foi mais intenso e em outras o processo ocorreu de forma mais burocrática, sem os conflitos físicos. Trago aqui, a forte ligação das quebradeiras de coco babaçu e os trabalhadores rurais não só com a questão agrária, e mais fortemente o nível e as tentativas de organização que se deu para a luta. O próprio ato de resistência dos agentes sociais e os embates com os pistoleiros geram a necessidade de organização e de movimentos sociais que se preocupem com a causa. Outro destaque de análise é no amparo dado pela Polícia Militar do Maranhão da época e na forma de tratamento aos trabalhadores que se ‘escondiam no mato’ a fim de se proteger. A presença da polícia que se diz para ‘proteger as quebradeiras e trabalhadores’ está também para cumprir a decisão de retirada dos mesmos. O relato demonstra ainda, de forma forte, é a necessidade de formar o povo de comunidade e o trabalho em ‘mutirão’ como unidades e estratégia de mobilização dos agentes sociais, que precisara luta para permanecer na terra. O pensamento sobre povo de comunidade reporta para o que debate Gusfield (1975) quando evidencia os diferentes usos e os contextos do termo. Ao pensar comunidade como territorial, o conceito aparece em um contexto de localização, território físico, continuidade geográfica. Levo em consideração aqui os vários sentidos de cada comunidade e o entendimento sobre o que ocorreu em cada entidade comunitária no processo de luta pela terra. A relação com o processo de resistência cotidiana (Scott, 2002) se dá no ato em que os moradores da comunidade de São Manoel se articulam diante a situação de conflito estabelecida. O fato das mulheres permanecerem na comunidade junto com os filhos e a própria fuga dos homens para se esconderem demonstram uma articulação importante para o processo de resistência. As conexões identificadas nestes relatos, não somente da luta pela terra, como os grandes proprietários possibilidades de acesso, de cercamento, de desapropriação. A elaboração da Cartilha de Subsídio para Formação de Jovens Rurais nas Bases em si, demonstra os primeiros sinais de uma outra luta iniciada pelos trabalhadores: a educação. A necessidade de construir uma educação para os agentes sociais passa a ter como foco e ligação, a história da luta e educação dos filhos e filhas das quebradeiras de coco babaçu e trabalhadores rurais. Assim a resistência e tentativa de sair da condição de subalternidade de centenas de famílias camponesas que lutaram, e lutam, contra a submissão causada pela apropriação das terras por grandes proprietários se deslocam, assim como os motivos de luta. Na região fortes conflitos foram travados, principalmente na década de 1980. A redução brusca do estoque de terras disponível à agricultura camponesa e ao extrativismo fez surgir, além de um confronto direto com vaqueiros10, capangas11, milícias privadas12 a serviço dos proprietários e, policiais13, outras formas de relações econômicas, além de situações conflitantes no momento das práticas extrativistas. A necessidade de 7

A derrubada das casas na comunidade de São Manoel – Lago do Junco (MA) está narrada acima. Nas entrevistas e visitas de campo não consegui tal relato pelo fato de que os trabalhadores resistem em recontar o acontecimento. Os que tentam contar, desistem em parte da narração pelo fato de estar emocionados. 8 Para mais informações sobre a queimada das casas na comunidade Aldeia – Bacabal (MA) consultar Loher, 2009. 9 Refere-se aos soldados armados que eram mandados pelo Estado para as reintegrações de posse das terras dos fazendeiros. 10 Diz se do responsável pela fazenda. Tem cuidado com as criações e de acompanhar o tratamento de todas as questões referentes a grande propriedade. Reside na casa da fazenda com sua família e todos exercem atividades ligadas ao cuidado das terras. 11 O uso do termo capanga refere-se a pessoa que faz a guarda armada da propriedade. É responsável pela segurança do dono da grande propriedade. 12 A milícia privada é um utilizada pelos grandes proprietários de terra para guardar as propriedades e evitar, por exemplo, a entrada de quebradeiras de coco babaçu e em situações de conflitos no processo de luta pela terra, quando tenta-se desapropriar as propriedades para transforma-las em assentamento. Diz-se também da polícia para trabalhos ilegais ou fora da função oficial. 13 A polícia é o instrumento legal usado pelos proprietários, principalmente, para desapropriações, prisões e confrontos diretos com as quebradeiras de coco babaçu e trabalhadores rurais. 143 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


ter terras disponível à agricultura camponesa e ao extrativismo fez surgir além de situações conflitantes, empoderar as unidades de mobilização, a consciência territorial e, principalmente, a importância que a construção de uma autoidentidade fortalece a luta. A análise da tomada de consciência territorial, tratada aqui, é feita inicialmente sobre três pontos importantes: do uso coletivo das áreas de coco babaçu por quebradeiras e trabalhadores rurais; do cercamento14 das terras e o não acesso aos babaçuais; e da organização de movimentos e as lutas pelo livre acesso. Ressalta-se novamente o processo de lutas pelo acesso à terra e aos babaçuais como elemento de reconhecimento identitário e reivindicatório de seus direitos. Como resultado dessas lutas, os trabalhadores e quebradeiras de coco babaçu passaram se organizar em ‘movimentos’, que compõem um quadro de entidades institucionalizadas, com ações estratégicas interligadas em sistema de redes solidárias, propondo saídas alternativas para as famílias do Médio Mearim, baseada no equilíbrio entre recursos naturais e relações justas de gênero e geração de renda. No contexto das lutas pela terra, a região (BOURDIEU, 2012) e as fronteiras físicas da luta, se definem com “a fronteira étnica que define o grupo e não a matéria cultural que ela abrange. As fronteiras às quais devemos consagrar nossa atenção são as fronteiras sociais, se bem que elas possam ter contrapartidas territoriais” (BARTH, 2011, p. 195). Barth ajuda a entender sobre o poder de questionar esses limites de fronteiras traçadas pelos órgãos oficiais. Cabe aqui o conceito de algo mais amplo que apenas o espaço físico, onde há uma identidade cultural, ambiental, social e econômica que determinam tais fronteiras. A criação de projetos de assentamento15 ligada a conquista da terra se dá pela condição, ou imposição, estabelecida pelo Estado para ter direito a terra, mesmo com todo o processo de luta e conquista da terra, há ainda uma questão burocrática para se ter a regularização estatal. Ou seja, os agora assentados em posse da terra estão diante de outros embates no campo burocrático. Tudo isto, como consequência também da nova forma organizativa em grupos e movimentos sociais no Médio Mearim que, Após a conquista da terra, nos anos 80 e 90, as famílias de trabalhadores rurais e mulheres quebradeiras de coco babaçu, [...] iniciaram um processo de organização social político e econômico, via institucionalização de formas organizativas, segundo princípios do associativismo e do cooperativismo. Em maio de 1989, [...] foi criada a ASSEMA, entidade que nasceu com o propósito de apoiar os denominados trabalhadores rurais e quebradeiras de coco babaçu, nas áreas da produção, comercialização e fortalecimento das famílias para o acesso aos direitos de cidadania e às políticas agrárias e agrícolas, tendo como pano de fundo as relações de gênero, geração e etnia. (ARAÚJO, 2013, p. 140) (grifo meu).

Vários elementos estão interligados ao processo de luta pela terra na região do Médio Mearim. Como visto, após a luta há um fortalecimento das intenções de organização dos agentes sociais e das necessidades de estabelecer não só mais a terra como debate. Na organização em movimentos sociais o que se destaca é a luta, ou os sinais dela, para a emergência um pensamento contrário ao subalterno e colonialista dos fazendeiros e do Estado. A luta dos grupos e a segurança expressa, mais no sentido de garantia de direitos, ligada à categorização de “invasão”16 e é usado como algo pejorativo e utilizado pelos agentes de dominação para 14

Cercamento tratado aqui refere-se não somente às áreas e propriedades rodeadas por cercas de arames e estacas, às são utilizadas por quebradeiras de coco babaçu. Tais áreas cercadas servem para definir e demarcar as áreas dos proprietários. O cercamento perpassa a barreira física da cerca e está presente nas derrubadas das palmeiras de babaçu, na não afirmação de quebradeira de coco pelos jovens, no uso do agrotóxico e até no não reconhecimento pelo Estado das políticas públicas para os trabalhadores. 15 O terno Projeto de Assentamento faz-se referência a designação utilização pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e que os agentes sociais chamam apenas de Assentamento ou P.A. 16 O termo invasão é refletida pelos agentes sociais como focos de lutas por terra na região do Médio Mearim. Durante toda a pesquisa encontrei algumas visões e considero importante tentar explicar, e até confrontar como é usado pelas mídias e pelos grandes proprietários. A invasão também faz referência ao local físico onde as quebradeiras de coco e trabalhadores rurais encontram-se assentados, e mais profundamente, reflete a uma ideia de limite de fronteira por, também, ser conflituosa e estabelecer as relações 144 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


qualificar os trabalhadores e as quebradeiras de coco babaçu que travavam embates pela terra. (HOBSBAWM, 1998). Invasão é visto pelos agentes sociais como uma forma de fortalecimento e incentivadora para continuar na busca por direitos. Outra visão que se identifica neste trabalho e recordo-me de conversas informais durante a pesquisa, que quando se trata do processo de luta pela terra tanto as quebradeiras de coco babaçu, quanto os homens são as protagonistas dos embates: os homens, perseguidos pelos pistoleiros, milícia, capangas e as mulheres na resistência de permanecer em suas casas e cuidado da família. Mais a fundo os homens se foragiam no mato, as mulheres ficavam em casa cuidando dos filhos e nisto começaram a reunir-se em clubes de mães para debater as formas de negociação com o Estado. Cabe neste capítulo ainda os debates sobre a identidade, mobilização e organização dos trabalhadores rurais, que se seguem. Desenvolvimento Quando refiro-me ao processo de luta das quebradeiras de coco babaçu e dos trabalhadores rurais da região do Médio Mearim, no Maranhão, tento indiciar que questões coincidem com a definição da consciência de suas fronteiras perante um rol de reivindicações buscadas desde os anos de 1980, desde o processo de luta pela terra até o processo de consolidação de políticas públicas de Estado. Isto evidencia a relação território, identidade e consciência de suas fronteiras. Segundo Barth (2011, p. 294) “na medida em que os atores usam identidades étnicas para categorizar a si mesmos e outros, com objetivos de interação, eles formam grupos étnicos neste sentido organizacional”, pois vê-se que as reivindicações variadas, ao longo do tempo, reafirmam a/as identidades das comunidades e povos tradicionais da região, alterando apenas seus motivos de lutas. Nos conflitos agrários da região do Médio Mearim da década de 1980-1990 percebe-se outro processo que acontece concomitante: a mobilização dos agentes sociais. Tais mobilizações vão desde a quebra de coco de troca de dias, os mutirões para pagamento de advogados que defendiam as causas dos trabalhadores ou mesmo quitar o sindicato dos envolvidos na luta, até os clubes de mães, grupos de jovens e as entidades: as unidades de mobilização. No mutirão, enquanto as quebradeiras de coco entravam e quebravam o coco, os trabalhadores faziam a vigília para que não fossem surpreendidas pelos vaqueiros. O que era quebrado servia para pagamento das mensalidades atrasadas de sócios do Sindicato de Trabalhadores Rurais, a fim de terem direito de voz dentro do movimento sindical e exigir ajuda externa na mediação dos conflitos. Ou servia, ainda, para pagar passagens dos agentes sociais em reuniões com os órgãos do Estado, bem como o pagamento de advogados para defende-los. Tais unidades de mobilização são as relações comunitárias existentes na região. Os agentes sociais passam a pensar em uma unidade política e de bem coletivo que afirmam questões territoriais, identitárias em um processo mobilizatório continuo e situacional. Outro elemento elencado neste debate é que se tratam de grupos subalternos e, necessariamente, precisam emergir e utilizam-se em unidades de mobilização para tanto. De acordo com o pensamento de Spivak (1985) os agentes sociais se tornam insurgentes de uma situação de conflito das quais se articulam em estratégia de mobilização. As estratégias de mobilização leva em conta os “novos movimentos sociais” estudados por Hobsbawm (2013) e esclarece que existe um critério organizativo nos agrupamentos por reivindicações coletivas de caráter ambiental, de gênero e com ligações a situações bem locais. A pauta dos agentes sociais gira em torno das situações conflitantes e na organização de uma existência coletiva. sociais, políticas, econômicas e ambientais necessárias para o processo de construção e afirmação da identidade. Ainda na visão dos agentes sociais, quando se referem a “ um tipo de invasão dos opressores que eles entraram se dizendo ser os donos da terra” (Informação fornecida por Diocina Lopes dos Reis. Entrevistador: Edson Sousa da Silva. Comunidade de Ludovico – Lago do Junco - MA, julho de 2014), diz-se das formas usadas pelos grandes proprietários de terra de conseguirem mais propriedades, seja por compra direta dos trabalhadores, seja ainda na lógica do usucapião, tendo a ideia de terras devolutas. 145 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A mobilização política também está presente diante dos conflitos de acordo com a ampliação dos tipos organizativos e a necessidade de uma afirmação identitária. Essa junção da capacidade de mobilizar em prol de um bem coletivo e as situações conflitantes empoderam uma força social de fronteiras da autoidentidade, numa mobilização constante. O que se entende do processo de organização das quebradeiras de coco babaçu e trabalhadores rurais é que a própria mobilização –seja ela política, coletiva, em unidades - é uma estratégia na luta contra seus antagonistas. Reforçando assim, o poder de reivindicações junto ao Estado e principalmente com os grandes proprietários de terra na região do Médio Mearim. Almeida (2008, p.30) explica que as identidades coletivas são redefinidas de acordo com as situações e, no caso das quebradeiras de coco babaçu, com os conflitos: Neste sentido a noção de “tradicional” não se reduz à história, nem tão pouco a laços primordiais que amparam unidades afetivas, e incorpora as identidades coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada, assinalando que as unidades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilização. O critério político-organizativo sobressai combinado com uma “política de identidades”, da qual lançam mão os agentes sociais objetivados em movimento para fazer frente aos seus antagonistas e aos aparatos de estado.

A relação de interesses pela terra, seja dos trabalhadores e quebradeiras de coco babaçu, seja dos fazendeiros e latifundiários ou mesmo o Estado, reflete a ideia de expropriação tratada por Marx. Entende-se que “a expropriação do povo do campo cria, diretamente, apenas grandes proprietários fundiários (Marx, 1985, p. 280). Na região do Médio Mearim, onde um modo de sobrevivência foi questionado e a necessidade pela terra para trabalhar e coletar o coco babaçu fazem parte da vida dos agentes sociais, criam-se resistências organizadas. A luta pela terra torna também uma estratégia de mobilização dos agentes sociais, no sentido de fortalecer o poder de suas reivindicações, sejam elas pelo direito a terra, pelo acesso aos babaçuais ou por sua preservação. Temos aqui uma heterogeneidade de reivindicações e das estratégias e que intensificam o poder de intervenção junto ao Estado, pois são legitimados por todo um grupo social. Portanto não convém dizer que há um modelo de mobilização, tendo em vista que as estratégias variam constantemente de acordo com os tipos de conflitos enfrentados e as situações passadas pelos agentes sociais. Como no caso específico do mutirão, em que as mulheres quebravam coco babaçu nas propriedades de acesso proibido, com a ajuda dos homens. A mobilização em Associações de Assentamento predispõe de um elemento político e burocrático nos embates com o antagonista. Assim as estratégias de mobilização variam de acordo com as situações vividas e os conflitos enfrentados. As associações ganham uma certa burocratização por terem a necessidade de ter um cadastro em nível de Estado, passando a reger-se por critérios estabelecidos pela máquina estatal. Outra estratégia de mobilização utilizada pelas quebradeiras de coco babaçu e trabalhadores rurais é a ligação com a Igreja Católica, através da Vice-Província Franciscana da Diocese de Bacabal – na região do Médio Mearim – que acompanhou, apoiou e financiou algumas ações. como se percebe na entrevista: A guerra foi pesada em Lago do Junco, mas aí a guerra de Ludovico foi uma das que mais pesou, mas foi resolvida. Mas por causa de que? Que eu por conhecer um pouco do evangelho que eu aprendi, onde nós decidimos, foi eu fiz com que o Dom Eriberto mandasse o Sandro Macedo (advogado) a defender o Ludovico, o advogado mais de peso do Maranhão. Eu foi que fiz isso. Eu estava em Bacabal uma vez, naquela época devido a luta, tinha aquelas pessoas que mais eles olhavam, que mais eles tinham ódio e eu era um deles e aí o Frei Eriberto me chamou atenção, era o chefe da vice-província, lá dentro do gabinete dele e me perguntou o que eu achava da luta do Ludovico, eu disse que achava correto. Mas como você acha correto que aquele povo não mora dentro da área? Eu digo, mora não, mas a primeira é que aquelas terras os trizavôs deles foi que amansaram elas, aí vem os avôs, vem os bisavôs, vem os avôs, vem os pais velhos que já formam, então eles que amansaram ela. A segunda é que Deus disse assim: a minha terra não pertencerá aos estrangeiros. Agora eu vou lhe fazer uma pergunta: quem é que é estrangeiro dessa terra lá?

146 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


É quem mora com 1km de distância, que trabalha dentro dela ou quem mora com 40 km? Ele disso que é quem mora com 40 km. Então o Coutinho é estrangeiro de lá. Eu digo, tem outra, ai é a construção de Jesus Cristo e tem a dos homens, e ele disse, qual é a dos homens? Eu digo: lei da reforma agrária. Primeiro não pode entrar na reforma agrária numa terra que seja menos de 500 hectares de terra, a segunda é que o estatuto da terra diz assim: o agricultor terá direito ao seu patrimônio e na sua colônia de trabalho. E lá não tem nem ponto nem vírgula pra dizer qual instancia de trabalho não. Tá dizendo na lei desse jeito. Agora o que tá restando Frei Eriberto é vocês liberar o doutor Sandro. Ai ele disse assim: Antônio você vai lá? Vou quase todo dia lá. E como é que você vai? Eu digo, eu vou por dentro do mato, ninguém me paga. E ele disse, você quer ir lá hoje? Vou sim, só que acho bom você ir lá também. Ai fomos umas duas horas da tarde e quando nós descemos no Ludovico estava um monte de homem, aí nós fomos pra igreja com o povo. Ai quando terminou o padre disse que o Sandro estava liberado (Grifo meu) (Informação fornecida por Antônio Rodrigues Leite. Entrevistador: Edson Sousa da Silva. Comunidade de Centrinho do Acrísio – Lago do Junco - MA, abril de 2015).

O processo de luta é definido por Seu Antônio Leite como “guerra” e no segundo capítulo tratarei com mais veemência sobre este termo. A outra expressão usada por é estrangeiro que nos remete a quem é de fora e relaciona com grandes proprietários de terra, sendo eles os estrangeiros que se apossam da terra de quem tem raízes no local. Destaca-se ainda o interesse pelas leis, neste caso a Lei da Reforma Agrária nº 4504, de 30 de novembro de 196417 a qual se faz referência, o amparo legal e a necessidade de um advogado para garantir a posse da terra pelas quebradeiras de coco e trabalhadores rurais. O que se percebe é que a Igreja Católica burocratiza uma necessidade dos agentes sociais e resolve dar apoio. Pensadas de várias formas as estratégias de mobilização das quebradeiras de coco babaçu e dos trabalhadores rurais se intensificam ou se reordenam de acordo com as situações pelas quais passaram e passam. O interessante deste estudo está não somente nas formas de mobilização e organização, mas também na necessidade de organiza-se num modelo de educação para apropriação do conhecimento de leis, direitos e deveres, tendo em vista o não acesso à educação formal oferecida pelo Estado na época. Ou seja a educação dos agentes sociais torna-se necessidade. Conclusões Pensar o movimento social como formando por agentes de classes ligados a ações conflitantes, num processo de luta constante, não é suficiente. Levo em consideração neste trabalho as várias unidades de mobilização, suas formas de organização e níveis de autoidentidade, as lutas com seu antagonista e os conflitos contra a burocratização ou controle estatal (TOURAINE, 2002). No berço da criação das unidades de mobilização e, posteriormente, entidades burocraticamente legalizadas, consideram-se alguns elementos importantes, dentre eles, os motivos de organizar-se em cada etapa. O que trago aqui é uma análise do processo inicial da visão dos agentes sociais e levo em consideração a articulação dos movimentos sociais como uma estratégia mobilizatória e reivindicatória num período conflituoso. A ideia não é tratar ou identificar aqui quando a educação tornou-se importante para as quebradeiras de coco babaçu e trabalhadores rurais e passou a ser objeto de luta também. Mas entender os processos educativos que os próprios agentes passaram em suas trajetórias de luta pela terra e criação dos movimentos sociais. Durante a pesquisa percebi três momentos distintos a se destacar.

17

Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providencias. Sancionado pelo então Presidente da República Castelo Branco.

147 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Incialmente intenciona-se a conscientização18 dos agentes sociais da necessidade de ter políticas públicas básicas para se viver numa determinada localidade, da consciência das famílias pela mobilização em grupos e do Estado enquanto executor de direitos. Assim a própria articulação das quebradeiras de coco babaçu e dos trabalhadores rurais em unidades de mobilização ou em movimentos sociais, ou até mesmo nas instancias sindicais e religiosa, já existia um processo sutil de educação. Isto implica que no processo de luta pela terra necessita-se de um modelo educativo para preparar os agentes sociais para articular-se em prol da mobilização por direitos. A formação e a capacitação são os cursos sobre temáticas relacionadas ao meio ambiente, relações de gênero, política, identidade étnica, cooperativismo e associativismo. Tais elementos sejam mais no intuito de sensibilizar as lideranças19 sobre como lidar com os debates travados dentro e fora dos movimentos sociais. Pode ser que as reais intenções era preparar as lideranças para outros processos de lutas que viriam posteriormente, mas para se tornar uma liderança perpassa as barreiras de formações e capacitações. Mais adiante na análise percebe-se que o próprio engajamento, a confiança dos demais agentes e a forma como lida com todas as questões envolvendo a luta é que definem uma liderança. Assim tanto o espaço de educação, seja por conscientização, formação ou capacitação não se identificam com a educação formal, a intenção aqui também não são faz comparações nem diferenciações. O que se ressalta é que no bojo do debate da educação formal muito dependeu da mobilização das quebradeiras de coco babaçu e dos trabalhadores rurais. Se considerar que existe uma educação formal e que no período de luta pela terra coexistiu formas variadas de educar os agentes sociais, ainda faz parte do rol de lutas dos movimentos sociais. Outro fator importante percebido foi o processo de organização em associações e cooperativas que se dá numa situação de opressão sofrida pelos trabalhadores rurais e quebradeiras de coco babaçu, seus direitos infringidos e seus territórios reduzidos, resultando em conquistas como a os assentamentos, leis de preservação dos babaçuais e políticas públicas voltadas a estes povos. Considero que o fator educação nos movimentos sociais é um item que reforça o processo de luta, seja pela terra ou outros direitos a serem conquistados. O processo de conquista da luta está para além da conquista do espaço física ou do território e associa-se a melhoria da qualidade de vida, da busca das condições mínimas de sobrevivência. Assim a luta muda de local e o enfrentamento passa a ser outro, pois a insurgem da condição de colonialidade no intuito de tornar os embates com o Estado mais qualificados. Quando se trata da dinâmica da luta, chega um momento que a luta – não é que ela saia, porque os conflitos continuam, o confronto continua – mas tem outro lado do processo de luta que é a burocratização. É quando a luta consegue se organizar em cooperativas, formalizam a organização (política e economicamente) e isso exige um outro quadro de militantes, mais qualificados pra poder dialogar com as empresas internacionais, com o governo. Talvez tenha sido isso que levou a investir na qualificação, porque chega um ponto que entra num processo de dependência, de equipe técnica qualificada externa (ARAÚJO, 2013) É importante ressaltar que a luta pela terra e educação, podem ou sugerem, um fortalecimento do processo de conquista de políticas públicas, como saúde, infraestrutura, lazer, moradia; tais lutas também são acionadas em um determinado tempo e tornam-se chave para a descolonização das quebradeiras de coco babaçu e trabalhadores rurais, mas sem deixar a terra e suas identidades já pensadas. Percebe-se como se dar a dominação na questão da colonialidade e uma insurgência a esse domínio. Então a voz subalterna enfrenta a luta pra sair dessa condição subordinada. E de repente o investimento nas escolas pode ser uma estratégia dessa voz, dita subalterna, uma estratégia que estão assumindo pra sair 18

Para os agentes sociais a ideia de conscientização está associada a forma como educar as quebradeiras de coco babaçu e os trabalhadores rurais no âmbito social, econômico, político, cultural e ambiental reforçando os princípios estabelecidos pela vivencia em comunidade e nos movimentos sociais. 19 O termo liderança será utilizado como os agentes sociais o empoderam. Nas palavras de Dona Antônia Brito” são as pessoas que tocam o movimento” e que na prática não passam por uma formação específica. 148 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


dessa condição de subalterno. Sai da subalternidade pra se tornar sujeito de fala, de poder de voz, que de fato acontece com as quebradeiras de coco babaçu e os trabalhadores rurais do Médio Mearim. Ressalto ainda que as Escolas Famílias Agrícolas em seu processo de construção tinha uma posição de negação do Estado e se colocava como uma outra possibilidade de pensar a educação, fora dos princípios reconhecidos pela burocratização estatal. Referências LOHER, Eurico. Franciscanos no Maranhão e Piauí 1952 a 2007. 1ª edição. Teresina: Halley, 2009. HOBSBAWM, E. Era dos Extremos – O breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe. Teorias da etinicidade: seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. Tradução Elcio Fernandes. – 2ª ed. - São Paulo: Ed. Unesp, 2011. FIGUEIREDO, Luciene Dias. Empates nos Babaçuais. Do espaço doméstico ao espaço público - lutas de quebradeiras de coco babaçu no Maranhão. Dissertação de Mestrado – Belém, PA: UFPA – Centro Agropecuário : Embrapa Amazônia Oriental, 2005. Orientada pela Profª. Drª. Maristela de Paula Andrade. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terra de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo” faixinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2ª edição, Manaus: PGSCA – UFAM, 2008. ___________, Alfredo Wagner Berno de. FARIAS JUNIOR, Emmanuel de Almeida. [org.] Povos e Comunidades tradicionais: nova cartografia social. Manaus: UEA Edições, 2013. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico; tradução Fernando Tomaz (português de Portugal). 16ª Edição – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Trad. De Elia Ferreira Edel. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

149 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


UMA ANÁLISE CRÍTICA DO FILME TWELVE YEARS A SLAVE SOB À ÓTICA DA CRÍTICA LITERÁRIA AFRO-AMERICANA 1 Brenda Karla Reis Brito2 Francisco Welison Fontenele de Abreu 3 Renata Cristina da Cunha 4 RESUMO Este artigo, trabalho de conclusão da disciplina de Crítica Literária, ministrada no curso de Letras/Inglês da Universidade Estadual do Piauí/UESPI (2016.2), campus Parnaíba, tem como objetivo geral: Relacionar a Teoria Afro-Americana aos diálogos e cenas do filme Twelve Years a Slave, baseado no livro homônimo, lançado no Brasil em 2014. Em virtude do objetivo estabelecido, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, de cunho qualitativo, nessa perspectiva, refere-se à uma pesquisa bibliográfica embasada em autores como: Tyson (2006), Bivens (1995), Jones (2000), entre outros. Em termo de estrutura, o artigo contém reflexões iniciais e finais, além de três seções. A primeira seção se debruça sobre conceitos inerentes à Crítica Literária, mais especificamente à Teoria Afro-Americana. A segunda seção é dedicada à sinopse do filme Twelve Years a Slave e, por último, a terceira seção está dividida em quatro subseções que tratam da análise do filme Twelve Years a Slave pautada na Crítica Literária Afro-Americana. Nas reflexões finais, é enfatizada a presença marcante da Teoria Afro-Americana nas cenas do filme e nos diálogos entre os personagens, além de enfatizar que a escravidão contribuiu para formação social do racismo. Palavras-chave: Crítica Literária Afro-Americana; Filme Twelve Years a Slave; Racismo.

Introdução

O

despertar do interesse dessa pesquisa surgiu ao estudar a disciplina Crítica Literária e adquirir um fascinante gosto pela Crítica Literária Afro-Americana. Sendo assim, ao surgir a oportunidade de aplicar essa tendência em uma obra literária não ocorreu outro filme à mente: Twelve Years a Slave. Essa escolha não se deu apenas por ser um filme com forte presença da ideologia Racista, mas também, por trazer muito da história, da cultura e do psicológico dos escravizados que foram oprimidos pela manutenção da hegemonia branca. Nesse sentido, o objetivo geral deste trabalho é Relacionar a Teoria Afro-Americana nos diálogos e cenas do referido filme. Os objetivos específicos incluem: identificar os tipos de racismo presente no filme, além de analisar os efeitos da escravidão para consolidação de ideais racistas e preconceituosos. Este artigo trata-se de uma pesquisa bibliográfica, na qual o livro Critical Theory Today (2006) será a principal fonte de embasamento teórico para análise do filme Twelve Years a Slave por meio da Crítica Literária Afro-Americana, além de outras referências que serão de suma importância para corroboração da análise.

1

Trabalho apresentado no GT Discurso e Ideologia do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Acadêmica do curso de Letras/Inglês da universidade Estadual do Piauí. Parnaíba/Piauí. Endereço eletrônico: brendacarlla@outlook.com 3 Acadêmico do curso de Letras/Inglês da universidade Estadual do Piauí. Parnaíba/Piauí. Endereço eletrônico: welisonphbw@hotmail.com 4 Doutora em educação pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre em Educação Pela Universidade Federal do Piauí. É graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Piauí e em Letras-Inglês pela Universidade Estadual do Piauí. Parnaíba/Piauí. Endereço eletrônico: renatasandys@hotmail.com 150 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Crítica literária afro-americana: um percurso sobre os conceitos da teoria. A crítica Literária Afro-Americana está galgando seu lugar de destaque na Literatura Americana pois tem surgido pesquisas importantes sobre a história, cultura e opressão que os Afro- Americanos sofreram e tem sofrido devido os esforços dos brancos pela hegemonia. Um modelo de pesquisador nessa área é o crítico literário e diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Harvard, Henry Louis Gates, considerado um ícone da representação afro-americana nos Estados Unidos. Suas pesquisas têm sido de grande valia para valorizar a cultura afro-americana e contar a história de seu antepassado que por muito tempo foi mantida em anonimato. No entanto, ainda são estudos recentes e substanciais que tem proporcionado um arcabouço histórico e cultural dos Afro-americanos além de sua valorização. Esta tendência de crítica literária tem sido utilizada como teoria crítica para análises de produções literárias e artísticas que de alguma maneira lidam com questões inerentes aos aspectos históricoculturais dos afro-americanos, e também, aquelas que propagam ideologias racistas que por sua vez, foram se perpetuando ao longo dos anos. Além disso, essa teoria lida com a problemática social do racismo que nos leva a refletir criticamente sobre o impacto do mesmo dentro da sociedade, ou seja, suas consequências. Esta corrente de crítica literária, tal qual pelo próprio nome se constata, tem seu lugar de surgimento nos Estados Unidos onde se tem grandes marcas da escravidão, que estigmatizou o povo negro como inferior provocando, assim, grande impacto ideológico na sociedade da época, o qual se refleti até hoje em formas de preconceito racial. Existem diversos tipos de Racismo relacionados a Crítica Literária Afro-Americana que precisam ser esclarecidos para que haja uma clara compreensão da análise do filme Twelve Years A Slave. O primeiro conceito trata-se do Racialismo (Racialism) que designa o pensamento da superioridade, inferioridade e pureza racial pregando que as características moral e intelectual são biológicas assim como as físicas (TYSON, 2006). Este conceito pode se referir tanto aos negros quanto aos brancos, pois o branco acredita piamente em sua superioridade racial, ao passo que ao impor essa crença, simultaneamente, os negros se enxergam como inferiores, sendo assim o Racialismo preconiza que o caráter e a capacidade cognitiva de um indivíduo estão condicionados à sua etnia, desta forma este conceito se torna o núcleo dos demais tipos de Racismo, pois todos eles derivam dessa fonte de pensamento. Portanto, é de suma importância ressaltar que existe uma notável distinção entre Racialismo e Racismo, pois este último, é a dominação sociopolítica de uma raça sobre outra capaz de gerar atos discriminatórios e desigualdades sociais (TYSON, 2006, p. 360). Logo, o Racismo se torna mais abrangente, pois lida com questões políticas e sociais de poderio de uma raça sobre outra; algo que envolve uma massa humana mais densa apta a influenciar um processo de hierarquização sob a ideia imposta pelo Racialismo de que o intelectual e o cultural dependem do biológico. Em adição, existe uma classificação para os tipos de Racismo para tornar a compreensão deste fenômeno mais clara e objetiva. Dentre esta variedade, podemos citar o Racismo Institucionalizado (Institucionalized Racism) que se refere à propagação do Racismo em instituições pertencentes a sociedade como por exemplo: escolas, universidades, e até mesmo nas leis. (TYSON, p.360, 2006). Nas palavras de Jones (2000) o Racismo Institucionalizado poderá ocorrer de duas maneiras: nas questões materiais e no acesso ao poder. Institutionalized racism manifests itself both in material conditions and in access to power. With regard to material conditions, examples include differential access to quality education, sound housing, gainful employment, appropriate medical facilities, and a clean environment. With regard to access to power, example include differential access to information (including one’s own history), resources (including wealth and organizational infra-structure), and voice (including voting rights, representation in government and control of the media). (Jones, 2000, p. 1)

Sendo assim, é notório que prevalecem as manifestações racistas nas áreas sociais e políticas, pois existe uma desigualdade na distribuição de direitos básicos para o ser humano bem como o direito à moradia, educação, e saúde de qualidade. Além de uma deficiência no acesso ao poder pois a falta de acesso a

151 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


informações sobre sua própria história, exclusão do direito ao voto e a ausência de voz manifestada na falta de representação no governo e no controle da mídia. Essas são as áreas nas quais o Preconceito Institucionalizado se expressa. Em síntese, o racismo é um grave problema social que gera sérias consequências nos AfroAmericanos que, por sua vez, são marginalizados devido sua cor, e uma dessas consequências é o Racismo Internalizado (Internalized Racism) que se estabelece pela crença por parte de um afrodescendente na sua inferioridade, esta é uma reação psicológica construída na mente do indivíduo por meio da sociedade racista. Bivens (2005) compartilha o seguinte pensamento a respeito do Racismo Internalizado. “As people of color are victimized by racism, we internalize it. That is, we develop Ideas, beliefs, actions and behaviors that support or collude with racism. This Internalized Racism has its own negative consequences in the communities of color”. (Bivens 2005, p.44)

O Racismo Internalizado acontece porque os afro-americanos fazem parte de um sistema de opressão e dominância da hegemonia branca. Por isso, pode ocorrer a internalização da ideologia transmitida pela supremacia da raça dominante, no entanto é importante enfatizar que esse tipo racismo não pode ser confundido com problemas de baixa autoestima, estereótipo ou até mesmo preconceito racial, mas sim, é uma questão psicológica causada pelo sistema opressor. E deste último tipo de racismo deriva o Racismo Inter-Racial (Intra-racial Racism) (TYSON, 2006, p. 362) que provém da comunidade negra contra pessoas de pele ainda mais escura, por exemplo: um AfroAmericano demonstrar atitudes racistas e preconceituosas contra pessoas de características africanas ainda mais marcantes. Este tipode racismo também é uma reação psicológica causada pelo racismo internalizado o que de fato demonstra o efeito devastador deste problema nos afro-americanos. Uma breve síntese do filme Twelve years a slave Em 2013 o diretor Steve Mcqueen produziu o filme Twelve Years A Slave, uma adaptação da narrativa escravista de Solomon Northup. O filme foi baseado em uma história real e teve nove indicações ao Oscar, das quais ganhou três, incluindo melhor roteiro adaptado, melhor atriz coadjuvante e melhor filme. No filme, a história começa com uma rápida lembrança da vida de Solomon Northup como um escravo. Logo depois mostra sua vida como um homem livre em Saratoga, Nova York, no ano de 1941. Antes de ser levado como escravo Solomon passava o tempo com sua família e trabalhava como violinista em festas. Um dia, em um parque ele conheceu dois homens, Srs. Brown e Hamilton, que o convidaram para tocar em um espetáculo de circo, em Washington, por duas semanas, depois ele voltaria para casa bem recompensado. Ao chegar na cidade, eles vão jantar em um restaurante, e os dois homens embriagam Solomon (MCQUEEN, 2013, DVD). Ao acordar, Solomon está em uma prisão acorrentado. Então, entra um capataz para afirmar que a partir daquele momento Northup não era mais um homem livre, e sim, um escravo. Logo depois, ele foi transportado para Nova Orleans onde foi vendido para um senhor chamado Ford. Nesta fazenda Solomon sofreu tentativas de homicídio por um dos capatazes da fazenda, então, para não perder o dinheiro, o Sr. Ford achou por bem passar sua hipoteca para o senhor Epps, dono de uma plantação de algodão. O Sr. Epps demonstrava desequilíbrio emocional, castigava os escravos que colhiam pouco algodão, e cometia estrupo contra Patsey, uma de suas escravizadas. (MCQUEEN, 2013, DVD) Depois de muitos anos nesta fazenda Solomon conhece um Homem chamado Bass, que foi trabalhar em uma pequena construção de madeira na propriedade de Epps. Bass é completamente contra a escravidão e tem um pequeno desentendimento com o Sr. Epps por isso. Quando Solomon notou o posicionamento de Bass a respeito da escravidão, ele contou tudo que havia acontecido com ele e pediu-lhe que escrevesse uma carta para seus amigos do Norte dos Estados Unidos para que tomassem conhecimento de sua situação e viessem lhe resgatar com os documentos que provavam sua liberdade. Então, Bass escreveu a carta

152 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


e Solomon foi resgatado depois de doze anos. O filme termina com o emocionante reencontro de Solomon Northup e sua família (MCQUEEN, 2013, DVD). Análise do filme Twelve years a slave sob a ótica da crítica literária afro-americana Tendo em vista que já foi dado o arcabouço teórico da teoria Afro-americana e, também, a descrição do referido filme, agora, partiremos para fase da análise crítica do filme. Nesta ocasião analisaremos os diálogos entre os personagens do filme e algumas cenas nas quais se constatam os tipos de Racismo segundo a teoria do livro Critical Theory Today (TYSON, 2006) dentre outros autores, além de cenas de reforçam a Ideologia Racista. Evidências de racismo e racismo isntitucionalizado O primeiro diálogo à ser analisado é a conversa que os sequestradores de Solomon estão tendo com um conhecido dele no momento em que chega no parque. “Devil call his name, there he is here now! ” Nesta fala percebemos que um dos sequestradores comparara Solomon com uma figura das trevas, somente pelo fato dele ser negro. Esta é uma evidência clara de Racismo pois naquela época se tinha a crença de que os negros eram representantes das trevas devido sua origem Africana. (TYSON, 2006, p.360). Posteriormente, quando Solomon se encontra acorrentado em uma prisão, depois do seu sequestro, surgi um o homem que cuida dos escravos aprisionados, Solomon se encontra completamente atordoado e confuso pela sua situação e diz: “my name is Solomon Northup. “I’m a free man. I residente, in Saratoga New York, the residence of my wife and children equally free. And you have no right whatsoever to detain me. Então, o agressor diz: “you are not any free man”. Solomon retruca: “Now I promisse you, upon my liberation I will have satisfaction for this wrong. Depois disso, o agressor responde: Resolve this. Produce your papers.

Após esta pergunta Solomon fica sem argumentos para se defender pois não estava de posse dos seus documentos, muito embora, o homem soubesse que ele estava falando a verdade. No final da cena Solomon é gravemente espancado com uma tábua, por não admitir que era um escravo. Nesta cena se constata claramente a presença do Racismo Institucionalizado, pois embora os documentos dele provassem que ele era livre, o agressor não deu importância justamente por considerar Solomon inferior a ele (TYSON, p.361, 2006). Evidências de racismo internalizado e racismo institucionalizado Em um outro diálogo, Solomon está conversando com dois afro-americanos chamados de John e Clemens. Eles eram escravos sequestrados, diferentemente de Solomon que era um homem livre. No começo do diálogo Solomon diz acreditar que os dois artistas que o contrataram deviam estar procurando por ele, porém Clemens diz: “I’d be just as certain, they’re counting the money paid”. Solomon diz: they were not kidnappers, they were artists. Clemens responde: “you know that. The reality to coming is us being transported Southward. If I was to venture. After we arrive, we’ll be put to market and beyond that, well, and I suppose once in a slave state there’s only one outcome. E John, um dos escravos que estava entre eles, disse: Yeah, for y’all there ain’t nothing but that, but Jonh wasn’t kidnapped. John is just being held as debt, that’s all. Master pay his debt and john be reedmed.

Primeiramente, é notável a inocência Solomon em achar que os Srs. Brown e Hamilton estavam à sua procura, isso acontece porque ele vivia em um estado onde a escravidão não era mais permitida o que lhe fez acreditar na suposta bondade dos homens. Outro ponto importante deste dialogo é percebido na fala de

153 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


John que estava ansioso para voltar para seu “senhor”, embora, ele continuasse a ser tratado como um escravo. Portanto é perceptível que John sofria com o Racismo Internalizado pois sua mente estava resignada com sua condição. Para ele ser escravizado era natural, pois a sociedade da época lhe impunha a visão de que ele era inferior aos brancos devido sua raça (TYSON, p.362, 2006). E afinal de contas, ele não tinha outra saída, pois nada mais era lhe oferecido além da escravidão. Na cena em que o barco no qual Solomon está, atraca em Nova Orleans, chega um Senhor de escravos perguntando quem é o capitão do navio pois dentro dele, tinha um escravo chamado Clemens Rey que era propriedade dele conforme as leis da época. Então ele se refere ao escravo da seguinte forma: “I’m Mister Junas Rey. My solicitor has documentation verifying the nigger known as Clemens Rey is my property. Então, o advogado diz: “you are ordered to return that property or be charged with thievery.

Finalmente, a cena termina com o escravo que outrora queria ser livre da escravidão, agora abraça um escravista com aparente resignação e alegria. É perceptível a objetificação do negro, o tratamento que Clemens recebeu era comum em tal época pois eles eram vendidos como mercadoria, não passavam de coisas, isso contribuiu para criação de estereótipos, eles eram desvalorizados, considerados seres sem sentimentos devido sua cor. É possível constatar, também o Racismo Institucionalizado pois era a própria lei da época que considerava os negros inferiores permitindo, assim, a escravização deles (TYSON, p.361, 2006). Evidências de racismo e racismo ambivalente Na cena em que Solomon, agora, denominado Platt, estava em uma sala onde ele iria ser vendido com outros negros mostra que os escravos eram vendidos como objetos que dependo de suas qualidades valiam mais ou menos. Nesta mesma cena Solomon e Eliza foram vendidos para o senhor Ford. Porém, após inúteis tentativas, ele não conseguiu comprar os filhos de Eliza. No entanto, é perceptível que ele se compadece dela e repreende o vendedor escravista por não permitir a venda dos filhos dela visando mais dinheiro. Apesar de Ford compactuar com a escravização dos negros e fazer parte dela ele sentia compaixão deles. Sendo assim, é importante lembrar que de todos os senhores de escravos que são retratados no filme ele pode ser considerado o único que tratava os escravos como seres humanos, devemos levar em consideração que ele fazia parte do sistema da época e por isso cometia esses atos, mas é perceptível que ele sofria um conflito interno por isso. Essa atitude de Ford se encaixa no que Lima e Vala (2004, p. 406) chamam de Racismo Ambivalente. Neste tipo de Racismo o indivíduo branco tem atitudes pró e anti-negros, pois ele possui uma gama de sentimentos positivos e negativos em relação aos afro-americanos. O que gera um grande desconforto psicológico e, consequentemente um radicalismo e polarização de suas ações. Quando Solomon chega na fazenda do Senhor Ford ele conhece o chefe dos capatazes Tebeats, um homem cheio de raiva contra os negros. Enquanto eles trabalhavam derrubando árvores Tebeats cantava músicas que desvalorizavam a imagem do negro, no entanto, o que mais chama a atenção é que Tebeats não aceitava o fato de Solomon ser inteligente, culto e ter conhecimentos que ele não possuía. Pois para o capataz a função do negro era trabalhar. O pensamento de que os negros são inferiores é a base do racismo e era esse pensamento que os caucasianos tinham, e devido isso, eles acreditavam ter o direito de dominá-los. Tal pensamento de superioridade, fez que ele atentasse contra a vida de Solomon (TYSON, p.360, 2006). Na cena em que Eliza está chorando pelos seus filhos, Solomon a repreende e pede que ela pare de lamentar a perda deles. Entretanto, Eliza não aceita a repreensão feita por ele e acusa-o de bajular o Sr. Ford embora ele também fosse um senhor de escravos. Solomon afirma, em sua defesa, que sua posição é uma tentativa de sobreviver apesar das circunstâncias que lhes eram impostas. Embora ele soubesse que a atitude de Ford era errada ele cumpria as ordens para se manter vivo na esperança de ser livre outra vez.

154 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Evidências de racismo e racismo internalizado Patsey trabalhava na plantação de algodão do senhor Epps. Ela era considerada a melhor coletora de algodão pois sempre superava a produção diária exigida, como também, a produção dos demais escravos por isto ela começou a se destacar. Na cena em que Patsey pede para Solomon matá-la, eles fazem o seguinte diálogo. Patsey: “I have a request an act of kindness. All I ask, end my life. Take my body to the margin of swamp. Take me by the throat, hold me low in the water until I is still without life. Bury in a lonely place of dying.” Solomon responde: “I will do no such thing. The gory detail with which you speak. It’s melancholia. Nothing more. How can you fall in such despair? Patsey diz: “How can you not know? I ain’t got no comfort in this life. If I can’t buy mercy from you I’ll beg it. Do what I ain’t no strength to do myself”.

Nesta cena é tocante a convicção e intrepidez com que Patsey pede para ser morta pois ela se encontra cansada de ser violentada pelo Sr. Epps e de ser maltratada pela esposa dele. Um estágio emocional abalado ao ponto de pensar que seria melhor estar morta ao viver em condições tão degradantes. Esta cena exibida no filme retrata a realidade da época, as mulheres negras além de serem escravizadas eram, também, estupradas pelos senhores de escravos ocasionando traumas severos, pois além das práticas racistas as mulheres sofriam crimes sexuais. Fato que aguça a nossa percepção para uma correlação entre a escravização e o fato de Patsey ser uma mulher negra, sobre este assunto Bennett e Royle compartilham o seguinte pensamento: Implicit in our discussion has been the idea that there is a connection between the differences of race and of gender. In this respect, Patrick Williams and Laura Chrisman argue that any ‘discussion of ethnicity is always also by implication a discussion of gender and sexuality’. The reason for this is, not least, that ‘Women, as the biological “carriers” of the “race”, occupy a primary and complex role in representations of ethnicity . . . and it is women’s exercise of their sexuality which is an often unacknowledged major concern underlying such representations’ (Williams and Chrisman 1993, 17). In Western literature, black women have been doubly effaced. As novels such as Alice Walker’s the Color Purple (1982) and Toni Morrison’s The Bluest Eye (1970) make clear, black women are silenced both as black and as female. But it is precisely this doubled otherness which might help us begin to move beyond racial essentialism, beyond the repressive politics of identity. (BENNETT e ROYLE, 2004, p. 211-212)

Nesse sentido os autores supracitados afirmam que, de fato, existe uma interligação entre questões de gênero e raça. Devido este fato, as mulheres negras sofriam, e ainda sofrem por serem uma minoria dentro de outra minoria. Isso ocorre por que as mulheres são progenitoras e tem o poder de carregar a raça consigo, o que lhes concede um papel complexo na representação étnica. Além disso, segundo os autores, na época da escravidão nos Estados Unidos as mulheres eram silenciadas tanto por serem negras quanto por serem mulheres. (BENNETT e ROYLE, 2004, p. 211-212) Em uma outra cena acontece uma praga na plantação de algodão de Epps que julga serem os escravos o motivo da praga. Então, ele os leva para outra fazenda até que a dele se recupere da praga. Nesta cena é notável que Mr. Epps ver a figura dos negros como demônios que traziam pragas para as plantações. Ao voltar, Solomon começa a trabalhar na colheita do algodão juntamente com um homem branco chamado Armsby. Ao final do dia Epps vai contar a produção de cada um dos escravizados. Solomon colheu pouco e Armsby colheu menos ainda. Porém, somente Solomon foi castigado com chibatadas. Essa cena mostra claramente que a superioridade branca estava acima de qualquer ato de justiça. Pois embora eles estivessem na mesma condição, a cor de Solomon influenciou o seu castigo. Enquanto Armsby apenas recebeu uma palavra de ajuda do senhor Epps (TYSON, p.360, 2006).

155 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Um dos diálogos mais interessantes do filme é o que acontece entre Bass e Sr. Epps. Inicia quando Epps oferece água para Bass e demonstra preocupação com o bem-estar dele, enquanto os escravos estão em situações degradantes. Então ele diz: “what amused me just then was your concern for my well-being in this heat, when, quite frankly, the condition of your laborers It’s horrid. It’s all wrong. All wrong Sr. Epps”. Epps diz: “they ain’t hired help. They are my property. Bass retruca: “you say that with pride”. Epps responde: “I say It as a fact. Bass diz: “If this conversation concern what’s factual and what’s not, then It must be said that there is no justice nor righteousness in their slavery. But you do open up an interesting question. What right have you to your niggers, when you come down to the point? Epps responde: “what right? I bought them. I paid for them. Bass: “of course you did, and the law says you have the right to hold a nigger. But begging the law’s pardon, it lies. Suppose they pass a law taking away your liberty, making you a slave. Suppose. Epps fala: “that ain’t a supposable case.” Bass diz: “laws change Epps. Universal truths are inconstant. It’s a fact, a plain and simple fact that what is true and right is true and right for all. White and Black alike. Epps pergunta: “you comparing me to nigger, Bass?” Bass: “I’m only asking you, in the eyes of God, what’s the difference? Epps diz: “you might as well ask what the difference is between a white man and a baboon. I see one of them critters in Orleans. Know as much as any nigger I bought.” Bass argumenta: “Listen, Epps. These niggers are human beings. If they are allowed to climb no higher than brute animals, you and men like will have to answer for it. There’s an ill a fearful ill resting this nation. And there will be a day of reckoning yet.

No discurso de Epps é perceptível que ele se considera superior aos negros, inclusive os comparando com macacos. Para Epps os escravos não passavam de mercadorias que não possuíam sentimentos ou valor, então, para se defender dos argumentos de Bass, ele usa a lei que lhe concedia o direito de escravizar. Lei na qual se constata a presença de Racismo Institucionalizado e que propaga e mantém a hegemonia branca (TYSON, p.361, 2006). Assim como mostra, também, o posicionamento de um homem branco que, por sua vez, considerava a escravidão um ato de extrema injustiça e considerava-se igual aos negros, tomando uma posição abolicionista para tal época. Reflexões finais Cada cena mostrada no filme Twelve Years a Slave está carregada de fatos históricos que deixam claro na memória os horrores da escravidão. Indubitavelmente a escravização dos negros é o principal motivo da ideologia racista tão marcante em nossos dias. Portanto, é mostrado com detalhes a cultura afroamericana e um legado de luta pela vida e pelo direito da liberdade. De fato, os negros eram oprimidos por questões raciais que visavam o lucro dos fazendeiros donos de plantações e isso relata o lado obscuro das pessoas que por serem brancas se consideravam superiores em todos os aspectos, inclusive o intelectual. O filme mostra sem sombra de dúvidas a construção social do racismo, a maneira como a hegemonia branca fazia uso da cor para obter privilégios. É possível, claramente, constatar o racismo proveniente dos brancos se que consideravam superiores aos afro-americanos impondo essa ideologia a eles causando Racismo Internalizado, além do Racismo Institucionalizado que se manifesta no filme por meio das leis da época, que reforçavam a segregação e a inferiorizarão da população afro-americana ao permitirem a escravidão, além de fecharem os olhos a crimes cometidos contra os negros em lugares onde a escravidão já havia sido abolida. Referências BENNETT, Andrew; ROYLE, Nicholas. Introduction to Literature, criticism and theory. 3 ed. Grã-Bretania: Pearson Longman, 2004.

156 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


BIVENS, Dona; LEIDERMAN, Sally; MAJOR, Barbara; POTAPCHUK, Maggie. Flipping the Script: White Privilege and Community Building.Estados Unidos: MP associates, 2005. Disponível em:< http://www.racialequitytools.org/resourcefiles/potapchuk1.pdf >. Acesso em 10 de abr. 2017. JONES. C. P. Levels of Racism: A Theoretic Framework and a Gardener’s Tale. USA: American Journal of Public Health, 2000. Disponível em:<http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1446334/pdf>.Acesso em 01 de set.2016. LIMA, M.E.O; VALA, J. As Novas Formas de Expressão do Preconceito e do Racismo. Estudos em psicologia: Scientific Electronic Library Online, 2004. Disponível em :< www.scielo.br/pdf/%0D/epsic/v9n3/a02v09n3> acesso em 10 de abr. 2017 TYSON. Louis. Critical Theory Today: a user-friendly guide. 2 ed. New York. Routledge, 2006. TWELVE YEARS A SLAVE. Steve McQueen. Brad Pitt. United States of America. River Road entertainment, 2013, DVD.

157 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A UESPI EM SEU PAPEL SOCIAL: OS EGRESSOS DE LÍNGUA INGLESA DA TURMA 2015.11 Assunção de Maria Mendes da Silva2 Afrânio Bezerra de Sousa3 RESUMO Este artigo é um recorte da monografia apresentada para conclusão do curso de Licenciatura em Letras/Inglês pela UESPI – Universidade Estadual do Piauí, Campus Parnaíba (2015.2) que retrata o Ensino Superior, estritamente no caso da UESPI – Campus Parnaíba, com ênfase nos discursos dos estudantes egressos de 2015.1 do curso de Licenciatura Plena em Língua Inglesa. Dessa forma, buscou-se entender o seguinte questionamento: Qual o perfil social dos acadêmicos graduados no Curso de Letras Inglês da UESPI? Para responder esta questão, focou-se no seguinte objetivo geral: Mostrar o perfil social dos estudantes egressos, da turma de 2015.1. Para alcançar este objetivo foi realizada uma pesquisa de campo com abordagem qualitativa, a qual mostrou os discursos, as falas de estudantes que trazem à tona questionamentos sobre sua passagem pela universidade, eles falam de suas atuações no mercado e meio social. Diante das falas dos egressos pôde-se entender que a universidade preparou os estudantes para o meio social, mesmo diante de algumas falhas apontadas pelos egressos. Com isso, espera-se do Ensino Superior o suporte necessário para entrar no mercado de trabalho e um convívio social. Destarte, constatamos que o perfil social do acadêmico de Letras Inglês é de profissionais comprometidos com o seu papel de professores de Língua Inglesa, participam da formação continuada, entre outras características. Palavras-chave: Formação Inicial; Ensino Superior; UESPI; Perfil Social do Egresso.

Considerações iniciais

O

s professores que atuam na área de ensino da Língua Inglesa são importantes mediadores do ensinoaprendizagem desse idioma. Dentro das salas de aula eles são facilitadores desse processo, uma vez que adquirir uma nova língua é um processo que envolve: a função de articulação dos professores comprometidos com seu papel social e da interação dos alunos, materiais didáticos, e a qualificação do professor, a formação continuada, e atualização do conhecimento. Esses itens contribuem para uma educação de qualidade. Embora seja exigida qualificação profissional do professor, é preciso também que haja uma participação ativa dos estudantes, com o feedback – respostas dos estudantes, como a participação e interação com a disciplina estudada. Dentro dessa perspectiva de ensino-aprendizagem da Língua Inglesa, o professor assume um papel social de contextualizar o conhecimento, com base no conhecimento de mundo do aluno e da realidade que ele está inserido. Assim, eles são graduados pelas diversas formas de Ensino Superior existentes no Brasil, as IES (Instituições de Ensino Superior) como as universidades, alguns com especializações e pós-graduações como o Ensino a Distância, Ensino Presencial, dentre outros. Dessa forma, o objeto de estudo dessa pesquisa é o processo de formação inicial na universidade de futuros professores de Língua Inglesa, em que os egressos da universidade entram no mercado de trabalho. De acordo com Formosinho (2009), a formação inicial de professores é realizada pelas instituições de Ensino Superior, em que os professores direcionados às escolas de ensino básico, passam de nível médio ao nível superior, por meio da academização, o professor graduado passa a ser habilitado a lecionar. Mediante todos esses aspectos, surgiu o interesse de investigar a formação inicial do professor de Língua Inglesa traçando o perfil social do acadêmico egresso do curso de Licenciatura Plena em Letras Inglês, e 1

Trabalho apresentado no GT.05 – Discurso e Ideologia do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduada em Letras/Inglês pela Universidade Estadual do Piauí. Parnaíba-PI. Endereço eletrônico: maryaraios@gmail.com. 3 Professor e Coordenador na Instituição Universidade Estadual do Piauí. Parnaíba-PI. Endereço eletrônico: aspen7219@hotmail.com. 158 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


até mesmo a curiosidade de entender, como ocorre o processo de aprendizagem de um acadêmico em Língua Inglesa de acordo com o Projeto Pedagógico Curricular (PPC). A pesquisadora decidiu focar esta pesquisa no tema da formação inicial dos professores como seres sociais de Língua Inglesa na Universidade, devido aos poucos trabalhos voltados para o Ensino Superior, além de tentar mostrar para futuros ingressantes à Universidade de Licenciatura Plena em Letras Inglês, como ocorre o ensino-aprendizagem dentro da universidade pública escolhida. Esta pesquisa contém uma análise que proporciona uma reflexão crítica sobre o curso de Letras Inglês e o estudante egresso graduado pela universidade. Nessa perspectiva, o presente estudo busca investigar: Qual o perfil social dos acadêmicos graduados no Curso de Letras Inglês da UESPI? Para responder esta questão, focou-se no seguinte Objetivo Geral: Mostrar o perfil social dos estudantes egressos, da turma de 2015.1, diante da formação inicial do curso de Letras Inglês. Para alcançar o Objetivo Geral, foi traçado um Objetivo Específico: Identificar qual o entendimento do ser social que foram repassados na universidade, enquanto estudantes de Língua Inglesa. A relevância desse trabalho consiste em analisar o perfil social da formação dos futuros professores de Língua Inglesa que atuarão nas diversas modalidades de ensino, empreender sobre esse tema é satisfatório, uma vez que, a pesquisadora vivenciou este estudo, porém preocupa-se em mostrar essa formação para aqueles que não participam dessa experiência. Além, claro da crescente procura do aprendizado de Língua Inglesa, como um instrumento preparatório para o mundo moderno. A formação do professor de língua inglesa Formação inicial de professores é um tema diversificado e complexo, no que diz respeito às oportunidades que a profissão proporciona e às problemáticas que acarretam o ensino-aprendizagem, deve-se uma preocupação com os cursos de licenciaturas que formam professores para várias modalidades de ensino como: a educação básica, para cursos de idioma, para inúmeras funções que o mercado oferece mediadas pelas práticas pedagógicas no contexto social do Brasil. Com base nas deficiências que são observadas na educação, tem-se o conceito do ponto de vista de Perrenoud (1997) a profissionalização de um professor só será um progresso quando, do ponto de vista social, o aumento do nível de instrução geral se tornar prioritário, numa tentativa de acelerar uma evolução global da sociedade. Os acontecimentos por detrás dos muros são uma série de fatores complexos e que são levados adiante com o passar do tempo Perrenoud (2001) sugere que o processo de formação deveria ser baseado em “paradigmas elucidativos”. Eles seriam aplicados nas teorias de comunicação; de referências psicanalíticas e orientação psicossociológica (dinâmicas de grupos, liderança, redes de comunicação, atitudes); noções profundas de antropologia social e cultural; formação sobre os objetivos pedagógicos e avaliativos; elementos de sociologia da educação; e, finalizando com uma reflexão epistemológica e didática sobre as aprendizagens e o ensino em comunicação. Esse é um modelo sugerido pelo referente autor que direciona ao modelo do “professor profissional ou reflexivo”, de modo a inserir a didática, a teoria e prática. O professor torna-se um profissional reflexivo, capaz de desencadear o modelo universitário que aborda o ensino de teorias em sala de aula e em seguida a parte prática com os estágios, e majoritariamente esse é o modelo que prevalece nas instituições de ensino de Letras do país. Ainda nesse contexto da problemática da formação do professor, sobre os problemas que acarretam o desempenho atual na rede de ensino em nosso país na visão de Gatti, Barreto e André (2011, p. 92-93.): Fatores como: as políticas educacionais postas em ação, o financiamento da educação básica, as culturas nacional, regionais e locais, os hábitos estruturados, a naturalização em nossa sociedade da situação crítica das aprendizagens efetivas de amplas camadas populares, as formas de estrutura e gestão das escolas, a formação e a atuação dos gestores, as condições sociais e de

159 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


escolarização de pais e mães de alunos das camadas populacionais menos favorecidas e a condição do professorado.

Todos esses aspectos interagem com a realidade e as formas de aprendizagem que acontecem no Ensino de Base, vale ressaltar a função central, o posicionamento do professor dentro das salas de aulas que também é importante a sua atuação como um ser social, tanto em questões motivacionais, quanto ao próprio ensino em si. De acordo com um estudo feito recentemente por Gatti (2010) quanto às características e problemas da formação de professores no Brasil, a autora, ao analisar projetos pedagógicos de cursos de licenciatura de instituições públicas e privadas de quatro regiões do país, revela um panorama desolador quanto às condições dos cursos de formação de professores para a educação básica, mostrando a necessidade urgente de uma revisão profunda nas estruturas dos cursos. Uma das causas apontadas pela autora para essa situação, que sofre implicações da pulverização na formação e indica uma formação frágil, distante das necessidades formativas de professores para atender às exigências da educação básica, é a ausência de um eixo formativo para a docência. Como sugere Formosinho (2009) a formação de professores tem suas particularidades intrínsecas em relação às outras profissões, uma vez que a docência é uma profissão que somente é aprendida na experiência diária. Até por que ela dá para ser aprendida por meio de observações do comportamento em sala de aula com os nossos professores da universidade. Desse modo, pode-se dizer que a formação de professores assume um caráter diferente em relação a outras profissões e sua formação já começa dentro da universidade por meio do desempenho como aluno, e a partir disso pode-se entender o perfil social do estudante como futuro professor. O Ser Professor Existem muitos conceitos sobre o professor, e sobre o ser professor, e para entender alguns deles temos abaixo autores que tecem seu ponto de vista sobre esse ser pessoa e profissional. Conforme Ferreira (2003, p.04) “ser professor significa tomar decisões pessoais e individuais constantes, porém sempre reguladas por normas coletivas, as quais são elaboradas por outros profissionais ou regulamentos institucionais”. Com isso ser professor significa, antes de tudo, ser alguém capaz de tomar uma decisão transformadora e com o seu conhecimento e a sua experiência atingir e desenvolver o outro dentro do contexto pedagógico. Embora essa tomada de decisão seja, às vezes, rígida a primeiro momento. Pode-se dizer que existem diferentes pontos de vista acerca da profissão professor, alguns deles como: é uma profissão nobre, é um ser de uma representação social única que favorece a comunidade, é fundamental para vida profissional de muitos que ingressam na escola, é visto como a base para a formação educacional e cultural do indivíduo. De acordo com Formosinho (2009, p.33) professor “é o licenciado, com ou sem habilitação profissional completa, que dá aulas de modo permanente”. Desse modo, percebe-se que para exercer a função não, necessariamente, precisa ser um licenciado de uma disciplina específica, o que nos leva a entender que qualquer professor está apto para tal atividade em sala de aula. Para Abreu (1987) “o saber profissional não se resume, a saber, dar aulas, ele consiste fundamentalmente em transformar as pessoas, desenvolvendo as suas potencialidades, o professor é agente de transformação de desenvolvimento humano”. Completando a ideia do autor acima temos a visão do Ferreira (2003, p. 5): O professor não é um técnico, isto é, que os atuais processos de formação de professores pecam por darem ênfase exagerada aos processos técnico-metodológicos, não estamos dizendo que a prática educativa pode vir a ser construída apenas a partir da experiência. Pelo contrário, embora não se possa estabelecer uma supremacia da teoria sobre a prática ou vice-versa.

160 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Como dito acima o professor não é apenas um técnico, até porque um técnico a sua duração de estudo é de um ano e meio, duração menor em relação ao professor. A sua posição social está relacionado ao aspecto qualitativo, ou seja, ele precisa ajustar sua formação às múltiplas perspectivas sociais existentes. Curso de Letras Inglês conforme o PPC O Projeto Pedagógico Curricular (2015) relata que, o curso de Letras Inglês que habilita o profissional a ser professor de Língua Inglesa por meio da Licenciatura Plena em Letras Inglês teve seus atos legais de autorização pela resolução CEPEX nº 009 de 13/03/2012, Atos legais de Reconhecimento no Decreto Estadual nº 13.939 de 05/11/2009 com a resolução CEEP/PI nº 167/2009 Parecer CEEP/PI nº182/2009. A metodologia de ensinar e aprender utilizada pelo curso de Letras Inglês de acordo com o PPC mais atualizado de 2015 listamos algumas das principais metodologias, entre elas: a interação articulada entre teoria e prática; a aproximação entre o conhecimento, o aluno, a realidade e o mundo do trabalho onde ele se insere; transposição do conhecimento para as situações diversas da vida e prática profissional. Ademais, o curso oferece sobre a didática a relação entre teoria e prática quanto ao fazer aprender; promove a multiplicidade dialogada com várias áreas do conhecimento para compreender a realidade da nova sociedade e as novas técnicas de trabalho; a flexibilidade e diversificação do currículo, das atividades acadêmicas e da oferta; a formação integrada à realidade e a educação continuada. A universidade realiza uma política de extensão como eventos culturais, técnicos e científicos, segundo o PPC (2015) a atividade de extensão desenvolvida no curso de Letras Inglês está voltada para serviços prestados à comunidade, como forma de comunicação entre universidade e sociedade, são elas atividades de disciplinas em extraclasse. A política de apoio ao discente divide-se em monitoria, programa de nivelamento, regime de atendimento domiciliar, núcleo de apoio psicopedagógico (NAPPS), ouvidoria online com sugestões criticas elogios opinar. Auxílio moradia e alimentação, auxílio transporte. Além disso, a universidade mantém convênios com diversas instituições e empresas públicas e privadas, para os estágios. Análise dos resultados Com base nessas definições buscou-se verificar o Entendimento dos investigados acerca do ser professor de Língua Inglesa, e qual o perfil do profissional que a Universidade Estadual tem formado. Inicialmente apresenta-se o perfil dos estudantes egressos. O Perfil Social do Estudante Egresso de 2015.1 A pesquisa desenvolveu-se com um questionário que foi aplicado aos professores graduados em Letras Inglês, que continha 11 questões abertas e fechadas, cuja faixa-etária varia entre 22 a 29 anos, sendo 4 (quatro) do sexo feminino e 3 (três) do sexo masculino. Destes 3 (três) têm em média 3 anos de profissão em escolas públicas e particular no Ensino de Base e 2 (dois) têm em média um ano e meio em cursos de idiomas. As abordagens para traçar o perfil deles foram baseadas em questionamentos como:

Além da formação inicial você participa de outra formação continuada, se participa em qual área?

Nesse questionamento, 4 (quatro) deles estão cursando Pós- graduação, sendo que apenas 1 (um) fez Pós- graduação em Linguística Aplicada e os demais fazem, especialização em Metodologia do Ensino da Língua Inglesa, enquanto que 2 (dois) participam de curso de Inglês para melhorar a fala do idioma, e apenas 1(um) não participa de uma formação continuada. Com relação ao conhecimento das quatro habilidades – Reading, Writing, Speaking, Listening ao entrar no curso de Letras Inglês, as respostas se dividiram em três grupos, de modo que dos 7 professores, apenas 1 161 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


(um) entrou no curso com o conhecimento de videogames e do Ensino Médio, 3 (três) faziam Leituras e ouviam em Inglês e 3 (três) apenas ouviam (compreendiam) Inglês. Adquiriu fluência na Língua Inglesa suficiente para a docência – Reading, Writing, Speaking e Listening

ao sair do curso de Letras Inglês?

As respostas se dividiram em dois grupos 4 (quatro) disseram que possuem as quatro habilidades – porém tiveram que se dedicar fora da universidade, no entanto estão aptos à docência e outro grupo de 3 (três) conseguem efetuar as quatro habilidades, mas com dificuldades na fala, porém saíram da universidade com essa dificuldade e por isso continuam fazendo curso de Inglês para melhorar.

Qual a sua visão de como deve ser o ensino da Língua Inglesa nas escolas?

As respostas variaram em três grupos de pensamentos, sendo que o primeiro grupo acredita que deva aumentar a carga horária da disciplina em Inglês, o segundo grupo entende que o ensino da Língua Inglesa deva acontecer trabalhando o lúdico e a gramática, o terceiro grupo tem uma visão de que a comunicação é a principal função do ensino da língua, portanto deve haver mais diálogos em sala de aula entre os alunos. Os PCNs (1998) sugerem que o ensino da LI ocorre de forma que seja considerado o conhecimento de mundo dos estudantes, e que haja textos curtos de modo a envolver os estudantes com a língua Estrangeira. E fica claro que as quatro habilidades são trabalhadas de forma aleatória e sem muita ênfase no – Reading,

Writing, Speaking e Listening. Em qual modalidade de ensino você atua hoje?

