CRISE HÍDRICA EM DEBATE: Reflexões a partir do Seminário Internacional 2015
Publicação da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico da Câmara Municipal do Rio de Janeiro 2015 - 2016
CRISE HÍDRICA EM DEBATE / Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico. (julho 2016) ISBN: 978-85-63004-22-2 Rio de Janeiro: Editora NPC, 2016. 1. Água. 2. Crise Hídrica. 3. Saneamento. 4. Direitos Humanos. 5. Justiça Ambiental. I. Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico. CDD: 361
A CRISE HÍDRICA EM DEBATE: Reflexões a partir do Seminário Internacional 2015 é uma publicação da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico da Câmara Municipal do Rio de Janeiro 2015 - 2016.
Coordenação: Amanda Menezes L. de Castro; Guilherme J. A. L. Marques “Soninho”; Renato Cosentino Viana Guimarães; Suyá Quintslr Revisão: Núcleo Piratininga de Comunicação - NPC Tradução: Amanda Menezes L. de Castro; Lorena Ruiz Tierno; Suyá Quintslr Projeto Gráfico, Diagramação e Editoração: Lissandro Garrido Impressão:
Todos os direitos reservados à Comissão Especial com a finalidade de acompanhar, promover estudos sobre suas causas e apresentar propostas pertinentes ao enfrentamento do colapso hídrico, da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Os trabalhos assinados são de exclusiva responsabilidade de seus autores. É permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte.
Câmara Municipal do Rio de Janeiro
Mesa Diretora: Presidente: Jorge Felippe PMDB 1º vice presidente: Carlo Caiado DEM 1º Secretário: Prof. Uoston PMDB
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1º Suplente: Dr. Eduardo Moura PMDB Átila Nunes Babá Carlos Bolsonaro Cesar Maia Chiquinho Brazão Dr. Carlos Eduardo Dr. Gilberto Dr. Jairinho Dr. João Ricardo Dr. Jorge Manaia Edson Zanata Eduardão Eliseu Kessler Elton Babú Jefferson Moura Jimmy Pereira João Cabral João Mendes de Jesus Jorge Braz Jorginho da S.O.S Junior da Lucinha Leila do Flamengo Leonel Brizola Neto
Marcelino D’Almeida Marcelo Arar Marcelo Piuí Marcio Garcia Mario Junior Paulo Messina Paulo Pinheiro Prof. Célio Luparelli Prof. Rogerio Rocal Rafael Aloisio Freitas Raphael Gattás Reimont Renato Cinco Rosa Fernandes S. Ferraz Tania Bastos Tereza Berguer Thiago K. Ribeiro Vera Lins Veronica Costa William Coelho Zico
Câmara Municipal do Rio de Janeiro
Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico da Câmara Municipal do Rio de Janeiro 2015 Presidente: Renato Cinco PSOL Eduardão
João Cabral
Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico da Câmara Municipal do Rio de Janeiro 2016 Presidente: Renato Cinco PSOL Eduardão
Leila do Flamengo
Sumário Agradecimentos ...............................................................................................................................13 Apresentação ..................................................................................................................................15 Notas da Presidência da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico dezembro de 2015 Por Vereador Renato Cinco ............................................................................................................17 Relatório da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico ..........................................................55 Mudanças climáticas e água: de crise a colapso Alexandre Araújo ...........................................................................................................................63 Crise e segurança hídrica na região metropolitana do Rio de Janeiro Paulo Roberto F. Carneiro ...............................................................................................................71 A crise não é da água, mas da sociedade - Breve análise sobre a situação do Rio de Janeiro Carlos Bittencourt e Flavio Serafini ...............................................................................................83 Saneamento, saúde e direitos humanos: as iniquidades socioambientais e a luta pela água na Cidade do Rio de Janeiro Alexandre Pessoa Dias e Bianca Dieile da Silva ...........................................................................93 A crise no abastecimento de água: Um olhar diferenciado através da lente dos Direitos Humanos Léo Heller ......................................................................................................................................113 Água - direito humano fundamental e bem comum - e as mudanças climáticas João Alfredo Telles Melo e Geovana de Oliveira Patrício Marques .........................................119 A crise hídrica e a criminalização da pesca artesanal na Baía de Sepetiba quem deve pagar a conta? Gabriel Strautman, Iara Moura e Thiago Mendes .....................................................................137 A Alternativa Ecossocialista Michael Löwy ...............................................................................................................................145
Remunicipalização em um setor vital: sistemas urbanos de água Martin Pigeon ...............................................................................................................................151 O levante das águas - Os bens comuns e a visão andina da água restabelecidos pelo povo na Bolívia e nos Andes Oscar Olivera ...............................................................................................................................167 Águas públicas: Lições de Buenos Aires Daniel Azpiazu e José Esteban Castro ........................................................................................175 A água em Paris: um novo serviço público Anne Le Strat ...............................................................................................................................195 O colapso hídrico no Rio de Janeiro e o papel central da Cedae enquanto empresa estatal de saneamento para atenuar os efeitos desta crise Ary Girota .....................................................................................................................................205
Agradecimentos Importante registrar nossos mais sinceros agradecimentos a todos os que ajudaram a realizar os trabalhos da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico, na organização do Seminário Internacional sobre a Crise Hídrica – em 2015 – e nesta publicação. Em primeiro lugar, agradecemos aos autores dos textos aqui presentes, que deram suas valiosas contribuições sem exigir nada em troca. Agradecemos a todos os palestrantes, participantes e àqueles que colaboraram com a organização do Seminário Internacional da Comissão em 2015. Agradecemos à Câmara Municipal do Rio de Janeiro e todos os seus funcionários, que tanto colaboraram para a realização do Seminário e para essa publicação. Esse agradecimento se estende também aos vereadores da Comissão do Colapso Hídrico de 2015 e 2016 e seus assessores e colaboradores, que ajudaram nessas realizações. Por fim, agradecemos a todos os movimentos sociais, entidades e militantes que se dedicam à “causa da água”, lutando para que esse bem comum seja acessível a todos e reconhecido como direito humano fundamental.
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Apresentação A Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico se constituiu no ano de 2015 na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, sob a presidência do vereador Renato Cinco (PSOL), e teve como tarefa principal realizar um diagnóstico crítico sobre a situação hídrica no Município do Rio de Janeiro. Para tal, a Comissão realizou debates públicos, reuniões com técnicos e especialistas – tanto aqueles vinculados ao poder público quanto representantes da sociedade civil organizada e da universidade –, além de promover um Seminário Internacional sobre o tema, realizado em dezembro. Partiu-se do entendimento de que a crise hídrica não é de causa natural, resultado apenas da falta de chuva, mas sim consequência de fatores como o modelo de produção energético e seus objetivos, a prioridade na produção e exportação de produtos primários, o uso do solo, a destruição ambiental, a poluição, o consumismo, a precariedade dos serviços de abastecimento e saneamento, e a visão de que o acesso a estes serviços é um negócio, e não um direito humano fundamental. Nesse sentido, a crise que se desvendou era maior, refletindo a relação de exploração que a sociedade de consumo estabeleceu com o meio ambiente. A presente publicação se insere nessa proposta de abordar o tema da “Crise Hídrica” de forma abrangente, em especial depois da seca prolongada dos anos de 2014/2015 e das novas propostas de privatização do esgotamento sanitário e da empresa pública responsável pelo provimento de água no Rio de Janeiro, a Cedae. O primeiro texto da coletânea, intitulado “Notas da Presidência”, de autoria do Vereador Renato Cinco, apresenta um quadro geral do trabalho feito pela Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico e relata as principais atividades promovidas em 2015. Além de dados e informações sobre o abastecimento e consumo de água no Rio de Janeiro, o texto reflete sobre a crise hídrica na cidade a partir das entrevistas e debates realizados pela Comissão e introduz algumas recomendações para o debate público sobre o tema no Rio de Janeiro. No geral, os textos aqui apresentados versam sobre três temas principais: a escassez de água, o entendimento da água como um direito humano, e as formas de gestão dos serviços de saneamento. 15
Em relação à escassez de água, diversos autores destacam a imprevisibilidade do regime de chuvas em um contexto de mudanças climáticas, o que deve ser levado em consideração no planejamento dos sistemas de saneamento. Além disso, mostram como os conflitos entre diferentes usos da água podem agravar as situações de escassez, a exemplo do que ocorreu no estado do Rio de Janeiro, onde os reservatórios do rio Paraíba do Sul, projetados para geração de energia elétrica, acabaram sendo esvaziados quando poderiam ter reservado água para o abastecimento público. Por fim, alguns dos textos desta publicação destacam o grande índice de perdas de água na distribuição, além de problematizar as desigualdades no acesso à água entre as diversas áreas da cidade e os diferentes grupos sociais. A perspectiva dos direitos humanos vai ao encontro deste questionamento, na medida em que a água passou a ser reconhecida pela ONU em julho de 2010 como um direito humano fundamental. Assim, o acesso a uma quantidade suficiente de água para o uso cotidiano e a higiene pessoal deve ser garantido a todos os habitantes da cidade, questionando a compreensão da água como mercadoria (apenas acessível àqueles que podem pagar por ela). Finalmente, diversos textos abordam a questão das formas de gestão dos serviços de saneamento, que podem ser providos pelo setor público – seja pelos próprios municípios, por consórcios intermunicipais ou através de concessões a companhias estaduais (forma mais comum no Brasil) – ou por concessionárias privadas. Nesse sentido, cabe destacar a nova tendência à “desprivatização” dos serviços em várias cidades do mundo, como Buenos Aires (Argentina), Hamilton (Canadá), Atlanta (EUA), Dar es Salaam (Tanzânia), além de Paris, Grenoble e Nice (França). As remunicipalizações na França têm um significado especial, uma vez que as duas maiores empresas privadas de água do mundo têm suas sedes em Paris. Entretanto, por mais simbólico que o ato de remunicipalizar ou reestatizar os serviços possa ser, ele por si só não garante que a água seja distribuída de maneira equitativa e com qualidade e em quantidade suficiente para todos os cidadãos. A melhoria no serviço e a democratização do mesmo requerem vontade política e compromisso com o combate às desigualdades no acesso a este bem fundamental. Esperamos que esta publicação possa contribuir para este importante debate para as grandes metrópoles mundiais e para o Rio de Janeiro. 16
Notas da Presidência da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico - dezembro de 2015 Por Vereador Renato Cinco1
1. Crise hídrica 1.1. A emergência da Crise Hídrica na região Sudeste A redução dos índices pluviométricos nos últimos anos em algumas regiões do país gerou problemas no abastecimento de diversas cidades e a situação passou a ser caracterizada como uma Crise Hídrica com efeitos que podem atingir milhões de habitantes. De acordo com publicação da Agência Nacional de Águas (ANA), a seca extrema – que começou em 2012 no nordeste e a partir de outubro de 2013 atingiu a região Sudeste – é um evento raro com tempo de recorrência superior a 100 anos (ANA, 2014). A permanência de índices de pluviosidade abaixo da média no ano de 2014 não possibilitou a recuperação do nível dos reservatórios, agravando a situação2. Se, por um lado, a seca prolongada agravou a situação do semiárido brasileiro – que já sofre habitualmente com a escassez hídrica –, por outro, atingiu as maiores regiões metropolitanas do país ao se estender pelo Sudeste. O Relatório da Comissão Pastoral da Terra que analisa os conflitos do campo destaca o aumento dos conflitos relativos à água. Segundo este documento, de 2005 a 2014, os conflitos por “apropriação privada” aumentaram mais de 120%: “Nos últimos 10 anos, 177.999 famílias foram afetadas pelos conflitos por barragens e açudes, 138.065 por conflitos pelo uso e preservação da água e 6.444 pela apropriação particular da água”. No Sudeste, a macro metrópole paulista foi a primeira a sofrer os efeitos da crise, quando os níveis dos reservatórios do Sistema Cantareira atingiram, no primeiro semestre de 2014, os 1 Renato Cinco é sociólogo e vereador em primeiro mandato do Rio de Janeiro pelo PSOL. É membro da Comissão de Direitos Humanos e Presidente da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico na Câmara Municipal. 2 Mais da metade dos municípios brasileiros poderiam ficar sem água em 2015, segundo diagnóstico do “Atlas Brasil – Abastecimento Urbano de Água”, lançado em fevereiro deste ano (ANA). O Racionamento de água atinge 142 municípios em 11 estados. E 40 cidades, 15 em São Paulo e 25 no Rio, registram falta de água.
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níveis mais baixos desde que foram criados, em 1983. As implicações sociais e econômicas da seca em São Paulo assumiram o caráter mais dramático, sendo o Sistema Cantareira responsável pelo abastecimento de 14 milhões de pessoas na Grande São Paulo e em 62 cidades do interior (El País, 2014)3. A redução da pressão nas redes de abastecimento fez com que o racionamento se tornasse uma realidade e diversos bairros passaram a receber água poucas horas por dia. A indústria paulista, a mais importante do país, também vem sofrendo os efeitos da crise, motivando preocupação por parte da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp)4. A possibilidade de caos social com a falta de água entrou na pauta do Exército, que em maio simulou ocupar a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) em caso de crise social5. De fato, em outubro de 2014, a população de Itu se manifestou contra a falta d’água na cidade, que possui 155 mil habitantes. Houve barricadas nas ruas e a fachada da Câmara Municipal foi destruída em protesto após semanas sem água; caminhões-pipa tiveram que ser escoltados pela Guarda Municipal para que não houvesse saques. É contra a reprodução das cenas de Itu em escala metropolitana que o Exército quer se precaver. A Crise Hídrica em SP motivou, ainda, um conflito deste estado com o estado do Rio de Janeiro (RJ) ao ser definido que parte da água do reservatório de Jaguari (um dos reservatórios do sistema hidráulico do rio Paraíba do Sul) poderia ser transposta para o sistema paulista. No estado do Rio de Janeiro, apesar de a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) ter sido relativamente menos afetada pela crise hídrica, diversas cidades – tanto no norte e noroeste fluminense6, fortemente afetados pela redução da vazão do Rio Paraíba do Sul, quanto no sul fluminense7 – já sofrem com a escassez e estabeleceram rodízios de abastecimento. A RMRJ é abastecida por três sistemas principais: Acari; Ribeirão das Lages; e Guandu. O Sistema Guandu, responsável pelo abastecimento de mais de 9 milhões de pessoas – incluindo o município do Rio de Janeiro – é o principal sistema da região e depende da transposição das águas do rio Paraíba do Sul, cujos reservatórios tiveram seus volumes reduzidos durante a estiagem. Segundo o Diretor de Produção e Grande Operação da Cedae, apesar de terem sido 3 Seca recorde pode afetar abastecimento de água de São Paulo até outubro. El País, 14 fev/2014. 4 Afetadas pela escassez de água, indústrias já avaliam parar produção. El País, 26 ago/2015. 5 Exército simula ocupar a Sabesp em caso de crise social. El País, 27 mai. 2015. Disponível em http://brasil. elpais.com/brasil/2015/05/27/politica/1432728524_009010.html. Acesso em 13 set. 2015. 6 Crise hídrica muda paisagens e hábitos em várias regiões do RJ. G1, 22 out/2015. 7 Crise hídrica preocupa cidades do Sul do Rio de Janeiro. G1, 23 out/2015.
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necessárias adaptações nas captações da companhia, o volume de água produzido pela Cedae no sistema (43 mil litros por segundo) foi mantido durante a crise8.
As causas da crise A despeito das variações de gravidade da crise entre as diferentes áreas da região Sudeste e entre as diversas cidades do estado do RJ, existe certo consenso de que as incertezas climáticas e a recorrência mais frequente de eventos extremos podem afetar o abastecimento de água. Especialistas apontam três motivos principais para a crise: a alteração do volume, frequência e intensidade das chuvas, no marco das mudanças climáticas globais9; o desmatamento no entorno dos mananciais, que promove a perda da produção natural de água; e o uso excessivo do recurso. A crise revelou outro problema: o colapso da gestão das empresas do setor e o desperdício excessivo deste bem essencial para a vida humana. De fato, apesar das condições adversas do clima, não é apenas este o motivo que levou a região Sudeste ao colapso hídrico. Não se alcança uma crise desta magnitude apenas pela alteração de uma única variável que compõe o fornecimento de algo tão importante para a vida da população. Em escala regional, as alterações na cobertura do solo podem exercer grande influência no ciclo hidrológico, como destaca Roberto Malvezzi, da Comissão Pastoral da Terra (CPT)10. Primeiramente, a existência de florestas aumenta a quantidade de água que retorna para a atmosfera através do processo de transpiração vegetal, contribuindo para a formação de nuvens. Em segundo lugar, a cobertura vegetal reduz a velocidade do escoamento superficial e aumenta a capacidade de infiltração de água no solo, evitando enchentes e possibilitando a recarga dos aquíferos e, consequentemente, a manutenção das nascentes dos rios. Finalmente, a mata ciliar, isto é, a vegetação existente às margens dos rios, evita processos de erosão e assoreamento. Um 8 Edes Fernandes. Comunicação Oral. Debate Público da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. 24 set/2015. 9 O mês de julho de 2015 foi o mais quente na Terra desde que os registros começaram a ser feitos, em 1880, e o aquecimento global vem causando condições meteorológicas extremas, como secas, ondas de calor e inundações. Segundo a Agência Nacional de Oceanos e Atmosfera dos Estados Unidos, a temperatura média em nível planetário alcançou em julho os 16,61 graus. Julho de 2015 foi o mês mais quente da Terra, segundo a agência americana. Terra, 20 ago/2015. Disponível em http://noticias.terra.com.br/ciencia/julho-de-2015-foi-o-mes-mais-quente-da-terra-segundoagencia-americana,df65a0e88c587889d95c05b7561e109bker3RCRD.html. Acesso em 13 set. 2015. 10 País precisa restaurar ‘ciclo das águas’ para enfrentar crise de dimensão nacional. Rede Brasil Atual, 25 nov/2015.
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rio assoreado tem reduzida sua profundidade, diminuindo assim o volume de água que corre em seu leito. A redução do volume de água tende a favorecer a ocorrência de outros problemas, tais como o aumento da concentração relativa de matéria orgânica, a proliferação de algas e a eutrofização, levando à redução do oxigênio dissolvido à mortalidade de peixes. A devastação das florestas no Vale do Paraíba, iniciada ainda no século XIX, durante o ciclo do café, resultou na ocorrência de todos esses impactos no rio Paraíba do Sul. Como exemplo, é possível citar a morte de várias nascentes de tributários deste rio, reduzindo a resiliência da bacia e afetando seu volume. A reversão deste processo é fundamental para garantir que a Bacia, responsável pelo abastecimento de 28 cidades no RJ e em SP, continue fornecendo água em quantidade e qualidade suficiente11. A qualidade da água do Paraíba do Sul é, ainda, afetada pela grande quantidade de esgoto doméstico e efluente industrial lançado em seu leito. Atualmente, o tratamento da água na Estação de Tratamento de Água (ETA) do Guandu consome uma grande quantidade diária de produtos químicos para torná-la adequada para o consumo humano. A crescente pressão sobre os recursos hídricos é outra questão de grande relevância para a compreensão da atual crise. A elevação do nível de vida da população vem, com efeito, acompanhada do aumento do uso per capita de água. Entretanto, se tomarmos como referência o uso de água por setor no mundo, vemos que os maiores usuários da água são a agricultura (com uma média de 70%) e a indústria (20%). Mesmo esses valores variam de acordo com o nível de desenvolvimento dos países, como demonstrado no gráfico abaixo elaborado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Assim, nos países mais desenvolvidos, aumenta o peso da indústria e do abastecimento municipal. No Brasil, os usos por setor não se diferenciam muito da média mundial. De acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA), de uma vazão total de é 1.212 m³/s consumidos, 72% corresponde ao ramo de irrigação na agricultura. O consumo animal é de 11%, residencial urbano de 9%, industrial de 7% e rural de 1% (ANA, 2012).