As respostas variaram, eles trabalham em escolas particulares e públicas em Ensino Fundamental e Médio; e em cursos de Idiomas do básico ao avançado. Como relata o Projeto Político Curricular (2015) o Curso de Licenciatura Plena em Letras Inglês pretende formar um profissional que interaja com as atividades humanas, por meio da criticidade na linguagem, especificamente a verbal, seja no contexto oral ou de escrita, que possa atuar como professor, pesquisador, crítico literário, revisor de textos, assessor cultural, entre outras atividades. Nesse sentido pode-se observar que o perfil social dos professores entrevistados são professores advindos de escolas públicas durante seus estudos no Ensino de Base. Quanto ao mercado de trabalho está voltado exclusivamente ao campo de lecionar, eles não participam de outra atividade que não seja dentro a sala de aula seja em curso de idiomas, ou em escolas particulares e públicas. Entrevistas dos Estudantes Egressos Na busca das possíveis respostas para tais questionamentos a partir dos textos seguintes são as falas, as vozes, dos docentes entrevistados, dando depoimentos e relatando fatos que vivenciaram durante seu aprendizado da docência dentro da Universidade. Essas análises foram subdivididas em categorias, onde cada subtítulo representa a pergunta das entrevistas. SOBRE O ENTENDIMENTO DO SER SOCIAL PROFESSOR DE LÍNGUA INGLESA Não se trata apenas de transferir conhecimentos, mas sim de construir competências linguísticas e culturais da língua alvo junto com um letramento cultural, informacional e tecnológico adequado. Para isso, o professor deve escolher os recursos, a linha didática, o ritmo, etc., apropriados para esse fim e monitorar o êxito e a progressão de cada aluno. Isso dá mais liberdade ao professor – e mais responsabilidade ao mesmo tempo, segundo (WEININGER apud LEFFA, 2008). Professor Gama: é uma ponte entre o conhecimento e o aluno, tentando fazer com que ele entenda o conteúdo, porém o professor é encarado como um monstro. Professor Alfa: não é só ensinar as estruturas, a entender, a ler, falar, nem escrever, ensinar somente a ortografia, mas eles devem ser inseridos na cultura dos falantes de Língua Inglesa.

162 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


As respostas da maioria dos professores ficaram focadas basicamente em dois pontos de vista, enquanto uma parte acredita que ensinar Inglês é mediar o conhecimento que ultrapassa as barreiras da sala de aula e não apenas ensinar gramática e as quatro habilidades com direcionamento apenas para resolver exercícios dentro da sala de aula, outros teceram conceitos mais amplos e associados às novas tecnologias, ao lúdico como será visto adiante: Professor Pi: Antes achava que ser professor de Inglês era só ensinar um texto e traduzir focando na gramática, após a faculdade descobri que vai além das quatro habilidades, pois explicar a eles aspectos históricos e culturais é importante, como caiu nesse último ENEM uma questão sobre os indígenas americanos e esse assunto só aprendi na faculdade se os professores do ensino Médio focassem também na história e cultura americana, os estudantes se interessariam mais e teriam mais chances de serem aprovados nos vestibulares, e entenderiam melhor o universo dos falantes da Língua Inglesa.

Nesse depoimento o professor enfatizou que não se pode focar apenas na gramática e a maioria tem essa mesma linha de pensamento, eles acreditam em um ensino mais contextualizado e não limitado aos materiais didáticos. A GRADE CURRICULAR DO CURSO DE LETRAS INGLÊS 2016.1 A grade curricular do curso de Letras Inglês – é formada por disciplinas da área de letras Inglês, de cunho pedagógico, Didática, Língua Inglesa I, II, III e IV, e no sentido de propiciar o contato do futuro-professor com a sala de aula tem-se os estágios I e II supervisionados, estudos linguísticos e literários com um ensino para a formação do professor de LI. Professor Lâmbida: A grade é defasada, muito cansativa porque são milhões de trabalhos, no último ano a gente não conseguia render no estagio, nas provas, nos seminários, artigos, no TCC, em tudo, e eu sinto falta das disciplinas que deveriam ser pré-requisitos como Cultura dos, a mesma coisa com Língua Inglesa I, II, III, IV e V. Professor Alfa: Mal distribuída, já que o foco é ensino e estar em sala de aula, e existe muito literatura no fim do curso, e estar em sala de aula no último ano não foi suficiente, e muitas vezes não sabemos nem o que estudar. Professor Ni: Não temos uma disciplina específica par ao lidar com o EJA e aluno com deficiência, falta uma disciplina para lidar com crianças especiais, eu tenho uma aluna com deficiência, mas as colegas de sala que me ajudam a interagir.

Nos relatos é visível uma insatisfação da maioria dos professores quanto à grade que eles estudaram. De acordo com eles, as diversas atividades das disciplinas exigidas ao fim do curso sobrecarregam os estudantes e limitam o desempenho qualitativo deles na prática pedagógica. Contudo, vale ressaltar que a nova grade curricular da universidade passou por mudanças e está distribuída de maneira diferente. A FORMAÇÃO INICIAL DOS ACADÊMICOS FACE À UESPI CAMPUS PARNAÍBA No questionamento, quanto ao conhecimento da Língua Inglesa você se considera um profissional apto para a docência seja no Ensino Regular, em Escolas de Idiomas, Ensino Superior, Ensino a Distância? Como você classifica o modelo de avaliação na universidade, regular, bom, ótimo e por quê? Quais suas considerações sobre o aprendizado do ser professor que foi estudado na instituição? Um grupo que considerou a universidade qualificada são hoje professores de cursos de idiomas e de escolas particulares, porém eles deixaram claro que a universidade tem algumas falhas. Vejamos as principais falas que compuseram os pensamentos deles:

163 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Professor Gama: Considero a minha formação boa, porque eu sempre fui muito esforçado, sempre busquei assistir séries, ouvir músicas em inglês, leio em inglês, fiz curso de idiomas e o inglês que eu tenho hoje eu consegui aqui... Então tudo isso contribuiu para minha formação. Professor Eta: O professor pode ser mestre, amigo, psicólogo, médico de apaziguador ou ele pode ser apenas ele mesmo sem se importar com o que acontece em sua volta, pode ser um simples professor, pai, mãe, tudo isso gera algum tipo de sentimento no aluno, claro que não posso dizer que a universidade não me graduou.

Como visto acima constamos que eles consideram o ensino da universidade adequado e que apesar de algumas falhas não afetou o desempenho deles na carreira profissional, já que eles buscaram também conhecimento fora da universidade. Professor Ômicro: A universidade deveria ofertar mais eventos voltados para os estudantes do Ensino de Base. A grade curricular deveria ser mais especifica para Ensino Infantil, Fundamental, Médio regular, Ensino de EJA, Ensino para deficientes e para curso de idiomas que iremos enfrentar em nossa carreira profissional. Faltou mais contato com a comunidade, por exemplo: a universidade poderia organizar eventos de concurso de talentos, alguma festa de Língua Inglesa, para serem adaptados a qualquer instante.

Essa fala podemos associar o que é mencionado por Formosinho (2009) que defende o aprofundamento do saber como uma função constituinte da universidade; desse modo percebe-se a sua razão de ser. Professor Delta: Infelizmente eu senti uma deficiência que a universidade deixou foi quanto à pesquisa, mas muita coisa mudou com a chegada do PIBIC, PIBID, porque apenas no fim do curso que aprendemos mais sobre artigos e resenhas.

O Professor Delta parafraseando Dias (2009) no que tange a legislação brasileira, há muitas lacunas quando o assunto é formação de professores neste nível de ensino, a docência universitária, no parágrafo 1º estabelece que pelo menos 30% da carga horária seja destinado à pesquisa incluindo o trabalho de monografia e os 70% destinado ao conteúdo específico do curso com as disciplinas de formação didático-pedagógica. Destarte, é preciso ser feito muito trabalho para que o curso de graduação qualifique os futuros profissionais com mais enfoque na pedagogia, o lado humano, como lidar com as novas adversidades para viver no meio social. Metodologia da pesquisa Essa pesquisa é de campo, conforme Minayo (2011) o trabalho de campo aproxima o pesquisador da realidade, na qual ele está pesquisando, e estabelece um diálogo com os autores que confirmam as teorias às práticas que faz parte da pesquisa social. A abordagem que mais se adequa ao trabalho é a qualitativa – que permite examinar aspectos subjetivos e abrangentes, segundo Gil (2006). Dentro dessa abordagem qualitativa muitos aspectos subjetivos ficam mais claros para ser entendido. Esse estudo foi realizado na cidade de Parnaíba-PI, na instituição Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Campus Parnaíba, e os participantes são representados pelas pronúncias das letras do alfabeto grego como, por exemplo, alfa, beta, gama. Os sujeitos da pesquisa foram os estudantes egressos da turma de 2015.1 da Universidade Estadual, apenas alguns foram selecionados de acordo com a disponibilidade de cada um e critérios que foram préestabelecidos para possibilitar essa análise. A técnica escolhida para a pesquisa inclui entrevistas orais, gravadas, que servem de apoio ao cerne da pesquisa e à fundamentação teórica utilizada.

164 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O questionário desta pesquisa constitui-se de 11 questões abertas e fechadas e o roteiro de entrevista possuem 11 questões previamente estruturadas, para serem aplicadas aos entrevistados. Para a realização dessa pesquisa, existem também, alguns termos éticos direcionados aos participantes desse estudo – à Universidade Estadual e aos 7 estudantes como: a carta de encaminhamento, o roteiro de entrevista, termo de consentimento de participação, termo de consentimento de livre esclarecido. Considerações finais Pudemos inferir que na formação inicial acadêmica dos professores investigados ocorreu algumas deficiências, porém as dificuldades de aprendizagem da Língua Inglesa foi um problema para muitos, no entanto, foi um impulsionador para que eles buscassem mais conhecimento fora da universidade, que mostrou o quanto é possível alcançar êxito. Mas, mesmo diante das dificuldades, os egressos buscaram conhecimento fora da universidade e não ficaram exclusos do mercado de trabalho. Diante das reclamações feitas por eles como: no caso de estudarem muitas literaturas; a falta de leituras mais atrativas; e ler apenas os livros obrigatórios, não excluindo os clássicos; que deveriam existir mais disciplinas para aprenderem a lidar com as necessidades especiais, como lidar com os estudantes do EJA; sobre as avaliações que deveriam ser mais rigorosas, entre outras mostradas no texto. Destarte, o perfil social do acadêmico formado pela UESPI é composto por: egressos conscientes e comprometidos com o papel social de professor de Língua Inglesa, profissionais que estão inseridos no mercado de trabalho e procuram aprimorar mais seus conhecimentos por meio da formação continuada, pósgraduação (Lato Sensu). Assim, muito mais do que apenas perguntas e respostas essa foi uma experiência na qual causou reflexão mútua para os envolvidos nela e mobilizou a continuidade nessa linha de pesquisa para obter mais conhecimentos e somar com os estudos na comunidade universitária, por meio dessa troca de experiência. REFERÊNCIAS ABREU, Manuel Viegas de. O perfil do professor no horizonte da Reforma do Sistema Educativo. In Ser professor – Contributos para um debate. Porto: SPZN. 1987. Disponível em: DIAS, Ana Maria. Em comunicação oral apresentada no I no Fórum de Didática e Prática de ensino, realizado em Salvador em Setembro de 2009. FERREIRA, Jorge Carlos Feliz. Reflexões sobre o ser professor: a construção de um professor intelectual. Disponível: < http://www.bocc.ubi.pt/pag/felz-jorge-reflexoes-sobre-ser-professor.pdf>. Acesso: 10 Maio, 2015. FORMOSINHO, J. Formação de Professores: Aprendizagem profissional e acção docente. Porto: Porto, 2009. GATTI, B. Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educação & Sociedade, v. 31, n. 113, p. 13551379, Campinas, São Paulo, 2010. _____, B; BARRETO, E.S. de S.; ANDRÉ, M.E.D.de A. Políticas Docentes no Brasil: um estado da arte. Brasília: UNESCO.2011. GIL, Antônio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 2006. LEFFA, Vilson J. Metodologia do ensino de línguas. <http://www.leffa.pro.br/Metodologia_ensino_línguas.pdf> Acesso: 28 Nov. 2015.

2003.

Disponível

em:

_______, Vilson J. O Professor de Línguas Estrangeiras: Construindo a profissão. (org.).. – 2.ed., Pelotas: EDUCAT, 2008. DESLANDES, Suely Ferreira; GOMES, Romeu; MINAYO, Maria Cecília de Souza. (org.). Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade. 30. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. PERRENOUD, Philippe. Práticas pedagógicas e profissão docente: 3 facetas. In Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997. Disponível em: < http://www.scielo.br/cgibin/wxis.exe/iah/>. Acesso: 16 Junho, 2015.

165 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


APÊNDICE A – Questionário destinado aos acadêmicos do curso de Letras Inglês 2015.1. 1Quando você entrou no curso você: Já tinha fluência na Língua Inglesa ( ) Apenas lia em Inglês ( ) Apenas ouvia e entendia em Inglês ( ) Apenas escrevia em Inglês ( ) Apenas falava corretamente as palavras ( ) Outros _________________________________________________ 22015.1 foi o ano da sua graduação em Letras Inglês, ao término do curso você: Adquiriu fluência na língua inglesa suficiente para a docência ( ) Apenas escuta e entende em Inglês ( ) Apenas escreve em Inglês ( ) Apenas fala corretamente em Inglês ( ) Ler, escrever e falar em inglês adequadamente para a docência ( ) Tem dificuldades em algumas das anteriores ( ) Outros 3Por que você se propôs a ser Professor de Inglês? 4Você é formado em outra área, qual? 5Em qual modalidade de ensino você atua hoje? 6Quais são seus desafios atuais em sala de aula? 7Além da formação inicial você participa de outra formação continuada, se participa em qual área? 8Quem é você em sala de aula: a) Um professor de língua inglesa que atua com gramática e texto de interpretação. b) Um professor que prefere trabalhar com o lúdico. c) Um professor que utiliza apenas textos. d) Um professor que interage com os alunos e indica materiais de estudos no fim da aula. Outros____________________________________________________________________________10- Qual a sua visão de como deve ser o ensino da Língua Inglesa nas escolas de Ensino Regular? 11- A Universidade preparou você para a atuação da docência como você esperava por quê? Sim ( ) ( ) Não APÊNDICE B– Roteiro de entrevista para os acadêmicos do curso de Letras Inglês 2015.1. 1- O que levou você a escolher Licenciatura em Letras Inglês? 2- O que é ser um professor de língua inglesa? 3- O que você acha da grade curricular do curso de Letras, campus Parnaíba? 4- Quanto à didática quais atividades eram relacionadas à preparação para a prática docente? 5- Como você classifica o modelo de avaliação na universidade, regular, bom, ótimo e por quê? 6- Primeiro contato com a sala de aula foi no estágio do curso de Letras Inglês? E como foi ? 7- Quanto às quatro habilidades de ser professor quais delas você sentiu dificuldade? 8- Quais as disciplinas do curso você considerava essenciais para a sua formação? 9- Na sua opinião o que o curso de Letras Inglês precisa para contribuir a Formação Inicial? 10- Quanto ao conhecimento da Língua Inglesa você se considera um profissional apto para a docência seja no Ensino Regular, em Escolas de Idiomas ou Ensino Superior e EAD? 11- Quais suas considerações sobre o aprendizado do ser professor estudado na instituição?

166 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


LUGARES, SUJEITOS E SUBJETIVIDADES: A ANÁLISE DO DISCURSO JURÍDICO NA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS1 Patrícia Rodrigues Tomaz 2 Adriana Rodrigues de Sousa 3 RESUMO O presente estudo indaga, propondo a estruturação de vários discursos de mediação sobre a possibilidade de desenvolver práticas discursivas que contemplem os sujeitos e suas subjetividades em sessões de mediação de conflito. Procura argumentar como isso poderia ser tratado em âmbito jurídico a fim de estabelecer formas eficientes de mediação para uma solução consensual entre as contendas, quando há conflito de interesses. A proposta de utilizar-se de uma abordagem discursiva leva a ressaltar a importância de uma resolução sensível aos fenômenos sociais, culturais e psicológicos, no tratamento dos problemas concernentes a uma tentativa de conciliação entre as partes em uma mediação de conflito, atividade extraprocessual caracterizada por sessões que visam a conciliação de sujeitos por um mediador designado pelo judiciário. Palavras-chave: Direito; Conflito; Mediação; Discurso.

Introdução

O

discurso jurídico é pautado em fundamentos que privilegiam a hermenêutica como suporte para assimilação e esclarecimento de contextos processuais, os quais são cenários das mais variadas situações de conflito. Nos últimos anos, o discurso jurídico tem sofrido tendências que estimulam debates cada vez mais voltados à humanização do direito. Nesse caminho, a intenção de incorporar subjetividades referentes a partes em conflito se mostra terreno fértil para a análise dos sujeitos e de onde esses falam, sob a ótica da análise do discurso de linha francesa. A proposta de utilização de abordagem discursiva nas mediações leva a ressaltar a importância de um “julgamento” sensível aos fenômenos psicológicos no tratamento dos problemas relacionados à tentativa de conciliação entre as partes em uma mediação de conflitos, atividade judicial e extrajudicial caracterizada por sessões que visam a um acordo de sujeitos por um mediador escolhido pelas partes ou designado pelo Poder Judiciário. Aproxima-se de um discurso no qual (nesta proposta) a tendência é fomentar a identificação de elementos subjetivos que possam auxiliar na solução dos conflitos. É notória a necessidade de articular um discurso mediador que possibilite a resolução de contendas de um modo pacífico, o qual prescinde de uma “adequação” dialógica no discurso entre as partes em conflito conduzidas por um representante do judiciário em uma situação formal. No que diz respeito a esse aspecto, uma análise conjuntiva que integra o discurso jurídico à análise do discurso emerge como um recurso teóricodiscursivo na mediação de conflitos. A adoção de um discurso pautado na corrente francesa surgiu pelo reconhecimento paulatino de que a análise do discurso contempla subjetividades e sujeitos, ressaltando idiossincrasias que fazem parte dos

1

Trabalho apresentado no GT.05 - Discurso e Ideologia do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Advogada, Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Bacharela em Direito(2013) pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina – CEUT. Pós-Graduanda em Mediação de Conflitos pela Faculdade ESTÁCIO-CEUT. Teresina-PI. Endereço eletrônico: monitorapatriciatomaz@gmail.com 3 Adriana Rodrigues de Sousa. Graduanda do VII bloco do Curso de Letras da Universidade Federal do Piauí. Campus Parnaíba. Parnaíba-PI. Endereço eletrônico: adri_adrirodrigues@hotmail.com 167 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


processos de construção de um discurso consistente, para a assimilação de particularidades que, muitas vezes, não são perceptíveis a um potencial mediador de conflitos. Para uma compreensão dos termos que encerram a proposta, é oportuno que antes de aprofundar o discurso em torno do tema, possa se conhecer o significado de alguns vocábulos empregados para denominar o objeto de pesquisa. Dentre os termos aplicados, a noção de “mediação” faz-se presente como o eixo sobre o qual a análise do discurso se desenvolve. Quando se fala de mediação, tem-se logo uma ideia generalizante, pois o “[...] vocábulo ‘mediação’, assim como o verbo correspondente ‘mediar’, são facilmente identificados com práticas do senso comum” (MUSKAT, 2008, p. 12). É indiscutível que o ato de mediar ocorre nas mais diversas situações do cotidiano, como, por exemplo, um conflito qualquer em que um indivíduo se coloca como terceiro elemento para fins de pacificação, situando-se como um representante nas tentativas de acordo entre as partes, atuando como um mediador. Para Muskat (2008, p. 13), “[...] a mediação, implica um saber, uma episteme, resultante de vários outros saberes, cuja transversalidade fornecerá o instrumental para uma prática que pressupõe a planificação e aplicação de uma série de passos ordenados no tempo”. A concepção sobre essa transversalidade é inerente ao mediador que, em sua faina caracterizada pelo desenvolvimento intelectual do discurso, processa os sentidos, ao mesmo tempo em que conduz a operação discursiva. Ainda se tratando do ato de mediar na esfera jurídica, Nazareth (2009, p. 29) sustenta que “[...] a mediação está inserida numa categoria mais ampla, denominada “Meios Extrajudiciais de Solução de Conflitos” 4. Assim, percebe-se também que as situações de mediação de conflitos são competências que antecedem um processo judicial, mas que têm suas características jurídicas. A análise do discurso jurídico Para que se possa discorrer de forma coesa a respeito do discurso na prática jurídica remonta-se, por meio de uma breve retrospectiva, às transformações comunicacionais como recurso de tensão argumentativa e, consequentemente, de supervivência. Na busca de compreender e solucionar problemas da sua própria existência, o homem desenvolveu a comunicação. É consenso que antes da vocalização como ação comunicacional, houve a gesticulação como diálogo para fins de sobrevivência, sendo extremamente útil para a convivência dos grupos humanos. Embora não seja somente de elocução que trata o presente estudo, a compreensão que se tem da comunicação é, na maioria das vezes, ignorada em sua essência, pois o homem, na maior parte do tempo, esquece-se do principal veículo de organização social: a linguagem. Diz-se isso porque se fala o tempo todo e não se percebe o quão é importante a comunicação para a permanência do homem em todos os aspectos de sua existência. Ao se tratar de linguagem, entende-se que, no caso específico da verbalização do discurso, há um conjunto normativo que se insere como suporte hermenêutico. Nesse sentido, uma aproximação entre a estrutura da linguagem formulada não somente nas unidades morfológicas, mas agrupada como instrumento de apoio aos ajustes comunicacionais concernentes às subjetividades expostas, leva a compreender a importância do discurso. Ao refletir sobre o papel da linguagem verbal, têm-se o raciocínio de que ela se realiza pela sequência que vai de uma formulação conceitual a outra, segundo um encadeamento lógico e ordenado (DICIONÁRIO..., 2006). Dessa forma, o verbete descrito constitui um esclarecimento preliminar do que é chamado “discurso” como uma aproximação da proposta aqui formulada. 4

Embora a expressão aplicada pela autora seja correta, de acordo com a nova lei referente à mediação de conflitos, poder-se-ia adotar, como uma variação terminológica, o termo “extraprocessual”, uma vez que as situações em que há mediação de conflitos ocorrem fora da esfera jurídico-processual, não deixando de ser uma ação de competência jurídica. Empregar-se-ia uma expressão exclusiva para este trabalho como “Meios Extraprocessuais de Solução de Conflitos”. 168 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Diz-se isso porque a forma pela qual se entende a sistematização da fala em torno de um problema enfatiza-se como análise do discurso, não apenas ao discurso como linguagem verbal estruturada, mas, sim, todo o conjunto de elementos e recursos interpretativos e comunicacionais empregados na resolução de um conflito. Essa inferência, que toca o aspecto da jurisprudência em sua essência hermenêutica, acolhe as proposições inelutáveis na aplicação de um discurso mediador. Se, por um lado, a [...] “A Análise do Discurso é uma metodologia flexível de leitura de texto que tem como objeto de estudo o discurso” (PAULON; NASCIMENTO; LARUCCIA, 2014, p. 25), por outro lado, enxerga-se o uso desse mesmo discurso como ferramenta de admissão ao outro. Dessa forma, há uma necessidade latente em contrabalançar as partes atuantes na comunicação jurídica. O discurso articulado em ambiente para fins de mediação constitui-se o pilar da resolução quando atende à demanda da situação. Ao mesmo tempo em que atende à invocação de um conflito, promove o equilíbrio, ao se estabelecer como um centro de força centrípeta5, no qual as discussões, por meio de um direcionamento jurídico, convergem para uma aspirada sublimação6. Convém situar a condição histórica do discurso sem distanciar-se de sua finalidade. Desaa forma, para a presente abordagem, analisar o discurso jurídico implica conhecê-lo em sua essência e estrutura vinculando-o à linguagem e ao desenvolvimento do discurso de partes opostas em uma sessão de mediação, não apenas para justificação de sua utilização, mas entender como ele se constituiu como ferramenta na resolução de conflitos. Existem três linhas de análise do discurso que estão relacionadas “[...] a três projetos teóricos distintos: a linha de Michel Pêcheux; a linha sociolinguística (desenvolvida por Marcellesi, Gardin e Guespin, dentre outros, na França); e, finalmente, a linha de Michel Foucault” (NARZETTI, 2010, p. 51). Outras representações que inspiraram a recapitulação dessas propostas teóricas de origem francesa possibilitaram a construção de um conjunto teórico-discursivo de elevada expressão no meio acadêmico, atingindo incomensuravelmente todas as ciências humanas. Em consonância com essa proposta, realça-se como estruturação do discurso, a adoção da linha francesa. A razão pela qual se adota a postura francesa de análise, trazida para as discussões linguísticas, pode ser melhor expressada por Paulon, Nascimento e Laruccia (2014): Em vista do potencial discursivo e a uma aproximação com a abordagem hermenêutica do discurso jurídico observada, optou-se pela análise do discurso francesa, pois “A AD7 passa a colocar a questão da interpretação” (ela interroga a interpretação). (PAULON; NASCIMENTO; LARUCCIA, 2014, p. 28).

É inevitável a aceitação do potencial convincente que há num discurso jurídico, corroborando a opinião de Colares (2014, p. 120) para quem a “[...] prolatação8 de decisões judiciais é uma prática discursiva mediadora que ocorre entre um texto (oral ou escrito) e uma prática social, regulada pelos Códigos de Processo Civil e Penal, respectivamente”. Dessa forma, a preocupação em aprimorar o aparato discursivo na esfera judiciária torna-se elemento indispensável. Esse aparato discursivo que ora se busca, pleiteia a norma como parte do instrumental teórico que faz parte da palavra arguta do observador, incorporando elementos culturais e psicológicos que emergem na exteriorização das subjetividades das partes em conflito. Sendo, nesse caso, o observador, o jurista, o 5

Quando um corpo efetua um Movimento Circular, sofre uma aceleração que é responsável pela mudança da direção do movimento, a qual chamamos aceleração centrípeta [...] Sabendo que existe uma aceleração e sendo dada a massa do corpo, podemos [...] calcular uma força que assim como a aceleração centrípeta, aponta para o centro da trajetória circular. A esta força damos o nome: Força Centrípeta. Sem ela, um corpo não poderia executar um movimento circular. Disponível em:<http://www.sofisica.com.br/conteudos/Mecanica/Dinamica/fc.php>. Acesso em 17 mar. 2017. 6 Pressupõe-se que as partes em conflito têm seu discurso condicionado ao prevalente do mediador. Daí a analogia de um centro cujas partes o gravitam, com a intenção de mantê-lo como ponto de equilíbrio da ação discursiva. 7 Análise do Discurso. 8 Pronunciar sentença, promulgar, proferir (DICIONÁRIO..., 2006). 169 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


intermediário entre forças conflitantes que se digladiam com palavras e, por vezes, entregam-se a uma discussão desenfreada em que não há o imperativo da razão9. Postula-se, nesses casos, a efetivação de um meio consistente para que prevaleça o equilíbrio entre as partes. No tocante ao desequilíbrio, o fator mais observado é o constrangimento que instiga a uma dissociação argumentativa entre as partes, pois esse se fragmenta em manifestações difusas de defesa do caráter que se pauta no senso comum. A resistência é óbvia, tendo em vista que se trata sempre de uma busca desenfreada pela razão que somente existe na palavra expressa do mediador, assim visto igualmente pelo senso comum. Os litigantes julgam em âmbito pessoal o processo como determinante na resolução em favor de suas causas, no entanto, “O processo judicial é um espaço público em que as partes envolvidas numa lide expõem seus pontos de vista sobre a questão submetida ao estado-juiz, mediante uma atividade interativa dialética.” (COLARES, 2014, p. 121). Havendo uma relação dialética, e há, a análise do discurso provê o mediador. A expectativa situa-se em torno de uma solução pacífica que acontece mediante a eficiência das práticas discursivas. “Visa a facilitação do diálogo entre as partes, para que melhor administrem seus problemas e consigam, por si só, alcançar uma solução” (BEDÊ, 2009, p. 45). De acordo com Mello e Baptista (2010, p. 99), “[...] as definições do que seja mediação judicial e extrajudicial parecem estar mais delimitadas pelas instituições que aplicam os seus princípios”. Baseando-se nessa posição, é preciso primeiramente saber de onde parte o discurso, pois “[...] o sentido das palavras se dá no interior da formação discursiva, no espaço em que elas são produzidas, o que confirma o caráter material do sentido e do discurso” (PAULON; NASCIMENTO; LARUCCIA, 2014, p. 29). Salienta-se que o lugar de onde parte o discurso, ou seja, das partes envolvidas, reflete sua dimensão ideológica, tornando esse mesmo discurso tendencioso, especificamente no caso dos conflitantes. Nesse espaço de observação e compreensão, a “percepção” do “lugar”10 fornece ao mediador a “função” do lugar. Há, nessa condição, os enlaces do que se considera mediação judicial e extrajudicial ao se perceber que a dimensão discursiva do mediador é a extrajudicial e das lides judiciais, pois a primeira emerge como uma abordagem fragmentada e sem o fundamento necessário para o discurso apropriado quanto aos aspectos particulares das lides; e a segunda implica uma abordagem rebuscada de análise do discurso quando se procura identificar aspectos intrínsecos dos sujeitos em conflito. Ao se perceber a função do lugar, entende-se que todo o conjunto formador cultural das partes oferece o léxico e outras propriedades de caracterização que indiretamente subsidiam o mediador. Na percepção do lugar, se porventura o mediador centrar-se unicamente nessa situação como elemento de licença, haverá um comprometimento da lisura, o que não é benéfico para nenhuma das partes. O que se julga prudente é a tentativa articulada de compreender os sujeitos em conflito em sua essência, para a solução efetiva de uma contenda. Daí o porquê da institucionalização do discurso, expresso na comunicação do mediador ou de outro representante do judiciário. Um direcionamento de prevalência do controle do discurso, munindo-se de recursos concentrados em intersubjetividades, constitui-se elemento essencial da conduta aplicada em todos os componentes da discussão no ambiente de resolução de conflitos. Outro cuidado a ser tomado na aplicação do discurso é o aspecto da hegemonia sobre as partes conflitantes, sugerido aqui como a legitimação ou a inaptidão do concorrente a mediador, que se insere em um contexto de causa e conflito. Se há institucionalização do discurso, há precipitação de hegemonia nos casos tratados aqui, por parte do mediador, sofrendo enorme risco de fraca avaliação da situação. O conjunto formador cultural oferece o léxico e outras propriedades de caracterização que indiretamente subsidiam o mediador. Segue-se, a essa percepção, a ideia de que as partes ou litigantes devem conhecer os parâmetros que estabelecem uma convivência ideal, para que a questão possa ser resolvida de 9

Ainda que “razão” seja um conceito tomado aqui como uma postura que se submete a pontos de vista divergentes que convergem para interesses pessoais, mas que pode ser sublimado pelas normas jurídicas, que acabam por desvencilhar-se das subjetividades. 10 De onde vêm as partes conflitantes. Trata-se do contexto em que se desenvolveu o perfil das partes litigantes. 170 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


modo pacífico. Essa última consideração é, em geral, falha, ficando comprometida pela formação cultural dos indivíduos que, na maioria das vezes, não permite uma percepção apurada dos valores morais em jogo, os sujeitos não dominam o léxico jurídico, mas não deixam de externar subjetividades. É pensando em todas essas características que a promoção do discurso baseia-se em pensadores como Pêcheux (1990). Sobre a construção de um discurso por qualquer indivíduo, o autor acusa uma preconcepção da realidade estruturada pela formação dos elementos culturais e psicológicos em jogo, assim como esse mesmo fenômeno afeta o discurso do mediador, pois este atravessou processo similar como ser humano em um grupo social. Para Pêcheux, todos os indivíduos discursam e tomam decisões baseados em sua formação psicológica, social e cultural. À primeira vista, isso parece óbvio, mas nem tanto, já que, ao falar, faz-se pelos outros e não por si. Esse “outro” na análise do discurso francesa é um termo associado ao conceito daquilo que é externo ao indivíduo e que o compõe, tendo sua gênese explicada pela psicanálise lacaniana11, emergindo em seu discurso de modo que este é uma reprodução dos elementos psicossociais em conjunto, operando na estruturação argumentativa do discurso. Em se tratado de utilizar essa concepção sobre o jurista, seria este um instrumento do conjunto informativo do aparato jurídico-discursivo, ao tempo em que condiciona os fatos ocorridos a esse discurso? Os litigantes comporiam nesse cenário os representantes de um corpo sociocultural específico que não dispõe de uma preconcepção das normativas jurídicas, sendo por isso tratados como integrantes de sua realidade e produto do seu aparato sociocultural. A dualidade, nessa proposição, reside no fato de que essas representações incorporam elementos preconcebidos em sua formação. Os conflitantes, ao apresentarem um perfil de resistência sociocultural, que tem em uma suposta essência comportamentos resultantes de um contexto histórico-cultural que os condicionou por meio de modelos coercitivos, a uma categoria social submissa. Valendo-se desse perfil e partindo para o segundo momento da sequência lógica sugerida, a discussão, o potencial mediador faz também uma autoanálise, constatando que o imperativo do bom senso é uma questão discutida pela moral no Direito, pressupondo que ela não jaz na consciência das partes em conflito, principalmente quando buscam um acordo em uma sessão de mediação. Assim sendo, essas duas dimensões, psicossociais e históricas, travam um combate desigual. Essa discrepância na formação dos sujeitos é relevante se houver uma ponderação sobre o caso: a de que os próprios indivíduos em conflito devem compreender o processo de formação do espaço em que vivem e de que forma ele constitui seu ser e influencia suas decisões. É obvio que essa posição não é interesse dos representantes do judiciário, pois não cabe, segundo normas jurídicas essa esfera institucional ater-se a particularidades que suscitam parcialidades. Diante desses casos, o mediador é imparcial, como reza a conduta estabelecida pela sua condição profissional. O que é preciso operar é a conduta dos litigantes, de modo que essa condução esteja pautada na legislação vigente, sem, no entanto, desconsiderar a formação dos sujeitos em curso. Para isso, basta lembrar o que diz a Lei n. 13.140/15, dispondo sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias: Art. 2o A mediação será orientada pelos seguintes princípios: I - imparcialidade do mediador; II isonomia entre as partes; III - oralidade; IV - informalidade; V - autonomia da vontade das partes; VI - busca do consenso; VII - confidencialidade; VIII - boa-fé. (BRASIL, 2017, grifo nosso).

Articulando uma concessão para a autonomia das partes, a adoção de uma perspectiva discursiva se dá em Pêcheux por uma razão aparentemente ideológica, mas que nada tem a ver com isso, a não ser o fato de que partes em conflito defendem cada um o seu ponto de vista. “Pêcheux constrói o conceito de discurso a

11

Referente ao célebre psicanalista Jacques Lacan que definiu o sujeito como “[...] o que um significante representa para outro significante”. A noção de significante utilizada por Lacan é proveniente de Ferdinand de Saussure. 171 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


partir de conceitos outros provenientes da Linguística e do Materialismo Histórico (a ciência das formações sociais).” (NARZETTI, 2010, p. 2). Na construção de um sujeito/discurso12 , espera-se poder avaliar algumas questões relevantes para a conduta discursiva do mediador e postular uma relação dialógica para o discurso, pois “Tendo em vista que Análise Dialógica do Discurso privilegia a articulação teórica de conceitos como o de língua, sujeito e história, seria possível aproximar seus objetivos com aqueles estabelecidos pela Análise do Discurso Francesa.” (PORTO; SAMPAIO, 2013, p. 91). Guiados por essa premissa, há a noção de que a construção sociocultural do sujeito (considerando variáveis de comportamento) possibilita uma orientação positiva para se chegar a um consenso. Sendo assim, é necessário que a conversa ocorra de modo funcional, ou seja, atenda ao fim pretendido, focando na solução e não no problema, cogitando-se como possibilidade tangente na tumultuada compreensão que ambos têm do mundo.13 Poder-se-ia dizer que isso não é uma revelação de comportamentos agregadores ao tratamento na resolução de uma contenda, ajustada aqui como casos que envolvem, por exemplo, relações de vizinhança, prejudicadas por situação inesperadas, cujos protagonistas ou personalidades, os conflitantes, estão em constante tensão diante do problema. O que está aqui proposto é a superação da carência de uma percepção apurada em situações que requerem o mínimo de controle quando há comunicação, onde o poder da persuasão do mediador se dá pelos lapsos de incoerência que emergem da mente de dois indivíduos em conflito, identificando os elementos subjetivos que conduzem seus discursos. Dessa forma, um discurso não pode ser analisado como uma estrutura fechada em si mesma, ele deve ser posto em relação ao “[...] conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção” (PÊCHEUX, 1990, p. 79). É previsível que, mesmo diante dessa crença de que um discurso bem fundamentado se torna relevante, ao contrastar com as restrições de compreensão de um cidadão ou de uma cidadã de caráter simplório, será admitido pelas partes em conflito. Sobre isso, pautando-se na realidade atual, há um discurso de resistência sintetizado na informação de Mello e Batista (2010), no qual advogados desqualificam e resistem a uma sessão de mediação, entendendo-a como “perda de tempo”. Explicam, ao abordar a questão da mediação e conciliação no judiciário, que A proposta guarda analogia com os modelos dos processos institucionais de administração de conflitos vigentes no sistema da common law , chamados, propriamente, de resolução de conflitos (conflict resolution) ou mediação de disputas (dispute settlement), em que as partes explicitam suas diferenças diante de árbitros – juízes ou jurados – que atuam para chegar a consensos possíveis, seja na área cível, [...]. (MELLO; BAPTISTA, 2010, p. 6).

Poder-se-ia dizer que a Análise do Discurso busca conceber como a linguagem se materializa na ideologia e como esta última se manifesta na língua. Não é justo e nem correto agir sem determinadas coordenadas legais já propostas. Sendo assim, uma autoavaliação em busca de melhores posições para a resolução de contendas familiariza o mediador com a realidade, considerando suas nuanças, para que haja uma mediação bemsucedida, ao tempo em que revela a consciência daqueles que se fundem na argumentação em defesa de si. Considerações finais As situações acerca das quais se referiu o presente estudo envolvem a resolução de conflitos. Percebeu-se a possibilidade de construção de um discurso que possa estreitar as relações ante algumas 12

Definindo-se cada indivíduo na disputa da questão. Diz-se isso porque as partes em conflito esperam que o judiciário, como instituição normativa, atenda a seus interesses pessoais e o mediador, por sua vez, adota uma postura que prevê a resolução da contenda por meio de uma aliança consensual entre as partes. 13

172 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


violações aos direitos dos cidadãos, reconhecendo os aspectos culturais e psicossociais que auxiliam no desenvolvimento do discurso em situações de mediação de conflitos. Procurou-se uma intervenção pautada na linha de análise do discurso francesa. Concluiu-se que essa dimensão linguística emergente no discurso jurídico pode vir a se constituir como um instrumento do qual o mediador se serve para uma argumentação consistente na resolução de lides. Retoma-se os conceitos de análise do discurso para incluí-los na pauta do mediador. Torna-se um fluxo da linguagem que possibilita uma adequação das intenções presentes no diálogo sobre um problema desenvolvido pelas partes conflitantes na discussão. O sentido das palavras se dá no interior da formação discursiva, no espaço em que elas são produzidas, o que confirma o caráter material do sentido e do discurso. É importante, pois caracteriza a heterogeneidade em detrimento de sentidos homogeneizantes. O que está aqui proposto é a superação da carência de uma percepção apurada em situações que requerem o mínimo de controle quando há comunicação, em que o poder da persuasão do mediador e sua percepção dos elementos subjetivos, que emergem no discurso das contendas, possibilitam um reconhecimento da essência de um problema por meio da análise do discurso. Referências BEDÊ, Judith Aparecida de Souza. Mediação: uma forma de concretização do acesso à justiça. 2009. 140 f. (Mestrado em Direito). Centro Universitário de Maringá. 2009. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/Lei/L13140.htm>. Acesso em: 28 mar. 2017. COLARES, Virgínia. Análise Crítica do Discurso Jurídico (ACDJ): o caso Genelva e a (im)procedência da mudança de nome. Revel, v. 12, n. 23, 2014. Disponível em: <Www.revel.inf.br>. Acesso em: 27 jan. 2015. DICIONÁRIO ELETRÔNICO DA HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. 3.0. Editora Objetiva, 2006. MELLO, Kátia Sento Sé; BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. Mediação e Conciliação no Judiciário: dilemas e significados. In: DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 97-122, jan./fev./mar. 2011. MUSKAT, Malvina Ester. Guia Prático de Mediação de Conflitos em Famílias e Organizações. 2. ed. São Paulo: Sumos Editorial, 2008. NARZETTI, Claudiana. As Linhas de Análise do Discurso na França nos Anos 60-70. RevLet – Revista Virtual de Letras – Universidade Estadual Paulista/Araraquara - SP, v. 2, n. 2, p. 51-70, 2010. Acesso em: 27 mar. 2015. NAZARETH, Eliana Ribeiro. Mediação: o conflito e a solução. São Paulo: Artepaubrasil, 2009. PAULON, Andréa; NASCIMENTO, Jarbas Vargas do; LARUCCIA, Mauro Maia. Análise do Discurso: Fundamentos TeóricoMetodológicos. Revista Diálogos Interdisciplinares, São Paulo, v. 3, n. 1, 2014. PÊCHEUX, Michel. Por uma análise automática do discurso. Trad. de Bethânia S. Mariani et al. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. PORTO, Ludmila Mota de Figueiredo; SAMPAIO, Cristina Hennes. Bakhtin e Pêcheux: uma leitura dialogada. Polifonia, Cuiabá, MT, v. 20, n. 27, p. 89-106, jan./jun. 2013.

173 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


MIL E UMA VOZES EM NEGRO DRAMA: O DISCURSO RENOVADO PELO DISCURSO1 Antonio Daniel Felix2 Joelma Mendes Soares Barbosa3 RESUMO Este trabalho visa discutir as inúmeras vozes incorporadas na música “Negro Drama” dos Racionais Mc`s. A partir dos estudos de Benveniste (2005) e de Brandão (2012), traremos, à discussão, essa multiplicidade de vozes ou discursos que se contrapõem ao longo da história e que, mais uma vez, nos faz sentir a pertinência de discutir as possíveis origens dos conflitos ideológicos que levam a essas formações discursivas, além de sua validade na atualidade. Procuramos descobrir quais comunidades sociais partilham tais discursos e o que esses discursos, presentes na letra da música, denunciam. Levando, sempre, em consideração quais ideologias, ainda, sustentam os discursos que aparentam nunca se apagarem da história humana, o que, possivelmente, leva a indagação a respeito da eficácia ou não dos ditos aparelhos repressores e ideológicos, que deveriam “eliminar” qualquer vestígio de resistência, mas o não conseguem. Por quê? Pretendemos responder a tal questionamento ao fim deste trabalho. Palavras-chave: Ideologia; desigualdade; conflitos ideológicos.

Introdução

O

presente artigo tem o objetivo de trazer a discussão as inúmeras vozes presentes na música Negro drama do grupo musical Racionais Mc’s, onde os sujeitos representados ganham vozes que externam, dores, humilhações, sofrimentos e injurias sofridas ao longo de décadas. Abordaremos a partir dos estudos de Benveniste (2005) e de Brandão (2012) essa multiplicidade de vozes ou discursos que se contrapõem ao longo da história e que, mais uma vez, nos faz sentir a pertinência de discutir as possíveis origens dos conflitos ideológicos que levam a essas formações discursivas, além de sua validade na atualidade. Demonstraremos quais comunidades sociais partilham tais discursos e o que esses discursos, presentes na letra da música, denunciam. Levando, sempre, em consideração quais ideologias, ainda, sustentam os discursos que aparentam nunca se apagarem da história humana. O artigo se dividirá em três partes, basicamente, a primeira, onde analisaremos da infância a constituição do sujeito, a segunda, onde abordaremos das características do negro drama à sua ascensão social, e a terceira parte, onde trataremos da ascensão social desse sujeito. Por fim, em nossas considerações finais, responderemos o porquê das ideologias, ainda, sustentarem esses discursos ou o que os perpetua. MIL E UMA VOZES EM NEGRO DRAMA: O DISCURSO RENOVADO PELO DISCURSO Desde a muito tempo que a questão linguística tem preocupado muitos estudiosos, cada um ocupandose de uma determinada área especifica da língua, mas, num momento ou noutro, todos chegam a um acordo “a língua é opaca, ideológica e, ao mesmo tempo em que nos dar uma base linguística, nos determinando seus significados, ela nos oferece seus sentidos, que, dependendo de espaço e tempo, podem variar drasticamente, atingindo, muitas vezes, o significado e a escrita.” De qualquer forma, o que nos importa aqui e agora é seu cunho ideológico. 1

Trabalho apresentado no GT 05 - Discurso e Ideologia do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduando do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – Campus Belém. Pará-Belém. Endereço eletrônico: wakaranee@gmail.com 3 Graduanda do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – Campus Belém. Pará-Belém. Endereço eletrônico: joelma122@hotmail.com 174 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Primeiramente, em se tratando de ideologia, lembramo-nos da origem, religiosamente falando, da raça humana, que desde o início fora incitada a escolher entre o bem e o mal, sendo o bem, até hoje, simbolizado pelo o branco, símbolo da paz, da salvação e de Deus, e o mal, simbolizado pelo preto, símbolo da desgraça, da escuridão e/ou perdição. Levando-nos a imaginar, num momento ou noutro, o negro como filho do mal ou, simplesmente, fazendo parte de uma “raça sub-humana” por ter sido toda amaldiçoada com Cam, filho de Noé. Sendo que este discurso tem servido de justificação, por muito tempo, à escravidão. Acerca do efeito desse discurso bíblico, Hiro afirma que [...] essencialmente para justificar o seu ganho econômico, ao mesmo tempo exorcizando-se de qualquer culpa que poderiam ter sentido, donos de escravos e comerciantes argumentavam que os escravos eram sub-humanos e que recebiam o tratamento que (naturalmente) mereciam. [...] Era argumentado que eles eram descendentes de Cam, o filho Negro de Noé. Como tais, eles eram escravos naturais, condenados para sempre a permanecer "cortadores de madeira e gavetas de água" (Josué 9:23). Esta justificação argumentava que os negros não eram apenas fisicamente negros, a cor de Satanás, mas também moralmente negros. (p. 61-62) (Tradução nossa)4

Em se tratando da língua quanto signo ideológico, lembramo-nos de Bakhtin que, ao falar dos gêneros do discurso, diz que “cada enunciado é individual” (p. 262), embora esse enunciado carregue características de um determinado campo linguístico, que pressupõe a construção dos tipos de enunciados pertencentes a ele, tornando-os relativamente estáveis, sendo esse campo linguístico uma comunidade social englobada por um todo ao qual faz parte e que, de certa forma, pressupõe o código e a forma linguística de uso geral, ou seja, a construção linguística nacional. Tornando-nos mais específicos, tomemos agora a palavra de Benveniste, segundo o qual o sujeito constitui-se a partir de sua oposição ao outro, afirmando que Eu designa aquele que fala e implica ao mesmo tempo um enunciado sobre o “eu”: dizendo eu, não posso deixar de falar de mim. Na segunda pessoa, “tu” é necessariamente designado por eu e não pode ser pensado fora de uma situação proposta a partir do “eu”; e, ao mesmo tempo, eu enuncia algo como um predicado de “tu”. (p. 250)

Partindo desse pressuposto, percebemos que a ideologia surge a partir de uma oposição semelhante a essa, como por exemplo a questão do bem e o mal, no momento em que há diferença em opiniões, inicia-se a batalha ideológica. Sendo, segundo Benveniste, os pronomes eu e tu os principais marcadores do sujeito. No entanto não são os únicos, pois, segundo Brandão, [...] a subjetividade é inerente a toda a linguagem e sua constituição se dá mesmo quando não se enuncia o eu. (p. 57) Ainda em relação a mesma, é interessante ressaltar que "a ideologia [...] e o inconsciente [...] estão materialmente ligado, funcionando de forma análoga na constituição do sujeito e do sentido. O sujeito falante é determinado pelo inconsciente e a ideologia"5, em outras palavras, o sujeito nasce e cresce, fazendo parte duma determinada comunidade e quando esse toma consciência de si quanto sujeito social, toma para si um posicionamento social e ideológico, sendo que esse posicionamento é condicionado ou, no mínimo, sofre muitas influências por sua comunidade, visto que desde criança o indivíduo presencia as privações sofridas por sua comunidade, logo, assumindo, sem perceber, um posicionamento que visa o favorecimento de sua comunidade e o seu. No entanto, assim que um indivíduo assume um posicionamento em contradição à comunidade dominante, ele dar início à batalha ideológica. Além disso, é interessante como a comunidade dominante 4

Texto original: [...] essentially to justify their economic gain, while simultaneously exorcizing themselves of any guilt they might have felt, slave masters and merchants argued that slaves were subhuman and received the treatment they (naturally) deserved. […] It was argued that they were the descendants of Ham, the Black son of Noah. As such, they were natural slaves, condemned for ever to remain “hewers of wood and drawers of water” (Joshua 9:23). This justification reasoned that negroes were not only physically black, the color of Satan, but also morally black. 5 (ORLANDI, 1986, p. 119 apud BRANDÃO, 2012, p. 78) 175 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


consegue a aprovação, de todos ou quase todos, de seus aparelhos repressores e ideológicos, partindo do preceito de que todos são iguais e que esses, aparelhos repressores e ideológicos, têm como objetivo trazer e/ou manter um equilíbrio ao relacionamento social, sendo, dessa forma, benéfico a todos. Sem contradição, a sociedade segue em “harmonia”. Visto que “A existência da ideologia é, portanto, material, porque as relações vividas, nelas representadas, envolvem a participação individual em determinadas práticas e rituais no interior de aparelhos ideológicos concretos.” (BRANDÃO, p. 25). Assim, no momento em que o sujeito, a fim de “crescer” socialmente, envolve-se de certa forma com a sociedade dominante, ele aceita ou “retêm-se” diante dos preceitos ideológicos. Dessa forma, concordemos com Althusser apud Brandão, dizendo que É através desses mecanismos que a ideologia, funcionando nos rituais da vida cotidiana, opera a transformação dos indivíduos em sujeitos. O reconhecimento se dá no momento em que o sujeito se insere, a si mesmo e as suas ações, em práticas reguladas pelos aparelhos ideológicos. Como categoria constitutiva da ideologia, será somente através do sujeito e no sujeito que a existência da ideologia será possível. (p. 26)

RACIONAIS Mc’s O grupo de RAP, os Racionais Mc’s, surgiu no final da década de 80, especificamente no ano de 1988. Tornando-se um dos grupos de Rap mais influentes do Brasil, o seu discurso de denuncia exibe a realidade de uma parcela da população brasileira. O forte engajamento na luta contra o racismo e discriminação é evidente em suas composições, abordando temáticas como preconceito, violência policial e a exclusão socioeconômica que patrocinada pelo sistema capitalista contribui para a miséria, para a violência e para o crime, principalmente, na favela. A realidade retratada em suas letras é vivenciada por inúmeros sujeitos – negro, pobre e morador da periferia ou favela, que por estarem ligados por uma “ideologia inconsciente”, como disse Orlandi, assumem sem perceber um posicionamento que visa favorecer a comunidade em que estão inseridos. Esses sujeitos, que por muito tempo foram obrigados a sofrer e a morrer calados, encontram no Rap a possibilidade de denunciar as dores e as privações sofridas a partir das mil e uma vozes que a música “Negro drama” representa. Além disso, é importante ressaltar os inúmeros sujeitos presentes no discurso, tendo sujeito como aquele que fala ou expressa alguma ideia que ao ser tomada por outro sujeito dá continuidade ao discurso ideológico. Na primeira parte da música o sujeito definido é simplesmente o negro, que sofre diante das privações imposta por uma “ideologia dominante”, que acredita que “ preto não tem vez”, sendo excluído e marginalizado. Em seguida o sujeito fica mais específico, é o negro morador da favela ou periferia de São Paulo. A música descreverá parte da infância do negro drama, seu reconhecimento quanto sujeito e sua ascensão social. Observemos agora uma análise possível para a letra da música. NEGRO DRAMA O teor de denúncia da música perpassa toda sua estrutura e o enredo da história narrada por ela se inicia quando negro drama diz “Uma negra, / E uma criança nos braços, / Solitária na floresta, / De concreto e aço,” nesse momento ele não tem a intenção de nos esclarecer sobre a floresta, como se ela existisse, mas, ao contrário, ele a usa metaforicamente com o sentido de “o ato de se estar perdido e/ou não saber para onde ir”. Sendo que quem está perdida, no caso, é a negra que está com uma criança no colo, onde podemos inferir que essa criança, é o próprio negro drama, visto que anteriormente ele diz que contará sua história. Logicamente, se alguém está perdido na floresta, as outras pessoas possivelmente tentarão lhe ajudar, caso saibam do fato. No entanto, ele diz o seguinte “Então veja, / Olha outra vez, / O rosto na multidão, / A multidão é um monstro, / Sem rosto e coração,” sendo a multidão, no caso a sociedade como se fosse um monstro. A probabilidade de

176 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


descrever a sociedade como um monstro, se dá devido aos valores adotados hoje, onde a maioria das pessoas são, egocêntricas, importando-se apenas com seu próprio conforto. Mais adiante, o negro drama posiciona-se geograficamente fazendo com que o sujeito fique mais delimitado, sendo esse o negro morador da favela de São Paulo. Vejamos o que ele diz: “Hey, / São Paulo, / Terra de arranha-céu, / A garoa rasga a carne, / É a torre de babel,” descreve São Paulo, como uma cidade de arranha-céu, ou seja, uma cidade de muitas pessoas ricas, pois comumente sabe-se que esses são símbolos de riqueza e luxo. Adiante, ele diz que a forma que falam, ele e sua mãe, provavelmente, é ultrapassada, o que faz com que sinta-se em comparação ao período bíblico-histórico da maldição da torre de Babel, quando as pessoas foram malditas a não se entenderam. Talvez, ele faça essa comparação porque tanto ele quanto sua mãe peçam ajuda na rua, no entanto, as pessoas, ricas, fingem não escutar, no caso, como se não entendessem o que eles falavam. Daí ele descreve a “Família brasileira,” sendo “Dois contra o mundo”, no caso uma “Mãe solteira / De um promissor, / Vagabundo”, isto é, um homem que, provavelmente, fez mil e uma promessas a sua mãe, no entanto, abandonou-a. No trecho “Hey, / Senhor de engenho,” ele chama a atenção do senhor de engenho informando-o que já o conhece “Eu sei, / Bem quem você é,” Sozinho, cê num guenta, / Sozinho, / Cê num guenta a pé ,” descrevendo-o como alguém que é explorador e que não se manteria em pé, no caso, no poder, sem os outros, entendidos como os explorados. Ademais, “Cê disse que era bom, / E as favela ouviu, la / Também temWhisky, e Red Bull, / Tênis Nike, / Fuzil,”. Nesse contexto, entendemos esse senhor de engenho como as pessoas ricas, que ditam o que é bom ou não, que fazem o juízo de valor em relação às coisas. Em uma segunda parte da música podemos encontrar as características do negro drama à sua ascensão social. Onde logo nos primeiros fragmentos da música, vemos uma breve descrição da situação do “Negro Drama” que vive “Entre o sucesso, e a lama,” passando por “Dinheiro, problemas,/ Invejas, luxo, fama,”, sendo um negro que, apesar de viver num local onde, talvez, não haja saneamento básico, ele tem contato com a alta sociedade. Conhecendo tanto a pobreza, onde habita, quanto o luxo. Mais adiante, temos uma pequena descrição do negro drama como sendo um negro de “Cabelo crespo, / E a pele escura, ” e que tem “A ferida, a chaga ”, que entendemos ser a necessidade de realização social, por isso ele anda “À procura da cura”, sendo a procura de melhoria de vida. De qualquer forma, ele “Tenta vê, / E não vê nada, ” em relação a uma futura melhoria de vida, visto que sua situação social é pobre e que as oportunidades são mínimas, devido as grandes desigualdades sociais existente em relação aqueles que são de origem negra e/ou pobre. No entanto, ele ainda consegue ver “uma estrela / Longe meio ofuscada”, isto é, ele é persistente e ainda tem esperança de um dia conseguir sua ascensão social. Embora ele seja persistente, o negro drama, há cobrança dele, tanto em sua relação familiar quanto racial “Sente o drama, / O preço, a cobrança, / No amor, no ódio ”, pois, provavelmente, a cada momento em que ele se sente magoado, lembra das inúmeras humilhações que tanto ele quanto seus antecedentes já passaram. Entretanto, quando tem algum sucesso, isso o vangloria e o enche de esperança, tanto de subir na vida quanto de mostrar ao mundo que ele é negro, mas que conseguiu ser tanto famoso ou mais do que os outros, que lhe menosprezavam, sendo sua fama, a sua “insana vingança”. Esse negro tem noção de quem lhe causa mal, “Eu sei quem trama / E quem tá comigo”, ele ( sendo a voz de mil) fala sobre algumas das dores que tem que suportar “ O drama da cadeia e favela, / Túmulo, sangue, / Sirenes, choros e velas”. E sabe que não é o único a passar por isso. Muitos outros brasileiros passam por essas e outras humilhações, diariamente, para continuarem na sociedade, em geral aqueles que andam de ônibus, porque não têm dinheiro para comprar um carro, logo é pobre assim como ele e sofre alguma privação, por isso ele diz “Passageiro do Brasil,/ São Paulo, / Agonia que sobrevivem, / Em meia zorra e covardias,/ Periferias, vielas, cortiços,”. Esse passageiro pode significar também, aquele que está de passagem, que pode não estar ali, aquele que a qualquer momento pode encontrar a morte, contudo, é um sobrevivente. Vemos nestas passagens “Você deve tá pensando, / O que você tem a ver com isso?”, sua indignação em relação ao convívio social que se tem construído ao longo da história. Sendo que as desgraças que sempre ou na maioria das vezes ocorreram na história “Desde o início / foi / Por ouro e prata,”, sendo que esses que 177 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


têm o poder na mão podem quase tudo e “Recebe o mérito, a farda, / Que pratica o mal,” que, na maioria das vezes, só traz benefícios a eles próprios. Enquanto que o preto é visto como um animal qualquer sem importância ou tão importante quanto uma galinha que, por destino, não tem posses, vive presa só esperando a hora em que alguém superior a ela, mata-a, para satisfazer suas necessidades. Sendo, tal morte, algo totalmente normal, cultural. Por isso ele diz “Olha quem morre, / Então veja você quem mata, / Me ver pobre preso ou morto, / Já é cultural”. Assim também destaca-se a falta de “consideração” ao negro “Não é conto, / Nem fábula, / Lenda ou mito”, mas sim algo verídico. O negro quase nunca teve oportunidade. Embora “foi sempre dito, / Que preto não tem vez”. Ele, o sujeito do discurso, conseguiu, ser famoso e reconhecido por toda a sociedade como alguém de importância social, “ Então olha o castelo e não, / Foi você quem fez cuzão”, pois construiu e chegou ao nível daquele que outrora o humilhou. O reconhecimento que conseguiu não apaga ou desfaz a história, por isso o negro drama diz “ Eu sou irmão, / Dos meus truta de batalha”, pois reconhece aqueles que tem como igual. Ele se recusa a fazer parte daqueles que um dia lhe menosprezaram. Continua sendo aquele que sempre foi, no entanto, agora, com poder aquisitivo e reconhecimento social, podendo defender o seu povo, e, ao invés de ser humilhado, tem o poder de humilhar aqueles que queiram “pisar” em seu povo. Por isso ele diz que “ era a carne, / Agora sou a própria navalha,”. Nestes trechos “Tim..Tim.. / Um brinde pra mim, / Sou exemplo, de vitórias, / Trajetos e glórias,” vemos a comemoração de sua fama e nestes “Olho pra trás, / Vejo a estrada que eu trilhei, / Mó cota, / quem teve lado a lado, / E quem só fico na bota,” vemos sua lembrança, que não lhe permite aceitar aqueles que, só agora, querem fingir lhe querer bem. Ele não aceita, porque ele sabe quem lhe deu apoio e quem nunca acreditou nele e que, talvez, até tenha tentado lhe destruir. Então, “ O dinheiro tira um homem da miséria, / Mas não pode arrancar, / De dentro dele, / A favela,”, ou seja, o dinheiro lhe fez mudar de vida, mas não o fez esquecer o passado. Ele não se tornou um hipócrita. Esse negro, agora que tem voz e respeito, tanto na alta sociedade quanto na qual pertence, tenta evitar que seu povo seja humilhado e explorado, e, sabendo que muitos terão raiva dele por isso, ele diz “Que Deus me guarde, / Pois eu sei,/ Que ele não é neutro,”, pedindo proteção divina. Visto que ele não se juntou ao “poderosos” para viver da exploração dos mais pobres, ele tenta fazer justiça, por isso diz estar “ Entre o gatilho e a tempestade, / Sempre a provar, / Que sou homem e não um covarde”. Em outras palavras, ele vive entre o gatilho da arma daquele, da sua gente, que ao se ver sem saída que ir pro mundo do crime, e a tempestade, que vemos como possíveis escândalos na alta sociedade envolvendo ele, o negro drama. Ele é negro e vive sempre em luto, porque vê seu povo sempre morrendo, possivelmente, devido ao crime. Por isso diz “Eu visto preto, / Por dentro e por fora,” Entretanto, ele foi “Guerreiro,”, vemos guerreiro não como aquele que luta, mas sim que é persistente, e sendo “Poeta entre o tempo e a memória,” conseguiu vencer na vida. Agora, ao relatar sua experiência de vida, ele aconselha o seu povo a não entrar no mundo do crime “Falo pro mano, / Que não morra, e também não mate”. E diz que a vida passa rápida e que é cheia de armadilhas “O tic tac / Não espera veja o ponteiro, / Essa estrada é venenosa, / E cheia de morteiro ”, por isso, eles devem ser cuidadosos e fazerem o que é certo de ter bons resultados. Em seguida o sujeito aborda a imensa violência, comparando-a com uma guerra, que existe nas favelas e diz que “Pra quem vive na guerra, / A paz / Nunca existiu, / No clima quente, / A minha gente soa frio”, com a expressão soar frio no clima quente, entendemos que seja a descrição de aflição e/ou medo que é constantemente vivido nas favelas. Além disso, ele denuncia a imensa desigualdade social ou falta de oportunidade, isto é, educação, até para as crianças, ao dizer que “Tinha um pretinho,” “Seu caderno era um fuzil,”. Mais adiante ele fala de algumas coisas que considera comum a sua maioria e muitas vezes as únicas opções de “destaque” para um negro, “Crime, futebol, música, caralho, / Eu também não consegui fugir disso ai, / Eu sou mais um”. Dá as opções em que o negro se encaixa para mudar de vida e se coloca como mais um que se “deteve” entre as opções. A ascensão social contida na terceira parte da música demostra que o sujeito “ negro drama” não teve a oportunidade de estudar. Que além de ficar explicita na letra da música, podemos concluir também através da própria linguagem empregada que identificará a forma linguístico-social desse sujeito, onde “erros” 178 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


de concordância, o emprego de gírias e o desacordo com a norma padrão deixa evidente. Diante de todas as dificuldades negro drama não se cala, não se deixa dominar “Eu vim da selva, / Sou leão, / Sou demais pro seu quintal”, tornando-se um problema para os corruptos que estão no poder “ Eu sou problema de montão, / De carnaval a carnaval”, pois ele provoca autoconsciência e instiga o senso crítico dos indivíduos, o que acaba gerando reflexões sobre as injurias sofridas. Mesmo com pouco estudo, ele conseguiu mobilizar as muitas pessoas, até mesmo aquelas que ele não havia planejado. Como ele diz “Inacreditável, mas seu filho me imita”. Por meio das suas músicas, o negro drama conseguiu comover inúmeras pessoas que decidiram juntassem a ele na batalha contra a desigualdade social e o preconceito. Diante de todo o impacto causado por esse sujeito, podemos inferir que ele se vangloria pelo espaço conquistado, uma vez que esse sujeito representado pelo “ negro drama” representa também os inúmeros raps e principalmente o próprio grupo musical (racionais) que conquistaram espaços que outrora eles não poderiam alcançar, isso fica explicito na seguinte parte: “Entrei pelo seu rádio, / Tomei, cê nem viu,”. Ademais, ele dar “dicas” em tom imperativo para aqueles que ainda não se renderam e que continuam querendo menosprezar os outros, principalmente os mais humildes, aconselhando “Cola o pôster do 2pac ai, / Que tal,/ Que se diz, / Sente o negro drama, / Vai, /Tenta ser feliz,”. Levando em consideração que os políticos pouco fazem, e quando fazem é sob pressão de greves nas ruas pelas pessoas. Sendo a chamada classe baixa que “carrega a sociedade nos ombros”, então ele questiona sobre o que teria feito os dominantes serem admirados e/ou respeitados de tal maneira como o são. Então, questiona da seguinte forma: “Hey bacana, / Quem te fez tão bom assim, /O que cê deu? / O que cê faz? / que cê fez por mim?”. Daí, lembrando das coisas que os dominantes, mais precisamente, os políticos, ofertaram-lhe, declarando o seguinte: “Eu recebi seu tic / quer dizer kit, / De esgoto a céu aberto, / E parede madeirite ,”. Sua indignação fica clara, pois sabemos que um esgoto a céu aberto não é algo que se deseje em nenhuma comunidade. Essa situação chega a ser vergonhosa e perigosa, devido aos inúmeros possíveis problemas de saúde. No entanto, ele declara que não morreu de vergonha, dizendo “ De vergonha eu não morri, / Eu tô firmão, / Eis-me aqui,”. Como os políticos lhe exploraram tanto, ele chegar a compará-los aos egípcios que não foram capazes de atravessarem o mar vermelho, pois eram exploradores, isto é, malfeitores. Assim, ele diz “ Você não,/ Cê não passa, / Quando o mar vermelho abrir,”, levando-nos a acreditar que todos aqueles que exploram os mais humildes, não têm direito a salvação divina. Devido a todo o sofrimento e o trabalho cansativo, normalmente, feito pela classe mais baixa, ele diz ser o “Homem duro, / Do gueto,” e aquele que não pode errar, porque se o fizesse, seria, como é, na maioria das vezes, uma pratica de roubo e furto que é bem diferente da prática de peculato. Além disso, em relação ao diamante, apesar de ser uma joia tão preciosa, ele é retirado da terra, falando-se de forma geral, que no inverno, torna-se lama “E de onde vem, / Os diamante, / Da lama,”. Ao final da música, ele questiona o porquê daqueles que o menosprezavam agora estarem querendo se mostrar perto dele “Aí, / Na época dos barraco de pau lá na pedreira / Onde cês tava? / O que que cês deram

por mim ? / O que que cês fizeram por mim ? / Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho / Agora tá de olho no carro que eu dirijo”. Embora ele faça tal questionamento ele não os menosprezam, assim como ele não menosprezou Deus, que, por causa da maldição no início, por Moises, levou a escravidão. Daí ele diz “ Demorou, eu quero é mais / Eu quero é ter sua alma”, entendemos essa última frase no sentido de que ele queira que

essas pessoas se apropriem do seu estilo de vida e seja um “negro drama” também. Por fim faz algumas referências aos cantores e/ou bandas de rap e faz uma reflexão sobre sua etnia “Aí, você saí do gueto, / Mas o gueto nunca saí de você, morou irmão? / Cê tá dirigindo um carro / O mundo todo tá de olho em você, morou? / Sabe por quê? / Pela sua origem, morou irmão ?”. Entendemos quanto a questão da cor da pele que, independente do grau social que ele consiga atingir, nunca mudará de pele. Em relação ao preconceito que se tem acerca dos negros, a sociedade sempre estará ou não, observando aquele que saiu do “gueto” para a alta sociedade, sempre o estigmatizando como um ser inferior, mas que, na verdade, nunca foi. Para finalizar, ele reafirma que o “eu” é o negro drama e que essa história não é baseada em fantasias, mas sim em realidade. Isso fica claro quando ele diz “ Eu não li, eu não assisti / Eu vivo o negro 179 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


drama, eu sou o negro drama / Eu sou o fruto do negro drama ”. O negro drama, um homem que passou por uma fase ruim na vida, a miséria, o menosprezo, apesar de ter ascendido socialmente, não tem vergonha de sua origem e diz que, se fosse o caso, voltaria à favela, e o faria de cabeça erguida, pois esse nunca foi corrupto, nunca teve que explorar ou extorquir alguém para alcançar seus objetivos de vida. “Mas aí, se tiver que voltar

pra favela / Eu vou voltar de cabeça erguida / Porque assim é que é / Renascendo das cinzas / Firme e forte, guerreiro de fé,”. Finalmente, vendo a perseverança seguida pela a sinceridade, a honra do ser humano. Considerações finais

Como podemos perceber, durante a análise da letra da música do “Negro drama”, ela denuncia e/ou descreve uma realidade bem distinta daquela que é desfrutada na alta sociedade. Visto que, onde habita ou habitava o negro drama, a violência e a morte são constantemente presentes, de tal forma que o negro drama chega a comparar-se como se estivesse numa guerra, que seria, principalmente, entre a polícia, que defende os interesses da sociedade dominante, agindo como aparelho repressor, que nesse contexto, ao invés de estar represando, está, na verdade, instigando a classe baixa a rebelassem ainda mais, por causa de sua indignação perante tal injustiça ou desigualdade social, contra os moradores da favela, que, provavelmente, por falta de oportunidade, entre no mundo do crime. Além disso, como o próprio negro drama diz, ele não teve uma boa educação, e chegamos até a pensar, com base na letra da música, que ele nunca frequentou uma escola, pois ao longo da música diz que havia um pretinho e que seu caderno era um fuzil. Logo, num ambiente em que, ao invés dos aparelhos repressores represarem, falham, devido seu exagero ou abuso de poder, e onde não há, principalmente, educação, o discurso do negro drama está destinado a ser eterno. Sendo, tanto os aparelhos repressores quanto os ideológicos, portanto, falhos. De qualquer forma, como vimos desde o início, tudo começou e resiste até hoje, devido a divergência de pensamento e/ou bens, acreditando-se que nunca haverá ou que seria impossível, num futuro próximo ou longe, igualdade social, literalmente falando. A batalha ideológica, tanto no campo do pensamento quanto no das manifestações sociais com confrontos nas ruas, sempre existirá. Referências BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. São Paulo – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral i. Campinas – São Paulo: Pontes Editores, 2005. BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas – São Paulo: Editora Unicamp, 2012. HIRO, Dilip. Thinking Globally: A Global Studies Reader. California – Sacramento: University of California Press, 2013. PEREIRA, Pedro Paulo Soares. Nada como um dia após outro dia. Intérprete: Racionais Mc’s. In.: Nada como um dia após outro dia. São Paulo: Cosa Nostra, 2002.