11 Em outubro de 2015, o vereador Renato Cinco publicou, na edição 191 do jornal Capital Cultural, o artigo “Quem mantém floresta viva não precisa de volume morto”, defendendo a necessidade de uma ampla política de reflorestamento no estado do Rio de Janeiro.
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Consumo de água por setor por região Ano de referência: 2005 Retirada de água por setor (%) 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10
Agricultura
Indústria
Município
Países menos desenvolvidos
Europa Central e Ocidental
(Incluindo a Rússia)
Europa Oriental
América do Norte
América Central e Caribe
Ilhas do Pacífico
(incluindo o Brasil)
América do Sul
Ásia Oriental
(incluindo a China)
Austrália e Nova Zelândia
Sudeste de Ásia
África Subsaariana
Oeste de África
Norte de África
Sul da Asia
(incluindo a Índia)
Asia Central
Mundo
0
Fonte? FAO, 2011, apud UNESCO, 2012
No Estado do Rio de Janeiro, a demanda difere substancialmente do padrão brasileiro. A indústria é a que mais consome água com 43%, seguida pelo abastecimento humano com 42%, agricultura com 13% e mineração e criação animal com 1% cada. Os dados de 2014 são do Plano Estadual de Recursos Hídricos12. Aqui, cabe destacar que o que é qualificado acima e no gráfico a seguir como “abastecimento humano” ou “abastecimento público” é toda a água que entra para os sistemas de abastecimento das concessionárias dos serviços de saneamento. Entretanto, esta água não possui uso exclusivamente residencial; além de ser distribuída para as residências, é distribuída para o comércio / setor de serviços – incluindo alguns grandes usuários de água, tais como hotéis, escolas, hospitais, restaurantes, shoppings centers etc. –, e até mesmo para algumas indústrias. As informações sobre os grandes usuários da água distribuída pelos sistemas de abastecimento não são, em geral, disponibilizadas pelas companhias de saneamento. Por outro lado, o uso qualificado como “industrial” é a água bruta que é captada 12 Plano Estadual de Recursos Hídricos do Estado do Rio de Janeiro - Relatório Síntese – Maio/2014. p. 83. Disponível em http://www.inea.rj.gov.br/cs/groups/public/documents/document/zwew/mdgz/~edisp/inea0083952.pdf. Acesso em 14 set/2013.
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diretamente pelas indústrias, mediante outorga do órgão ambiental competente – no caso do RJ, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA). 1%
Demanda - Rio de Janeiro Abastecimento humano
13%
Indústria
1%
42%
Mineração Agricultura Criação animal
43%
Fonte: PERHI - RJ - Maio 2014
Consumo de água por setor na Região Hidrográfica da Baía de Guanabara (RH V) 3.000.000.000.00 2.500.000.000.00 2.000.000.000.00 1.500.000.000.00 1.000.000.000.00 500.000.000.00
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Fonte: Maria Angélica Maciel Costa. Os fluxos da água na metrópole: usos múltiplos e gestão participativa na Baía de Guanabara (RJ). Tese de doutorado, IPPUR/UFRJ, 2015
O peso relativo do abastecimento público é ainda mais relevante se consideramos a Região Hidrográfica da Baía de Guanabara13, onde se concentra a maior parte da população da RMRJ. A redução das chuvas revelou o que a abundância do regime de chuvas no Sudeste brasileiro encobria: o colapso da gestão deste recurso fundamental para a sobrevivência humana. Diversos especialistas passaram a apontar como principal causa da crise hídrica a gestão ineficiente dos recursos. Segundo relatório do Ministério das Cidades, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), responsável pelo serviço na cidade do Rio de Janeiro, possui percentuais históricos de perda em torno de 50%14. Este valor, entretanto, inclui perdas financeiras (água consumida e não faturada pela companhia) e físicas (água perdida entre a produção e distribuição). Em 2010, a empresa alterou a metodologia de cálculo, excluindo as perdas financeiras, o que fez com que a taxa caísse para 31,6%. O índice é semelhante ao desperdício verificado em São Paulo com a Sabesp (34%) e em Minas Gerais com a Copasa (32,5%), segundo dados de 201115. Como comparação, em Nova York, o desperdício da rede é de cerca de 10%16. Como é possível concluir a partir dos dados acima, na cidade do Rio de Janeiro o principal uso da água é o abastecimento público. Atualmente, a cidade é abastecida pelo Sistema Guandu, mas antes de sua construção a cidade passou por várias crises de desabastecimento em decorrência, principalmente, da ausência de planejamento e do crescimento populacional acelerado.
1.2. O sistema Guandu e a situação da água no Rio de Janeiro17 O abastecimento da cidade do Rio de Janeiro foi um problema desde o momento de sua fundação, em 1565. Inicialmente abastecida pelo Rio Carioca e poços, na medida em que a cidade crescia, outros mananciais locais passaram a ser utilizados. Quando estes não mais 13 Maria Angélica Maciel Costa. Os fluxos da água na metrópole: usos múltiplos e gestão participativa na Baía de Guanabara (RJ). Tese de doutorado, IPPUR/UFRJ, 2015. 14 Perdas na rede de água da Cedae chegam a 50%. O Globo, 1º ago. 2013. Disponível em http://oglobo.globo.com/ rio/perdas-na-rede-de-agua-da-cedae-chegam-50-9311882. Acesso em 13 set. 2015. 15 Id. 16 Nova York venceu crise de água sem gastar muito dinheiro. Jornal Nacional, 12 fev. 2015. Disponível em http:// g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2015/02/nova-york-venceu-crise-de-agua-sem-gastar-muito-dinheiro.html. Acesso em 13 set. 2015. 17 Baseado no encarte Especial sobre a Crise Hídrica. ANA, 2014. Disponível em http://conjuntura.ana.gov.br/docs/ crisehidrica.pdf. Acesso em 17 set/2015.
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davam conta de abastecer uma população crescente, decidiu-se buscar água fora dos limites da cidade. Assim, no final do século XIX e início do século XX foi construído o Sistema Acari, com captações no que é atualmente a Reserva Biológica do Tinguá (Rebio Tinguá)18. A continuidade do crescimento urbano e industrial da cidade, que na época era a capital do país, ocasionou sucessivas crises no abastecimento público19. Na década de 1940, foi construído o Sistema Ribeirão das Lages, com captação na represa de mesmo nome, construída com o objetivo de geração de energia elétrica a partir da transposição do rio Piraí. Na década seguinte, foi construído o Sistema Guandu, que também só se tornou viável pela obra de transposição do Rio Paraíba do Sul para geração de energia elétrica no sistema Light20. Apesar da importância destas transposições para a cidade, caso fossem realizadas na atualidade, em função da existência de leis mais rigorosas, elas certamente enfrentariam problemas no licenciamento ambiental. Após a construção do Guandu, os problemas de abastecimento da cidade pareceram ultrapassados. Atualmente, depois de ter passado por algumas ampliações, este sistema é capaz de produzir 43 mil litros de água por segundo. Entretanto, seu funcionamento continua dependendo de um sistema pensado para a produção de energia elétrica, o que vem sendo objeto de sucessivas resoluções da ANA para garantir o uso múltiplo da água previsto na Lei 9.433 de 1997.
Bacia do rio Paraíba do Sul A bacia hidrográfica do rio Paraíba do Sul está localizada entre os maiores polos industriais e populacionais do país, possui rios de domínio federal e abrange parte dos estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. A região metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) é composta por 18 municípios e concentra 75% da população do estado e a transposição do Paraíba do Sul para o Guandu é sua principal fonte de abastecimento, atendendo a 9,5 milhões de pessoas. 18 Santa Ritta, José de. Do Carioca ao Guandu – A história do abastecimento de água da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Synergia/Light/Centro Cultural do SEAERJ, 2009. 19 O problema da falta d’água e falta de luz na então capital federal foram eternizados na Marchinha de carnaval “Vagalume”, de Vitor Simon e Fernando Martins, em 1954: “Rio de Janeiro / Cidade que nos seduz / De dia falta água / De noite falta luz / Abro o chuveiro / Oi, Não cai um pingo / Desde segunda / Até domingo / Eu vou pro mato / Oi, pro mato eu vou / Vou buscar um vagalume / Pra dar luz ao meu chatô”. 20 Ibid.
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Rio Jaguari
Sistema hidráulico do Rio Paraíba do Sul o Ri
Jaguari
ga in tin ra Pa
28 MW Funil
Santa Branca
Paraibuna
S. Cecília
86 MW
59 MW
Ri o
Pa ra ib un a
Rio Paraíba do Sul
Rio Paraíba do Sul 222 MW Rio Piraí
Santana
Tocos Vigário Ribeirão das Lajes Lajes
UEL em operação UHE em operação
Fontes
Nilo Peçanha
132 MW
380 MW
Pereira Passos 100 MW
Fonte: Agência Nacional de Águas. Bol. Mon. Paraíba do Sul, Brasília, v. 10. n.1, p. 1-20, janeiro. 2015.
Rio Guandu
O Sistema Hidráulico do rio Paraíba do Sul é um complexo conjunto de estruturas hidráulicas projetadas com o objetivo principal de geração de energia elétrica, que pode ser visualizado esquematicamente na figura abaixo. Os principais reservatórios do Paraíba do Sul são Paraibuna, Santa Branca, Jaguari e Funil. A capacidade total destes reservatórios (Reservatório Equivalente) é de 7.294,7 milhões de metros cúbicos, dos quais 4.341,9 milhões de metros cúbicos estão dentro da faixa normal de operação (volume útil total). O reservatório de Paraibuna é o que possui a maior capacidade de armazenamento em termos de volume útil (61%), seguido por Jaguari (18%), Funil (14%) e Santa Branca (7%). Esses reservatórios estão localizados no estado de São Paulo, com exceção de Funil, que se localiza no estado do Rio de Janeiro. 25
A transposição ocorre na Estação Elevatória de Santa Cecília, com capacidade de bombeamento de até 160m³/s. Após passar por todo o sistema de produção de energia, as águas são lançadas no rio Guandu regularizando sua vazão que, em condições normais seria de 25m³/s. O aumento da vazão do Guandu é oriundo deste sistema possibilita que a Cedae capte 45m³/s no limite entre Seropédica e Nova Iguaçu, no que a companhia denomina “baixo recalque do Guandu” (onde há a elevatória de água bruta). Se, por um lado, as águas do Rio Paraíba do Sul são necessárias para a produção de energia e abastecimento da RMRJ, por outro, a água que não é transposta e permanece no leito do Paraíba é a fonte de abastecimento para várias cidades fluminenses a jusante da usina de Santa Cecília. Como explica a ANA (2015): Em condições hidrológicas normais, a vazão mínima em Santa Cecília é 190 m³/s, sendo 71m³/s para atender aos usos a jusante à barragem e 119 m³/s para o bombeamento, ou seja, para a transposição para o rio Guandu, conforme estabelece a Resolução ANA 211, de 26 de maio de 2003, que dispõe sobre as regras a serem adotadas para a operação do sistema hidráulico do Paraíba do Sul21. Com a crise hídrica em 2014, a ANA vem reduzindo através de resoluções o limite mínimo de bombeamento em Santa Cecília, que em condições normais é 119 m³/s e a jusante de Santa Cecília é de 71 m³/s, o que corresponde a uma afluência esperada de 190 m³/s. Esta afluência foi reduzida sistematicamente ao longo do ano de 2014: para 173 m³/s em maio, para 165 m³/s em julho, para 160 m³/s em agosto e para 140 m³/s em dezembro. Em março de 2015, por meio da Resolução nº 145/201522, a ANA determinou a redução da vazão mínima afluente à barragem de Santa Cecília para 110m³/s. Esse patamar vem sendo prorrogado e autorizado até o dia 31 de outubro de 2015, por meio da Resolução nº 714/201523. Com vazão mínima, a partição d’água na barragem de Santa Cecília se mantém em 35m³/s a jusante e 75m³/s destinados ao rio Guandu. Novas regras de operação deste sistema vêm sendo discutidas entre a ANA, o Instituto Estadual do Ambiente do RJ (INEA), o Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de SP (DAEE) e o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM). Uma resolução conjunta 21 Agência Nacional de Águas. Bacia do rio Paraíba do Sul. Disponível em: http://www2.ana.gov.br/Paginas/ servicos/outorgaefiscalizacao/RioParaibadoSul.aspx 22 Disponível em http://arquivos.ana.gov.br/resolucoes/2015/145-2015.pdf. Acesso em 17 set/2015. 23 Disponível em http://arquivos.ana.gov.br/resolucoes/2015/714-2015.pdf. Acesso em 17 set/2015.
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destes órgãos24 deverá assegurar o uso múltiplo das águas e a prioridade do uso humano e dessedentação animal, conforme a legislação. Essas alterações buscam garantir que os reservatórios ao longo do Paraíba do Sul possam acumular água para abastecimento público em caso de necessidade, ou seja, têm como objetivo assegurar a prioridade disto em detrimento da geração de energia. A situação a jusante de Santa Cecília, entretanto, onde a vazão está bastante reduzida, é atualmente motivo de grande preocupação. Há, entre outros problemas, rebaixamento do lençol freático, redução das áreas de pastagens e aumento da intrusão salina na foz. O mesmo ocorre no Guandu a jusante da captação da Cedae, onde a intrusão salina já causa alguns conflitos. Apesar de estar autorizada desde março, a redução foi sendo feita gradativamente e só alcançou os 110 m³/s no fim de agosto25. Isso porque a diminuição aumenta a entrada de água do mar no rio, a chamada intrusão salina, prejudicando as indústrias da região, que captam água na foz do Rio Guandu na Zona Oeste do Rio. A Associação das Empresas do Distrito Industrial de Santa Cruz (Aedin), composta por Thyssenkrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), Gerdau, Furnas, entre outras, propôs a construção de uma barragem para impedir a entrada da água do mar (soleira submersa). No entanto, a construção causou graves prejuízos aos pescadores locais. Com dificuldades de navegação e acesso à Baía de Sepetiba, de onde tiram o seu sustento, eles paralisaram a obra algumas vezes em protesto. A demora na diminuição da vazão por conta das indústrias de Santa Cruz fez com que houvesse um grande desperdício diário de água. A barragem surgiu como uma solução para o abastecimento das empresas, que não investiram o necessário para fazer a captação em outro ponto do rio ou para utilização da água de reuso da ETA Guandu. A solução inviabilizou a pesca, criando dificuldades de navegação e colocando em risco a reprodução dos peixes e a vida dos pescadores. Há meses eles têm dificuldades em transitar pelo rio. Nesse cenário, o poder público deve intervir para garantir a economia de água e, 24 Resolução Conjunta ANA/DAEE/IGAM/INEA. Disponível em: http://arquivos.ana.gov.br/imprensa/ noticias/20150320094225_Minuta%20Resolu%C3%A7%C3%A3o%20Novas%20Regras%20PBS%20-%2010Mar15%20(3). pdf 25 Vazão da barragem da usina hidrelétrica de Santa Cecília é reduzida. Folha Vitória, 27 ago. 2015. Disponível em http://www.folhavitoria.com.br/noticia/print/vazao-da-barragem-da-usina-hidreletrica-de-santa-cecilia-e-reduzida.html. Acesso em 17 set/2015.
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Pescadores fazem ato na barragem do Rio Guandu, em junho de 2015. Foto: Renato Cosentino
em um possível cenário de agravamento da crise hídrica no Rio de Janeiro, priorizar o abastecimento da população.26 Como é possível constatar pela descrição acima, existe um claro conflito pela água do Paraíba do Sul entre o setor elétrico (que precisa fazer uso dos reservatórios para geração de energia), o setor industrial (que usa água nos processos produtivos), o abastecimento público e pescadores da foz do Guandu (Canal de São Francisco).
O Sistema Guandu e o abastecimento do Rio de Janeiro Como relatado anteriormente, a água do Guandu é captada pela Cedae no limite entre os municípios de Seropédica e Nova Iguaçu. A Cedae possui uma outorga de 45m³/s com a 26 Entre as grandes consumidoras de água da região está a TKCSA, que em poucos anos de atuação em Santa Cruz já acumula um histórico de violações de direitos humanos, como a contaminação do ar com a chuva de prata, além da falta de planejamento para o uso racional da água, que está prejudicando a todos os moradores da região metropolitana do Rio de Janeiro. A TKCSA sempre gozou de diversos incentivos fiscais concedidos pelos poderes municipal e estadual; até 2012, R$ 695 milhões em impostos já haviam sido deixados de ser pagos aos cofres públicos. Apesar disso, a empresa é ineficiente no uso da água. Após cinco anos atuando sem licença, é preciso colocar na balança as vantagens e desvantagens de abrigar tais empresas na cidade. A TKCSA é hoje uma das principais fontes de poluição atmosférica do Rio de Janeiro.
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finalidade de abastecimento público. Estas águas são fundamentais para o abastecimento da parte Oeste da RMRJ, incluindo o município do Rio de Janeiro, que não possui mananciais suficientes para abastecer sua população dentro de seus limites territoriais. Além do Rio de Janeiro, são abastecidos pelo Guandu: Belford Roxo; Duque de Caxias; São João de Meriti; Mesquita; Nilópolis; Nova Iguaçu; Queimados e Japeri. Após a captação, a água é levada através de uma elevatória de água bruta até a ETA Guandu, onde recebe o tratamento necessário para torná-la potável. A adequação desta água – que já vem poluída por esgoto doméstico e industrial – aos padrões de potabilidade exige o uso de uma grande quantidade de produtos químicos, como esclarece um folder da Cedae sobre a ETA: 140 toneladas de sulfato de alumínio; 20 toneladas de cloreto férrico; 15 toneladas de cloro; 25 toneladas de cal virgem; 10 toneladas de ácido fluossilícico27. A crise hídrica, que ocasiona redução da vazão dos corpos hídricos utilizados para o abastecimento, a ausência de tratamento de esgotos e a falta de fiscalização das indústrias que diluem seus efluentes nestes rios podem, efetivamente, causar dificuldades ao tratamento da água. Isso ocorreu, por exemplo, em 2001, quando, segundo um ex-diretor da Cedae, a proliferação de cianobactérias causou sérias dificuldades ao tratamento da água na ETA Guandu28. Ao sair da ETA, aproximadamente metade da água tratada é conduzida através de um túnel escavado na rocha para o reservatório dos Macacos, na Zona Sul, e metade para o reservatório de Marapicu, ainda em Nova Iguaçu. A partir deste reservatório, uma parte é aduzida para as zonas Norte e Oeste do município em três adutoras. O restante é destinado à Baixada Fluminense através de duas adutoras29. Apesar da grande quantidade de água produzida no Sistema Guandu, existe ainda uma parcela considerável da população sem acesso às redes, em especial na periferia da metrópole e nas favelas do município do Rio de Janeiro, como é possível constatar pela tabela a seguir, produzida a partir dos dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), da Secretaria de Saneamento Ambiental (SNSA), vinculada ao Ministério das Cidades30. 27 Cedae, s/d. Disponível em: http://www.cedae.com.br/ri/Guandu_Guiness.pdf 28 Flávio Guedes. Depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Crise Hídrica, Alerj, 2015. 29 Quintslr, Suyá; Britto, Ana Lúcia. Desigualdades no acesso à agua e ao saneamento: impasses da política pública na metrópole fluminense. WATERLAT-GOBACIT Network Working Papers Thematic Area Series SATCUASPE – TA3 - Urban Water Cycle and Essential Public Services – Vol. 1 No2, 2014. 30 BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Programa de Modernização do Setor de Saneamento. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Diagnóstico dos serviços de água e esgoto2011. Brasília: Ministério das Cidades, 2012. Disponível em <http://www.snis.gov.br>.
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Além da ausência de rede, existem problemas de quantidade, qualidade e frequência do fornecimento de água em toda a região abastecida pelo Guandu, causando limitação do acesso à água para um grande contingente populacional. Especialistas vêm apontando que, de forma geral, as áreas com os piores indicadores de saneamento são aquelas onde vive a população mais pobre (como favelas e municípios periféricos). Outro fator que chama atenção, como discutido anteriormente, é o índice de perdas na distribuição da água que, no Rio de Janeiro, chega a 35%.
Informações SNIS 2011 (MCIDADES/SNSA, 2012) Ind. de atendimento com rede de água
Consumo médio per capita
Ind. de perda na distribuição
Belford Roxo
78,3
224,7
30,4
Duque de Caxias
85,4
226,8
28,2
Mesquita
95
172,7
30,2
Nilópolis
99,5
218
7,8
Nova Iguaçu
93,7
240,2
29,7
Queimados
83
209,6
31,5
São João de Meriti
92,3
207,9
32
Rio de Janeiro
90,7
298,1
35,7
A situação atual Os últimos meses de 2015 parecem ter surpreendido as previsões mais pessimistas de prolongamento da seca no Sudeste. O El Nino extremo acabou trazendo mais chuvas para a região e São Paulo, por exemplo, teve o novembro mais chuvoso em 37 anos31. Meteorologistas esperam, agora, um verão menos quente e mais chuvoso na região32. Entretanto, a recuperação do nível dos reservatórios é lenta. A situação dos reservatórios do Sistema Cantareira, em SP, apesar de ser melhor que a do mesmo período de 2014, ainda é bem inferior a todos os anos anteriores à seca33 e a recuperação do volume normal, se ocorrer, poderá levar anos. 31 ClimaTempo. São Paulo tem novembro mais chuvoso em 37 anos. Disponível em: http://www.climatempo.com. br/noticia/2015/11/30/novembro-de-muita-chuva-na-capital-paulista-1384 32 ClimaTempo. Verão de 45ºC? Disponível em: http://www.climatempo.com.br/videos/video/8/apkEw_0UHo8 33 Boletim diário ANA/DAEE de monitoramento do sistema Cantareira situação do sistema equivalente - 04/12/2015. Sistema Cantareira. Disponível em: http://arquivos.ana.gov.br/saladesituacao/BoletinsDiarios/ DivulgacaoSiteSabesp_4-12-2015.pdf
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Na bacia hidrográfica do Paraíba do Sul, da qual depende o abastecimento da maior parte do estado do RJ, os índices pluviométricos acima da média em novembro também resultaram em uma tendência de recuperação do sistema. Isso pode ser verificado pela comparação do nível do Reservatório Equivalente no início de dezembro de 2015 e no mesmo mês do ano anterior: no dia 03 de dezembro de 2015 o reservatório chegou a 10,42% de seu volume útil, enquanto um ano antes estava em 3,48%. Como é possível verificar no gráfico abaixo, a elevação do reservatório equivalente foi puxada principalmente pelo reservatório de Funil, que chegou a 39% de seu volume útil. A manutenção desta tendência, entretanto, depende tanto da permanência da pluviosidade elevada quanto das alterações nas regras de operação do sistema, uma vez que o que é denominado “volume útil” nestes reservatórios é o volume a partir do qual é possível a geração de energia. O uso do volume morto para abastecimento, apesar de ser plenamente possível, depende que alguns conflitos sejam enfrentados pelos gestores públicos.
Bacia do Rio Paraíba do Sul - 03/12/2015 Fonte: Fonte: CEIVAP. Boletim diário de monitoramento da Bacia do Rio Paraíba do Sul.
(%) 50 38.74
40 30 20 11.99
10 0 -10
4.41 1.4
2.23
11.14
10.42
4.14
3.48
em 01/02/2015: -0.64 em 10/02/2015: -4.9 Paraibuna
Santa Branca
Volume útil em 03/12/2015
Jaguari
Volume útil em 03/12/2014
Funil
Reservatório Equivalente
Menor volume útil desde 01/01/1995
Como destacou Paulo Carneiro, coordenador da elaboração do Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERHI), em uma das entrevistas realizadas por esta Comissão Especial, quando foi autorizado que SP transpusesse água do reservatório de Jaguari para seu abastecimento, o RJ ganhou a possibilidade de usar o volume morto do Paraibuna, o que antes não era previsto. Este 31
estoque de água, segundo o especialista, é “muito significativo”, entretanto, não deve ser usado de forma permanente para não exaurir o reservatório: “Se esta reserva hídrica do Paraíba do Sul for bem gerenciada, a RM que é abastecida pelo sistema Guandu, ela tem uma garantia de suprir suas demandas. [Mas] não quer dizer que seja uma garantia folgada [...]. Não estamos falando de uma situação tranquila; estamos falando de uma gestão eficiente. E tem muita margem para que a gente possa melhorar essa gestão [...]” Entre as melhorias de gestão, Carneiro destaca que, de acordo com os cálculos realizados pelo PERHI, uma redução do patamar de perdas para 30% no estado geraria uma economia de água suficiente para abastecer 1,5 milhão de pessoas. Outra questão passível de ser enfrentada pelos gestores é a desigualdade no consumo per capita entre diferentes regiões da cidade. Finalmente, os problemas dos sistemas informais de abastecimento e da intermitência do serviço em algumas regiões na cidade precisam também ser resolvidas para que seja garantido a todos o direito à água.
1.3. Água: direito humano ou mercadoria? Em 28 de Julho de 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução A/RES/64/292, declarou a água limpa e segura e o saneamento um direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os outros direitos humanos34. Além disso, estabeleceu que o abastecimento de água e a disponibilidade de saneamento para cada pessoa devesse ser contínuo e suficiente para usos pessoais e domésticos. Estes usos incluem dessedentação, saneamento pessoal, lavagem de roupa, preparação de refeições e higiene pessoal e do lar. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), são necessários entre 50 e 100 litros de água por pessoa, por dia, para assegurar a satisfação das necessidades mais básicas e a minimização dos problemas de saúde. Em relação aos custos dos serviços de água e saneamento, estes não deverão ultrapassar 5% do rendimento familiar. O acesso à água não deverá afetar a capacidade das pessoas de adquirirem outros bens e serviços essenciais, como alimentação, habitação, serviços de saúde e educação35. 34 O Direito Humano à Água e Saneamento - Comunicado aos Média. ONU. Disponível em http://www.un.org/ waterforlifedecade/pdf/human_right_to_water_and_sanitation_media_brief_por.pdf. Acesso em 13 set/2015. 35 Id.
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No entanto, como algo essencial para a vida humana, a água pode ser uma mercadoria muito lucrativa. A Sabesp é uma das 20 empresas mais rentáveis do Brasil e lucrou quase R$ 10 bilhões nos últimos sete anos. Desse montante, distribuiu R$ 3,4 bilhões a seus acionistas - o governo estadual de SP é dono de 50,3% das ações36. Apesar de a lei obrigar uma distribuição mínima de dividendos, a Sabesp foi muito mais generosa com os acionistas, superando o mínimo legal em 48%. Nenhuma das grandes companhias de saneamento com ações negociadas na bolsa de Nova York deu retorno tão bom em dividendos quanto a Sabesp37. Os investimentos necessários para garantir o fornecimento contínuo e suficiente para a população, como prevê a ONU, foram deixados de lado. A eficiência do sistema, com altos índices de desperdício na distribuição, não fazia parte das metas da empresa, que contou com a sorte que viria dos céus e que continuaria transformando a água em lucro líquido. Uma lista com os maiores consumidores da empresa revelou que eles recebiam descontos substanciais; mesmo no período de escassez, quem consumia mais pagava menos38. A estiagem acabou trazendo à tona a irracionalidade do sistema paulistano. No Rio de Janeiro, a estatal Cedae começou a ser fiscalizada pela Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio (Agenersa) apenas em agosto de 2015. Uma das principais atribuições da agência vai ser auditar o cálculo da tarifa da água, que é reajustado por ato da presidência de acordo com as necessidades da empresa, não do consumidor. O custo da água da Cedae é o sétimo mais alto do país e o maior do Sudeste, com preço médio de R$ 3,16 o metro cúbico. Em São Paulo, este valor é de R$ 2,29. Apesar do alto custo, os investimentos não são feitos apenas com recursos próprios, mas principalmente do Fundo Estadual de Conservação Ambiental (Fecam) ou do PAC do governo federal39. Não se sabe como a Cedae faz a gestão da tarifa, da demanda e quem são seus maiores consumidores. O Rio de Janeiro experimenta também o maior projeto de privatização do saneamento básico do Brasil na região da AP-5, parte da Zona Oeste do município, que representa 48% do 36 Sabesp é generosa com acionistas, mas não com investimentos. Exame, 24 nov. 2015. Disponível em http:// exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1078/noticias/nao-da-nem-para-racionar. Acesso em 13 set/2015. 37 Id. 38 Sabesp ignorou ordem e assinou contratos com grandes consumidores. El País, 23 mai. 2015. Disponível em http://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/22/politica/1432320386_840574.html. Acesso em 13 set/2015. 39 Cedae passa a ser monitorada pela Agenersa, e especialistas esperam mais transparência. O Globo, 15 ago. 2015. Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/cedae-passa-ser-monitorada-pela-agenersa-especialistas-esperammais-transparencia-17193367. Acesso em 13 set. 2015.
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seu território com 21 bairros40 e mais de 1,7 milhão de moradores. A concessionária Foz Águas 5, uma parceria entre o Grupo Águas do Brasil e a empresa Foz do Brasil (grupo Odebrecht), assumiu o contrato de 30 anos de duração em 2012. No ano seguinte, a Caixa Econômica Federal destinou R$ 640 milhões à concessionária por meio do programa Saneamento para Todos, via financiamento com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Ao longo de 30 anos a concessionária vai receber R$ 2,6 bilhões, sendo R$ 1,8 bilhão nos primeiros dez anos. O faturamento da Foz Águas 5 é de cerca de R$ 100 milhões ao ano, e em dez anos o consórcio espera alcançar R$ 500 milhões ao ano41. A água na AP5 continua sendo fornecida pela Cedae, mas a gestão comercial passou a ser feita pela Foz Águas 5. O edital de concessão, no entanto, excluiu da necessidade de atendimento as populações residentes em áreas de proteção ambiental, loteamentos irregulares e favelas42. A prestação do serviço estaria vinculada à conclusão de projetos de urbanização, como o Programa Morar Carioca, que deixou de ser uma prioridade para a Prefeitura do Rio. A concessão, portanto, não visa a universalização do acesso a água e saneamento, indo na contramão da resolução da ONU que garante os serviços como direitos humanos fundamentais. A Prefeitura quer agora expandir o modelo de concessão para a AP-4 (Barra, Recreio dos Bandeirantes, Jacarepaguá e arredores) e os estudos estão sendo coordenados pelo secretário municipal da Casa Civil, Pedro Paulo Carvalho43. A Odebrecht tem uma série de investimentos na região, como a construção do bairro Ilha Pura, em parceria com a Carvalho Hosken, onde será a Vila dos Atletas durante os Jogos Olímpicos de 2016. Cabe então questionar: que garantia se tem de que os interesses econômicos da construtora não influenciarão na prestação de um serviço tão importante à vida da população carioca? Além destes projetos de concessão de parcelas do esgotamento do Rio de Janeiro, a privatização da Cedae já foi aventada por diferentes governos. Marcello Alencar, Governador 40 São eles: Bangu, Barra de Guaratiba, Campo Grande, Campo dos Afonsos, Cosmos, Deodoro, Gericinó, Guaratiba, Inhoaíba, Jardim Sulacap, Magalhães Bastos, Paciência, Padre Miguel, Pedra de Guaratiba, Realengo, Santa Cruz, Santíssimo, Senador Camará, Senador Vasconcelos, Sepetiba e Vila Militar. 41 Consórcio Foz Águas 5 recebe financiamento de R$ 640 milhões - Valor Econômico / Online - Empresas. Trata Brasil, 9 mai/2013. Disponível em http://www.tratabrasil.org.br/consorcio-foz-aguas-5-recebe-financiamento-de-r-640milhoes-valor-economico-online-empresas. Acesso em 14 set. 2015. 42 A Guerra do Esgoto. Carta Maior, 1 jun/2015. Disponível em http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Cidades/AGuerra-do-Esgoto/38/33631. Acesso em 14 set. 2015. 43 Prefeitura estuda conceder esgoto da região de Jacarepaguá e Barra à iniciativa privada. O Globo, 10 jan. 2013. Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/prefeitura-estuda-conceder-esgoto-da-regiao-de-jacarepagua-barrainiciativa-privada-7246751. Acesso em 14 set. 2015.
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do RJ entre os anos de 1995-1998, fez uma primeira tentativa de privatização da concessionária estadual em 1998. Tendo enfrentado uma forte resistência dos funcionários da empresa, o projeto foi derrotado. Em 2012 foi feita uma tentativa de abertura de capital, através de um pedido de oferta pública inicial de ações (IPO) protocolado no dia 25 de outubro de 2012. No início do ano seguinte, o pedido foi cancelado44. Este ano (2015), ocorreram novos rumores acerca da privatização da Cedae, além das propostas já conhecidas de privatizações parciais do esgotamento sanitário. Segundo a jornalista Berenice Seara, o PMDB, ainda que sem o apoio do Governador, pretende privatizar parte da empresa. A concessionária que assumir os serviços na AP4, onde eles são mais lucrativos, deverá também arcar com a responsabilidade de prestá-los na Baixada Fluminense. Para tornar o negócio “mais atraente”, ainda de acordo com a jornalista, o Governo do Estado repassaria à concessionária o recurso que conseguiu junto ao Governo Federal – cerca de 3,1 bilhões de reais - para o Guandu II (ampliação do Sistema Guandu)45. No nível estadual, cabe frisar que, apesar da maior prestadora dos serviços de água e esgoto ser a Cedae, vários municípios já concederam os serviços à iniciativa privada. Araruama, Saquarema e Silva Jardim são hoje atendidas pela Águas de Juturnaíba, do Grupo Águas do Brasil – que tem como acionistas o Grupo Carioca Engenharia e Queiroz Galvão46; Campos, Resende, Nova Friburgo, Petrópolis, Niterói e Paraty, por prestadores privados de abrangência local do mesmo grupo; Armação dos Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia estabeleceram contrato com a Prolagos. Por fim, Guapimirim concedeu os serviços à empresa privada Fontes da Serra Águas de Guapimirim. Existem poucos estudos sistemáticos sobre os resultados destas concessões. Enquanto o processo de privatização dos serviços de água e saneamento avança no Brasil, diversos países fazem o caminho inverso e a “remunicipalização” da água tem sido apontada como uma tendência mundial47. Em 15 anos, 235 cidades que atendem cerca de 106 milhões de pessoas retomaram a gestão do tratamento e fornecimento de água das mãos de empresas privadas. Entre elas, grandes capitais como Berlim, Paris, Kuala Lumpur ou 44 Cedae confirma cancelamento de oferta de ações. Valor Econômico, 13 mar/2013. 45 PMDB planeja privatizar a Cedae para sair da crise financeira. Pezão é contra. Extra, 03 dez/2015. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/extra-extra/pmdb-planeja-privatizar-cedae-para-sair-da-crise-financeira-pezaocontra-18207039.html 46 http://www.grupoaguasdobrasil.com.br/o-grupo/institucional/ 47 Ver Water Remunicipalisation Tracker (http://www.remunicipalisation.org/)
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Buenos Aires, além de pequenos e médios municípios48. Algumas das experiências estão relatadas no livro “Remunicipalização: O retorno da água a mãos públicas”, organizado por Martin Pigeon, David A. McDonald, Olivier Hoedeman e Satoko Kishimoto49. O serviço em Paris foi reassumido em 2010 das mãos das empresas francesas Veolia e da Suez, duas poderosas multinacionais que dominam o mercado da água no mundo. Era a primeira vez que o poder público recuperava um sistema que atendia 2,2 milhões de habitantes da região metropolitana. A cidade economizou, no primeiro ano, 35 milhões de euros, graças à internalização dos dividendos antes destinados aos acionistas, e reduziu as tarifas em 8% em relação a 200950. A tendência mundial de remunicipalização dos serviços de água e esgoto aponta para a garantia do fornecimento dos serviços de água e saneamento como um direito humano universal, não subordinado a uma racionalidade econômica em que a escassez pode se transformar em uma oportunidade de negócio, aprofundando ainda mais a desigualdade urbana. A mera prestação do serviço pelo setor público, entretanto, não garante que o direito humano à água seja respeitado. Ao contrário, ela pode continuar a ser tratada como uma mercadoria e grupos que não possuem recursos financeiros podem permanecer sem acesso à água. Aliás, a concepção de que os serviços de água e esgoto devem ser pagos e que as empresas estaduais devem ter autonomia financeira é fortemente arraigada no Brasil. O paradigma da auto sustentação tarifária tem origem no Plano Nacional de Saneamento (PLANASA) elaborado pelo regime militar na década de 1970 e considera que os recursos para a gestão da água e do esgoto devem ser provenientes das tarifas pagas pelos cidadãos. Recentemente, a companhia expressou tal concepção ao anunciar a captação R$ 3,1 bilhões do FGTS para a ampliação do sistema Guandu, recurso que não traria efeitos negativos para o balanço do governo51. Além disso, o fato do abastecimento de água ser mais eficiente nas áreas mais nobres da cidade e a possibilidade do serviço ser cortado em caso de falta de pagamento reforçam esta compreensão de que a água, mesmo que fornecida por uma Companhia Estadual de Saneamento, segue sendo considerada como uma mercadoria, por mais que a legislação 48 Gestão da água volta para o Estado em 235 cidades no mundo. El País, 15 jun. 2015. Disponível em http://brasil. elpais.com/brasil/2015/06/05/politica/1433533748_741282.html. Acesso em 14 set/2015. 49 O título original é “Remunicipalisation: Putting Water Back into Public Hands”. O livro está disponível para download, em inglês, em https://www.tni.org/files/download/remunicipalisation_book_final_for_web_0.pdf. Acesso em 14 set/2013. 50 Op cit. 51 Cedae diz estar em nova fase e planeja licitação de R$ 1 bi. Valor Econômico, 21/07/2014.