180 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O MANIFESTO DE ELLE:

1

ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA DA MODA SEM MEDO

Ana Carolina dos Reis de Moraes Trindade 2 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar os discursos das matérias de capa, da edição brasileira da revista ELLE, publicada no mês de março de 2017. Levando em consideração que a moda sempre acompanhou as transformações socioculturais e colabora na construção da identidade dos sujeitos, a revista vem manifestando seu posicionamento frente aos movimentos sociais trazidos e ressignificados para o universo da moda. O método da Análise de Discurso Crítica nos ajuda a compreender os discursos ideológicos relacionados aos problemas sociais trazidos pela revista como, por exemplo, feminismo, intersexualidade, o movimento free the nipple e, até mesmo, o posicionamento de ELLE. Trazemos para a nossa discussão autores como Fairclough (2001, 2012), Thompson (2011), Resende e Ramalho (2011), dentre outros. Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica; ELLE; Ideologia; Moda.

Introdução

A

o falar de moda, a primeira associação feita é de vestir-se. Entretanto, ela ultrapassa essa barreira e deve ser compreendida como um fenômeno sociocultural que não apenas reflete, mas constrói identidades e comportamentos. Além disto, a moda comunica, ela é um meio de expressão de um sujeito ou de uma marca. Podemos dizer que, por ser um dispositivo social, a moda pressupõe comportamentos instituídos do seu próprio campo, como também do comportamento do individuo inserido em uma sociedade marcada por regras, o que acomete a um modo de vida muitas vezes generalizado. Por acompanhar as mudanças na sociedade, a moda tem buscado engajar-se nos processos de ressignificações sociais como, por exemplo, os movimentos sociais. Ela tem levantado bandeiras que até então eram veladas. Os meios de comunicação, em especial as revistas de moda, têm tido papel importante no processo de distribuição e difusão de informações destas realidades legitimadas através de discursos autorizados nestas publicações. Pensando nisto, o presente estudo busca analisar o manifesto da edição de março, da revista ELLE Brasil, que propõe uma moda sem medo. Assuntos como feminismo, intersexualidade, são trazidos para discussão e colocados em sintonia com a moda, a fim de legitimar e ganhar mais força nos diversos campos sociais. Para subsidiar nosso trabalho, traremos reflexões acerca das teorias dos movimentos sociais, desde as clássicas às contemporâneas e, como método para este estudo, traremos a Análise de Discurso Crítica (ADC) a fim de compreender os discursos ideológicos presentes nesta edição da publicação. Movimentos sociais: das teorias clássicas às contemporâneas Hoje, muito se fala em movimentos sociais, em manifestações como forma de posicionamento diante às mais diversas discussões postas na contemporaneidade. Várias frentes são defendidas através de ações sociais coletivas a partir de visões de mundo individuais que refletem diretamente no social, ganhando aderência entre os sujeitos. 1

Trabalho apresentado no GT 05 – Discurso e Ideologia, do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Estratégias de Comunicação – NEPEC/UFPI. Teresina- Pi. Endereço eletrônico: carolinareeis@gmail.com. 181 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Entretanto, tratar acerca dos movimentos sociais requer que voltemos o nosso olhar para o seu percurso histórico, ou seja, para as suas teorias clássicas. Na perspectiva de Gohn (2008), esta temática nasce junto com os estudos sociais, a sociologia. Foi nos Estados Unidos que desenvolveram as primeiras pesquisas sobre os movimentos sociais por meio das ciências sociais americanas, mesmo os seus principais teóricos não sendo desta nacionalidade. Apesar de ter detido um poder hegemônico sobre tal estudo, anos depois, o conhecimento foi difundido e discutido em outros países. Gohn (2004), vê a importância de estudar os movimentos por dois primas: “como memória histórica das primeiras teorias dos movimentos sociais e ações coletivas; e como busca das referências e matrizes teóricas de vários conceitos que estão sendo retomados nos anos 90 pelo próprio paradigma norte-amaricano (GOHN, 2004, p. 23)”. É importante destacar que, segundo a autora, os estudos datados até a década de 60 não foi homogêneo como um todo. Com o inicio da pesquisa, abriu-se precedentes para as diversas abordagens dentro dos estudos das ciências sociais, o que leva Gohn (2004) a considerar as cinco grandes linhas de teorias sobre os movimentos sociais, com algumas de suas características em comum que são “o núcleo articulador das análises é a teoria da ação social, e a busca de compreensão dos comportamentos coletivos é nela a meta principal” (idem). Tais comportamentos eram compreendidos e analisados através de estudos sociopsicológico, que compreendem os movimentos sociais como algo comportamental, que poderiam ser por meio de uma ação institucional ou nãoinstitucional. Alguns pensadores clássicos analisavam os movimentos sociais como evolutivo, que surge, cresce e espalha com ajuda da comunicação, e se propaga por entre os seus contatos, com a intenção de difundir suas ideias, como as reinvindicações enquanto forma de insatisfação das mudanças na sociedade e também das desorganizações das mesmas. “Assim, os comportamentos coletivos eram considerados pela abordagem tradicional norte-americana como fruto de tensões sociais (GOHN, 2004, p. 24)”. Como foi enunciado anteriormente, a autora divide em cinco correntes teóricas o estudo clássico norte-americano acerca da ação coletiva. Segundo Gohn (2004), dentre as cinco teorias, somente em três delas os movimentos sociais são especificados. A primeira teoria apresentada é da Escola de Chicago e os interacionistas simbólicos, devido as suas contribuições nos estudos da sociologia, que nos traz a ideia dos movimentos sociais. Fundada por W. I Thomas em 1892, a Escola americana de Chicago propiciou grandes discussões no campo das relações sociais, o que acabou resultando na tradição do internacionalismo. Esta produção emergiu num contexto histórico marcado por grandes transformações sociais, impulsionado pela ideia de progresso. A Escola tinha uma orientação reformista: promover a reforma social de uma sociedade convulsionada em direção ao que se entendia como seu verdadeiro caminho, harmonioso e estável (GOHN, 2004, p. 27).

Portanto, podemos dizer que o interesse dessa corrente teórica é analisar os movimentos a partir de uma mudança social gerada por um conflito que também é social, e que acaba, por fim, trafegando na perspectiva de uma possível reforma neste contexto. É de interesse investigar a interação existente entre o indivíduo e a sociedade e, também, compreender os comportamentos de grupos. O papel do líder frente aos grupos é de fundamental importância, uma vez que são os principais estimuladores da mudança e o exemplo enquanto individuo. “Em suma, as lideranças seriam mais exemplos demonstrativos que agentes de prováveis sublevações. Na realidade seriam elites reformistas, detentoras de um conhecimento cientifico útil (GOHN, 2004, p. 28)”. Os líderes devem ser totalmente engajados, ou seja, têm uma participação bem ativa e está sempre interagindo com os indivíduos dos grupos sociais. Em contrapartida, tais indivíduos também precisam desenvolver comportamentos tidos como corretos no que diz respeito à experiência social, o que acabava gerando, direta e indiretamente, conflitos por conta do atrito entre as culturas e as diversas realidades dessas

182 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


pessoas. É daí que surgem os movimentos sociais, gerados pelos confrontos entre as multidões (GOHN, 2004, 2008). Blumer é considerado o principal teórico dos movimentos sociais na perspectiva clássica dos estudos norte-americanos. Para ele, os movimentos seriam empreendimentos a fim de constituir uma nova ordem de vida. “Eles surgem de uma situação de inquietação social, derivando suas ações dos seguintes pontos: insatisfação com a vida atual, desejo e esperança de novos sistemas e programas de vida (GOHN, 2004, p. 30)”. O autor acaba dividindo os movimentos sociais em três categorias: genéricos, específicos e expressivos. A primeira categoria – genéricos- trata do desejo da mudança que acaba começando por si. O indivíduo passa a ter uma preocupação maior com o seu corpo (no que transcende a ele, como no caso a saúde), no bem-estar individual reverberando, assim, para o social, o que acarreta consigo lutas ideológicas. A segunda categoria – específicos- vem como o amadurecimento da primeira, entretanto com causas bem definidas (sabem porquê lutam, traçam objetivos e metas), e um senso de “nós” e não do “eu”. Já a terceira categoria – expressivos-, desenvolve novos valores, construindo e organizando os ideais e comportamentos de uma sociedade. Blumer denomina esta terceira categoria como movimento de moda, que não têm como objetivo a mudança “e divulgam um tipo de comportamento expressivo que, com o passar do tempo, torna-se cristalizado e passa a ter profundos efeitos na personalidade dos indivíduos, e no caráter da ordem social em geral (GOHN, 2004, p. 35)”. A segunda teoria dos movimentos sociais neste paradigma clássico é o da sociedade de massas. Aqui, a preocupação dos teóricos é com o comportamento coletivo das massas que eram privadas das condições estruturais sociais (carência). Na perspectiva Tarrow apud Gohn (2004, p. 36), “os movimentos eram desenhados pelo desejo de pessoas marginalizadas de escapar para a liberdade, dentro de novas identidades e utopias”. Assim, podemos dizer que esta corrente se preocupa com a alienação das massas e com a perda de controle e com o próprio desamparo das mesmas, imergidas numa política e também numa sociedade dominada por novas tecnologias, o que acaba marginalizando ainda mais esses indivíduos. Já a terceira teoria é voltada para a abordagem sociopolítica, na qual sua maior preocupação é com a desarticulação da própria sociedade, que se tornou desorientada devido as inovações decorridas das indústrias ou até mesmo pela ação coletiva das massas. Sendo assim, esta corrente, segundo Gohn (2004, p. 25), “articulava as classes e relações sociais de produção na busca do entendimento tanto dos movimentos revolucionários como na mobilização partidária, do comportamento diante do voto e do poder político dos diferentes grupos e classes sociais”. A quarta teoria é o comportamento coletivo sob a ótica do funcionalismo. Aqui são analisados desde o comportamento coletivo até o seu resultado, que é a ação em grande escala. Esta teoria retoma a tese do comportamento psicossocial, o que acaba ficando de lado as conexões alicerçadas por entre a estrutura e a política. As ações coletivas ou sociais acabam sendo norteadas pela visão de mundo subjetiva a cada indivíduo. Por fim, o quinto paradigma traz como foco as teorias organizacionais-comportamentalista, que vê os movimentos sociais como algo institucional, regidas pela classe social, status e expressivos. As novas teorias sociais contemporâneas nascem nas décadas de 60 e 70, resultados de modalidades inéditas dos movimentos sociais na Europa, o que acaba culminando em novas abordagens de estudos, onde estes movimentos passam a ser o núcleo das investigações. Espanha, Itália e França são os pioneiros no volume (e qualidade) de produção de estudos voltados para os movimentos vigentes. No final da década de 70, lança-se uma nova fonte de estudos acerca dos movimentos sociais: “ os populares urbanos nos chamados países do terceiro mundo, especialmente na América Latina (GOHN, 2008, p. 32)”. Aqui no Brasil, nessa dada configuração social, apresentam-se novos atores (mulheres, índios, negros, pobres, as classes desfavorecidas de um modo geral); por conta disto, resultam-se em novas problemáticas e um contexto sociopolítico diferente, no qual esses atores citados se articulam com políticas de esquerda e grupos que compartilham dos mesmos ideais, derivando em ações coletivas, o que Gohn (2008) designa como uma “nova força da periferia”. Juntamente com essa onda nos países Latinos, surgem na Europa novas frentes, como os movimentos sociais que defendem os direitos das mulheres, dos estudantes. Os movimentos que se preocupam com o meio 183 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


ambiente e também com a paz mundial, dentre muitos outros, o que, segundo Offe apud Gohn (2008), classifica como um novo paradigma da ação social Podemos dizer que tais movimentos levam as suas discussões para um outro tempo e local social, devido à reconfiguração do contexto no qual nos encontramos, onde a crise da modernidade e tudo o que ela traz consigo nos leva a perceber as ações sociais sobre um novo viés. Para Gohn (2008), no final do século XX e início deste novo milênio o tema dos movimentos sociais retoma um lugar central no plano internacional como objeto de investigação por intermédio do movimento anti-globalização, de uma nova perspectiva: como movimento global que rompe as barreiras das nações e se torna não apenas internacional, mas transnacional (GOHN, 2008, p. 43).

Por conta deste novo cenário espacial e temporal e com ele os novos problemas, nascem novas frentes de luta e, consequentemente, novos paradigmas. Ainda, segundo Gohn (2008, p. 42), “a produção teórica no novo milênio defronta-se com novas demandas e novos conflitos e formas de organização, todos gerados pelas mudanças ocorridas nas últimas décadas no século XX, genericamente circunscritas como efeitos da globalização, em múltiplas faces”. Análise de Discurso Crítica Quanto ao procedimento metodológico, adotaremos como método a Análise de Discurso Crítica (ADC), que baseia-se na Teoria Social do Discurso, no qual considera a linguagem como essencial para a constituição da vida social, podendo ser vista também como ferramenta de poder e dominação. Neste método, leva-se em consideração os contextos sociais, a partir de aspectos ideológicos, as estruturas sociais, além dos discursos hegemônicos. Sendo assim, a linguagem pode ser compreendida como local de disputa, onde entram em jogo a transparência e opacidade das relações assimétricas de poder. É importante destacar que a ADC interage com outros métodos e teorias que estudam o comportamento da linguagem no âmbito de uma sociedade, deste modo, “a Análise de Discurso, em sentido amplo, refere-se a um conjunto de abordagens científicas interdisciplinares para estudos críticos da linguagem como prática social” (RESENDE; RAMALHO, 2011, p. 12). Posto como conceito central, o discurso conecta-se diretamente à dois eixos: os estudos sobre a linguagem, e nos estudos das ciências sociais. Para Fairclough (2012), a ADC leva em consideração a perspectiva teórica sobre a língua como parte integrante da semiose. Segundo o autor, “a semiose inclui todas as formas de construção de sentidos – imagens, linguagem corporal e a própria língua. Vemos a vida social como uma rede interconectada de práticas sociais de diversos tipos [...], todas com um elemento semiótico” (FAIRCLOUGH, 2012, p. 308). Dentro das práticas sociais, a linguagem é apresentada como discurso, na qual é fundamental para as interações, ou seja, para as relações sociais, e também para nos posicionarmos e posicionarmos o outro em um embate discursivo. Para Fairclough (2001), o discurso é de fundamental importância para a construção das estruturas sociais mais diversas e também como forma de significação de mundo. Ainda, segundo o autor, as práticas sociais acometidas pelos sujeitos se dão de forma inconsciente por meio das relações de poder e dominação, o que reflete nas estruturas sociais e também pela própria natureza das práticas que estão inseridos. A Análise de Discurso Crítica nos propõe uma tomada de consciência para os efeitos sociais contidas em textos (podendo ser compreendido como fala ou escrita), assim como para as mudanças sociais no que se refere às relações assimétricas de poder e dominação (RAMALHO, 2005). Devemos observar com mais destaque a relação dialética que existe entre as práticas sociais e as ordens discursivas. Deste modo, podemos dizer que a vida social constitui a linguagem e a linguagem constitui a vida social, que, por sua vez, conectam-se a outros elementos sociais.

184 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Fairclough (2001) nos sugere um modelo tridimensional, onde reúnem-se três tradições analíticas que não podem ser deixadas de lado no processo de análise que são: texto, prática discursiva e prática social. Para Ramalho (2005), a prática social enquanto dimensão do discurso refere-se às questões hegemônicas e também ideológicas, com a pretensão de moldar ou delinear as práticas discursivas, que estão presentes na utilização da linguagem, onde envolvem processos de produção, distribuição e consumo de textos. Tais processos possuem natureza sociocognitiva, no qual envolvem processos cognitivos interpretação e produção textual que baseiam-se, segundo Fairclough (2001), nas estruturas e também nas convenções sociais interiorizadas e enraizadas. Podemos dizer, então, que a Análise de Discurso Crítica se propõe a desconstruir os significados, muitas vezes, ocultos no texto e, dessa forma, tornar claro as possíveis organizações sociais que, consequentemente, privilegiam determinadas classes em detrimento de outras, seja por fatores ideológicos, seja por fatores hegemônicos. Moda sem medo Em sua publicação do mês de março de 2017, a revista ELLE propõe ao seu leitor uma tomada de consciência para as frentes que lutam e defendem os direitos das mulheres. Na carta da diretoria, Susana Barbosa – diretora de redação da ELLE Brasil – manifesta seu desejo por uma “fashion (r)evolution", onde tais assuntos tornem-se cada vez mais relevantes dentro do universo da moda. No que diz respeito ao posicionamento da revista, a diretora afirma que “nosso objetivo é que a moda abrace cada vez mais esse tipo de causa e dê espaço a discussões que envolvam a liberdade feminina. No que depender de mim, a ELLE será sempre a primeira!” (ELLE, 2017, p.52).

Figura 1: capa revista ELLE Brasil. Fonte: ELLE Brasil, março de 2017.

185 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Dito isto, iremos analisar as matérias de capa que trazem discussões sobre os movimentos sociais e manifestos abordados na publicação. É importante pontuar que, o material de análise, encontra-se na seção estilo. Com relação ao método de pesquisa, utilizaremos à Análise de Discurso Crítica para compreender os discursos ideológicos relacionados aos problemas sociais trazidos pela publicação. Sendo assim, nossa categoria de análise será ideologia, operando como legitimação e reificação. Compreendemos que a ideologia é percebida como construção ou ressignificação da realidade, onde ganha significação através das relações das diversas identidades sociais, bem como do mundo. Tais construções podem ser compreendidas por meio das produções de sentidos das práticas discursivas que ajudam a legitimar as relações de poder e dominação. As ideologias, na visão de Fairclough (2001), são representações sociais e não individuais, que procuram interpelar os sujeitos, a fim de que as relações de assimetria possam ser mantidas. Já Thompson (2011) vê as ideologias – de natureza hegemônica-, tendo como pressuposto a manutenção das relações de dominação, servindo de meio para reproduzir ordens sociais que beneficiem indivíduos e grupos hegemônicos de poder. Os modus operandi da ideologia são bem marcados nos discursos das matérias de capa da ELLE Brasil. Na que se intitula “Mamilos Livres”, a revista se propõe a fazer uma relação entre uma tendência de moda – a de mamilos aparentes- e de movimentos a favor da libertação ou contra censura dos seios femininos, o “ Free the Nipple”, “Mamilo Livre”, “TaTa Top” e “Genderless Nipples”. Com o intuito de legitimar tais movimentos, ELLE utiliza-se da estratégia de racionalização, onde o “produtor de uma forma simbólica constrói uma cadeia de raciocínio que procura defender, ou justificar, um conjunto de relações, ou instituições sociais, e com isso persuadir uma audiência de que isso é digno de apoio” (THOMPSON, 2011, p. 82-83). A racionalização é trazida para a matéria quando o discurso autorizado de movimentos sociais e personalidades da moda são postos para impulsionar a desmistificação e dessexualização do seio feminino. Dito isto, ELLE pontua que “o movimento também ganhou popularidade graças à adesão de nomes como Cara Delavingne, Rummer Willis e Lena Duham, entre outras” (ELLE BRASIL, 2017, p. 126). O que se percebe é que, ao operar ideologicamente por meio da legitimação, a revista propõe naturalizar a ideia do seio feminino a mostra, reforçando, em seu discurso, discursos outros, com a intenção de ganhar ainda mais força e a adesão de mais seguidores ou defensores.

Figura 2: ELLE Estilo Fonte: ELLE Brasil, março de 2017. 186 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Seguindo na mesma linha, mas voltando-se para o feminismo, a matéria “Power Squad” traz como forma de legitimação deste movimento, um esquadrão poderoso - de modelos e bloggers-, que está engajado, dentro do universo da moda, em ressignificar padrões de beleza já naturalizados. Compreendemos essa naturalização como estratégia ideológica de reificação sendo “um estado de coisas que é uma criação social e histórica pode ser tratado como um acontecimento natural ou como um resultado inevitável de características naturais [...]” (THOMPSON, 2011, p. 88). Na matéria, a publicação procura defender os diversos tipos de belezas que antes eram tidos como fora do padrão e, para isso, amparam-se em personalidades e movimentos para legitimar o seu discurso e sua posição frente aos problemas que acometem a sociedade, em especial a mulher. Assim, a moda serve não somente de escudo, mas como mola a fim de impulsionar tais discussões e tornar seu esquadrão ainda mais poderoso e resistente. Em “Voz Ativa”, ELLE propõe-se a legitimar por meio da racionalização a comunidade de intersexuais que, segundo a revista, “do ponto de vista clínico, a intersexualidade se divide em quatro grupos, e por isso as características são distintas. Mas todas sofrem algumas variações de caracteres sexuais, incluindo genitais internos e externos” (ELLE BRASIL, 2017, p. 132). Logo, a publicação trouxe a modelo belga Hanne Gaby Odiele, considerada a porta-voz desta comunidade, para retratar tal condição ainda pouco conhecida pela sociedade. ELLE faz um percurso na história da modelo até chegar nos dias atuais, onde a mesma resolveu falar acerca de sua condição com a pretensão de trazer o assunto à tona e, assim, ganhar mais visibilidade. O discurso de Hanne ganha mais força quando o insere no universo da moda. Por fim, na matéria “Leia na minha camisa”, a revista fala sobre a “ Women’s March”, que aconteceu nos Estados Unidos, no primeiro dia de mandato do atual presidente norte-americano Donald Trump, contra seu discurso sexista e segregacionista, no qual reuniu mais de 50 mil pessoas em Washington, na cerimônia de posse do então presidente, segundo ELLE. Diversos estilistas resolveram se manifestar, o que, para ELLE Brasil, significa que “o movimento de estilistas na women’s march confirma uma relação cada vez mais intensa entre a moda e a política” (ELLE BRASIL, 2017, p. 134). Percebe-se que a revista busca pesar tal movimento com a racionalização ideológica, por meio do envolvimento de estilistas, buscando mostrar que a moda não se preocupa em apenas em criar tendências de estilo, mas tendências e consciência de estilos de vida por meio de engajamento social. Entretanto, a revista afirma que esta postura “é relativamente nova na indústria da moda, quase sempre avessa a posicionamentos políticos tão evidentes como o de agora. Acontece que o mundo mudou” (ELLE BRASIL, 2017, p. 137). Para se legitimar enquanto movimento, a moda, em especial as marcas, têm buscado acompanhar essas transformações e, desta forma, aproximar-se cada vez mais de seu consumidor, que também está engajado em tais transformações. Considerações finais Vista como fenômeno social, a moda vai muito além de simplesmente vestir-se, ela acompanha as diversas transformações socioculturais. Por conta dessas transformações marcadas pela contemporaneidade, a moda necessita passar por processos de ressignificações e, assim, ser renovada. Logo, percebe-se, através desta edição de ELLE Brasil, que a moda tem se preocupado em aproximarse não apenas de seu público consumidor, mas da sociedade como um todo, e daquilo que nela é reverberado. O exemplo é a discussão trazida pela revista, onde as ideologias presentes na moda e nos movimentos sociais são trazidas à tona. Mas não apenas isso, o posicionamento da própria revista frente a essa discussão é facilmente percebido. Com um discurso pedagógico e bem aprofundado, a revista faz um paralelo entre os dois campos, a fim de legitimar o seu discurso e conquistar a adesão frente as causas trazidas nas matérias junto ao seu público leitor que se identifica ou é engajado nas transformações sociais.

187 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


É fato que pesquisas como esta não se esgotam apenas neste momento, portanto, pretendemos nos aprofundar em outros trabalhos, em novas pesquisas. Referências FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Ed. UNB, 2001. FAIRCLOUGH, Norman. Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Revista Linha d’Água, n. 25, v. 2, p. 307-329, 2012. GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2004. GOHN, Maria da Glória. Novas teorias dos movimentos sociais. São Paulo: Edições Loyola, 2008. RAMALHO, Viviane; RESENDE, Viviane. Análise de discurso (para a) crítica: o texto como material de pesquisa. Campinas, SP: Pontes, 2011. RAMALHO, Viviane C. Vieira Sebba. Constituição da análise de discurso crítica: um percurso teórico-metodológico. Signótica, n. 2, v. 17, p. 275-298, 2005. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. ELLE BRASIL, São Paulo: Editora Abril, edição 346, março/2017.

188 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


ARTESANATO CERAMISTA, IDEOLOGIA DO EMPREENDEDORISMO, DESIGN E RELAÇÕES DE SABER-PODER NA COOPERART-POTY, TERESINA-PI1 Carol de Araújo Barbosa 2 Maria Dione Carvalho de Moraes3 RESUMO A Cooperativa de Artesanato do Poty Velho (COOPERART-POTY), no bairro Poti Velho, zona norte de Teresina, PI, é fruto de investimentos de parceria público-privada entre Prefeitura Municipal de Teresina (PMT) e Serviço de Apoio a Pequena e Micro Empresa (Sebrae), com vistas à inclusão de mulheres no mercado do artesanato ceramista. Desde seu início, em 1998, mulheres do Poti, e adjacências, passam por capacitações variadas que incluem técnicas de artesanato e de práticas empreendedoras. No processo, contam com a presença constante de profissionais das artes plásticas, da administração e, em especial de designers que desempenham papel ativo no processo criativo das peças. O fundamento desta relação entre artesãs e designers é o discurso do empreendedorismo cuja ideologia veicula a necessária adequação da produção artesanal às exigências do mercado. No contexto, relações de saber-poder, em consensos e dissensos, compõem o cenário desta produção artesanal, demarcando a rotina de trabalho das artesãs. O fenômeno é aqui abordado, sociologicamente, com base em pesquisas realizadas e em curso. Palavras-chave: Relações de poder; Ideologia do empreendedorismo; Artesanato; Design; Poder.

Introdução

O

interesse pelo tema decorre da constatação da crescente presença do design no artesanato. No caso abordado, pesquisas realizadas (MORAES e PEREIRA, 2015; MORAES, 2013) e em curso (BARBOSA, 2017), pelas autoras deste artigo, apontam para o design como elemento axial no processo de uma política calcada na ideologia do empreendedorismo (MORAES, 2013) levada a cabo pela aliança público privada entre Prefeitura Municipal de Teresina (PMT) e Serviço de Apoio às Pequenas e Médias Empresas (Sebrae), no artesanato ceramista praticado no bairro Poti Velho 4, na cidade de Teresina, PI, a partir do ano de 1998. Esse investimento trouxe para a cena do artesanato praticado no bairro desde os anos 1960, e majoritariamente conduzido por homens, mulheres daquele mundo oleiro, muitas das quais, segundo narrativas locais, “ajudavam” os homens nas olarias, sobretudo, carregando e arrumando tijolos (MORAES e PEREIRA, 2015; MORAES, 2013). Demarcava-se, então, a entrada de mulheres daquele mundo oleiro na cena do artesanato ceramista do Poti Velho e a organização da Cooperativa de Artesanato do Poty Velho (COOPERART–POTY). A orientação político-econômica e a “capacitação técnica” deram-se com base na ideologia do empreendedorismo (SERAINE, 2009; MORAES e PEREIRA, 2015; MORAES, 2013) difundida, sobretudo, pela aliança entre PMT e Sebrae por cujo meio foi montado um projeto de capacitação no fazer artesanal (de

1

Trabalho apresentado no GT 05 – “Discurso e Ideologia” do II Encontro Nacional sobre “Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS)”, na UFPI, Teresina-PI, de 26 a 28 de abril de 2017 2 Mestranda em Sociologia da Universidade Federal do Piauí, Teresina-PI. Endereço eletrônico: carolbarbosamde@gmail.com 3 Dra. em Ciências Sociais com Pós-Doutorado em Sociologia. Profa. na Universidade Federal do Piauí (UFPI)/Centro de Ciências Humanas e Letras (CCHL)/Departamento de Ciências Sociais (DCIES). Programas de Pós-Graduação nos quais atua, na UFPI: Políticas Públicas (PGPP); Sociologia (PPGS); Antropologia- (PPGAnt). Endereço eletrônico: mdione@uol.com.br 4 Sobre o Poti Velho como lugar de prática oleira e artesanal ceramista, e seu “Pólo Cerâmico”, ver Moraes e Pereira (2015) e Moraes (2013). 189 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


diversa ordem) e na relação com o “mercado”, através de feiras e exposições locais, regionais, nacionais e internacionais, progressivamente. No processo, uma ação com foco na comercialização dos produtos implicaria na presença sistemática de artistas plástico/as, arquiteto/as, artesãos e artesãs de outras plagas com vistas, sobretudo, à introdução do design no artesanato ceramista do Poti. Esse processo é retratado por Moraes (2013) na análise da rede sociotécnica desse artesanato praticado pelas “mulheres do Poti”, inclusive, com a montagem de um quadro, pela autora, das sucessivas “coleções” cerâmicas, anuais, que as ceramistas passaram a produzir para eventos como o Casa Piauí Design. Com base no exposto, abordamos, neste artigo, algumas indicações do campo de poder nas relações entre designers e artesãs no processo criativo do grupo de mulheres da COOPERART-POTY, formada, em 1998, por mulheres do próprio bairro e adjacências. II – Artesãs entram em cena: organização e capacitações No Estatuto Social da COOPERART-POTY, identifica-se que esta foi registrada no dia oito do mês de setembro de 2006, composta por 28 mulheres. No artigo segundo do capítulo dois, tem-se como objetivo ...a defesa econômico-social de seus associados, mediante trabalho por estes executados na produção de peças de vestuário e artesanato, bem como valorizar as aspirações e talentos profissionais dos integrantes do quadro social, proporcionando-lhes condições para o exercício de suas atividades com permanente incentivo ao seu aprimoramento técnico. (grifo nosso)

Como referido, algumas dessas mulheres trabalhavam carregando tijolos sobre a cabeça, nas olarias, como ajudantes dos homens que os fabricavam. É voz corrente, no bairro, que antes da entrada das mulheres na cena do artesanato, de forma mais incisiva, eram os homens que lidavam com o barro, fazendo não apenas tijolos e telhas, mas também, potes, jarros e filtros. No entanto, em 1998, quando foi criada a Associação dos Artesãos em Cerâmica do Poti Velho (ArcePoti), esta foi formada, inicialmente, por 15 homens e 5 mulheres, ou seja, um terço dos associados do sexo masculino. Pode-se ver, aí, um início de como as mulheres, no Poti, passaram a fazer parte, mais ostensivamente, do cenário ceramista. A concretização dessa mudança foi-se delineando progressivamente com as referidas capacitações concedidas por instituições apoiadoras do empreendedorismo, sobretudo, o Sebrae, através de cursos e oficinas, não apenas de novas técnicas sobre o fazer das artesanias, como também em técnicas de apresentação e venda desses produtos. (SERAINE, 2009; MORAES, 2013). Com as investidas na formação do grupo de mulheres que se concretizou na consolidação da COOPERAT-POTY, a dinâmica laboral das mulheres seria transformada. Conforme a cooperativa foi crescendo, o grupo foi assumindo um novo lugar na comunidade ceramista, como protagonista. E as mulheres passam a aparecer nas mídias locais como personagens de histórias de superação e sucesso, associadas recorrentemente, às instituições apoiadoras. No processo, desponta-se o status de empreendedora, ou seja, as artesãs, além da responsabilidade de produzirem aquilo que irão vender, também agregam novas habilidades aprendidas no processo de capacitação o qual visa a proporcionar a essas mulheres não apenas melhoria da qualidade dos produtos como também direcioná-las a uma visão de negócios. Nesta perspectiva, aos treinamentos para “aprimoramento” técnico-artístico das peças,com foco em uma estética que atraia determinado perfil de consumidore/as com poder de compra e de difusão, somam-se capacitações para atividades como atendimento a clientes,

190 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


organização dos pontos de venda, administração da agenda de eventos que contribuam para divulgação dos produtos, controle das entradas e saídas das vendas, dentre outras funções que o “empreendimento” demanda. III- A presença do design e de designers no artesanato ceramista O artesanato dessas mulheres por ser fruto de constantes capacitações e treinamentos apresenta a peculiaridade da presença da ideia do design imbricado no processo criativo de produtos artesanais, na perspectiva, sobretudo, do que se expressa no discurso da “agregação de valor” ao produto. Subjacente, a submissão aos ditames mercadológicos de deixá-lo mais competitivo, nacional e internacionalmente, conferindo “sofisticação” ao produto artesanal, seguindo tendências de moda, no que diz respeito a cores e formas. Como observa Seraine (2009) o artesanato ressurge na sociedade moderna como alternativa não só à ocupação de mão-de-obra ociosa, por conta do desemprego estrutural. A isto, soma-se o imperativo de atender “necessidades do mercado”, em uma situação na qual produtos em série e desprovidos de personalidade, autoria e originalidade provocam saturações, atrapalhando a dinâmica do consumo. No processo de adequação do artesanato a imperativos do mercado, observa-se a introdução de profissionais da área do design, no mundo da produção artesanal. Nesse encontro entre artesã/os e designers, nem sempre se conciliam as subjetividades e coletividades de artesã/os envolvido/as nesses processos de transformação. Se, por um lado, a relação entre design e artesanato remete à perspectiva de retorno econômico da atividade artesanal, importante para artesãos e artesãs, por outro, existem tensões e conflitos que apontam para a necessidade de problematização dessa relação, no âmbito do processo criativo onde se dá o encontro entre posições de sujeitos e, como apontam Moraes e Pereira (2015), saberes e poderes distintos. A relação entre designers e artesãs, recorrente na história da COOPERART- Poty, mostra-se, segundo Moraes (2013, p.124), repleta de “impasses e negociações” em relação às peças produzidas, a exemplo, dentre outros, do ocorrido na preparação da coleção intitulada Mulheres do Poti5, em que “na proposta original [...] as bonecas não teriam cabeça. As ceramistas resistiram a isto, debateram, buscaram apoio de mediadores, negociaram, e conseguiram produzir bonecas com cabeça.” (MORAES, 2013, p.124) Vale lembrar que o processo criativo do artesanato, permeado pelo design, leva à reflexão acerca dos processo pelos quais se dão as transformações pelas quais este passou e vem passando, em um espaço no qual aspectos econômicos e culturais supostamente dialogam, sem fricções. Longe de difamar o design e idealizar a condição de artesãos e artesãs, convém pensar sobre o fato de que a criatividade, aí, deve ser vista como algo construído por multifatores, dentre eles, culturais, sociais e políticos que influenciam os sujeitos internamente e externamente. (CANCLINI, 1983; OSTROWER, 2001), na dialética entre o que Sigmund Freud concebeu como princípio do prazer e princípio da realidade. Ao longo do processo de criação artesanal, tais princípios encontram-se presentes, muitas vezes, conectados. Por um lado, na perspectiva do princípio do prazer, a arte de fazer com as próprias mãos estaria dentro da necessidade de satisfação “primitiva”dos prazeres corporais e até mesmo espirituais. Já o princípio da realidade corresponde ao amadurecimento, na perspectiva das fases do desenvolvimento humano 6 (FREUD, 1975; 1976). Assim, no contexto de intervenção das políticas públicas voltada ao artesanato, com ênfase no valor mercadológico, pode-se refletir sobre a tensão entre o primeiro e o segundo, uma vez que não apenas se produz algo prazeroso, quanto essa produção leva o 5

Para detalhes dos processos envolvidos nesta coleção, ver Moraes e Pereira (2015) e Moraes (2013) Posteriormente associado a “pulsões de morte”.(FREUD, 1976); Relacionado ao artesanato praticado por mulheres do Poti Velho em MORAES, 2013. 6

191 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


corpo das artesãs a experimentar o “desprazer” temporário de cumprir prazos e produzir majoritariamente peças que sejam percebidas como mais vendáveis, mesmo se desejam produzir outras ou, mais extenuante que isto, quando se tornam totalmente submetidas aos ditames mercadológicos que passam a determinar/delimitar sua potência criativa. Além do mais, trata-se de mulheres, em sua maioria, sem inserção no mercado formal de trabalho e que ganham um lugar nesse mercado através do artesanato cerâmico. No cenário social em que as “mulheres do Poti” ganham visibilidade na esfera pública, a realidade era identificada, pela gestão pública,como apontando para o desemprego e para o aumento de mão de obra ociosa. O incentivo à organização de cooperativas e o incentivo à práticas empreendedoras foram impulsionados com a expectativa de gerar ocupação, garantindo a “subsistência sem perigo” que deve ser procurada através do trabalho (FOUCAULT, 1987, p. 101). As instituições difundem valores do empreendedorismo junto às mulheres, apresentando-os como um fundamento da possibilidade de transformá-las, por meio das capacitações, em “donas de seu próprio negócio e da sua força de trabalho”, para mudar a realidade. Nota-se, ainda, a ênfase em certa “pedagogia universal do trabalho”, com interesses econômicos, pedagogia, esta que visa recolocar a pessoa no sistema de interesses focados no trabalho: “ quem quer viver tem que trabalhar. (FOUCAULT, 1987, p.100) No processo, a própria ânsia criativa é estimulada pela ideologia do empreendedorismo que legitima a pausa nesta em prol de um prazer futuro (que pode ser a garantia de um status de empreendedor/a). Em primeiro plano, as expectativas do retorno financeiro e da aquisição de bens, de emancipação em relação à vida conjugal/familiar, dentre outras recompensas que possam ser consideradas a partir da tensão entre os princípios do prazer e os da realidade, da criação e da repetição. Na intepretação de Moraes (2013, p.89) Sigmund Freud considera próprio do ser o ato de afastar-se “da realidade por não concordar com a renúncia à satisfação instintual, pulsional, exigida por esta realidade”, caso da arte. Mas, no caso, o prazer proporcionado pelo ato criativo atribuído como próprio das atividades artesanais entra em constante conflito com as influências externas que inserem as mulheres no papel de empreendedoras. A criatividade, constantemente atrelada aos imperativos do mercado, leva a que no processo de concepção de uma peça artesanal, o prazer de fazê-la, ou até mesmo a beleza estética que ela terá, são pensados de forma circunscrita aos ditames de um “público consumidor” 7 daquela peça. Por um lado, como observado por Moraes e Pereira (2015), algumas dessas as Mulheres do Poti revelam desejos de fugir aos limites das “capacitações” que, em larga medida a tornam, também, incapacitadas para o exercício da criatividade. Por outro, como “corpos dóceis”, vão-se integrando a novas rotinas, novas posturas corporais8 e técnicas, nos frequentes treinamentos. Vão aprendendo não só artes do fazer artesanal como as de cumprir funções de forma disciplinada, de acordo com as intenções das instituições envolvidas, das escolhas estéticas de designers, e com as exigências do próprio mercado para o qual seus produtos são voltados. No contexto, o corpo vai adaptando-se às exigências do atendimento a cargas de trabalho diferenciadas, na perspectiva empreendedora de “trabalho por conta própria”, como referimos em Moraes e Barbosa (2007). E acabam tendo que cumprir também as exigências dos prazos das encomendas que recebem, além de jornada de trabalho condizente com essas expectativas. A exemplo, atualmente, trabalham intensamente para atender a demanda de peças para a inauguração de uma loja da cooperativa em um shopping center da cidade de Teresina. Tal qual o soldado e sua “retórica corporal da honra” (FOUCAULT, 1987, p. 117), elas também vão sendo sistematicamente fabricadas para

7

Na perspectiva do SEBRAE (2004, p.45) “uma estratégia de inserção comercial do artesanato no mercado de consumo, para que tenha algum sucesso, deve ser precedida de uma pesquisa de mercado que possa identificar os distintos públicos compradores, seus hábitos, gostos, preferências e separar os produtos de acordo com estas informações.” 8 Sobre técnicas corporais, ver Mauss (1974). Sobre hexis corporal, ver Bourdieu (2006). 192 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


atuar na perspectiva dos ditames do mercado global de artesanato. Qual o espaço concedido ao “princípio do prazer” próprio do ato de criar? O artesanato, para além de apenas uma extensão do corpo da artesã, é seu próprio corpo. No entanto, o trabalho na sociedade de consumo torna-se algo mecânico que descorporifica os sujeitos. Nesta direção, o ritmo de produção da cooperativa, com prazos e metas pré-estabelecidos, lembra o estilo de produção fordista, embora ainda não se verifique, ali, por completo, o sistema de repartição de funções específicas, pela divisão técnica do trabalho. Mas isto pode ser observado até mesmo na produção de algumas peças, como indica Moraes (2013) quando apresenta o processo de produção das coleção “ Mulheres do Poti”. Assim, por esse ângulo, se o corpo que produz não foi desmembrado, o artesanato, nessa dinâmica, transmuta-se, fruto de um corpo ao qual não é permitido sentir prazer. O artesanato como mercadoria – valor de troca – tem o seu “aspecto estético” decomposto entre a “manifestação sensível e o valor de uso” que ficam submetidas às exigências da estética vigente no mercado e a preocupações das concorrências (MACIEL, 2005, p. 09). Notam-se investimentos na domesticação/docilização dos corpos através de detalhes significativos. Como exemplo, na apostila do curso de Design de Bijuterias desenvolvida pela equipe de capacitação da Fundação Wall Ferraz, observa-se uma unidade cujo conteúdo volta- se, exclusivamente, ao trato de temas como higiene corporal, com um dos tópicos intutulado “higiene e trabalho”. Entre as sugestões relacionadas a essa higiene, citam-se cuidados com vestuário, banho diário, cuidados com o rosto para uma aparência saudável, lavagens dos cabelos, manutenção da limpeza das unhas das mãos e pés e limpeza dos dentes. Sobre tais comportamentos considerados importantes para a saúde humana, segundo preceitos higiênicos atuais, na situação em apreço, notamos a intenção de encaixá-los em uma linha de conduta que se considera como conveniente para o exercício da nova função. Pensamos, com Foucault (1987, p.118), sobre a lógica de que “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Essa docilização de certa forma prepara os corpos para enfrentar os conflitos existentes ao longo do processo criativo das sucessivas “coleções”. As artesãs referem a existência de certas discordâncias, da parte delas, de algumas propostas estéticas que lhes são trazidas por designers, e dizem que elas reagem,buscando as suas próprias concepções e gostos nas peças que produzem. Nesse sentido, pode-se dizer que a relação de poder, embora assimétrica – uma vez que as proposições das instituições apoiadoras, através de instrutore/as têm prevalência –não é unilateral. Como diz Michel Foucault, o poder não tem apenas a função de reprimir, tal um grande superego. Ele não é tão frágil, ou seja, não se exerce, apenas de um modo negativo. Produz, também, efeitos positivos, no nível do desejo e do saber. Assim, “o poder, longe de impedir o saber, o produz.” (FOUCAULT, 1979, p. 85) Mas o poder exercido é algo tão estabelecido dentro do próprio sistema de funcionamento das engrenagens das relações que não é percebido como tal, exigindo, então, certo esforço crítico para notar as forças quase invisíveis que incidem nas mais diversas situações cotidianas, nas quais vivemos formas, muitas vezes, imperceptíveis do que Bourdieu (1989) define como poder simbólico. Até o momento, na pesquisa, há indícios de que a relação entre artesãs e designers é permeada por conflitos e tensões, mas também por negociações e acordos, o que na perspectiva foucaultiana das relações de poder, pode ser encarado como formas de manter o poder ativo e imperceptível ou, até mesmo, como um sinal de corpos dóceis rebelando-se contra imposições do sistema. Um dos desafios da pesquisa é apreender se esse tipo de poder produz nas artesãs a sensação de que ir contra os imperativos do mercado é ir contra si mesmas; se não se conseguem ver apenas como funcionárias das instituições apoiadoras; se o universo ideacional 9 do empreendedorismo encontra-se de tal forma incutido em sua rotina fazendo-as enxergarem-se como donas da sua força de trabalho e do seu próprio negócio, portanto, sem receio de serem demitidas; se incorporaram, também, o discurso empreendedor de que elas são as únicas responsáveis pelo próprio sucesso ou fracasso; se julgam conveniente abdicar de 9

Sobre o conceito de universo ideacional, ver Ribeiro (1992)

193 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


sua própria capacidade criativa, negociando, sempre, alimentadas pela sensação de autonomia financeira, e se isto pode ser visto nos termos do que Bourdieu define como “senso prático”. Estariam os corpos sendo docilizados, de tal forma que não conseguem se imaginar vivendo de outra forma? E aquelas ceramistas que por algum motivo destoam, correm o risco de serem mal vistas pelo grupo? Outro ponto que pode ser considerado na relação entre artesãs e designers, com base em indícios, na pesquisa de campo, é que os saberes de designers sobrepõem-se aos das artesãs em muitos momentos, no processo criativo das peças, a despeito de algumas concessões. É como se as artesãs soubessem menos que designers sobre a própria cultura. Como lembra Canclini (1983), este ponto é contraditório, porquanto artesanato é justamente a demonstração de vivências culturais locais, ou seja algo que representa uma cultura situada, mesmo que se torne um produto do mercado globalizado. Tanto é que observa-se, neste projeto de empreendedorismo, a busca por criar “produtos com identidade cultural localizada” para o mercado consumidor globalizado. Assim, a ideia de “capital cultural”10– que diz respeito, não só aos recursos econômicos de um sujeito, embora estes sejam utilizados como referência básica –é acionada no âmbito desse projeto, pelo mesmo, discursivamente, declarando levar-se em questões estilo, gostos, valores do que se denomina – de forma incipiente – “cultura tradicional”, que, nesse mercado de bens simbólicos, ganha ares de superioridade sobre outros marcadores identitários e culturais. Mas, não é difícil supor que o capital cultural de designers se sobrepõe ao das artesãs, o que explicaria o exemplo de conflito referido, como também os episódios de aceitação, pois nessa lógica parte-se da concepção um tanto discutível de que há, na relação, um componente com “mais bagagem cultural”, como referido por um designer e que, portanto, sabe mais e melhor, o que resulta em maior poder no processo criativo do trabalho artesanal. O designer, passa, então, a exercer esse poder, de acordo com as expectativas do que é atribuído à função do design. Este, como projeto de inserção social no artesanato, deve ser visto como possuindo uma dinâmica diferente da artesanal: “ um parte da ideia para a prática, o outro surge durante o próprio fazer; o design é posto nessa relação com a responsabilidade de “adequar” o artesanato ao contexto “urbano e contemporâneo”. (FORNASIER, 2012, p. 8) Nesse processo de adequação, convém lembrar que a subordinação a um determinado gosto – apesar das subjetividades envolvidas – é algo passível de discussões sociológicas. Sobretudo, quando se considera que o gosto funciona como instrumento de distinção que legitima a intervenção constante de estéticas outras, no caso do artesanato, como realmente necessárias para que a artesania possa ser aceita por determinadas camadas sociais com poder de consumo. Essa intervenção é vista pelo mercado como “agregação de valor” ao produto, transformando um bem simbólico em mercadoria na dinâmica demarcada pela distinção social. (BOURDIEU, 1989;1974; CALDAS, 2004) Assim, o artesanato das Mulheres do Poti, ao mesmo tempo que sugere uma aproximação destas com consumidore/as, produz, também, o afastamento, pois as peças por elas produzidas são consumidas na perspectiva da distinção social. Aliás, podemos pensar em uma dupla distinção: a de consumidores e a de artesãs-designers, embora ambos estejam envolvidos no mesmo processo criativo das peças artesanais. É que o/a designer, na ótica das propostas das instituições apoiadoras, é quem cumpre a função de “agregar valor” e adequar o produto às expectativas do mercado consumidor, isto11. 10

Capital cultural, para Bourdieu (1977), é uma ferramenta heurística para reportar-se a situações de classe, subculturas ou frações de classe, em especial, em termos degostos, estilos, valores, estruturas psicológicas, etc, e que contribui para distinguir tanto frações de classe (burguesia tradicional e nova pequena burguesia) quanto classes distintas (burguesia e classe trabalhadora). Esse recurso de poder destaca-se de outros e tem como referência básica os recursos econômicos, numa analogia a poder e ao aspecto utilitário relacionado à posse de determinadas informações, gostos e atividades culturais. 11 Para Lima (2002), a intervenção de designers nas artesanias dever-se-ia limitar ao ensino de técnicas estritamente referentes à qualidade produtiva do fazer: melhorar técnicas de cozimento da cerâmica, evitando que rachem e/ou quebrem, por exemplo. Quanto a estética e gosto, devem ser algo exclusivo de artesãos e artesãs, pois, respeitando-se a autenticidade das expressões culturais. Exceto por um ou outro aperfeiçoamento, a forma/estética deve ter o mínimo de intervenções externas. 194 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Os projetos executados pelo governo para promover a ressurreição das artesanias na sociedade comumente tornam-se inimigos da sensibilidade e da capacidade imaginativa dos sujeitos artesãos, retirando do saber-fazer o prazer existente do ato criativo, bem como as imperfeições, estas, responsáveis por aproximar os seres humanos da sua humanidade ao assumirem-se como seres imperfeitos e que usam seu próprio corpo para sentir a si mesmo e o outro. Artesanato é obra feita pelas mãos e imprime gostos e desejos de um outro. (PAZ,1988). Considerações finais Em tempos de universalismo, globalização, massificação, o artesanato sobressai, como lembra Otavio Paz, como peculiaridade, um gesto de liberdade e prazer em meio à unificação das formas, através da técnica. No entanto, o artesanato é resgatado na sociedade moderna industrial, pelos governos, geralmente com interesses comerciais. Assim, a dinâmica de trabalho de artesãos e artesãs vem-se alterando, significativamente, para corresponder expectativas do mercado consumidor. No contexto, o processo criativo de artesãs e artesãos tanto interage com novos elementos, quanto pode perder a autonomia, como indicam certos conflitos e tensões relações entre eles/as e designers. Nessa dinâmica, as assimetrias acabam instalando-se nas relações, em especial, a de designers e artesãs, sendo possível visualizarem-se nuances das relações de poder no âmbito da criatividade. Assim, o processo de criação é bastente propício para a manifestação de elementos passíveis de observação por meio das lentes sociológicas. As consideraçõe saqui registradas são decorrentes de pesquisa realizadas edo atual estágio da pesquisa em curso, por meio das observações em campo e de informações coletadas até o momento. Nos limites desta abordagem, consideramos que as trilhas aqui indicadas apontam para novos investimentos e maior aprofundamento sobre as relações entre o artesanato das Mulheres do Poti e o design. E entendemos, ainda que trazer estas primeiras considerações para o debate contribuirá para o enfrentamento do desafio de dar à pesquisa densidade teórica e empírica no trato da temática. Referências BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1989. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino, v. 2, 1975. BOURDIEU, Pierre; A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974. BOURDIEU, Pierre. Capital cultural, escola e espaço social. Mexico: SigloVeinteuno, 1977 CALDAS, Dario. Observatório de sinais. Rio de Janeiro: SENAC Rio, 2004. CANCLINI, Néstor García; COELHO, Cláudio Novaes Pinto. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983. FORNASIER, Cleuza BR; MARTINS, Rosane FF; MERINO, Eugenio. Da responsabilidade social imposta ao design social movido pela razão. 2012. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder; organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, v. 4, 1979. FREUD, Sigmund. Obras Completas. Vol. XXII. São Paulo: Imago,1976. FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Obras completas. Rio de Janeiro,RJ: Imago, v.18, 1975.

195 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


LIMA, Ricardo. Estética e gosto não são critérios para o artesanato. Artesanato, Produção e Mercado: uma via de mão dupla. São Paulo: LJM, 2002,p. 23-37. MORAES, Maria Dione Carvalho de. Artesanato cerâmico no bairro Poti Velho emTeresina-Piauí (rede sociotécnica, agenda pública, empreendedorismo e economia criativa).Curso de Formação de Gestores culturais dos Estados do nordeste. Trabalho de Conclusão de Curso. UFRP, Recife, 2013. MORAES, Maria Dione Carvalho de; PEREIRA, Lucas Coelho. Conhecimentos em Interlocuções e Dissensões no Artesanato Cerâmico do Poti Velho, em Teresina-Pi. V Colóquio Internacional: A Universidade e modos de produção do conhecimento- para que desenvolvimentos. Monte Carlos, MG: 2015. p. 1109-1127 OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro, Vozes, 1987. PAZ, Octávio. El Uso y laContemplacion. Revista Camacol. V.11. Edição 34. 34 de março de 1988. RIBEIRO, Gustavo Lins. Ambientalismo e Desenvolvimento Sustentado. Nova Ideologia/Utopia do Desenvolvimento, Brasilia, 1992. Disponível em: <http://dan.unb.br/images/doc/Serie123empdf.pdf>. Acesso em: 09 abr 2017. SERAINE, Ana Beatriz Martins dos Santos. Ressignificação produtiva do setor artesanal na década de 1990: o encontro entre artesanato e empreendedorismo. 2006. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, 2006.

196 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O DISCURSO DE PAULO EM DEFESA DE SUA AUTORIDADE APOSTÓLICA E DA VERACIDADE DE SUA PREGAÇÃO NA 1 EPÍSTOLA AOS GÁLATAS: UM ESTUDO À LUZ DA ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO Paloma Pereira Lopes2 Vilmar Ferreira de Souza3 RESUMO A Análise Crítica do Discurso oferece importante arcabouço para interpretação dos textos bíblicos, por levar em conta todas as questões históricas, sociais e textuais que se assentam sobre a produção dos discursos. Este trabalho, fruto de pesquisa em andamento, propõe-se a analisar essas questões que envolvem o discurso que Paulo elabora na sua epístola aos gálatas, mais especificamente os capítulos 1 e 2 da referida epístola, nos quais ele se defende diante daqueles que confrontam a autoridade de seu ministério apostólico e a genuinidade de sua pregação, verificando os recursos que ele utiliza em sua defesa e que mudanças são desencadeadas no meio cristão a partir de sua fala. Este estudo utiliza como teoria e método o modelo tridimensional proposto por Fairclough (2001), que considera que todo discurso é, ao mesmo tempo, um texto, uma prática discursiva e uma prática social. A edição bíblica utilizada nessa pesquisa é a da Bíblia de Jerusalém, versão brasileira da edição francesa La Bible de Jerusalém. Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso; Apóstolo Paulo; Epístola aos Gálatas.

Introdução

M

aingueneau introduziu a noção de Discursos Constituintes, que são aqueles que, dentre outras características, possuem uma que é singular: são “zonas de fala em meio a outras e falas que pretendem preponderar sobre todas as outras” (Maingueneau, 2000, p. 6). São, pois, discursos que dão sentido a atos coletivos, e operam sobre esses atos normatizando comportamentos e, nesta classificação, Maingueneau nomeia o discurso religioso como um dos tais. O discurso religioso é um dos tipos de discurso que não reconhece nenhum outro discurso com autoridade sobre si e está diretamente relacionado aos valores que fundam a sociedade. Por este motivo, a Bíblia é o livro mais vendido da história da humanidade, e o que contém mais traduções para diversos idiomas e dialetos. Ela representa um pilar universal, de valor muito sagrado para cristianismo, por reunir as leis que o próprio Deus deu ao homem, sintetizadas através das mensagens de vários homens que, inspirados por Deus, ao longo da história, realizaram seus escritos que vieram a compor o cânone bíblico. Dentre esses homens, um dos que mais se destaca, sem dúvidas, é o Apóstolo Paulo. Um fariseu, muito zeloso pela lei judaica, que perseguiu e matou cristãos, e depois converteu-se à fé que dantes perseguia (Gl 1.23). Paulo ficou conhecido como Apóstolo dos Gentios, por ter sido um dos maiores evangelizadores e fundadores de igreja entre os não israelitas. Sua influência permanece até os dias atuais, pois é o que mais contém livros de sua autoria compondo o cânone bíblico. Apesar dessa influência, é interessante notar que nem tudo o que Paulo dizia ou fazia era sempre tão bem recebido, e que sua autoridade algumas vezes foi questionada, o que se pode inferir pelas epístolas em que ele claramente demonstra estar se defendendo de acusações contra seu ministério e/ou pregação. Um claro exemplo é o corpus selecionado para este trabalho:

1

Trabalho apresentado no GT 05 - Discurso e Ideologia do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Discente do curso de Letras – Português e Literatura do Instituto Federal do Ceará – IFCE – Campus Crateús – CE. Endereço eletrônico: delphinopaloma@gmail.com. 3 Orientador - Doutor em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professor do curso de Letras – Português e Literatura do Instituto Federal do Ceará – IFCE – Campus Crateús – CE. Endereço eletrônico: vilmardesouza@unilab.edu.br. 197 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


a epístola aos Gálatas. Nessa epístola, percebe-se que Paulo destinava sua defesa a diversas acusações. A primeira, que compõe os dois primeiros capítulos, diz respeito às acusações contra seu ministério. Neste trabalho, baseado no modelo tridimensional de Fairclough, tem-se como intuito discutir, introdutoriamente, as estratégias utilizadas por Paulo em sua defesa e que mudanças são desencadeadas no contexto cristão a partir de suas falas. Apresentam-se, a seguir, alguns dos primeiros resultados, em que são utilizadas as seguintes categorias: na análise do discurso como prática discursiva, analisam-se os efeitos extra-discursivos, a coerência, o estilo, o gênero, o tipo de discurso, e as cadeias intertextuais; na análise do discurso como texto, verifica-se a construção do Ethos de Paulo, e os recursos de polidez utilizados por ele; e na análise do discurso como prática social, analisam-se, brevemente, as questões ideológicas e hegemônicas presentes no corpus analisado. Princípios fundamentais da Análise Crítica do Discurso Em 1970, nasce uma forma de análise linguística que percebe o papel da linguagem na legitimação das relações de poder na sociedade, doravante denominada Linguística Crítica (LC). Segundo Rajagopalan (2003), ela se originou do entendimento de que trabalhar com a linguagem significa necessariamente interferir na realidade em que ela se insere. Até então, grande parte das pesquisas linguísticas objetivava analisar apenas a competência linguística dos falantes, e as pesquisas que levavam em conta o papel do contexto, como a pragmática e a sociolingüística, desprendiam pouca atenção às questões sociais. O termo “crítica” é visto atualmente como uma articulação do “engajamento social e político com uma construção de sociedade sociologicamente embasada” (KRINGS et al., 1973, p. 808, apud Wodak, 2004, p. 225). A partir desses estudos de abordagem crítica, em 1990, a publicação da revista “ Discourse and Society”, de Van Dijk, marca o surgimento da Análise Crítica do Discurso (ACD), influenciada também pelas publicações anteriores dos livros de Norman Fairclough (Language and Power – 1989), Ruth Wodak (Language, Power and ideology – 1989) e o próprio Van Dijk (Prejudice in discourse – 1984). Segundo Wodak (2004, p. 225): [...] a LC e a ACD podem ser definidas como campos fundamentalmente interessados em analisar relações estruturais, transparentes ou veladas, de descriminação, poder e controle manifestas na linguagem. Em outras palavras, a ACD almeja investigar criticamente como a desigualdade é expressa, sinalizada, constituída, legitimada, e assim por diante, através do uso da linguagem (ou no discurso).

Segundo Pedrosa (2005), a ACD estuda a linguagem como uma prática social, considerando o papel essencial do contexto. Essa análise se preocupa, principalmente, com a relação que há entre linguagem e poder, enxergando, pois, a linguagem como um instrumento de dominação, de validação das relações de poder. Nas palavras de Wodak (2004, p. 224), Essas pesquisas se voltam especificamente para os discursos institucional, político, de gênero social e da mídia (no sentido mais amplo), que materializam relações mais ou menos explícitas de luta e conflito.

De antemão, é necessário apreender alguns conceitos para melhor compreensão da uma análise crítica de um discurso: o primeiro conceito é o de discurso: segundo Fairclough (2001, apud Pedrosa, 2005) o discurso é uma prática social e ideológica e, portanto, constitui os significados de mundo; o segundo é o de contexto: a ACD parte da premissa de que todo discurso é produzido e interpretado historicamente, por estar situado no tempo e no espaço e, por conseguinte, só podem ser compreendidos em seu contexto de realização; outro conceito central é o de sujeito: a ACD rejeita o conceito de sujeito assujeitado defendido pela AD, pois os sujeitos são moldados pelas práticas discursivas, mas também podem remodelar essas práticas (Pedrosa, 2005); o quarto é o de identidade: é a origem social do falante (gênero, classe, atitudes, crenças, etc) que é expressa pelas formas linguísticas selecionadas por ele (Pedrosa, 2005); e, por fim, intertextualidade e

198 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


interdiscursividade: essas categorias são inspiradas nas noções introduzidas por Bakhtin de que os textos “respondem a textos anteriores e, também, antecipam textos posteriores” (Bakhtin, 2000, apud Pedrosa, 2005). O modelo tridimensional de Fairclough Fairclough vê a necessidade de reunir em uma análise de discurso a análise linguística e a teoria social, por perceber a importância que a linguagem tem sobre a vida social e vice-versa, e busca criar “uma abordagem de análise de discurso que poderia ser usada como um método dentre outros para investigar mudanças sociais” (Fairclough, 2001, p. 27) Para Fairclough, a linguagem é uma prática social e uma forma de agir no mundo (visão pragmatista), e há uma relação direta entre a estrutura social e o discurso, de modo que esse é moldado por aquele. Como prática social, o discurso não apenas representa o mundo, mas o significa. Buscando respaldo nas propriedades socialmente construtivas do discurso abordadas por Foucault, Fairclough destaca três aspectos principais dessas propriedades: primeiro, o discurso contribui na construção das identidades sociais; segundo, contribui na construção das relações sociais; e terceiro, o discurso contribui na construção dos sistemas de conhecimento. Baseado nessas três propriedades, as quais Fairclough denomina como identitária, relacional e ideacional, respectivamente, e também na metafunções da Linguística Sistêmico Funcional de Halliday, que vê a linguagem como multifuncional, ele elabora, então, um modelo de análise tridimensional, por considerar que todo discurso é, ao mesmo tempo, um texto, uma prática discursiva e uma prática social. Texto é qualquer “produto escrito ou falado” (Fairclough, 2001, p. 23). Essa dimensão trata da análise de todos os aspectos linguísticos formais, e Fairclough organiza essa análise em quatro itens, em escala crescente: vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual. Este último, refere-se a aspectos de planejamento do texto e analisa-se a produção do discurso enquanto comunicação verbal, sujeita às regras polidez e à construção do eu, por meio do ethos. A prática discursiva trata das formas produção e interpretação dos textos, e indaga sobre quem produz, para quem, e em que circunstâncias. Para Fairclough (2001, p. 107), “todos os textos são produzidos de formas particulares em contextos sociais específicos”. Da mesma forma, o consumo dos textos também é realizado de forma diferente em cada contexto. A produção e consumo dos textos envolvem, pois, questões sociocognitivas, ou seja, recursos interpretativos que os membros ou participantes do discurso possuem de forma interiorizada. Contudo, geralmente esse processo ocorre de forma não-consciente. Esta dimensão abrange aspectos como: interdiscursividade, cadeias intertextuais, coerência, condições de prática discursiva, intertextualidade, entre outros. E, por fim, a prática social trata da forma como as questões sociais moldam as práticas discursivas. Nesta dimensão, o foco principal é trabalhar questões de ideologia e hegemonia. A respeito de ideologia, recorrendo principalmente a Althusser, Fairclough apresenta três asserções essenciais: Primeiro, a asserção de que ela tem existência material nas práticas das instituições, que abre o caminho para investigar as práticas discursivas como formas materiais de ideologia. Segundo, a asserção de que a ideologia ‘interpela os sujeitos’, que conduz à concepção de que um dos mais significativos ‘efeitos ideológicos’ que os linguistas ignoram no discurso [...] é a constituição dos sujeitos. Terceiro, a asserção de que os ‘aparelhos ideológicos de estado’ (instituições tais como a educação ou a mídia) são ambos locais e marcos delimitadores na luta de classe [...]. (Fairclough, 2001, p. 116, 117, grifo do autor)

As ideologias são significações do mundo, e estão presentes nas práticas discursivas como aparelhos mantenedores das relações de poder, tornando-se ainda mais eficientes quando tomam a posição de senso comum. Para Fairclough, essa situação estável das ideologias enquanto senso comum não deve ser mantida, pelo contrário, as práticas discursivas devem constituir-se em lutas de transformação das relações de poder e

199 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


dominação. Fairclough discorda da teoria althusseriana por considerar que os sujeitos podem agir criativamente sobre as próprias práticas e ideologias com as quais se relaciona e são capazes de reestruturar essas estruturas. [...] As ideologias surgem nas sociedades caracterizadas por relações de dominação com base na classe, no gênero social, no grupo cultural, e assim por diante, e, à medida que os seres humanos são capazes de transcender tais sociedades, são capazes de transcender a ideologia. (Fairclough, 2001, p. 121)

É importante ressaltar, ainda, que, embora as ideologias estejam presentes nos textos, não é possível lê-las, ou seja, a simples análise textual não é capaz de identificar uma ideologia presente, pois os textos/discursos estão abertos a diversas interpretações que podem diferir por pertencerem a processos sociais mais complexos. Fairclough procura em Gramsci fundamentação para a definição de hegemonia. Hegemonia é a própria relação de dominação presente na sociedade. Nas palavras do próprio Fairclough, [...] Hegemonia é o poder sobre a sociedade como um todo de uma das classes economicamente definidas como fundamentais em aliança com outras forças sociais, mas nunca atingido senão parcial e temporariamente, como um ‘equilíbrio instável’. Hegemonia é a construção de alianças e a integração muito mais do que simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar consentimento. (Fairclough, 2001, p. 122).