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considere o uso humano como prioritário e que o Brasil seja signatário das resoluções da ONU sobre o Direito Humano à Água. De fato, conforme prevê a Lei nº 9.43352, que dispõe sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos, a gestão da água deve sempre proporcionar seu uso múltiplo. A lei ressalta, no entanto, que para situações de escassez os usos prioritários da água passam a ser o consumo humano e a dessedentação de animais. O uso múltiplo da água traz uma discrepância pouco conhecida: o uso doméstico consome muito menos água do que se costuma imaginar, apesar das campanhas de conscientização serem sempre focadas no consumidor residencial. Esta é uma forma superficial de abordar o tema, culpabilizando justamente quem menos consome.
1.4. Transparência, planejamento, legislação e outras tarefas do poder público A crise hídrica de 2014 deixou evidente a necessidade de que a gestão dos recursos hídricos no Estado do Rio de Janeiro seja mais transparente para tornar possível a participação e o controle social na gestão da água e dos serviços de saneamento. As informações sobre os sistemas de reservatórios, sobre a existência de rede, frequência e intermitências no abastecimento, qualidade da água, entre outras, são de interesse da população, a principal afetada em caso de descontinuidade do abastecimento. A Agência Nacional de Águas (ANA) e a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental (SNSA) deram alguns passos nesse sentido nos últimos anos, entretanto, ainda há muito que avançar, principalmente nos níveis estadual e municipal. A ANA vem publicando boletins diários e mensais sobre a condição dos reservatórios dos principais sistemas de abastecimento do país através da “Sala de Situação” (http://www2.ana. gov.br/Paginas/servicos/saladesituacao/default.aspx): A Sala de Situação funciona como um centro de gestão de situações críticas e subsidia a tomada de decisões por parte de sua Diretoria Colegiada, em especial, na operação de curto prazo de reservatórios, através do acompanhamento das condições hidrológicas dos principais sistemas hídricos nacionais de modo a identificar possíveis ocorrências de eventos críticos, permitindo a adoção antecipada de medidas mitigadoras com o objetivo de minimizar os efeitos de secas e inundações. 52
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9433.htm. Acesso em 14 set/2013.
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As informações, entretanto, nem sempre são de fácil compreensão para o cidadão não especialista no assunto, em especial devido ao emprego de grande número de termos técnicos. Como exemplo, é possível citar expressões como “reservatório equivalente”, “volume útil”, “volume morto”, entre outras. A expressão “volume morto”, repetida reiteradamente pela mídia nacional sem maiores explicações de seu significado, gerou uma apreensão sobre o tipo de água que estaria neste “volume”. No caso dos reservatórios do Paraíba do Sul, por exemplo, o volume morto é apenas a água que não pode mais ser usada para geração de energia. A SNSA, por sua vez, através do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), disponibiliza anualmente o Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto de todo o Brasil (http://www.snis.gov.br/diagnostico-agua-e-esgotos). As informações disponíveis neste diagnóstico são de grande utilidade e incluem a existência de redes de água e esgoto, o volume produzido, volume consumido, o faturamento das empresas, entre outros. Entretanto, nem sempre contam com dados de qualidade e intermitências dos serviços (i.e., não faz o mapeamento, por exemplo, das áreas onde o abastecimento ocorre em dias alternados, como é o caso de grande parte dos municípios da Baixada Fluminense). Nos níveis estadual e municipal, a existência de informações é consideravelmente mais precária. Isso se reflete, por exemplo, na resistência do Governo do Estado do Rio de Janeiro em permitir que a Cedae fosse regulada pela Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico (Agenersa). A produção de informações claras e sistematizadas é importante não apenas para garantir a compreensão da população e sua participação na gestão, mas também para que os órgãos responsáveis possam efetuar o planejamento do uso dos recursos. Paulo Carneiro destacou em entrevista algumas dificuldades enfrentadas durante o processo de elaboração do Plano Estadual de Recursos Hídricos, instrumento de planejamento do uso da água no RJ. Um dos grandes problemas apontados é a inexistência de um sistema unificado de outorgas de uso de recursos hídricos na Bacia do Paraíba do Sul. Como não há um cadastro único e os dados produzidos pelos três estados (MG, SP e RJ) não têm como princípio os mesmos critérios, é quase impossível fazer um balanço preciso entre a água usada (outorgada) e a água disponível na bacia. A informação sobre os tipos de outorga é necessária, inclusive, no caso de que as outorgas para usos não prioritários 38
precisem ser suspensas em caso de escassez (nestes casos o uso prioritário deve ser uso humano e dessedentação animal). Em relação ao sistema de saneamento municipal, uma das principais polêmicas gira em torno do índice de perdas da Cedae que, após mudanças na metodologia, passou de cerca de 50% para 35%. A diferenciação entre as perdas físicas e financeiras nunca fica completamente clara e a Cedae chegou a argumentar na CPI da Crise Hídrica na Alerj que, caso perdesse 1/3 da água que produz, conforme a própria empresa informou para o SNIS, inundaria o Rio de Janeiro. Apesar da contestação, os dados de perda não foram esclarecidos53. Efetivamente, estas informações precisas dependeriam de um sistema de mesomedição e micromedição (hidrometração) que inexiste em grande parte da cidade. Quando se trata de recursos e serviços tão importantes, é um direito básico da população ter acesso às informações. Conhecer os diferentes níveis de qualidade da água disponibilizada pela companhia de abastecimento, podendo assim acompanhar as possíveis variações ao longo do tempo e exercer o devido controle social. O monitoramento da qualidade da água consumida no Município do Rio de Janeiro já é realizado pela Vigilância Sanitária Municipal, no entanto estas informações não são divulgadas publicamente. Já a qualidade da água do mar é monitorada pelo INEA, e atualizada em seu site. Porém não é possível saber no local de banho a condição das nossas praias. A plaquinha que informava se a água estava ‘própria’ ou ‘imprópria’ já não existe mais, e ela pode ser decisiva para evitar a transmissão de diversas doenças. O vereador Renato Cinco, que preside a Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico, apresentou o Projeto de Lei nº 1435/2015 que “determina a afixação de placas indicativas das condições de balneabilidade das praias” e o Projeto de Lei nº 1498/2015 sobre “a divulgação do monitoramento da qualidade da água consumida” no município do Rio de Janeiro, que recebe tratamento químico na ETA-Guandu. A descentralização do abastecimento ou a existência de alternativas ao Guandu esbarra na poluição dos rios, na falta de planos municipais de drenagem e de reuso destas águas ou de águas captadas em piscinões, na falta de ações e políticas públicas e do setor privado para captação de água das chuvas, além dos problemas de saneamento que geram doenças e dificuldades para a utilização das águas que vão para as galerias fluviais. Além disso, em função 53
Deputado Luiz Paulo Corrêa da Rocha, presidente da CPI da Crise Hídrica. Comunicação oral, 2015.
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de interesses empresariais e por incentivo de programas públicos de habitação, a cidade cresce para áreas afastadas, de forma espraiada, gerando passivos ambientais e mais demanda por investimento público em infraestrutura. A urgente despoluição dos recursos hídricos da cidade passa pela ativação de mecanismos de controle social, esvaziados ou inexistentes, o que demonstra que o poder público municipal não tem tido a intenção de abrir um debate real sobre o tema e muito menos descentralizar as decisões. Diversas organizações lutam há anos, por exemplo, pela criação de parques municipais. Desde os anos 1990, moradores formaram associações voluntárias na Zona Norte com o objetivo de reivindicar a criação de um parque ecológico de uso múltiplo na Serra da Misericórdia, revitalizando sua área verde e recuperando suas fontes de água. Mais de dois milhões de pessoas do entorno, sobretudo das favelas de Complexo do Alemão e da Penha, se beneficiariam do parque público. Apesar dos compromissos da Prefeitura, o projeto nunca saiu do papel54. Em diversas cidades do mundo a recuperação de áreas verdes e de rios urbanos é uma realidade, como em Paris, Londres e Lisboa. Por exemplo, em Seul, na Coreia do Sul, o rio Cheonggyecheon foi revitalizado com sucesso em apenas quatro anos. Atualmente seu curso conta com cascatas, fontes, peixes, é ponto de encontro para todas as faixas etárias e serve de lazer à população55. Mesmo o Rio de Janeiro sendo uma cidade fundamentalmente consumidora de água, que é transposta de outras regiões do Estado, isso não deveria significar qualquer irresponsabilidade com o uso deste recurso. Pelo contrário, o Município carioca deveria implantar medidas que garantissem a qualidade da água, o abastecimento permanente de todas as famílias e tarifas ou taxas maiores para empresas que são grandes consumidoras de água. A permissão para instalação de empresas hidro-intensivas no Rio de Janeiro deveria ser objeto de profunda reflexão e debate público. Outras políticas municipais também são necessárias: reaproveitamento de água através de políticas para captação, drenagem, despoluição, reflorestamento de matas ciliares e reuso, além de estímulos à adoção de energia solar e eólica. O prefeito do Rio de Janeiro preside desde 2013 o Grupo C40 de Lideranças Climática das Cidades. No entanto, o Rio não faz o dever de casa. 54 Prefeito se compromete publicamente com o Parque da Serra da Misericórdia, 11 set. 2015. Disponível em http://paneladepressao.nossascidades.org/campaigns/708. Acesso em 23 set. 2015. 55 Oito exemplos de que é possível despoluir os rios urbanos. ArchDaily, 22 set. 2015. Disponível em http://www. archdaily.com.br/br/01-168964/oito-exemplos-de-que-e-possivel-despoluir-os-rios-urbanos. Acesso em 22 set. 2015.
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2. A Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico 2015 2.1. A criação da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico na Câmara Municipal do Rio de Janeiro A Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico foi criada pela Resolução nº 1.328 de 08 de maio de 2015, devido ao reconhecimento da gravidade da crise hídrica no Sudeste brasileiro, com o potencial de afetar o abastecimento de água no município do Rio de Janeiro. Compõem a Comissão os vereadores Renato Cinco (PSOL) (Presidente), Eduardão (PMDB) (Relator), João Cabral (PMDB). O objetivo inicial era realizar um diagnóstico básico sobre a situação hídrica no município, abordando as condições do serviço de abastecimento de água – quantidade e qualidade –, de saneamento e os desperdícios e deficiências do sistema, além da poluição nos rios da cidade. Para realizar esse diagnóstico e sistematizar as informações citadas, a Comissão tem realizado reuniões com técnicos e especialistas, tanto aqueles vinculados ao poder público quanto representantes da sociedade civil organizada e de universidades56. Os encontros foram filmados e serão disponibilizados no endereço eletrônico www.colapsohidrico.eco.br, compondo um banco de dados que contará também com documentos, projetos de lei, materiais de campanha e outras informações que estão sendo sistematizadas sobre a questão da água na cidade. Partiu-se do entendimento de que a crise hídrica não é de causa natural, resultado apenas da falta de chuva, mas sim consequência de fatores como o modelo de produção energético e seus objetivos, a prioridade na produção e exportação de produtos primários, as formas degradantes de uso do solo, a destruição ambiental, a poluição, o consumismo, a precariedade dos serviços de abastecimento e saneamento, e a visão de que o acesso a estes serviços é um negócio, e não um direito humano fundamental. Nesse sentido, a crise que se desvenda é maior, reflete a relação de exploração que a sociedade de consumo estabeleceu com o meio ambiente. A Comissão tem organizado atividades – reuniões abertas, audiências, discussões públicas – dentro e fora da Câmara Municipal com o objetivo de ampliar o debate sobre o atual modelo de desenvolvimento e as mudanças climáticas, no sentido de entender a raiz do problema. 56 Foram entrevistados/as em 2015: Sandra Quintela (Pacs), Alexandre Pessoa (pesquisador da Fiocruz), Flávia Braga (professora da UFRRJ), Ana Lucia Brito (professora PROURB/UFRJ), Suyá Quintslr (pesquisadora IPPUR/UFRJ), Flavio Serafini (deputado estadual, PSOL-RJ) e Paulo Carneiro (coordenador da elaboração do PERHI).
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A partir desse acúmulo inicial, a presidência da Comissão indicou no documento “Notas da Presidência da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico Rio de Janeiro”57, apresentado em setembro de 2015, que: 1) é grave a crise hídrica no Rio de Janeiro para esse e para os próximos anos; 2) a condição da cidade do Rio de Janeiro é fundamentalmente de consumidora de água, o que não isenta a Prefeitura de assumir uma série de responsabilidades relacionadas a este recurso; 3) há uma realidade de baixa transparência com a ausência de estudos permanentes e capazes de apreender de forma abrangente o problema da utilização da água; 4) há problemas de gestão, desperdício, poluição e um contexto de privatização que, dentre outros efeitos, institucionaliza a falta de intenção de universalizar o acesso à água e saneamento; e 5) é necessário que o poder público carioca apresente e discuta democraticamente com a população um plano de ação para o caso de agravamento da crise, no qual a população não seja surpreendida nem prejudicada para garantir os interesses dos grandes consumidores empresariais; 6) é inadmissível a passividade da Prefeitura do Rio de Janeiro em relação a um assunto tão caro à população, com ausência de planejamento, de atuação em comitês de bacia, de planos de drenagem, de captação e reuso, de incentivo ao uso de energias alternativas, entre outros. Assim, as políticas existentes para resolução ou mitigação da crise hídrica vêm sendo analisadas sob a ótica da crise do modelo de desenvolvimento, buscando apontar saídas com medidas urgentes, mas também com uma visão de médio e longo prazo. É indispensável a constituição de uma política mais duradoura de acompanhamento da situação hídrica no Rio de Janeiro, visando uma observação permanente e detalhada sobre o tema. Cabe à Comissão incentivar a elaboração de propostas, estudos, leis, debates e convênios que possam colaborar para o município se tornar mais ativo nesse tema, procurando garantir que o poder das grandes empresas consumidoras de água não se torne uma ameaça aos cidadãos cariocas. O Rio - como uma cidade de grande visibilidade internacional - precisa assumir um protagonismo nesse debate, criando fontes alternativas de abastecimento, despoluindo, captando, reusando, economizando recursos e enfrentando o debate sobre o modelo de desenvolvimento. No entendimento da Comissão, a Câmara Municipal tem obrigação de fiscalizar a aplicação das políticas públicas relativas ao tema e de garantir que a legislação faça com que o poder público e a sociedade encarem esse problema, garantindo que a água seja tratada, de fato, como um direito humano fundamental. 57
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O documento foi entregue no Debate Público da Comissão realizado no dia 24 de setembro de 2015.
2.2. Atividades da comissão Entrevistas Foram realizadas entrevistas em vídeo com pesquisadores e especialistas sobre o tema da crise hídrica e justiça ambiental, que visavam entender a complexidade do assunto tratado e indicar caminhos para o trabalho da Comissão. Foram entrevistados/as: Sandra Quintela (Pacs), Alexandre Pessoa (pesquisador da FIOCRUZ), Flávia Braga (professora da UFRRJ), Ana Lucia Brito (professora PROURB/UFRJ), Suyá Quintslr (pesquisadora IPPUR/UFRJ), Flavio Serafini (deputado estadual, PSOL-RJ) e Paulo Carneiro (Coordenação do Plano Estadual de Recursos Hídricos). Estas entrevistas, decupadas, comporão um banco de dados no endereço eletrônico www.colapsohidrico.eco.br.
Debates públicos e outras iniciativas No dia 24 de setembro de 2015, a Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico realizou um debate público sobre o tema. O evento contou com a participação da direção da Cedae, pesquisadores da UFRJ, pescadores e ambientalistas, mostrando a complexidade do debate hídrico e indicando possíveis caminhos de ações no âmbito municipal. Os reservatórios do sistema Guandu, que abastecem a maior parte da região metropolitana do Rio de Janeiro, fecharam aquele mês no menor nível da história para o período. No dia 29/9, o reservatório registrava 7%. Como comparação, no mesmo dia em 2013 o nível estava em 51%; em 2011, alcançava 73%, o que demonstra a gravidade da situação. “Não estamos falando em redução de consumo ainda, estamos falando em evitar o desperdício. Como não tivemos uma melhora no período chuvoso, começamos este mês uma nova campanha para conscientizar a população”, disse Edes Fernandes de Oliveira, Diretor de Produção e Grande Operação da Cedae. “Não há motivo pra racionamento, ainda há água doce indo pro mar”, explicou. Segundo o vereador Renato Cinco, esta é uma crise que afeta a todos, mas de forma desigual. “As pessoas devem fazer uso consciente da água, mas o maior consumidor no Estado do RJ é a indústria e, no Brasil e no Mundo, o agronegócio”, disse Cinco. Esses dados foram compilados no primeiro documento produzido pela presidência da Comissão, apresentado no evento. 43
A professora Ana Lucia Britto, do PROURB/UFRJ, ressaltou que a crise não está relacionada apenas a falta de chuvas, mas sim à forma como o poder público gerencia a água e o saneamento. “Há uma série de elementos que definem esta crise como uma crise de gestão”, destacou. A ausência de uma política municipal sobre o tema faz com que a Cedae, que é uma prestadora de serviço, não seja guiada por uma política pública para o setor. A especialista lembrou também que, segundo a lei 11445/2007 sobre diretrizes nacionais para o saneamento básico, o serviço teria que passar por espaços de controle da população até o fim de 2014. No entanto, isso não acontece no Rio de Janeiro. “Qual é a instância de controle social da política de saneamento no município? Não existe. O município do Rio de Janeiro se situa em plena ilegalidade, ou desrespeito à lei”, criticou. Além de Edes Fernandes e Ana Lúcia Britto, estiveram no debate o pescador de Santa Cruz Jaci do Nascimento, impactado pelas medidas contra a crise hídrica no rio Guandu; o deputado estadual Flavio Serafini, que participou da CPI sobre o tema na Alerj; o professor e ambientalista Pedro Aranha; e o professor e militante do Baía Viva e do FAPP-BG Sebastião Raulino. Cinco lembrou que o acesso à água é um direito humano essencial: “O uso prioritário da água deve ser o consumo humano e a dessedentação de animais, como determinam a Política Nacional de Recursos Hídricos e a ONU. É preciso assegurar a água e o saneamento como direitos humanos fundamentais. Não podemos deixar que a escassez se transforme em oportunidade de negócio”. O debate público está disponível na íntegra em https://youtu.be/NZmmEYhd6C0 A Presidência da Comissão também organizou o lançamento da publicação “Responsabilidade Social pra quê e pra quem”, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Na ocasião, foi realizado um debate com o vereador Renato Cinco, a economista Sandra Quintela e moradores e pescadores de Santa Cruz e da Baía de Sepetiba. A publicação analisa a estratégia da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) na desmobilização da população de Santa Cruz contra os impactos da empresa na região. Um deles foi a instalação de uma barragem no rio São Francisco, que vem causando graves prejuízos aos pescadores locais. Com dificuldades de navegação e acesso à Baía de Sepetiba, de onde tiram o seu sustento, os pescadores paralisaram a obra no dia 1º de julho. Na tentativa de alcançar um acordo que não prejudicasse os pescadores, o vereador 44
Renato Cinco esteve em uma reunião acompanhando as negociações entre representantes da empresa, defensoria pública e atingidos. O vereador Renato Cinco, assim como sua assessoria, acompanhou ainda a organização e participou da Marcha do Clima 2015, uma manifestação que aconteceu em diversas cidades do mundo, chamando atenção para as mudanças climáticas e seus efeitos no planeta, no contexto das negociações da COP-21 de Paris. Um desses efeitos é a mudança no regime de chuvas no território brasileiro, uma das causas da crise hídrica. O presidente da comissão participou também de uma mesa de debates do I Encontro Nacional de Agricultura Urbana no Rio de Janeiro, debatendo possíveis soluções para se viver em uma cidade ambientalmente justa, com menos impermeabilização dos solos e produção local de alimentos.
Seminário Internacional Tendo em vista a complexidade das questões relativas à crise hídrica atual e a necessidade de busca de soluções, a comissão organizou um Seminário Internacional realizado no dia 14 de dezembro de 2015, no hotel Windsor Guanabara, localizado na Avenida Presidente Vargas, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O objetivo principal do Seminário Internacional da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico da Câmara Municipal foi debater criticamente temas relacionados à água no contexto do que vem sendo denominado de “Crise Hídrica no Rio de Janeiro”. Buscou-se abordar a crise em suas diferentes escalas, além de aprofundar a discussão sobre temas relevantes para a Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico da Câmara Municipal, como: as formas de prestação dos serviços (público ou privado); o acesso à informação sobre recursos hídricos e saneamento; formas de participação popular, controle social e planejamento; e a água como direito humano. A divulgação foi planejada para ser o mais ampla possível, sendo realizada por diversos meios: e-mail e redes sociais; pelo site do evento (www.colapsohidrico.eco.br); pela imprensa, com destaque para a TV Câmara; e por material impresso (cartaz e folder com a programação), entregue nas principais universidades, sindicatos, fóruns, repartições públicas, entre outros. 45
Para compor as três mesas do seminário, foram convidadas personalidades nacionais e internacionais com participação reconhecida no debate ambiental e, mais especificamente, sobre água e saneamento. foram eles: Alexandre Araújo; Esteban Castro; Emanuele Lobina; Martin Pigeon; Ary Girota; Ana Lúcia Britto ; Paulo Roberto ferreira Carneiro; André Luis Marques; flavio Serafini; Renato Cinco; oscar olivera; João Alfredo Telles Melo e; flávia Braga Vieira58.
Foto: Renato Cosentino
Foto: Renato Cosentino
o seminário teve como público estudantes, professores, movimentos sociais, pesquisadores e pessoas que sofrem diretamente com a escassez de água no Rio de Janeiro, alcançando cerca de 300 inscritos e um número ainda maior de participantes. o evento teve cobertura da TV Câmara, além de outros meios de comunicação, e contou também com uma exposição de fotos sobre o desastre ambiental de Mariana. Diversas falas ressaltaram a pertinência e o alto nível dos debates, que estão disponíveis, na íntegra, no sítio da Comissão (www.colapsohidrico.eco. br). Todos os participantes do Seminário que solicitaram receberam certificado de participação. 58 Uma descrição/qualificação de cada um destes participantes do Seminário pode ser encontrada no Relatório da Comissão, também presente nesta publicação.
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Temas como a privatização e a reestatização dos serviços de saneamento e a necessidade de um monitoramento mais integrado e participativo foram amplamente discutidos à luz de experiências internacionais. Esteban Castro, professor da Newcastle University (Reino Unido), que pesquisou a remunicipalização da água em Buenos Aires, apontou os problemas das privatizações, chamando atenção para o fato de que a administradora do sistema de águas de Buenos Aires fazia baixíssimos investimentos com recursos próprios e provocou um aumento de tarifa, que chegou a representar 9% do orçamento das famílias portenhas. “Em 90% das maiores cidades do mundo – incluindo EUA, Europa e Japão -, os serviços de água são públicos. Os processos de remunicipalização foram resultados do fracasso histórico das privatizações no setor”, afirmou Emanuele Lobina, professor da University of Greenwich (Reino Unido), que pesquisou a remunicipalização da água em Paris. E complementou: “Se Paris, onde estão localizadas as maiores empresas privadas de água do mundo, está remunicipalizando os serviços de água, porque o Rio de Janeiro deveria privatizar?”, indagou. Martin Pigeon, pesquisador da Corporate Europe Observatory (CEO) e organizador do livro “Remunicipalización: el retorno del agua a manos públicas”, destacou a redução significativa das tarifas após processos de reestatização dos sistemas de água. “Em Paris, a remunicipalização levou à uma redução de 8% nas tarifas de água”, afirmou. E justificou: “O que as empresas vendem não é a água, mas a purificação da água. Então, quanto mais poluição, melhor para elas. Poluição é uma forma indireta de privatização”, afirmou. A gravidade da crise hídrica em suas diferentes escalas, e particularmente no Rio de Janeiro, mobilizou comentários do público, que participou ativamente das discussões. A necessidade urgente de se repensar os modelos de cidades e o sistema produtivo capitalista foi outro ponto de consenso entre os palestrantes. Alexandre Araújo, professor da Universidade Estadual do Ceará (UECe) e físico do clima, foi taxativo ao afirmar que “as cidades precisam deixar de ser parasitas!”. E complementou: “as pessoas não conseguem entender que a água que sai das nossas torneiras não surge lá magicamente. Uma nova visão de cidade é fundamental para que a gente consiga sair dessa grande cilada que o modelo de sistema capitalista nos colocou”, disse. 47
o vereador Renato Cinco fez coro com Alexandre durante a sua intervenção na última mesa do Seminário. “o nível de planejamento que a humanidade precisa desenvolver para superar a crise é incompatível com o capitalismo e com a economia de mercado. Esta geração tem uma tarefa fundamental: não pode perder para o capitalismo. Isso porque será impossível a humanidade sobreviver a mais de 250 anos de capitalismo”, disse. Diferentes experiências de lutas sociais envolvendo o tema da água foram relatadas, demonstrando como a organização popular foi capaz de frear interesses mercantis sobre este bem comum. A principal foi a da “Guerra da água em Cochabamba”, a partir de uma das falas mais emocionantes do seminário, a do boliviano oscar olivera. Ele explicou como o vitorioso processo de mobilização contra a privatização da água na Bolívia, nos anos 2000, foi um marco na luta pelo reconhecimento da água como direito humano.
Foto: Renato Cosentino
oscar falou ainda sobre a necessidade de organização e empoderamento do povo, e encerrou sua participação com uma mensagem para os cariocas: “Hoje, no Rio de Janeiro, em dezembro de 2015, um punhado de mulheres, homens, sindicalistas, organizadores, jovens, acadêmicos e acadêmicas, todas e todos militantes pela vida e pela alegria, nos reunimos aqui para falar da água, da vida, compartilhar informação, experiências de luta, derrotas e vitórias. E nos encontramos neste seminário para nos comprometermos a lutar e trabalhar juntas e juntos para colocar barricadas e cercas ao poder do Capital e dos partidos e, ao mesmo tempo, construir formas de convivência social com reciprocidade, respeito, transparência e solidariedade. Restituir a relação de harmonia e respeito com a mãenatureza e com seu sangue: a água. 48
Que Rio de Janeiro, o nome de nossa cidade, de nosso território, seja como isso: o rio que, antes de nos dividir como uma fronteira, nos possibilite o reencontro, o reconhecimento entre todos e todas nós. Que o rio seja, então, a fonte de água da qual possamos tomar a alegria, a transparência e o movimento na luta. Até a vitória!”
Publicação Além do seminário, foi proposta pela Comissão Especial uma publicação sobre o tema para tornar acessíveis os debates realizados no âmbito desta comissão. Foram convidados para escrever capítulos, além dos participantes do Seminário Internacional, os seguintes autores: Michael Lowy; Léo Heller; Anne Le Strat; Bianca Dieile; Alexandre Pessoa; Edes Fernandes; Flávio Guedes; Sebastião Raulino; Representantes do Pacs; Representantes do MAB; Roberto Malvezzi Gogó; Pedro Aranha. Por distintos motivos, alguns deles não puderam escrever para esta publicação59.
3. Propostas e considerações finais Durante os seis meses de funcionamento da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico, percebeu-se que a Crise Hídrica é um tema de extrema importância, recorrente e complexo: tendências conflitantes, falta de informações e análises consistentes, dúvidas quanto às possibilidades e efeitos do racionamento para o direito humano à água, e formas de enfrentar a escassez e os danos ambientais. Uma solução mais estrutural e a longo prazo certamente envolveria diversos aspectos, em diferentes escalas, níveis e esferas do Estado. Mudanças no modelo de desenvolvimento, ousadas políticas de reflorestamento e despoluição de rios, novos padrões de consumo e mudanças na matriz energética, rediscussão dos códigos florestal e de mineração são algumas destas medidas que vêm sendo debatidas nas escalas local, nacional e global há vários anos. Por tudo isso, elaboramos uma série de concisas propostas focadas em âmbito municipal e listadas a seguir, objetivando a continuidade dos trabalhos e estudos sobre o tema. 59 Uma descrição/qualificação de cada um destes convidados pode ser encontrada no Relatório da Comissão, também presente nesta publicação.
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Além disso, sugerimos algumas medidas para que esse recurso fundamental para a vida humana e os serviços de abastecimento possam ter como base a preservação ambiental e o melhor atendimento possível da população, especialmente os grupos sociais mais vulneráveis que historicamente sofrem com problemas de acesso e qualidade da água.
1ª) Criação do Observatório das Águas no Rio de Janeiro Tendo em vista a necessidade de maior transparência e produção de informações sobre o uso dos recursos hídricos e sobre os sistemas de saneamento, necessárias tanto à participação cidadã quanto para o planejamento do setor, propomos que seja estimulada a criação de um Observatório das Águas no Rio de Janeiro. O formato deste Observatório, seus métodos e objetos de pesquisa, deverão ser definidos em conjunto com especialistas de diversas universidades do Rio de Janeiro, incluindo aqueles que foram entrevistados e contribuíram com os trabalhos da comissão. O Observatório deve ter também participação da sociedade civil, movimentos sociais, sindicatos, poder legislativo, etc., tornando-se um instrumento permanente de controle social da prestação de serviços relacionados à água e saneamento. Um convênio com a Câmara Municipal do Rio de Janeiro que ajude a viabilizar a criação deste observatório deve ser estudado a luz de experiências anteriores de convênios realizados pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
2ª) Realização da campanha “Água como Direito Humano Fundamental” Em 2010, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu o acesso à água e ao saneamento como um direito humano fundamental. A resolução, da qual o Brasil é signatário, convida os Estados a: Desenvolver instrumentos e mecanismos adequados, que podem abranger legislação, planos abrangentes e estratégias para o sector, incluindo os financeiros, para alcançar progressivamente a plena realização das obrigações dos direitos humanos relacionadas com o acesso à água potável e saneamento, incluindo em áreas ainda não servidas e carentes. A resolução estabelece, entre outras disposições, que, sendo um direito fundamental, os Estados devem assegurar: (i) a transparência do planejamento do provimento de água; (ii) a atenção a grupos vulneráveis; (iii) implementar uma regulamentação eficaz. 50
Este entendimento, entretanto, não é amplamente difundido na sociedade brasileira e é patente a dificuldade do Estado em garantir o atendimento da população mais pobre. A intensificação da crise econômica no Brasil e em particular no Estado do Rio e a prioridade conferida pelo poder público à realização dos Jogos Olímpicos de 2016 são elementos que adicionam ainda mais preocupações sobre os serviços de saneamento e fornecimento de água na cidade do Rio de Janeiro no curto prazo. Assim, propomos uma ampla campanha para esclarecimento de que a água é um direito humano e das implicações deste reconhecimento para os usuários dos serviços de saneamento, as concessionárias e o poder público. A campanha deve contribuir para a difusão e debate de medidas propostas por estudos e pesquisas que busquem garantir a prioridade do abastecimento humano e dessedentação animal em caso de escassez hídrica. Estes estudos podem ser, inclusive, promovidos no âmbito do Observatório das Águas aqui proposto, bem como por outras instituições de pesquisa nacionais.
3ª) Lançamento da publicação da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico Conforme descrito no item 2.2 deste artigo, a Comissão se comprometeu a organizar esta publicação para estimular o debate sobre temas relacionados ao uso da água, incluindo, além destas Notas: o relatório final da comissão; o reconhecimento da água como direito humano; as diferentes formas de prestação dos serviços e questões relativas à participação e controle social; e um debate sobre a crise hídrica atual. Tendo em vista a importância dos temas propostos e a necessidade de divulgação dos trabalhados realizados por esta Comissão, propomos a realização de um evento de lançamento da publicação no Plenário da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, com a participação de alguns dos autores, objetivando dar visibilidade e continuidade ao debate público sobre esta questão de extrema relevância para o município do Rio de Janeiro. Uma publicação de qualidade pode significar uma importante contribuição da Câmara Municipal nesse debate.
4º) Renovação da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico para 2016 Considerando, (i) a recorrência de “crises hídricas” no município do Rio de Janeiro ao longo de sua história; (ii) a possibilidade de agravamento da crise em caso de maior incidência de eventos climáticos extremos e/ou em decorrência dos impactos do modelo de desenvolvimento econômico; (iii) 51
a necessidade de aprofundamento do debate sobre privatizações no setor de saneamento; (iv) os conflitos pelo uso da água em âmbito regional e municipal; (v) a permanência de problemas e desigualdades nos serviços; e (vi) a proposta de realização da campanha “Água como Direito Humano Fundamental” no próximo ano, propomos a renovação da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico para o ano legislativo de 201660.
5ª) Suspensão dos processos de privatização e das concessões em curso Considerando o debate ainda inicial e inconcluso sobre os processos de privatização e/ ou concessão ao setor privado dos serviços de esgotamento sanitário e abastecimento de água, a tendência mundial de reestatização da água em algumas das principais metrópoles do mundo e os resultados positivos obtidos nestas experiências – como relatados por especialistas no seminário internacional organizado pela Comissão – e, em especial, a ausência de estudos sobre as experiências de privatização no Brasil e no RJ, propomos a imediata suspensão dos processos de privatização em curso. Atualmente a privatização da Cedae vem sendo apontada como parte de uma possível solução para a crise financeira do Estado. Por outro lado, há processos de concessão dos serviços de esgoto a empresas privadas com o objetivo explícito de estender o serviço às áreas que hoje não são atendidas. Entretanto, em decorrência da falta de transparência e análises mais consistentes destes processos (a exemplo da concessão do esgoto da AP5 para a empresa Foz Águas 5) e da ausência de evidências de que o novo modelo poderá contribuir com a democratização dos serviços, propomos um amplo debate sobre o assunto antes da tomada de qualquer nova decisão deste caráter. No caso específico da AP5, recomendamos a suspensão da concessão e a retomada do controle público sobre os investimentos e serviços na região. Ademais, solicitamos que decisões a respeito dos modelos de prestação dos serviços, além de profundamente discutidas na Câmara Municipal, sejam também debatidas com a população, com os comitês de bacia e submetidas aos conselhos estaduais e municipais responsáveis. Recomendamos também que a prestação de serviço público seja transparente e com estrito controle social. As quatro primeiras propostas foram apresentadas como “recomendações” no relatório final da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico. A quinta proposta, no entanto, não foi 60 A Comissão do Colapso Hídrico foi, efetivamente, renovada em 2016. No entanto, optou-se por manter aqui o texto como no original de dezembro de 2015.
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consensual, apesar de ser um acúmulo do Seminário Internacional promovido pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Por fim, é importante dizer também que a destruição da natureza provocada pelo capitalismo está colocando em risco a existência da vida no planeta. Os trabalhadores e a população mais pobre e vulnerável são os que mais sofrem com os impactos deste modelo. Mais do que nunca, é necessária a construção de uma nova civilização, em que o respeito ao meio ambiente e o bem viver da população estejam acima da ganância de poucos. Por tudo isso, nos somamos às lutas e movimentos por justiça ambiental e defendemos o ecossocialismo.
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Relatório da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico Rio de Janeiro, dezembro de 2015
1. A Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico A Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico foi criada pela Resolução nº 1.328 de 08 de maio de 2015 devido ao reconhecimento da gravidade da crise hídrica no Sudeste brasileiro, com o potencial de afetar o abastecimento de água no município do Rio de Janeiro. Compõem a comissão os vereadores Renato Cinco (PSOL) (Presidente), Eduardão (PMDB) (Relator), João Cabral (PMDB).
1.1. Atividades da comissão Entrevistas Foram realizadas entrevistas em vídeo com pesquisadores e especialistas sobre o tema da crise hídrica, que visavam entender a complexidade do assunto tratado e indicar caminhos para o trabalho da Comissão. Foram entrevistados/as: Sandra Quintela (Pacs), Alexandre Pessoa (pesquisador da FIOCRUZ), Flávia Braga (professora da UFRRJ), Ana Lucia Brito (professora PROURB/UFRJ), Suyá Quintslr (pesquisadora IPPUR/UFRJ), Flavio Serafini (deputado estadual, PSOL-RJ) e Paulo Carneiro (Coordenação do Plano Estadual de Recursos Hídricos). Estas entrevistas comporão um banco de dados no endereço eletrônico www.colapsohidrico.eco.br.
Debates públicos e outros No dia 24 de setembro de 2015, a Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico realizou um debate público sobre o tema. O evento contou com a participação da direção da Cedae, pesquisadores da UFRJ, pescadores e ambientalistas. O debate público está disponível na íntegra em https://youtu.be/NZmmEYhd6C0
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A Presidência da Comissão também organizou o lançamento da publicação “Responsabilidade Social pra quê e pra quem”, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Na ocasião, foi realizado um debate com o vereador Renato Cinco, a economista Sandra Quintela e moradores e pescadores de Santa Cruz e da Baía de Sepetiba. O vereador Renato Cinco, assim como sua assessoria, acompanhou ainda a organização e participou da Marcha do Clima 2015, uma manifestação que aconteceu em diversas cidades do mundo, chamando atenção para as mudanças climáticas e seus efeitos no planeta, no contexto das negociações da COP-21 de Paris. Um desses efeitos é a mudança no regime de chuvas no território brasileiro, uma das causas da crise hídrica. O presidente da comissão participou também de uma mesa de debates do I Encontro Nacional de Agricultura Urbana no Rio de Janeiro, debatendo possíveis soluções para se viver em uma cidade ambientalmente justa, com menos impermeabilização dos solos e produção local de alimentos.