Como já dito, os sujeitos são compostos pelas diversas ideologias presentes em seu dia-a-dia, e essas ideologias vão sendo naturalizadas pelo senso comum. Gramsci fala em um complexo de ideologias, como sendo um campo em que as diversas formações ideológicas se conflitam. Sendo o discurso a superfície desse complexo de ideologias, as ordens do discurso são, pois, os marcos das lutas hegemônicas de articulação, desarticulação e rearticulação das relações. Fairclough salienta que a maior parte das lutas hegemônicas se realiza a nível do contexto dos discursos de instituições particulares (família, escola, igreja, etc.) e não a nível nacional, e conclui que o conceito de hegemonia oferece uma matriz para analisar a prática social e um modelo para analisar a própria prática discursiva. Compreendidos esses aspectos, Fairclough chega, então, a uma de suas principais preocupações: a mudança. Fairclough foca a mudança discursiva em relação à mudança social e cultural. Para ele, as mudanças se originam em problematizações das convenções por parte dos membros, que passam a questionar a realidade em que estão inseridos. Um bom exemplo de problematização é a da relação entre homens e mulheres. A mudança abrange, pois, a transgressão e reformulação das convenções. Essas reformulações conduzem a mudanças na ordem dos discursos, formando novas hegemonias discursivas, que podem afetar o interior de uma instituição ou a sociedade como um todo. A compreensão desses aspectos e métodos oferece importante arcabouço para a compreensão das práticas discursivas e sociais dentro das instituições religiosas. Paulo: o apóstolo dos gentios O Apóstolo Paulo foi um dos mais influentes no cristianismo primitivo. Seu verdadeiro nome era Saulo, nascido em Tarso, na Cilícia, cidade localizada na Ásia menor (território pertencente hoje à Turquia). Foi educado por Gamaliel, um doutor da lei, e um dos líderes entre as autoridades eclesiásticas judaicas. Possuía cidadania romana, privilégio que poucos dentro do império romano desfrutavam. Pela educação que recebeu, tornou-se um fariseu4 tão zeloso que chegou a perseguir e matar muitos cristãos. 4

Membro de grupo religioso judaico, surgido no s. II a.C., que vivia na estrita observância das escrituras religiosas e da tradição oral; o grupo foi acusado de formalista e hipócrita pelos Evangelhos. 200 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Seu nome, Saulo, aparece pela primeira vez na Bíblia no livro dos Atos dos Apóstolos (6.58), quando, aos seus pés, foram lançadas as roupas do primeiro mártir cristão, Estevão, que foi apedrejado por pregar o evangelho em Jerusalém. Posteriormente, no mesmo livro (cap. 9), é narrada a sua milagrosa conversão, quando ia a caminho de Damasco com autorização para prender quaisquer cristãos que encontrasse. Após sua conversão, resolve mudar seu nome para Paulo, por Saulo estar associado às muitas perseguições que realizara anteriormente. No início, muitos o temiam, por conhecer sua fama, mas Paulo demonstra ter com o evangelho o mesmo compromisso e zelo que dantes tinha com o farisaísmo. É também conhecido como apóstolo dos gentios5, por ter sido o mais empenhado com a divulgação do evangelho às comunidades não judaicas, e por declarar, na epístola estudada, que lhe foi entregue o evangelho da incircuncisão, como a Pedro o da circuncisão6. A igreja em Galácia e o contexto da epístola Galácia era uma província da Ásia Menor, território hoje pertencente à Turquia. O nome Galácia deriva de gaulês, pois seus habitantes eram originários de Gália (França hoje em dia). Os gauleses ocuparam o território entre 300 e 270 a.C., onde os romanos estabeleceram a província em 25 a.C. mantendo o nome Galácia. Diferentemente das demais, a epístola aos Gálatas não foi destinada a uma única igreja, mas “às igrejas da Galácia” (Gl 01.02b), como Antioquia da Pisídia, Icônio, Listra e Derbe, cidades onde Paulo estabeleceu congregações durante sua primeira viagem missionária (At 13,14), acompanhado de Barnabé. A epístola foi escrita, provavelmente, entre 48 e 49 d.C., logo após o retorno deles à igreja que os havia enviado (Antioquia da Síria), e antes do Concílio de Jerusalém (explicado mais a diante). Se tiver sido realmente nesse período, a epístola aos Gálatas foi a primeira escrita pelo apóstolo Paulo. Os judeus estavam espalhados por todo o império Romano e, nesse período, muitos se converteram ao cristianismo. Entretanto, grande parte deles prescrevia um evangelho judaico, impondo a lei mosaica aos cristãos gentios, o que Paulo, um dos primeiros a levar o evangelho aos gentios, não o fez. Questionavam, assim, a autoridade de Paulo e o evangelho que ele havia pregado, motivo pelo qual Paulo inicia sua epístola dizendo que os cristãos gálatas haviam, muito depressa, passado “a outro evangelho” (Gl 01.06). Ora, o próprio Paulo era um vigoroso defensor das Escrituras Sagradas. Como, pois, os gentios recém-convertidos ao cristianismo poderiam se defender daqueles que se apresentavam com elas em mãos para lhes provar o fundamento de suas imposições? Pode-se perceber, inclusive, no decorrer da epístola, que os judeus convertidos questionavam a genuinidade do apostolado de Paulo, por não ser um dos 12 separados pelo próprio Jesus. Paulo cita, ainda, que, em Antioquia, repreendeu o apóstolo Pedro por também impor aos gentios os costumes judeus que ele mesmo não estava seguindo. Paulo viu, então, a necessidade de escrever aos gálatas para defender o seu próprio ministério apostólico e confortar e conscientizar os gálatas acerca da liberdade adquirida por meio de Jesus. O discurso de Paulo: autodefesa Na epístola de Paulo aos Gálatas, percebe-se que ele era atacado pelos judaizantes infiltrados nas congregações. Deduz-se, pela estrutura, que eram três as principais acusações. Primeiro: Paulo não era um dos 12 apóstolos escolhidos pessoalmente por Cristo e, portanto, não tinha a mesma autoridade. Nos capítulos 1 e 2, Paulo defende veementemente a autoridade de seu ministério outorgada por Cristo e confirmada pelos “tidos como notáveis” (Tiago, Cefas e João, Cf. Gl 2.5-10). Segundo: a mensagem pregada por Paulo diferia da 5

Aqueles que não são judeus. Retirada cirúrgica do prepúcio, praticada por razões higiênicas e/ou religiosas; sinal de inclusão na comunidade judaica, prática instituída na lei mosaica/Pentateuco. 6

201 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


pregada pelos outros apóstolos em Jerusalém, no tocante às práticas da Lei Mosaica. Nos capítulos 3 e 4, Paulo defende a natureza de sua pregação: a salvação por meio da graça redentora e a libertação do jugo da lei por meio de Cristo. E terceiro: a pregação de Paulo deixaria brechas para os cristãos gentios viverem iniquamente. Nos últimos capítulos, 5 e 6, Paulo sustenta a liberdade cristã, e que a salvação é alcançada cumprindo-se a lei de Cristo, e não a lei judaica. Nesta análise, focalizaremos a primeira parte da epístola, a autodefesa da autoridade apostólica de Paulo. Prática Discursiva A epístola aos gálatas foi produzida para ser consumida coletivamente. Ou seja, como dito no ponto 4, a epístola aos gálatas era destinada a toda a comunidade cristã das cidades que compunham a província de Galácia. Seus efeitos extra-discursivos incidiram sobre a conduta pessoal dos seus destinatários, não se restringindo, entretanto, somente a eles. Sua repercussão influenciou toda a igreja gentia primitiva e perdura até a atualidade. Nessa epístola, Paulo não cita de forma direta nenhuma das acusações mencionadas acima, mas o estilo paulino observado nas demais epístolas paulinas, e a relação com alguns eventos citados no livro de Atos permitem pressupor a que acusações Paulo dirigia sua defesa. Esse tipo acontecimento não foi exclusivo da igreja em Galácia. Hoje, o apóstolo Paulo é considerado um dos maiores missionários da história do cristianismo, pela quantidade de igrejas que fundou, e um dos mais influentes da igreja primitiva, bem como da igreja atual pela quantidade de epístolas de sua autoria compondo o cânone bíblico. Mas em sua época, foram constantes as perseguições sofridas por ele, e não apenas por parte do Império Romano ou dos líderes judaicos, mas também por parte dos próprios cristãos, inclusive, e talvez principalmente, os das igrejas fundadas por ele mesmo. Isso se dava por diversos fatores, mas os principais observados na epístola aos Gálatas são: o fato de Paulo não ser um dos 12 apóstolos escolhidos por Jesus, a “inovação” na pregação do evangelho, e o passado de Paulo, que antes de converter-se ao cristianismo era um perseguidor de cristãos. Segundo Fairclough, Um texto coerente é um texto cujas partes constituintes (episódios, frases) são relacionados com um sentido, de forma que o texto como um todo ‘faça sentido’, mesmo que haja relativamente poucos marcadores formais dessas relações de sentido [...] (Fairclough, 2001, p. 113, grifo do autor)

Um texto faz sentido quando alguém vê sentido nele. Portanto, não houve necessidade de Paulo citar nomes, ou citar suas acusações. Paulo pressupõe que os gálatas estavam cientes de todas as acusações contra ele, sendo, portanto, a simples elaboração de sua defesa suficiente para os gálatas compreenderem a que ele estava se referindo. Tanto que Paulo inicia mencionando estar admirado de eles tenham abandonado o evangelho pregado por ele e passado a outro evangelho (VV. 6). E do mesmo modo, hoje não é possível compreender na íntegra o conteúdo dessa epístola sem tratar de todas as questões envolvidas. Um dos principais recursos utilizados por Paulo em sua defesa é o uso da negação: ele nega constantemente a outorga humana de seu ministério e o seu interesse em agradar aos homens. Paulo, apóstolo – não da parte dos homens nem por intermédio de um homem, mas por Jesus Cristo e Deus Pai que o ressuscitou dentre os mortos (VV. 1) É porventura o favor dos homens que agora eu busco, ou o favor de Deus? Ou procuro agradar aos homens? Se eu quisesse ainda agradar aos homens, não seria servo de Cristo (VV. 10)

Algumas características de interdiscursividade também devem ser analisadas: o estilo, o gênero e o discurso. A epístola de Paulo aos Gálatas constitui-se de um estilo formal. Os estilos variam em modo, ou seja, podem ser textos escritos, falados, ou os dois. Verifica-se que o corpus em questão é escrito-para-ser-falado, o que, segundo Stern (2008), é evidenciado pela presença de um “Amém” ao termino do endereçamento da

202 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


carta (VV. 1-5), cujo propósito era instigar uma resposta da congregação no momento em que a carta fosse lida em voz alta, significando a concordância com o conteúdo exposto. Segundo Ribeiro (2010), são três os gêneros do discurso classificados por Aristóteles: o judiciário, que é constituído de defesa ou acusação, e o auditório é colocado na condição de juiz; o laudatório, em que há um misto de louvor e defesa ou censura à conduta de uma determinada pessoa, e o auditório é colocado na condição de apreciador; e o deliberativo, em que o discursante tem a função de aconselhador, e o auditório a função da decisão, votando a favor ou contra. No discurso de Paulo, percebe-se que se sobressai a função laudatória, pelo fato de que Paulo constrói a sua autodefesa perante seus acusadores, como já dito, ao mesmo tempo em que realiza o autolouvor: E por parte dos que eram tidos por notáveis – o que na realidade, se fossem não me interessa; Deus não faz acepção de pessoas – de qualquer forma, os notáveis nada me acrescentaram. Pelo contrário, vendo que a mim fora confiado o evangelho dos incircuncisos como a Pedro o dos circuncisos – pois aquele que operava em Pedro para a missão dos circuncisos operou também em mim em favor dos gentios [...] (2.6-8).

O discurso de Paulo atende às características dos discursos constituintes, conforme Maingueneau, por não aceitar a autoridade de nenhum outro sobre si e classifica-se, ainda, como discurso teológico que, segundo Orlandi (2003), é aquele em que, por meio da estruturação das verdades religiosas, realiza-se a intermediação entre o sagrado e a alma, e o teólogo realiza a mediação entre mundo hebraico e mundo cristão. Compreender as cadeias intertextuais, segundo Fairclough, ajuda na compreensão das estruturas sociais, ou seja, compreender os textos nos quais ou dos quais o corpus ou amostra discursiva é formada/transformada. Aqui é importante lembrar que, na ACD, texto é qualquer produto, escrito ou falado. Como já dissemos anteriormente, um dos motivos que gerou em Paulo a necessidade de escrever aos Gálatas foram as pressões sofridas por eles, por parte dos cristãos judaizantes, e as críticas ao ministério apostólico e ao evangelho pregado por Paulo, especialmente por ele pregar a não necessidade do legalismo judaico para a obtenção da salvação. Por legalismo, entende-se que seja: [...] o falso princípio de que Deus concede aceitação às pessoas, considerando-as justas e dinas de estarem em sua presença, com base na obediência delas a um conjunto de regras, e isso à parte de colocarem sua confiança em Deus [...] (Stern, 2008, p. 562).

Essa questão levantada por Paulo causou uma grande polêmica, que não se restringiu à igreja em Galácia, mas que envolveu toda igreja primitiva, levando os apóstolos e demais lideranças cristãs daquele período a se reunirem em Jerusalém (descrito em Atos 15) para discutir a respeito da imposição ou não dos costumes israelitas aos cristãos gentios. Esse evento ficou conhecido como Concílio de Jerusalém. Dimensão Textual As identidades sociais dos participantes são reveladas por meio do Ethos. Para os gregos, o colocarse diante de um auditório implica necessariamente a construção de uma imagem de si pelos ouvintes, que é gerada pelas escolhas discursivas do orador. Essa construção é denominada Ethos. O orador precisa se mostrar crível e digno de confiança por parte do auditório, devendo elaborar seu discurso de modo a convencer o público das teses que defende. Paulo busca, na epístola, construir o ethos de sua autoridade apostólica outorgada e designada pelo próprio Deus, a fim de cumprir propósitos específicos. Com efeito, eu vos faço saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, pois eu não o recebi nem aprendi de algum homem, mas por revelação de Jesus Cristo. (1. 11-12).

203 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Quando, porém, aquele me separou desde o seio materno e me chamou por sua graça, houve por bem revelar em mim seu Filho, para que eu evangelizasse entre os gentios, não consultei carne nem sangue. (1. 15-16). Pelo contrário, [Pedro, Tiago e João] vendo que a mim fora confiado o evangelho dos incircuncisos como a Pedro o dos circuncisos – pois aquele que operava em Pedro para a missão dos circuncisos operou também em mim em favor dos gentios [...] (2.6-8).

Ribeiro (2010) apresenta três qualidades citadas por Aristóteles, que inspiram a confiança. A primeira qualidade é a phrónesis, que consiste na manifestação de forma racional da honestidade do orador. A segunda qualidade é a areté, em que o orador busca manifestar a sua humildade e virtudes. E a última qualidade é a eúnoia, que se refere à afetividade do orador em ralação ao auditório. Paulo utiliza-se da phrónesis para defender o seu ministério dos ataques sofridos pelos judaizantes em Galácia. Para demonstrar a veracidade de sua pregação, Paulo indica o seu desinteresse de agradar aos homens e assevera, diante de Deus, a fidedignidade de suas asserções: É porventura o favor dos homens que agora eu busco, ou o favor de Deus? Ou procuro agradar aos homens? Se eu quisesse ainda agradar aos homens, não seria servo de Cristo (1.10) Isto vos escrevo e vos asseguro diante de Deus que não minto. (1.20)

Ademais, Paulo buscar construir um ethos negativo de seus acusadores, bem dos cristãos judaizantes, chamando-os de anátemas e hipócritas: Entretanto, se alguém – ainda que nós mesmos ou um anjo do céu - vos anunciar um evangelho diferente do que vos anunciamos, seja anátema 7. (1.8) Os outros judeus começaram também a fingir junto com ele, a tal ponto que até Barnabé se deixou levar pela sua hipocrisia. (2.13)

É interessante notar, a partir disso, que Paulo não se utiliza de recursos de polidez. Segundo Fiorin (2015), as regras de polidez vinculam-se à teoria das faces, de Brown e Levinson. Todo sujeito possui uma face positiva, que é a boa imagem que tem de si mesmo e buscar demonstrar para ser estimado pelo outro, e uma face negativa, que é a necessidade de proteger o seu território. No convívio social, os interlocutores buscam manter a face do outro para não prejudicar a sua, pois há atos que ameaçam a face do interlocutor. Por exemplo, conselhos, ordens, ameaças, ameaçam a face negativa do outro, por invadir seu território. Críticas, reprimendas, etc., ameaçam a face positiva do outro por tentar destruir a sua imagem. O objetivo da polidez linguística é mitigar os efeitos ameaçadores dos atos de fala, por isso, normalmente, se usam atos de fala indiretos. Há uma polidez positiva, na qual se objetiva reforçar atos valorizadores da face, e uma polidez negativa, em que se busca mitigar os atos ameaçadores. Paulo, contudo, não faz uso de nenhuma das duas. Não se utiliza da polidez positiva, e constata-se que a epístola aos gálatas apresenta uma característica peculiar frente às demais: é a única epístola que Paulo inicia com uma admoestação (1.7-10), enquanto todas as outras são iniciadas com ações de graça e/ou exaltação das qualidades da igreja destinatária (Cf. Rm 1.8; I Co 1.4; II Co 1.3; Fl 1.3; Cl 1.3; I Ts 1.2; II Ts 1.4; Fm 4). Muito menos se utiliza de polidez negativa, visto que faz diretamente duras críticas - verificável em passagens acima citadas responsabilizando seus acusadores de perverterem o verdadeiro evangelho. Prática Social Este é um dos pontos centrais na teoria de Fairclough, tendo em vista que, para ele os discursos são investidos ideologicamente, e esses investimentos moldam a prática discursiva que, por sua vez, dota de

7

Anátema: Objeto de maldição.

204 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


sentindo a construção textual, aspectos que, se compreendidos, possibilitam a mudança discursiva, com a transcendência das ideologias. Conforme já mencionado, as ideologias são significações do mundo que, quando assumem a posição de senso comum, agem como mantenedores das relações de poder. As diversas ideologias presentes nas práticas diárias concebem os complexos ideológicos de que fala Gramsci, e são os espaços de realização das lutas hegemônicas, que, segundo Fairclough, se realizam em instituições particulares (família, escola, igreja, etc.). DeSouza (2015) também trata do conceito de ideologia, e apresenta uma proposta de conceito multiestratal, em que se apresentam diversas definições, dentre as quais, cabe se destacar a seguinte: “por causa de sua natureza cognitiva e social, a ideologia é um locus natural de produção, desenvolvimento e reprodução de crenças e valores de um determinado grupo social” (DeSouza, 2015, p. 426). No grupo social em questão, a igreja cristã primitiva, há uma ideologia legitimada como senso comum: a da necessidade de cumprir os costumes e liturgias judaicas para obter a salvação, principalmente em relação à circuncisão, requisito que, tratado como legalista (conceito abordado no item 5.1), estaria acima da necessidade de se cumprir leis morais - aqui, percebe-se a materialização do uso da linguagem como instrumento de dominação e mantenedora de uma relação de poder, visto que os judaizantes chegavam aos gentios com o Torá em mãos como prova, deixando os gálatas sem argumentos, e essas imposições aos cristãos gentios eram feitas por meio da linguagem, o que faz com que Paulo os alerte na epístola a não dar ouvidos a ninguém que lhes pregasse um evangelho diferente. Importante ressaltar que no início do cristianismo, os judeus, inclusive os próprios apóstolos, estranharam que se pregasse o evangelho aos gentios (como se pode perceber por uma experiência vivida pelo apóstolo Pedro, descrita no livro de Atos, caps. 10 e 11). Vê-se, então, que há um conflito de duas ideologias, e Paulo, o produtor do discurso analisado, se coloca como o sujeito em busca de transcender a ideologia predominante, colocando em evidência a luta hegemônica existente por meio do conflito entre as duas posições. Como mencionado, Paulo estava sofrendo duras críticas por parte dos cristãos judaizantes, por pregar um evangelho fácil aos gentios, e, por isto, sua legitimidade apostólica estava sendo questionada, especialmente por não ser um dos 12 comissionados pelo próprio Jesus. Por estes motivos, nos capítulos analisados, ele sustenta sua própria autoridade apostólica, outorgada por Deus, e confirmada pelos apóstolos que, dentre os 12, eram considerados colunas do evangelho (Gl 2.9), para, nos capítulos posteriores, defender a liberdade (do jugo judaico) alcançada por meio de Cristo, através do qual vem a justificação por meio da fé, e não por meio de obras. Este caminho traçado por Paulo seria um recurso necessário para que a posição defendida por ele pudesse ser aceita, pois isto não aconteceria se, de antemão, não houvesse a construção de um “eu” dotado da autoridade necessária para tal. Cabe ressaltar que, para solidificar ainda mais as bases de seu parecer, em sua essencial construção de seu ethos, Paulo demonstra o quanto ele mesmo era zeloso pelas tradições judaicas, das quais era fiel defensor: 13

Ouvistes certamente da minha conduta outrora no judaísmo, de como perseguia sobremaneira e devastava a Igreja de Deus 14e como progredia no judaísmo mais do que muitos outros compatriotas da minha idade, distinguindo-me no zelo pelas tradições paternas.

Paulo foi ousado em sua empreitada, por confrontar uma ideologia há muito estabelecida e defendida, mas sua ação – que tem a linguagem como ferramenta – gerou grandes mudanças no cristianismo primitivo – algumas já citadas –, e muitas dos questionamentos desencadeadas com esta ação geram discussões e posições conflituosas dentro do cristianismo até os dias de hoje. Considerações finais A Análise Crítica do Discurso, ao extrapolar os limites da análise estrutural, cumpre com seu objetivo de verificar o papel social do uso da linguagem e a importância do contexto para compreensão dos discursos. Nesta breve análise, foi possível perceber como a influência de uma pessoa permitiu-lhe, por meio de seu

205 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


discurso, levantar uma discussão que resultou em mudanças de costumes já estabelecidos. E os efeitos dessa discussão perduram até a atualidade. Como já dito, o presente trabalho emergiu de pesquisa em andamento, e vários aspectos do modelo de análise de Fairclough não puderam ser explorados aqui, em virtude do espaço. Contudo, este estudo ainda pode ser ampliado em muitas direções, e espera-se que possa servir de fonte para basilar outras pesquisas de natureza semelhante. Referências BÍBLIA DE JERUSALÉM. Edição em língua portuguesa. São Paulo: Paulus, 2002. DESOUZA, Vilmar Ferreira. O lugar do conceito de ideologia na Análise do Discurso Político (ADP): uma proposta à luz da Análise Crítica do Discurso (ACD). Revista Letras (UFSM) online, v. 25, n. 50, p. 421-432, jan/jun, 2015. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. FIORIN, José Luiz. Introdução à Linguística: I – Objetos teóricos. São Paulo, Contexto, 2015. MAINGUENEAU, Dominique. Analisando Discursos Constituintes. Revista do GELNE, vol. 2, no. 2. Universidade Federal do Ceará, 2000. PEDROSA, Cleide Emília Faye. Análise Crítica do Discurso: Uma proposta para a análise crítica da linguagem. UFS. In: Congresso Nacional de Linguística e Filologia, IX, 2005, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixcnlf/3/04.htm. Acesso em: 21/04/2017. RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma Linguística Crítica. São Paulo: Parábolsa, 2003. RIBEIRO, Joelma Batista dos Santos. A apologia de Paulo na Segunda Carta aos Coríntios: uma análise retórica. 2010. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/14622. Acesso em: 21/04/2017. STERN, David H. Comentário Judáico do Novo Testamento. Belo Horizonte: Atos, 2008. WODAK, Ruth. De que trata a ACD – Um resumo de sua história, conceitos importantes e seus desenvolvimentos. In: Linguagem em (Dis)curso. Santa Catarina: Tubarão, 2004, p. 223-243.

206 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A COBERTURA DE MANIFESTAÇÕES: UMA ANÁLISE DO JORNAL NACIONAL1 Weslley Oliveira Pinto2 João Victor dos Santos Silva3 Milena Andrade da Rocha4 Resumo Este artigo tem como objetivo analisar a representação e o enquadramento dado às manifestações contra a PEC 55 e Contra a Corrupção no Brasil. Ambas exibidas em edições do telejornal Jornal Nacional da rede Globo. Palavras-chaves: manifestações; enquadramento; jornal nacional;

Introdução Jornal Nacional estreou há 47 atras anos, entrando no ar logo após ser decretado o Ato Institucional n.5 (AI-5) e hoje se caracteriza como o mais tradicional do país. Com apresentação de Cid Moreira e Hilton Gomes, a primeira edição foi encerrada com as seguintes palavras: “primeiro jornal realmente nacional da tevê brasileira”, surgiu sob um contexto de Ditadura Militar. A televisão ainda ocupa um lugar central nos lares brasileiros, chega onde a internet é precária ou inexistente e divide com o rádio as pautas do cotidiano das pessoas que por meio dos quais se informam. A relação entre mídia e política segue uma linha tênue estreitando laços quando necessário. Falar do enquadramento, de silenciamento, de quanto tempo é dedicado a algumas pautas é buscar entender a promiscuidade existente nessa relação.

O

Metodologia A análise foi realizada tendo como base o contexto do país nas respectivas semanas (protestos contra a PEC 55 no dia 29 de novembro de 2016 e outro protesto contra corrupção no dia 05 de dezembro de 2016) nas quais existem dois grupos com ideologias políticas diferentes sendo retratadas de maneiras tambèm diferentes, tanto pela linguagem (visual e verbal) como pelo tempo dado a cada dia de protesto. Entretanto, por se tratar de um levantamento analítico inicial, realizou-se algumas adequações até chegarmos na análise do conteúdo contido nas edições mencionadas. Adotou-se a metodologia inspirada no modelo desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa em Jornalismo Online (GJOL) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que consiste em “um modelo metodológico híbrido, que emprega procedimentos de pesquisa qualitativa e quantitativa de forma complementar dentro de um processo contínuo de investigação dos conceitos do jornalismo produzido no ciberespaço” (MACHADO; PALACIOS, 2007, p.200).

1

Trabalho apresentado no GT Discurso e Ideologia no II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduando em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), fruto da disciplina, Comunicação Comparada. Ministrada Pela Professora Eulália Vasconcelos, Mestre em Desenvolvimento Internacional, Nagoya Univerity. weslley.oliveira92@hotmail.com 3 Graduando em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). mandaparaosantos@gmail.com 4 Graduando em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). mandapramilena@gmail.com 207 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Fundamentação Teórica Com a publicação de um artigo seminal de McCombs e Shaw em 1972, os dois teóricos lançaram pesquisas na tentativa de confirmar o poder de influência da mídia frente à projeção dos acontecimentos no seu público consumidor. Por meio de um estudo empírico realizado em 1968 em Chapell Hill, EUA, McCombs e Shaw escolheram 100 eleitores e perguntaram sobre qual candidato escolher para eleições nacionais. A pesquisa tinha como objetivo constatar a relação entre opinião pública e a opinião midiática. O resultado foi que ‘além de influenciar os eleitores indecisos, a mídia havia afetado também os candidatos, que incluíram em suas agendas temas pautados pela imprensa’ (GUTMANN, 2008:15). Com isso, “além de estabelecer esta agenda para o público, os meios de comunicação também teriam o poder de nos dizer como devemos pensar os temas existentes da mídia’” (COLLING, 2002: 114). O que é explicado através do framing. Utilizado pela primeira vez em 1974 por Erving Goffman ‘para caracterizar como os indivíduos compreendem e respondem às situações sociais a partir do modo com que organizam a vida cotidiana’ (GUTMANN, 2008:8). Sendo assim, segundo Lima (2001), significativos avanços têm sido registrados na pesquisa sobre comunicação e jornalismo. Existe uma tendência assentada em três linhas: “a construção da notícia (newsmaking), o poder de definição da pauta pública (agenda setting) e o enquadramento da notícia (framing)”. O autor afirma que os estudos sobre o newsmaking têm mostrado a “distorção involuntária” independente da produção de notícias. Já o agenda-setting, vem trabalhando na “definição dos mapas cognitivos que orientam a tomada de decisões cotidianas do cidadão comum e na determinação das áreas de atuação do poder público”. Para Leal (2007), o conceito de framming oferece uma opção a mais para analisar a mídia brasileira, pois trata de como a mensagem é organizada pelo veículo, ressaltando preferências de um determinado enquadramento em oposição a outros. Dentro do recente contexto de crise política-social em que o Brasil está inserido após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o Jornal Nacional, o telejornal de maior audiência, é responsável pela veiculação e divulgação de informações que afetam diretamente esse processo dentro de um contexto mundial. A teoria do agendamento (Agenda Setting) junto a teoria do enquadramento (news framming) definem como tal empresa escolhe ou não o que deve ser veiculado e como será veiculado, de maneira a defender interesses dos seus proprietários, que, muitas vezes, estão ligados a ideologias político partidárias. As pessoas apenas enxergam o mundo através de uma moldura de uma janela. Se a moldura da janela é muito pequena, as pessoas já enxergarão uma pequena parte do mundo. Se a janela na parede é voltada para o oeste, as pessoas apenas enxergarão o oeste. Em outras palavras, a mídia pode mostrar apenas uma pequena parte do mundo a partir de um particular ponto de vista. (PARK, 2003, p.145, tradução dos autores)

Segundo o sociólogo Goffman, para entender processo do framing da audiência é necessário ‘invocar o esquema de interpretação’ que permite aos indivíduos ‘localizar, perceber, identificar e etiquetar’ as informações ao seu redor’ (COLLING, 2001:96). Por outro lado, o framing da mídia é entendido a partir dos temas agendados e como os mesmos foram recortados na construção de uma realidade. Sendo assim, a organização de determinados termos pode ser chamada também de enquadramento, significando que o jornalista opta enquadrar um fato de uma determinada forma e não de outra, enfocando assim uma parte da realidade em detrimento de outra. Scheufele (1999) afirma que “a mídia constrói a realidade social através do enquadramento de imagens da realidade”. Esse enquadramento de construções imagéticas é encontrado principalmente no jornalismo que busca a reconstrução dos fatos em notícias. Segundo Lima (2001), significativos avanços têm sido registrados na pesquisa sobre comunicação e jornalismo. O autor afirma que os estudos sobre o newsmaking têm revelado que a “distorção involuntária” é inerente à produção de notícias. Já o agenda-setting vem trabalhando na “definição dos mapas cognitivos que orientam a tomada de decisões cotidianas do cidadão comum e na determinação das áreas de atuação do poder público”.

208 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Detentora de uma influência massiva na população, a televisão brasileira dispõe de uma estrutura que a mantém como primordial no hábito das famílias, e que sustenta todo um sistema econômico-político que se apropria. Esse modelo é o que teóricos como Bolaño (2000) apresentam na tradução do padrão tecno-estético, representado na mudança do padrão televisivo principalmente a partir dos anos 70 do século XX, com a adaptação de elementos estéticos e ideológicos. Todo um formato econômico possibilita que emissoras possam retratar de determinada forma as expressões culturais e a forma que este conteúdo chega ao público. O exemplo de percepção da hegemonia e influência da televisão brasileira na sociedade é a Rede Globo, que detém um grande capital, desde os investimentos da época do regime militar em uma “integração nacional”, que visava incentivar o nacionalismo e viabilizou investimentos para o aparato técnico de formar a primeira emissora em rede do Brasil. Partindo da Economia Política da Comunicação (EPC), percebe-se que a estrutura econômica e política se apropria da produção cultural televisiva. Valério Brittos (2011) propõe o que denomina de “padrão tecnoestético não hegemônico digital” em que se é dada uma condição de produção para que comunidades, grupos com forte produção cultural, percebido em diversos locais do Brasil, para que possam fazer a sua produção audiovisual resvalar na Internet. A mídia, como espaço público midiático, se perde ao render-se às lógicas privadas, no seu processo de pautar produções culturais periféricas. “Dessa forma, concebe-se a mídia como espaço público mediático, que, na formação social atual, é precário, marcado por lógicas privadas.” (BRITTOS, p. 112) Martins aponta que: Assim, os indivíduos assistem às mensagens jornalísticas e assimilam conhecimento, sentindo-se parte. Pelos monitores muitos acompanham o desdobramento dos fatos, muitas vezes em tempo real, se informam, formam opinião, enfim adquirem conhecimento. Vemos o mundo de dentro de casa: a televisão pode em tese nos conectar a tudo o que acontece na nossa esquina ou do outro lado do planeta (Martins, 2008: 2).

Análise da Cobertura das “manifestações” Nesta secção, vamos realizar uma análise dos discursos na abordagem das manifestações brasileiras em duas edições do Jornal Nacional da Rede Globo, a primeira do dia 29 de novembro de 2016 e a segunda do dia 05 de dezembro de 2016. Ambas edições foram coletadas por meio do site do telejornal disponível na internet. As diferentes abordagens foram analisadas considerando o tempo dado a cada uma das manifestações dentro de cada edição; como foi dado o espaço, se foi em forma de nota coberta, nota pé, reportagem, reportagem especial, etc; as fontes utilizadas na construção da notícia; e o discurso empregado na representação dos manifestantes e na qualificação de seus atos. Na edição do Jornal Nacional (JN), do dia 29 de novembro de 2016, o telejornal teve duração de 1:25:54 (Uma hora, vinte e cinco minutos e cinquenta e quatro segundos). Nesta edição, a cobertura da manifestação teve um espaço de 00:00:42 (Quarenta e dois segundos). As fontes utilizadas foram uma estimativa da polícia militar, segundo eles o protesto continha “10 mil manifestantes”, e uma nota sobre as manifestações dada pelo Presidente da República, até em então Michel Temer. O espaço é representado por uma nota coberta que trata da manifestação contra a PEC 55/ 241 ou, como chamam, “teto dos gastos”. A nota descreve as ações dos manifestantes, como “virar” um carro e “botar” fogo em um carro. Por fim, encaminha para a ilegalidade dos atos com a ressalva do presidente em nota de repúdio aos atos de “vandalismo”. Entre as palavras usadas para identificar e qualificar quem participava da ação estão: “manifestantes”, “encapuzados”, “grupo”, “pessoas”. Nas imagens, foram apresentados vídeos de manifestantes virando um carro, ateando fogo no carro, em confronto com a polícia e imagens de câmera de segurança e de celular dentro do Ministério de Educação que foi invadido e depredado. A cobertura retrata

209 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


apenas os atos acontecidos em Brasília. Os vídeos ressaltam o que a apresentadora enuncia como “quebradeira”. O Presidente do Senado, Renan Calheiros, do PMDB, disse que vai votar ainda nesta terça-feira (29) a proposta que estabelece um teto para os gastos públicos pelos próximos 20 anos. Houve protestos na Esplanada dos Ministérios contra o projeto. Eram 10 mil manifestantes, segundo a Polícia Militar. Um carro de reportagem da TV Record foi virado e manifestantes, alguns encapuzados, invadiram o prédio do Ministério da Educação, provocando quebradeira. Um outro grupo chegou a botar fogo em um carro estacionado no local. Oito pessoas foram presas. Em nota, o presidente Michel Temer disse que repudia o vandalismo, a destruição e a violência de parte dos manifestantes. (Edição do Jornal Nacional da Rede Globo, dia 29 de novembro de 2016)

Atenta-se para um fato no telejornal do dia 29 de novembro de 2016. O acidente com a aeronave que transportava o time Chapecoense teve uma ampla abordagem. A edição fez um amplo acompanhamento que continha desde a explicação gráfica de como aconteceu o acidente, a reação dos países e times do Brasil até homenagem da equipe de reportagem aos jornalista que morreram no acidente. Analisar o espaço dado ao acidente em detrimento ao das manifestações pode gerar conteúdo para outras possíveis análises e, portanto, outros artigos. Cabe aqui, apenas analisar a proporção de tempo das notícias para podermos considerar o espaço da cobertura das manifestações na edição desse dia no Jornal Nacional. Na edição do dia 05 de dezembro de 2016, o telejornal teve duração de 00:53:07 (Cinquenta e três minutos e sete segundos). Nesta edição, a cobertura da manifestação teve um espaço de 00:03:20 (Três minutos e vinte segundos). As fontes utilizadas foram os organizadores do ato em São Paulo que divulgou a quantidade de 200000 manifestantes e Polícia Militar que informou 15000 participantes, notas da assessoria de Renan Calheiros e do Presidente da Câmara do Deputados, Rodrigo Maia; sonora do Deputado Rubens Bueno (PPS-PR); sonora da Presidente do Tribunal Regional Cármen Lúcia; sonora do Senador Ronaldo Caiado (DEMGO), posicionamento do Relator Senador Roberto Requião (PMDB-PR), juiz Sérgio Moro e uma declaração assinada pelo Procurador Geral da República Rodrigo Janot e outros procuradores. A reportagem trata saída de Renan Calheiros do cargo de Presidência do Senado logo após aos protestos contra a corrupção e apoio a Operação Lava Jato. Foram ressaltadas em forma gráfica, cartelas com os posicionamento de Renan Calheiros, “as manifestações são legítimas e, dentro da ordem, devem ser respeitadas”; de Rodrigo Maia, “manifestações em caráter pacífico e ordeiro, servem para oxigenar nossa jovem democracia e fortalecem o compromisso do Poder Legislativo com o debate democrático e transparente de ideias” e a declaração dos procuradores, “confiam que o Parlamento encontrará, com equilíbrio e ponderação, alternativas que correspondam aos legítimos anseios da sociedade”. Entre as palavras usadas para identificar e qualificar quem participava da ação estão: “milhares de brasileiros”, “manifestantes”, “pessoas”, “organizadores”, “sociedade” . Nas imagens, foram apresentados vídeos de manifestantes segurando faixas com palavras contra a corrupção e em apoio a Operação Lava Jato em São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Brasília. Os vídeos ressaltam os atos dos manifestantes como exercício de cidadania e as sonoras explicam o caráter legítimo das manifestações e outras, que representam algumas instituições públicas, procuram explicar o motivo do protesto. Tabela comparativa com os elementos de análise Edição

Tempo

29 de novembro de 2016, 00:00:42 1:25:54 05 de dezembro de 2016,

00:03:20

Palavras utilizadas para identificar “manifestantes”, “encapuzados”, “grupo”, “pessoas”. “milhares de

210 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017

Fontes utilizadas Estimativa Polícia Militar; e uma nota da Rapública: Organizadores do ato em São


00:53:07

brasileiros”, “manifestantes”, “pessoas”, “organizadores”, “sociedade” .

Paulo; Polícia Militar, notas da assessoria de Renan Calheiros e do Presidente da Câmara do Deputados, Rodrigo Maia; sonora do Deputado Rubens Bueno (PPS-PR); sonora da Presidente do Tribunal Regional Cármen Lúcia; sonora do Senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), posicionamento do Relator Senador Roberto Requião (PMDB-PR), juiz Sérgio Moro e uma declaração assinada pelo Procurador Geral da República Rodrigo Janot e outros procuradores.

Considerações Finais A revelia da inocência de uma rotina de produção de notícias pautada pela imparcialidade, há muito tempo já desmentida pelas Teorias de Comunicação, desvenda-se em algo questionável para Bourdieu (1997). “A televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico. Como observamos na cobertura das manifestações, enquanto uma possui cobertura nacional a outra utilizou a exploração do caso Chapecoense como escape para a não cobertura manifestações estudantis. Embora as duas manifestações reivindiquem a impunidade nas ações de corrupção no Brasil, apenas a cobertura de uma das manifestações busca explorar o motivo para o protesto, o que seria a busca do “Porquê”. Por que o mesmo tema é abordado de maneiras distintas? Quem define o enquadramento dado ao conteúdo exibido? Até que ponto a empresa influencia na construção da notícia? O contexto influencia (no caso do dia 29 devido a comoção nacional com a chapecoense)? Bourdieu (1970) costumeiramente visita o aspecto da dominação, principalmente na construção de um discurso. A televisão representa, desta forma, um meio de manifestação do discurso de dominação: “Ora o tempo é algo extremamente raro na televisão. E se minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis, é que essas coisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida em que ocultam coisas preciosas” (BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. 1997)

Referências BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula Inaugural no Collegè de France, pronunciada em 2 de novembro de 1970 .10.ed. São Paulo Edições Loyola, 2009a. FOUCAULT, Michel. A Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. ENTMAN, Robert M. 'Framing: Toward Clarification of Fractured Paradigm'. Journal of Communication, 43 (4), p. 51- 58, 1993. BOLAÑO, César Ricardo Siqueira. Mercado brasileiro de televisão. Sergipe: Gian Brasil, 2016.

211 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


PARK, J. Contrasts in the coverage of Korea and Japan by US television networks: a frame analysis. International Journal for Communication Studies, Londres; Thousand Oaks; Nova Deli, v. 65, n. 2, p. 144-164, 2003. SCHEUFELE, D.A. Framing as a theory of media effects. Journal of Communication, New York, v. 49, n. 1, p. 103-122, mar. 1999. LIMA, V. A. Mídia: teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. Rede Globo. Jornal Nacional. Edição Dia 29 de novembro de 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornalnacional/edicoes/2016/11/29.html> Acesso em 14 jan. 2016. Rede Globo. Jornal Nacional Edição Dia 05 de dezembro de 2016. Disponível em: < http://g1.globo.com/jornalnacional/edicoes/2016/12/05.html>

212 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O DISCURSO DE DENÚNCIA SOCIAL NAS OBRAS: O QUINZE E EM OS SERTÕES1 Antonio Wadan Gomes Cavalcante2 Fernanda Rodrigues Nascimento3 RESUMO O presente artigo faz uma abordagem acerca do discurso de denúncia social dos retirantes e vítimas de desastres muitas vezes forçados pelo poder da ação humana ou da própria natureza. Faremos uma análise de cunho reflexiva das obras: O Quinze de Rachel de Queiroz e Os Sertões de Euclides da Cunha, para tanto, buscaremos perceber em trechos das obras elementos que comprovem tal denúncia . Mediante leituras e fundamentações de cada obra, estabeleceremos um elo comunicativo entre ambas para tentarmos entender os traços de regionalismo presente e que seja um suporte crítico e reflexivo para novas denúncias sociais, atentaremos ainda para as formas de políticas sociais que se engajam numa tentativa de solução para esse problema. Assim, acometer as várias situações de desleixo do poder público com os vitimados das ocorrências e situações que os colocam em delicados momentos durante o enredo. No entanto, espera-se que esse estudo seja norteador de uma nova perspectiva construtiva sobre a ótica de um olhar crítico e reflexivo no que tange os problemas sociais na sociedade brasileira. Palavras-chave:. denúncia social; sociedade; contexto histórico.

Introdução

E

sta pesquisa foi organizada com o objetivo de investigar as denuncias sociais apresentadas em trechos de dois livros da literatura regional, a saber: Os Sertões de Euclides da Cunha e O Quinze de Rachel de Queiroz. Além disso, mostraremos em passagens dos livros o discurso que evidencia esta denúncia social, ainda, as formas que elas são abordadas pelos autores e um tom de comoção, estratégia usada por eles em alguns trechos para enfatizar de forma ainda mais verídica o cenário daquela época. A escolha das obras se deu por vários fatores: a realidade passada abordada por elas, as críticas disfarçadas, uma forma de chamar atenção das políticas públicas para as deficiências sociais da sociedade, a evidencia social que elas abordam um fato vivenciado ou que muito se ouviu falar, a literatura como veículo de denúncia, em fim, um leque de abordagens que juntos tematizam as obras e revelam a precarização dos benefícios governamentais daquela época. A partir de tais fatores fundamentais e basilares para a construção desta pesquisa, perceberemos as dimensões que a literatura como instrumento de denúncia tomou nos campos de desolação, nas guerras, nos sertões e principalmente a lapidação que os autores dão na comunicação, na informação escrita de tais mazelas sociais, fazendo novamente um apelo aos governantes, sobre as mínimas condições de sobrevivência que são ofertadas na terra natural das pessoas. Outro ponto que merece um olhar abrangente é o espaço geográfico que se entrelaçam essas críticas e reivindicações, a forma como elas são acometidas, a maneira como os autores trabalham essa crítica visando uma solução para as vítimas. A própria mutilação da vida e os autores do próprio sofrimento são estampados durante migrações, guerras e sofrimentos desencadeados num só destino: a morte ou o sofrimento prolongado. As orientações ríspidas entre as forças da lei e aqueles que devem ser por elas tolhidos não é fato novo. A pena de execução, tanto cruel e desnecessária, a mutilação, a tortura, não são fatos novos. Partem de 1

Trabalho apresentado no GT DISCURSO E IDEOLOGIA do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduando em letras do INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO CIENCIA E TECNOLOGIA DO ESTADO DO CEARÁ – CAMPUS CRATEÚS. Endereço eletrônico. wadancavalcante@bol.com.br 3 Graduanda em letras do INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO CIENCIA E TECNOLOGIA DO ESTADO DO CEARÁ – CAMPUS CRATEÚS. Endereço eletrônico. nandananscimento@gmail.com 213 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


vários pontos. No entanto, tornam-se mais apavorantes quando seus atores se organizam, têm uma hierarquia, uma tática e, até mesmo, um linguajar próprio como é o caso da obra de Rachel de Queiroz que não buscou uma linguagem estilística, formal da literatura, apenas trilhou, escreveu de forma clara e concisa tentando marcar em uma linguagem acessível, o sofrimento dos nordestinos com a seca. As chamadas forças da lei, sabidamente, agem com mais rigor sobre os desvalidos, aqueles que deveriam ter o apoio do poder público são, por esse mesmo poder, tratadas com mais rigor, seus delitos são imperdoáveis. O poder coercitivo, por vezes, extrapola em suas funções, na esperança de que a história os fatos não chegaram a quem precisa ouvi-los e julgá-los, consequentemente, as pessoas pobres continuam a penarem numa estrada seca sem esperança. Para tanto, podemos visualizar como se deu a prestação de serviços aos que viviam sobre jurisdição dos olhos públicos, muitas vezes, ou todas, acometidas devido à ausência de ações governamentais para amenizar ou erradicar a fome, a miséria, o sofrimento e a morte dessa população marginalizada. A literatura como veículo de reivindicação social A literatura como um instrumento de protestos, vem sendo usada de longas datas, desde o século XVIII quando ocorreu à completa passagem do feudalismo para o capitalismo, houve a necessidade de renovação social, e esta renovação impactou diretamente a sociedade, aos que detinham o poder e aos que eram vítimas dele, até datas recentes, quando escritores se esforçam numa tentativa de escrever o cenário desolador da seca e da miséria. Partiremos agora dos princípios trabalhistas, como era visto a mão de obra dos desvalidos nas chamadas frentes trabalhistas. A partir dessa realidade, trabalhadores perceberam que estavam sendo vítimas de alienação do serviço, e sua capacidade de criação reduziu numericamente, só então perceberam que trabalhavam muito e recebiam pouco. Desde então, é que começam a surgir os primeiros movimentos sociais, que desencadeou na formação de sindicatos de lutas e associações que levantavam a bandeira a serviço dos operários e dos que viviam sob dominação. Diante do exposto, podemos perceber que o capitalismo foi o estopim para criação das lutas de classes, a criação de meios e artifícios para desviarem-se dessa dominação que os acorrentaria em sua produção mecanizada e barata, e a literatura como subsídio principal para alavancar e informar sobre tais acontecimentos. Lima Barreto julgava ser papel de escritor desvelar os problemas da sociedade em que vive. A literatura devia ter alguns requisitos indispensáveis. Antes de qualquer coisa, ser sincera, isto é, transmitir diretamente o sentimento e as ideias do escritor, da maneira mais clara e simples possível. Devia também dar destaque aos problemas humanos em geral e aos sociais, visando os que são fermento de drama, desajustamento, incompreensão. Isto, porque no seu modo de entender ela tem a missão de contribuir para libertar o homem e melhorar a sua convivência com o meio, para assim, não torná-lo um trabalhador mecanizado e nem reprimido. Conclui-se que, os ideais sociais de Lima Barreto sempre estiveram em força com a sociedade, mostrando-se comprometido com os problemas sociais retratando sempre de forma ousada e crítica. Euclides da Cunha também é um retrato fiel desse comprometimento com o igualitarismo, quando em suas coberturas de fatos para os jornais tinha uma imensa preocupação em transmitir a informação de acordo com o fato. Para tanto, o escritor teve fortes influências do trabalho, como a famosa Guerra de Canudos, um de seus trabalhos que mais se destacou, escrevendo uma obra a respeito do acontecido. Mas será que o meio pode influenciar a obra? Para Antônio Cândido (2006) apenas duas repostas são possíveis, em que a primeira é estudar se é possível a arte se tornar expressão da sociedade e a segunda em que medida isto é social, e se está realmente a serviço da sociedade. Parece-nos que a primeira resposta é mais plausível para Euclides da Cunha, tendo Os Sertões esse cunho informativo e que a obra em si, é um espelho tal e qual a imagem. O que é reivindicação social? Reivindicação social, é o ato pelo qual a população assegurada a um dispositivo legal constitucional, garante o seu direito de manifestar-se de acordo com os seus anseios e necessidades coletivas e ou 214 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


particulares. É também ao descontentamento da sociedade em que está inserida, uma forma de contraporemse as ordens imposta pelo poder dominante vigente. A atual conjuntura política vem sendo bombardeada de críticas e alvo de inúmeros atos populares, em sua maioria compostos por jovens, trabalhadores e pessoas que lutam por melhores sistemas públicos democráticos. A Revolução Industrial foi palco de luta em que ocorreu a transição para novos processos de manufatura no período entre 1760 a algum momento entre 1820 e 1840, em que trabalhadores contrariados as ideias patroneias, perceberam que a força do trabalho braçal estava sendo substituída por máquinas e que os colocariam numa situação de inferioridade produtiva, então, houve a necessidade de luta pela proteção do próprio trabalho. O século XVIII foi marcado por profundas guerras em que ele ficou conhecido como o século das revoluções, não apenas pelo o fato do acontecimento da Revolução Francesa, mas pelo estopim que se deflagrou pelo mundo com a onda de combates. A grande revolução de 1789 -1848 foi o triunfo não da “indústria” como tal, mas da classe média ou da sociedade “burguesa” liberal; não da “economia moderna” ou do “estado moderno”, mas das economias e Estados em uma determinada região geográfica do mundo (parte da Europa e alguns trechos da América do Norte), cujo centro eram os Estados rivais e vizinhos da Grâ-Bretanha e França. A transformação de 1789 – 1848 é essencialmente o levante gêmeo que se deu naqueles dois países e que dali se propagou por todo o mundo. (Era das Revoluções HOBSBAWM, pag. 20)

Vemos que tais revoluções foram imprescindíveis para que a sociedade como um todo tomasse voz diante de tais acontecimentos que os prenderiam a dominação da classe dominante, e através desses manifestos um novo modelo de sociedade democrática possa surgir e reverter esse quadro social. Com a chegada do capitalismo, duas classes sociais surgiam, por um lado a burguesia detentora do alto padrão de produção e por outro lado o proletariado, aqueles que vendiam sua força de trabalho para a burguesia capitalista. A partir desse estado social, surgem as ideias iluministas que dominavam, e os movimentos de independência, este, servia de subsídio para aqueles que buscavam libertação e as ideologias iluministas serviam de fonte de reflexão para os que viviam sob dominação. Causas abordadas por Karl Marx e Louis Althusser Karl Marx foi um revolucionário, cientista social, que marcou a história política com suas ideias humanitárias. Ideias que buscaram promover uma distribuição de renda justa e equilibrada. Seus pensamentos influenciaram a chamada Revolução Socialista, movida pela metade da população mundial da época. O socialismo marxista é uma ideologia baseada nas teorias de Marx. Esse contexto solidificou o poder da burguesia na sociedade, desde então, a produção em massa ganhava destaque e mais uma vez o ciclo se reiniciava, o trabalho em troca do lucro. Partindo desse pressuposto, elenquemos as lutas de classes que deram origem as várias sociedades que até hoje existem. Escravo e senhores, plebeus e patrícios, nobreza e servos, para defini-los numa única palavra diríamos opressores e oprimidos. Todas essas oposições tiveram como fim, guerras, lutas e em até muita das vezes combates sangrentos nas disputas por liberdade e igualdade de direitos, e isso desencadeou numa forte divisão de classes como a burguesia e o proletariado, assim disse Marx em seu livro (Manifesto Comunista. 1848 p. 8). Tomando parte e entrando no cenário social, a burguesia se destacou na história com uma imagem eminentemente metamórfica. Todas as prisões que dilacerava o homem feudo a burguesia foi à responsável pela quebra de grades sem receio a represália, nasceu à liberdade de comércio. Tiraram de sua auréola aqueles ofícios considerados piedosos e digno de respeito e do médico, do poeta, do jurista e do sacerdote fez seus servidores assalariados, desta vez, as relações sociais eram mediadas pelo capitalismo e não pelo amor ao próximo. Não só pela busca de se sobrepor na sociedade como indivíduo imperador, mas da necessidade de transformação social, as lutas de classe tiveram e tem grandes avanços no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores e melhorias comunas.

215 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Louis Althusser (1985, apud MAXIMIANO MIRANDA, 2009, p. 13) em seus estudos sobre aparelhos ideológicos de estado, aborda um leque de questões concernentes a ideologia na sociedade, e retoma conceitos fundamentados por Marx, termos de força de trabalho e a repercussão nos relacionamentos de produção. Em outras palavras o estudo dos valores onde as sociedades em conjunto estão imersos, partindo do suposto processo dos relacionamentos de produção e a opressão derivada da exploração entre as classes sociais e a divisão do trabalho, durante este processo, a identidade do indivíduo se vê alterada em correspondência de sua posição no sistema. O homem por sua vez, torna-se maquiado por um sistema que o aprisiona ao seu trabalho, entretanto, o trabalhador se sujeita a vestir a mão de obra para garantir-lhe o sustento da família e em outros tempos, sustentar o topo da pirâmide que era formada pelo clero, a nobreza e os feudos. Conseguinte, o estado é um instrumento de reprodução das relações de produção, portanto, da reprodução das condições de exploração, está garantida pela repressão direta ou indireta e pela persuasão, sendo que os aparelhos repressores atuam predominantemente pela repressão e os aparelhos ideológicos predominantemente pela persuasão. Althusser (1985, apud SILVA MARQUES, 2013, p. 3) chama atenção para a existência de ideologias dominadas que mesmo disfarçadas coexistem, afirma ainda que: .. a “cultura” literária ministrada no ensino das escolas não é um fenômeno puramente escolar, é um momento entre outros da “educação” ideológica das massas populares. Pelos seus meios e efeitos, ela traz outros à superfície, postos em prática ao mesmo tempo: religiosos, jurídicos, morais, políticos, etc. Outros tantos meios ideológicos da hegemonia das classes dominante, que são todos reagrupados em volta do Estado de que a classe dominante detém o poder. Bem entendido, esta conexão, podíamos dizer sincronização, entre a cultura literária (que é o objectoobjectivo das humanidades clássicas) e a acção ideológica de massa exercida pela igreja, pelo Estado, pelo Direito, pelas formas do regime político, etc., são a maior parte das vezes mascaradas. Mas aparecem à luz do dia nas grandes crises políticas e ideológicas, onde, por exemplo, as reformas do ensino são abertamente reconhecidas como revoluções nos métodos de acção ideológica sobre as massas. Vê-se então muito claramente que o ensino está em relação directa com a ideologia dominante e que a sua concepção, a sua orientação e o seu controlo são um terreno importante da luta de classes.

Podemos observar tamanha dimensão que tomou os movimentos de classes dominantes ou dominadas, atingindo o mais longínquo dos sistemas ideológicos, vemos também, as forçar opressoras subsistindo no campo educacional, impondo condutas de moralidade, orientação de métodos educacionais enfim, camadas administradoras do poder agiam livremente no ensino sobre as massas populares. Crítica social no contexto atual Configuram-se no Brasil do século XXI, fortes contendas ideológicas que visam um desenvolvimento acelerado para este país. Dentre outras expectativas, a de erradicar com a extrema pobreza e condições subumanas dos marginais que vivem ausentes das políticas públicas igualitárias, para tanto, o poder administrativo da nação se utiliza de vários mecanismos para tentar enfrentar e combater tais fatos, mas isso ainda é pouco, aos olhos de quem vive numa sociedade totalmente capitalista e que este capital chega racionado a esta margem, entende-se que meios são fracassados e muitas vezes nem chegam para a população carente. Para o povo, as políticas não são para todos e quando são não atendem com qualidade como deveriam. Os movimentos sociais e a participação popular que é a luta pela conquista dos direitos sociais tem ganhado dimensões em todos os meios de comunicação em massa. Desta forma, tem-se presenciado ultimamente atos unificados de protesto da sociedade brasileira lutando por melhorias em todos os setores públicos, saúde, educação, moradia e segurança. Uma parcela se opõe a estes que lutam por direitos, unem-se também em atos de manifesto em prol do governo e afirmam que nosso país avançou como nunca visto em outros governos.

216 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Análise das obras O quinze e Os sertões A partir de agora faremos uma análise do discurso de denúncia social apresentado nas obras: O Quinze da escritora Rachel de Queiroz e Os Sertões de Euclides da Cunha. Para tal julgamento, mostraremos como o/a escritor/a se utilizou de uma sutileza para fazer tal crítica de fatos no decorrer do enredo, mostrando como se dava o progresso de vida daqueles que lutavam por um espaço para morar e viver, e também, a cansativa e árdua batalha de sobrevivência daqueles que viajavam por terra em busca de melhores condições de sobrevivência. Iremos apresentar os trechos das obras que provam o desleixo com os seres humanos, que são zoomorfizados e mesmo assim, continua na travada guerra por defenderem seus espaços e suas vidas. Apresentações das obras Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza - CE, no dia 17 de novembro de 1910, filha de Daniel de Queiroz e de Clotilde Franklin de Queiroz, descendendo, pelo lado materno, da estirpe dos Alencar sua bisavó materna — "dona Miliquinha" — era prima José de Alencar, autor de "O Guarani", e, pelo lado paterno, dos Queiroz, família de raízes profundamente entroncadas em Quixadá onde residiam, e seu pai era Juiz de Direito nessa época. Ainda criança, Rachel presenciou a trágica despedida de pessoas que saiam constantemente do logradouro para os campos de concentração em Fortaleza, outras tinham destino mais distante como Maranhão, Amazônia e São Paulo. Fátima Araújo(2009) descreveu em seu escrito a respeito do livro, a vida sertaneja e a trágica partida dos agricultores, onde deixavam para trás suas vidas, suas terras e seus animais. O Quinze vem abordar justamente esse fato que ficou conhecido como a grande seca do quinze a qual inspirou o nome da obra. Neste livro, Rachel faz uma abordagem sobre os retirantes da seca, a permanência de outros resistindo e lutando com o pouco que restou, pequenas criações de animais, a simplicidade do local e o sofrimento vitimando aqueles que já sofrem com a desolação do lugar. Alguns fatos marcantes merecem destaque neste texto, pequenas passagens relevando a humildade de Chico Bento ao extremo, encontra-se com outras pessoas que estão viajando por terra, quando num trecho a escritora descreve a ação de Chico ao ver pessoas se alimentando de carne podre de animais que morreram a dias, e o pouco de comida que tem guardada na carruagem oferece a eles – deixar esse povo comer carniça é que eu não posso deixar (p. 44-45) afirma. Tristezas e agonias também são cenários do livro, a morte de um dos filhos de Chico e Cordulina, o desaparecimento de outro, marcam ferrenhamente traços de um povo sofredor que vive dias sem colocar um tanquinho de comida na boca. Retrato fiel uma vida marcada por sofrimentos de que tanto Rachel ouviu falar, o livro mostra um reflexo de uma sociedade marcada por profundas desorganizações sociais, as velhas políticas de coronelismo na venda das passagens na estação de trem, a má distribuição de alimentos nos campos de concentração, a morte a míngua de crianças sem atendimento hospitalar, são vários os fatores que juntos formam esse leque de mazelas sociais que perduram na sociedade contemporânea, e que Raquel de Queiroz descreveu com tanta peculiaridade e engajamento enfatizando fatores polêmicos e denunciando ao povo tais mazelas sociais. Euclides da Cunha nasceu no Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866. Filho de Manuel Rodrigues da Cunha Pimenta e Eudósia Alves Moreira da Cunha. Ficou órfão de mãe aos três anos de idade, foi educado pelos tios e avós. Com 19 anos, ingressou na Escola Politécnica onde cursou um ano de Engenharia Civil. Matricula-se na Escola Militar da Praia Vermelha. Escrevia para a revista da escola, "A Família Acadêmica". Expulso da Academia, por afrontar o Ministro da Guerra do Império, vai para São Paulo e em 1889 publica no jornal O Estado de São Paulo, uma série de artigos onde defendia ideais republicanos. foi um escritor, jornalista, professor e poeta brasileiro, autor da obra "Os Sertões". Esta obra revela em três planos como se deu o processo de aquisição de espaço para sobrevivência e moradia. O Homem A Terra e A Luta. Enviado com a missão de comunicar o que se passava no norte da Bahia, um combate que ficou conhecido como Guerra de Canudos ocorrido por volta de 1897. Movida pelo líder daquela comunidade, Antonio Conselheiro é responsável pela construção do Arraial de Canudos. Inicialmente, os sertanejos não contestavam o regime republicano 217 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


recém-adotado no país, houve apenas mobilizações esporádicas contra a municipalização da cobrança de impostos. Lutavam e para não destruírem o Arraial várias batalhas foram travadas e algumas delas sem êxito por parte dos soldados do governo. A todo instante seguidores de Antonio Conselheiro trabalhavam incessantemente para a construção da igreja, enquanto isso, Conselheiro ganhava mais adeptos. Apesar de não ter presenciado o princípio da guerra, Euclides ainda descreve como se deu todos os processos de batalhas até a morte do líder da comunidade. Sobretudo, de impetuosa originalidade, Euclides da Cunha traça uma linha descrição abrangendo todos os aspectos da narração, o espaço, as personagens, desde a entrada do sertão até Arraial de Canudos um conjunto de características que juntos narram fielmente a Guerra de Canudos. Análises de trechos das obras 2.2.1 Partiremos observando o discurso de denúncia social abordado em Os Sertões, por Euclides da Cunha. A Obra os Sertões é riquíssima ao elencar diversidades de denúncias apresentadas nas mais diversas situações, denúncias essas de caráter regional, político, social, religioso e ideológico. O homem sujeito as adversidades da vida, castigado e posto a prova a todo instante, um homem de luta, de raça que não cansa, que vai além de suas possibilidades físicas. O homem de esperança. exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento a sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a, estóicos. Apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem-número de terríveis episódios, alimenta a todo o transe esperança de uma resistência impossível. (p. 18) Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima, ante os seus piores vaticínios. Aguarda paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no Dia de São José, 19 de março, procura novo augúrio, o último. (p.19)

O aspecto geográfico que desponta na caatinga, oposto ao clima do sul, caracteriza e reflete no estilo de vida desse povo, vida flagelada, como está descrito abaixo. .. Faz os roçados e arregoa as estreitas faixas de solo arável à orla dos ribeirões. Está preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras chuvas. (p. 18) Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série, sucedendo-se inflexíveis, como sinais comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as “chuvas do caju” em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas, aqui a li, por toda parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas, e greta-se o chão; e abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas. (p. 18-19)

Canudos sob forte influência e Liderança de Antônio Conselheiro, luta contra a República. Ao desenvolverem entre si um novo modelo de organização social, tornam-se uma ameaça ao governo. Estando cada vez mais sujeitos a enfrentarem batalhas exacerbadas e que levou o homem ao seu extremo de luta pela vida. O homem a margem da Sociedade, submissos e torturados não apenas fisicamente, mas moralmente. Este é o quadro da população não assistida pelo governo. “O povoado, triste e de todo decadente, reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que morre, desconhecida à história, entre paredes de taipa. Nada recorda o encanto clássico das aldeias.” (p. 36) Não sucumbem à aprovação. São inevitáveis no caminhar dias a fio pelos mais malgrados caminhos. Não bosquejam a reclamação mais breve nas piores aperturas; e nenhuns se lhes emparelham no resistir à fome, atravessando largos dias à brisa, segundo o dizer de seu calão

218 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


pitoresco. Depois dos mais angustiosos transes, vimos valentes escaveirados meterem o martírio e troçarem, rindo com a miséria. (pág.48.)

O povo imerso a uma vida sem norte, esquecidos pelo poder público, são marginalizados e esquecidos como um objeto. Com todos os percalços do caminhar, lutam, se vestem de esperança para que dias melhores possam vir, na própria ingenuidade, vivem a mercê de governantes por auxílios, porém são esquecidos por quem detém a força mandatária, os políticos.

Análise de trechos da obra O quinze Agora, vamos destacar trechos da obra de Rachel de Queiroz discutindo os pontos que denunciam tais fatos sociais que demonstram o esquecimento e o preconceito com os retirantes interioranos. - Faz dois dias que a gente não bota um de-comer de panela na boca... Chico Bento alargou os braços, num gesto de fraternidade: - Por isso não! Aí nas cargas eu tenho um resto de criação salgada que dá para nós. Rebolem essa porqueira pros urubus, que já é deles! Eu vou lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tendo um bocado no meu surrão! (p. 44-45).

Neste momento, podemos perceber a humildade de Chico Bento ao encontrar outros retirantes se obrigando a comer restos de animais mortos, a fome prevalece constantemente durante a longa e angustiante viagem. Aqui, vemos um país totalmente diversificado que tem conhecimento da situação que a região nordeste se encontra, porém, não projeta políticas de apoio aos sertanejos. Angustiado, Chico Bento apalpava os bolsos... Nem um triste vintém azinhavrado. Lembrou-se da rede nova, grande e de listas que comprara em Quixadá por conta do vale do Vicente. Tinha sido para a viagem. Mas antes dormir no chão do que ver os meninos chorando, com a barriga roncando de fome. (p. 52) Faminta, a meninada avançou; e até Mocinha, sempre mais ou menos calada e indiferente, estendeu a mão com avidez. (p. 52) - Ah! Minha rede! Ô chão duro dos diabos! E que fome! ( p. 53)

A figura do pai, aflito ao ver os filhos sem dormir devido a fome que assombra a barriga como um vulcão em erupção, vende os bens que lhe restam para manter a alimentação da família durante o percurso até os tais campos de concentração. Chico Bento estendeu o olhar faminto para a lata onde o leite subia, branco e fofo como um capucho... (p. 54). A criança era só osso e pele: o relevo do ventre inchado formava quase um aleijão naquela magreza, esticando o couro seco do defunto, empretecido e malcheiroso. (p. 60)

A ausência de assistência social as crianças os levam a morte, de tão magras e fracas acometidas pela falta de comida. O pai faminto, enche os olhos com o branco leite que sai rapidamente das mamas da vaca, mas o estômago permanecerá vazio até sua morte ou até que outro alimento satisfaça aquela miséria. - Ora, as moças pegaram a falar que não aguentavam mais... Seu Vicente também achava ali muito ruim para a família... Sem banho, mandando buscar água a mais de légua de distância... Ele mesmo só ficou porque carecia dele lá, mode o gado. Mas toda semana vai no Quixadá..(p. 62). E junto deles, uma cabocla nova atiçava um fogo. Uma velha, mais longe, sentada nuns tijolos, fazia com que uma caboclinha muito magra e esmolambada lhe catasse os cabelos encerados de sujeira. (p. 63) E Cordulina, botando a vergonha de lado, com o Duquinha no quadril- que as privações tinham desensinado de andar, e agora mal engatinhava - dirigia-se às casas, pedindo um leitinho para dar ao filho, um restinho de farinha ou de goma pra fazer papa... (68)

219 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O bem maior que pode existir numa sociedade, está cada vez mais escasso, água abrigada a légua de distância da residência dos sertanejos os colocam em delicados momentos de sobrevivência, precisando lastimar-se por gotas de águas racionadas, pois o governo não exerce sua administração naquele lugar. A mãe, para não deixar a criança morrer de fome, sai pelas casas em busca de leite para fazer o mingau do filho, a desolação afetando as crianças e mais uma vez, a crítica enaltece a fome desta vez obrigando as pessoas a pedirem comida pelas residências. De repente, um bé!, agudo e longo, estridulou na calma. E uma cabra ruiva, nambi, de focinho quase preto, estendeu a cabeça por entre a orla de galhos secos do caminho, aguçando os rudimentos da orelha, evidentemente procurando ouvir, naquela distensão de sentidos, uma longínqua respostas a seu apelo. (p. 70) Chico Bento, perto, olhava-a, com as mãos trêmulas, a garganta áspera, os olhos afogueados. O animal soltou novamente o seu clamor aflito. Cauteloso, o vaqueiro avançou um passo. E de súbito em três pancadas secas, rápidas, o seu cacete de jucá zuniu; a cabra entotenceu, amunhecou, e caiu em cheio por terra. (p. 71)

A fome obriga Chico Bento a roubar e matar animais alheio, e é humilhado ao ser flagrado descarnando o cabrito rapidamente, pois a fome não podia mas esperar, humilhantemente, o dono toma aquela carne que tanta Chico desejava e os deixa apenas com as vísceras do animal, e como a fome está cada vez mais invadindo seu corpo se obriga a comer as tripas ,mesmo estando sujas de terra. Pode até parecer repetitivo, mais sempre Rachel faz uso fortemente de tais ocorrências para mostrar a desorganização social que reside na região nordeste. Tristemente contou toda a fome sofrida e as consequentes misérias.(p. 102). Quando o menino cuidou em si, já engolia. E gostando, deixou de se revoltar, chupou sofregamente a colher, e entrou a beber com fúria, com uma pressa áspera e esfaimada, abrindo desmedidamente a boca e reclamando com gritos quando a moça se demorava(p. 110). Apenas um desejo as animava: beber sem interrupção a água salobra das cacimbas, como se aqueles goles salgados, mornos, densos, lhes restituíssem saúde e vida. (p. 124)

As evidências de uma fome crônica, os desleixos igualitários do poder governamental com o povo, a desvalorização do sertanejo que os obriga a sair da terra e abrigar-se nos campos de concentração compostos de pessoas de diferentes regiões que sofrem com o mesmo mal. - Que Maranhão, Chico, Deus me livre! Tu não tens visto dizer que morre lá família inteirinha de sezão, que nem se fosse peste?... (p. 113) CONCEIÇÃO passava agora quase o dia inteiro no Campo de Concentração, ajudando a tratar, vendo morrer às centenas as criancinhas lazarentas e trôpegas que as retirantes atiravam no chão, entre montes de trapos, como um lixo humano que aos poucos se integrava de todo no imundo ambiente onde jazia. (p. 134)

A imigração de pessoas dos sertões para os grandes centros urbanos evidencia uma prática bastante comum até as datas atuais, o sofrimento com o preconceito regionalista, a formação dos currais de retirantes, para não acontecer à penetração a mistura desse povo com os urbanos mostra com um tom eloquência a ação do governo para tentar manter essas pessoas em seus lugares. “E à porta das taperas, as criancinhas que brincavam e corriam em grupos curiosos, à vista da cadeirinha, ainda tinham a marca da fome tristemente gravada nos pequeninos rostos ossudos, dum amarelo de enxofre.” (p. 152)

E por fim, as chuvas chegaram para alegrar a população sertaneja, mas não chega à resolução completa do problema, apenas torna a dor de perda de tudo que se ganhou mais aliviada, e a vontade de voltar à terra natal é constante, mas o medo de tudo se repetir e ter que percorrer uma longa terra seca, faz com que as pessoas se abriguem para sempre em terras urbanas, longe de suas raízes, da vida campesina, longe de tudo. 220 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Palavras finais Após várias leituras sobre o histórico de movimentos sociais, podemos constatar as dimensões e as funções que a literatura tomou no campo do socialismo. As conquistas do proletariado, a libertação dos que viviam sob domínio político, religioso e trabalhista. No estopim das revoluções sociais, as classes minoritárias conseguiram consideráveis avanços no que tange os direitos e a liberdade de trabalho, a criação de associações e políticas quase democráticas para a massa camponesa, foram ganhos através de muitas lutas. A leitura de O Quinze trouxe uma aproximação de uma época distante para os dias atuais em comparação com a atual conjuntura climática acomodada em nossa região e em boa parte do Brasil. Rachel de Queiroz explana de forma simples, porém clamativa, a forma e a situação que os flagelos retirantes são tratados durante a travessia do sertão, por terras secas e poeirentas. Sobre uma nova ótica de pensamento, O Quinze, trás para um plano real de observações o que de fato foi à terrível seca, a assolação da fome e da miséria a morte como destino certo e dias melhores para alguns como a incerteza de um amanhecer nublado. Já Euclides da Cunha, acomete fatores bem mais sangrentos e dolorosos, o fato de uma guerra penetrar numa comunidade bastante religiosa como a de Arraial, mostra a luta e o engajamento no processo de duelo e de defesa do local de vivência. Mas também, não desperdiça nem deixa de lado a geografia e o clima do espaço, ressaltando basicamente os mesmos sofrimentos dos personagens descritos por Rachel, a morte, a seca, a ausência de políticas públicas e de auxílios aos moradores de Arraial de Canudos. Conseguinte, Euclides faz um histórico geográfico, humano, climático até chegar à causa crucial da história, que é a guerra, valendose de estereótipos do lugar que o ajudam a dar um maior tom de eloquência a história e uma veracidade ainda maior aos fatos narrados. Por fim, o presente trabalho pôde comprovar que a literatura vem sendo usada desde as revoluções trabalhista pelo mundo como instrumento de denúncia social, apontando os defeitos de um sociedade carente e incoerente com a vida humana, que muito tende a ser conservadora de princípios que regem um cidadão sem dar espaço para uma metamorfose com rapidez, e de um trabalho padronizado e mecânico e que aos poucos foi sendo substituído por grandes máquinas, colocando o homem em desequilíbrio social, para tais denúncias serem enaltecidas a literatura de enunciação entrou com forte papel na vida social destes trabalhadores como afirma o professor Peres Alós da Universidade Federal de Santa Maria, e os convidando a irem as ruas para lutarem em defesa de seu trabalho, assim surge as lutas sociais e o relatos de denúncias sociais escrita por autores que tiveram importante papel em tais relatos. A partir desta pesquisa, esperamos que essas revelações sirvam de apoio para reflexões sobre contextos sociais, lutas pela conquista de direitos, democracia para os que vivem sob jurisdição de um poder administrativo autônomo e padronizador, liberdade e igualdade em todos os setores públicos, políticas democráticas e que estejam em prol da comunidade e não sob domínio do poderio administrador. Com isso, as denúncias apresentadas nas duas obras calham perfeitamente com a realidade social a qual estamos submersos, um sociedade sofrida, principalmente no que tange os auxílios públicos para os flagelados atuais das secas, da fome, da miséria que levam toda essa gente a outras regiões do país. A literatura de O Quinze mostra muito bem esse fluxo de pessoas, saindo e entrando de lugares em busca de melhores condições de sobrevivência humana, como foi desenhado o protagonista Chico Bento. REFERÊNCIAS CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 4ª ed. São Paulo: MARTIN CLARET, 2002. QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 97ªed. Rio de Janeiro: JOSÉ OLYMPIO, 2014. SOUZA DE HENRIQUE, Lauro Luis; BONA DIAS, Leandro De. Literatura Como Crítica Social: A Sátira Da Sociedade Brasileira Em Os Bruzundangas. P. 1 - 4. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.