Seminário Internacional Tendo em vista a complexidade das questões concernentes à crise hídrica atual e a necessidade de busca de soluções, a comissão organizou um Seminário Internacional realizado no dia 14 de dezembro de 2015, no hotel Windsor Guanabara, localizado na Avenida Presidente Vargas, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O objetivo principal do Seminário Internacional da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico da Câmara Municipal foi debater criticamente temas relacionados à água no contexto do que vem sendo denominado Crise Hídrica no Rio de Janeiro. A divulgação foi planejada para ser o mais ampla possível, sendo realizada por diversos meios: e-mail e redes sociais; pelo site do evento (www.colapsohidrico.eco.br); pela imprensa, com destaque para a TV Câmara; e por material impresso (cartaz e folder com a programação), entregue nas principais universidades, fóruns, repartições públicas, entre outros. Para compor as três mesas do seminário, foram convidadas personalidades nacionais e internacionais com participação reconhecida no debate ambiental e, mais especificamente, água e saneamento, conforme a lista a seguir. 56
• Alexandre Araújo é Bacharel em Física (Universidade Federal do Ceará) e Doutor em Ciências Atmosféricas (Colorado State University). Atualmente é membro do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e professor titular da Universidade Estadual do Ceará, onde atua prioritariamente no estudo dos impactos das mudanças climáticas globais no semiárido brasileiro. • Esteban Castro é licenciado em Sociologia (Universidad de Buenos Aires) e Doutor em Ciências Políticas (Oxford). Atualmente é professor titular de Sociología na Universidade de Newcastle, Reino Unido, e coordenador da rede Waterlat-Gobacit. • Emanuele Lobina é professor da Escola de Administração da Universidade de Greenwich, Reino Unido. É membro da rede Waterlat-Gobacit e atua principalmente no tema da governança dos serviços de água e saneamento. • Martin Pigeon é pesquisador da instituição Corporate Europe Observatory (CEO) e atua prioritariamente nos temas relacionados à água e à agroindústria. É organizador do livro “Remunicipalización: El retorno del agua a manos públicas”. • Ary Girota é funcionário da Cedae e delegado sindical pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos de Niterói – STIPDAENIT. • Ana Lúcia Britto é professora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB/UFRJ), pesquisadora do CNPq e coordenadora do Laboratório de Estudo de Águas Urbanas (LEAU/UFRJ). • Paulo Roberto Ferreira Carneiro é Doutor em Engenharia/ Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos (COPPE/UFRJ). Atua em projetos de gestão de recursos hídricos, com destaque para a coordenação técnica na elaboração do Plano Estadual de Recursos Hídricos do Estado do Rio de Janeiro. • André Luis Marques é Doutor em Engenharia (UNESP) e Diretor-executivo da Associação Pró-Gestão das Águas da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (AGEVAP). Tem experiência na área de Engenharia Sanitária, com ênfase em saneamento ambiental.
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• Flavio Serafini é professor de Sociologia e deputado estadual pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) do Rio de Janeiro. Em sua atuação na Alerj, integra a CPI da Crise Hídrica e preside a Comissão Especial da Baía de Guanabara. • Renato Cinco é sociólogo e vereador em primeiro mandato do Rio de Janeiro pelo PSOL. É Vice Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Presidente da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico na Câmara Municipal. • Oscar Olivera é ativista e foi uma das principais lideranças do episódio que ficou conhecido como Guerra da Água, mobilização contra a privatização da água em Cochabamba, Bolívia, em 2000. Atualmente luta pela justiça socioambiental no país. • João Alfredo Telles Melo é Bacharel e Mestre em Direito (Universidade Federal do Ceará). Atualmente é vereador da cidade de Fortaleza/CE pelo PSOL e professor de Direito Ambiental da Faculdade 7 de Setembro, atuando principalmente em temas relacionados ao direito e à justiça ambiental. • Flávia Braga Vieira é socióloga, doutora pelo IPPUR/UFRJ e Professora do PPGCS/ UFRRJ. Coordena o curso de especialização Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo e Observatório Sócio-Ambiental de Barragens ETTERN/ IPPUR. Desenvolve diversos projetos de pesquisa e extensão junto aos movimentos populares.
Publicação Além do seminário, foi proposta pela Comissão Especial uma publicação sobre o tema para tornar acessíveis os debates realizados no âmbito desta comissão. Além do presente relatório, a publicação deverá conter uma apresentação, textos de diversos pesquisadores, lideranças de movimentos sociais, sindicatos e gestores públicos. Foram convidados para escrever capítulos, além dos participantes do Seminário Internacional, entre outros, os seguintes autores: • Michael Lowy é sociólogo e diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), Paris, França. • Léo Heller é engenheiro civil e doutor em Epidemiologia pela Universidade Federal 58
de Minas Gerais. Atualmente é especialista em CT&I em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e Relator Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o Direito Humano à Água e ao Saneamento; • Anne Le Strat é ex-presidente da Empresa de Águas de Paris, França. • Bianca Dieile é bacharel em Química e Mestre em Engenharia Hidráulica e Saneamento. Pesquisadora em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz-RJ (FIOCRUZ). • Alexandre Pessoa é pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fundação Oswaldo Cruz-RJ (FIOCRUZ). • Edes Fernandes é diretor de Produção e Grande Operação da Cedae. • Flávio Guedes é engenheiro da Cedae, Presidente do conselho fiscal do Sindicatodos Trabalhadores em Saneamento Básico e Meio Ambiente do Rio de Janeiro (SINTSAMA). • Sebastião Raulino é doutor em Planejamento Urbano e Regional. Professor da rede pública de ensino e membro do Fórum dos Atingidos pela Indústria do Petróleo e Petroquímica nas Cercanias da Baía de Guanabara (FAPP-BG).
2. Recomendações da Comissão Dada a importância e complexidade do tema e seu aspecto trans-escalar, optou-se pela apresentação de concisas recomendações focadas em âmbito municipal, listadas a seguir, objetivando a continuidade dos trabalhos e estudos sobre o tema.
1ª) Criação do Observatório das Águas no Rio de Janeiro Tendo em vista a necessidade de maior transparência e produção de informações sobre o uso dos recursos hídricos e sobre os sistemas de saneamento, necessárias tanto à participação cidadã quanto para o planejamento do setor, esta comissão recomenda que seja estimulada a criação de um Observatório das Águas no Rio de Janeiro. O formato deste observatório, seus métodos e objetos de pesquisa, deverão ser definidos em conjunto com especialistas de diversas 59
universidades do Rio de Janeiro, incluindo aqueles que foram entrevistados por e contribuíram com os trabalhos da comissão. Um convênio com a Câmara Municipal de Rio de Janeiro que ajude a viabilizar a criação deste observatório deve ser estudado a luz de experiências anteriores de convênios já realizados pela Câmara Municipal RJ.
2ª) Realização da campanha “Água como Direito Humano Fundamental” Em 2010, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu em 2010 o acesso à água e ao saneamento como um direito humano fundamental. A resolução, da qual o Brasil é signatário, convida os Estados a: Desenvolver instrumentos e mecanismos adequados, que podem abranger legislação, planos abrangentes e estratégias para o sector, incluindo os financeiros, para alcançar progressivamente a plena realização das obrigações dos direitos humanos relacionadas com o acesso a água potável e saneamento, incluindo em áreas ainda não servidas e carentes. A resolução estabelece, entre outras disposições, que, sendo um direito fundamental, os Estados devem assegurar: (i) a transparência do planejamento do provimento de água; (ii) a atenção a grupos vulneráveis; (iii) implementar uma regulamentação eficaz. Entretanto, este entendimento não é amplamente difundido na sociedade brasileira e é patente a dificuldade do Estado em garantir o atendimento da população mais pobre. Assim, recomenda-se uma ampla campanha para esclarecimento de que a água é um direito humano e das implicações deste reconhecimento para os usuários dos serviços de saneamento, as concessionárias e o poder público. A campanha deve contribuir para a difusão e debate de medidas propostas por estudos e pesquisas que busquem garantir a prioridade do abastecimento humano e dessedentação animal em caso de escassez hídrica. Estes estudos podem ser, inclusive, promovidos no âmbito do Observatório das Águas aqui proposto, bem como por outras instituições de pesquisa nacionais.
3ª) Lançamento da publicação da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico Conforme descrito no item 1.1.4 deste relatório, a Comissão está organizando uma publicação para estimular o debate sobre o tema em questão. Recomenda-se, portanto, a realização de um evento de lançamento da publicação no Plenário da Câmara Municipal do Rio 60
de Janeiro, que poderá incluir alguns dos autores, objetivando dar visibilidade e continuidade ao debate público sobre esta questão de extrema relevância para o município do Rio de Janeiro.
4º) Renovação da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico para 2016 Por fim, considerando, (i) a recorrência de “crises hídricas” no município do Rio de Janeiro ao longo de sua história; (ii) a possibilidade de agravamento da crise em caso de maior incidência de eventos climáticos extremos e/ou em decorrência dos impactos do modelo de desenvolvimento econômico; (iii) a necessidade de aprofundamento do debate sobre privatizações no setor de saneamento; (iv) os conflitos pelo uso da água em âmbito regional e municipal; (v) a permanência de problemas e desigualdades nos serviços; e (vi) a proposta de realização da campanha “Água como Direito Humano Fundamental” no próximo ano, recomendamos a renovação da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico para o ano legislativo de 2016. Comissão Especial com a finalidade de acompanhar, promover estudos sobre suas causas e apresentar propostas pertinentes ao enfrentamento do Colapso Hídrico, da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 2015. Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2015.
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Mudanças climáticas e água: de crise a colapso Por Alexandre Araújo1
1. Introdução Recentemente, o Brasil foi (e segue, apesar da estação chuvosa) assolado por condições extremas de seca, com consequente crise de abastecimento em numerosas cidades do Nordeste e do Sudeste. No início de março de 2015, o ministro da Integração Nacional, Gilberto Occhi, admitira como “crítica” a situação dos reservatórios no Nordeste e no Sudeste. Nas palavras do próprio Occhi, “identificamos 56 cidades que hoje estão em colapso, sendo atendidas pelas prefeituras ou pelos governos estaduais. Nenhuma dessas é atendida pelo governo federal, mas como a situação está se ampliando, o governo federal pediu um levantamento e nós podemos chegar, dentro de uma avaliação, ao número de 105 cidades que estão ou poderão estar em colapso”. O levantamento daquele momento do ministério, para o Nordeste, indicava que os estados mais atingidos eram, pela ordem de número de municípios em tais condições, Ceará (23), Paraíba (15), Rio Grande do Norte (9), Bahia (5), Alagoas (2) e Pernambuco (2), conforme informações do Portal G1 [1] e da página do Jornal do Brasil na internet [2]. Mas a crise hídrica que o Brasil atravessa não é um fenômeno isolado, tendo se manifestado muito recentemente em várias partes do mundo: na Califórnia, por exemplo, em fevereiro de 2016 o quadro permanecia de seca “extraordinária” (classe D4, a mais elevada dentre as classificações de seca) em 22% a 58% do estado desde março de 2014 [3]. Evidências surgiram de que um quadro inédito de seca na região do “Crescente Fértil” potencializou, ao lado das guerras imperialistas e conflitos regionais, o desolador quadro da Síria, com sucessivas quebras da safra de trigo, morte de grande parte do rebanho bovino e redução dos aquíferos que abasteciam grande parte da população rural [4]. 1 Alexandre Araújo Costa é bacharel em Física (Universidade Federal do Ceará) e doutor em Ciências Atmosféricas (Colorado State University). Atualmente é membro do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e professor titular da Universidade Estadual do Ceará, onde atua prioritariamente no estudo dos impactos das mudanças climáticas globais no semiárido brasileiro.
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O consumo de água doce é considerado uma “fronteira planetária”, dentre as nove elencadas por Rockström et al. (2009) [5], isto é, é um dos parâmetros críticos que precisam permanecer dentro de determinados limites. É no mínimo inquietante que, apesar de haver controvérsias a esse respeito, tenham surgido evidências de que esse limite tenha sido ultrapassado recentemente [6], isto é, que hoje utilizemos mais água doce do que o ciclo hidrológico global seja capaz de repor. Estimativas obtidas por meio do GRACE (Gravity Recovery and Climate Experiment) sugerem que uma parcela significativa dos aquíferos importantes para abastecimento humano estão sofrendo redução [7]. O aumento da demanda hídrica de maneira desproporcional ao crescimento da própria população ocorre em virtude do uso cada vez maior de água doce para irrigação, geração de eletricidade e produção industrial, o que se entrecruza com a questão climática, como bem apontado em relatório da UNESCO [8]. O risco de crises de abastecimento nas grandes cidades de todo o planeta é real, graças a uma conjunção de fatores climáticos, ambientais, socioeconômicos e políticos. A crise hídrica se manifesta, assim, como uma “hidra”, analogia que vale não apenas pelo aspecto fonético, mas também pelo fato de essa criatura mitológica possuir várias cabeças, como a crise hídrica, que é eminentemente multifacetada. Neste artigo não pretendemos abordar esses múltiplos aspectos, mas focaremos na relação direta entre o aquecimento global e o aumento de risco de condições de seca.
2. Uma atmosfera com febre sente sede Em vários aspectos, o agravamento das secas é esperado, com o aquecimento do sistema planetário (assim, como de todos os demais extremos, incluindo enchentes, tempestades etc.). O mecanismo é relativamente simples e tem a ver com a chamada equação de ClausiusClapeyron, que mostra um crescimento exponencial da quantidade de vapor necessária para “saturar a atmosfera” (ou seja, para iniciar a condensação e a formação de nuvens) em função da temperatura. Como consequência dessa relação física simples, é fato que a quantidade absoluta de vapor d’água na atmosfera tem aumentado nas últimas décadas, praticamente em consonância com o que se espera da própria lei de Clausius-Clapeyron, isto é, um aumento de 7% na quantidade de vapor a cada grau Celsius de elevação da temperatura média global. 64
Observações globais de umidade próximo à superfície têm evidenciado esse fato, como mostrado na Figura 1 (IPCC, 2013) [9]. Em amplas extensões do globo, dos anos 70 até o presente, a tendência tem sido de aumento de cerca de 0,1 g/kg (grama de vapor d’água por quilograma de ar) por década na quantidade de vapor, o que é particularmente perceptível no Hemisfério Norte (Figura 1a). No que diz respeito à média planetária, apesar de ficar clara a sensibilidade dessa variável a processos de variabilidade natural (como a ocorrência do El Niño recorde de 1998, que produziu um pico de umidade global), a tendência de aumento da quantidade de vapor d’água na atmosfera também é evidente (Figura 1b).
Figura 1 – (a) Variação na umidade específica próximo à superfície, em g/kg/década, dos anos 1970 até o presente e (b) tendência média global da anomalia dessa variável de acordo com diferentes fontes de dados.
Mas é possível que a tendência geral de aumento da quantidade de vapor d’água na atmosfera em um determinado momento não acompanhe o crescimento da temperatura no ritmo previsto pela equação de Clausius-Clapeyron e que, ao mesmo tempo em que a umidade específica continue a crescer, a umidade relativa possa cair, especialmente sobre os continentes onde as projeções de aumento de temperatura são maiores. Com efeito, de acordo com a média do conjunto dos modelos do CMIP (Coupled Model Intercomparison Project), que subsidiam a elaboração dos relatórios do IPCC, a tendência é de uma ligeira redução da umidade sobre os continentes em geral e sobre o continente sul-americano em particular, especialmente no chamado RCP8.5 (cenário de mais altas emissões, vide Figura 2).
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Figura 2 – Projeção de mudança na umidade relativa para meados do século XXI (painel superior) e final do século XXI (painel inferior), de acordo com a média do conjunto de modelos do CMIP5. Cores quentes implicam em redução da umidade relativa. A projeção no cenário de emissões mais elevadas para o final do século é de queda de vários pontos percentuais na umidade relativa média (2 a 7 pontos) em quase todo o território brasileiro, com exceção da região Sul. Fonte: IPCC, 2013
A projeção do conjunto dos modelos do CMIP para o cenário RCP8.5 também é de redução da cobertura de nuvens e da precipitação média sobre amplas extensões continentais, incluindo a maior parte da América do Sul, com exceção da Bacia do Prata e outras regiões menores (vide Figura 3, IPCC, 2013).
Figura 3 – Projeção de mudança, ao final do século XXI, para o cenário RCP8.5, da fração da área coberta por nuvens (acima) e precipitação (abaixo). Cores quentes indicam redução da nebulosidade e da precipitação e cores frias indicam aumento da nebulosidade e da precipitação.
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Isso pode trazer implicações bastante profundas sobre o ciclo hidrológico sobre os continentes e impor desafios enormes para o gerenciamento de recursos hídricos na maior parte das regiões tropicais e para o Brasil em particular. Às mudanças esperadas na precipitação devem se somar variações importantes na evaporação e evapotranspiração decorrentes do aumento de temperatura. Ao mesmo tempo, espera-se uma mudança significativa na distribuição de eventos extremos.
3. A verdadeira “Era dos Extremos” será a era dos extremos climáticos Novamente com base na equação de Clausius-Clapeyron, é possível deduzir que uma atmosfera mais quente funciona como um maior “reservatório” de vapor d’água. O que temos, portanto, é que é necessário mais vapor para “preenchê-lo”, o que demanda mais tempo e tende a prolongar, portanto, os períodos de estiagem. Por outro lado, quando finalmente se chega à saturação, as nuvens se formam a partir de uma quantidade maior de vapor d’água e a tendência é que os eventos de precipitações também se tornem mais intensos. Em resumo, secas mais longas e mais severas, menos eventos de chuva com chuva mais intensa. Um planeta mais quente é um planeta de extremos. Com efeito, um trabalho recentemente publicado (FISCHER E KNUTTI, 2015) [10] aponta que cerca de 18% dos extremos de precipitação diária sobre os continentes no presente já podem ser atribuídos ao aquecimento do sistema planetário em relação à referência do clima préindustrial (esse número cresce para 75% quando se trata das ondas de calor). Segundo os mesmos autores, em condições de um aquecimento global de 2°C, esse grau de atribuição deverá se elevar para nada menos que 40%. Na expectativa de aumento de temperatura nos cenários de maiores emissões (4 a 5 graus sobre a maior parte da América do Sul), deve-se assistir a um aumento ainda mais significativo da ocorrência desses fenômenos extremos. É particularmente preocupante que a mudança nos padrões de precipitação não apenas aponta no sentido de que as chuvas se concentrem em poucos eventos com grande precipitação, mas também indica uma tendência de prolongamento dos períodos secos. O número de dias consecutivos sem chuva deve crescer significativamente em vastas áreas continentais nos trópicos e subtrópicos, incluindo quase todo o território brasileiro, especialmente no cenário de maiores emissões (IPCC, 2013), como mostrado na Figura 4. 67
Uma lógica de chuvas mais concentradas alternadas com períodos secos mais prolongados se refletirá, portanto, na exacerbação de impactos de secas e enchentes sobre a população, tanto no que diz respeito ao abastecimento de água, quanto no que diz respeito à produção agrícola. Políticas públicas devem evidentemente ser construídas de forma coerente com esse quadro, especialmente em regiões mais vulneráveis, como é o caso do semiárido nordestino.