221 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


FÁTIMA ARAÚJO, Kárita de; DE SOUZA ANSELMO, Rita de Cássia Martins. 1915: A SECA E O SERTÃO SOB O OLHAR DE RAQUEL DE QUEIROZ.ESTUDIOS HISTORICOS – CDHRP- Diciembre 2009 - Nº 3 – ISSN: 1688 – 5317. http://historiabruno.blogspot.com.br/2011/10/movimentos-sociais.html. Movimentos Sociais: Suas Transformações e suas varias lutas Por: Bruno Ferreira. Acessado em abril de 2016. PERES ALÓS, Anselmo. LITERATURA COMPARADA ONTEM E HOJE: CAMPO EPISTEMOLÓGICO DE ANSIEDADES E INCERTEZAS. Professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

MAXIMIANO MIRANDA, Camila; NOVAIS CASTILHO, Neuza Aparecida; CARVALHO CARDOSO, Vanessa Cristina. MOVIMENTOS SOCIAIS E PARTICIPAÇÃO POPULAR: LUTA PELA CONQUISTA DOS DIREITOS SOCIAIS. Revista da Católica, Uberlândia, v. 1, n. 1, p. 176-185, 2009.Alunas do curso e graduação em serviço social (FCU). TENÓRIO MONTEIRO, Claudia Regina. TEORIA SOCIAL E O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL. Assistente Social ( UFRJ ), Mestre em Serviço Social ( PUC-RIO ), Docente e Pesquisadora da Universidade Estácio de Sá. DANTAS, Paulo. Os sertões de Euclides e outros sertões. S. P. Cons. Est. de Cultura, s./d. BOSI, Alfredo. HISTÓRIA CONCISA DA LITERATURA BRASILEIRA. 43ª ed. São Paulo: cultrix, 2006. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. A Era das Revoluções. Disponível em: http://www.submit.10envolve.com.br/uploads/b2588e47cc6f590e00be 7dc546aab5171a31456f/01c830e1d28bc1d7f8b3250823ff62c4.pdf acessado em 14/04/2016 Manifesto Comunista. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf acessado em 14/04/2016

222 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


AS PROPAGANDAS DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO: ANÁLISE DE DISCURSO, EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA1 Isabella Nara Costa Alves2 Edinilza Maria de Oliveira Silva Morais3 Jennyfer Paloma de Oliveira Morais Paula Poline Nascimento Santos Dayse Rodrigues de Oliveira4 RESUMO A reforma do ensino médio, advinda do Governo Temer (2016 -), vendo sendo alvo de diversos debates dentro e fora do contexto educacional. Este trabalho tem como escopo a análise das propagandas televisivas desta reforma, que visam seduzir o público em geral, argumentando seu caráter progressista. Como referencial teórico, trazemos a ascensão do Governo Temer (2016 -) e as circunstâncias em que este foi consolidado. Posteriormente, trazemos o contexto educacional do Governo de Dilma Rousseff (2011 – 2016), comparando com as mudanças atuais. A seguir, trazemos como metodologia a Análise de Discurso (AD), que visa interpretar as propagandas em um contexto histórico e social, fazendo um elo com a ideologia. Em seguida, fazemos a análise da propaganda televisa, manifestando o caráter manipulativo e antidemocrático da reforma do ensino médio. Nas considerações finais, trazemos a repercussão e o regresso desta antirreforma, tendo a propaganda como meio de propagação da ideologia dominante. Palavras-chave: Análise de Discurso; Reforma; Ensino Médio; Ideologia.

Introdução

A

reforma do ensino médio, advinda do Governo Temer, ganhou espaço de discussão desde setembro de 2016, uma vez que traz mudanças significativas para esta modalidade, principalmente no que diz respeito à matriz curricular das escolas públicas. Este trabalho tem como finalidade analisar o discurso presente nas propagandas televisas da reforma, uma vez que estas argumentam benefícios, escondendo as verdadeiras intenções políticas do governo Temer. É importante destacar duas questões dentro deste artigo: a primeira é que apresentamos uma linguagem inclusiva, nos recusando a trazer o homem como centro, situando também as mulheres. Como nos ensina Paulo Freire (1992), “a recusa à ideologia machista, que implica necessariamente a recriação da linguagem, faz parte do sonho possível em favor da mudança do mundo” (p. 68). Portanto, incluímos também a forma feminina de linguagem: os homens e as mulheres, os educadores e as educadoras, entre outras. A segunda questão é desvelamento de uma pretensa “neutralidade” dentro deste trabalho, uma vez que, como nos aponta Paulo Freire, ensinar é formar, e formar não é um ato neutro (2014), uma vez que professores e professoras não são meros expectadores dos fatos históricos, políticos, sociais e educacionais de nosso país. Contudo, expomos que o status da pesquisa não é comprometido, uma vez que os processos e caminhos da Análise de Discurso (AD) garantem a veracidade e a pertinência das questões tratadas dentro deste artigo. Nesta perspectiva, este trabalho inicia com nosso exame sobre o governo atual e suas políticas sociais e educacionais, sobretudo no que diz respeito à reforma do ensino médio. Explicitamos, posteriormente, a Análise de Discurso como metodologia utilizada no artigo e a investigação da propaganda em questão, 1

Trabalho apresentado no GT5 – Discurso e Ideologia do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduanda do curso de Pedagogia da Faculdade dos Guararapes e Pesquisadora do grupo de Estudos e Pesquisa em Educação, Raça, Gênero e Sexualidades Audre Lorde - GEPERGES. Recife - PE. Endereço eletrônico: isabella.athos@live.com,  3 Graduandas do curso de Pedagogia da Faculdade dos Guararapes. Recife – PE. Endereço eletrônico: moraisedinilza@gmail.com, jennyfermorais28@gmail.com, paolapolini.santos@gmail.com, respectivamente. 4 Mestra em Educação. Orientadora. Recife – PE. Endereço eletrônico: daysrodrigues@gmail.com. 223 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


trazendo como conclusão o elo entre o discurso e a ideologia. O Governo Temer (2016 -) O atual governo assumiu a presidência da república através de um golpe de estado ilegal, arquitetado por Michel Temer e pela oposição, em sua maioria acusados de crimes de corrupção que estavam sendo investigados, incluindo o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, que atualmente responde por corrupção, lavagem de dinheiro, evasão fiscal e outros crimes. Dilma Rousseff, a presidenta eleita democraticamente, foi acusada de crime de responsabilidade por pedaladas fiscais, e, mesmo sem provas, teve seu poder usurpado pelo processo do impeachment/golpe (LOWY, 2016). O golpe de estado de 2016 teve como aliada a mídia brasileira, por meio de manifestação da ideologia dominante e a adulteração das informações, usando do machismo institucional como catalizador, uma vez que não se aceitava uma mulher no mais alto cargo político do Brasil. A votação do impeachment passou pela câmara dos deputados e posteriormente, pelo senado, sendo televisionada em rede nacional. Em uma entrevista, após o senado confirmar o seu impeachment no dia 31 de agosto de 2016, a expresidente se defendeu usando o seguinte texto: Apropriam-se do poder por meio de um golpe de Estado. Esse é segundo golpe que enfrento na vida. O primeiro, um golpe militar apoiado na truculência das armas de repressão e da tortura, que me atingiu quando eu era uma jovem militante. O segundo, parlamentar, desfechado hoje por meio de uma farsa jurídica que me derruba do cargo para o qual fui eleita pelo povo. É uma inequívoca eleição indireta. (ROUSSEFF, 2016 apud MEGALE, 2016, p.1).

O presidente em vigor Michel Temer privou na educação, na saúde, na previdência, retratando o pobre como maquinaria, em que apenas a classe dominante usufrui de nossas riquezas. Leis estão sendo aprovadas sem qualquer consentimento do povo e medidas provisórias são implantadas como justificativa por seus interesses. Assim como a ditadura militar, que foi consolidada pelas mesmas circunstâncias que atualmente convivemos, neste governo podemos presenciar a privação dos direitos dos cidadãos e cidadãs brasileiros, a falta da democracia, a tortura contra o povo, a prática da censura, a perseguição política e a repressão àqueles e àquelas que criticam o cenário político do nosso país. Como exemplo dessas mudanças, temos a Reforma da Previdência, a PEC 55 (que aprovou o congelamento dos gastos em saúde e educação), o extermínio do Programa Ciências sem Fronteiras e a reforma do ensino médio, a ser debruçada nesse trabalho. Outros retrocessos foram arquitetados durante a construção desse artigo, como a Lei da Terceirização, privatização na área do petróleo, fim da farmácia popular, aumento exorbitante da taxa de inscrição para o Exame Nacional do Ensino Médio, entre outras mudanças. Por fim, os direitos que levaram anos para o povo brasileiro conquistar estão sendo usurpados pelos que estão no poder, e este trabalho prevê a discussão e a crítica dessas modificações. Cenário educacional pré-golpe e pós-golpe No início de 2011, Dilma Rousseff toma posse e torna-se a primeira presidente mulher a assumir o mais elevado cargo público político do país, dando continuidade aos programas de governo da gestão anterior, de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). Em seu mandato, Dilma inicia o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) no intuito de expandir a demanda de cursos educacionais voltado para o ensino profissionalizante, formando um quantitativo significante de alunos e alunas (CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL, 2011). Ainda que o PRONATEC perpetue a visão neoliberal de uma educação utilitarista para produção de mão-de-obra qualificada, percebemos mudanças positivas no campo educacional, como a aprovação e sanção do Plano Nacional de Educação, que determina 10% do Produto Interno Bruto (PIB), investimento para a

224 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


educação do ensino público, evidenciando reformas oportunas com estes investimentos (QUEEN, 2013). Outro benefício é [...] a implantação do Programa Ciência Sem Fronteiras, que já beneficiou 85 mil estudantes, que receberam bolsa para estudar em 40 países. Desse total, 1.540 bolsas de pós-graduação foram concedidas para estrangeiros atuarem no Brasil como pesquisador visitante e jovem talento. A meta até o final do Governo é conceder 101 mil bolsas para estudantes e pesquisadores e, na segunda fase do Programa, mais de 100 mil bolsas serão concedidas (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015).

Dilma destinou fundos do Pré-sal para subsidiar a educação modificando as normas de subdivisão dos

royalties do petróleo, decidindo aproximar completamente (municípios, estados e União) investimentos para a

educação em subvenções subsequentes. Ficou estabelecido que 50% do arrecadamento do Fundo Social do Pré-Sal seria destinado para a educação (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2012). Ainda no Governo Dilma, inicia-se a ocupação das escolas de ensino médio pelos/as estudantes secundaristas, com a finalidade de protestar por melhorias educacionais e medidas antidemocráticas, como a reestruturação do sistema educacional estadual, que implicaria no fechamento das escolas (UBES, 2017). Com o golpe político de 2016, os benefícios trazidos pelas gestões anteriores foram retirados gradativamente, incluindo os dois programas citados anteriormente, o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), o corte de 90 mil bolsas do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), entre outros retrocessos (REVISTA FÓRUM, 2016). Quanto às questões curriculares, o governo de Dilma lançou uma consulta pública para a construção coletiva da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que foi encerrada pelo governo golpista. A opinião dos/as especialistas da educação, antes considerada fundamental para a construção da BNCC, foi retirada, e somente os anseios do governo, incluindo deputados/as e senadores/as foram ouvidos. Prova disso é a retirada da matriz curricular de gênero e sexualidade no documento, a subalternização das comunidades escolares no processo de ensino/aprendizagem, a homogeneização das matrizes curriculares e a fragilidade da formação de professores/as (ANPED, 2017). As ocupações das escolas, após o golpe de 2016, intensificam-se também dentro das Universidades e nas instituições federais de ensino técnico e se abrangem por todo o território nacional, tendo como principais pautas uma reforma educacional, melhora de estrutura física e melhores condições para os/as docentes e estudantes (UBES, 2017). Com o anúncio da reforma do ensino médio, o movimento dos/as estudantes secundaristas inicia uma série de ações para protestar contra esta medida, tendo como retorno a truculência governamental e policial. Em conclusão, percebemos um governo que, baseado em um golpe de Estado, faz terrorismo e extingue as poucas vitórias da população, apenas preocupado com seus anseios e os da elite brasileira. Este trabalho, além de representar a voz dos professores e professoras, é o grito da população que grita “Fora Temer”. Metodologia A disciplina de interpretação adotada para esta pesquisa é a de Análise de Discurso (AD). Esta interpretação é de origem francesa e pertencente às áreas da linguística, psicanálise e teoria histórico-social, tendo como autor fundamental o filósofo Michael Pêcheux (1983-1983). Com avanços nos estudos da linguística, Pêcheux traz uma reflexão sobre como os indivíduos comunicam-se e interagem, buscando interpretações implícitas presentes no discurso. O discurso reproduz-se de forma escrita, falada ou através de imagens entre outras formas de publicidade e propaganda, todavia “[...] Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder” (FOCAULT, 1996, p.10). É através do discurso que nos movimentamos, inventamos e reinventamos. A análise de discurso investiga a forma em que seus sentidos são produzidos. Partindo deste desígnio, é possível desvendar o viés

225 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


político do discurso a partir da compreensão de um mundo dividido em diferentes classes sociais com diferentes interesses e objetivos direcionados a grupos distintos e considerando que o sujeito é produtor de cultura e inserido numa sociedade política. O discurso, portanto, analisa a ideologia. A “[...] Ideologia é um ideário histórico, social e político que oculta à realidade, e esse ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política”. (Chauí, 2001, p.7). Por trás de cada discurso ideológico existem práticas políticas embasadas de formas sorrateiras e impositivas. Pode-se usar como exemplo, o objeto de estudo da presente pesquisa, que traz as propagandas publicitárias sobre a reforma do ensino médio. As propagandas do MEC (Ministério da Educação) retratam a remodelação do ensino médio de forma deslumbrante, onde na verdade possuem um autoritarismo suavizado pela informação utópica de que a reforma surgiu para proveito dos alunos e alunas e que a mesma trará benefícios a estudantes de todas as classes. De acordo com Chauí: “A produção e distribuição dessas ideias ficam sob o controle da classe dominante, que usa as instituições sociais para sua implantação – família, escola, igrejas, partidos políticos, magistraturas, meios de comunicação da cultura permanecem atrelados à conservação do poder dos dominantes”. (2001, p.106).

Desta maneira, podemos observar que o sujeito a quem é destinado o discurso, é sitiado por informações rápidas e com discurso ideológico onde o mesmo é levado a absorver as informações de maneira inconsciente na expectativa de uma reprodução que lhe foi imposta. Partindo deste pressuposto Freire (1981) afirma que seria ingênuo esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às camadas dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica. Portanto, até que a classe dominada e oprimida identifique o discurso de quem fala, porquê fala e para quem fala, tal discurso ideológico, continuará sendo emitido e reproduzido de forma implícita. Análise do gênero discursivo publicitário da reforma do ensino médio. A propaganda televisa, com cerca de 30 segundos, começa com as frases “Novo Ensino Médio. Quem conhece aprova”, em que podemos identificar um espaço aproximado a uma plateia de teatro ou cinema, aonde estão diversos (as) jovens sorrindo, com expressões satisfeitas e decididas. Conforme Magalhães (2015) nos ensina “é preciso considerar palavras e imagens juntas; para isso, há uma recomendação de que palavras e imagens sejam analisadas como signos” (p. 15). Podemos compreender a representação de uma juventude feliz e decidida como uma forma de propiciar empatia, direcionando os valores do EU (emissor/a) – a figura dos/as estudantes - no TU (receptor/a) – aqueles/as que se movimentarão a aprovar a mensagem e que produz os efeitos de sentido. A frase da propaganda “Quem conhece aprova” (que aparece em diversos outdoors e folders que difundem a propaganda da reforma) carrega um discurso ideológico no sentido de obter aprovação das massas, fazendo referência aos alunos/as, professores/as da educação básica, especialistas da educação entre outros segmentos que mostraram indignação à reforma e seus meios de implantação. Se “quem conhece aprova”, é correto afirmar que quem discorda do projeto é considerado pelo Ministério da Educação como desinformado e apartado da verdadeira proposta dessa reforma. Conforme Chauí (2012) nos alerta, a classe dominante legitima e assegura seu poder econômico, político e social através de ideias e representações que escondem o modo real como são constituídas as relações sociais, através de formas de exploração de dominação política. Esse ocultamento da realidade se configura na ideologia, em que a elite justifica os processos de exploração como legítimos e justos. Desta forma, trata-se de uma manipulação midiática através da escolha do slogan. Posteriormente, pouco a pouco, estudantes vão levantando-se da plateia, explicitando a carreira que desejam seguir: “Eu quero fazer jornalismo”, “Eu quero ser professora. É o que eu amo”, “E eu, designer de 226 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


games”, “Eu quero um curso técnico, para já poder trabalhar”. No que se refere aos aspectos semióticos, é preciso levar em consideração a exploração de cores pelo gênero discursivo publicitário analisado. O preto de fundo indica sobriedade e seriedade. Existe uma ligação entre a postura dos/as jovens e a proposta do anúncio que, apresenta, aparentemente, um discurso inovador acerca da carreira profissional destes/as estudantes, ganhando significado quando cada um se levanta ganhando um foco de luz. A diversidade física dos/as estudantes, entre homens e mulheres, brancos/as, negros/as e asiáticos/as sugerem um diálogo com a heterogeneidade de alunos e alunas do país, novamente na tentativa do elo entre o EU e o TU. Estas informações são de grande valia quando especialistas da educação, em entrevista pela Revista GNN, dizem que “o governo deseja ‘acalmar um pouco os ânimos’” através da publicidade acerca da reforma, uma vez que juntamente com esta, o governo Temer instaura outras medidas, como a PEC 55, que congela gastos sociais por vinte anos (MILENA, 2016, p. 1). Para que não se pareça tão evidente a fragmentação e a segregação dos/as jovens por suas camadas sociais de origem, a propaganda mostra uma menina loira, de cabelos lisos dizendo que gostaria de fazer curso técnico para ir direto para o mercado de trabalho. Quando na vida real, os dados do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) pelo Sistema PED (Pesquisa de Emprego e Desemprego) mostram que a maioria dos trabalhadores são negros e de baixa renda (2015). A associação da palavra “professora” com “amor”, remetem à afetividade requisitada na profissão, apresentando uma representação docente missionária, em que bastaria o amor como instância suficiente para a superação de todos os desafios e preconceitos da profissão. Lembramos que a reforma do ensino médio prevê que as escolas possam contratar professores/as com “notório saber”. Sabemos que existe um déficit de docentes em nosso país, contudo isso se deve à baixa atratividade da profissão, com baixos salários e péssimas condições de trabalho. Conforme Domingues, Toschi e Oliveira (2000), analistas do histórico das reformas educacionais brasileiras, nos alertam que “os professores têm sido tomados como recursos nas propostas e não como agentes, mesmo quando supostamente ouvidos no processo de elaboração. Daí o descompromisso social com as mudanças” (p. 65). Essa mudança se torna mais problemática quando a reforma prevê 1.400 horas por estudante dentro da escola nas condições supracitadas. Conforme Bastos (2015) nos ensina, a análise de discurso da propaganda opera “uma ligação necessária entre o nível linguístico e o extralinguístico, sabendo-se que ambos fazem parte da significação: o texto e as condições sócio-histórico-ideológicas em que foi produzido” (p. 40), uma vez que o discurso é o ponto de articulação entre a ideologia e a linguística. Fazendo referência ao interdiscurso, trazida por Bastos (2015) como nossa memória discursiva, trazemos o próprio texto legislativo da referida reforma e o que ele prevê ao currículo do ensino médio, segundo a página do Senado Federal: Art. 4º O art. 36 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com as seguintes alterações: "Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber: I - Linguagens e suas tecnologias; II - Matemática e suas tecnologias; III - Ciências da natureza e suas tecnologias; IV - Ciências humanas e sociais aplicadas; V - Formação técnica e profissional (SENADO FEDERAL, 2017, p. 1)

Destaca-se o caráter enunciativo da propaganda na “liberdade” do (a) estudante, dando possibilidade de um currículo flexível, que daria a oportunidade para o (a) jovem montar suas diretrizes a partir de sua escolha profissional, mantendo apenas três disciplinas como comuns a todos os alunos e alunas: português, matemática e a língua estrangeira, agora obrigatoriamente inglês. Ou seja, o estudante que quiser fazer o curso universitário de medicina, por exemplo, terá as disciplinas obrigatórias e optará por Ciências da natureza e suas tecnologias, não tendo contato com as ciências humanas de história e geografia. Este modelo de currículo entra em contradição com o atual processo de vestibular que temos atualmente, o Exame Nacional

227 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


do Ensino Médio (ENEM), que em seu processo avaliativo, que requisita todas as áreas do conhecimento. Outra crítica é “um empobrecimento cultural e educacional do currículo escolar, uma vez que todas as demais disciplinas estarão relativizadas” (ROSÁRIO, 2016, p.1), uma vez que o governo privilegia a aprendizagem de conteúdos impostos, desprezando o fato de que ensino/aprendizagem se relacionam de forma dialética (MARINHO, 2012). Outra problemática é que [...] o próprio governo já admitiu que nem todas as escolas vão poder oferecer todas as opções de escolha para seus alunos, isso levará a divisão de especialidades por colégios, aumentando a necessidade de deslocamento dos jovens e a um aumento de concorrência para entrar em alguns colégios, em detrimento de outros (MILENA, 2016a, p. 1).

Além disso, a reforma restringe a obrigatoriedade do ensino da arte e da educação física à educação infantil e ao ensino fundamental, tornando-as facultativas no ensino médio, tirando a atratividade, uma vez que os (as) estudantes se sentem mais motivados (as) a ir à escola mediante a presença dessas disciplinas, contrariando até mesmo a Constituição Federal, em seu artigo 208, que prevê como dever do Estado a garantia aos “níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988). As disciplinas de filosofia e sociologia também foram relativizadas, retirando elementos de análise crítica da realidade e substituindo por um “conteúdo básico”, suficiente para atender aos interesses do capitalismo contemporâneo e limitado a algumas áreas de aprendizagem restritas (MARINHO, 2012, p. 80). Conforme dito anteriormente, a língua estrangeira agora obrigatoriamente é o inglês (com exceção das escolas indígenas), o que, por nós, é considerado problemático, uma vez que “em um país que integra a América Latina e com movimentos migratórios tão diversos, deveria se buscar o plurilinguismo à luz das especificidades locais, e não se adotar uma perspectiva limitadora de nossa cultura” (ROSÁRIO, 2016). Ter o inglês como língua compulsória impossibilita a autonomia da escola e dos/as estudantes na adequação curricular, desfavorecendo um processo formativo contextualizado. Ainda com o mesmo cenário e rostos satisfeitos dos/as jovens, a propaganda continua, agora com a fala de um narrador, com os dizeres: “Com o novo ensino médio, você tem mais liberdade para escolher o que estudar, de acordo com sua vocação. E a liberdade que você queria para decidir o seu futuro”. As escolhas lexicais “novo”, “liberdade”, “escolher”, “vocação”, “decidir” e “futuro” indicam em seu campo semântico a noção de uma emancipação e protagonismo juvenil. O gênero discursivo publicitário apresenta uma alta afinidade com um determinado grupo social (os/as estudantes secundaristas), como também pelo estilo (sentido de identificação) através das escolhas lexicais anteriormente ditas. Conforme vimos anteriormente, a reforma prevê o atrelamento do ensino profissional ao ensino médio, como quinta categoria de escolha, além das outras áreas do conhecimento. A realidade da escola pública atual e da vida dos/as jovens, em sua maioria de classes sociais desfavorecidas, presume uma saída antecipada da escola para o mercado de trabalho, ajudando no sustento da família. Assim, o/a jovem pobre tende a uma pseudoescolha pelo ensino técnico, uma vez que as matrículas nessa modalidade têm crescimento pela maior exigência no recrutamento para os postos de trabalho (DOMINGUES, TOSCHI e OLIVEIRA, 2000). Ana Júlia Ribeiro, estudante secundarista e símbolo da ocupação das escolas em 2016 nos alerta que Com um discurso fraco e promíscuo, as bases do governo tentaram desmoralizar o movimento dos estudantes com argumentos do tipo "os alunos vão poder escolher o que estudar". Como se não soubéssemos que, na realidade, será a escola que escolherá qual área curricular será ofertada. Como se não soubéssemos que escolas periféricas terão o ensino ainda mais precarizado (RIBEIRO, 2015, p.1).

O ensino técnico e profissional engaja o sujeito para a preparação ou habilitação de forma rápida para o mercado de trabalho. Contudo, o contexto escolar deve ir muito além, incluindo as competências de flexibilidade funcional, criatividade, autonomia de decisões, autonomia intelectual e pensamento crítico, exigidos pela sociedade tecnológica atual e seu novo ambiente produtivo (DOMINGUES, TOSCHI e OLIVEIRA, 2000). Desta

228 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


forma, somente os/as estudantes que tiverem oportunidade de ingressar em uma universidade terá esse tipo de perfil e formação cultural, em sua maioria de classe média e alta, que não precisam trabalhar cedo. Esta perspectiva tende a amplificar um problema já antigo da educação média: a vulnerabilidade à desigualdade social, determinando a divisão social do trabalho entre proprietários e não-proprietários, entre pensadores e trabalhadores, legitimando a formação das classes sociais (CHAUÍ, 2012). Continuando a análise da propaganda, a seguir temos uma jovem segurando vários livros, falando “Quem conhece o novo ensino médio, aprova”, sendo destacada uma pesquisa no centro da tela, com os dizeres “Já é assim com 72% dos brasileiros” e embaixo, com letras menores “Fonte: pesquisa IBOPE nov. /2016”. Pesquisas são utilizadas pela mídia afim de passar veracidade ao seu interlocutor. Novamente tendo como foco o interdiscurso como categoria de análise, a Revista Rede Brasil Educação nos alerta que O Ibope entrevistou 1200 brasileiros em todo o território nacional, entre 30 de outubro e 6 de novembro. A pergunta feita aos participantes da amostragem foi: "O senhor é a favor ou contra a reformulação do ensino médio que, em linhas gerais, propõe ampliação do número de escolas de ensino médio em tempo integral, permite que o aluno escolha entre o ensino regular e o profissionalizante, define as matérias que são obrigatórias, entre outras ações?" (MILENA, 2016b, p.1).

Portanto, a pesquisa, além de levar o/a participante a aprova-la, trata de esconder uma discussão mais complexa acerca da reforma através da formulação da pergunta. Ainda na categoria de interdiscurso, trazemos a consulta pública feita pelo site do Senado Federal, que tem uma ementa que explicita todas as mudanças, em que 73.565 pessoas votaram contra a reforma, contra somente 4. 551 que votaram a favor (MEDIDA PROVISÓRIA nº 746, 2016). Ao fim da propaganda, vários/as jovens sorriem, com o narrador enunciando: “Acesse o site e saiba mais”, aparecendo o sítio Mec.gov.br, terminando com a logomarca do governo atual e os dizeres: “Ministério da Educação. Governo Federal. Ordem e Progresso”. Considerações Finais A análise do Discurso de linha francesa prevê o discurso como prática social e o texto como produto dessa prática social. Através da teoria da sintaxe (marcas linguísticas), teoria da ideologia (forças sociais) e a teoria do discurso (efeitos de sentido), possibilitados pela Análise de Discurso (AD), entendemos a palavra como signo ideológico por excelência (BASTOS, 2015, p. 38), ligada às situações vivenciadas pelos sujeitos dentro das classes sociais e variam de acordo com o contexto histórico, como no caso das propagandas da reforma do ensino médio, veiculadas pelo Governo Temer. A reforma do ensino médio, feita através da MP 765/2016 prevê uma série de mudanças, tendo o Governo Temer e o Ministério da Educação, em seu arcabouço uma série de ideias deturpadas e manipuladoras, tendo como instrumento as propagandas televisas, afim de convencer a população acerca da veracidade e justiça que a reforma traz. Contudo, no decorrer deste trabalho, se trata de uma grande manobra midiática, tendo a educação e os meios de comunicação como grandes aparelhos ideológicos do Estado. Conforme Saviani (2005) nos ensina “a escola, enquanto aparelho ideológico, é um instrumento da burguesia na luta ideológica contra o proletariado” (p. 31). A reforma do ensino médio, bem como suas propagandas, se configura enquanto violência simbólica, estabelecendo significações e impondo-as como legítimas, contrariando a Constituição de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), entre diversos outros documentos. O Ensino Médio deve ter como finalidade o aprofundamento dos conhecimentos vistos nas etapas anteriores, possibilitando o prosseguimento dos estudos no ensino superior, não tendo somente como alvo “a lógica da gestão empresarial da ‘eficiência’”. (MARINHO, 2012, p. 82). A educação média deve atualizar cidadãos e cidadãs acerca do saber histórico, social e tecnológico da humanidade, afim de estimular a criticidade sobre o trabalho alienado, o que evidentemente não é a finalidade desta reforma.

229 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Devemos deixar claro que não somos contra uma reforma educacional, uma vez que a educação pública brasileira e, especificamente o ensino médio, estão em crise. Somos contra esta reforma do governo ilegítimo, que para nós trata-se de uma antirreforma, uma vez que esta é uma manobra da classe dominante de continuar e perpetuar seu poder financeiro e intelectual, não produzindo uma transformação que a educação tanto precisa. Conforme a estudante secundarista Ana Júlia Ribeiro nos alerta [...] é hora de colocarmos no papel a experiência de uma gestão democrática nas escolas. Temos a consciência de que o poder é do povo. O poder é nosso e, por princípio, nos pertence. Temporariamente o emprestamos aos nossos governantes. Se eles não nos atenderem, nós o tomaremos de volta (2017, p. 1).

O currículo é uma instância importantíssima, a ser construída democraticamente, valorizando saberes adequados à realidade brasileira e ao seu tempo histórico, dissolvendo uma “concepção utilitarista da educação, centrada, na ótica das novas exigências do capitalismo neoliberal, negando a emancipação humana” (MARINHO, 2012, p. 81). Uma nova proposta deverá envolver os alunos e alunas em uma reflexão crítica da realidade social e política brasileira, afim de que construam uma sociedade emancipadora para todos (as). Referências ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Nota da ANPEd sobre a entrega da terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ao Conselho Nacional de Educação (CNE). 2017. Disponível em: <http://www.anped.org.br/news/nota-da-anped-sobre-entrega-da-terceira-versao-da-base-nacional-comumcurricular-bncc-ao >. Acesso em: 15 de abril de 2017. BASTOS, Neusa Barbosa. Análise do discurso em textos publicitários: pressupostos teórico-metodológicos. 2015. Rio de Janeiro: Idioma. Disponível em: <http://www.institutodeletras.uerj.br/idioma/numeros/28/Idioma28_a03.pdf>. Acesso em: 21 de fevereiro de 2017. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Avanços decorrentes dos programas sociais e educacionais implantados pelos Governos do Partido dos Trabalhadores. 2015. Disponível em: http://www.camara.leg.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?etapa=3&nuSessao=103.1.55.O&nuQuarto=105&nuOrad or=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=17:28&sgFaseSessao=GE%20%20%20%20%20%20%20%20&Data=12/05/2 015&txApelido=LUIZ%20COUTO&txFaseSessao=Grande%20Expediente%20%20%20%20%20%20%20%20%20%20 %20%20%20&dtHoraQuarto=17:28&txEtapa=Com%20reda%C3%A7%C3%A3o%20final. Acesso em: 10 de abril de 2017. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2012. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Capítulo III – Da educação, da cultura e do desporto. Seção I da educação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017. DIEESE. A inserção do (a) trabalhador (a) negro (a) no Ramo Metalúrgico. Confederação Nacional dos Metalúrgicos. 2015. Disponível em: <http://www.cnmcut.org.br/midias/arquivo/229-perfil-metalurgicos-negros-2015.pdf>. Acesso em: 10 de abril de 2016. FOCAULT, Michael. A Ordem do Discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. Edições Loyola. 15ª Edição: Junho 2007, São Paulo, Brasil, 1996. FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 49ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. – Notas: Ana Maria Araújo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. LOWY, MICHAEL. Da tragédia à farsa: O golpe de 2016 no Brasil. In: Porque gritamos golpe? Para entender o impeachment

230 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


e a crise política no Brasil. Boitempo Editorial. 1 ed. 2016. MAGALHÃES, Izabel. Análise do discurso publicitário. Revista da Abralin, vol. 4, nº 1 e 2. 2005. Disponível em:<http://www.abralin.org/revista/RV4N1_2/RV4N1_2_art8.pdf >. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017. MARINHO, Genilson. Educar em direitos humanos e formar para a cidadania no ensino fundamental. Coleção em Direitos Humanos, v. 1. São Paulo: Cortez, 2012. MILENA, Lilian. Especialistas desconstroem propaganda do MEC sobre reforma do ensino médio. Revista GNN. 2016a. Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/especialistas-desconstroem-propaganda-do-mec-sobre-reforma-doensino-medio. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017. MILENA, Lilian. Propaganda do MEC esconde erros e omissões da reforma do ensino médio. Revista Rede Brasil Atual. 2016b. Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2016/12/propaganda-do-mec-esconde-errose-omissoes-da-reforma-do-ensino-medio-8710.html>. Acesso em: 21 de fevereiro de 2017. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Dilma modifica projeto e promove a vinculação integral dos royalties. 2012. Disponível em:< http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/222-537011943/18275-dilma-modifica-projeto-e-promove-avinculacao-integral-dos-royalties >. Acesso em 10 de abril de 2016. MEGALE, Marina. Dilma diz que sofre '2º golpe' na vida e que Temer terá 'oposição incansável'. Folha de São Paulo. Brasília, 2016. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/08/1808888-dilma-diz-que-sofre-2-golpena-vida-e-que-temer-tera-oposicao-energica.shtml>. Acesso em 11 de mar. 2017. QUEEN, Mariana. Câmara aprova 10% do PIB para a Educação. Revista Nova Escola. Disponível em: <http://acervo.novaescola.org.br/politicas-publicas/aprovacao-10-pib-690955.shtml>. Acesso em: 10 de abril de 2017. RIBEIRO, Ana Júlia. O desmonte do ensino médio. Associação Nacional de História. Disponível em: < http://site.anpuh.org/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/4016-o-desmonte-doensino-medio>. Acesso em: 24 de fevereiro de 2017. ROSÁRIO, Maria do. O notório desconhecimento da reforma do Ensino Médio. 2016. Revista Carta Capital Online. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-notorio-desconhecimento-da-reforma-do-ensinomedio>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017. SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia. 2005. Cortez Editora. 4 ed.. Disponível em: < https://gepelufs1.files.wordpress.com/2011/05/escola-e-democracia-dermeval-saviani.pdf >. Acesso em: 24 de fevereiro de 2017. SENADO FEDERAL. Secretaria de Informação Legislativa. Lei Nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Disponível em:< http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=251273&norma=270661>. Acesso em: 21 de fevereiro de 2017. UBES – UNIÃO BRASILEIRA DOS ESTUDANTES SECUNDARISTAS. Experiência das ocupações deve ser levada em conta para mudar o Ensino Médio. 2017. Acesso em: <http://ubes.org.br/2017/experiencia-das-ocupacoes-deve-serlevada-em-conta-para-mudar-o-ensino-medio/ >. Acesso em: 13 de abril de 2017.

231 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


D I

ISCURSO,

I

MAGEM &

MAGINĂ RIO

232 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


233 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A

INTERTEXTUALIDADE IMAGÉTICA NA PRODUÇÃO DE SENTIDOS EM CHARGES CONTRA A DITADURA MILITAR

BRASILEIRA: A RECONVERSÃO DO OLHAR SOBRE ELAS

1

Weslley da Silva Sousa2 RESUMO Nosso objetivo é compreender como chargistas brasileiros no período da Ditadura Militar do Brasil (19641985) construíram “modos de dizer” através de seus trabalhos em protesto contra a Ditadura Militar brasileira. Acreditamos que muito já foi dito sobre charges que circularam como protesto contra a Ditadura Militar no Brasil, então nossa meta é tentar fazer uma “reconversão do olhar” sobre as mesmas, ou seja, tentar dizer algo de novo sobre esses trabalhos. Então pensamos na intertextualidade imagética na produção de sentidos em charges contra a ditadura militar brasileira como algo que diz muito sobre o período. Usaremos para tanto as noções conceituais de Discurso de Michel Foucault e Discurso Ideológico de Teun A. Van Dijk. Como método de análise nos aproximaremos da Análise Crítica de Discursos elaborada por Teun A. Van Dijk. Palavras-chave: Charges; Discursos; Ditadura Militar; Intertextualidades; Reconversão do Olhar.

Introdução “É das metáforas o reino líquido, fluido, escorregadio, profundo e perigoso da linguagem, onde a cada milha a palavra pode enroscar-se em tentáculos inesperados ou prender-se em ardilosos planctos” (Leila Micollis in A profissão dos peixes de Rubervam Du Nascimento).

N

osso objetivo é compreender como chargistas brasileiros no período da Ditadura Militar do Brasil (19641985) construíram “modos de dizer” através de seus trabalhos em protesto contra a Ditadura Militar brasileira. Acreditamos que muito já foi dito sobre charges que circularam como protesto contra a Ditadura Militar no Brasil, então nossa meta é tentar fazer uma “reconversão do olhar” sobre as mesmas, ou seja, tentar dizer algo de novo sobre esses trabalhos. Então pensamos na intertextualidade imagética na produção de sentidos em charges contra a ditadura militar brasileira como algo que diz muito sobre o período. Usaremos para tanto as noções conceituais de Discurso de Michel Foucault e Discurso Ideológico de Teun A. Van Dijk. Como método de análise nos aproximaremos da Análise Crítica de Discursos elaborada por Teun A. Van Dijk. Sobre (ACD) Dijk (2008) nos diz que uma de suas tarefas mais cruciais é explicar as relações entre discurso e poder social. Mais especificamente, tal análise deveria descrever e explicar como o abuso do poder é praticado, reproduzido e legitimado pelo texto e pela fala de grupos ou instituições dominantes (DIJK, 2008, p. 87) e Dijk (2008) continua definindo seu método de (ACD) ao dizer: “se o acesso ao discurso é uma medida de poder, a (ACD) se torna uma ferramenta de diagnóstico importante para a avaliação da dominância social e política” (DIJK, 2008, p. 96). Segundo Verón (1980) a pesquisa semiológica deve considerar ao menos três dimensões diferentes do princípio de intertextualidade: 1ª as operações produtoras de sentido são sempre intertextuais no interior de um certo universo discursivo; 2ª o princípio da intertextualidade é válido também entre universos discursivos diferentes e 3ª trata-se, no processo de produção de um certo discurso, do papel de outros discursos relativamente autônomos que, embora funcionando como momentos ou etapas da produção, não aparecem na superfície do discurso produzido ou terminado (VERÓN, 1980, pp. 79-80). Vamos nos “apoiar” nas três

1

Trabalho apresentado no GT 06 Discurso, Imagem e Imaginário do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: weslleysousa1985@hotmail.com 234 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


dimensões de intertextualidade refletida por Verón para compreensão do objeto, pois em algum momento uma completa a outra e todas se completam. Podemos pensar que a intertextualidade tornou-se a característica dominante da mídia contemporânea. Muitos dos textos lidos como distintamente pós-modernos são altamente alusivos, autorreferentes e irônicos. Eles conscientemente remetem a outros textos, na forma de pastiche, homenagem ou paródia, justapõem elementos incongruentes de períodos históricos, gêneros e contextos culturais diferentes e brincam com as convenções estabelecidas sobre forma de representação (BUCKINGHAM, 2000, p. 129). O homem de hoje, alfabetizado ou não, é bombardeado diariamente por uma grande quantidade de imagens que chegam aos seus olhos a cada instante. O homem urbano, mesmo alfabetizado e graduado, só aprende a semiologia de forma intuitiva ou especializada. As leituras que o homem comum faz de imagens dependem apenas de sua formação tradicional (LIMA, 1988, p. 13). Referencial Teórico Em As Palavras e as Coisas, logo no começo, Foucault analisa a tela, As Meninas, do pintor espanhol Diego Velázquez que foi filiado ao Barroco. Como o objetivo de Foucault em As Palavras e as Coisas é trabalhar com a gênese das Ciências Humanas no século XVI nada melhor do que começar o dialogismo com a tela de um pintor do período, já que parece que o objetivo de Velázquez em As Meninas é dar introspecção para a condição humana, mergulhando abaixo da superfície em busca de um sentimento de humanidade para retratar a arqueologia-gênese-genealogia das Ciências Humanas, que é justamente a proposta de Foucault na obra As Palavras e as Coisas. Com o objetivo de explicar o conceito de signo, significado e representação Foucault analisou a tela, As Meninas, de Velásquez. Representar é, grosso modo, fazer parecer real aquilo que não é. Nesse sentido, as imagens que representam um personagem têm por finalidade fazê-la de tal modo que possa parecer àqueles que a veem verossímil; seu talento é medido pela capacidade de cumprir essa tarefa. Representação significa: deixar aparecer, abrir-se em meio à clareira, desvelamento.

Fonte: Wikipedia

Foucault faz o mesmo em História da Loucura com o pintor holandês Hieronymous Bosch e sua tela Nau dos Insensatos. Bosch é um pintor do Renascimento Nórdico. Sua obra é inquietante, um verdadeiro caleidoscópio, por exprimir sensações que beiram o fantástico, os mistérios da mente humana, numa antevisão do Surrealismo. Bosch deu expressão a sua angústia em pinturas povoadas por monstros e cenários urbanos, onde a realidade e a fantasia se confundem. Em História da Loucura Foucault aborda a problemática da loucura na Idade Clássica, ou seja, depois do século XV que também é justamente a época que Bosch pintou Nau dos 235 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Insensatos, que é uma pintura com verdadeiras fantasias inventivas e também elementos da fantasia bizarra como um desfile de criaturas meio humanas, meio animais em um cenário fantástico com construções, parques e rios imaginários, que mais uma vez é a proposta de Foucault em História da Loucura.

Fonte: Wikipedia

Domingues (2009), em O Continente e a Ilha diz: “Foucault é um camaleão filosófico” (DOMINGUES, 2009, p. 79), ousamos dizer que Foucault foi um camaleão multidisciplinar. Foucault, como nenhum outro teórico contemporâneo, conseguiu explicar tão bem os problemas concernentes de sua época e, como bom epistemólogo que foi, estava a todo tempo nos indicando as novas formas de como fazer Teoria do Conhecimento. E uma das formas de trabalhar a Teoria do Conhecimento é através da Arte. O “recado” que Foucault está nos passando é que dá para explicar uma determinada realidade, uma determinada época, um determinando período de tempo por outros vieses, como o artístico, e não ficarmos presos a concepções tradicionalistas/positivistas de explicação da realidade. A obra de Foucault é muito vasta e ele entra em várias áreas, daí ser um camaleão do conhecimento, pois ele conseguiu dar conta de tão distintos ramos do conhecimento, mesmo que a priori não houvesse um “projeto” claro em sua produção intelectual de explicar tantas áreas distintas do saber. Em Foucault (1996) utilizaremos sua noção de discurso. Para o autor: A análise do discurso não desvenda a universalidade de um sentido; ela mostra à luz do dia o jogo de rarefação imposta, com um poder fundamental de afirmação. Rarefação e afirmação, rarefação, enfim, da afirmação e não generosidade contínua do sentido, e não monarquia do significante (FOUCAULT, 1996, p. 70).

A ordem do discurso e a formação das práticas discursivas são determinadas pelo lugar de produção do discurso. Cada lugar de produção do discurso define uma prática discursiva e ela é quem define o que pode ser dito, negado ou silenciado. Daí, portanto, se pensar a produção do discurso e a produção de sentido a partir do lugar onde ele é produzido. Para Foucault o discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interiorização silenciosa da consciência de si (FOUCAULT, 1996, p. 49). O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. A parte crítica da

236 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


análise liga-se aos sistemas de recobrimento do discurso; procura detectar, destacar princípios de ordenamento, de exclusão, de rarefação do discurso (FOUCAULT, 1996, pp. 10-69). A compreensão foucaultiana de discurso atravessa nossa proposta de pesquisa, pois uma das contribuições reconhecidas de Foucault encontra-se na importância que ele atribui à linguagem/discurso enquanto meio de apreender as transformações culturais, históricas e sociais (O’BRIEN, 2001, pp. 58-59). E como as formações discursivas (e no caso a produção de charges) acontecem no âmbito da linguagem podemos pensar na tríade: Discursos-Charges-Linguagens como formadoras de sentidos. Acreditamos que tudo acontece dentro da linguagem, já que nossas relações sociais se dão por atos linguísticos. E podemos refletir também que as formações discursivas são construídas por atos linguísticos. As manifestações linguísticas podem ser feitas de palavras e que por sua vez podem ser manifestadas em imagens. Essas imagens podem ser traduzidas em palavras. As imagens e as palavras são o “barro” a partir do qual o Ser humano foi criado. Segundo Dijk (1997) as ideologias são modelos conceituais básicos de cognição social, partilhados por membros de grupos sociais, constituídos por seleções relevantes de valores socioculturais e organizados segundo um esquema ideológico representativo de autodefinição de um grupo. Para além da função social que desempenham ao defender os interesses dos grupos, as ideologias têm a função cognitiva de organizar as representações sociais do grupo, orientando assim, indiretamente, as práticas sociais relativas ao grupo e, consequentemente, também as produções escritas e orais dos seus membros (DIJK, 1997, pp. 111-112). Conforme Dijk (2008) “o poder da mídia implica a exclusão de fontes alternativas de informação, informações alternativas e outros fatores relevantes na descrição dos acontecimentos mundiais” (DIJK, 2008, p. 78) pensemos, por exemplo, no jornal alternativo O Pasquim que foi um dos periódicos mais perseguidos pela censura durante a Ditadura Militar brasileira e que na sua equipe de criadores tinham os maiores cartunistas, chargistas e ilustradores brasileiros no período em que circulou. Diante do aumento crescente da repressão governamental alguns grupos de oposição como os cartunistas do jornal alternativo O Pasquim, passaram a resistir por meio do humor e da crítica inteligente. Em 1969 foi lançado o jornal alternativo O Pasquim, um jornal que, com humor e irreverência, tornou-se uma “pedra no sapato” do regime militar. Além de textos leves, engraçados e das entrevistas descontraídas, O Pasquim publicava charges e quadrinhos dos principais artistas brasileiros que trabalhavam com esse tipo de humor na época. O Pasquim foi um dos principais focos de resistência ao regime militar e várias vezes quase foi fechado pelas autoridades. Por perseguição política na época da ditadura militar brasileira no ano de 1969 foram presos os cartunistas Francis, Millôr, Ziraldo dentre outros. E para completar o raciocínio de Dijk (2008) ele continua: “os governos controlam a publicação e a disseminação de tais ‘vozes’ alternativas, limitando dessa maneira a liberdade de informação dos cidadãos ao proibirem, pressionarem ou marginalizarem a mídia ‘radical’” (DIJK, 2008, p. 78) e no caso do jornal O Pasquim mídia alternativa ou mídia nanica. Para nossa análise utilizaremos uma charge do cartunista brasileiro Jaguar e outra do também cartunista brasileiro Henfil que circularam durante a Ditadura Militar brasileira. Análise

Fonte: Google Imagens

237 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Verón (2005) disse: “A análise do discurso é, sempre e necessariamente, intertextual” (VERÓN, 2005, p. 159) podemos parafraseá-lo dizendo que as charges são, sempre e necessariamente, intertextuais. Nessa charge acima do cartunista Jaguar3 conseguimos captar várias intertextualidades como um trecho do poema de Carlos Drummond de Andrade “E agora José?”, podemos visualizar também uma espécie de menção a tela “Os retirantes” de Cândido Portinari e também a cachorra da imagem poderia ser uma menção a conhecidíssima Cachorra Baleia da obra “Vidas Secas” de Graciliano Ramos. A família retratada na charge mesmo que em estado de penúria não abandona o patriotismo e a “felicidade” em apoiar a seleção brasileira de futebol na campanha ao “Tri” na Copa do Mundo de Futebol realizada no México em 1970. Esse elemento é retratado com o pai da família ao segurar a bandeira do Brasil em uma mão e na outra mão segurando uma placa com os seguintes dizeres: “Avante Seleção”. O período da charge coincide com o do governo do General Médici que foi o período mais conturbado da Ditadura Militar brasileira (1969-1974), que para Reis: “Os anos 70, considerados e aperreados como anos de chumbo, tendem a ficar pesados como o material da metáfora, carregando para as profundezas do esquecimento da memória nacional” (REIS, 2000, p. 61). Foi o período onde houve o recrudescimento da censura, da repressão e da tortura como política de Estado e também e foi o período onde mais houve uso dos aparelhos ideológicos de comunicação como afirma Fausto (2001): As facilidades de crédito pessoal permitiram a expansão do número de residências que possuíam televisão: em 1960, apenas 9,5% das residências urbanas tinham televisão; em 1970 a porcentagem chegava a 40%. Por essa época, beneficiada pelo apoio do governo, de quem se transformou seu porta-voz a TV Globo expandiu-se até se tornar rede nacional e alcançar praticamente o controle do setor. A propaganda governamental passou a ter um canal de expressão como nunca existira na história do país (FAUSTO, 2001, p. 484).

Médici, o terceiro e mais brutal dos generais-presidentes, iniciou então um combate sem tréguas aos “terroristas” e os venceu. Nunca houve tanta censura à imprensa, nunca houve tanto cerceamento às liberdades individuais e de pensamento. E nunca se escutaram tão poucas críticas – a não ser quando espocavam os tiros disparados pela guerrilha urbana e rural (BUENO, 2003, pp. 373-376). O período do ditador Médici foi o “campeão” em censuras, repressões e torturas que Alves (1993) afirma: “Diante das primeiras ações de guerrilha urbana, a polícia política e os serviços secretos das Forças Armadas legitimaram a tortura porque não souberam combater os guerrilheiros pela inteligência […]” (ALVES, 1993, p. 101). O presidente Médici soube se aproveitar dos meios de comunicação para divulgar as ideias do regime ditatorial, que conforme Bueno (2003): “O general Médici era presidente durante a Copa de 1970 e não deixou de fazer uso político da maior conquista futebolística do Brasil. Deixando-se fotografar brincando com a Taça Jules Rimet assim que o time vencedor voltou para casa” (BUENO, 2003, pp. 375-376). Os militares usavam os discursos cinematográficos, musicais e radiofônicos dentre outros meios para propagação ideológica do período militar. Sobre o uso do discurso como propagação do ideológico Pinto (2002) comenta: “[...] O ideológico é uma dimensão necessária de todos os discursos, responsável pela produção de qualquer sentido social [...], pois o ideológico é principalmente um mecanismo formal de investimento de sentidos em matérias significantes” (PINTO, 2002, p. 46). No governo Médici o Brasil viveu o auge do ufanismo ideológico e propagava suas ideias e ideais com astúcias, dissimulações, estratégias e táticas como, por exemplo, a propagação do slogan BRASIL: AME-O OU DEIXE-O, que para Queiroz (2006): “Para algumas frações da juventude, a força que impulsiona para o lado de fora é poderosa, é imperativa e decorre do sugestivo 'Ame-o ou Deixe-o' dos governos militares” (QUEIROZ, 2006, p. 279). Foi forte a midiatização da vitória do Tricampeonato Mundial de 3

No início da década de 1960 passa a ser um dos principais cartunistas da revista Senhor, colaborando também na Revista Civilização Brasileira, no semanário Pif-Paf e nos jornais Última Hora e Tribuna da Imprensa. Lança sua primeira coleção em 1968, Átila você é bárbaro. No ano seguinte, funda o jornal O Pasquim com Tarso de Castro e Sérgio Cabral. É o único a permanecer até o fim da publicação, em 1991, quando passa a editar o jornal A Notícia. 238 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Futebol conquistado no México e também a reprodução constante nas emissoras radiofônicas da famosa marchinha de Miguel Gustavo “Pra frente Brasil”, que seria empolgante caso desvinculássemos do contexto obscuro em que foi composta. No governo Médici aconteceu o “milagre econômico brasileiro”, no qual houve uma grande expansão do consumo, crescimento industrial, investimento das multinacionais e a construção de “obras faraônicas” como a Ponte Rio-Niterói, a Rodovia Transamazônica, as usinas nucleares de Angra dos Reis e as usinas hidroelétricas de Itaipu no Paraná, de Tucuruí no Pará e Sobradinho na Bahia. Nesse o governo se aproveitou, ao máximo, das conquistas esportivas para tentar desviar a atenção dos brasileiros a não questionar o governo ditatorial, as conquistas esportivas foram: O Tricampeonato Mundial de Futebol, Éder Jofre campeão no Pugilismo, Maria Esther Bueno campeã no Tênis e Emerson Fittipaldi campeão no Automobilismo. Se refletirmos que uma das bases ideológicas da Ditadura Militar brasileira foi o pensamento positivista do filósofo francês Augusto Comte veremos que a exaltação ao herói, a pátria e ao soldado é marcante, conforme atesta Bueno (2003): Para Comte a melhor forma de governo era a ditadura militar “um governo de exaltação nacional exercido pelo povo”. O ditador comtiano, em tese, deveria ser representativo, mas poderia “afastar-se” do povo. Não é difícil entender por que os militares se apaixonaram pela tese (BUENO, 2003, p. 239).

A criação do herói como mito é imprescindível para consolidação de qualquer regime que tem que se utilizar dos aparelhos ideológicos para sua aceitação pela população. É como se a famosa frase de Bertolt Brecht: “Pobre do país que precisa de heróis” fosse invertida para se adequá-la ao regime militar e ficasse assim: “Pobre do país que precisa de Bertolt Brecht”, já que ele usava seu teatro como arma de conscientização e politização. E as ditaduras e ditadores não querem cidadãos conscientes e politizados, pois cidadãos detentores de consciência crítica são detentores da famosa máxima baconiana do Saber/Poder.

Fonte: Google Imagens

Essa charge simples e com poucos traços é do cartunista Henfil4. Essa notícia “Vlado! Saiu a anistia!” poderia ter sido comemorada pelas pessoas que combateram a Ditadura Militar brasileira, caso a pessoa a quem ela foi dirigida não estivesse morta pelo regime político vigente na época. Essa charge foi em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog que foi morto pela Ditadura Militar brasileira no ano de 1975. Na construção temos 4

A estreia de Henfil como ilustrador deu-se em 1964, quando a convite do editor e escritor Robert Dummond, começou a trabalhar na revista Alterosa, de Belo Horizonte, onde criou Os Franguinhos. Em 1965 passou a colaborar com o jornal Diário de Minas, produzindo caricaturas políticas. Em 1967, criou charges esportivas para o Jornal dos Sports, do Rio de Janeiro. Também teve seu trabalho publicado nas revistas Realidade, Visão e O Cruzeiro. A partir de 1968, passou a colaborar com o Jornal do Brasil e em 1969 com O Pasquim. 239 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


uma ironia ao anunciar a Lei da Anistia, no ano de 1979, a um cidadão morto no ano de 1975, já que morto não precisa de Lei de Anistia, pois seu exílio não é mais “nesse mundo”! A Lei da Anistia beneficiou tanto as vítimas do regime militar, quanto seus algozes. Foram “perdoados” os torturados e os torturadores. Recentemente na Comissão da Verdade a Lei da Anistia foi revista com relação a sua polêmica de beneficiar os torturadores, já que as maiores vítimas do regime foram os torturados. Durante muito tempo existia o medo do Comunismo se implantar no Brasil, porém entre as décadas de 1960/1970 esse medo foi amplificado, por isso existia o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), a Ação Anticomunista Brasileira (AACB) e a Vanguarda de Caça aos Comunistas (VCC). Os livros didáticos, que eram publicados no período da Ditadura Militar, atuavam no sentido de denegrir a imagem do Comunismo e dos comunistas. O governo brasileiro trabalhava no sentido de passar uma má imagem dos artistas, escritores, jornalistas acusando-os de serem desocupados e estarem a serviço do Comunismo. As produções discursivas são ao mesmo tempo controladas, selecionadas, organizadas e redistribuídas por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1996, pp. 08-09). Em 1975 Foucault estava no Brasil quando ocorreu à farsa da morte do jornalista da TV Cultura de São Paulo no DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) paulistano, Vladimir Herzog, Foucault indignado tenta fazer denúncias sobre esse fato no que é alertado com relação ao perigo de tal ato, pois o Brasil estava sob o regime militar. Mesmo estando sob uma ditadura Foucault fez declarações de repúdio ao regime militar após presenciar a prisão de diversos jovens enquanto ministrava um curso na USP (Universidade de São Paulo). Os militares tentaram convencer a população de que Vladimir Herzog tinha se suicidado, mas na verdade sabemos que foram eles que “suicidaram” o jornalista. E se não bastasse a morte do jornalista da TV Cultura de São Paulo em 1975, Vladimir Herzog, em 1976 o metalúrgico, Manoel Fiel Filho, também foi morto no DOI-CODI por se opor ao regime militar brasileiro. Mais uma vez a história se repetiu como farsa. Exemplo disso foi o que aconteceu com Líbero Badaró do Jornal O Observador Constitucional no Primeiro Reinado; com a tentativa de assassinato de Carlos Lacerda do Jornal Tribuna da Imprensa no Governo Vargas e com Vladimir Herzog da TV Cultura de São Paulo na Ditadura Militar brasileira. Constatamos com isso a luz de Marx que a história jamais se repete duas vezes da mesma maneira: a primeira vez é uma tragédia e a segunda vez é uma farsa. Entre as décadas de 1960/1970 os veículos de comunicação sofriam censura prévia. Muitos brasileiros criticavam o fato de os militares terem introduzido a censura prévia a jornais e livros e utilizavam a educação para se promoveram. Nas escolas, os professores eram forçados a ensinar as crianças a amarem os militares, a estudar e admirar seus feitos. As liberdades individuais foram diminuídas ou suprimidas, os jornais censurados, as greves e organizações de trabalhadores proibidos e os opositores reprimidos. Não havia liberdade de imprensa e eram proibidos os livros que criticassem o governo. E também era proibido pela censura falar de censura. Na representação ou no exercício do poder grupal, também é crucial o controle não apenas sobre o conteúdo, mas também sobre as estruturas dos textos orais e escritos. Dessa forma, ao relacionarmos texto e contexto, já vemos que os membros dos grupos poderosos podem decidir sobre os possíveis gêneros discursivos ou atos de fala de uma ocasião em particular (DIJK, 2008, p. 120). Considerações Finais As charges são desenhos que satirizam fatos específicos, em geral políticos, e que são do domínio público. Na primeira charge do cartunista Jaguar vemos uma denúncia ao ufanismo que o Brasil vivia no regime militar, e em especial, no governo do General Médici. As charges satirizam fatos políticos e nesse caso uma crítica ao governo Médici em que mesmo a população vivendo o milagre econômico, que só beneficiava poucos, ela continuava miserável. A conquista do Tri Campeonato Mundial de Futebol foi usada claramente para “acalmar” os ânimos da população civil que vivia o período mais repressivo de toda a Ditadura Militar brasileira. O povo não tinha dignidade, porém apoiava a seleção brasileira de futebol, ou seja, na concepção satírica do 240 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


cartunista Jaguar é como se ele tivesse nos perguntando ao fazer sua crítica: Para que o povo brasileiro precisa de dignidade se já somos dignos no futebol? As charges são desenhos de caráter burlesco que satirizam um fato do dia ou uma pessoa específica e tem caráter temporal. As charges têm caráter temporal. Acreditamos que elas também possuem um aspecto de atemporalidade, pois se formos refletir a charge do cartunista Henfil retratando a Lei de Anistia a uma pessoa que não foi beneficiada por ela (no caso o jornalista da TV Cultura de São Paulo Vladimir Herzog), que já se encontrava morto, podemos pensar no seu caráter de atemporalidade que se daria com pessoas que viveram o período e que tem imagens nas suas lembranças bem nítidas do período e também de pessoas que não viveram o período e que, no entanto, tiveram conhecimentos sobre o fato por alguma fonte de informação. O jornalista Vladimir Herzog foi perseguido e assassinado pelo regime militar por se opor ao governo de exceção e sua história está “gravada” na memória das pessoas que combateram o período ditatorial brasileiro. As charges são metáforas. E a metáforas acontecem no âmbito linguístico. Não dissociamos linguagem visual do campo metafórico, pois é nas metáforas que acontecem os imprevisíveis significados da linguagem e da imagem. E a reconversão do olhar sobre linguagem-imagem acontece a partir do momento em que as produções subjetivas contemporâneas focam em novos apontamentos para dizer algo de novo sobre a linguagem e sobre a imagem, sendo que este novo é constantemente ressignificado, reinventado e ressemantizado. Referências ALVES, Márcio Moreira. 68 Mudou o Mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História. São Paulo: Ática, 2003. BUCKINGHAM, David. Crescer na era das mídias eletrônicas. São Paulo: Edições Loyola: 2000. DIJK, Teun A. Van. Semântica do discurso e ideologia. In: PEDRO, Emília Ribeiro (org.). Análise Crítica do Discurso. Lisboa: Caminho, 1997. DIJK, Teun A. Van. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008. DOMINGUES, Ivan. O Continente e a Ilha: Duas vias da filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2009. FAUSTO, Bóris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2001. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. LIMA, Ivan. A fotografia é a sua linguagem. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988. O’BRIEN, Patricia. A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, Lynn (org.). A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PINTO, Milton José. Comunicação e Discurso: Introdução à Análise de Discursos. São Paulo: Hacker Editores, 2002. QUEIROZ, Teresinha. Juventude anos sessenta no Brasil: Modos e Modas. In: QUEIROZ, Teresinha. Do Singular ao Plural. Recife: Edições Bagaço, 2006. REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. VERÓN, Eliseo. A Produção de Sentido. São Paulo: Cultrix, 1980. VERÓN, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo, RS: EDUNISINOS, 2005.

241 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A CONSTRUÇÃO DOS ETHÉ DO AUTOR ABDIAS NEVES NO DISCURSO LITERÁRIO DA OBRA UM MANICACA1 Érica Patricia Barros de Assunção2 João Benvindo de Moura3 RESUMO Este trabalho objetiva analisar como é realizada a construção das diversas imagens, os ethé, do autor Abdias Neves através do discurso literário da obra Um manicaca (1985). Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, de cunho qualitativo e interpretativo, baseada nas teorias de Amossy, Maingueneau, e Mello. A Análise do Discurso Literário propõe-se a possibilitar uma assimilação da produção literária através de ferramentas discursivas. Assim, o texto literário, livre criação artística, possui discursos que exercem poder, representação e significado que estão sujeitos ao crivo da análise. Na narrativa, a retórica é responsável pelas ferramentas de persuasão que se apoiam na autoridade do enunciador, sendo o ethos um recurso discursivo centrado na construção da imagem de si. Nesta análise, percebemos que o autor Abdias Neves utilizou recursos discursivos de persuasão que contribuem para a construção dos seus ethé anticlericalista, cientificista e subversivo, fortemente caracterizado por uma gama de enunciações marcadas pelos ideais filosóficos da corrente literária realista-naturalista e pelo envolvimento do autor com o contexto sociocultural da época. Palavras-chave: Discurso Literário; Ethos; Abdias Neves; Um manicaca.

Introdução

T

endo a literatura como expressão artística caracterizada por uma linguagem peculiar pautada na liberdade de criação, a mesma é considerada como um discurso constituinte, regendo suas próprias regras em um campo determinado e embasada na sua autoafirmação e legitimação nos variados contextos sociohistóricos. O texto literário, visto como discurso, molda posicionamentos, exerce poder e está carregado de diversas representações, ideologias, posturas e significações, cabendo ao analista a exploração dos sentidos emanados do texto literário. A aproximação entre literatura e discurso surge da necessidade de contribuições para um estudo amplo do texto literário a partir de ferramentas discursivas. O discurso escrito ganhou destaque nos estudos da Análise do Discurso Literário com as contribuições do teórico francês, Dominique Maingueneau, que, entre outros conceitos, amplia a noção de ethos e analisa aspectos que perpassam a relação entre autor e obra. O autor do texto literário ganha destaque nos estudos de Maingueneau que traz à tona importantes considerações sobre o papel do autor dentro da Análise do Discurso Literário. Segundo Galinari (2005), o autor é aquele que “responde por ou se apropria de”, o “responsável pela enunciação” numa dada circunstância, aquele que detém e transmite os significados, que se encontra numa condição fronteiriça em que se dedica à arte criativa da escrita, ativando o contrato de comunicação aceito através da leitura e reivindicando para si autorialidade. Para Maingueneau (2006) a subjetivação do discurso literário se distingue entre três instâncias: a pessoa, que é o indivíduo que possui um estado civil; o escritor, que é o ator que estabelece uma trajetória dentro da instituição literária; e o inscritor, que é o sujeito da enunciação, é o enunciador que confere sentido aos termos consolidados através das cenas genéricas, sendo essas três instâncias indissociáveis e estando o criador no centro.