Figura 4 – Projeção de mudança no número de dias consecutivos sem chuva, de acordo com a média do conjunto de modelos do CMIP5. Cores quentes referem-se a períodos secos mais prolongados. A projeção no cenário de emissões mais elevadas para o final do século leva a um aumento nos períodos secos de 15 a 25+ dias na maior parte do território brasileiro, com exceção da Amazônia ocidental e da região sul. Fonte: IPCC, 2013
4. Reduzir globalmente as emissões, construir localmente resiliência Insistimos que é preciso investir em duas frentes, mas a maioria dos governos tem até agora ignorado solenemente a comunidade científica. A primeira delas é a frente da “adaptação”, isto é, de ajustes para melhor enfrentarmos os efeitos que porventura já sejam inevitáveis, como é o caso do que já assistimos hoje. Especificamente no que diz respeito à política de recursos hídricos, seria necessária uma ampla reformulação desta, para evitar um colapso do abastecimento em diversas regiões do mundo e, particularmente, do Brasil. Além de melhorar o sistema de armazenamento e distribuição, é preciso mexer na demanda. De norte a sul do nosso País, o que se vê é que o agronegócio, indústrias pesadas (siderúrgicas, refinarias), a geração de energia (termelétricas consomem bastante água), a mineração etc. são consumidores vorazes de água. Uma única usina termelétrica a carvão pode consumir até 1000 litros de água por segundo, suficiente para abastecer uma cidade quase do tamanho de São José dos Campos (SP). Um 68
quilo de carne bovina demanda 15 mil litros de água em sua produção e uma tonelada de aço requer 280 mil litros. É preciso abrir a caixa-preta da água em todos os estados para que as pessoas decidam sobre o uso dela e sobre o modelo de desenvolvimento, as opções de industrialização etc. Segundo, é preciso apostar seriamente, de uma vez por todas, na outra frente: a da “mitigação”, isto é, na redução – urgente – das emissões de gases de efeito estufa. Até porque, a partir de um determinado momento não há como se adaptar. A partir de um determinado ponto, a crise climática pode se tornar irreversível. Existem evidências científicas de que o limiar seguro de concentrações de CO2 na atmosfera seria de 350 ppm, o que foi ultrapassado em 1988. Em 2016, a média anual da concentração desse gás ficará quase certamente acima de 400 ppm. A maioria da comunidade científica entende que o limiar de 2 graus Celsius de aquecimento é aquele que não deve em hipótese alguma ser ultrapassado, sob pena de arruinarmos um sem número de biomas terrestres e acelerar o aquecimento com a liberação dos estoques naturais de metano (clatratos do piso oceânico e derretimento do permafrost), derretimento das geleiras e saturação da capacidade dos oceanos e florestas em sequestrar carbono. Mas o aumento da concentração dos gases de efeito estufa no ritmo atual compromete inteiramente essas possibilidades, dado que 90% das reservas de combustíveis fósseis precisam permanecer intactas, se pretendemos que nossas chances de evitar a ultrapassagem desse limiar permaneçam acima de 50%.
5. Referências: [1] MINISTRO diz que 56 cidades do Nordeste estão em ‘colapso’ hídrico. G1, 01 abr. 2015. Política. Disponível em <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/04/ministro-diz-que100-cidades-no-ne-estao-em-colapso-hidrico.html>. Acesso em 15 abr. 2015. [2] MAIS de 50 cidades do Nordeste vivem colapso hídrico, diz ministro da Integração. Jornal do Brasil, 01 abr. 2015. País. Disponível em <http://www.jb.com.br/pais/noticias/2015/04/01/ mais-de-50-cidades-do-nordeste-vivem-colapso-hidrico-diz-ministro-da-integracao/?from_ rss=cultura>. Acesso em 15 abr. 2015. [3] Dados acessados a partir de http://droughtmonitor.unl.edu/MapsAndData/ DataTables.aspx em 21/02/2016. 69
[4] Peter H. Gleick, 2014: Water, Drought, Climate Change, and Conflict in Syria. Wea. Climate Soc., 6, 331–340. doi: http://dx.doi.org/10.1175/WCAS-D-13-00059.1 [5] J. Rockström, W. Steffen, K. Noone, A. Persson, F. S. Chapin 3rd, E. F. Lambin, T. M. Lenton, M. Scheffer, C. Folke, H. J. Schellnhuber, B. Nykvist, C. A. de Wit, T. Hughes, S. van der Leeuw, H. Rodhe, S. Sörlin, P. K. Snyder, R. Costanza, U. Svedin, M. Falkenmark, L. Karlberg, R. W. Corell, V. J. Fabry, J. Hansen, B. Walker, D. Liverman, K. Richardson, P. Crutzen, J. A. Foley, A safe operating space for humanity. Nature 461, 472–475 (2009). [6] F. Jaramillo, G. Destouni, Freshwater consumption has already crossed the global freshwater planetary boundary. Science 348, 1217 (2015). [7] Richey, A. S., B. F. Thomas, M.-H. Lo, J. T. Reager, J. S. Famiglietti, K. Voss, S. Swenson, and M. Rodell (2015), Quantifying renewable groundwater stress with GRACE, Water Resour. Res., 51, 5217–5238, doi:10.1002/2015WR017349 [8] UNESCO (2012): Global water resources under increasing pressure from rapidly growing demands and climate change, according to new UN World Water Development Report: Disponível em http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/SC/pdf/ WWDR4%20Background%20Briefing%20Note_ENG.pdf [9] IPCC (2013): Climate Change 2013: The Physical Science Basis. Disponível em http://www.ipcc.ch/report/ar5/wg1/ [10] Fischer, E.M. e R. Knutti (2015): Anthropogenic contribution to global occurrence of heavy-precipitation and high-temperature extremes, Nature Climate Change, doi:10.1038/ nclimate2617 [11] Costa, A. (2015): “Saldo de Carbono” negativo: Com 400 ppm de CO2 já adentramos a zona de perigo. Disponível em http://oquevocefariasesoubesse.blogspot.com.br/2015/08/saldode-carbono-negativo-com-400-ppm.html
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Crise e segurança hídrica na região metropolitana do Rio de Janeiro1 Paulo Roberto F. Carneiro2
1. Contextualizando historicamente a crise hídrica Desde criança ouvimos que o Brasil é um país abundante em água, o que nos torna privilegiados entre as demais nações. Governos populistas e autoritários sempre souberam utilizar, cada um a seu modo, o poder simbólico da mensagem de país abençoado por uma natureza farta, cujo futuro dependeria apenas da adesão social aos seus projetos de nação. No entanto, esse mito tão propalado omitia a diversidade geográfica do País, com exceção do semiárido, visto como um caso à parte, cujo atraso social e econômico atribuíase à insuficiência de chuvas e aos ciclos prolongados de secas que inviabilizavam a fixação do homem no campo e impediam o desenvolvimento econômico. Pesquisadores como Caio Prado Júnior, Victor Nunes Leal, Celso Furtado, dentre outros, puseram por terra a tese da região fadada ao subdesenvolvimento, evidenciando que a explicação para o atraso não estava necessariamente na semiaridez dos sertões, mas sim no modelo econômico agroexportador baseado no latifúndio e no controle político e social exercido por uma oligarquia agrária que cerceava as possibilidades de desenvolvimento da região. O Sudeste brasileiro nunca foi objeto de preocupações sérias em relação à escassez hídrica. Os relatos de falta d’água sempre foram associados à insuficiência dos sistemas de suprimento de água frente ao crescimento e expansão das cidades, e que mereceram investimentos vultosos em sistemas de abastecimento e obras hidráulicas, tanto no Rio de 1 Texto revisto e ampliado de uma primeira versão publicada pela Revista FAPERJ – Rio Pesquisa nº 30, 2015. 2 Biólogo com mestrado em Planejamento Urbano e Regional (Ippur/UFRJ) e doutorado em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos (Coppe/UFRJ), Paulo Roberto F. Carneiro é pesquisador do Laboratório de Hidrologia do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ).
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Janeiro como em São Paulo. Já nos meios de comunicação, principalmente na mídia impressa, os estudos e registros históricos encontrados eram comumente relacionados às enchentes, tanto as corriqueiras como as de maiores proporções, que afetavam as cidades. No momento, a Região Sudeste atravessa a pior crise hídrica que se tem registro. Sem desconsiderar a importância do déficit pluviométrico, abaixo da média histórica, considero oportuno refletir sobre as causas primárias da baixa resiliência da bacia do rio Paraíba do Sul, que potencializam as vulnerabilidades aos eventos climáticos extremos, como aqueles que vêm ocorrendo. Para tanto, é preciso voltar nosso olhar para o passado da bacia para compreender as transformações ambientais provocadas pelos séculos de ocupação predatória. A principal alteração ambiental sofrida pela bacia do rio Paraíba do Sul sem dúvida foi ocasionada pela devastação de quase totalidade da Floresta Atlântica que recobria suas terras para dar lugar ao plantio do café. O ciclo do café, que se estendeu do final do século XIX ao início do século XX, deixou para trás um dos maiores passivos ambientais que se tem registro no País. Devido às características do relevo e sem o uso de técnicas de conservação de solos já conhecidas à época, ignoradas pelas oligarquias agrárias apenas interessadas no lucro fácil proporcionado pelo braço escravo e o alto preço pago pelo café no mercado europeu, toneladas de solo foram arrastadas para o fundo dos vales, restando, ao final do seu curto ciclo, solos improdutivos e erosão. A supressão da floresta úmida também alterou o comportamento climático e o regime de escoamento dos rios, percebidos hoje nos períodos secos como insuficiência de vazões. A visão funcionalista da natureza se tornou hegemônica no Brasil a partir da “Revolução de 1930”, período em que a sociedade brasileira passa por um intenso processo de reorientação sociopolítica e econômica. A criação de órgãos como o Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), que passou a conduzir a política de saneamento e drenagem no País, insere-se nesse contexto de “modernização do Estado”, à luz do projeto modernizador que protagonizou grandes intervenções no estado do Rio de Janeiro. Esse órgão logrou empreender um conjunto de intervenções para o “dessecamento” dos pântanos nas planícies costeiras, sobretudo em território fluminense, com o objetivo anunciado de combate à febre amarela. 72
A Baixada Campista, situada na foz do rio Paraíba do Sul e descrita na obra de Alberto Lamego intitulada O homem e o brejo, representava uma exceção em relação ao restante do território brasileiro onde predominou o latifúndio. Na visão de Lamego, o desmembramento natural das terras em faixas de terreno entre lagoas condiciona a dispersão do homem. A planície inteira é subdividida em numerosas faixas agrícolas, onde o aluvião cultivável por toda parte se rodeia de águas paradas. A disseminação do brejo e da lagoa, dificultando as comunicações, num ambiente camponês onde a população tende a multiplicar-se, partilha, providencialmente, o solo para a cultura individual (LAMEGO, 1974, apud CARNEIRO, 2004). Em sua visão determinista, o maior desafio a ser enfrentado era o brejo, tendo em vista que o latifúndio não havia logrado êxito naquelas terras naturalmente divididas. Em suas palavras, a dura conquista histórica do massapê com os latifúndios postos em pedaços e a luta contra as águas espalhadas na planície concretizarão nesse homem dos canaviais, que vai surgir agora, o legado racial de um forte, que, dos primeiros pães de açúcar de engenhocas primitivas, ergueria vertiginosamente a sua produção aos milhões de sacos das usinas atuais (Ibid). A Baixada dos Goytacazes viu, até os anos 1970, mais de 100 lagoas serem totalmente drenadas e aproximadamente 1.500 quilômetros de canais artificiais construídos com a finalidade de drenar a baixada dos Goytacazes. Essas obras modificaram profundamente e de forma irreversível a dinâmica hídrica dessa importante área agrícola do Estado. Hoje, a região do delta do Paraíba do Sul é a mais afetada pela atual crise hídrica. A imprensa tem noticiado todos os dias o colapso da atividade agropecuária e o crescente risco para o abastecimento público das cidades que são supridas pelo rio Paraíba do Sul. A bacia do rio Paraíba do Sul é de grande importância econômica e social, haja vista os inúmeros decretos e portarias do Governo Federal que regulamentam o uso dos seus recursos hídricos, com vários objetivos: atender às necessidades de geração de energia elétrica, o abastecimento de água das cidades ao longo do seu curso e na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), o suprimento para uso industrial e na agropecuária, e o controle de cheias. São múltiplos os usos da água que devem ser considerados no planejamento e operação dos aproveitamentos hidrelétricos na bacia. 73
A vazão que escoa pelo rio Paraíba do Sul é regularizada por reservatórios utilizados, prioritariamente, para a geração de energia elétrica. O sistema de geração hidroelétrica iniciou sua operação em 1908, com a construção do reservatório de Lajes, e completou-se com a execução do plano de regularização das vazões e a construção das barragens de Santa Branca (1959), Jaguari (1972) e Paraibuna/Paraitinga (1978), situadas no trecho paulista da bacia, e de Funil (1969), no estado do Rio, para acumulação dos excedentes de água do período chuvoso. O sistema de transposição das águas da bacia do rio Paraíba do Sul para o Guandu, construído em 1952, foi inicialmente concebido para a geração de energia elétrica. Hoje, é a principal fonte de abastecimento público da RMRJ. A bacia do rio Paraíba do Sul e seus afluentes abastecem 17,6 milhões de pessoas, sendo que desse contingente 9,4 milhões (83% da RMRJ) dependem diretamente desse rio. Na realidade, por ser praticamente o único manancial com disponibilidade hídrica para o atendimento às demandas futuras de água, na própria bacia e para a RMRJ, esse manancial tem que ser considerado uma reserva estratégica, que não pode ser descuidada, sob o risco de comprometer o futuro do estado do Rio de Janeiro.
2. A crise hídrica no período 2014/2015 Estudos atuais apontam elevado grau de comprometimento da disponibilidade hídrica para o atendimento das demandas futuras da RMRJ e alertam sobre a importância de se assegurar as atuais regras operativas dos reservatórios da bacia do rio Paraíba do Sul, indicando, principalmente, que seja alterada a atual prioridade dada à geração de energia elétrica (PERHI-RJ, 2014). Conforme apontado pelo PERHI, 83% da população metropolitana (9,4 milhões de pessoas) é abastecida pelo Sistema Integrado Guandu/Lajes/Acari. Desses três sistemas, o mais importante é o Sistema Guandu, que capta água do rio Guandu, um rio quase exclusivamente formado pelas águas transpostas do rio Paraíba do Sul. Um fator de vulnerabilidade do sistema consiste, portanto, na forte dependência da Bacia do rio Paraíba do Sul, que é compartilhada com os Estados de São Paulo e Minas Gerais. Seu rio principal tem vazão regularizada por um sofisticado sistema hidráulico que compreende reservatórios, usinas hidrelétricas e transposição de águas entre bacias, cuja operação é bastante 74
complexa e envolve instituições federais, estaduais e múltiplos usuários de água. Desde a instalação da Estação de Tratamento de Água do Guandu (ETA Guandu), em 1955, este sistema e sua transposição para o Guandu, inicialmente concebido para geração de energia elétrica, tornaram-se a principal fonte de abastecimento público da RMRJ, além de atender a outros usos na bacia do rio Guandu. Este é um ponto de tensão com o Estado de São Paulo e a própria Bacia do rio Paraíba do Sul que diversas vezes sugeriram a redução da vazão transposta para o Guandu, em tempos hidrológicos normais. Contudo, tanto o Governo do Estado, através da SEA e do INEA, quanto o Plano Estadual de Recursos Hídricos (2014) ressaltam a importância da garantia dessa vazão para o atendimento atual e sobretudo futuro da RMRJ (Formiga-Johnsson et al., 2015). Portanto, caso ocorram modificações nas regras operativas do Sistema Hidráulico Paraíba do Sul que impliquem na redução da transposição para o Guandu, a vulnerabilidade do sistema de abastecimento da metrópole será ainda maior. O gráfico apresentado a seguir é elucidativo em relação à situação dos níveis de acumulação de água nos reservatórios da bacia do rio Paraíba do Sul.
Nível dos reservatórios equivalentes da bacia do rio Paraíba do Sul 1993-2012
2013
2014
2015
80 70
67,5
70,6
71,7
69,4
62,8
66,2
62,0
60 50
55,7 50,3
48,5 42,4
40
40,7
51,5
47,0 46,8
39,2 33,9 28,5
30
23,3 18,0
20
15,6
17,6
18,2 15,3
7,8
10
11,6
12,9 7,1
0,4
7,2
0 31/01
28/02
31/03
30/04
31/05
30/06
31/07
31/08
30/09
6,8
8,6
5,6
3,5
31/10
novembro
2,6 31/12
Fonte: Elaborado com base em dados fornecidos pela Agência Nacional de Águas (ANA)
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Observa-se no gráfico que, nos períodos entre 1993-2012 e em 2013, o nível dos reservatórios equivalentes se manteve próximo ou superior a 50%. Em 2014 sofreu uma expressiva e consistente queda, tendo o reservatório de Paraibuna, que funciona como a caixa d’água da bacia, atingido o volume morto ao final do ano de 2014. A partir de janeiro de 2015, os reservatórios equivalentes iniciaram um lento processo de recuperação até meados do ano, voltando a cair no mês de junho até o mês de outubro. A partir de novembro desse ano houve um processo de recuperação devido ao aumento no volume de chuvas somado ao rigoroso controle das vazões defluentes dos reservatórios adotados pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e pela Agência Nacional de Águas (ANA) desde o início de 2015. Entretanto, ainda não é possível afastar o risco de agravamento da crise hídrica em 2016, o que só ocorrerá se as chuvas de verão vierem com intensidade acima da média histórica. Até agora os problemas ocorridos de disponibilidade de água têm sido pontuais, com paralisações temporárias no abastecimento de municípios ao longo do rio Paraíba do Sul e de indústrias na foz do rio Guandu. A redução da vazão mínima de 190 m3/s para os atuais 110 m3/s foi feita gradativamente, com o cuidado de impactar ao mínimo o conjunto de usuários de água. Contudo, a crise ainda persiste; serão necessários anos consecutivos de chuvas acima da média pluviométrica para sair do “regime de exceção” e retomar a situação de normalidade em termos de disponibilidade de água bruta (BRITTO, A. L. de P. et al).