1

Trabalho apresentado no GT _______________ do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestranda na Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: ericapba@yahoo.com.br. 3 Pós-doutorando em Linguística na Universidade Federal de Minas Gerais. Professor da Graduação e Pós-Graduação em Letras da UFPI. Teresina-PI. Endereço eletrônico: jbenvindo@ufpi.edu.br. 242 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O autor possui um papel importante na difusão de valores e agentes sociais, pois contribui para a construção de um posicionamento. Ele explora e interfere nas condições estabelecidas para a criação literária garantindo o alcance dos objetivos de sua atividade criadora. Nesse sentido, pretendemos analisar o discurso literário da obra Um manicaca (1985), do escritor piauiense Abdias Neves, visando como se dá a construção da imagem do autor através dos seus enunciados discursivos literários do romance em questão e como as relações que o autor estabelece com a obra e o contexto sociocultural da época, que perpassa a mesma sustentando o posicionamento do autor, influenciam na construção desses ethé. Através de uma análise qualitativa e interpretativa, focamos na busca de elementos retóricos e discursivos presentes na obra que levam a formulação dos ethé de Abdias Neves em seu discurso literário. A análise aponta que o autor Abdias Neves utilizou recursos discursivos de persuasão que contribui para a construção dos ethé anticlericalista, cientificista e subversivo. Sendo que o ethos anticlerical é predominante no discurso do autor que se inscreve numa cenografia validada pelas enunciações a cerca da situação social e intelectual da sociedade teresinense e fortemente marcado por uma gama considerável de enunciações carregadas, principalmente, de um dos ideais filosóficos basilares da corrente literária realistanaturalista, o anticlericalismo, que também demarca o posicionamento do autor no discurso literário do romance Um manicaca. O discurso literário A análise do discurso literário é considerada uma linha originada da análise do discurso que, no âmbito da linguagem, possui ferramentas competentes para possibilitar uma melhor assimilação da produção literária. Os avanços teóricos na área da AD contribuíram para o desenvolvimento dos estudos que estreitam as relações entre discurso e literatura. Isso não significa dizer que a Análise do Discurso Literário funcionará como uma ponte entre as duas áreas, mas que poderemos ver a aplicabilidade de métodos de análise a um discurso que já possui uma área consolidada e estruturada, ou seja, é a luz teórica da AD focada em textos da área dos estudos literários. Segundo Mello (2005), embora surjam restrições quanto aos benefícios em relacionar as teorias da AD à literatura, a mesma oferece pontos de vista que viabilizam explorar e entender de forma esclarecedora a obra literária a partir de ferramentas discursivas. A linguagem literária é livre, pois não está sujeita às estruturas linguísticas da língua, sendo criação artística, exerce poder, representação e significado, que são observados pela Análise do Discurso Literário no intuito de amplificar o panorama teórico sobre a literatura. A análise do discurso literário considera o fato de que a instituição literária não pode ser desvinculada da enunciação que por sua vez alega seu espaço próprio. O discurso literário ao mesmo tempo em que busca um espaço para sua legitimação, não pode ser também desassociado do contexto social, do quadro da época que é retratado. Assim, a literatura estabelece seu significado na forma do seu conteúdo como forma de constituição. O discurso literário, como discurso constituinte, possui sua própria fonte legitimadora. Para isso, entendemos a constituição como processo pelo qual o discurso estabelece sua legitimidade e estabelece sua organização estrutural como texto. O texto literário é responsável pelas condições que levarão a sua legitimidade através da gama universal de sentidos emanados por ele: No sentido que lhe atribuímos o discurso literário não é isolado, ainda que tenha sua especificidade: ele participa de um plano determinado da produção verbal, o dos discursos constituintes, categoria que permite melhor apreender as relações entre literatura e filosofia, literatura e religião, literatura e mito, literatura e ciência. A expressão “discurso constituinte” designa fundamentalmente os discursos que se propõe como discursos de Origem, validados por uma cena de enunciação que autoriza a si mesma. (...) Os discursos constituintes são discursos que conferem sentido aos atos da coletividade, sendo em verdade os garantes de múltiplos gêneros do discurso. (MAINGUENEAU, 2006, p. 60 e 61)

243 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O discurso literário está incluído em determinado campo da produção verbal e dá significado aos atos da coletividade através de uma inseparável imbricação entre texto e enunciação. A análise do discurso literário, por sua vez, visa “explorar as múltiplas dimensões da discursividade, buscando precisamente explicar a um só tempo a unidade e a irredutível diversidade das manifestações do discurso”. (MAINGUENEAU, 2006, p. 38) Dentro dos estudos desenvolvidos na Análise do Discurso Literário, há a possibilidade de análise do ethos discursivo, a construção da imagem de si, que será o foco de nossa análise e será explorado na próxima sessão. O ethos discursivo A noção de ethos surge nos estudos da retórica com os postulados de Aristóteles. De acordo com o autor, a retórica é a arte da persuasão, sendo que há três meios pelos quais ela se estabelece através do discurso: ethos, que representa os fatores oriundos da moral do orador; pathos, que representa aqueles oriundos da forma emocional como se dispõe os ouvintes ao discurso do orador; e logos, que representa os que se originam no próprio discurso. Essas três manifestações são considerados como os pilares da argumentação, sendo que a construção do ethos é baseada na phronesis - a prudência, na arete - a virtude e na eunoia - a benevolência. (ARISTÓTELES, 2005) O ethos aristotélico é o meio pelo qual o orador estabelece a confiança e credibilidade através de seu discurso, ou seja, o ethos é construído pelas duas partes, o orador e o ouvinte. Para o autor, o caráter do orador é o fator persuasivo mais eficiente. A argumentação oral é tanto veiculadora de sentido, como possibilita a construção da imagem do orador de si mesmo. Desta forma, o ethos aristotélico está vinculado à enunciação, pois o leitor concebe a imagem do autor pelo que é enunciado e este se torna um sujeito de enunciação, a voz do enunciador. Temos desta forma, um ethos relacionado ao ato enunciativo e um construído pelo público. Todas as escolhas discursivas dizem algo sobre si e representam um posicionamento que guia a construção de uma imagem. Isso baseia a discussão sobre ethos que tem sua origem nos estudos do filósofo Aristóteles e vem sendo estendida para os estudos da AD. Para a Análise do Discurso, o ethos está relacionado à adesão dos sujeitos receptores do discurso que podem refutá-lo ou aceitá-lo. Segundo Amossy (2005), o que está implícito é suficiente para a construção de uma imagem e, querendo ou não, todo discurso carrega a imagem de quem o profere: Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma apresentação de si. (...) A apresentação de si não se limita a uma técnica apreendida a um artifício: ela se efetua, frequentemente, à revelia dos parceiros, nas trocas verbais mais corriqueiras e mais pessoais. (AMOSSY, 2005, p. 9)

No entanto, Maingueneau (2005), ao retomar a noção de ethos projetada por Aristóteles, propõe distanciamentos que amplificam a mesma dentro da perspectiva da Análise do Discurso. Assim, a noção de ethos para Maingueneau extrapola a tradicional noção retórica, pois o autor foca na recorrência desse fenômeno também em textos escritos, não apenas em textos orais, e em textos que não possuem estruturas típicas argumentativas. Além disso, essa noção centra-se mais no sujeito enunciador e no sujeito do qual se busca a adesão, como também no posicionamento discursivo. O autor ainda afirma que o ethos também se manifesta através de uma relação entre enunciação e corpo enunciante, pois o discurso escrito é dotado de um “tom”, com a mesma validade para o discurso oral, e essa vocalidade requer uma corporalidade, sendo ambas incorporadas à figura do fiador. Segundo Maingueneau (2008), a noção de ethos não está relacionada somente à oralidade, mas à escrita e ao “conjunto de determinações físicas e psíquicas ligadas ao “fiador” pelas representações coletivas estereotípicas” nas quais se apoiam os destinatários, sendo que “o “caráter” corresponde a um feixe de traços psicológicos” e “a corporalidade é associada a uma compleição corporal, mas também uma forma de vestir-se e de mover-se no espaço social” (p.18). 244 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A corporalidade do ethos baseia-se na necessidade do co-enunciador acompanhar a experiência do enunciador construindo para o mesmo um corpo material, pois a voz exige a materialidade que encontra respaldo nas rotulações sociais e culturais. O corpo que sustenta a ideia de encarnação de um discurso, o discurso que passa por um processo inevitável de corporação para conceber-se, para existir. Desta forma o autor descreve o processo de incorporação do ethos: O ethos faz passar esquemas que se supõe que agem à margem dos conteúdos, mas que impõem uma figura à fonte do Verdadeiro: o universo do discurso toma corpo ao colocar em cena um discurso que deve encarnar sua verdade por meio da enunciação, que não pode ser acontecimento e persuadir, a não ser que ela permita uma incorporação. (MAINGUENEAU, 2005, P. 91)

Segundo Amossy (2005) o ethos, na perspectiva de Maingueneau, é construído como um articulador, paralelo à cena de enunciação, pois o contexto que cerca tal construção tem suma importância para buscar a adesão. O tom do enunciador sustenta-se no caráter e na corporalidade de um ethos e isso permite que não ocorra a separação entre enunciação e o corpo. Assim, o ethos é dotado de um caráter, como já havia mostrado Aristóteles, mas também de uma corporalidade. Essa ideia da corporalidade do ethos está relacionada à capacidade do mesmo de se movimentar socialmente por meio de representações que podem carregar características estereotipadas positivas ou negativas que são reforçadas ou transformadas pela enunciação, levando a incorporação, ou seja, a forma como locutor toma essas representações, esses ethos, para si: (...) pode-se, com efeito, usar essa “incorporação” em três registros: - A enunciação da obra confere uma “corporalidade” ao fiador, dá-lhe um corpo. - O destinatário incorpora, assimila um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira específica de se relacionar com o mundo habitando seu próprio corpo. - Essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo, o da comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso. (MAINGUENEAU, 2006, p. 272)

Entretanto, Maingueneau (2005) frisa que o ethos não deve ser analisado como fenômeno independente dos fatores contribuintes para sua construção, de tal modo que, o enunciador se inscreve numa determinada conjuntura social e cultural que dão suporte a enunciações legítimas, ou seja, para o autor o ethos está inserido em uma estrutura de enunciação que ele chama de cena de enunciação, da qual o tal fenômeno não pode ser dissociado. A cena de enunciação é composta por três cenas: a cena englobante, referente ao tipo de discurso; a cena genérica, relacionada ao gênero do discurso; e a cenografia, que é o canal pelo qual a enunciação se legitima. Ainda segundo o autor, ethos é o produto da interação entre várias instâncias, entre elas: ethos prédiscursivo, imagem prévia; ethos discursivo constituído ethos mostrado: realizado através do discurso e ethos dito: realizado através de trechos do texto que exprimem a própria enunciação; e ethos efetivo, resultado da interação dos fatores anteriores como mostra o quadro abaixo:

245 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Fig. 1: As instâncias discursivas do ethos

Essa noção de ethos de Maingueneau é estendida também a seus estudos na linha do Discurso literário. Na construção do ethos escrito, a comunicação é estabelecida pela confiança entre os envolvidos. No caso da narrativa, a retórica é responsável pelas ferramentas de persuasão que se apoiam na autoridade do enunciador. Para isso, o autor pode utilizar argumentos exteriores e interiores ao discurso. O uso de tais ferramentas e o delineamento de estratégias argumentativas não garantem, como na construção do ethos aristotélico, o inquestionável e irrefutável êxito de aceitação. Cabe ao enunciador, então, estabelecer, através de um fiador, a legitimação da enunciação validando assim tal cena enunciativa. O enunciador pode, ainda, lançar mão do antiethos (MAINGUENEAU, 2006). Entra, aqui, o elemento de alteridade que sustenta o posicionamento do enunciador. Ao formular a imagem de si através do discurso, eu tenho um fiador que pode trazer à tona o discurso de um antifiador como base prerrogativa de escolhas, ocupando uma posição discursiva em detrimento de outra, ou seja, mostrar-se o que é pela imagem do que não é. O antiethos, desta forma, funciona como uma base de contraste e uma delimitação de posicionamento do enunciador que necessita esclarecer que imagem pretende construir de si mesmo. Procedimentos metodológicos Este trabalho é baseado em uma pesquisa bibliográfica, possuindo caráter qualitativo e interpretativo. Ao passo em que nos aprofundamos o contato com a obra Um manicaca (1985), do escritor piauiense Abdias Neves, também nos debruçamos em uma pesquisa bibliográfica apoiada nas contribuições teóricas de Amossy (2005), Aristóteles (2005); Maingueneau (2005, 2006 e 2008); e Mello (2005). Concentramo-nos nas ideias de Dominique Maingueneau por conta de sua larga e aprofundada contribuição aos estudos na área de Análise do Discurso Literário que nos ajudaram a endossar a nossa análise da construção dos ethé do autor Abdias Neves através de sua produção discursiva literária da obra em questão. Por ser uma obra que trata de questões polêmicas, motivo de marginalização da obra e do autor, procuramos aplicar tais teorias para tentar desvendar as relações que o autor estabelece com essa obra as relações entre criador e criatura. Após a apreensão de fatos da biografia do autor Abdias Neves, concretizamos a análise dos dados coletados na leitura da obra Um manicaca. Selecionamos os trechos que indicavam convergência com as teorias pesquisadas buscando identificar os elementos discursivos que caracterizam a formação das imagens do autor no discurso literário da obra, caracterizando tais ethé e a cenografia da obra, o papel do fiador, bem como as implicações dessas imagens no quadro retórico da obra, pautando-nos nos objetivos traçados.

246 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Análise dos ethé do autor Abdias Neves em Um manicaca O romance tem como linha norteadora as tensões do triângulo amoroso entre Júlia, seu esposo, Antônio de Araújo e seu amante, Luís Borges. Júlia casa-se contra a vontade em um casamento arranjado pelo pai, ao se tornar esposa, não aceita a vida que impuseram a ela, mantendo um relacionamento extraconjugal com um rapaz com o qual ela verdadeiramente desejara se casar. O termo central do título da obra, manicaca, deve-se a uma alcunha da época recebida pelos homens que não conseguiam dominar suas esposas e eram dominados por elas, como é o caso da personagem Antônio Araújo. A obra possui essa linha sequencial que acompanha os embates de um triângulo amoroso, mas há a forte presença das descrições que caracterizam a sociedade da época dando um lugar de destaque à cidade, como é típico dos romances realistas-naturalistas. O enredo da obra se baseia nas descrições de situações cotidianas, costumes, aspectos culturais e hábitos sociais característicos da sociedade teresinense do final do século XIX. Tais descrições são carregadas de críticas à estagnação social e intelectual em que se encontrava a cidade, sendo a mesma a grande protagonista da obra. No início do romance, o autor começa a descrever a cidade de Teresina que servirá como pano de fundo para o enredo da obra, descrições essas que vão ser recorrentes durante todo o romance. Ao iniciar as descrições carregadas de suas impressões e críticas, o autor dar início, consequentemente à construção da cenografia da obra sobre a qual se desdobrará os seus discursos literários e transparecerá o seu posicionamento literário-ideológico. No início do romance, o autor começa apresentando os aspectos físicos da cidade e vai até à organização social na qual a igreja ainda detinha algum controle sob os comportamentos e a rotina dos cidadãos, iniciando assim, a construção da cena narrativa na qual o autor pretende organizar seus discursos, bem como se posicionar. O autor nos apresenta o cenário da obra para o qual o co-enunciador é convidado a se transportar, há a especificação do tipo de ambiente no qual o leitor começa se imaginar inserido: ele adentra o seio da sociedade teresinense ao final do século XIX. Assim, o autor já inicia a obra validando a sua enunciação com uma cenografia para qual o leitor é deslocado. O escritor Abdias Neves, após entrar em contato com várias correntes filosóficas e cientificistas na sua formação em Bacharel em Direito na cidade de Recife, formula outro olhar para a sua cidade natal e esse olhar traz à tona problemas que prejudicariam os aspectos socioculturais, políticos e econômicos da sociedade da época. Dessa forma, influenciado por tais correntes, o escritor une-se a um movimento piauiense contra a Igreja Católica no início do século XX, na mesma época que começa a escrever o romance Um manicaca. Baseando-se nesses dados biográficos, temos o ethos pré-discursivo (prévio) do escritor, que repousa em traços de ideais filosóficos, cientificistas e anticlericalistas. O discurso inicial do autor é baseado em uma crítica à organização social da época, marcando o seu posicionamento que possibilita construir a imagem que o autor faz de si mesmo no discurso da obra. No início do romance, Neves começa a demarcar o seu posicionamento ideológico e estético-literário, bem como a construir os alicerces dos seus ethé discursivos. O tom delimitado pelo autor para a obra como um todo é sério e crítico. O autor inicia criticando, principalmente, os padres católicos que praticavam e incentivavam a intolerância a outras práticas que ameaçavam a hegemonia da Igreja, como a Maçonaria, desta forma, alienava os fiéis provocando a estagnação intelectual da maioria deles, que não liam livros proibidos pelos padres e não pensavam por si só. Além disso, o discurso aponta que os padres enriqueciam a custa do povo, sendo parciais no trato com as pessoas e contradizendo, até mesmo, o exemplo do próprio Cristo. O autor inicia, aqui, a construção do ethos anticlerical de um fiador que lhe garantirá a incorporação do mesmo pelo leitor: Fizera-se de uma intolerância feroz. Os maçons eram o diabo. O jornal da maçonaria, e o apanhava, queimava-o. (...) O padre é um ganhador: uma missa custa tanto; um batizado, tanto; um casamento tanto. Se o pobre não tem dinheiro, o filho morre-lhe pagão; não se casa na igreja; não se enterra. A igreja é uma para o pobre e outra para o rico. A questão é de dinheiro. Por que o padre não faz como Cristo? Cristo jamais vendeu os sacramentos. (NEVES, 1985, P. 24 e 25)

247 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Há um discurso direcionado a forma com a qual a religião se sobrepõe à razão e recusa os avanços científicos, se impondo como a única fonte de cura para os males da humanidade, levando até mesmo à morte. Esse discurso reforça a concepção de que a religião agravava o quadro de miséria e atraso em que vivia a população da época, firmando um entrelaçamento na formação dos ethé cientificista e anticlerical do fiador: Uma noite, tendo-se demorado, mais, encontrou a mulher ardendo em febre. Foi incansável. Esgotou os últimos recursos. Três dias depois, no entanto, ela morria, sozinha, porque na ocasião, o cabeça-chata, diante de um oratório improvisado, dirigia súplicas fervorosas aos santos, pedindo a saúde da estremecida enferma. (NEVES, 1985, p. 32)

O autor chega a tratar a religião como uma doença e não como a cura da humanidade, como pensavam a maioria. Em seu discurso ferrenho contra a Igreja, o autor compara a religião a uma moléstia grave que ataca o sistema imunológico dos indivíduos fragilizando-os, tornando-os vulneráveis e mais suscetíveis a serem abatidos pela lavagem cerebral que os faz crer nos preceitos religiosos de forma cega, impedindo, assim, a reflexão. A religião é, na visão do autor, a origem de grandes problemas para a sociedade e não a solução. Desta forma, o autor une, através do seu discurso, a formulação do ethos anticlerical, ao tomar a religião como algo tão danoso como uma doença, e, ao mesmo tempo, cientificista, percebido pela visão e termos utilizados para descrever os recursos usados pela religião para dominar os fiéis, solidificando a relação entre esse dois ethé: Entendia que a religiosidade é uma moléstia que se agrava e acaba por invadir todo o organismo, dominando-o, abatendo-o, lançando o doente para um misticismo que só adormece na adoração constante, nas sensações embriagadoras da música sagrada. (NEVES, 1985, p. 43)

Quanto à figura da mulher, bastante explorada nos romances brasileiros, o discurso do autor é direcionado para a concepção de que o poder ideológico da Igreja é alimentado pelas mulheres, que segundo o autor, são mais suscetíveis a tornarem-se as fiéis mais cativas pelo tempo que dedicam à religião. Nesta obra, o autor estrutura um discurso no qual estabelece uma relação muito forte entre mulher e religião, pois para o mesmo a religião ganha espaço e força com a massiva presença e envolvimento das mulheres: Quem dá vida à igreja é a mulher. O padre tem todo desejo de fanatizá-la, arrastando-a para a confissão que a humilha e a entrega à discrição espiritual do seu diretor; detendo-a na igreja o mais que pode, porque os perfumes que ali se queimam, a música enervante que se ouve, aquela meia-obscuridade entorpecem, pouco-a-pouco, a vontade mais dominadora, amolecem o caráter, fazendo de um temperamento impetuoso um temperamento frouxo; obscurecem, pouco-a-pouco, a razão, obstruindo a inteligência de milagres absurdos. (NEVES, 1985, p. 50)

Porém, ao mesmo tempo em que constrói esse discurso, em primeira instância, machista que traduz a condição feminina da época, ele também formula, através da personagem Júlia, um ethos subversivo. Insatisfeita com o casamento forçado, Júlia inverte a estrutura da relação de poder nas quais se sustentam os casamentos da época, controlando a casa, o comércio do esposo e a vida do esposo e da enteada. Não bastando, inicia uma relação extraconjugal. O fiador tomado pela personagem Júlia configura as rupturas sociais sugeridas pelo autor de não conformação com o que é imposto indicando a libertação intelectual para desenvolvimento social, ou seja, a incorporação da quebra de padrões sociais e intelectuais impostos: Agora que não precisava mais dele (Araújo) porque o amor de Luís Borges lhe bastava, odiava-o porque, diante da sociedade, era o senhor e ela escrava; odiava-o porque estava, para sempre, unida a ele por um contrato para o qual a sua aquiescência fora extorquida por meios violentos (...). Havia de ficar presa ao marido? Absolutamente, não. Fora vítima durante muitos anos. Era suficiente para castigo de sua fraqueza, cedendo à imposição do pai, sem cuidar nas obrigações a que a sujeitava esse casamento maldito. (NEVES, 1985, p. 81 e 146).

248 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


O autor coloca em contraposição fé e razão, inclinando-se para valorização do cientificismo e colocando em cheque as bases instáveis dos preceitos religiosos que guiam a vida dos fiéis. O discurso do autor denota a rivalidade entre ciência e religião que existia na época. O espaço limitado dado às novas ideias que estavam chegando da Europa devia-se ao fato de representarem uma ameaça à hegemonia religiosa em que se encontrava o catolicismo na cidade de Teresina, que para o autor, propiciava a estagnação sociointelectual. Neves acusa a Igreja de desmoralizar a ciência, pois quando esta incita os fiéis a questionar, põe em risco o poder de manipulação daquela, fazendo-se necessário um exercício coercitivo de descrédito e degradação das correntes cientificistas que se opõem ao domínio intelectual da Igreja influenciando na organização social. Esse discurso contribui para formação do ethos, predominantemente, cientificista e o fiador ganha corpo na figura do adepto à ciência que ataca a Igreja: O católico está, sempre, do melhor partido. (...) Tem, em último caso, um argumento irresistível: o milagre. Se a ciência o combate, pior para a ciência. (...) porque é preciso desmoralizar essa ciência pretenciosa e reduzir o adversário à inatividade. Se não é reduzido, ao menos, desmoralizado, a sua ação será mesmo temível. (NEVES, 1985, p. 59)

A personagem Praxedes é construída como base de apoio para o discurso anticlerical do autor. Recém-chegado à cidade de Teresina, Praxedes possui um curso de bacharelado, um diploma bastante valorizado pela sociedade da época e que permitia a intitulação de Dr. Praxedes. Dessa forma, essa personagem é vista como o alter-ego do autor que, baseando-se no respaldo conferido a figura de Praxedes e através da voz dessa personagem, desenrola o seu discurso crítico à Igreja, bem como afirma a formação de seus ethé anticlerical e cientificista. A voz do autor toma corpo na figura da personagem Praxedes e a incorporação desse fiador é muito importante para o alcance persuasivo do seu discurso literário. O fiador, representado na figura de Parxedes, é dono da voz que reforça fortemente a ideia de retrocesso e atraso, sempre ligada à dominação religiosa católica em Teresina ao final do século XIX. A situação dos adeptos ao catolicismo é comparada a do “homem primitivo”, ou seja, uma vida ainda baseada em suposições místicas instáveis. Ao propor que a razão e a ciência devem intervir nessa situação, o fiador fortalece a construção do ethos subversivo em que sugere a ruptura com as formulações religiosas para o avanço intelectual e cultural da sociedade da época. Essa subversão também sugere que esse discurso deve tomar corpo em uma alteração nas relações de poder proporcionando empoderamento ao cidadão que poderá deixar apenas aceitar os preceitos religiosos e refletir sobre sua situação tomando suas próprias decisões, ou seja, o alcance de liberdade intelectual. Essa incorporação permite a quebra de padrões impostos: O homem primitivo acreditava no poder de certas fórmulas e palavras mágicas: a devota, de hoje, acredita que certas palavras mágicas (orações) têm poder curativo. Interviesse a razão esclarecendo os fatos, e a ciência estudando as suas relações – e essas barreiras seriam transportadas. Todo interesse do padre, porém, é manter esse estado rudimentar. (...) É isto a educação religiosa, pensava o acadêmico – o desfibramento do caráter, o desprezo da vida, a indiferença pelo mundo, o asceticismo (...). (NEVES, 1985, p. 67)

O recurso do antiethos é utilizado pelo autor que dá voz à formulação do ethos oposto ao seu. Essa estratégia discursiva é elaborada de forma que o antiethos representa o posicionamento que não é tomado e criticado pelo autor, o religioso, marcando aquele que é tomado e defendido pelo mesmo, o anticlerical. O antiethos, aqui, é fortalecido pela figura do antifiador, um religioso, que ataca o cientificismo em defesa da Igreja, lançando mão do antigo paradoxo: fé x razão. O discurso do autor, aqui, baseia-se na argumentação de que a voz do antiethos caracteriza retrocesso que limita a tão desejada evolução social e intelectual, ou seja, há a contraposição do discurso cujo alvo é a persuasão pelo o que não deve ser seguido/feito/dito tomando as consequências maléficas da alienação fabricada pela Igreja. Essa alienação fica demarcada na intolerância a outras formas de

249 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


conhecimento que não o religioso, na vitimização resultante da ameaça que a ciência oferece ao poderio da Igreja e na própria reivindicação de uma nova Inquisição que representa uma ditadura religiosa: Aquilo é coisa desses ignorantes que vivem a escrever sobre tudo, servindo-se dos ataques à religião como reclamo para a sua meia-ciência. (...) É um Sr. Darwin que vem dizer que descendemos do macaco, é um Haeckel que vem combater a igreja em nome do monismo (...). Nem mesmo a religião escapou. Fundou-se o que chamaram “a ciência das religiões” para mostrar que derivam todas de um tronco comum. (...) Tudo isso nós católicos sofremos, de braços cruzados, sem poder seguir. Ah! Seu Chaves! Só a fogueira, só a Inquisição. Sem o Tribunal do Santo Ofício estamos perdidos, porque caminhamos para a corrupção a passos agigantados. (NEVES, 1985, p.106 e 107)

O autor reforça a construção do ethos cientificista através do discurso no qual explica, por meio do fiador da personagem Praxedes, que a ciência, ao contrário da fé, fundamenta-se em fatos, experiências concretas, tornando forte e irrefutável o seu discurso. Além disso, na construção desse ethos, o autor pretende fazer com o leitor incorpore a ideia de que a cidade precisa de mudanças, pois o monopólio da religião sobre a vida das pessoas atrasa o desenvolvimento da cidade, tanto social, como intelectual, já que a igreja não aceitava a diversidade de crenças na cidade, limitando assim, a liberdade de pensamento e o desenvolvimento intelectual: - É muito simples, explicou Praxedes. O atestado acusa como causa mortis uma meningite. Pois bem. É a moléstia dos místicos. A exaltação religiosa os predispõe, a causa mais simples, um traumatismo, uma infecção, a motiva. São os místicos, vocês não ignoram, verdadeiros doentes; vivem numa excitação cerebral perigosa; têm um cortejo de desordens observadas e registradas pela clínica médica. Vocês recordam-se? Essa rapariga era um caráter irritado, cheio de esquisitices, intolerante, opinioso e, ao mesmo tempo, infantil e instável. Não era, ainda, uma contemplativa no rigor do termo. Caminhava para isso. Em cumprimento a uma promessa jejuava dos dias na semana. Sei que passava, até tarde, de joelhos em orações. Os jejuns, portanto, as insônias provocadas a enfraqueciam e exaltavam dispondo-a para o êxtase, para as alucinações, para o delírio...Foi assim que nasceram as santas. O jejum, a insônia, o isolamento, as macerações, - ou seja, as duas palavras, o desprezo da carne – a subordinação de todos os sentimentos ao sentimento religioso, - é esse o cadinho de onde saíram as santas Teresa e os Vicente de Paula (NEVES, 1985, p. 148).

Considerações finais A presente análise do discurso literário do escritor Abdias Neves em sua obra Um manicaca, possibilitou-nos averiguar que o autor organiza seus discursos em função de uma crítica a estagnação social e intelectual em que se encontrava a sociedade teresinense que compõe a cenografia da obra, guiando-se pelas ideias em que se fundamentou o Realismo-Naturalismo literário no Brasil e definindo o seu posicionamento. Esse posicionamento do autor está intimamente ligado à construção dos seus ethé a partir de tais produções discursivas literárias. O estudo da construção dos ethé discursivos de Abdias Neves através do seu discurso literário, na obra em questão, nos aponta a formulação de um ethos predominantemente anticlerical, já que o posicionamento discursivo do autor é baseado na linha filosófica anticlerical, o que possibilitou que esse discurso fosse estruturado com um tom crítico. Identificamos, ainda, a construção do ethos cientificista, que também é base idealista da escola literária na qual o autor se encaixa, na defesa dos benefícios da ciência comparados com os efeitos danosos da religião para sociedade da época e o ethos subversivo movido por um forte desejo de mudanças sociais e arquitetado sobre um discurso de rupturas com padrões sociais, ideológicos e intelectuais impostos que acarretavam em atraso sociocultural. Apoiado nesses ethé e pela incorporação dos mesmos pelo leitor, o autor procura persuadi-lo de que a religião, que na época era a Católica, produzia comportamentos e efeitos danosos e que a mentalidade da sociedade teresinense necessita de mudanças e de ruptura com os padrões sociais, culturais e intelectuais 250 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


vigentes. O autor, em seus ethé mostrados, tem como foco a elucidação das origens das mazelas sociais atreladas às práticas religiosas católicas que acarretam no fanatismo e na alienação, privando os fiéis de pensar por si mesmos e questionar as injustiças sociais. O ethos efetivo do autor que, de acordo com Maingueneau, se dá pela articulação entre o ethos discursivo e o pré-discursivo (prévio), pode ser compreendido com uma firmação de um ethos anticlerical, cientificista e subversivo, sendo que esses não poderiam deixar de ser construídos diante do intenso envolvimento do autor com o contexto social da época em que viveu e com os ideais filosóficos na sua formação de bacharel em Direito que o propiciaram a refletir e criticar a organização social da sociedade na qual estava inserido. Referências AMOSSY, Ruth (org.). Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 9-28. ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa nacional – casa da moeda, 2005, p.45-62. GALINARI, Melliandro Mendes. A autorialidade do discurso literário. In: MELLO, Renato de. Análise do Discurso & Literatura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008, p. 11-29. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006. MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 69-92. MELLO, Renato de. Análise do Discurso & Literatura: uma interface real. In: MELLO, Renato de (org.). Análise do Discurso & Literatura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005, p. 31-44. NEVES, Abdias da Costa. Um manicaca. Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1985.

251 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


DISCURSOS SOBRE O AUTISMO: ESTRATÉGIAS DE CAPTAÇÃO EM UMA MATÉRIA PUBLICADA PELA REVISTA ÉPOCA1 Ismael Paulo Cardoso Alves2 João Benvindo de Moura3 RESUMO O jornalismo brasileiro tem exercido um importante papel na veiculação de informações sobre o autismo. Com base nisso, em nosso trabalho, nos propomos a analisar discursivamente uma matéria publicada pela revista Época sobre o transtorno. Nela, buscamos identificar as estratégias utilizadas pela revista para emocionar o público-leitor. Para isso, nos utilizamos dos conceitos de dispositivo da encenação da linguagem e estratégias de captação de Charaudeau (2014; 2015) e do trabalho de Emediato (2007). Em nossa análise, identificamos seis estratégias presentes na matéria intitulada “Um novo olhar sobre o autismo”. São elas: tematização, problematização, visualização, modalização enunciativa, descrição e narração. Entre os potenciais patêmicos, acreditamos que a matéria suscita no leitor, principalmente, interesse pelo tema, indignação diante da ineficácia do governo, esperança de desenvolvimento de habilidades de crianças com TEA diante dos tratamentos e solidariedade para com os pais de crianças diagnosticadas com o transtorno. Esperamos, com nosso trabalho, dialogar e contribuir com outras pesquisas sobre o tema. Palavras-chave: Autismo; Charaudeau; Discurso; Época; Estratégias de captação.

Introdução

C

om o advento dos estudos sobre discurso, a linguagem deixou de ser vista apenas como instrumento externo de comunicação e de transmissão de informação, para ser vista como uma prática discursiva entre os protagonistas dos discursos. As formas da língua oferecem-se aos falantes como virtualidades, que poderão ser postas em ação quando forem agenciadas nos atos de enunciação, o que equivale a dizer que, sem essas formas, a língua é apenas uma possibilidade. Entre os discursos que circulam na sociedade contemporânea estão aqueles que abordam a temática do autismo. O autismo é um transtorno que afeta, em maior ou menor grau, o desenvolvimento psicomotor de crianças, jovens e adultos no mundo. Infelizmente, ainda não se sabe as suas causas: se comportamental, ambiental ou genético. Todavia, nos últimos anos, tem crescido o número de pesquisas científicas sobre o tema, que buscam oferecer não só respostas sobre sua etiologia como também tratamentos adequados para o desenvolvimento de pessoas com TEA. Em meio a isso, o jornalismo brasileiro, como veículo difusor de informações, tem exercido um papel importante na divulgação de matérias sobre o autismo: o que é, características típicas, novas formas de tratamento, descobertas na área da Ciência... etc. Tendo em vista isso, em nosso trabalho, nos propomos a analisar, discursivamente, uma matéria publicada pela revista Época sobre o transtorno. Mais especificamente, buscamos identificar as estratégias adotadas pela revista para emocionar o público-leitor.

1

Trabalho apresentado no GT 06 – Discurso, Imagem e Imaginário do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras na Universidade Federal do Piauí, na cidade de Teresina, no estado do Piauí, na área de Estudos da Linguagem sob a orientação do professor doutor João Benvindo de Moura. Endereço eletrônico: ismael.cardosoalves@hotmail.com 3 Pós-doutorando em Análise do discurso pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor adjunto da Universidade Federal do Piauí, na cidade de Teresina, no estado do Piauí, e coordenador do núcleo NEPAD. Endereço eletrônico: jbenvindo@ufpi.edu.br. 252 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Fundamentação teórica Para a fundamentação teórica de nosso trabalho, adotamos a teoria semiolinguística de Charaudeau. Charaudeau (2014), em seu livro “Linguagem e discurso: modos de organização”, no capítulo “Problemas de abordagem na análise do discurso”, define a semiolinguística como um campo que integra duas antinomias, a saber, “do que nos fala a linguagem” e “como nos fala a linguagem” (p. 20, grifos do autor). Relacionando, especificamente, ao nosso objetivo de pesquisa, isso significa que, nessa linha, o analista, ao se deter sobre o discurso (do que nos fala a linguagem), tem como intuito identificar as intenções e as estratégias adotadas por seu produtor (como nos fala a linguagem). Ilustra isso, o excerto abaixo: O campo semiolinguístico integra essas antinomias. O ato de linguagem não pode ser concebido de outra forma a não ser como um conjunto de atos significadores que falam o mundo através das condições e da própria instância de sua transmissão. (p. 20)

Dentro dessa linha, compreender “do que” e “como” fala a linguagem exige do analista uma delimitação clara das condições de produção e da instância de produção do discurso. Para que isso seja possível, nos capítulos “O ato de linguagem como encenação” e “Princípios de organização do discurso”, o autor nos apresenta um modelo a que intitula de “Dispositivo da encenação da linguagem” (pp. 52 e 77). Esse dispositivo se caracteriza por ser um espaço de troca entre interlocutores, do qual o produtor se dirige ao receptor, tentando influencia-lo por meio de estratégias. Vejamos como se caracteriza esse dispositivo na figura 01:

Figura 01: Dispositivo da encenação da linguagem (CHARAUDEAU, 2014, p. 77)

Como podemos ver, o dispositivo é um mecanismo complexo, composto por um espaço externo e um outro espaço interno, do qual participam quatro sujeitos. Charaudeau (2001), no capítulo “Uma teoria dos sujeitos da linguagem”, afirma que o sujeito não existe na realidade, devendo ser visto pelo analista como uma abstração, ou seja, apenas como um elemento do dispositivo da encenação da linguagem. Nas palavras dele: O sujeito não é pois nem um indivíduo preciso, nem um ser coletivo particular: trata-se de uma abstração, sede da produção/interpretação da significação, especificada de acordo com os lugares que ele ocupa no ato linguageiro. (p. 30, grifo do autor)

Para a teórico, há entre os sujeitos, do dispositivo de encenação da linguagem, uma relação simbólica de parceria, que lhes permite o protagonismo. Tal parceria consiste no acordo estabelecido, explícita ou implicitamente, entre o sujeito comunicante (EUc) e o sujeito interpretante (TUi), e se baseia em três componentes, a saber, comunicacional, psicossocial e intencional. Nas palavras do autor:

253 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Na interação linguageira, vemos dois parceiros: o sujeito comunicante (EUc) e o sujeito interpretante (TUi), implicados no jogo que lhes é proposto por uma relação contratual. Essa relação contratual não se baseia nos estatutos sociais dos parceiros, do lado de fora da situação linguageira. Ela depende do “desafio” construído no e pelo ato de linguagem, desafio este que contém uma expectativa (o ato de linguagem vai ser bem sucedido ou não?). Isso faz com que os parceiros só existam na medida em que eles se reconheçam e se construam uns aos outros com os estatutos que eles imaginam. (p. 30, grifos do autor)

Estabelecida a relação simbólica entre EUc e TUi, o sujeito comunicante é autorizado ou impelido a expressar-se. Ao fazer isso, ele se dirige ao sujeito interpretante com base na imagem que tem dele. Essa imagem se baseia na situação de comunicação e é anterior ao ato discursivo em si, visto que ele só passa a existir, de fato, quando EUc enuncia. Contudo, por se tratar de um espaço de troca, não só EUc tem uma imagem de TUi, mas, à medida que o sujeito comunicante discursa, o sujeito interpretante cria uma imagem dele. Com base nisso, podemos constatar que, para o teórico, importa para o analista deter-se sobre as imagens criadas por esses dois sujeitos, visto que são elas que exercem, no espaço discursivo, o papel de protagonistas. Embasa nosso raciocínio, o excerto abaixo: Na interação linguageira, somos confrontados com dois protagonistas: o sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário (TUd), que se definem como seres de fala da encenação do dizer, produzida pelo EUc e interpretada pelo TUi. Estes seres de fala assumem diferentes faces de acordo com os papéis que lhes são atribuídos pelos parceiros do ato de linguagem em função da relação contratual. (p. 32, grifos do autor)

Logo, podemos concluir que o sujeito destinatário (TUd), que é a imagem que EUc tem de TUi, é o responsável pelo projeto de fala do sujeito comunicante, e o sujeito enunciador (EUe), que é a imagem que TUi cria de EUc, é o responsável pelo sucesso ou fracasso desse projeto. Charaudeau (2015), em seu livro “Discurso das mídias”, no capítulo “Quem informa quem? A identidade das instâncias de informação”, delimita os sujeitos externo e interno do dispositivo da encenação da linguagem midiática. Segundo o autor, os sujeitos externos desse dispositivo são o corpo jornalístico e o público. É o corpo jornalístico que pesquisa, coleta, edita e publica o discurso, do qual faz parte o jornalista, que assina a matéria. Por conta disso, é o jornalista quem ocupa maior destaque dentro desse corpo, de acordo com o teórico. “Nessa instância, o jornalista [...] não é o único ator, mas constitui a figura mais importante” (p. 73). Já os sujeitos internos desse dispositivo são o jornal, a que o analista designa de “instância midiática” (“Reservamos a designação ‘instância midiática’ à instância global de produção que integra diferentes atores que contribuem para determinar a instância discursiva”, pp. 73-74) e o leitor. Sobre o que acabamos de expor e o papel do discurso midiático, ainda no mesmo capítulo, o autor afirma: [...] a comunicação midiática põe em relação duas instâncias: uma de produção e outra de recepção. A instância de produção teria, então um duplo papel: de fornecedor de informação, pois deve saber fazer, e de propulsor do desejo de consumir as informações, pois deve captar seu público. A instância de recepção, por seu turno, deveria manifestar seu interesse e/ou seu prazer em consumir tais informações. (p. 72)

Fornecer informação e promover o desejo de consumi-la constitui a finalidade contratual do dispositivo da encenação da linguagem que une o sujeito comunicante ao sujeito interpretante. Charaudeau (2015), no capítulo “Informar para quê? A finalidade do contrato”, reflete sobre as estratégias utilizadas pelo jornalista. De acordo com ele, em seu projeto de fala, o sujeito comunicante se utiliza de estratégias contextuais e discursivas. Contextuais: o ethos prévio do jornal e do jornalista. Discursivas: a veracidade, a pertinência e os efeitos de dramatização da matéria, visto que, segundo o analista, o leitor não busca apenas saber sobre algo, mas também sentir. Além disso, é uma forma de sobrevivência do jornal, mediante à concorrência. Corrobora com isso, o excerto abaixo:

254 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A finalidade do contrato de comunicação midiática se acha numa tensão entre duas visadas, que correspondem, cada uma delas, a uma lógica particular: uma visada de fazer saber, ou visada da informação propriamente dita, que tende a produzir um objeto de saber segundo uma lógica cívica: informar o cidadão; uma visada de fazer sentir, ou visada de captação, que tende a produzir um objeto de consumo segundo uma lógica comercial: captar as massas para sobreviver à concorrência. (p. 86, grifos do autor)

Emediato (2007), no capítulo “As emoções da notícia”, elenca seis estratégicas utilizadas pelo corpo jornalístico para informar e captar a atenção do público. São elas (pp. 295-308): Emoção e tematização; A emoção pela problematização; Emoção e visualização; A emoção pela modalização enunciativa; Emoção e descrição; e Emoção e narração. A primeira estratégia consiste na escolha do tema, mais especificamente, em seu recorte. Aqui, o que o sujeito locutor e, principalmente, o sujeito interpretante avaliam é a pertinência do tema. Se avaliada positivamente, o público se interessará pela notícia. Caso contrário, não. Se, de um lado, a tematização alimenta e reforça a demanda de informação do leitor, sua vontade de saber, de outro, a instância jornalística a atualiza considerando que o quadro temático apresentado é aquele pelo qual esse leitor nutre um afeto particular, um desejo singular que reconhece o tema como pertinente e legítimo enquanto unidade cultural própria a seu grupo de pertencimento. (p. 295)

A segunda estratégia consiste nas informações presentes na notícia. Essas informações se baseiam naquilo que o corpo jornalístico presume que o leitor já sabe (tema/informação velha) e ainda desconhece (rema/informação nova). Nessa estratégia, surgem as implicações, problematizações sobre o tema. Vamos nos concentrar aqui sobre a operação de rematização que, em essência, se ocupa de associar ao tema um dado factual supostamente novo. Ao fazê-lo, o leitor se vê orientado em direção a um lugar de interpretação previsto dentro do sistema de informação, ou seja, a figura do leitor sugere uma direção para a problematização. Esta operação consiste em apresentar uma informação nova a propósito do objeto temático colocado em um contexto produzindo, assim, implicações contextuais. (p. 298, grifos do autor)

A terceira estratégia consiste em ilustrar algumas das informações presentes na notícia. Nesta, fotografias, gráficos e tabelas são utilizadas para chamar a atenção do leitor e, também, para torna-lo “testemunha do real”, de modo que ele possa visualizar e, ao mesmo tempo, experimentar o que está sendo noticiado. Um real se torna mais próximo ao ganhar visibilidade [...]. Uma imagem humana que olha o telespectador como um encontro face-a-face, um corpo, uma focalização, foco em bocas, em olhos, em ombros, em pernas, em homens, mulheres, crianças, vítimas de guerras, em animais nunca apreciados tão de perto, em objetos inanimados, em um carro, em um lago, em um edifício, em uma cidade, em um avião, um mundo mostrado que se apresenta esteticamente ao olhar contemplativo e apreciativo de um espectador. (pp. 301-302)

A quarta estratégia consiste no posicionamento tomado pelo sujeito locutor perante a notícia. Esse posicionamento pode ser de distanciamento (enunciado objetivo) ou de envolvimento (enunciado subjetivo). Entre as formas de distanciamento citadas pelo autor, está o discurso relatado. Charaudeau [...] propõe uma descrição da organização enunciativa em três atos locutivos: atos elocutivos, alocutivos e delocutivos. Eles colocam em evidência a relação que o locutor mantém, respectivamente, com o seu próprio dito, com o interlocutor e com o mundo. Cada um dos atos locutivos é expresso por uma modalidade que o especifica. Por exemplo, os atos elocutivos podem ser expressos pelas modalidades da opinião, do querer, do engajamento etc.; os alocutivos pelas modalidades da ordem, da interrogação, da sugestão, do conselho etc.; e os delocutivos pelas modalidades da asserção e do discurso relatado. (pp. 302-303, grifos do autor)

255 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A quinta estratégia consiste em descrever os elementos que compõem a notícia: seres, lugares e/ou objetos. Para isso, faz-se uso de recursos, como a nomeação, por meio de substantivos, a qualificação, por meio de adjetivos, a localização, por meio de advérbios, e a quantificação, por meio de números. Descrever consiste em dar existência aos seres através do discurso, nomeando-os através da identificação específica (nomes próprios) ou genérica (nomes comuns globalizantes ou exemplares), qualificando-os, localizando-os no tempo e no espaço, quantificando-os de forma precisa ou imprecisa. (p. 305, grifos do autor)

A sexta, e última, estratégia consiste no relato do evento noticiado. Para isso, são apresentados os elementos supracitados (seres, lugares e/ou objetos). Estabelece-se, entre esses elementos, explícita ou implicitamente, relações de causa e consequência, que podem, potencialmente, suscitar, no público, avaliações do tipo morais. A organização narrativa é um espaço rico em potencial patêmico. Isso decorre [...] pelo próprio fundamento simbólico da ação de narrar que, conforme ressalta Charaudeau, não se limita a descrever uma sequência de ações. [...] Além disso, os enunciados narrativos provocam uma tensão dentro do universo narrado, pois o torna dinâmico e sujeito a mudanças e implicações. [...] Toda ação recebe um valor moral, transformando-se, assim, em um objeto indutor de emoção. (pp. 306 e 307, grifos do autor)

Em nosso trabalho, veremos como essas seis estratégias aparecem em uma matéria publicada pela revista Época sobre o autismo e seus possíveis efeitos patêmicos (“fazer sentir”, de Charaudeau, 2015) sobre o sujeito interpretante. Análise dos dados Para a análise dos dados, selecionamos uma matéria publicada pela revista Época sobre o autismo. A reportagem, intitulada “Um novo olhar sobre o autismo”, foi publicada em 2007 na edição de nº 473 da revista e encontra-se atualmente disponível no site revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR776448055,00.html. Em vista de sua extensão, não pudemos reproduzi-la na íntegra em nosso trabalho. Ao invés disso, optamos por excertos que, acreditamos, melhor ilustram as estratégias de captação presentes em nosso objeto de análise. Emoção e tematização A primeira estratégia consiste na delimitação clara do tema. Em nossa análise, verificamos que o tema aparece explícito tanto no título da matéria quanto na subseção em que ela se encontra disponível no site da revista. Vejamos como isso acontece na figura 02.

Figura 02: Título e subseção da matéria (ÉPOCA, 2016)

256 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Por se tratar de um texto virtual, só é possível acessar essa matéria por meio de busca. Em vista disso, para que se tenha acesso a esse texto especificamente, os leitores precisam fazer uso de ferramentas de pesquisa disponibilizadas pelo próprio site ou fora dele (Google, por exemplo), fazendo uso de palavraschave, sendo “autismo” a palavra principal. A matéria também está disponível no formato impresso, contudo, diferentemente do texto virtual, o seu acesso não é tão simples assim. O leitor, nesse caso, precisa fazer uma triagem, verificando se no sumário da edição impressa, está a matéria de seu interesse. Trata-se de um trabalho cansativo e, muitas vezes, insuficiente, principalmente, se compararmos com as ferramentas de pesquisa disponíveis na internet, que oferecem um rol de links de acesso a matérias sobre o tema. Tendo em vista isso, o leitor precisa delimitar bem as matérias às quais fará leitura, visto que corre o risco de “perderse” entre tantos textos. Em nosso objeto de análise, supomos que a expressão “um novo olhar” tenha o potencial patêmico capaz de despertar a atenção do leitor, suscitando-lhe interesse sobre o texto, fazendo com que opte pela leitura dessa matéria. A emoção pela problematização A segunda estratégia consiste nas informações que estão presentes no texto. Essas informações aparecem, de forma genérica, no subtítulo da matéria. Vejamos como isso acontece no excerto abaixo: (1) Com mais informações sobre o distúrbio, médicos calculam que o Brasil pode ter 1 milhão de casos não diagnosticados. (ÉPOCA, 2016)

Por meio da palavra “mais”, para o leitor, fica subentendido que ele encontrará tanto informações já conhecidas quanto informações novas sobre o tema. Corrobora com isso, o excerto abaixo: (2) Os Estados Unidos viviam uma situação parecida com a do Brasil até o início da década de 80. Então a Associação Psiquiátrica Americana decidiu tornar mais abrangentes os parâmetros para o diagnóstico do distúrbio (informação nova) - e o país viveu uma campanha de informação para detectar o problema. Como aqui, a maioria dos médicos tinha a imagem estereotipada do autismo: considerava autista apenas a pessoa totalmente incapaz de interagir socialmente (informação já conhecida). (Idem, grifos nossos)

(Antes de darmos continuidade a nossa análise, consideramos pertinente situar o leitor sobre a expressão “situação parecida”. Ela se refere, na matéria, à falta de preparo dos médicos brasileiros no diagnóstico do autismo, principalmente, na infância. Feito isso, voltemos à nossa análise). Se juntarmos as orações destacadas no excerto acima e transformamos em um único período, ficará mais fácil entender a relação entre informações já conhecida e nova. Vejamos como ficaria no excerto abaixo: (3) Porque a maioria dos médicos tinha a imagem estereotipada do autismo: considerava autista apenas a pessoa totalmente incapaz de interagir socialmente, a Associação Psiquiátrica Americana decidiu tornar mais abrangentes os parâmetros para o diagnóstico do distúrbio.

Consoante a isso, chamou-nos a atenção a informação presente no subtítulo da matéria de que “médicos calculam que o Brasil pode ter 1 milhão de casos não diagnosticados”, visto que a locução verbal “pode ter”, ao invés de exprimir certeza, exprime seu sentido contrário. Por conta disso, há aí uma problematização do tema, visto que, aliado à falta de preparo dos médicos brasileiros no diagnóstico do autismo, não se sabe precisamente quantos autistas existem em nosso país. Essa informação possui o potencial patêmico de provocar no leitor indignação, visto que, em nosso país, não existe até hoje um censo sobre o número de pessoas diagnosticadas com o transtorno. Confirma nossa asserção, o excerto abaixo:

257 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


(4)

“Não há nenhum estudo sério sobre o número de autistas no país”, diz (Estevão Vadasz, coordenador do Projeto Autismo no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo). “Mas suspeita-se que haja um milhão de casos ocultos”. Essa estimativa é uma suposição com base no número de casos dos Estados Unidos. (Idem)

Emoção e visualização A terceira estratégia consiste nas imagens presentes no texto. No total, são nove o número de imagens. Nelas, são retratadas três crianças (todos meninos, sendo dois gêmeos idênticos) e dois adolescentes autistas (uma do sexo masculino e a outra do sexo feminino), uma mãe e uma terapeuta. Além deles, há uma mulher intitulada como “paciente”. Contudo, na matéria, não fica claro se ela é autista ou não. Em vista da extensão de nosso trabalho, analisaremos apenas a imagem presente na figura 03.

Figura 03: Imagem presente no início da matéria (ÉPOCA, 2016)

A imagem acima representa o estereótipo clássico do autismo: um menino (em média, a cada cinco crianças diagnosticadas com TEA, quatro são do sexo masculino) brincando sozinho (dificuldade do autista em socializar com adultos e outras crianças) com um balão. Ao analisarmos essa imagem, chamou-nos a atenção o fato de que a criança está sozinha em um dos cômodos da casa. Embora se trate apenas de uma hipótese, acreditamos que a intenção da revista ao retratar a criança assim é comover o leitor, visto que, do modo como é retratado, Rafael é igual às outras crianças. Chamou-nos a atenção também o movimento de direção da criança (saindo do cômodo vazio) e a oração “ele é estimulado o tempo todo a sair de seu mundo”. Acreditamos que a relação multimodal entre os dois textos possui o efeito patêmico de provocar no leitor a esperança de que os autistas, representados por Rafael na imagem, possam, com o tratamento adequado (subentendido por meio da palavra “progressos”), viver como as outras crianças neurotípicas. A emoção pela modalização enunciativa A quarta estratégia consiste no distanciamento do jornal sobre seu discurso. Em nossa análise, observamos o emprego excessivo do discurso direto, o qual ilustramos nos excertos abaixo: (5) “Os médicos não conseguem reconhecer os sintomas do autismo porque não são preparados para isso”, diz a psiquiatra da infância e da adolescência Rosa Magaly Moraes. (Idem)

258 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


(6) “Não existe cura”, diz J.S.O., de 20 anos. “Autismo é uma maneira diferente de ser. Mas sei que cheguei aonde cheguei porque tive quem olhasse por mim”. (Idem) (7)

“Entre pais de autistas, costumamos nos referir ao dia do diagnóstico como ‘o dia em que o chão se abriu’”, diz a advogada Alessandra Camargo Ferraz, de 37 anos, mãe de Rafael. (Idem)

Ao fazer uso das aspas (“”), de verbos elocucionais (“diz”) e da explicitação dos sujeitos enunciadores (“a psiquiatra da infância e da adolescência Rosa Magaly Moraes”, “J.S.O., de 20 anos” e “a advogada Alessandra Camargo Ferraz, de 37 anos, mãe de Rafael”), a revista se ausenta da responsabilidade sobre as afirmações que são apresentadas sobre o autismo (“Os médicos não conseguem reconhecer os sintomas do autismo por não são preparados para isso”, “Não existe cura” e “nos referir ao dia do diagnóstico como ‘o dia em que o chão se abriu’”). Acreditamos que, como efeito patêmico, a citação direta faz com que o leitor dê credibilidade à matéria, visto que, por meio dela, expressam-se “autoridades” sobre o tema (uma psicóloga, um adulto autista e a mãe de uma criança diagnosticada com o transtorno). Emoção e descrição A quinta estratégia consiste na descrição do autismo. Por se tratar de uma reportagem extensa, no decorrer do texto, são feitas muitas afirmações sobre o que é o transtorno. Ressaltamos, mais uma vez, que, em vista da extensão de nosso trabalho, não faremos um rol das afirmações presentes na matéria. Ao invés disso, optamos por destacar um único excerto e grifar nele afirmações que são feitas sobre o TEA. (8) O que é tão especial no autismo que o torna difícil de reconhecer até por médicos? Ele não é uma doença. A psiquiatria moderna o define como um distúrbio do desenvolvimento. Algo de anormal acontece no processo de desenvolvimento do cérebro. Quando, onde e por quê, ninguém sabe exatamente. Há várias hipóteses. Uma não elimina a outra. Ao que tudo indica, o autismo seria um distúrbio multifatorial – suas causas seriam múltiplas, e não necessariamente as mesmas para duas pessoas. (Idem, grifos nossos)

Em diversas partes do texto, são feitas afirmações próximas às que foram grifadas acima (“não é uma doença”, “um distúrbio do desenvolvimento”, “Quando, onde e por quê, ninguém sabe exatamente” e “um distúrbio multifatorial”), como podemos ver nos excertos abaixo: (9) Já na época, o diagnóstico se baseava no que até hoje são considerados os três pilares do autismo: deficiência no desenvolvimento da linguagem, interação social pobre e interesses e movimentos repetitivos. (Idem) (10) Alguns pesquisadores apostam na tese de que o autismo seria provocado por uma espécie de inflamação cerebral. Essa inflamação teria diversas causas, como uma encefalite, uma otite (muito comum entre os autistas) ou medicamentos. (Idem) (11)

Outra causa cogitada para o autismo é uma disfunção hormonal durante a gravidez. O feto teria sido superexposto à testosterona, o hormônio masculino. (Idem)

(12) A tese mais aceita hoje atribui ao autismo uma origem genética. Uma das hipóteses mais cogitadas é a alteração nos genes responsáveis pela produção de serotonina. Muitos autistas apresentam níveis altos de serotonina.

(O “diagnóstico”, no excerto (IX), se refere aos diagnósticos feitos na primeira metade do século XX, período em que o autismo foi descoberto pelo psiquiatra Leo Kranner em 1943.)

259 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Acreditamos que, como potencial patêmico, essas afirmações possam, além de informar, tranquilizar o leitor, visto que, mesmo não se sabendo a causa do autismo, é dito mais de uma vez na matéria que não se trata de uma doença (nem de uma epidemia, visto o aumento, no período, do número de pessoas diagnosticadas com o transtorno), mas um distúrbio. Emoção e narração A sexta estratégia consiste na narração do dia a dia das crianças e dos pais de autistas. Assim como Emediato (2007, p. 306), constatamos que reside nessa estratégia um rico potencial patêmico. Vejamos como isso acontece no excerto abaixo. (13) Rosângela Cristina, mãe dos gêmeos Marcelo e Marcel, conseguiu vaga na AMA, mas não pode trabalhar. Sua ocupação é cuidar dos filhos. Para isso, recebe dois salários mínimos do governo. Todos os dias, passa duas horas no ônibus para levar os garotos à AMA e duas horas para voltar. Não conseguiu que as peruas do Projeto Atende, da Prefeitura de São Paulo, fossem busca-los em casa. "Disseram que é só para quem tem dificuldade de locomoção." Marcel e Marcelo andam bem. Esperneiam, saem correndo, esbarram em todo mundo no ônibus. Rosângela diz que Marcel chegou a levar um chute por ter pisado no pé de um senhor. "Quando eu falei que o menino era autista, o homem disse que ele não parecia anormal", diz. [...] Na casa de cinco cômodos na periferia de São Paulo, Rosângela corre atrás dos dois meninos o dia inteiro. São bastante levados. Abrem torneiras, mexem no fogão, tiram a roupa. Ela diz que o período que os garotos passam na AMA é o tempo que tem para descansar. Sem recursos públicos, a maioria das mães sacrifica sua rotina.

Como podemos constatar, nesse excerto é descrito o dia a dia de uma mãe (Rosângela Cristina) e de seus dois filhos autistas (Marcelo e Marcel). (No decorrer da matéria, é dito que essa mãe era empregada doméstica quando os seus filhos foram diagnosticados com autismo aos quatro anos. Devido à falta de tratamento na cidade em que vivia no interior da Bahia, ela foi com seus filhos para São Paulo em busca de tratamento. Segundo a mãe, com o tempo de tratamento na AMA, os filhos estão largando as fraldas e comem sozinhos.) Com base no relato, ficamos sabendo que a mãe não pode trabalhar porque precisa acompanhar seus dois filhos nas sessões de tratamento. Para levar seus filhos até a AMA, ela gasta, em média, quatro horas em ônibus, duas para ir até a associação e duas para voltar a sua casa. Com base na matéria, isso acontece porque ela não conseguiu o auxílio de transporte oferecido pela prefeitura de São Paulo, devido ao fato de seus filhos não atenderem a um dos critérios de deficiência (“dificuldade de locomoção”). Todavia, segundo a mãe, seus filhos “esperneiam”, “saem correndo” e “esbarram em todo mundo” no ônibus, a ponto de um deles já ter sido agredido por um usuário. Além disso, ficamos sabendo também que em sua casa, de cinco cômodos na periferia da cidade, Rosângela tem dificuldades para lidar com seus filhos (“São bastante levados. Abrem torneiras, mexem no fogão, tiram a roupa”). Por conta disso, a mãe desabafa que só dispõe de tempo para descansar quando eles estão nas sessões de tratamento. O relato termina com uma crítica feita à prefeitura de São Paulo pela própria revista Época por meio da afirmação de que “Sem recursos públicos, a maioria das mães sacrifica sua rotina”. Com base nisso, acreditamos que, há no excerto, um potencial patêmico que suscita no leitor tanto solidariedade (com a rotina da mãe Rosângela) quanto indignação (com a ineficácia do auxílio da prefeitura de São Paulo). Considerações finais Com base em nosso trabalho, identificamos em uma matéria publicada pela revista Época seis estratégias utilizadas pelo jornal para captar a atenção do público-leitor, com o propósito de não só informar, mas também emocionar. As seis estratégias que identificamos foram a seleção do tema, a quantidade de 260 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


informações já conhecidas e novas sobre o autismo, além da problematização do tema por meio da informação de que, no Brasil, não se sabe qual o número de autistas diagnosticados, a veiculação de imagens de crianças com TEA, o uso do discurso direto, que expressa a distância de posicionamento do jornal e dá voz aos profissionais, filhos e pais de autistas, a descrição do transtorno e o relato do dia a dia dos pais no tratamento dos filhos. Como potencial patêmico, acreditamos que, por meio dessas estratégias, a revista suscita no leitor o interesse pela matéria, a indignação diante da ineficácia do governo brasileiro e da prefeitura de São Paulo em saber quantos autistas existem em nosso país e no auxílio ao tratamento, respectivamente, a esperança de que com o tratamento adequado as crianças com TEA possam desenvolver suas habilidades de fala e de socialização, a credibilidade sobre as informações que são apresentadas na reportagem e na solidariedade para com os pais de crianças com o transtorno diante das dificuldades que eles passam diariamente. Referências CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. (Tradução de Angela M. S. Corrêa). 2ª ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2015.

_____. Linguagem e discurso: modos de organização. (Coordenação da equipe de tradução de Ângela M. S. Corrêa e Ida Lúcia Machado). 2ª ed. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014. _____. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. (Tradução de Ida Lúcia Machado, Renato de Mello e Williane Viriato Rolim). IN: MARI, Hugo; MACHADO, Ida Lúcia; MELLO, Renato de (Orgs.). Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso – FALE/UFMG, 2001. pp. 23-37. ______; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. (Coordenação de tradução de Fabiana Komesu). 3ª ed. 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014. EMEDIATO, Wander. As emoções da notícia. IN: MACHADO, Ida Lucia; MENEZES, William; MENDES, Emília (Orgs.). As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. pp. 290-309. Volume I. SILVA, José Otalício da. Charaudeau. IN: OLIVEIRA, Luciano Amaral (Org.). Estudos do discurso: perspectivas teóricas. 1ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. pp. 235-279.

261 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS COMO ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS DO JORNAL DIÁRIO DO POVO DO PIAUÍ1 André de Moura Carvalho2 João Benvindo de Moura3 RESUMO O ethos é a imagem que o sujeito constrói de si mesmo no momento da enunciação num processo interativo de influência sobre o outro. Nesse sentido, nossa pesquisa tem como objetivo analisar, à luz da Análise do Discurso e da Retórica, a maneira como o Jornal Diário do Povo do Piauí constrói o ethos através de suas capas. Partindo dos elementos que visam à persuasão apresentados por Aristóteles – ethos, pathos e logos, até chegar a teóricos contemporâneos como Amossy (2008), Maingueneau (2008) e Charaudeau (2006), localizamos, classificamos e analisamos as imagens construídas pelo jornal às quais denominamos de ethos antipetista, ethos ufanista e ethos católico. Também avaliamos o ethos prévio do jornal, isto é, as informações pré-concebidas sobre o mesmo. Para fins de análise, foram selecionadas três capas, publicadas em 2011 e 2015. Podemos afirmar, com a realização dessa pesquisa, que o discurso midiático se vale de uma concepção de auditório presumido para enunciar e argumentar na defesa de teses sobre o mundo, revelando interesses ideológicos, na busca da adesão dos leitores.

Introdução

C

onvencionou-se chamar de ethos a construção da imagem de si no momento da enunciação. Esse termo foi empregado durante a retórica antiga grega, mas só foi alavancado com os estudos de Aristóteles, responsável pelas bases da noção de ethos, aperfeiçoadas atualmente nos estudos linguísticos. Na Análise do Discurso, essa noção ganhou força a partir de Oswald Ducrot, com sua obra Le dire et le dit publicada em 1984 e Dominique Maingueneau, com as obras Genèses du discours e Nouvelles tendances en analyse du discours publicadas, respectivamente, em 1984 e 1987. Neste artigo, utilizamos o referencial teórico sobre ethos com base em Amossy (2008), Charaudeau (2006) e Maingueneau (2008). Partindo das definições de Aristóteles, esses autores fizeram uma releitura sobre o ethos, adaptando essa noção para a enunciação em tempos modernos. Com base nos estudos desses autores contemporâneos da Análise do Discurso de linha francesa, produzimos este artigo, cujo objetivo é analisar a maneira como o ethos é construído pelo Jornal Diário do Povo do Piauí, através dos discursos contidos em suas capas. Além disso, verificamos de que maneira é construído o ethos prévio dessa empresa midiática, isto é, as informações estabelecidas antes da enunciação. Para fins de análise, foram coletadas informações acerca do contexto histórico do Jornal Diário do Povo do Piauí (doravante JDPP); e também sobre a tiragem diária e tempo de existência da empresa, dados que podem formar o seu ethos prévio. Acerca do corpus, isto é, as capas, foram selecionadas uma de junho de 2011, para mostrar a construção do ethos católico; uma capa de setembro de 2015, para explicitar a imagem de opositor em relação ao governo do PT; e outra de novembro de 2015, para mostrar o ethos ufanista do jornal. A relevância dessa pesquisa se estabelece inicialmente pela importância da mídia no cotidiano da sociedade, tendo em vista o seu poder de disseminar informações e provocar mudanças sociais e culturais. Além disso, sabendo das informações aqui relatadas, o consumidor, ao realizar a leitura do Diário do Povo,

1

Trabalho apresentado no GT.06 – Discurso, imagem e imaginário, do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Graduado em Letras-Português pela Universidade Federal do Piauí. E-mail: andremoura333@hotmail.com 3 Pós-Doutorando em Linguística pela UFMG e professor da graduação e pós-graduação em Letras da UFPI. E-mail: jbenvindo@ufpi.edu.br 262 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


estará munido de imagens prévias sobre o mesmo, o que fornecerá a esse leitor subsídios para uma interpretação e uma visão mais ampla desse veículo de comunicação. Embora haja muitas pesquisas que se utilizam do mesmo objeto de estudo (capa de jornal) e da mesma perspectiva teórica (ethos e análise do discurso), cada análise lança um olhar diferenciado, a partir da metodologia utilizada, dos aspectos teóricos focados e, neste caso, da natureza regional do objeto pesquisado, que se encontra inserido na realidade piauiense, absorvendo aspectos sociais, culturais e ideológicos inerentes a essa comunidade discursiva.

Ethos: percurso da retórica à Análise do discurso A argumentação é um processo discursivo muito importante, tendo em vista que, a partir do momento que a utilizamos, tentamos influenciar alguém sobre algo que defendemos ou julgamos como verdadeiro. Tornase imprescindível, visto que estamos constantemente num processo de interação com o outro, interferindo em seu modo de pensar, agir e sentir. Por sua tamanha relevância, pesquisas direcionadas a ela não faltaram ao longo da história, dentre as quais se destacam na antiguidade as do filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), considerado por alguns estudiosos como o pai da argumentação, por ter sido o primeiro a realizar trabalhos sistematizados sobre o assunto no século III a.C. Aristóteles apresentou os três elementos fundamentais para se obter a persuasão: o logos, o pathos e o ethos. O logos diz respeito ao caráter argumentativo, isto é, ao domínio da palavra, aos recursos oratórios; o pathos remete à capacidade do orador em sensibilizar o auditório, utilizando argumentos que se apoiam nas paixões desse interlocutor para conseguir sua adesão; e o ethos, concernente à construção da imagem do orador. Esses elementos visam obter a persuasão, objetivo da prática argumentativa. Tendo em vista que a nossa pesquisa trata da maneira como o JDPP constrói o ethos, isto é, a imagem de si, será dado ênfase somente a esta categoria da retórica. As preocupações acerca da noção de ethos na antiguidade, no entanto, não pertencem exclusivamente aos gregos. Os romanos também contribuíram com o desabrochar dessa categoria, apesar das concepções terem sido tão distintas. Enquanto que para os romanos o ethos estava ligado à identidade real do orador, isto é, ao sujeito social cuja reputação valia mais que suas palavras; para os gregos, estava relacionado ao que Charaudeau (2006) chama de “Identidade discursiva”, ou seja, a imagem que o orador construía de si não correspondia necessariamente à sua identidade real, mas a uma figura que o enunciador criava para si no momento em que enunciava, pouco importando sua sinceridade. A Análise do Discurso tomou para si a noção de ethos baseada na concepção grega. Durante muito tempo o termo ethos ficou no plano secundário dentro das ciências humanas e sociais. Os estudos acerca dessa noção foram retomados na França, nos anos de 1980, através dos trabalhos de Oswald Ducrot e Dominique Maingueneau. Este propôs uma teoria dentro do quadro da Análise do Discurso, isto é, a noção de ethos pré-discursivo, que será comentada ainda neste trabalho.

Ethos na Análise do discurso Maingueneau (2008) afirma que quando começou a refletir sobre o ethos, não imaginava que tal noção viesse a ter tanta repercussão. O autor atribui esse grande interesse pelo ethos em razão do aumento desenfreado dos meios de comunicação audiovisual: “Parece claro que esse interesse crescente pelo ethos está ligado a uma evolução das condições do exercício da palavra publicamente proferida, particularmente com a pressão das mídias audiovisuais e da publicidade”. (MAINGUENEAU, 2008, p. 11). Outro fator que contribuiu para o aumento dos trabalhos sobre o ethos nos estudos linguísticos foi a maneira mais abrangente que os autores contemporâneos trataram acerca de tal noção. Enquanto que na retórica de Aristóteles a ênfase estava nos enunciados orais, tendo em vista que a essência da produção discursiva era a oralidade, e não o texto escrito, para a AD, segundo Fiorindo (2012), a concepção discursiva de ethos apresenta situações discursivas diversas que se estendem aos enunciados orais, escritos, à modalidade 263 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


verbal ou visual, representando uma pessoa ou até mesmo uma ou várias instituições. Heine (2007, p. 41) afirma que “O ethos na AD se refere a textos orais e escritos, em que os enunciadores fornecem uma imagem de si através do discurso”. Dessa forma, o ethos é observado às situações de enunciação, ou seja, se um sujeito, pessoal ou institucional, do campo político ou midiático, for capaz de transmitir uma mensagem, é possível uma análise da construção da imagem desse sujeito. Com isso, explicamos o porquê dessa pesquisa tratar do ethos de uma instituição, e não de uma pessoa. Na obra intitulada “Dicionário de Análise do Discurso”, Charaudeau e Maingueneau fazem uma síntese da noção de ethos, afirmando que o mesmo é “a imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para exercer influência sobre seu alocutário” (2008, p. 220), ou seja, é a imagem que o orador constrói de si mesmo no momento em que fala, com o intuito de influenciar um determinado público e está relacionado ao domínio da emoção, isto é, um recurso utilizado para provocar emoções no auditório através do discurso. Atualmente, esse recurso é bastante utilizado no âmbito político, em que os locutores lançam mão de estratégias argumentativas que suscitem emoções nos interlocutores a fim de aderirem às suas ideias. Na esfera midiática não é diferente. As empresas desse campo buscam sempre construir uma imagem de si positiva, através de estratégias discursivas que possibilitem a adesão às suas propostas informativas por seu público alvo. O ethos prévio do JDPP De acordo com Amossy (2008, p. 9), “todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si”. Para a autora, esse orador não precisa necessariamente fazer seu autorretrato, isto é, falar explicitamente de si, descrevendo suas qualidades e defeitos ao seu interlocutor, pois essa imagem é edificada pelo orador a partir da própria fala. No entanto, para Charaudeau (2006), o ethos não está relacionado somente ao ser que fala, ou seja, não é uma propriedade exclusiva dele; é também do auditório, que, no ato de linguagem, constrói uma imagem do orador que pode ser diferente da que este esteja tentando construir. É o que o autor denomina de cruzamento de olhares, isto é, “o olhar do outro sobre aquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê”. (CHARAUDEAU, 2006, p. 115). Para construir, portanto, a imagem do sujeito que fala, o interlocutor se baseia tanto nas informações que já possui do sujeito, isto é, nos dados que o caracterizam antes do ato de linguagem: sua conduta social e familiar, seu modo de vida etc., quanto nos dados trazidos pelo próprio discurso. Portanto, de acordo com Charaudeau, fica evidente a existência de um ethos pré-existente ao discurso, chamado de pré-discursivo. No entanto, essa denominação não provém do autor. Enquanto Aristóteles só considerava o ethos no momento da enunciação, Maingueneau (2008) considera o ethos pré-discursivo e o ethos discursivo: “O ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas não se pode ignorar que o público constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 15). Galinari (2007b), no entanto, discorda. Segundo o autor, considerar as informações preexistentes ao discurso como “pré-discursivas” é o mesmo que caracterizá-las como “não discursivas”. Utilizaremos em nosso trabalho, portanto, a terminologia ethos prévio, que retira a conotação negativa de “pré-discursivo”, e ethos presente, que, na concepção de Galinari (2007b, p. 76) “viria simbolizar certa fidelidade às formulações de Aristóteles, na medida em que vincula o ethos a um resultado da enunciação, no presente de sua ocorrência”. Utilizaremos essa terminologia, visto que esses termos deixam implícito que os dois são igualmente discursivos. Acerca do ethos prévio do JDPP, sabe-se que foi fundado no ano de 1987 e, de acordo com o seu Diretor Comercial, Mauro Paixão, possui uma tiragem diária atual de 9.200 exemplares, sendo 6.000 para assinantes e 3.200 para venda avulsa: bancas de jornal, sinais de trânsito, postos de venda e interior do estado; circula em quase 70% do estado do Piauí, tem uma periodicidade de segunda a domingo; possui 4 cadernos, com 36 páginas no total, sendo 8 páginas no primeiro caderno, intitulado ”Principal”, 8 páginas no segundo, intitulado “cidade”, 4 páginas no terceiro – galeria, e 16 páginas nos classificados, sendo todos os cadernos coloridos na capa e na contracapa; sabe-se ainda que é uma empresa ligada ao grupo R. Damásio, mas que também sobrevive dos recursos dos anunciantes e dos assinantes do jornal.

264 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Além disso, o jornal está há mais de 28 anos em circulação, o que pode demonstrar credibilidade. Ou seja, para que uma empresa de comunicação, comprometida com a informatividade, esteja há tanto tempo na ativa, precisa possuir uma imagem de si que preze pela sinceridade e veracidade de suas informações, a fim de conseguir credibilidade. O fato desse veículo de informação existir por quase três décadas, portanto, também pode caracterizar um ethos prévio, pois o leitor, ao saber que o jornal circula há 28 anos, pode construir uma imagem de maior confiança no mesmo, tendo em vista sua tradição e tempo de existência.

Ethos de opositor: uma imagem antipetista De acordo com os ensinamentos de Bakhtin, a palavra é um signo ideológico por natureza. Na amostra de capas selecionada, observamos a presença de uma enunciação que revela um modelo midiático voltado para as questões políticas e sociais. Na capa a seguir, por exemplo, podemos observar uma postura ideológica contrária em relação ao governo do PT: Essa capa, publicada em 12 de setembro de 2015, isto é, durante o governo da presidente Dilma Rousseff, do PT, retrata nossa afirmação, pois a cena enunciativa é construída para atingir a imagem desse governo, como podemos observar nos seguintes aspectos: na chamada principal “Dilma não anuncia nem entrega obras no estado do Piauí”, há uma ênfase às falhas em obras executadas pelo governo federal no estado do Piauí. Na seleção lexical dessa chamada, o jornal se utiliza de vocábulos como “não” e “nem” cujo teor negativo acentua o impacto da informação: “Dilma não entrega nem anuncia”, ou seja, ela não faz uma coisa nem outra.

Imagem 1. Fonte: http://www.diariodopovopi.com.br/Jornal/Default.aspx?d=2015-9-12

Na imagem logo acima, vislumbramos a presidente junto com outros membros partidaristas, inclusive o governador do estado do Piauí, Wellington Dias, também do PT, na parte frontal de um trem, visitando as obras da ferrovia transnordestina, que interligará os estados do Piauí, Ceará e Pernambuco. Enquanto explicita, no texto, uma tentativa de denegrir a imagem do governo, afirmando que o mesmo não anuncia nem entrega obras no estado, o jornal traz, ao mesmo tempo, na imagem logo acima, membros do mesmo governo acompanhando o andamento de uma obra atrasada há cerca de 8 anos (considerando a data da publicação da capa) e que até os dias atuais não foi concluída. O jornal atua, dessa forma, de maneira a relacionar o conteúdo da chamada principal com uma imagem, cuja intenção é construir uma imagem de opositor associando texto e fotografia. Logo abaixo, o jornal traz a seguinte chamada secundária: “Greve na UFPI já dura mais de 100 dias”. Trata-se da greve dos servidores técnico-administrativos da Universidade Federal do Piauí, que, na data da publicação, completava 106 dias. A argumentação em torno da longevidade da greve e da suposta indiferença do governo busca induzir o leitor à criação de uma imagem de falta de compromisso do governo com essa classe 265 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


de trabalhadores e, mais uma vez, associá-la ao desinteresse no desenvolvimento do estado, dessa vez relacionado à educação. Tentando construir uma argumentação que busque diferenciá-lo do perfil ideológico do governo do PT, o JDPP novamente se utiliza de uma seleção lexical que enfatiza a negatividade dos fatos, como a utilização dos vocábulos “já” e “mais” em ”já dura mais de 100 dias”. A mesma notícia engloba, ainda, a greve do corpo docente da UFPI, que já durava um mês. O texto denuncia o fato de que cerca de 25 mil alunos estão prejudicados com a greve, considerando os campi da capital e do interior, ou seja, “25 mil” e “prejudicados” podem acentuar a situação negativa que se configura no estado no tocante à educação pública superior. A análise indica que o JDPP busca construir o ethos antipetista, isto é, uma imagem de si que tenta desconstruir a imagem do governo do PT. Os problemas abordados, no entanto, geralmente se voltam para questões estaduais ou federais. Não se percebe uma problematização da realidade local nas capas. Tal postura pode evidenciar um vínculo ideológico entre a linha editorial do jornal e as ideias do partido ou grupo político responsável pela atual gestão da prefeitura de Teresina. Construindo uma imagem ufanista Conforme dissemos anteriormente, o JDPP é um jornal de circulação diária dentro de quase 70% do estado do Piauí. Com o intuito de buscar a adesão dos leitores às suas propostas informativas, o jornal tenta construir uma argumentação que vá ao encontro das preferências do público, isto é, do povo desse estado: seus anseios, crenças, esportes etc. Partindo desse pressuposto, o jornal busca, conforme observamos na capa a seguir, construir uma imagem de uma empresa que exalta o seu estado quando o assunto é futebol, considerando a grande repercussão que deu o evento retratado na capa e o que significou para o povo piauiense. A capa, publicada em 15 de novembro de 2015, traz como chamada principal: “River é vicecampeão brasileiro”. Trata-se de um time de futebol tradicional no estado que, na noite anterior, perdeu a final do Campeonato Brasileiro da série D para a equipe do Botafogo de Ribeirão Preto-SP. O jornal anuncia que o time local foi vice-campeão, o que é uma notícia triste, tendo em vista que o objetivo e o desejo do time e da massa piauiense, que dirigia seus olhares ao jogo, era de ser campeão. Entretanto, o veículo de comunicação explicita que o time foi vice-campeão brasileiro, ou seja, exaltando o feito do time em disputar a decisão de um torneio de nível nacional e ao mesmo tempo ocultando a divisão em disputa, isto é, a quarta.

Imagem 2. Fonte: http://www.diariodopovopi.com.br/Jornal/Default.aspx?d=2015-11-15

266 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Ora, ao perguntar a algum torcedor de um time de futebol considerado grande e tradicional no cenário nacional, se haveria orgulho em ganhar a quarta divisão do campeonato brasileiro, certamente ouviríamos que não. Porém, para um piauiense, acostumado a uma estrutura precária quando o assunto é futebol, vislumbrar um time de sua terra em destaque no cenário nacional, configura-se como algo extraordinário e esplêndido. Sabendo disso, o JDPP não diz que o campeonato disputado foi o da quarta divisão, o que seria o correto: “River é vice-campeão brasileiro da série D”. Diz apenas que foi vice-campeão brasileiro, injetando uma dose de positividade num desfecho triste para um público que, somente no estádio, contava com mais de 40 mil pessoas. Dessa forma, observamos a tentativa do Diário do Povo em construir o ethos ufanista, ou seja, de exaltar a imagem do estado, visto que um time de futebol daqui chegou à decisão do campeonato brasileiro, o que, segundo o jornal, é motivo de orgulho para ele e para toda a população piauiense.

Ethos católico: um auditório presumido O Jornal Diário do Povo do Piauí, a fim de obter crédito de seus leitores, também busca construir uma imagem de cristão católico, como podemos observar nessa capa publicada em 24 de junho de 2011: Dessa vez, o foco da análise não é a chamada principal, mas a secundária, juntamente com a imagem associada que está logo acima da chamada. O jornal informa sobre um evento religioso ocorrido no centro de Teresina na noite anterior, dia 23 de junho, dia em que os católicos comemoram o feriado de Corpus Christi, expressão latina que significa Corpo de Cristo. O que chama realmente a atenção e por esse motivo nos levou a escolha dessa capa para analisar o ethos católico da empresa foi o fato de, no mesmo dia, 23 de junho, ter tido, também na capital, a Marcha para Jesus, evento de cunho evangélico que também leva multidões para as ruas da capital cujo objetivo é glorificar o nome de Jesus Cristo, evento que praticamente não teve espaço na capa do JDPP do dia seguinte.

Imagem 3. Fonte: http://www.diariodopovopi.com.br/Jornal/Default.aspx?d=2011-6-24

Como podemos observar, há uma imagem grande e centralizada no meio da capa, que trata unicamente da celebração católica, e logo abaixo a chamada: “Fiéis comemoram Corpus Christi”. Na descrição, o jornal menciona o evento evangélico, porém em poucas linhas e sem associação com imagens. Dessa forma, o jornal elabora uma enunciação de caráter católico.

267 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


De acordo com dados do Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010, o Piauí ocupa o primeiro lugar na lista de estados com o maior número de católicos do Brasil, com 85,1%. Dessa forma, o jornal, ao enunciar como alguém adepto ao catolicismo, isto é, uma das vertentes do cristianismo, tenta aproximar-se de seus leitores, pois se imagina num estado com o maior percentual de católicos do país. Para Moura (2012, p. 78) “o autor de um dado enunciado tem uma representação dos seus destinatários, e disso dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado”. De acordo com essa visão, ao enunciar, o autor já possui dados acerca do seu destinatário, o que facilita na composição de uma argumentação eficaz. O jornal possui, dessa forma, um auditório presumido, que, na concepção de Perelman, é “um conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação” (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2005 apud Moura 2012, p. 78). O JDPP, dessa forma, busca construir uma imagem relacionada ao catolicismo, demonstrando empatia com os seus leitores através de um discurso religioso muito próximo aos dogmas defendidos e compartilhados pelos mesmos. Considerações finais Com a realização dessa pesquisa, podemos perceber que o JDPP tenta refletir uma visão do mundo social e político, colocando o estado do Piauí numa posição de dependência do governo federal. Além disso, no tocante ao ethos analisado, mostramos que o JDPP possui um ethos prévio que fornece ao leitor subsídios para uma leitura crítica, além de passar confiança aos mesmos, pois se trata de uma empresa que está há quase três décadas na ativa. Também constatamos que o JDPP constrói uma imagem de opositor, visto que o jornal tece críticas ao proceder petista. Verificamos ainda o ethos ufanista e o ethos católico, em que esse veículo, ao se imaginar num estado com 85,1% de católicos e o primeiro em número de adeptos a essa religião no país, busca construir uma linha de pensamento inserido nessa crença, mostrando dessa forma que o jornal possui um auditório presumido. Com isso, esse jornal busca passar uma imagem de si positiva diante da sociedade. REFERÊNCIAS AMOSSY, Ruth. (Org.). Imagens de si no Discurso: a Construção do Ethos. São Paulo: Contexto, 2008, p. 9-28. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo: Contexto, 2006. CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008. FIORINDO, Priscila Peixinho. Ethos: um percurso da retórica à análise do discurso. Disponível em: <http://revistapandorabrasil.com/revistapandora/ethos/priscila.pdf>. Acesso em 15 de março de 2017. GALINARI, Melliandro Mendes. A era Vargas no pentagrama: dimensões político-discursivas do canto orfeônico de VillaLobos. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte, 2007b. HEINE, P. V. B. O ethos e a intimidade regulada: especificidades da construção do ethos no processo de revelação da intimidade nos blogs pessoais. Dissertação de Mestrado. Salvador, Instituto de Letras UFBA, 2007. MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana. Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008, p. 11-29. MOURA, João Benvindo de. Análise discursiva de editoriais do jornal Meio Norte, do estado do Piauí: a construção de imagens e as emoções suscitáveis através da argumentação. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos). Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte – MG, 2012. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/.

268 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


UM CASO DE AFORIZAÇÃO?1 Luís Rodolfo Cabral2 RESUMO A motivação deste trabalho está relacionada ao nosso interesse em problematizar o processo de aforização de domínios semióticos conjugados pelo linguístico e pelo imagético. Partindo da hipótese de que a materialidade imagética na capa seja aforização de enunciados-fonte verbais contidos na revista, selecionamos aleatoriamente uma edição da revista do banco de dados de nosso trabalho de doutoramento, e, sustentados na Análise do Discurso de linha francesa, mais especificamente nos trabalhos de Maingueneau, apresentamos uma investigação do processo de aforização. O nosso trabalho será dividido em 02 (duas) partes: na primeira, apresentamos breve discussão teórica sobre destacamento e aforização; e, na segunda, descrevemos o corpus e apresentamos a análise. Ao final, incluímos a reprodução do material analisado. Palavras-chave: Destacamento; Aforização; Imagem.

Introdução

E

m diversas obras, Maingueneau (2010, 2013, 2015) discute fenômeno da destacabilidade, seja nos casos em que um enunciado é extraído de um texto e inserido em um novo, seja naqueles em que o enunciado possui de certa autonomia em relação a um texto-fonte. De forma a refinar o tratamento desta questão, o autor distingue dois conjuntos de destacamentos. A primeira corresponde ao caso “(…) dos provérbios e de todas as fórmulas sentenciosas que por natureza não possuem contexto situacional nem contexto original” (MAINGUENEAU, 2010, p. 10), os quais classifica como destacamento constitutivo, ou seja, o caso de enunciados autônomos que circulam isolados do contexto/cotexto em que foram produzidas. O segundo conjunto integra os destacamentos por extração de um fragmento de texto, ou seja, aqueles enunciados que são modificados em relação ao texto fonte e postos a circular em outro contexto/espaço. São os casos deste segundo grupo sobre os quais Maingueneau se debruça para problematizar a dinâmica de destextualizar um enunciado. A saída de um enunciado do texto pode ser resultado de ação que precede a destacabilidade: o enunciador pode potencializar a possibilidade de destacamento a partir de um processo de modulação enunciativa chamado “sobreasseveração”, cujo objetivo é o de alçar um fragmento de um texto em relação aos demais. Em se tratando dessa antecipação de destacamento, Maingueneau (2013) apresenta diferentes índices de formatação, não cumulativos, para que um enunciado se apresente como potencialmente destacável, dentre os quais citamos o valor generalizante, a amplificação da figura do enunciador e/ou a construção sintática simétrica. Nas palavras do autor, a sobreasseveração é “uma modulação que formata um fragmento como candidato à destextualização, (…) trata-se somente de uma operação de destaque do texto que é operada em relação ao restante dos enunciados” (MAINGUENEAU, 2010, p. 11). A sobreasseveração abre a possibilidade de uma destextualização, muito embora um enunciado sobreasseverado não implique necessariamente o destacamento. Caso a destextualização aconteça, há dois tipos de modalidades, a depender da relação que o enunciado estabelece com o texto-fonte: destacamento fraco quando os enunciados destacados se encontram 1

Trabalho apresentado no GT Discurso, Imagem e Imaginário do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Bolsista CAPES do Programa de Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL/ PUC SÃO PAULO). Professor do Instituto Federal do Maranhão – Campus Santa Inês. E-mail: rodolfo.cabral@ifma.edu.br 269 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


próximos do texto-fonte, e destacamento forte, quando o enunciado se encontra, em algum grau, dissociado do texto-fonte. (MAINGUENEAU, 2014). De qualquer forma, independentemente de ser forte ou fraco, a aforização, por destextualizar e recontextualizá-lo, pode fazer surgir alterações no enunciado. Ao avaliar a textualização e a destextualização, Maingueneau propõe que, entre as duas, não há distinção de ordem linguística, mas de ordem enunciativa, porque o enunciado destacado não é mais um fragmento de texto, mas um enunciado que obedece a outro regime de enunciação. Textualizar e aforizar são tipos distintos de enunciação, ou seja, destacar envolve um processo enunciativo diferente daquele que consiste em produzir textos. Como a textualização e a aforização são processos que envolvem naturezas enunciativas distintas, que implicam papéis também distintos entre os sujeitos: na enunciação textualizante, os sujeitos partilham e negociam um dizer; na enunciação aforizante, não há interação entre os sujeitos colocados no mesmo plano, pois o aforizador “é considerado como aquele que enuncia sua verdade, que prescinde da negociação, que exprime uma totalidade vivida (MAINGUENEAU, 2010, p 14). Reproduzimos a seguir uma representação gráfica da distinção enunciativa proposta por Maingueneau (2010)

Quadro I. Enunciação aforizante e enunciação textualizante Fonte: Reproduzido de Maingueneau (2010).

A percepção de dois regimes enunciativos distintos abriu caminho para inúmeros trabalhos sobre aforização, dentre os quais, por exemplo, temos Lara (2013) e Mareco & Assis (2015). Reconhecemos a importância de tais trabalhos, que seguem o lastro teórico construído por Maingueneau para o tratamento de enunciados verbais; nossas motivações, no entanto, se aproximam mais daquela vislumbrada por Baronas (2013), que propõe um deslocamento teórico-metodológico desse referencial para tratar objetos inscritos na discursividade imagética. Coadunamos com a hipótese de Baronas (2013) e de Baronas & Santos (2016) de que as aforizações destacadas por um processo de extração podem figurar tanto na ordem do verbal quanto do visual. Para testarmos essa hipótese, selecionamos aleatoriamente uma edição da revista Veja retirada do banco de dados de nosso trabalho de doutoramento. Nossa se justifica pelo numeroso público leitor 3 que o hebdomadário tem no Brasil. A pergunta balizadora de nosso trabalho é a seguinte: considerando a hipótese da aforização visual, qual é a relação entre a materialidade imagética da capa e o texto-fonte do interior da revista? Descrição do corpus e análise A capa da revista Veja escolhida para análise foi a da primeira edição publicada no ano de 2015, após a posse de Dilma Rousseff para o segundo mandato como Presidenta da República. Na capa da edição 2407, de 07 de janeiro de 2015, temos a imagem do rosto de Dilma Rousseff, entrecortada pela imagem de um homem de costas, para quem a então recém-reeleita presidente direciona o olhar. O homem, de costas para o leitor, traja 3

Segundo o site oficial da revista, as plataformas físicas e digitais de Veja contam com uma audiência de mais de 20 milhões de pessoas, sendo, pelo menos, 8,6 milhões de leitores na versão impressa e 160 mil na versão digital. 270 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


roupa escura cuja cor contrasta com aquelas da faixa presidencial que Dilma usa. Na parte superior da capa, temos, em caixa alta e cor amarela, o enunciado “Análise”, e em cor branca: “Entenda como estes 5 fatores essenciais devem afetar a economia e o seu bolso em 2015: Gastos públicos. Investimentos. Consumo. Exportações. Economia mundial”. Logo abaixo do canto central esquerdo, temos a legenda em cor branca, em que se lê “Dilma Rousseff com Joaquim Levy, seu ministro da Fazenda, na cerimônia de posse, em Brasília”. Em branco, caixa alta negrito, temos a manchete “O poder e o saber”, seguido de “Com eles juntos, temos uma chance de atravessar o tempestuoso 2015. Se duelarem, o Brasil perde”, em amarelo negrito. A manchete da capa refere-se à matéria “Mandato novo, problemas velhos”, assinada por Adriano Ceolin, que se inicia na página 36 e se estende até a página 55. Deste texto, inserido na seção Brasil da revista, destacamos o seguinte excerto: Na economia, o primeiro passo foi dado no bom caminho, com a nomeação de Joaquim Levy, que a presidente buscou no Bradesco, um profundo conhecedor da máquina pública, certeza de racionalidade e sensatez. Do casamento do poder de Dilma com o saber de Levy, a economia brasileira pode atravessar com galhardia o tormentoso 2015. Se a dupla se desentender, o Brasil perderá (VEJA, 24/01/2015, grifo nosso).

O enunciado em negrito atende a alguns dos índices de destacabilidade, como o fato de estar colocado no parágrafo final de uma página cuja continuação são imagens, o que o reforça em algum tipo de visibilidade. Ressaltamos também a organização do enunciado, de um lado, pela oposição semântica entre poder e saber, e de outro pela modalização verbal, o que o torna potencialmente candidato à destexualização. Mesmo sobreasseverado e mantendo a estrutura primeira, o enunciado-fonte, quando aforizado, sofreu alteração em, pelo menos, três pontos: a) Dilma e Levy explicitados no enunciado-fonte foram substituídos por um pronome pessoal; b) o adjetivo “tormentoso” foi substituído por “tempestuoso”; e, c) a posição temática no enunciado verbal da capa possui sintagma nominal zero, enquanto no enunciado-fonte é preenchida por “a economia brasileira”. Sobre a alteração a, entendemos que a articulação entre o verbal e o visual na capa permita a retomada por um pronome pessoal, uma vez que os personagens aos quais o pronome se refere são indicados na materialidade imagética e na legenda que a acompanha. Em b, a escolha de outro item lexical dentro de um mesmo campo semântico não gerou efeito de sentido destoante daquele produzido no enunciado-fonte. No caso de c, há efeito de sentido diferente: no enunciado-fonte, o sujeito é linguisticamente marcado por um sintagma nominal; na aforização, o sintagma nominal não é preenchido, sendo recuperado pelas unidades mínimas significativas da morfologia do verbo (“temos”), o que corresponde a primeira pessoa do singular (“nós”). Do enunciado-fonte para o enunciado aforizado, transita-se de sujeito com referente definido no mundo (“a economia brasileira”) para um sujeito coletivo, abstrato, sequer definidamente marcado. Considerando ainda este mesmo enunciado-fonte, percebemos que, ao ser aforizado para a capa da revista, ele entra em outro regime de enunciação. O enunciado em negrito do excerto é produzido pela enunciação de um locutor próprio e, ao ser mobilizado para a capa, entra no regime enunciativo aforizante: o locutor, antes portador de um nome (Adriano Ceolin), cede lugar enunciativo a outra entidade discursiva, institucionalizada, o aforizador (Veja). Maingueneau (2014) entende que uma aforização não é necessariamente atribuída a um indivíduo: o que importa é que seja uma entidade passível de experiências humanas, fonte de uma convicção. Assim, neste enunciado aforizado da capa, o locutor deixa de ser o sujeito jornalista, e se amplifica como voz do próprio veículo midiático, cuja autenticidade pode ser estabelecida na relação dos enunciados aforizados e o logotipo da revista no canto superior direito da capa. No caso da materialidade imagética, identificamos processo diferente de aforização, não relativo à destextualização de um enunciado-fonte. Naquela imagem de capa, podemos depreender o sentido a partir da relação estabelecida entre três elementos específicos: a faixa presidencial da mulher, em contraste de cor e de simbologia, com o terno e os óculos do homem, em detalhe.

271 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Dessa articulação direta entre os elementos não-verbais da imagem com o verbal da manchete, em um caso de “aspas visuais”, no dizer de Viana (2016), temos a reafirmação do posicionamento da revista sobre o assunto, a lembrar o enunciado sobreasseverado do excerto acima: o casamento entre poder e saber. A reportagem de capa, que se estende ao longo de 19 (dezenove) páginas, apresenta diversas imagens, dentre as quais citamos: a da cerimônia de posse do segundo mandato da presidenta 4 Dilma Rousseff, e as fotos oficiais dos governos de Lula (2003), de Fernando Henrique Cardoso (1995), de Collor (1990), e do primeiro mandato de Dilma (2011). No número 2407 de Veja, a imagem de capa não é destacamento de nenhuma das imagens que compõem a matéria principal daquela edição, trata-se de uma fotografia da cerimônia de posse, escolhida sob um regime enunciativo de coerções ideológica e institucional, para compor a capa daquela edição. Em outras palavras, no corpus analisado, a capa de revista, que conjuga o imagético e o verbal, antecipa e reforça o posicionamento editorial da revista sobre um dado assunto, sendo o enunciado verbal que a compõe uma aforização de um enunciado-fonte específico, como nos ensina Maingueneau (2010, 2014). Entretanto, em se tratando da materialidade imagética, mesmo se considerarmos o caso de destacamento forte, em que a aforização se encontra em relativo grau de dissociabilidade do texto-fonte, não foi identificado o texto-fonte específico em mesma linguagem a partir do qual tenha se processado a aforização. Entendemos que o resultado apresentado acima reflita apenas o caso em tela. É sabido que a capa antecipa o leitor para o conteúdo da revista e que os enunciados são aforizações de texto-fonte de matérias uma dada edição. Mas, considerando a dinâmica do processo de construção de capas de revista, nosso resultado sinaliza para um problema que merece investigação: a materialidade imagética na capa de revista envolve um processo de aforização de destacamento do verbal, destextualizado e re-contextualizado em imagem? REFERÊNCIAS BARONAS, R. L. Citação, destacabilidade e aforização no texto imagético: possibilidades? Alfa. Número 57, Edição 2, 2013 (pp. 413-431). BARONAS, R. L.; SANTOS, S. F. dos Destextualização e imagem. In: BARONAS, R. L.; MESTI, P. C.; CARREON, R. de O. Análise do discurso: entorno da problemática do ethos, do político e de discursos constituintes. Campinas – SP: Pontes, 2016 (pp. 105-118). LARA, G. M. P. Passando a aforização em revista. Estudos Semióticos. [on-line]. Volume 9, Número 2, São Paulo, Dezembro de 2013, p. 7–14. Disponível em: http://revistas.usp.br/esse/article/view/6952. Acesso em 10/03/2017. MAINGUENEAU, D. Aforização – enunciados sem texto? In: POSSENTI, S.; SOUZA-E-SILVA, M. C. P. de. (Orgs.) Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo: Parábola, 2010 (pp. 9-24). MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. 6º edição ampliada. São Paulo: Cortez, 2013. MAINGUENEAU, D. Discurso e análise do discurso. São Paulo: Parábola, 2015. MAINGUENEAU, D. Enunciação ligada, enunciação desatada. In: DI FANTI, M. da G.; BARBISAN, L. B. Enunciação e discurso: tramas de sentidos. São Paulo: Contexto, 2012 (pp. 13-24). MAINGUENEAU, D. Frases sem texto. São Paulo: Parábola, 2014. MAINGUENEAU, D. Texto, gênero de discurso e aforização. In: BRAIT, B.; SOUSA-E-SILVA, M. C. Texto ou discurso? São Paulo: Contexto, 2012 (pp. 108-128).

4

Utilizamos “presidenta” em conformidade com as comunicações oficiais da Presidência da República durante os mandatos de Dilma Rousseff. 272 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


MARECO, R. T. M.; ASSIS, A. W. A. de. Das sobreasseverações às aforizações: veiculação e interpretação de falas na mídia online. Cadernos de Linguagem e Sociedade. Volume 16, Número 1, Brasília, 2015 (pp. 141-156). Disponível em http://periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/12564. Acesso em 09/03/2017. MUSSALIM, F. A enunciação aforizante: o caso do gênero manifesto. D.E.L.T.A., Número 29 - Especial, 2013 (pp. 467-484). Disponível em www.scielo.br/pdf/delta/v29nspe/v29nspea06.pdf. Acesso em 08/03/2017. VEJA. São Paulo, edição 2407, ano 48, n.º1, 7 de jan. 2015. VIANNA, R. Aspas verbo-visuais. 213 f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

273 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A IMAGEM DA GUERRA: EFEITOS DE SENTIDOS NAS FOTO-ILUSTRAÇÕES DO CONFLITO ENTRE ISRAEL E PALESTINA1 Thiago Ramos Melo2 Adriana Carvalho de Moura3 RESUMO Neste trabalho procuramos analisar como são ofertados efeitos de sentidos acerca dos conflitos entre Israel e Palestina nas foto-ilustrações do artista palestino Bushra Shanan. Em meio aos conflitos na faixa de Gaza, Bushra Shanan utilizou da arte como forma de sensibilizar o mundo sobre os confrontos, a partir da perspectiva palestina, por meio da sobreposição de desenhos em fotos que flagram da fumaça das explosões da guerra. Nossa análise é baseada na proposta teórico-metodológica da Análise de Discurso Crítica (ADC), na perspectiva de Fairclough (2001), por entender que a linguagem, enquanto discurso, é tanto constituída, quanto constituinte da realidade social. Por meio da ressemantização de determinados elementos cristalizados no imaginário sociocultural, o artista lança mão de metáforas visuais para produzir sentido e transmitir seus dizeres, apontado para os horrores deste conflito. Palavras-chave: Conflito Israel-Palestina; Discurso; Efeitos de sentidos; Foto-ilustração.

Introdução

N

o início de 2017, data que marca o aniversário de 70 anos do plano da ONU de partilha da Palestina em dois Estados, um judeu e um árabe, mais de 70 países se reuniram em Paris com o objetivo de pressionar por novas negociações de paz e encontrar uma solução para acabar com o histórico conflito israelensepalestino. A conferência, que defendia a criação de um Estado palestino em coexistência com Israel como solução para o fim dos conflitos na região, aconteceu cinco dias antes da posse de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Em fevereiro, já na presidência americana, Trump, depois dos depoimentos a favor de Israel durante sua campanha, provocou tensão entre a comunidade internacional após manifestar-se contra a solução de dois Estados4. Em declaração5, Hana Ashrawi, um dos membros da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), disse que se a administração de Trump rejeitasse essa política de criação do Estado palestino, isso iria destruir as chances de paz na região, prologando ainda mais o conflito. Neste longo contexto de guerra, buscamos entender como são ofertados os efeitos de sentidos acerca dos conflitos entre Israel e Palestina nas foto-ilustrações6 do artista palestino Bushra Shanan, prduzidas em 2014. Por meio da sobreposição de desenhos em fotos que flagram da fumaça das explosões da guerra, Bushra constrói seus dizeres sobre os confrontos. Embora as imagens datem de 2014, optamos por analisar as foto-ilustrações de Bushra Shanan porque, em primeiro lugar, sua temática é bastante atual, e, em segundo lugar, porque no mundo contemporâneo, sobretudo devido à rapidez de seus discursos, a imagem aparece como uma ferreamente eficiente na transmissão de determinadas mensagens. Acreditamos também que esta manifestação artística, através dos mecanismos de produção de sentidos do discurso imagético, foge aos padrões tradicionais de 1

Trabalho apresentado no GT Discurso, Imagem e Imaginário do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Email: thiago.rmelo09@hotmail.com. 3 Graduada em Comunicação Social – Hab. Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Email: adrianamoura.jor@gmail.com. 4 http://g1.globo.com/mundo/noticia/trump-encanta-israel-choca-palestinos-e-assusta-o-mundo.ghtml 5 http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-02/palestina-lamenta-declaracoes-de-trump-sobre-conflito-entreisrael-e 6 Chamaremos de foto-ilustrações as imagens que apresentam desenhos sobrepostos a fotografias. 274 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


narrativas sobre os conflitos, apresentando-se como uma forma diferenciada de se olhar para aquele cenário de guerra, possibilitando novos entendimentos acerca da questão israelense-palestina. Para compor o corpus de análise, selecionamos uma (01) imagem feita pelo artista palestino Bushra Shanan. Considerando as consequências dos conflitos entre israelenses e palestinos em Gaza, a imagem se apresenta como a mais emblemática no que diz respeito à temática, representando uma síntese das demais. Adotamos na análise algumas das preposições de Fairclough (2001), autor que trabalha na vertente da Análise de Discurso Crítica (ADC) e para o qual a linguagem, enquanto discurso, por um lado constitui a realidade e, por outro, é constituída por esta mesma realidade. Quanto à estrutura do artigo, em um primeiro momento fazemos algumas breves considerações acerca de algumas das discussões presentes em Fairclough (2001) e da Análise de Discurso Crítica (ADC), que é uma proposta teórico-metodológica que analisa a linguagem segundo sua funcionalidade nas práticas sociais. Em seguida, discorremos a respeito das transformações e evoluções nos processos técnicos da imagem. Ainda na discussão sobre imagem, destacamos a natureza opaca da imagem, enquanto produto cultural e social de produção de sentidos que atua por meio de representações. Iniciamos o tópico de análise com uma breve contextualização do conflito entre Israel e Palestina para então analisar a foto-ilustração através das categorias selecionadas para a análise, a saber: intertextualidade (significado acional), representação de eventos/atores sociais (significado representacional) e metáforas (significado identificacional). Por fim, apontamos nossas inferências, avaliando que a fotografia, com seu valor de real, soma-se à arte, com sua capacidade de emocionar, para produzir sentidos. Breves considerações teórico-metodológicas Adotamos aqui alguns preceitos da Análise de Discurso Crítica (ADC), na perspectiva de Fairclough (2001), que é uma proposta teórico-metodológica que analisa a linguagem segundo sua funcionalidade nas práticas sociais. Para o autor, toda prática social “é uma articulação de diversos elementos sociais em uma configuração relativamente estável, sempre incluindo o discurso” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 94). Estes elementos se relacionam dialeticamente, de modo que cada um “interioriza” os outros sem ser a eles reduzidos. A prática social é entendida como um ponto de conexão entre as estruturas sociais mais fixas, onde a linguagem figura como discurso, e as ações individuais mais flexíveis, isto é, os eventos sociais, onde a linguagem se manifesta como textos particulares, produzidos em contextos específicos, por indivíduos específicos. A linguagem figura enquanto discurso é tanto um modo de ação, isto é, um modo pela qual as pessoas podem agir sobre o mundo e sobre os outros, como também um modo de representação. O autor considera ainda que o discurso se apresenta nas práticas de três maneiras. Primeiro, o discurso figura como parte da atividade social inserida em uma prática. Primeiro, enquanto parte da atividade social de uma prática. Em segundo lugar, o discurso atua nas representações. A representação, segundo Fairclough (2001, p. 95), “é um processo de construção social de práticas, inclusive a autoconstrução reflexiva – as representações entram nos processos nas práticas sociais e moldam-nos”. Por fim, o discurso atua nos modos de ser, isto é, na constituição de identidades. A construção e negociação de identidades são construídas no discurso. Os modos de agir, modos de representar e modos de ser correspondem respectivamente ao significado acional, representacional e identificacional. Quanto às categorias analíticas da ADC, consideraremos a intertextualidade (significado acional), representação de eventos/atores sociais (significado representacional) e metáforas (significado identificacional). Vale ressaltar que a relação entre os significados do discurso é também dialética, de modo que cada um internaliza traços de outros, sem se reduzirem a um único significado. Discutiremos a respeito destas categorias durante a análise.

275 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Transformações e evoluções nas múltiplas formas da imagem A imagem tem sido um meio de expressão da cultura humana deste as pinturas pré-histórias das cavernas, muito antes do aparecimento do registro da palavra escrita. De acordo com Joly (2001), o homem, por todo o mundo, deixou vestígios das suas faculdades imaginativas sob a forma de desenhos feitos em rochas, desde os tempos mais remotos do paleolítico até a época moderna. Estes desenhos eram destinados a comunicar mensagens e muitos deles constituíram aquilo que se chamou de “‘os pré-anunciadores da escrita’, utilizando processos de descrição-representação que apenas retinham um desenvolvimento esquemático de representações de coisas reais” (JOLY, 2001, p. 17-18). Segundo Magalhães (2003), o termo imagem, na etimologia latina “ imago”, faz alusão ao espectro, o fantasma, com referência às máscaras mortuárias. No grego, adota-se o sentido de “eikón”, imagem que se caracteriza por guardar certa similaridade com o objeto ao qual representa no mundo real. No sentido latino, a imagem é da ordem da cultura e refere-se a “alguma outra coisa que não ela mesma. Essência que só se realiza pela mediação, através da representação, em oposição ao termo grego (ícone) que se realiza pela apresentação, denotação e sentido imanente” (MAGALHÃES, 2003, p. 62). Além destas, a imagem ganhou muitas outras representações/categorizações ao longo da história, conferindo-lhe características próprias. Em Vida e Morte da Imagem, Debray (1993) apresenta uma cronologia da história da imagem através de uma caracterização circunstanciada de Midiasferas. Para ele, a história da imagem não se confunde com a articulação da história-duração em períodos convencionados (Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos). O conceito de Midiasfera é usado pelo autor para caracterizar a evolução técnica do homem e esclarecer a respeito da trajetória da imagem no Ocidente. Esses três tipos de classificação, segundo Debray (1993), não designam a natureza dos objetos, mas tipos de apropriação pelo olhar. As três midiasferas (Logosfera, Grafosfera e Videosfera) apresentadas por Debray (1993) acompanham a evolução conjunta das técnicas e das crenças e vão conduzir a três momentos na história do visível: “o olhar mágico, o olhar estético e, enfim, o olhar económico. O primeiro suscitou o ídolo; o segundo, a arte; o terceiro, o visual. Mais do que visões, trata-se aí de organizações do mundo” (DEBRAY, 1993, p. 23). A Logosfera corresponde à era dos ídolos, no sentido lato (do grego eídolon, imagem). Este é o período que se estende da invenção da escrita à da imprensa. A Grafosfera, a era da arte, estende-se da imprensa à TV em cores. A Videosfera, por sua vez, corresponde à era do visual. No momento do olhar mágico, alcança-se a infinidade através da imagem. A morte do corpo é suplantada através da imagem. O corpo é falso, enquanto a imagem é reverenciada como a expressão maior da verdade. “A imagem comprovaria o triunfo da vida, mas um triunfo conquistado sobre a morte e merecido pela morte” (DEBRAY, 1993, p. 24). Magalhães (2003) explica que neste período o ídolo assume característica mágica e constitui vínculos transcendentes com o visível e com o invisível, projetando o homem para o infinito. No período do olhar estético, a arte substitui a magia e o homem liberta-se das limitações do inexplicável, percebendo que pode depender de si mesmo, antes de carecer de forças mágicas. Debray (1993, p. 37) alude que quando a técnica começa gradativamente a levar vantagem sobre o pânico e quando a “capacidade humana para alijar o infortúnio, modelar os materiais do mundo, dominar os procedimentos da respectiva figuração pode, enfim, contrabalançar a aflição animal diante do cosmos”, passa-se do ídolo religioso para a imagem de arte. Porém, o autor ressalta que o desencanto mágico leve à consciência da finitude humana. Magalhães (2003) acredita que, ao passo que a imagem perde seu vínculo com o transcendente, em contraposição, passa a atrelar-se à imaginação criadora, ao sensível, ao belo, isto é, à arte. A arte abandona então o espaço sagrado das basílicas para retratar as pessoas, a realidade e a vida. O processo traz em si novas técnicas, novas tecnologias, novas percepções, abrindo espaço para “visual”. De acordo com Debray (1993): Houve "magia" enquanto o homem subequipado dependia das forças misteriosas que o esmagavam. Em seguida, houve "arte" quando as coisas que dependiam de nós tornaram-se, pelo

276 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


menos, tão numerosas quanto as que não dependiam. O "visual" começa logo que adquirimos poder suficiente sobre o espaço, o tempo e os corpos para deixar de temer sua transcendência. Logo que se pode brincar com nossas percepções sem receio dos recuados mundos ignotos (DEBRAY, 1993, p. 37).

O terceiro olhar introduz a arte na era do visual. A arte passa a demandar maior rapidez e produção. Na era da instrumentalização técnica, a reprodutibilidade massiva acaba transformando a “aura” da obra, e o foco não é mais na arte, mas sim no artista. “Essa ‘aura’, de que Walter Benjamin deplorava a fuga por causa de ‘reprodutibilidade técnica’, não se dissipou corno ele receava, mas personalizou-se. Em vez das obras, passamos a idolatrar os artistas” (DEBRAY, 1993, p. 63). Debray (1993) ainda afirma que na era do visual, as suspeitas recaem sobre o inobservável. O que não é visualizável não existe. A era do visual é fluida e nômade, em trânsito e de passagem constante, totalmente ligada em valores de fluxo (de capitais, sons, notícias, imagens), onde rapidez de circulação liquidifica as consistências e alisa as particularidades. Assim, o autor cita que a "arte" garante a transição do teológico para o histórico, do divino para o humano como centro de referência. O "visual" garante a transição da pessoa em sua individualidade para o mundo essencialmente global, ou do ser para o meio. Na era da cultura da visualidade, Bushra Shanan, aproveitando-se da visibilidade das imagens de guerra, ressemantiza os contornos das fumaças de explosões nas fotos do conflito para direcionar a atenção do espectador para consequências que extrapolam os limites da imagem. Imagem e representação: não existem imagens inocentes! De acordo com Joly (2001), em uma sociedade imagética como a nossa, somos cotidianamente levados à sua utilização, decifração e interpretação de imagens. Segundo a autora, somos consumidores de imagens, “daí a necessidade compreendermos a maneira como a imagem comunica e transmite as suas mensagens; de fato, não podemos ficar indiferentes a uma das ferramentas que mais dominam a comunicação contemporânea” (JOLY, 2001, p. 1). Para Magalhães (2003) a imagem é, antes de qualquer coisa, um produto cultural, e, por isso, social. Segundo o autor, não existem imagens inocentes, puras ou neutras, visto que elas se constituem sempre como um querer dizer algo para alguém. Da mesma forma que a palavra, a imagem é um signo que adquire sentido a partir de um contexto no qual foi produzida. Neste sentido, imagem, enquanto produto social, “é prenhe de desvios, vazios e interpretações” (MAGALHÃES, 2003, p. 89). Vilches (1984) afirma que a imagem, enquanto forma vazia, depende da competência interpretativa do leitor. Para ele, a imagem apenas tem significação porque existem pessoas que se perguntam sobre seu significado. Deste modo, as imagens são também preenchidas de sentidos a partir da experiência do leitor. O autor ainda alerta que os significados da imagem passam por pressuposições de contexto e convenções culturais. Do mesmo modo, Joly (2001) alude que é preciso não esquecer que se a imagem é representação, isto implica que ela utilize necessariamente regras de construção. Se estas representações são compreendidas por outros que não aqueles que as fabricam, é porque existe entre elas um mínimo de convenção sociocultural. Os sentidos estão entre os signos e as regras de conteúdo culturais que filtram a conexão com os objetos. Sem a pretensão de nos aprofundarmos nos estudos da recepção, tal compreensão é importante por permitir perceber que “toda teoria da imagem pressupõe uma teoria do significado e deve estudar os sistemas culturais atualizados nas operações de representação” (VILCHES, 1984, p. 28). Ao buscar entender os mecanismos de produção de sentidos na imagem, isto é, as propriedades discursivas da matéria imagística, Magalhães (2003) faz algumas considerações: 1 – A imagem em si, em sua materialidade icônica, não possui a clareza em que se acredita; 2 – A imagem enquanto produto cultural faz parte de uma rede de produção social de sentido, “e por isso, revela, potencialmente alguma significação, mas descritiva e restritiva aos limites culturais do contexto” (MAGALHÃES, 2003, p. 87); 3 – para ser enquadrada

277 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


como matéria discursiva, orientada para a produção de determinado sentido, a imagem necessita do apoio de recursos discursivos e reconhecidos socialmente. Considerando isso, no próximo tópico analisaremos a imagem selecionada para compor o corpus deste artigo. Neste sentido, nossa proposta é analisar a imagem como texto. De acordo com Vilches (1984), enquanto textos, as imagens são caracterizadas como um conjunto de diversos componentes formais e temáticos que obedecem a regras e estratégias de produção de sentidos. A noção de texto permite perceber a imagem como um conjunto de elementos situados no interior de uma unidade coerente. A coerência, segundo o autor, permite compreender de que coisa se está falando, ou no caso da imagem, que coisa se está percebendo ou lendo. Com isso, para Vilches (1984), a coerência textual na imagem não é somente o princípio da identificação semântica (que se vê), mas também uma função de distribuição coordenada de informação visual no nível da expressão. Vale ressaltar que a noção de imagem enquanto texto não reduzirá a análise a uma mera descrição dos mecanismos linguísticos. Nossa análise busca perceber como os elementos que compõe a imagem se organizam na produção de sentidos. A análise No início de 2017, data que marca o aniversário de 70 anos do plano da ONU de partilha da Palestina em dois Estados, um judeu e um árabe, mais de 70 países se reuniram em Paris com o objetivo de pressionar por novas negociações de paz e encontrar uma solução para acabar com o histórico conflito israelensepalestino. A conferência, que defendia a criação de um Estado palestino em coexistência com Israel como solução para o fim dos conflitos na região, aconteceu cinco dias antes da posse de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Em fevereiro, já na presidência americana, Trump, depois das declarações a favor de Israel durante sua campanha, provocou tensão entre a comunidade internacional após manifestar-se contra a solução de dois Estados. Em declaração7, Hana Ashrawi, um dos membros da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), disse que se a administração de Trump rejeitasse essa política de criação do Estado palestino, isso iria destruir as chances de paz na região, prologando ainda mais o conflito. Diante disso, antes de iniciarmos a análise da imagem, é necessária a uma breve contextualização a respeito do conflito entre Israel e Palestina, visto que, como lembra Vilches (1984), o sentido da imagem não é jamais explícito, mas latente, fruto dos vários campos sujeitos a interpretações culturais inter-relacionadas com os modos de percepção e os contextos espaço-temporais históricos e sociais. Neste sentido, a imagem é um conjunto de signos instáveis que não aparecem nunca isolados, “mas constituindo-se parte de um todo coerente (um texto) e que necessita da competência do leitor como de um contexto preciso para que seu sentido possa se estabilizar” (VILCHES, 1984, p. 83). Contextualmente, o conflito entre israelenses e palestinos é antigo. Suas raízes retornam ao início do século XX, quando o movimento sionista, que procurava criar um Estado para os judeus, ganhou força, sobretudo devido ao antissemitismo sofrido por judeus na Europa. A migração em massa de judeus de vários países para a Palestina e, subsequentemente, com a criação do estado judeu de Israel no Oriente Médio – fruto da divisão territorial feita pela ONU entre judeus e as árabes –, as tensões se intensificaram. Após a fundação de Israel, em 14 de maio de 1948, Egito, Jordânia, Síria e Iraque invadiram o território. Com o término da primeira guerra árabe-israelense, Israel manteve seu território e ocupou parte do território destinado aos palestinos pela ONU. Em 1967, na chamada Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou diversos territórios rivais, dentre eles, a Faixa de Gaza. Neste período, meio milhão de palestinos fugiram.

7

http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2017-02/palestina-lamenta-declaracoes-de-trump-sobre-conflito-entreisrael-e 278 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Somente em 2005, Israel retirou seus militares da Faixa de Gaza, entregando sua administração à Autoridade Nacional Palestina (ANP), governo palestino cujo principal grupo, o Fatah. Apesar disso, Israel continuou a controlar as fronteiras e o acesso marítimo a Gaza. Gaza é atualmente controlada pelo grupo islâmico palestino Hamas. Mesmo assim, israelenses e palestinos ainda vivem num estado de tensão e conflito permanentes. Após fracasso nas negociações de paz intermediada pelos Estados Unidos e o anúncio, no início de junho de 2014, de um governo de união nacional entre as facções palestinas Fatah e Hamas, considerado inaceitável por Israel, iniciou-se novamente os conflitos. Depois de anos de luta armada, dois levantes palestinos, várias guerras na Faixa de Gaza, os Territórios palestinos, Jerusalém e Israel estão passando desde 2015 por novos conflitos. Em meio aos conflitos na faixa de Gaza, o artista palestino Bushra Shanan utilizou da arte como forma de sensibilizar o mundo sobre os confrontos a partir da perspectiva palestina. Aproveitando das imagens da fumaça de explosões da guerra na Palestina, Bushra transformou-a em outras figuras, por meio da sobreposição de desenhos. As imagens produzidas pelo artista datam de 2014. Em de Junho daquele ano, três jovens israelenses que moravam na Cisjordânia foram sequestrados e mortos. Israel culpou o Hamas e prendeu centenas de membros do grupo. Em retaliação, o Hamas disparou foguetes contra território israelense que revidou, lançado foguetes na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. No início de Julho, um dia após o funeral dos jovens israelenses, um jovem palestino foi sequestrado em Jerusalém Oriental e assassinado. Três israelenses foram acusados de queimá-lo vivo o que ocasionou, em Gaza, no aumento do disparo de foguetes contra Israel. No início de Agosto, o conflito entre israelenses e palestinos na Faixa de Gaza se intensificou. Embora as imagens tenham sido produzidas em 2014, optamos por analisar as foto-ilustrações de Bushra Shanan, em primeiro lugar porque sua temática é bastante atual, e em segundo lugar, porque acreditamos que esta manifestação artística, através dos mecanismos de produção de sentidos do discurso imagético, foge aos padrões tradicionais de narrativas sobre os conflitos, apresentando-se como uma forma diferenciada de se olhar aquele cenário de guerra, possibilitando novos entendimentos acerca da questão israelense-palestina. Diante disso, analisaremos uma das imagens criadas pelo artista como forma de perceber os efeitos de sentidos ali ofertados. Por questão de espaço, foi selecionada apenas uma (01) imagem para compor a análise. Considerando as consequências dos conflitos entre israelenses e palestinos em Gaza, a imagem a seguir se apresentou como a mais emblemática no que diz respeito à temática.

Figura 1 – Autor: Bushra Shanan

279 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Acima, temos a imagem ilustrada pelo artista palestino Bushra Shanan. Inicialmente, quanto à representação dos atores sociais, Resende e Ramalho (2011) lembram que a forma como os atores sociais são representados em textos podem ter implicações ideológicas. Segundo elas, as representações de práticas sociais são particulares, de modo que são construídas por pessoas particulares e a partir de determinadas particulares, representam atores envolvidos de uma maneira e não de outra, conforme os sentidos que se quer atribuir à mensagem. A imagem traz, em meio a fumaça, o rosto de crianças. As expressões nos rostos das crianças criam a ideia de fragilidade, desamparo e inocência – que são culturalmente associadas à figura da criança. As representações imagéticas ancoram-se em convenção sociocultural para produzir sentidos (JOLY, 2001). Estas relações estão diretamente ligadas ao caráter icônico das imagens, isto é, a capacidade do signo de representar por semelhança o mundo objetivo ou de ser a imagem de um objeto real. “A mente constrói modelos que se adequam por semelhança à realidade objetiva e neste sentido os ícones são pressuposições de imagens” (VILCHES, 1984, p. 25). Como mencionado anteriormente, os sentidos estão entre os signos e as regras de conteúdo culturais que filtram a conexão com os objetos. Assim, a imagem apoia-se em elementos reconhecidos compartilhados socialmente. Na imagem, a construção de sentidos acerca das expressões das crianças acontece por um processo metafórico. De acordo com Fairclough (2001), as metáforas não são apenas adornos estilísticos superficiais dos discursos, elas são parte integrante e fundamental de todos os tipos de linguagem, estruturando o modo como o indivíduo pensa e age, os seus sistemas de conhecimento e crenças. “Quando nós significamos coisas por meio de uma metáfora e não de outra, estamos construindo nossa realidade de uma maneira e não de outra” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 241). Algumas crianças aparecem com olhos fechados, outras com expressão de sofrimento, remetendo intertextualmente às crianças que foram atingidas com o conflito na região. Intertextualidade, cabe aqui explicar, é um conceito proveniente das discussões bakhtinianas e que foi usado pela primeira vez por Julia Kristeva (1974). O conceito diz respeito à forma como todo texto se constrói como mosaico de citações de outros textos. Deste modo, intexrtextualidade refere-se à “propriedade que têm os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 114). Resende e Ramalho (2006, p. 101) esclarecem que a intertextualidade é uma questão de recontextualização, isto é, “um movimento de um contexto a outro que acarreta transformações particulares dependendo de como o material é movimentado, recontextualizado, de como ele figura no novo contexto”. Segundo as autoras, a recontextualização de determinados textos, bem como as formas que eles são representados, dizem muito sobre o posicionamento político de um evento discursivo na rede de práticas sociais. Assim, a quantidade de rosto aparece na imagem também é um indicativo do grande número de crianças que foram vítimas do confronto. De acordo com a Unicef, em 2014 (data das imagens), os bombardeios do Exército de Israel em Gaza deixaram 392 crianças mortas, 2.502 feridas e 370 mil com a necessidade ajuda psicológica. Os bombardeios israelenses ainda afetaram 142 escolas em Gaza, incluídas 89 da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (UNRWA). As cores escuras no desenho, aproveitadas à partir do fundo da foto, remetem metaforicamente a algo sombrio, obscuro. Do mesmo modo, a imagem dos rostos se desfazendo remete à metáfora da morte, da vida que se esvai. Assim, a imagem cria um contrabalanço entre a imagem da criança, que é a figura da vida que se inicia, e elementos que remetem à imagem da morte, da vida que finda. Vale lembra, neste sentido, que o artista apoia-se em uma imagem fotográfica que, segundo Magalhães (2003, p. 83), “é prova de verdade, pois denota a que quem produziu esteve no lugar em que a cena fotografada ocorreu”. Assim, a fotografia tem a capacidade de retratar dados da realidade, preservando traços de pessoas e lugares no tempo. No que tange ao desenho sobreposto, é visto que o artista procura sensibilizar o leitor para a situação do conflito, que já vitimou centenas civis, dentre eles, crianças inocentes. A fotografia, com seu valor de real, soma-se à arte, com sua capacidade de emocionar, para produzir sentidos. 280 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Considerações finais O ser humano é, por natureza, um consumidor de imagens. Desde o surgimento da humanidade, a imagem sempre foi utilizada como ferramenta de comunicação. Devido ao fascínio que desperta, ao longo da história, o homem sempre procurou aperfeiçoar seu conhecimento acerca da imagem, buscando a evolução conjunta de suas técnicas, bem como do entendido acerca das consequências psicológicas, cognitivas, sociais, epistemológicas, e etc, que esta evolução acarreta. Os meios de produção, instrumentos técnicos e mídias, assim como os modos de armazenamento e transmissão imagéticos mudaram consideravelmente com o passar do tempo, provocando não apenas mudanças no modo de produção das imagens, como também na percepção que o indivíduo tem da realidade à sua volta. Como meio de expressão cultural, a imagem utiliza-se de processos de representações para comunicar e transmitir mensagens. Enquanto produto social, a imagem está sempre aberta ao deslize de sentidos que atravessa a cultura, relegando ao contexto o papel de reduzir parcialmente a sua opacidade, e ao destinatário a competência interpretativa para estabilizar os sentidos que por ali perpassam. Em meio ao antigo conflito entre israelenses e palestinos, o artista Bushra Shanan se utiliza da imagem como manifesto para tentar chamar a atenção do mundo ante aos confrontos. A arte, com sua capacidade de emocionar, e a fotografia, enquanto ferramenta de representante do real, são postas em diálogo, como forma de sensibilizar o destinatário. Por meio da ressemantização de determinados elementos cristalizados no imaginário sociocultural, o artista lança mão de metáforas visuais para produzir sentido e transmitir seus dizeres, apontado para os horrores deste conflito que já vitimou milhares de pessoas, dentre elas, muitas crianças. Referências DEBRAY, Régis. Vida e Morte da Imagem. Petrópolis, Vozes, 1993. FAIRCLOUGH, Norman. A dialética do discurso. Trad. Isabel Magalhães. In: MAGALHÃES, Isabel (Org.). Discurso e Práticas de Letramento: Pesquisa Etnográfica e formação de professores. Campinas: Mercado das Letras, 2012, p. 93-107. _______. Discurso e mudança social. Trad. Isabel Magalhães. Brasília: UnB, 2001. JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. 4. ed. São Paulo: Papiros, 2001. KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. MAGALHÃES, Laerte. Veja, Isto é, leia: produção e disputas de sentido na mídia. Teresina: UFPI, 2003. RESENDE, Viviane de Melo, RAMALHO, Viviane. Análise de discurso (para a) crítica: o texto como material de pesquisa. Campinas: Pontes, 2011. SANTAELLA, Lucia; NÖRTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica e mídia. São Paulo: Iluminuras, 2008.

VILCHES, Lorenzo. La lectura de la imagen. Barcelona: Paidós, 1984. MATÉRIAS 10 perguntas para entender o conflito entre israelenses e palestinos. Matéria de site. In: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/08/140730_gaza_entenda_gf_lk.shtml> Acesso em: 10 de abril de 2017. Artistas palestinos transformam fumaça das bombas israelenses em imagens poderosas. Matéria de site. In: < http://www.hypeness.com.br/2014/07/fumaca-das-bombas-palestinas-sao-transformadas-emoutras-imagens-pelas-maos-de-artistas-locais> Acesso em: 04 de abril de 2017.

281 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Conferência da paz sobre Oriente Médio reúne potências em Paris. Matéria de site. In: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/01/1850042-conferencia-da-paz-sobre-oriente-medio-reunepotencias-em-paris.shtml> Acesso em: 07 de abril de 2017. Conflito em Gaza já matou 392 crianças, diz Unicef. Matéria de site In: < http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/08/conflito-em-gaza-ja-matou-392-criancas-diz-unicef.html> Acesso em: 10 de abril de 2017. Entenda o conflito entre israelenses e palestinos. Matéria de site. In: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2014-07/entenda-o-conflitos-entre-israelenses-epalestinos> Acesso em: 05 de abril de 2017. Shanan, Bushra. Foto-ilustração. Matéria de site. In: <http://www.hypeness.com.br/2014/07/fumaca-dasbombas-palestinas-sao-transformadas-em-outras-imagens-pelas-maos-de-artistas-locais> Acesso em: 05 de março de 2017.

282 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


LA MATÉRIALITÉ SIGNIFICANTE DU CORPS DANS LES MANIFESTIONS DU GROUPE FEMEN 1 Emanuel Angelo Nascimento 2 RÉSUMÉ L’objectif de ce travail, c’est d’analyser les formulations visuelles des images de manifestation du groupe Femen publiées sur les journaux en ligne comme, par exemple, le français Le Monde. Notre point de repère théorique et analytique, en ce sens, se déroule dans la perspective du matérialisme historique de l'analyse du discours française, à partir de laquelle on vise à observer les mouvements du discours par rapport à les différentes relations entre corps, mémoire et manifestation. En considérant l’imbrication entre les effets de la matérialité verbale sur le non-verbal (ORLANDI, 1995b), on cherche de jeter un regard plus attentif sur le discours et sur l’idéologie mobilisés par le group Femen dans une relation ouverte entre « la structure et l’événement » (PÊCHEUX, 1983) en ce qui concerne à les relations de tension et conflit dans les mouvements de résistance. En outré, on analyse l'opacité de sens autour du corps dans la relation avec le symbolique dans les frontières entre la mémoire et des questions historiques, politiques et sociales. Mots clés: Femen; Manifestation; Corps; Image; Discours.

Introduction

E

n tenant compt des présupposés théoriques et analytiques de l'analyse du discours française, les analyses à partir de ce travail se déroulent dans la perspective du matérialisme historique, à partir de laquelle nous cherchons à analiser les mouvements du discours autor des différentes relations entre corps, mémoire et manifestation, en particulier, par rapport à les formulations visuelles d'un événement discursif – les cas publié sur le portail de nouvelles Le Monde d’une militante féministe qui s'est introduit dans une conférence de presse de Marine Le Pen, jeudi 23 février 2017, à Paris. La discursivité des manifestations dans les mouvements sociaux c'est un important point d'entrée dans le parcours analytique que nous proposons ici. En ce sens, on observe certains scènes prototypiques de manifestations mobilisées par le groupe Femen, d'origine ukrainienne et fondé à Kiev en 2008 par Anna Hutsol. Nous mettons en évidence, principalement, les réflexions proposées par Pêcheux (1982), quand il pose la question suivante: “des abstractions comme « le peuple », « les masses », « la lutte des classes » peuventelles être montrées (peintes, filmées ou télévisées) à l'état de concept, sans travestissement?” (PÊCHEUX, 1982: 54). L'image dans ce sens fonctionne comme un dispositif ainsi que d’un « opérateur de la mémoire sociale » (PECHEUX, 1984). Devant cela, il est essentiel de noter également, que le parcours analytique de ce travail est affecté par les effets des significations soulevées par des images qui constituent le matériau d'analyse et par des chemins d'interprétation qui mobilisent significations des mouvements sociaux dans la relation de résistance du corps en tant que corps traversé par le discours, par l’histoire et par l'idéologie. Les formulations visuelles d'un evenement discursif Une fois que on vise à analyser les formulations visuelles sur la matérialité signifiante du corps par un geste d'interprétation des images à l'égard des discours qui composent les manifestations sociaux et politiques dans des contextes différents filtrés par le spectre de la caméra, on considère des importants concepts 1

Travail presenté dans le GT 06 – Discurso, Imagem e Imaginário du II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), réalisé entre 26 et 28 avril 2017. 2 Étudiant spécial du programme d'études supérieures en Linguistique à l'Institut d’Études du Langage (IEL) de l'Université de Campinas (UNICAMP). E-mail: emanuellangelo@yahoo.com.br. 283 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


comme, par exemple, de « delinéarisation de l'image » et de « formulation visuelle » par rapport à la notion de « composition matérielle » proposée par Suzy Lagazzi, quand elle insiste sur l’investissement analytique sur « les formulations visuels de corps qui se déroulent dans les différentes images du sujet et nous montrent l'importance de la rémission de l’intradiscours au interdiscours pour comprendre la textualisation des images » 3 (LAGAZZI, 2014b: 111). En examinant des coupures de films et de documentaires, l’auteure souligne également l’importance de discuter du corps social en prenant « l’image » dans les procédures de métaphorisation métonymique afin de mieux comprendre ses trajets de mémoire et de discoursivization dans les portails de nouvelles sur internet. En reprenant les paroles d’autre auteure, Eni Orlandi, « il s’agit de comprendre comment les discours se textualisent dans cet espace d’interprétation » (ORLANDI, 2001: 117). Ainsi l'objet de l'analyse – qui est le cas d’une militante féministe du groupe Femen qui récemment a interrompu une conférence de presse de Marine Le Pen, à Paris – est considéré à partir de nos observations un événement discursif. Dans cette optique, on mobilise la notion de événement discursif, que, selon Pêcheux (1983), est entendu comme le point de rencontre entre l'actualité et la mémoire. Corps, discours et manifestation Dans ce travail, on cherche de comprendre la relation entre corps, discours et des différentes formes de manifestation social en tant que forces de résistance et de lutte symbolique, politique et historique. Et dans le collectif « commun et hétérogène » ces corps en manifestant trouvent d'autres corps au combat. Ainsi c’est dans l’interdiscours que les corps sont constitués dans la corporéité comme support discursive et idéologique. De la même manière, en pensant dans une approche sociologique, c’est à partir d’une société opérant comme esprit commun que l’esprit de corps: relève des processus de socialisation qui déterminent tous les groupes humains, il assure d'une certaine cohérence l'idée d'institutionnalisation et à l'inverse est perçu comme à l'origine d'un possible dévoiement du sentiment d'identité […] sociale (HAROCHE & GUGLIELMI, 2005: 5).

Devant cela, il est très important – surtout en considérant l'analyse de certaines scènes stéréotypées des manifestations que nous vous ferons parvenir – prendre en compte la perspective de la sociologie du corps, proposée par David Le Breton, qui nous dit que « le corps est socialement construit, tant dans ses mises en jeu sur la scène collective que dans les théories qui en expliquent le fonctionnement ou les relations qu’il entretient avec l’homme qu’il incarne (LE BRETON, 1992: 29). En observant le historique des actions de protestations organisés par les militantes du groupe Femen, on comprend cet esprit de corps en tant que organisme collectif. Ce n'est pas un hasard que le Femen est devenu internationalement connu en organisant des actions, essentiellement seins nus avec des slogans écrits sur le corps, dans le but de défendre les droits des femmes, ce qui le conduit aussi à s'impliquer sur plusieurs autres sujets, notamment pour la démocratie et contre la corruption, la prostitution ou encore l'influence des religions dans la société, au départ uniquement dans l'Ukraine post-soviétique. Ainsi, les manifestations de ce groupe aux jours actuels peuvent être comprises, dans une perspective historique, sociologique et discursive, comme une manifestation collectif constituée par des différentes corps traversés par le mémoire et par l’idéologie dans les frontières politiques et sociales.

3

Traduction notre à partir de l'original en portugais: « (...) formulações visuais do corpo que se desdobram em diferentes imagens do sujeito e nos mostram a importância da remissão do intradiscurso ao interdiscurso para compreender a textualização das imagens ». 284 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


C'est sur ce point que le corps est considéré comme support du discours, en tenant compt des différentes manières dont la corporéité est formulée, en particulier, dans différentes matérialités signifiantes et à partir des discourses d’autre 4. Femen dans une conference de presse de marine le pen Dans le collectif « commun et hétérogène » les formulations visuelles des corps trouvent d'autres corps au combat. Corps et discours sont révélées, en ce cas, comme forme de résistance et de lutte sociale, politique, militant et symbolique. Les mouvements de lutte et de résistance ainsi sont placés sur la frontière des corps, des espaces et de la mémoire. En tenant compte des réflexions en ce qui concerne la temporalité et la spatialité dans une perspective discursive « la “mémoire” intervient cependant, pour cadrer implicitement la situation dans l’espace » (ACHARD, 1984: 236). La mémoire, dans ces cas, doit être comprise en termes pecheutiennes « non pas dans le sens directement psychologiste de “mémoire individuelle”, mais aux sens entrecroisés de la mémoire mythique, de la mémoire sociale inscrite dans des pratiques, et de la mémoire construite de l’historien » (PÊCHEUX, 1984: 262). Prenons par exemple le cas des images (d’une activiste Femen) extraites d’un vidéo incorporé dans le portail de nouvelles Le Monde:

Figure 1: activiste Femen interrompt conférence de presse de Le Pen

Les manifestations contre un système de pouvoir politique, dictatorial, répressif mettent des différentes forces en confrontation. Dans cette relation, le spectateur est exposé à une scène marquée par le geste de l'autre comme pratique discursif traversée par le conflit en tant que un élément symbolique dans sa matérialité visuelle et dans les frontières sociales. En ce cas, l’image (voir figure 1) de l’activiste Femen qui a interrompu conférence de presse de Marine Le Pen, jeudi 23 février 2017, à Paris, convoque des sens mobilisés dans l’interdiscours. Sur le corps de l’activiste on peut observer par exemple le phrase « Marine féministe fictive » écrits comme forme de critique manifesté contre la campangne de Le Pen, à l'époque candidate à la présidence de la République française. En considérant l’imbrication entre les effets de la matérialité verbale sur le non-verbal (ORLANDI, 1995b), cette forme de manifestation comprend les formulations tant visuelles que les formulations écrites, produisant des différents effets de sens. Cet événement discursif marqué par un acte de protestation s'est passé pendant la conférence intitulée « La politique internationale de la France dans un monde multipolaire », devant des représentants du corps diplomatique et de nombreux journalistes français et internationaux. 4

La matérialité du social interpellée par le discours d’ autre, en ce sens, c’est ce que Pêcheux (1983) traitait comme l'insistance de l’autre en tant que loi des espaces sociaux et de la mémoire historique et politique. 285 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Un autre point important que on peut noter est que la militante Femen a été évacuée sans ménagement par plusieurs membres du service d'ordre du Front national, le DPS (Département Protection Sécurité), puis enfermée dans une pièce, dans l'attente de la police.

Figure 2: activiste Femen évacuée par le service de sécurité

À partir de cette image ci-dessus (voir figure 2) au moment que l’activiste Femen est évacuée par le service de sécurité du Front national, il est fondamental de pointer les différentes positions occupées par les sujets, qui indiquent la mobilisation de la mémoire et des sens historiquement construits. Tel que réfléchit Eni Orlandi « [...] sujet et sens se constituent mutuellement, que par leur inscription dans le jeu des multiples formations discursives [...] » (ORLANDI, 1995a: 20). Donc il y a des corps en manifestant qui qui comprennent différentes idées de lutte. Il y a aussi, en terms althussériennes, par exemple « l'Appareil d'État qui comprend deux corps : le corps des institutions qui représentent l'Appareil répressif d'État d'une part, et le corps des institutions qui représentent le corps des Appareils idéologiques d'État d'autre part » (ALTHUSSER, 1970: 25). Ces corps, traversés par la mémoire et par des forces sociales et politiques, sont formulées discursive et historiquement. En pensant à la matérialité du corps, nous sommes conduit à considérer la relation entre corps et les espaces de frontière (politique, social, historique), aussi bien que les relations avec l’ autre. Les corps représentent des différents types de lutte sociale et constituent les relations entre ces corps, les manifestations et l’ideologie de résistance à l'intersection de la mémoire d'autres événements. Par conséquence, comme on peut observer, ces relations sont marquées par la tension et le conflit. En ce qui concerne à la structure dans les compositions visuelles, comme proposé par Lagazzi (2014a), il est possible d'observer dans les figures 1 et 2 comment la formulation visuelle se déroule dans différentes scènes sociales. Métaphoriquement, selon l'auteure, en investissant dans l'analyse de l'image, on observe comme elle projette des sens condensés sur l'objet em évidence. Ainsi, on peut noter à partir de ces scènes un rapport par le processus d’altérité, de delinéarisation et de derive de sens autor de ces images. Métonymiquement, toujours selon Lagazzi (2014a), l'image marque le glissement des sens par la réitération de la proximité de l'objet au point. Dans ce spectre, il y a le corps qui interrompt que l’événement politique et dont l'image glisse d'autres sens invoqués par la mémoire. En outre: il y a un boycott de ce corps et cette protestation sur le plan social, en mettant en évidence la tension et le conflit dans la relation entre l'intra et l’interdiscours. Remarques finales Au cours des analyses faites dans ce travail, nous avons cherché à montrer le fonctionnement discoursif des formulations visuelles d'un événement discursif, en tenant compte le cas en particulier d'une manifestation du groupe Femen. 286 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Dans l'entrelacement des images observées, nous avons réalisé que les systèmes de signes ne signifient pas séparément. En conséquence, l'image et l'événement du discours de lutte e de résistance signifient ensemble dans leur relation entre la matérialité symbolique, historique et discursive – ainsi que représentant des forces interpellées par l’idéologie. Également ce travail a essayé de faire montre la matérialité signifiant du corps dans la relation entre corps, mémoire et discours à partir des images de manifestations dans différents mouvements de résistance politique et social, comme dans le cas spécifiquement de l’interruption d’une conférence de presse de Marine Le Pen à Paris par une militante Femen seins nus pendant la campagne présidentielle en France, au début de 2017. Ainsi on peut observer comment l’imbrication entre les effets de la matérialité verbale sur le nonverbal s'inscrit sur le corps de cette militante, que était marqué par le slogan en évidence « Marine féministe fictive! ». Cet événement discurif et symbolique qui dépasse les frontières des corps se constitue après la rupture des formulation des sens en tant que négation d’um systeme et contre l'idéologie politique de l’autre. Sous des différentes formulations verbales et non-verbales, le dire se pose dans les frontières entre le corps et la résistance, plus particulièrement, entre des différents corps qui se trouvent dans des espaces publics. Le corps met en jeu une scène prototypique de manifestation, dont la composition visuelle indique les limites intra et interdiscursives sensibles, très importantes pour analyser le processus de structuration des conflits et de tensivité de/dans le social. Les procédures d'identification des sujets sont données à cet égard par le croisement des processus métaphoriques et métonymiques. Donc les mouvements sociaux de manifestations politiques, tels que ceux organisés par le groupe Femen, sont structurés et formulées, en ces sens, dans une relation ouverte entre « la structure et l’événement » (PÊCHEUX, 1983). Ces corps et ces mouvements sont ainsi traversés par la langage. Ils occupent des différents spaces de résistance ainsi que des différents corps en protestant dans les frontières entre le discours, l’idéologie et l’histoire. Références ACHARD, P. Mémoire et production discursive du sens. In: ACHARD, P.; GRUENAIS, M. P.; JAULIN, D. (éds). Histoire et Linguistique, Actes de la table ronde « Langage et Societé » Paris, 28-29-30 avril 1983, MSH, p. 235-241, 1984. ALTHUSSER, L. Idéologie et appareils idéologiques d'État. La Pensée, n. 151, juin 1970. HAROCHE, C.; GUGLIELMI, G. J. Esprit de corps, démocratie et espace public. Paris: Presses Universitaires de France, Puf, 2005. LAGAZZI, S. A deslinearização em diferentes materialidades significantes. In: XXIX Encontro Nacional da ANPOLL, GT de Análise do Discurso. Florianópolis: UFSC, 2014a. ____. Metaforizações metonímicas do social. In: Orlandi, E. (org.) Linguagem, sociedade, políticas. Campinas: RG Editores, p. 105-112, 2014b. LE BRETON, D. La sociologie du corps. Paris: Puf, Que sais-je?, 1992. ORLANDI, E. Les formes du silence. Dans le mouvement du sens. Édition française. Paris: Cendres, 1995a. ____. Efeitos do verbal sobre o não verbal. Rua, Campinas, v.1, n.1, p. 35-47, 1995b. ____. La ville comme espace politique-symbolique. Des paroles désorganisées au récit urbain. Langage et societé, n. 96, p. 105-127, 2001. PÊCHEUX, M. Délimitations, retournements et déplacements. L'Homme et la société, v.63-64, n. 1, p. 53-69, 1982. ____. Le discours: structure ou événement? Communication inédite à la Conférence « Marxism and the interpretation of culture: limits, frontiers, boundaries » Actes de l’Université de l’Illinois, Urbana-Champaign, 6-12 juillet 1983. ____. Rôle de la mémoire. In: ACHARD, P.; GRUENAIS, M. P.; JAULIN, D. (éds). His toire et Linguistique, Actes de la table ronde « Langage et Societé » Paris, 28-29-30 avril 1983, Editions de la Maison des Sciences de l’Homme, p. 261-267, 1984. 287 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


DISCURSOS MIDIÁTICOS SOBRE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: PERSPECTIVAS COMPARADAS1 Fábio Soares da Costa2 Isabela Naira Barbosa Rêgo3 Camila de Barros Rodenbusch4 Andreia Mendes dos Santos5 RESUMO A pesquisa desenvolve reflexões sobre os sentidos enunciados em quatro reportagens exibidas no Programa Esporte Espetacular, da Rede Globo, em janeiro de 2017. Este conjunto enunciativo apresentou como o esporte é desenvolvido nas aulas de educação física escolar em quatro países: Brasil, Inglaterra, Estados Unidos e Japão. A opção teórico-metodológica foi a análise discursiva baseada na Análise de Discurso Crítica (ADC), a partir das contribuições de Fairclough (2001), Verón (2004) e Magalhães (2003), que objetivou identificar as representações relacionais entre esporte e educação, bem como as estratégias discursivas construídas nas reportagens. A discussão dessa problemática passou pela reflexão teórica sobre o texto/imagem como discurso social e sobre as representações do esporte na educação física escolar como fenômeno discursivo e ideológico. A enunciação esportiva como currículo majoritário no ambiente educacional foi a base da análise que fundamentou a investigação. Palavras-chave: ADC; educação física; escola; esporte.

Introdução

A

educação física, como disciplina de ensino escolar, consolidada por sua notória importância enquanto mediação de aprendizagem na escola vem sendo demasiado discutida nestes tempos, sobremaneira pelas mudanças sobre sua obrigatoriedade no ensino médio. Fortalecida pelas pesquisas científicas das humanidades e saúde que analisam os aspectos inerentes ao desenvolvimento físico, afetivo, cognitivo, motor e emocional humano, está sendo secundarizada enquanto estratégia pedagógica, quando pensada em ambiente político legislativo e executivo, que ignoram sua essencialidade na constituição de um sujeito plural, cultural e crítico, que tem nas diversas vivências corporais a oportunidade de pensar sobre si e o ambiente que constitui e é constituído. A educação física escolar é, também, considerada pauta, notícia, fundamento esportivo midiático, discurso educacional e itinerário de uma cultura esportiva midiatizada que persuade cada vez mais seus receptores por vias da televisão, ainda mais se relacionada intimamente à figura de heróis esportivos que tiveram sua trajetória de sucesso iniciada nessas aulas. A relação estabelecida entre as mídias e a educação física escolar, e sobremaneira a mídia televisiva, tem nos instigado a pensar como o telespectador vem sendo informado sobre o papel da educação física escolar na vida dos educandos, como se constitui, como é desenvolvida, seus benefícios, dificuldades e

1

Trabalho apresentado no GT 06 – Discurso, Imagem e Imaginário II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Doutorando pela Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Porto Alegre - RS. Endereço eletrônico: fabiosoares.com@hotmail.com 3 Mestra em Comunicação pelo PPGCOM da Universidade Federal do Piauí - UFPI. Endereço eletrônico: isabelarego.nbr@gmail.com 4 Doutoranda pela Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Porto Alegre - RS. Endereço eletrônico: camila.rodenbusch@acad.pucrs.br 5 Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Porto Alegre - RS. Endereço eletrônico: andreia.mendes@pucrs.br 288 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


estratégias para o desenvolvimento de valores educacionais em tempos de liquidificação 6 política, administrativa e educacional vividos hoje. Nesta perspectiva, enunciamos como problemática deste estudo, perceber quais as representações de currículo são propostas pela TV aberta a partir de programas, ditos, especializados. Como as enunciações identificadas em reportagens que anunciam a educação física escolar enquanto núcleo de discussão pedagógica acionam sentidos sobre desenvolvimento pedagógico e seus objetivos educacionais? Que elementos culturais, informativos e educacionais são produzidos, recebidos e postos em circulação a partir do suporte midiático televisivo que é um dos principais meios de veiculação dos sentidos de relação entre esporte, educação e educação física? As respostas a essa problemática iniciam-se com a apresentação reflexiva teórica sobre enunciação e discurso do gênero da televisão, como discurso social e sobre as representações de educação, como fenômeno discursivo e ideológico. Os modos de enunciação da relação estabelecida entre o esporte e as aulas de educação física escolar são suportes desta análise, que se fundamenta na Teoria dos Discursos Sociais, bem como na perspectiva, em que fenômenos educacionais são transversalizados por fenômenos comunicacionais. O corpus de análise é constituído por uma série de reportagens exibidas pela Rede Globo de Televisão por meio do Programa Esporte Espetacular, de 08 a 29 de janeiro de 2017. Esse programa é exibido semanalmente aos domingos e apresenta quadros relacionados às manifestações esportivas educacionais, de lazer e de rendimento. Essa escolha foi motivada pelo núcleo discursivo das reportagens aliado à sua exibição em um programa de possui uma média histórica de 10 pontos de audiência aos domingos, ou seja, aproximadamente, 6.842.0207 telespectadores assistiram aos episódios que constituem esse corpus. Entendemos que, analisar as representações de educação física escolar em dispositivos midiáticos é estudar como a construção dos lugares sociais dessa disciplina é discutida no mundo atual e na mídia como um espaço que produz e faz circular discursos que contribuem para o entendimento da subjetividade humana na contemporaneidade. Enunciação e discurso Michel Foucault (1995) em “Arqueologia do Saber”, esboçou em seu tempo certa impossibilidade de apresentar conceituações satisfatórias a respeito de enunciação e de discurso haja vista, a complexidade para um entendimento aprofundado e condizente com as defesas teórico-metodológicas existentes na época. Não obstante, neste estudo recorremos a Magalhães (2003), Fairclough (2001), Bakhtin (2004) e Verón (2004) no intento de apresentar de maneira mais didática estes conceitos. Para Verón (2004), a relação conceitual entre enunciação e enunciado é indissolúvel, pois se imbrica na assertiva de que enunciação é da ordem do dizer e enunciado é da ordem do dito. Assim, como matéria enunciativa do discurso, é o enunciado, e como os modos de dizer, é a enunciação. Fairclough (2001) ao tratar de enunciação, valoriza a fala creditando-a acessibilidade e validade para estudos sistemáticos de correlação com variáveis sociais. Todavia, faz uma distinção: o ato de falar é individual, contudo, a fala é social, é compartilhada socialmente. Perspectiva análoga à de Bakhtin (2004) que relaciona a enunciação com o ato da fala, inserindo o aspecto social no processo, pois “Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante” (BAKHTIN, 2004, p. 111). Quanto ao discurso, consideramos relevante o que diz Foucault (1995, p.90) sobre a unidade elementar do discurso, o enunciado. 6

Usamos este termo para apresentar o atual estado de mistura e confusão no processo de mudanças na legislação educacional que projeta um lugar pedagógico minoritário para a educação física na escola. A faculdade do seu exercício no ensino médio e o desaparelhamento escolar para o seu desenvolvimento em perspectiva líquida instantânea. 7 Projeção apresentada pela coluna IBOPE MEDIA. Disponível em: < http://natelinha.uol.com.br/noticias/2016/ 01/07/ibope-atualizarepresentatividade-de-1-ponto-de-audiencia-veja-comparativo-95454.php>. Acesso em 09 mar. 2017. 289 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


[...] o enunciado aparece como um elemento último, indecomponível, suscetível de ser isolado em si mesmo e capaz de entrar em um jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele; como um ponto sem superfície, mas que pode ser demarcado em planos de repartição e em formas específicas de grupamentos; como um grão que aparece na superfície de um tecido que é o elemento constituinte; como um átomo do discurso. [...] o enunciado é a unidade elementar do discurso [...].

Para Fairclough (2001), que desenvolve sua defesa conceitual a partir de Michel Foucault, o discurso deve pensar o uso da linguagem como prática social, um modo de ação e representação, dialeticamente imbricado com a estrutura social. Relaciona-se com a linguagem a partir de três de suas funções: a identitária, a relacional e a ideacional. Por isso, Fairclough (2001) apresenta que, a prática discursiva é tributária da reprodução social, das identidades sociais, das relações sociais, dos sistemas de conhecimento e das crenças. Contudo, também é tributária da transformação social, materializada na forma linguística, através de textos e imagens, como nos programas televisivos aqui em questão. Mídia televisiva e a Análise de discurso crítica A escolha em analisar reportagens televisivas deu-se porque nos discursos de comunicação de massa (televisivos), as narrativas se relacionam com o acontecido e com a forma de contá-lo. Assim, pensamos que o conjunto de reportagens em análise foi construído pelas discussões em curso sobre a obrigatoriedade das aulas de educação física no ensino médio propostas pelo poder executivo nacional e em vias de consolidação ainda neste início de 2017. Observar como se constrói o presente jornalístico revelador do fato, a construção dos seus discursos e como estes operam é o nosso propósito investigativo, pois a oferta de um presente social contínuo promovido pela televisão é fundamento de reflexão teórico metodológica que nos auxilia na compreensão sobre uma pedagogia de sentidos ofertada pela televisão. Não se trata de desenvolver nossas considerações a partir de um paradigma que considera a televisão somente com estereótipos de heróis, que impõe um estilo de vida individualista e competitivo e apresenta uma vida homogênea, sem relativizar, desconsiderando diferenças e contradições. Trata-se de questionar, tensionar e refletir sobre uma questão básica: discutir o seu conteúdo, que é potente agente pedagógico de formas de ser e estar no mundo, apesar da diferentes recepções a que ele está sujeito. Apesar do que Fischer (2006, p. 117) defende: a “[...] leitura audiovisual de mais qualidade expande a capacidade de compreender, distinguindo [...]”, integrando conteúdos e formas, podendo ser utilizados com fins educacionais, alertamos em concordância com Chiappini (2004) sobre o papel estratégico da TV no terreno da cultura, pois se constitui como parte integrante. Isso é premente de atenção, pois a construção história de nossos valores e educação é cultural e mediada pela TV, inclusive. Assim, descrever, interpretar e explicar8 relações entre a mídia e o fundamento educacional em plataformas midiáticas é importante, pois assim é possível problematizar sua influência e sentidos destinados ao telespectador que ali assume um posicionamento de aprendente. Notadamente, percebemos uma intenção de aceitação social ao posicionamento pedagógico enunciado pelas reportagens televisivas. É o que entendemos por construção social de comportamentos naturais relacionados ao papel que a escola (e aqui as aulas de educação física) deve assumir, legitimando e sedimentando valores, ideologias e realidades sociais, através da reportagem jornalística. Neste contexto de análise, entendemos que os estudos que envolvam linguagem e significação (como os de mídia televisiva) necessitam de fundamentos teórico metodológicos para o seu desenvolvimento. Por isso escolhemos a ADC (Análise de Discurso Crítica), acreditando que esta consegue, satisfatoriamente, desenvolvêlos e alcança dimensões relacionadas à ideologia e às relações de poder.

8

São as principais etapas do método da Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2001).

290 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A prática discursiva é fundamentada na intertextualidade e, enquanto prática social, trata a linguagem como parte da sociedade, pois é um processo social, não estando a sociedade à sua margem, mas no seu interior. Assim, a linguagem é condicionada socialmente, e nem sempre por vetores linguísticos (FAIRCLOUGH, 2001, p. 29-30). A escolha pela ADC deu-se pelo fato de que a análise das reportagens jornalísticas se coaduna com os preceitos de Fairclough (2001) quando do entendimento de que textos9 são eventos sociais, inseridos em práticas sociais de linguagem que por sua vez pertencem a estruturas abstratas sociais, econômicas, políticas e culturais. Dizem respeito à própria linguagem, enquanto sistema de possibilidades. Portanto, as estruturas e as práticas sociais pertencem ao contexto de cultura, enquanto que os eventos, refletidos nos textos, pertencem a um contexto situacional. Neste sentido, esta pesquisa envolve uma análise das enunciações da manifestação esportiva nas aulas de educação física escolar a partir do suporte midiático televisivo – reportagens exibidas no Programa Esporte Espetacular. Para tanto, em razão da ADC não possibilitar a realização de análises textuais isoladas, as análises desenvolvidas neste estudo vislumbram o contexto de situação, as práticas sociais que envolvem o exercício das aulas de educação física na escola articulados a um contexto cultural maior – a relação entre o esporte e essas aulas. Embora a análise parta de um corpus textual específico, ela sempre se remeterá as práticas sociais, sendo que o discurso, em suas representações linguísticas e semióticas são apenas, um momento desta complexa rede, no contexto cultural. A utilização de conceitos propostos por Fairclough (2001) justifica-se pela crença que o discurso faz uso da linguagem como uma prática social, não sendo unicamente individual, pois é um modo de ação, "uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação" (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Assim, o desencadeamento analítico realizado é orientado, pelo modelo tridimensional de Fairclough (2001) que reúne três pilares analíticos: a análise textual, a prática discursiva e a prática social, metodologicamente organizado em três momentos: 1) a descrição (apresentação das propriedades formais do texto, pois são plenas de sentido); 2) a interpretação (momento de relacionar textos com outros textos, em que se percebe a formação do outro); e 3) a explicação (a reflexão e exposição da análise realizada). Descrição, interpretação e explicação do “Eporte na escola”. Brasil: a educação física no ensino médio é importante, mas facultativa? O primeiro episódio possui uma duração de 12 minutos e 34 segundos e apresenta um panorama da educação física escolar no Brasil e sua relação com o esporte. O início da série é marcado pela promessa do apresentador de que a realidade da educação física no Brasil e no mundo será desvelada. A reportagem se inicia com a enunciação de princípios importantes da educação física escolar como respeito, determinação e solidariedade, além do indicativo de revelar respostas para a pergunta: O que é educação física? Todas as reportagens utilizam entrevistas testemunhais e temáticas. Neste episódio foram realizadas com professores, diretores, secretário, atletas e alunos para desenvolver uma perspectiva de credibilidade informativa e confirmação das narrativas do repórter. As vozes são múltiplas, no entanto, marcamos notadamente as dos apresentadores, do repórter, de um professor de educação física de ensino superior, do Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação, de alunos e de uma ex-aluna, agora, atleta de voleibol, de professoras de educação física e uma diretora de escola. A Medida Provisória n° 746, de 22 de setembro de 2016 (BRASIL, 2016) propõe modificações na estrutura do ensino médio, alterando a LDB 9394/96 (BRASIL, 1996) e restringindo a obrigatoriedade do ensino da educação física à educação infantil e ao ensino fundamental, tornando-a facultativa no ensino médio. Esta medida é inserida como motivadora para as discussões, principalmente porque a condição de importância das 9

Apresentamos o termo texto como sinonímia de apresentação audiovisual inerente às reportagens televisivas.

291 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


atividades físicas para a educação escolar em contraposição à proposta de sua faculdade precisa ser discutida. As discussões sobre essas mudanças e a convicção da sua necessidade no currículo escolar motivaram o exercício de uma reflexão enunciada na reportagem: “Qual o tamanho da importância da educação física na vida de uma pessoa?” (03 min. e 15 seg.). Algumas questões são apresentadas e merecem discussão aqui. No entanto, pelo recorte espacial necessário para desenvolvê-las, centraremos na que mais nos instiga a pensar: a que se refere ao conceito ofertado sobre o que é educação física e qual o papel do professor nessa disciplina. Percebemos que a opinião do repórter é de professor de educação física é um incentivador e identificador de talentos esportivos e que a resposta dada ao que é educação física foi: “[...] é aquele conjunto de atividades que faz um bem danado à cabeça e ao corpo.” Acreditamos que esse conceito de educação física ofertado é simplificado. Que precisa de melhor exploração em busca de uma complexificação necessária aos objetivos que a disciplina possui. Essa visão dualista já foi superada pelas ciências do movimento, contudo ainda se vê reforçada hoje e viva no imaginário e subjetividade da maioria das pessoas. E quanto ao papel do professor de educação física, pensamos que identificar talentos é uma tarefa técnica, menos especializada e desprovida de crítica quando comparada à perspectiva nuclear da profissão que está centrada na educação corporal, em uma discussão que envolva valores coletivos, na percepção do eu e no cuidado de si para ser possível o cuidado do outro, que revele nossos limites e possibilidades em manifestações muito mais diversas que as esportivas apenas. O componente ideológico das mídias é materializado em parte importante da reportagem. Apesar da afirmação do apresentador do programa de que “O repórter Kiko Meneses foi a vários lugares do Brasil pra mostrar como é a situação por aqui.” (23 seg.), em verdade, apenas duas realidades foram abordadas: 1) a escola GEO, no Rio de Janeiro: a escola modelo; e 2) a Escola Municipal Nossa Senhora Aparecida, em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco: a escola precária. A escola apresentada como modelo é o GEO – Ginásio Experimental Olímpico. Em sua referência, a narrativa jornalística relaciona como ponto positivo o de que esta escola tem como objetivo principal trabalhar para que todos os alunos possam ser bons atletas. Esta perspectiva privilegia a esportivização competitiva e negligencia enunciações importantes para uma reportagem que trata dos princípios que a disciplina educação física possui. Aspectos educacionais e valores importantes para a constituição de um sujeito cooperativo, sensível corporalmente e cidadão comprometido com o mundo ao seu redor são secundarizados em prol de uma única possibilidade: o ser atleta. Esta perspectiva é consolidada pela afirmação da diretora do GEO: “Vamos dizer que é uma grande casa de formação de atletas.” (07 min. e 10 seg.) O GEO recebe destaque, sobremaneira, por sua estrutura física (ginásios, quadras, campo de futebol, piscina, pista de atletismo, aparelhos de musculação), ou seja, lá “[...]Você tem tudo que você precisa pra ser um ótimo atleta.” (06 min. e 40 seg.) e a relação de sucesso educacional apresentada é a de que o aluno bom é o que será um atleta de sucesso. Entre as duas realidades, percebemos que o protagonismo enunciativo dos alunos ficou evidente nas narrativas dos estudantes da escola nordestina. A contraposição entre os entraves relacionados pela falta de estrutura esportiva e os sentimentos enunciados pelas crianças descortina um equívoco aparente na narrativa jornalística: a relação confusa entre os objetivos das aulas e a estrutura física para o seu desenvolvimento. Sobre este aspecto, pensamos diverso. Concordamos sobre a importância de se ter um local adequado para o desenvolvimento das aulas de educação física, no entanto, divergimos de que esse espaço deve ser adequado objetivamente à prática esportiva. Na educação física, outras tantas manifestações corporais devem ser mais exploradas, difundidas e evidenciadas como suporte pedagógico para o desenvolvimento de um sujeito integral, holístico e vivente em mundo que precisa ser menos competitivo. E se a esportivização que vem sendo desenvolvida ancora-se nesse princípio, entendemos estar equivocada. Em meio a estes pontos nevrálgicos que precisam ser repensados quando tratamos de uma educação física plural, que privilegie a diversidade de formas, movimentos e sensações, identificamos alguns pontos interessantes na reportagem que precisariam de maior destaque, como a assertiva da professora de que as vivências motoras e suas variedades vivenciadas nas aulas de educação física serviram de alicerce para o 292 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


desenvolvimento de atividades especializadas na idade adulta. Também, quando o GEO foi tratado como um lugar onde o badminton tem a mesma importância da matemática, apresentando a equivalência de valor educacional entre as atividades físicas e as consideradas cognitivas apenas. Ao mesmo tempo em que a diretora do GEO acredita que aquele lugar é um celeiro de potenciais talentos esportivos, também considera que “A educação física leva as crianças a ter um conhecimento mais amplo, maior de si, do amigo, do companheiro.” (11 min. e 30 seg.). Esse aspecto reforça uma questão importante em meio às narrativas: a de que a educação física desenvolve valores como companheirismo, amizade, cooperação, socialização, respeito às regras e igualdade. Assim, sendo mais holística e plural, sem se servir apenas do esporte como suporte redentor e educacional. Inglaterra: Millfield é a excelência em educação física O segundo episódio da série foi exibido dia 15 de janeiro de 2017, com duração de 11 minutos e 51 segundos, tratou da forma como a Inglaterra considera importante as aulas de educação física, sobretudo como preparação para o esporte e o desenvolvimento de atletas olímpicos e paralímpicos com excelente estrutura e professores ex-atletas. A narrativa jornalística inicia com a apresentação da escola ( Millfield) notabilizada por sua estrutura arquitetônica e esportiva. O ensejo de iniciar a comparação com o episódio anterior não é perdido, como percebemos aos 30 segundos de matéria (grifo nosso), quando o repórter narrador diz: É difícil encontrar estrutura igual. Os campos, quadras, pistas e piscinas estão sempre em perfeito estado. Prontos pra receber praticantes de 28 modalidades. Equipamentos de última geração e a orientação vem de treinadores renomados. Muitos deles, medalhistas olímpicos. Muito atleta profissional no Brasil deve sonhar com um lugar assim. Mas nem adiante, porque não se trata de um clube, nem de um centro de treinamento de uma grande potência esportiva. Isso é uma escola!

O objetivo da escola é formar bons alunos. Mas o que se entende por isso? São alunos que resolveram investir na carreira acadêmica, mas para isso, tem que praticar esportes e se movimentar. Assim, já vislumbramos uma perspectiva comparada de contraposição aos objetivos da Medida Provisória n° 746/2016 que prevê a sua faculdade no ensino médio brasileiro. O reitor da escola pensa que “Não há dúvidas de que a educação física é uma parte importante do desenvolvimento. Nosso cérebro não vive divorciado de nosso corpo e os jovens precisam de atividades físicas pra que consigam atingir o melhor das habilidades dentro da classe.” (01 min. e 45 seg.). O planejamento e a execução das atividades nessa escola são fundamentados por resultados de pesquisas científicas que afirmam haver importante estímulo do córtex pré-frontal (responsável pelo planejamento, execução, foco e memória de nossos pensamentos) quando se pratica alguma atividade física. Ou seja, “[...] quem se movimenta está mais apto para aprender” (02 min. e 19 seg.). Para professores e diretor de esportes da escola, o rendimento em sala de aula deve ser equilibrado com o rendimento nas aulas de educação física. Também, enquanto a exigência mínima de horas por semana é de duas, em Millfield se destinam seis horas por semana. Apesar da conjuntura observada nas entrevistas – relação importante entre a educação e o movimento, a narrativa jornalística do programa Esporte Espetacular retoma sua defesa enunciativa principal – o rendimento esportivo como fim das aulas de educação física (grifos nossos): Em termos acadêmicos, a instituição está entre as melhores do reino unido e ao mesmo tempo virou um celeiro de talentos esportivos. (03 min. e 07 seg.). Os nomes dos alunos esportistas ficam expostos. São motivo de orgulho. Afinal, eles têm mais conquistas que muito país por aí. Millfield formou até hoje 68 atletas olímpicos e paralímpicos, que conquistaram 12 medalhas. [...] Esse é o caso de James Guy. Um prodígio da natação britânica. Hoje ele tem 21 anos e duas pratas olímpicas no currículo, conquistadas aqui no Brasil, nos jogos do Rio. (03 min. e 51 seg.).

293 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Poderia e foi muito melhor. O melhor. Em 2012, levou dois ouros olímpicos nos jogos de Londres – nos 5.000 e nos 10.000 metros. Foi bicampeão nas duas provas no ano passado no Rio. (10 min. e 39 seg.).

Estrutura física exemplar e incentivo ao esporte são as principais nuanças de destaque ao se falar das aulas de educação física em Millfield. No entanto, em perspectiva comparativa com a realidade brasileira, essa não nos parece uma opção imparcial, pois as instituições brasileiras apresentadas são públicas e reféns de uma gestão política desacreditada nestes tempos. Todavia, um exemplo de iniciativa pessoal e partindo de um professor leigo é apresentada como alternativa para o exercício da prática esportiva nas aulas de educação física e sem investimentos significativos. Para isso, a narrativa jornalística arrebata: “Só um professor entusiasmado e uma garotada com vontade de se movimentar.” (05 min. e 35 seg.) As duas abordagens são um tanto românticas e a serviço de uma perspectiva que pensa a educação física voltada para o esporte. A apresentação de um professor leigo e de ex-atletas como redentores da imagem esportiva do país de nada contribui com a valorização do profissional de educação física no Brasil e, além, reforça a perspectiva contida na MP 746/2016 do ensino médio que concebe a possibilidade de um professor com notório saber poder ministrar aulas de educação física escolar. Vemos com preocupação cultural a abordagem jornalística impressa nessa reportagem. Aspectos significativos da educação física são negligenciados e como Betti (2001) defende, é partir desses exemplos que vemos materializado um problema pedagógico nas relações entre a mídia e a cultura corporal do movimento. O esporte telespetáculo prevalece e a concepção hegemônica esportiva conectada às ideias de esforço máximo, vitória, dinheiro e sucesso na vida é a única veiculada nas produções televisivas, não havendo espaço para outras possibilidades, sobremaneira as tantas inerentes à educação física na escola. Por que nem sempre o fechamento de uma reportagem não apresenta aquilo que ela discorreu? Foi o que aconteceu: “São histórias de cientistas que fizeram grandes descobertas. De músicos que encontraram a nota perfeita. Me matemáticos que solucionaram problemas complexos. De artistas criativos e inovadores. Nosso corpo foi criado para o movimento e é assim que a gente aprende.” (11 min. e24 seg.) Essas histórias são as que gostaríamos de ter assistido. EUA: Profissão atleta O terceiro episódio foi exibido em 22 de janeiro de 2017 e tematizado com o objetivo de apresentar como a educação física se relaciona com o esporte espetáculo nos EUA. Com a duração de 11 minutos e 18 segundos, a reportagem inicia com a narrativa do apresentador que já caracteriza os Estados Unidos da América – EUA como a maior potência olímpica do mundo. No discurso construído nesta reportagem é evidente a relação estabelecida entre o esporte e sua espetacularização midiática, com o sucesso profissional e com o milionário mercado esportivo que já observamos desde o início: “[...] crianças com alguma habilidade esportiva, inevitavelmente sonham com a profissão atleta” (23 segundos). E logo em seguida: “As ligas de esportes profissionais americanos arrecadam mais de 32 bilhões de dólares. Mais que 100 bilhões de reais por ano. Produzem imagens encantadoras. Emoções pra todos os gostos. Aos olhos de uma criança americana, praticar esportes é bem mais que uma diversão” (1 min. e 11 seg.). A realidade escolar apresentada é de uma instituição pública que possui dois professores de educação física (sem menção à sua formação, portanto, não sabemos se leigo ou graduado – é mencionado apenas que foi um praticante de diversas modalidades esportivas) que apresentam como conteúdos da educação básica os esportes. As crianças são caracterizadas como engajadas, atléticas e muito proativas quando se trata de praticar esportes. O destaque do sistema de ensino americano são as ligas esportivas que acontecem entre bairros, municípios, estados e em nível nacional. Também, a educação física é obrigatória no nível básico de ensino e a carga horária semanal é aumentada no ensino médio Para crianças de 6 a 10 anos (156 minutos) e

294 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


entre 11 e 17 anos (255 minutos). Este contexto contraria o que propõe a medida provisória em questão, que prevê a sua faculdade. Dois posicionamentos nos chamam atenção nos discursos dessa reportagem: o voluntariado de professores leigos e a invisibilidade da formação profissional para poder trabalhar com educação física. A relação desenvolvida com esses discursos sempre traz uma história de sucesso esportivo ou profissional para creditar valor à questão: foi o caso do sucesso de Lebron James e Ron Baker que tiveram seus pais como técnicos voluntários das equipes de basquetebol por onde passaram durante a educação básica. Não obstante a estas críticas, reforçamos a relação desenvolvida entre a educação física e os conceitos de cooperação e sociabilidade como fundamento de vida. O depoimento da diretora da Battery Park City School é importante: Eu me lembro de ter lido um tempo atrás um estudo em que 500 diretores muito bem sucedidos de grandes empresas americanas foram perguntados sobre qual a maior influência que eles ainda carregavam do período da educação básica. E todos esses executivos disseram: participar de equipes esportivas. Por que eles aprenderam a alcançar os objetivos, a trabalhar de forma colaborativa. Aprenderam que agindo sozinhos talvez fosse impossível ganhar o jogo. (8 min. e 43 seg.)

Todavia, essa não é a perspectiva dominante da reportagem. A dualidade percebida na narrativa “A educação física forma atletas, mas também forma cidadãos dos melhores. Eles devolvem à sociedade o que podem: sorrisos, exemplos.” (10 min. e 10seg.) poderia ser a sinopse dessa reportagem, no entanto, a visada que restringe o olhar para um único possível, ser atleta de sucesso, é o que transborda por toda a trajetória enunciativa das imagens e falas, como na finalização da reportagem: “Na terra das esperanças e dos sonhos é de criança que se aprende. Sim. Nós podemos” (10 min. e 44 seg.). Essa conclusão conecta uma assertiva inicial: a de que o corredor de uma escola é a estrada para a vida adulta. Japão: Consciência de valorização do esporte A reportagem que apresenta como a educação física é tratada no Japão foi exibida dia 29 de janeiro de 2017, possui 8 minutos e 5 segundos de duração e revela outro olhar possível a partir dos testemunhais, contudo, a narrativa jornalística continua nas veredas da relação entre esporte e educação física para a formação de atletas, como se não houvesse nenhuma outra. Ainda, a referencialidade de atletas olímpicos de destaque é discurso dominante na narrativa jornalística, assim como o retorno à apresentação de professores de educação física leigos, inclusive de outras disciplinas, com uma naturalidade que nos deixa preocupados. O destaque inicial é creditado à diversidade de modalidades esportivas à disposição das crianças japonesas. O espaço destinado às práticas esportivas, o rigor no ensino e a valorização do esporte pela escola e pelas crianças é outro ponto reforçado na matéria. De forma análoga à dos EUA, “Ao longo do ano existem competições interescolares, regionais e nacionais” (3 min. e 40 seg.). Em média são três dias de aula por semana, ou seja, mais de duas horas, sendo complementada com atividades extracurriculares eleitas pelos próprios alunos que são desenvolvidas depois das aulas – o bukatsu, que envolve 70% dos adolescentes. Ponto apresentado em contrariedade às pretensões da MP 746/2016. Um ponto relevante é a orientação governamental quanto ao currículo. Lá “Existe uma orientação básica do Ministério da Educação sobre as modalidades que devem ser oferecidas no dia a dia da escola, mas cada uma pode adaptar o esporte à sua realidade.” (4 min. e 59 seg.). Isso é importante porque, como vimos, atividades lúdicas (não esportivizadas) como andar em pernas de pau e monociclos são desenvolvidas. Isso auxilia na aprendizagem de novos movimentos, no equilíbrio e crescimento das crianças. E essa perspectiva é análoga à que vivenciamos hoje com as orientações curriculares nacionais e a última lei de diretrizes e bases da educação nacional. Esta última reportagem traz questões interessantes como a de que, para professores, o importante é que as crianças tenham uma experiência útil, aprendendo a trabalhar em conjunto. Não interessa apenas o

295 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


crescimento físico, mas outros valores como a disciplina e a moral. Também, o que de mais positivo observamos nos discursos sobre a relação entre a educação física e o esporte no Japão foi o legado construído ao longo dos anos que apresenta a conscientização de valorização do esporte como seu ponto mais forte. Considerações finais Ao analisar os discursos contidos nas reportagens globais que enunciaram apresentar a realidade da educação física no Brasil e no mundo, concluímos que muito ainda se tem a discutir sobre o papel informativo, ideológico, político e cultural que a mídia televisiva possui nestes tempos de incertezas, mudanças densas e retrocessos educacionais anunciados com naturalidade e urgência sob a mácula da retomada do desenvolvimento nacional. Como instituto cultural significante quando se trata de oferta de sentidos, os programas televisivos em questão trouxeram à tona possibilidades para se pensar o que a MP 746/2016 propõe, contudo, apresenta sentidos que subjetivamente reforçam suas prerrogativas como a invisibilidade da formação superior em educação física de muitos professores entrevistados, especificamente nos episódios dos EUA, Inglaterra e Japão. Neste contexto, enquanto discurso social que deve ser tensionado nestas reportagens trata-se do recorte de conteúdo das aulas de educação física destinado exclusivamente aos esportes, sejam individuais ou coletivos, e que não apresentam outras possibilidades curriculares não sejam tais. Esta amarra curricular é problemática e nos faz antever futuros jovens que, pela seletividade que o espetáculo esportivo produz, não se transformarão em astros esportivos. Por isso, uma educação física mais plural, coletiva, holística e com cada vez menos constituintes competitivos, heroicos e individualistas seria muito mais interessante para um conjunto de reportagens que digna-se a apresentar o que seja a disciplina educação física escolar e investigar qual o tamanho da importância da educação física na vida de uma pessoa. Referências BAKHTIN, M. M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico nas ciências da linguagem. 11 ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BETTI, Mauro. Mídias: aliadas ou inimigas da educação física escolar? Motriz. v. 7, n. 2, p. 125-129. jul.- dez. 2001. BRASIL. Medida provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 set. 2016. Seção 1, p. 1. BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB 9.394 de 20 de dezembro de 1996. CHIAPPINI, Ligia. (Org.). Outras linguagens na escola: publicidade, cinema e TV, rádio, jogos, informática. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2004. (Coleção aprendendo a ensinar com textos, v. 6). FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB, 2001. FISCHER, Rosa Maria Bueno. Televisão e educação: fluir e pensar a TV. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. MAGALHÃES, Francisco Laerte Juvêncio. Veja, isto é, leia. A imagem e a imagem nos discursos de capas das revistas Veja e Isto é: produção e disputas de sentido na mídia. Teresina: EDUFPI, 2003. 158 p. VERÓN, Eliseo. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo-RS: Editora Unisinos, 2004.

296 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


A FOTOGRAFIA DIGITAL E OS NOVOS DESAFIOS PARA O FOTOJORNALISMO1 Cantídio Sousa Filho2 RESUMO Passadas duas décadas em que a fotografia analógica foi substituída pela fotografia digital nos jornais diários impressos, este artigo procura compreender as principais transformações ocorridas nas rotinas de trabalho dos fotojornalistas. Para isso é investigado esse período de transição no Jornal O Dia, impresso diário mais antigo do Piauí, em circulação desde 1951. Busca compreender quais foram as principais alterações consolidadas, as vantagens, desvantagens e perspectivas para a atividade contemporânea em fotojornalismo nos jornais diários impressos. Foi utilizada como método a História Oral, quando foram constituídas fontes orais e elaboradas entrevistas com repórteres fotográficos e editores que vivenciaram a transição da fotografia analógica para a digital. São também consultados pesquisadores que investigam o impacto das mudanças tecnologias digitais na fotografia. Esse estudo constata que novas práticas vêm sendo consolidadas e que, ao tempo em que impõem novos desafios como, a polivalência de funções e de novas competências e linguagens, também enfraquece a atividade de fotojornalismo. Palavras-chave: Fotojornalismo; Fotografia digital; Práticas jornalísticas; Jornal O Dia.

Introdução

N

o início dos anos 1990 aconteceu no mundo uma disrupção do processo de produção das imagens fotográficas. O surgimento da tecnologia digital desbancou o processo analógico que prevaleceu por mais de cem anos e que registrava imagens através de filmes, revelava películas e cópias fotográficas em laboratório, com auxílio de sustâncias químicas. Com a digitalização, o processo de obtenção da imagem e o uso da câmera foram simplificados, fato que contribuiu para tornar a fotografia ainda mais acessível e indispensável à produção de informação jornalística. A introdução da câmera digital trouxe apreensões, inquietações, dificuldades, reciclagens, não adaptações e significativas transformações no ambiente de trabalho dos repórteres fotográficos. Nesse sentido, esse artigo investiga quais foram as principais mudanças e consequências ocorridas no fotojornalismo do jornal O Dia a partir do uso da fotografia digital nas rotinas produtivas na redação desse impresso diário que circula em Teresina, capital piauiense, desde a década de 1950. A investigação partiu da afirmação de que a chegada da fotografia digital trouxe profundas transformações nas rotinas de trabalho dos profissionais do fotojornalismo da empresa O Dia. Nesse sentido, questiona-se: Qual foi o impacto do processo de digitalização da redação de O Dia na rotina produtiva? Quais as mudanças e consequências na produção de fotografias e do fotojornalismo de O Dia? São analisadas as principais transformações nas rotinas de produção do fotojornalismo de O Dia, acontecidas nos anos de 2002 e 2003, período em que aconteceu a transição da fotografia analógica para a digital. Como era feito o registro, a revelação e o tratamento da fotografia na era analógica, como essa fotografia tramitava no interior da redação e, com a chegada do processo digital, quais foram às alterações tecnológicas que interferiam na prática dos repórteres fotográficos. O método de investigação foi o estudo de caso sobre o processo de digitalização fotográfica em O Dia, que ocorreu a partir da introdução da câmera fotográfica de marca Copix, que foi trazida dos Estados Unidos e colocada à disposição da redação durante o segundo semestre de 2002, pelo diretor geral da empresa, Valmir 1

Trabalho apresentado no GT 05do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade (ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017. 2 Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí. Teresina-PI. Endereço eletrônico: cantidiosfilho@gmail.com 297 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


Miranda. Também foi utilizado como método a História Oral, quando foram constituídas fontes orais e realizadas entrevistas com repórteres fotográficos e editores que vivenciaram a transição da fotografia analógica para a digital. Para contextualizar melhor a pesquisa também foram feitas entrevistas com fotojornalistas de outros dois diários impressos de Teresina, o jornal Meio Norte e o jornal Diário do Povo. A “disrupção” digital no fotojornalismo Todo processo de mudança tecnológica traz apreensões e incertezas no ambiente de trabalho das empresas. Segundo Castilho (2016), quando uma inovação resulta numa grande transformação, provoca o que se pode chamar de “disrupção”, expressão que tem sido usada nos últimos tempos para identificar os traumas da transição de uma era tecnológica para outra mais avançada. Disrupção é uma palavra nova no vocabulário brasileiro, é originária do termo anglo-saxão, disruption, que significa uma confusa etapa transitória de um modelo em crise para outro mais avançado, inovador. Pode-se afirmar que uma disrupção ocorreu com o processo de digitalização dos jornais impressos, particularmente da fotografia, que desbancou a forma de obtenção da imagem analógica que vigorou por mais de um século. Com isso, a gravação da imagem se modificou e ocorreram alterações dos equipamentos, do modo de se fotografar e de fazer o jornal impresso. Conforme Benazzi (2010, p. 3), o processo de digitalização proporcionou um consumo maior de imagens e alterou o “modo de se pensar, produzir e consumir imagens”. O autor acrescenta que o fotojornalismo vem sendo desafiado a reinventar a sua linguagem, uma vez que grandes transformações ocorreram no processo produtivo, no dia a dia de trabalho dos profissionais, no planejamento e na composição das imagens nas páginas das publicações. As disrupções tecnológicas afetam as pessoas, geram resistências, incertezas porque não se acredita que o novo prevalecerá, falta informação e conhecimento. Mussoline Guedes (2016), editor do jornal O Dia, no período da transição da fotografia analógica para a digital, em 2002, argumenta que a chegada da câmara digital pode ser considerada uma mudança radical porque foi também uma alteração física, tátil. Antes, na era analógica, pegava-se no papel, podia-se ver a fotografia impressa no papel, tocá-la; na digital vê-se na tela, não se pega na imagem, apenas visualiza-a, não se sabia se a qualidade corresponderia quando fosse impressa no papel. No papel se podia ver se estava claro, escuro ou tinha qualidade. A principal vantagem, conforme Giacomelli (2000), da fotografia digital para a atividade de fotojornalismo é a rapidez com que as fotos ficam prontas para serem editadas. Na era analógica levam-se quase duas horas entre o processo de revelação do filme até a foto ser escolhida pelo editor. Quando a imagem é produzida por uma câmera digital, basta transferi-la para um programa de computador e editá-la. E mais, com o auxilio da internet não é mais preciso o retorno do fotojornalista à redação para avaliar o material que será publicado. Para os jornais que precisam fechar diariamente suas edições, com muitas notícias acontecendo próximo ao horário de fechamento da edição, a fotografia digital possui vantagem competitiva. Para Jorge Pedro de Sousa (2002), a fotografia digital oferece uma série de vantagens para a intervenção humana. A imagem ao ser digitalizada é transformada em pixels, que são pequenos quadrados, que podem ser transformados ou transportados e permitem alterar a imagem de diferentes maneiras. Passam, então, a existir milhões de opções em cores com possibilidades de correções e alterações cromáticas, ajustamento de contrastes, clareamento, escurecimento. São inúmeros os efeitos que podem ser extraídos, como o de mudar a imagem colorida para preto e branco, além de permitir o reenquadramento, alteração do ponto de vista, mistura de imagens; colocação, substituição e retirada de pessoas e objetos. Assis Fernandes (2016), que trabalha como fotojornalista de O Dia desde 1994, defende ser a agilidade a maior diferença entre a foto analógica em relação à digital. Antes, o fotógrafo tinha que ter o cuidado com a luz, depois ia revelar o filme para, então, ver o resultado do produto; enquanto que agora não, se faz a foto e, imediatamente, se não deu certo, o fotógrafo faz de novo outra e pode fazer isso várias vezes. Prática que na analógica era limitada, pois a cada 36 (trinta e seis) fotos tinha-se que tirar o filme e colocar um novo. Francisco Gilásio (2016), que trabalha como fotojornalista no jornal do Diário do Povo desde 1993, considera que a era digital vem transformando os novos profissionais da área mais em editores de imagens do 298 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


que em repórteres fotográficos. Na era analógica, como os filmes eram caros, a empresa determinava que cada fotojornalista fizesse somente 04 (quatro) fotos de cada acontecimento. O fotógrafo conta que essa exigência serviu para aprender a observar, esperar e prevê qual o ‘instante decisivo’ para acionar o disparador e fazer fotos na quantidade necessária para não ter muito trabalho na hora da edição. Os novatos usam bastante a câmera no modo automático e dificilmente sabem usar no modo manual. A maior facilidade de perda das imagens é também apontada por Francisco Gilásio (2016) como um problema na era digital. Ele considera que na era analógica, mesmo se a cópia em papel fosse perdida, se tinha o filme e essa poderia ser feita novamente. Com a digital, embora a qualidade da imagem seja preservada, existe uma insegurança maior, pois os suportes onde são gravadas as imagens mudam rapidamente do ponto de vista tecnológico e as pessoas dificilmente reproduzem suas fotos em papel, preferindo guardá-las nos computadores, pendrives, celulares que estão mais sujeitos a extravios, furtos e roubos. Ao ser questionado sobre as vantagens da era digital na redação, Francisco Gilásio (2016) avalia que a era digital facilitou o ato de fotografar, ao mesmo tempo em que multiplicou o número de pessoas que se acha fotojornalista. Na era analógica, a quantidade de pessoas que sabia colocar o filme na câmera era pequena, problema este que foi simplificado com o cartão de memória. Com aquela tecnologia tinha-se que conhecer mais sobre o equipamento, logo, grande parte das informações não era exposta através de um menu capaz ensinar ao fotógrafo como proceder, bastando para isso conhecimento elementar da lógica de funcionamento e dos principais componentes da câmera fotográfica. A prática do fotojornalismo requer conhecimento e domínio técnico daquele que vai fazer uso dos recursos visuais para construir melhor as informações e reforçar sentidos da mensagem jornalística. Jorge Pedro de Sousa (2004) defende ser importante que o profissional verifique a inter-relação entre a imagem, o texto, a legenda, os planos, os enquadramentos, o foco, a composição dos elementos, o equilíbrio e simetria visual, a iluminação, o foco, a relação figura/fundo e o movimento. A observação e uso dessa série de fatores visuais, além de diferenciar o trabalho do fotógrafo daquele que é produzido por amadores, dá mais especialidade a fotografia de imprensa. Jacqueline Dourado (2017), que trabalhou em O Dia como editora chefe em 1991, no período da informatização do jornal, avalia que a fotografia digital traz enganos para alguns repórteres fotográficos, porque tanto na era analógica quanto na digital o profissional precisa atentar para as regras indispensáveis ao ato de fotografar, a saber: a regra dos terços, observar a profundidade de campo, a estética, o plano da imagem e, principalmente, contar com sensibilidade e a competência que o fotojornalismo deve ter para contar uma história. Segundo Giacomelli (2000), uma das principais desvantagens da era digital envolve questões éticas, já que a imagem pode ser alterada e manipulada com mais facilidade do que no período analógico. O conteúdo pode ser alterado por programas de computadores. Para Assis Fernandes (2016), a manipulação é imperdoável, porque, mesmo podendo ser feita atualmente mais facilmente deve-se ter limites. Pequenas alterações podem ser admitidas, tal como já se fazia nos laboratórios analógicos, como: dar mais brilho ou acentuar contrastes de cores. Agora, fazer grandes alterações, como, por exemplo, mudar as informações contidas na foto é “deformar e desinformar”, o que compromete a relação de confiança com os leitores. Francisco Gilásio (2016) pontua que uma das maiores dificuldades da era digital está em fazer valer o direito autoral das imagens. Antes, bastava ter a posse do filme que o autor da imagem podia provar mais facilmente que determinada imagem era dele. Agora, basta a pessoa manipular, fazer uma pequena alteração e passa a dizer que a foto lhe pertence. Muitos fotógrafos, a fim de se protegerem de roubos de suas imagens, colocam marcas d’água e o seu nome bem grande no meio da foto, contudo, isto praticamente não tem efeito, já que piora a leitura da imagem. Muitas imagens são reproduzidas sem o consentimento do autor e, na maioria das vezes, não é colocado o crédito ou ainda postadas com pequenas alterações. Sobre as diferenças técnicas e habilidades dos profissionais do fotojornalismo, a maioria dos entrevistados considera que na era analógica a atividade de fotógrafo tinha mais valor e só fazia fotos o profissional que conhecia e dominava a técnica. Com o advento da câmera digital, a fotografia se popularizou e banalizou. Para o fotojornalista do jornal Meio Norte, José Alves Filho (2016), qualquer pessoa hoje tira 299 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


fotografias, embora a qualidade seja questionável. Com isso, a atividade de repórter fotográfico vem perdendo importância e até dispensada pelas empresas, uma vez que mais fotos estão disponíveis na internet, usuários da rede registram e enviam imagens para as redações sem cobrar nada. O jornalista Mussoline Guedes (2016) avalia que uma das principais desvantagens da era digital é a queda de qualidade de grande parte das imagens publicadas nos impressos diários, pois atualmente quase todo mundo tem um celular com câmera fotográfica e os jornalistas, na maioria das vezes, quando não estão no lugar em que determinado fato acontece, praticamente os jornais são obrigados a publicarem fotos ruins do ponto de vista técnico e noticioso, que são feitas por pessoas que não possuem a visão do fotojornalista. Para Jacqueline Dourado (2017), a fotografia digital não provoca a desvalorização da atividade em fotojornalismo. O que existe atualmente é uma crise, excesso de conhecimentos, não só na área da fotografia, do jornalismo, mas de todas as ciências. As possibilidades de acesso a esses dados, fazer cinema com o celular, transmitir informações e imagens por aparelho móvel, são infinitas e não se sabe o que fazer diante disso. Logo, o profissional que domina essas novas tecnologias e tiver talento sempre terá o seu trabalho reconhecido. A pesquisadora acrescenta que do fotojornalista sempre será cobrado que relate o acontecimento com olhar peculiar, com um ângulo diferente para que sua foto ganhe preferência dos leitores. Em tempos de convergência digital, o jornalismo requer maior integração, interdependência e complementaridade. José Afonso Silva Junior (2008) pontua que isso trouxe uma nova articulação do trabalho no interior das empresas, quando pacotes tecnológicos são adotados, demandas educacionais e profissionais são postas, são incorporadas novas gramáticas narrativas e redefinidas competências no que se tange a produção, edição, tratamento e circulação das informações. O perfil de quem exerce o fotojornalismo foi alterado com o processo de digitalização. José Afonso Silva Júnior (2011) afirma que para ser fotógrafo de imprensa na atualidade é necessário dominar novos saberes tecnológicos, o que implica se adaptar a um fluxo de trabalho que requer conhecimento sobre “gramáticas de vídeo, textuais, sonoras, de informação, além, claro, de estabelecer alternativas de interoperabilidade entre sistemas tecnológicos e rotinas de trabalho” (JUNIOR, 2011, p. 61). Arlindo Machado (2010) considera que a digitalização da fotografia trouxe uma infinidade de possibilidades. Como consequência disso podem-se fabricar novas imagens resultantes de fusões, misturas de fotos já produzidas, o que vem servindo para renovar a linguagem visual e estética e, sobretudo, auxiliando na derrubada do mito de que a fotografia é uma representação fiel da realidade. A era digital trouxe mudanças significativas na rotina de trabalho do fotojornalista. Silva e Queiroga (2010) apontam quatro características desse novo modelo de produção: polivalência, multi/hipermidialidade, multiplataforma e cooperação. Os autores afirmam que a polivalência impõe que o fotógrafo adquira novas competências, como, por exemplo, o tratamento e a indexação de fotos em computadores, além de aprender utilizar redes digitais e sistemas de transmissão de dados. A multi/hipermidialidade requer que o profissional saiba compor a linguagem fotográfica a outras, permitindo, assim, “navegação midiática”. Já multiplataforma é a habilidade de distribuir conteúdos de diferentes formas, tendo a internet como a plataforma de maior potencial, e a cooperação, que importa promover a inter-relação entre diferentes setores de um mesmo núcleo produtivo. Dutra e Rossoni (2012) acrescentam que outra habilidade necessária para o desempenho da atividade de repórter fotográfico na era digital é a multifuncionalidade profissional, onde se exige que ele, além de fotografar, também escreva a matéria e há casos em que ainda é o seu próprio motorista. Os autores afirmam que essa nova rotina precariza o trabalho do fotojornalista, pois os contratos são mais flexíveis e a jornada de trabalho aumenta, permitindo também o exercício da atividade por freelancer ou estagiários. As empresas passam a exigir maior produtividade com redução custos e aumento dos lucros. Os desafios do fotojornalismo de O Dia na era digital Os anos de 1990 e a primeira metade dos anos de 2000 foram de grandes transformações do jornalismo impresso diário de Teresina, capital piauiense. Nesse período, circulavam três grandes jornais 300 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


diários: O Dia, o Meio Norte e o Diário do Povo. Todos eles, nesse período, informatizaram suas redações, tiveram o processo produtivo interligado via internet e incorporaram a fotografia digital. O Dia foi pioneiro na implantação de computadores no começo dos anos 1990 e o Meio Norte o primeiro a usar, em 1998, câmeras digitais em sua redação. Essas três empresas jornalísticas implantaram câmeras digitais em suas redações com atraso em relação aos principais jornais diários impressos de circulação nacional. Em Teresina, o jornal Meio Norte foi o primeiro a implantar, em 1998, a câmera digital, quando nesse mesmo ano o jornal Folha de São Paulo já usava câmeras digitais para fazer imagens da Copa do Mundo na França. O Dia, por sua vez, passou a utilizar a sua primeira câmera digital de marca Copix em 2002 e o Diário do Povo em 2004. O jornal O Dia, de propriedade do empresário Valmir Miranda, é o mais antigo diário em circulação em Teresina desde 1951. Sua trajetória como empresa jornalística ganha maior impulso após ser adquirido pelo coronel Otávio Miranda, em 1963. O Dia começa essa fase na segunda metade dos anos 1960, que é quando seu parque gráfico é modernizado e profissionais são contratados para escrever textos mais jornalísticos. Nos anos 1970, a impressão passa a ser feita em off set, processo que deu mais qualidade à publicação de fotografias. Nos anos 1980, as matérias jornalísticas ainda eram feitas em máquinas de escrever pelos redatores. No início dos anos 1990 foi a vez da introdução dos computadores na redação, seguida da interligação em rede e da implantação da internet. No segundo semestre de 2002, aconteceu a chegada da primeira câmera digital. A economia de custos foi o que levou O Dia a implantar a câmera digital na redação. Mussoline Guedes (2016), que era o editor do impresso, em 2002, atribui que a motivação principal não foi a melhoria da qualidade das imagens no jornal, até mesmo porque as fotos tiradas pela primeira máquina digital não eram boas, e sim a redução de custos com suprimentos laboratoriais. Já Francisco Gilásio (2016), fotojornalista do Diário do Povo, relata que a chegada da câmera digital no jornal, além de desmontar o laboratório, acabou com a compra de filmes, com o processo de revelação e ampliação de cópias, com a compra de substâncias químicas. Na era analógica, a concorrência era maior entre os próprios fotojornalistas para ver quem tirava uma foto melhor. Conforme jargão da época, o jornalista corria atrás do “furo de reportagem”, ver quem “emplacava” a foto de capa. De acordo com Assis Fernandes (2016), o trabalho como profissional do fotojornalismo era “mais vibrante” porque naquele período a internet não tinha o peso que tem hoje. Portanto, uma “foto boa” repercutia 24 (vinte e quatro) horas. Francisco Gilásio (2016) narra que se o repórter fotográfico tivesse a possibilidade de escolher uma pauta com chance de ser o destaque da capa, ele fazia sem qualquer objeção. José Alves Filho (2016) pontua que com a digitalização fotográfica a atividade de repórter fotográfico vem sendo desvalorizada e que grande parte dos profissionais migrou para fazer fotografias sociais. As empresas impõem que o repórter fotográfico, além de fotografar, também escreva e faça edição, isto é, o profissional exerce três e, às vezes, até quatro funções, caso contrário, são dispensados e substituídos por estagiários. Mussoline Guedes (2016) considera que a desvalorização profissional na era digital vem acontecendo devido ao alargamento de possibilidades da câmera fotográfica que atualmente agrega mais tecnologia. Avalia que da fase analógica até a contemporaneidade só foi preservada a visão do fotojornalista na hora de fazer suas imagens. Francisco Gilásio e José Alves (2016) defendem que a valorização da profissão deve passar, notadamente, pela melhoria salarial. Enquanto isso não acontece, a atividade de fotojornalismo não vem sendo renovada, pois profissionais recém-formados pelas universidades não querem passar a vida inteira ganhando apenas o piso da categoria, que atualmente corresponde a dois salários mínimos. Preferem fazer fotos sociais ou ingressarem em outras profissões ou mesmo fazerem outros cursos para que seus trabalhos sejam mais valorizados e reconhecidos. No ano de 2002, trabalhavam como fotógrafos em O Dia, Francisco de Assis Fernandes de Araújo, hoje com 52 anos e segundo grau incompleto; Elias Pereira Fontenele, atualmente com 62 anos e primeiro grau completo. Assis Fernandes, como é mais conhecido, é paraibano e migrou para Teresina em 1984, oportunidade em que veio trabalhar no estúdio fotográfico do irmão como laboratorista e fotógrafo de eventos sociais. Em 301 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


1986, passou a fotografar para a assessoria de comunicação do governo estadual e, em 1994, ingressou como fotojornalista de O Dia. Elias Fontenele é piauiense iniciou na profissão, em 1978, trabalhando com amigos como fotógrafo e laboratorista e, após fazer um curso da Kodak, passou a atuar por conta própria. Em 1982, ingressou em O Dia como repórter fotográfico. Assis Fernandes e Elias Fontenele, quando ingressaram no jornal, faziam o trabalho de laboratoristas e de fotógrafos. Ao chegarem ao jornal cedo da manhã conferiam se as substâncias químicas usadas na revelação de filmes e na ampliação de cópias fotográficas estavam boas, caso não tivessem, precisaria prepará-las para ganhar tempo; conferir os filmes que tivessem na bolsa e caso não fossem suficientes para o trabalho daquele dia teria que rebobinar mais filmes. Estes eram comprados em rolo e para que fossem utilizados deveriam ser levados para o laboratório e cortados no tamanho de 36 (trinta e seis) ou 40 (quarenta) poses para, em seguida, serem colocados nos cartuchos. Assis Fernandes e Elias Fontenele narram que, antes de saírem às ruas, recebiam sugestões de pauta do chefe de reportagem e depois seguiam para produzir imagens junto com uma equipe com um motorista e um repórter. Ao chegarem da rua entravam no laboratório, revelavam o filme e era feito o “copião”, uma espécie de folha de papel fotográfico contendo as imagens impressas em pequeno tamanho, onde as melhores fotos eram escolhidas pelo editor ou secretário de redação para serem ampliadas e depois planejadas, diagramadas nas páginas da publicação. Assis Fernandes e Elias Fontenele, ambos fotojornalistas de O Dia, relatam aspectos importantes que marcaram o período da fotografia analógica. Assis Fernandes (2016) afirma que o exercício da profissão era “vibrante”, pois não tinha internet, redes sociais, por conseguinte, um “furo de reportagem” durava 24 (vinte e quatro) horas, uma foto boa repercutia de “forma extraordinária”. Na era analógica, os fotojornalistas não tinham a concorrência de pessoas amadoras, cuja maioria, quando possuía equipamentos, era inferior. Então, a concorrência acontecia entre os próprios repórteres fotográficos que travavam uma luta diária para ter a foto principal na primeira página. Mussoline Guedes (2016) afirma que durante a introdução da câmera digital em O Dia houve resistências e dificuldades, tanto na hora de ver as fotografias digitais e decidir colocá-las nas páginas, quanto dos fotógrafos ao manusear as novas câmeras e os programas de computador. O jornalista acrescenta que o processo de aprendizagem foi lento, a câmera digital passou a ser usada gradativamente, com o tempo foi sendo testada e nem todas as matérias eram ilustradas com fotografias feitas por ela. No começo, a máquina Copix era usada apenas em matéria interna feita na própria redação, quando vinha uma pessoa ao jornal e se dizia para testá-la para ver se funcionava. Foi um processo gradativo e desenvolvido com certa desconfiança porque era uma tecnologia nova e desconhecida. O fotógrafo de O Dia, Elias Fontenele (2016) recorda que no começo teve dificuldades para lidar com os programas de computador que armazenam e fazem o tratamento de imagens e que a empresa teve que contratar um operador de processamento de dados para auxiliar os fototojornalistas. A experiência com a câmera digital Copix também apresentou outro desafio quando os fotógrafos iam a campo. O registro da imagem era demorado, em face da limitação que tinha o chamado “atraso do obturador”, que é o tempo de demora do instante que o disparador é apertado, até o instante em que a fotografia é tirada. O fotojornalista Assis Fernandes (2016) relata que ficava “agoniado”, uma vez que antes trabalhava com máquinas analógicas que eram rápidas, enquanto que com a digital quando ia fotografar, por exemplo, uma pessoa que ia cumprimentar outra, tinha-se que fotografar no instante em que se começava a estender mão para o outro, caso contrário não daria tempo para a câmera registrar aquela ação. Na era analógica, sem o auxílio do computador e da internet, quando os fotógrafos chegavam da rua e seguiam direto para o laboratório, onde faziam o copião com as imagens pequenas, depois as levavam para que os editores escolhessem as melhores imagens, o fotógrafo voltava novamente ao laboratório para ampliar as fotos selecionadas. Depois disso, as imagens eram levadas para os editores de páginas que juntavam com os textos e repassavam para o diagramador. Conforme Gallas e Rodrigues (2005), o jornal O Dia passou a utilizar computadores nas redações no começo dos anos 1990. Pouco tempo depois introduziu uma rede interna que interligava os diferentes terminais de computadores onde passaram a serem postados e armazenados textos e fotografias, que após analisados e 302 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


editados eram repassados à diagramação. Esse processo possibilitou economia de custos com pessoal, de suprimentos, rapidez e, principalmente, diminuição de tempo do processo produtivo. Para ingressar na era digital, a fotografia analógica tinha que mudar de formato. Para isso, fazia-se no laboratório analógico as cópias das imagens selecionadas pelo editor, depois elas eram escaneadas, digitalizadas em novo formato, para que, assim, fossem incorporadas por programas de computador e depois tratadas. Com a introdução da câmera digital e da internet nas redações, esta etapa foi suprimida e as imagens passaram a ser armazenadas diretamente num programa de computador onde recebem tratamento e depois são colocadas à disposição via rede na internet para os editores de página, editor geral e da diagramação. Considerações finais A fotografia digital mudou substancialmente as rotinas produtivas na área do fotojornalismo. Num primeiro momento, os profissionais enfrentaram incertezas, o que gerou receios e o desafio de buscar mais conhecimento técnico para poder manusear as primeiras câmeras digitais, além da dificuldade em utilizar os programas de computadores. Num segundo momento, resultou no fechamento do laboratório analógico, na mudança do processo de registro das imagens, no armazenamento, na integração com as outras áreas da redação do jornal, além da seleção e edição das fotografias a serem aproveitadas e diagramadas nas páginas. Uma terceira etapa desse processo aponta para uma estagnação e de uma crise na atividade de fotojornalismo. Passados quinze anos da transição da fotografia analógica para a digital em O Dia, contatou-se que alguns dos fotojornalistas que estavam naquele período ainda continuam trabalhando no impresso. Não houve expansão do número de profissionais, aliás, aconteceu foi uma redução. Antes da digitalização tiveram momentos em que no jornal trabalhavam três fotógrafos e um laboratorista. Aos repórteres fotográficos vem sendo imposto que além de fazerem fotos passem também a fazerem matérias. A redação também passou a incorporar uma quantidade maior de estagiários, que fazem o trabalho de escrever e fotografar como se fossem profissionais. O repórter fotográfico que na era analógica revelava e copiava suas fotos no laboratório para que fossem selecionadas pelo secretário de redação ou editor, na fase digital passou a postar suas imagens diretamente no computador, local onde é criada uma pasta que é acessada pelos editores de páginas que agora selecionam e diagramam junto com os textos na página. A digitalização, ao tempo em que deu velocidade, encurtou e integrou o processo produtivo, reduziu o número de profissionais necessários, deixando sobrecarregados os que ficaram ao impor uma quantidade maior de funções e de competências, o que prejudica a apuração do acontecimento. Constata-se que tanto no período analógico quanto no início da fase digital, a empresa O Dia priorizava investir mais no seu parque gráfico do que na qualificação dos fotojornalistas, ou mesmo na melhoria tecnológica dos equipamentos fotográficos. A introdução da câmera digital aconteceu em função da redução de custos com suprimentos, recursos humanos e também por pressão dos fotógrafos do próprio impresso que, ao fazerem pautas nas ruas, percebiam que um jornal concorrente, no caso, o Meio Norte, já estava usado máquinas digitais quatro anos antes, além de este utilizar melhor fotografias coloridas em sua capa principal e nas capas e contracapas dos cadernos internos. A atividade de repórter fotográfico entrou em uma fase de desvalorização com a era digital. Os profissionais que atuam nos três maiores jornais impressos de Teresina afirmam que essa inovação tecnológica massificou mais ainda o uso das câmeras fotográficas, que agora vêm acopladas aos celulares, de modo que qualquer pessoa que tenha um aparelho com este recurso pode fotografar um determinado fato e enviar para a redação, sem cobrar nada, bastando que seu nome seja colocado na foto. Os fotojornalistas avaliam que a qualidade informativa das imagens produzidas na era digital piorou, já que as empresas aproveitam bastante as fotografias disponíveis na internet ou de pessoas comuns que apenas ilustram determinados acontecimentos. Os repórteres fotográficos reclamam que a digitalização trouxe mais facilidades para fazer alterações e manipulações das imagens e, com isso, fotos podem ser adulteradas e

303 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


também os direitos autorais dos fotógrafos são mais desrespeitados. Acontecem muitos furtos e roubos de imagens quando essas são postadas na internet. Na era analógica, quando o fotógrafo saía da redação do jornal e se dirigia para a rua para capturar fotos, ele seria acompanhado por um repórter responsável para escrever o texto. Geralmente, antes de o fotógrafo ir a campo, o editor e os editores de páginas diziam para ele como queriam as imagens; ou, então, durante o percurso ou mesmo no local onde seria registrado o acontecimento, o fotojornalista e o repórter dialogavam e planejavam como as fotos deveriam ser produzidas. Na era digital, o editor e os editores continuam sugerindo, só que a tendência é que o fotojornalista faça as imagens e também escreva o texto da matéria. A tecnologia digital também ampliou as possibilidades para o fotojornalismo. Disponibilizou novas ferramentas técnicas e impôs o desafio de conhecer e dominar novos recursos das câmeras e assim tirar maior proveito no ato de fotografar. Somado a isso, novas linguagens estéticas vem sendo experimentadas, que resultam de fabricações e fusões de imagens. Cabe destacar que a atividade do repórter fotográfico, tanto na fase analógica e agora na digital, continua exigir o conhecimento de algumas técnicas indispensáveis, como: a regra dos terços, a profundidade de campo, o plano da imagem e, principalmente usar da sensibilidade e competência para contar uma história através da fotografia. Com a digitalização fotográfica no processo produtivo de O Dia as rotinas de trabalho dos repórteres fotográficos foram profundamente modificadas e a produção de fotografia e do fotojornalismo do impresso incorporou mais possibilidades técnicas e reduziu despesas das empresas com a compra de suprimentos para laboratório, proporcionou agilidade e integrou os setores produtivos. Constatou também que a escassez de investimentos em qualificação profissional e facilidade de obtenção de imagens publicadas na internet vêm contribuindo para desvalorizar a atividade de repórter fotográfico e, por consequência, a maioria das fotos produzidas representam mera ilustração, pouco informativas e que raramente refletem a prática em fotojornalismo que persegue a imagem espontânea e de flagrantes dos acontecimentos. A digitalização alterou de forma significativa a atividade do repórter fotográfico, contudo permanece o desafio de que fotografia informativa precisa de conhecimento técnico do equipamento para ser mais bem produzida. Dos novos repórteres fotográficos é cobrado que incorporem novas competências e funções, que renovem a linguagem visual, estética e informativa e, por consequência, os leitores avancem na compreensão de as fotografias não são representações fieis da realidade. Referências BENAZZI, Lauriano Atílio. Informação, técnica e estética: os valores da imagem fotojornalística. Intercom, Caxias do Sul, 2010. CASTILHO, Carlos. A política brasileira entre o caos e a disrupção. Observatório da Imprensa, 20 de junho de 2016. Disponível em: <http://observatoriodaimprensa.com.br/processo-do-impeachment/política-brasileira-entre-o-caose-disrupcao/>. Acesso em: 05 jul. 2016. DULTRA, Amanda e Rodrigo Rossoni. Fotojornalismo no contexto digital: uma análise preliminar sobre novas condições de trabalho. XXXV Intercom, Fortaleza, 2012. GALLAS, Ana Kelma C.; RODRIGUES, Maria da Luz. O processo de informatização da imprensa piauiense. Revista FSA, Teresina, n. 2, ano 2, p. 122-146, abr. 2005. GIACOMELLI, Ivan Luiz. Impacto da fotografia digital no fotojornalismo diário: um estudo de caso. Florianópolis, 2000. 101f. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) – Programa de Pós Graduação em Engenharia de Produção, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2000. MACHADO, Arlindo. A fotografia sob o impacto da eletrônica. In: ______. O fotográfico. São Paulo: Senac, 2005.

304 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


SILVA, José Afonso da; QUEIROGA, Eduardo. Fotojornalismo Colaborativo em tempo de Convergência. Sociedade Brasileira de Pesquisa em Jornalismo, 2010. SILVA JR. José Afonso. O fotojornalismo em tempo de convergência digital: entre algumas permanências e outros desvios. São Paulo: SBPJOR, 2008. ______. Da foto à fotografia: os jornais precisam de fotógrafos? Salvador: EDUFBA, 2014. (Contemporânea Comunicação e Cultura). SOUSA, Jorge Pedro. Uma história crítica do fotojornalismo ocidental. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004. ______. Fotojornalismo: uma introdução à história, às técnicas e à linguagem da fotografia na imprensa. Porto-Portugal, 2002. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-jorge-pedro-fotojornalismo.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2016.

ENTREVISTAS ALVES, José: Entrevista concedida a Cantídio Sousa Filho. Teresina, 2016. DOURADO, Jacqueline Lima: Entrevista concedida a Cantídio Sousa Filho. Teresina, 2017. FERNANDES, Assis. Entrevista concedida a Cantídio Sousa Filho. Teresina, 2016. FONTENELE, Elias: Entrevista concedida a Cantídio Sousa Filho. Teresina, 2016. GILÁSIO, Francisco. Entrevista concedida a Cantídio Sousa Filho. Teresina, 2016. GUEDES, Mussoline. Entrevista concedida a Cantídio Sousa Filho. Teresina, 2016.

305 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


306 | Anais do Encontro Nacional Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017


307 | Anais do Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade, v.1, n.2, agosto, 2017



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.