3. Medidas para o aumento da segurança hídrica na RMRJ A adaptação aos efeitos das mudanças climáticas implica em estratégias de longo alcance. A recuperação ambiental da bacia do rio Paraíba exige ações coordenadas e integradas de gestão de recursos hídricos, investimentos intensivos no tratamento dos esgotos sanitários e na diminuição de perdas nas redes de distribuição de água, avanços tecnológicos no reaproveitamento e reuso da água na indústria, novas tecnologias agrícolas, entre outros. O aumento da área florestada da bacia requer investimentos contínuos, por décadas, e não será suficiente apenas a recomposição de matas ciliares, sempre lembrada por especialistas. Significativas extensões de terra improdutivas e sujeitas a erosão deverão ser recuperadas com o plantio de espécies nativas de Mata Atlântica, mediante programas de incentivo fiscal e não fiscal que visem à adesão de proprietários e agricultores para a recuperação dessas terras. 76
Portanto, devido à baixa resiliência do rio Paraíba do Sul aos eventos de seca, os reservatórios devem ser operados com o objetivo principal de garantir estoques de água para suprir o abastecimento público. Como medidas imediatas sugere-se que sejam envidados esforços na gestão da demanda hídrica, envolvendo as seguintes ações prioritárias: • Redução do consumo médio per capita da RMRJ: realização de campanhas continuadas de consumo consciente, veiculadas pelos meios de comunicação e de programas educacionais promovidos em escolas, repartições públicas, empresas privadas, eventos esportivos e culturais, etc. • Controle e redução de perdas físicas dos sistemas públicos de abastecimento: elaboração de cadastros dos equipamentos, da rede de distribuição e dos consumidores, que permitam conhecer melhor o sistema, o número e o tipo de usuários aos quais os serviços devem ser prestados, além do controle operacional voltado para o combate de perdas. • Racionalização de uso da água na indústria: promover a implementação de medidas de racionalização do uso da água nos processos produtivos industriais, com incentivos de natureza fiscal e econômica voltados para a readequação tecnológica (reuso, recirculação, redução de perdas, etc). • Estabelecimento de políticas tarifárias em função da magnitude do consumo e que penalizem práticas perdulárias, ou seja, de desperdício. • Estabelecimento de procedimentos eficazes de fiscalização que coíbam desperdícios e usos irregulares de água tratada. • Aperfeiçoamento do sistema de outorga de águas superficiais e subterrâneas: consolidar os cadastros de uso da água existentes e ampliar sua base de usuários através de campanhas intensivas. Rever os critérios de outorga praticados pelo Estado. Automatização dos processos de concessão de outorga com auxílio de banco de dados e sistemas computacionais. Integração dos sistemas de outorga e licenciamento ambiental. 77
• Promover campanhas regulares para fiscalização das outorgas concedidas e dos usos irregulares. • Implantação de sistema unificado de outorga na bacia do rio Paraíba do Sul, a ser definido com a ANA e demais estados da bacia. • Elaboração de planos de contingências para o período de escassez hídrica para o abastecimento de água urbano e industrial da RMRJ. • Elaboração de programas para o aumento da produção de equipamentos certificados em relação ao menor consumo de água e para o fornecimento de subsídios para troca de equipamentos hidráulicos existentes de unidades domésticas e industriais por outros mais econômicos em relação ao consumo de água. O estresse hídrico que vem afetando a região Sudeste deve ser considerado como um alerta para o Governo do Estado do Rio de Janeiro, uma vez que eventos similares tendem a se tornar mais frequentes e críticos no futuro. Portanto, este é o momento para rever e atualizar as ações governamentais e de gestão dos recursos hídricos no sentido de garantir a segurança hídrica da bacia do rio Paraíba do Sul e do Estado do Rio de Janeiro, aumentando também a oferta hídrica atual. Nesse contexto, destaca-se que a incorporação no futuro de qualquer projeto de transposição na bacia do rio Paraíba do Sul, além do aprovado em março de 2015 pelo Grupo Técnico formado pela ANA/DAEE/INEA/IGAM e CEIVAP3, reduzirá a oferta hídrica na bacia, agravando ainda mais períodos de escassez hídrica no futuro, tendo em vista a dependência total do uso das águas dessa bacia para sustentar o desenvolvimento socioeconômico do estado do Rio de Janeiro. Nesse sentido, é necessário que as autoridades do Estado elaborem novos estudos/ projetos e avaliem aqueles existentes, os quais, em conjunto, possam contribuir para o aumento da oferta hídrica. Assim sendo, recomendam-se as seguintes ações: 3 Projeto de interligação/transposição entre o reservatório de Jaguari, na bacia do Paraíba do Sul, para o reservatório de Atibainha, no Sistema Cantareira, em São Paulo.
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• Revitalizar a bacia do rio Guandu, com a participação do Comitê da Bacia do rio Guandu: planejamento urbano da bacia e da expansão da Zona Oeste do Rio de Janeiro; tratamento de esgoto de todos os municípios na bacia do Guandu; preservação de nascentes e matas ciliares; proteção da faixa marginal do rio Guandu e de todos os seus afluentes; controle da poluição do polo industrial de Queimados; solução definitiva para o problema dos resíduos sólidos na bacia – coleta, transporte, disposição e tratamento; implantação de um sistema para conter possíveis acidentes com transporte de cargas tóxicas nas rodovias e estradas que cruzam os rios da bacia; fortalecimento de programas como o ICMS Verde e Produtor de Água visando a preservação e reflorestamento da bacia; etc. • Elaborar e realizar um plano de ações para trocar parte da rede pública de água com o objetivo de reduzir as perdas nos sistemas de distribuição de água do Estado, implantando um sistema de controle automático, tendo como meta atingir o índice de perdas de no máximo 20%. • Aproveitar o reuso de água proveniente do tratamento de esgoto, como se faz em outros países, considerando os diversos tipos possíveis, tais como: água de reuso não potável, potável controlado por atenuadores ambientais e potável direto. • Aproveitar a água da chuva, regulando-o através de medidas administrativas e legais que atualizem o código de obras do Estado e dos municípios fluminenses. • Desenvolver um plano de exploração de águas subterrâneas com realização de perfuração de poços, seleção dos equipamentos e obras necessárias, realizadas de forma orientada e em harmonia com a política estadual de recursos hídricos. • Avaliar a possibilidade de aproveitamento de pequenos mananciais com a implantação de reservatórios, com o objetivo de atender demandas hídricas locais. • Avaliar a implantação de reservatórios em afluentes do rio Paraíba do Sul, em território fluminense, para atender os municípios a jusante da barragem de Santa Cecília, localizada em Barra do Piraí. 79
• Avaliar a possibilidade de implantação de projetos de dessalinização da água do mar, em algumas regiões, utilizando energia solar e avaliando detalhadamente os aspectos ambientais. Uma região possível seria nas proximidades da foz do rio Guandu, pois aproveitaria a proximidade do mar e das adutoras troncos, que iniciam seus traçados a partir da ETA Guandu, e são responsáveis pela adução às redes de distribuição de água em toda RMRJ. Neste caso, seria necessária uma redução relevante das perdas físicas de água no sistema atual de adução e distribuição. O Sistema Guandu/Lajes/Acari produz hoje, em conjunto, a vazão total de 52.400 l/s, dos quais 45.000 l/s são provenientes da ETA Guandu, 5.500 l/s são oriundos do reservatório de Lajes e 1.900 l/s do Sistema Acari. A demanda atual (2015) é da ordem de 56.000 l/s, apresentando um déficit calculado em 3.600 l/s. Para o horizonte de 2035 calcula-se uma demanda de 73.200 l/s, requerendo uma ampliação da produção de água de 20.800 l/s em relação à produção atual. • Ampliação da ETA Guandu em 36.000 l/s já prevista pela Cedae, em etapas, com a construção de três módulos, cada um com capacidade de 12.000 l/s. Observa-se que em apresentação realizada na SEAERJ em 29/4/2015, a Cedae informou que já possui o estudo de concepção para a implantação da nova ETA para tratar 24.000 l/s em duas etapas de 12.000 l/s cada uma. De acordo com a Companhia, a terceira etapa, que corresponde a mais um módulo de 12.000 l/s, ficará para o futuro, sem informar o prazo de execução. A construção desse terceiro módulo é fundamental para suprir a demanda de longo prazo da área já atendida, como também para um futuro atendimento dos municípios situados ao fundo da Baía de Guanabara. • Construção de uma barragem no rio Guapi-Açu, capaz de acrescentar uma vazão regularizada ao sistema Imunana/Laranjal de 4.000 l/s a 5.000 l/s, visando suprir o déficit atual de água dos municípios de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Ilha de Paquetá, que é da ordem de 4.700 l/s. • Tratar os esgotos despejados sem tratamento nos rios que drenam a RMRJ e que resultam em um enorme passivo ambiental, cujos efeitos são a degradação do meio ambiente, o comprometimento dos mananciais de abastecimento e a persistência de doenças que poderiam estar erradicadas ou ao menos controladas. Segundo o 80
PERHI-RJ (2014), o índice médio ponderado de atendimento atual por rede coletora de esgotos sanitários da população urbana das sedes municipais na RMRJ é de 63%, sendo que somente 32% do esgoto coletado é tratado. O PERHI estima que o custo de ampliação da rede coletora para o atendimento de 91% da população urbana da RMRJ, tratando 72% da carga de esgotos coletada, seria de aproximadamente R$ 8,2 bilhões.
4. Considerações finais Procurei demonstrar que a atual crise hídrica não decorre apenas da escassez de chuvas, embora seja um dos seus componentes. É necessário compreender que o quadro atual de vulnerabilidade aos eventos climáticos extremos foi socialmente construído e está vinculado às escolhas técnicas e econômicas realizadas no curso da história dessa bacia, e que essas escolhas podem implicar em dificuldades à sua adaptação aos novos desafios. Já há consenso nos meios técnicos e científicos que períodos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes e que precisamos de planejamento e ações que preparem o País para essas situações. Não é admissível ouvir de autoridades públicas que precisamos rezar para que chova na cabeceira dos reservatórios e que não poderíamos prever que enfrentaríamos um período tão seco.
5. Referências bibliográficas BRITTO, A. L. de P. FORMIGA-JOHNSSON, Rosa M. CARNEIRO, Paulo R. F. Abastecimento público e escassez hidrossocial na Metrópole do Rio de Janeiro. Artigo submetido à Revista Ambiente & Sociedade. CARNEIRO, Paulo Roberto F. Água, um bem natural e precioso. FAPERJ – Rio Pesquisa, Ano VIII nº 30, Rio de Janeiro, março de 2015. CARNEIRO, Paulo Roberto F. Dos Pântanos à Escassez: uso da água e conflito na Baixada dos Goytacazes. São Paulo, Ed. Annablume, Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 1º Edição, janeiro de 2004. 81
FORMIGA-JOHNSSON, R.M., FARIAS JUNIOR, J.E.F. de, COSTA, L.F. da, ACSERALD, M.V. “Bacia do rio Paraíba do Sul, proposta paulista de transposição e segurança hídrica do Estado do Rio de Janeiro: breve relato de um acordo federativo”. Revista Ineana (Revista técnica do Instituto Estadual do Ambiente, RJ), 2015. GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado do Ambiente – SEA. Instituto Estadual do Ambiente - INEA. Plano Estadual de Recursos Hídricos do Estado do Rio de Janeiro. Fundação COPPETEC Laboratório de Hidrologia e Estudos de Meio Ambiente, Versão Final Abril de 2014. INTEGRAL DE ENGENHARIA LTDA/FIRJAN. Avaliação da segurança hídrica da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Relatório Final: Diretrizes para o aumento da segurança hídrica da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, maio de 2015.
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A crise não é da água, mas da sociedade - Breve análise sobre a situação do Rio de Janeiro Por Carlos Bittencourt1 e Flavio Serafini2
O esvaziamento dos reservatórios de água que abastecem a região Sudeste nacionalizou uma questão que já faz parte da vida de milhões de brasileiros há décadas: a escassez hídrica. Os noticiários de maior audiência e a mídia impressa transformaram o tema, ao longo de alguns meses, em pauta central da discussão pública nacional. Apesar disso, não se aprofundou um debate acerca das causas de tal escassez, seus fundamentos e o quanto ela pode estar relacionada a um cenário de colapso hídrico mais amplo, limitando-se a um estrondoso alarde. Um primeiro aspecto diz respeito à naturalização – no sentido de limitar o problema a um fenômeno natural – da grave estiagem que se abateu sobre o Brasil. Na atualidade, chover ou não chover não é uma determinação divina ou fruto de sorte ou azar. O clima, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), é geralmente definido como “tempo meteorológico médio”, ou mais precisamente, como a descrição estatística de quantidades relevantes de mudanças do tempo meteorológico num período de tempo, que vai de meses a milhões de anos. O período clássico é de 30 anos, definido pela Organização Mundial de Meteorologia (OMM). Essas quantidades são geralmente variações de superfície como temperatura, precipitação e vento. O clima num sentido mais amplo é o estado, incluindo as descrições estatísticas do sistema global. O próprio IPCC vem descrevendo mudanças nesse tempo médio meteorológico derivadas da ação humana, mais especificamente da sociedade industrial que se desenvolveu sobremaneira nos últimos 100 anos. 1 Carlos Bittencourt é historiador, coordenou como membro do IBASE o projeto Observatório do Pré-sal e da Indústria Extrativa Mineral até 2015. Atualmente é assessor do Deputado Estadual Flavio Serafini (PSOL-RJ). 2 Flavio Serafini é professor de Sociologia e deputado estadual pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) do Rio de Janeiro. Em sua atuação na Alerj, integrou a CPI da Crise Hídrica e preside a Comissão Especial da Baía de Guanabara.
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As grandes variações ou extremos climáticos que se tem observado no mundo – secas gigantescas, proliferação inaudita de furacões, precipitações pluviométricas muito acima da média histórica, imensas nevascas – têm sido cada vez mais associadas pelos cientistas do clima ao processo global de mudanças climáticas. A temperatura média do planeta subiu 1.02 graus Celsius e a previsão feita pelo IPCC é de que se ultrapassarmos a marca de 2 graus Celsius mergulhamos em um período de profundas incertezas e de possíveis catástrofes climáticas nunca antes vistas. Tratar a grave estiagem que contribuiu para o esvaziamento dos reservatórios de água que abastecem grandes cidades da região Sudeste apenas como uma variação normal da curva, ou mesmo como problema de gestão de reservatórios, mascara a profundidade do problema e impede que se mude a rota do modelo de desenvolvimento capitalista que vem causando estas alterações. Uma abordagem que vise ir além do superficial deve ao mesmo tempo buscar compreender os diferentes elementos que compõem o ciclo hidrológico em diferentes escalas. O primeiro ponto para se entrar nessa discussão é reconhecer que entramos em uma nova era geológica, como propõem muitos cientistas. As mudanças causadas pela humanidade no mundo físico, químico e biológico do planeta já poderiam ser consideradas como forças de proporções geológicas e com impacto temporal de larguíssima escala. Então, os próprios fenômenos da natureza devem ser entendidos como fenômenos desse novo período geológico, o Antropoceno. A falta de chuvas no verão de 2014, portanto, não pode ser entendida apenas como um azar. Deve ser contextualizada em um cenário de mudanças climáticas criadas pela ação humana, ou mais precisamente, pelo modo de vida capitalista que se alastrou pelo planeta. Uma segunda questão diz respeito ao processo mesmo de esvaziamento dos reservatórios que abastecem o Rio de Janeiro e ao uso da água propriamente dito. O epicentro do problema relacionado à escassez hídrica neste ano de 2015 deu-se fundamentalmente relacionado à vazão dos reservatórios do Rio Paraíba do Sul que corta e contribui com o abastecimento dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, onde é a principal fonte de água potável, abastecendo quase 11 milhões de pessoas especialmente através do sistema Guandu. O sistema Guandu é o principal sistema de abastecimento da região metropolitana do estado do Rio, alcançando uma população de cerca de 8,5 milhões de pessoas e sendo abastecido por um desvio realizado através da Estação Elevatória de Santa Cecília. 84
Santa Cecília recebe vazões afluentes dos reservatórios de Funil, Jaguari, Santa Branca e Paraibuna, mais a vazão natural (chuvas) a partir de Funil. Em condições hidrológicas normais, a vazão mínima em Santa Cecília é 190 m³/s, sendo 71m³/s para atender aos usos a jusante à barragem e 119 m³/s para o bombeamento, ou seja, para a transposição para o rio Guandu, conforme estabelece a Resolução ANA 211, de 26 de maio de 2003, que dispõe sobre as regras a serem adotadas para a operação do sistema hidráulico do Paraíba do Sul. Como medida preventiva para o enfrentamento dessa crise de escassez hídrica, desde maio de 2014, a ANA vem emitindo resoluções que buscam preservar os estoques disponíveis de água no reservatório equivalente desta bacia. Diferentes resoluções têm autorizado a diminuição da vazão. A Resolução ANA nº 714, de 29 de junho de 2015, autoriza a flexibilização da vazão mínima a partir da barragem de Santa Cecília de 190 m³/s para 110 m³/s até 31 de outubro de 2015. O que é importante ressaltar é que grande parte desta água não tem como destinação final o consumo humano, mas a geração de energia e o uso industrial, que pressionam contra a possibilidade de diminuição da vazão e da ampliação da reservação. Representantes do próprio governo estadual, como o senhor Antônio da Hora, não deixam dúvida ao dizer que a principal responsável pelo desabastecimento de água foi a geração hidrelétrica. Em Audiência Pública na CPI da Crise Hídrica da Alerj, o representante da Secretaria Estadual de Ambiente afirmou: “no nosso caso específico, o Rio Paraíba do Sul, no nosso modo de ver, foi muito mais o uso intensivo da água para a geração de energia que teria esvaziado”. Fica claro que lançou-se uma quantidade gigantesca de águas advindas dos reservatórios que compartilham a função de abastecimento hídrico e geração elétrica para as turbinas de geração elétrica, sem levar em conta a estiagem já em curso e o conflito de usos que em breve se instalaria. Por outro lado, depois de passar na estação de Santa Cecília, 43m3/s abastecem a Estação de Tratamento de Água de Guandu, e o restante dispersa-se fundamentalmente pelo canal São Francisco, onde situa-se o Polo Industrial de Santa Cruz, que conta com a presença de grandes indústrias como a siderúrgica CSA, a Gerdau, Furnas, dentre outras. A presença destas indústrias significa uma pressão permanente para que se mantenha elevada a vazão no canal São Francisco para o seu deságue na Baía de Sepetiba. Além de fazer uso intensivo desta água, como situam-se próximas ao final do canal e possuem outorga de captação neste ponto, demandam que a vazão do canal tenha força suficiente para repelir a água do mar de entrar no canal alterando 85
a qualidade da água que captam. Em todo cenário de escassez, a vazão do canal São Francisco, após a captação da ETA Guandu de 43m3/s para abastecer 8,5 milhões de pessoas, teve que manter-se ao redor dos 30m3/s para abastecer algumas indústrias e garantir a qualidade da água captada pelas mesmas. Mesmo sendo beneficiadas com essa vazão extra, as empresas do canal de São Francisco, com o aval de um licenciamento simplificado do INEA, construíram uma soleira submersa – que na prática funciona como uma barragem do canal – para impedir a entrada da intrusão salina. Nosso mandato deu entrada em uma representação ao Ministério Público Estadual (MPE) que abriu um Inquérito para apurar os danos causados aos pescadores artesanais da região que tiveram seu caminho até o mar interrompido pela “soleira”. Naquela ocasião apresentamos ao MPE uma análise dos próprios pescadores e ribeirinhos de que a barragem/soleira poderia gerar um enorme alagamento das casas às margens dos rios no período chuvoso. Infelizmente, por ocasião das chuvas do mês de fevereiro de 2016, essas expectativas se confirmaram e grandes alagamentos aumentaram os prejuízos daquela população já impactada por esses megaempreendimentos. Diante do cenário da escassez hídrica, as falsas soluções pululam nas bocas de falsos profetas. A dificuldade de caracterizar as verdadeiras causas da “crise hídrica” se desdobra em uma incapacidade de focar em medidas concretas de superação do problema em suas raízes e culpabiliza equivocadamente o conjunto da população por responsabilidades que são diferenciadas entre os grupos sociais e econômicos. Este aspecto revela também como a abordagem midiática majoritária tende a culpabilizar erroneamente a população em geral pelo processo de esgotamento das reservas hídricas quando, em verdade, os principais responsáveis são aqueles consumidores que fazem uso mais extensivo de água como o setor enérgico, as indústrias e a irrigação de larga escala. Dos usos consuntivos no estado do Rio de Janeiro – aqueles em que uma parcela ou a totalidade da água captada não retorna ao corpo hídrico da captação – a indústria é a maior demandante, responsável pelo consumo de 43% dos recursos hídricos do estado, seguida pelo abastecimento humano, com 42%, e a agricultura com 13%. Há aqui dois aspectos a serem destacados3. O primeiro diz respeito à diferenciação entre uso consuntivo e uso não consuntivo. A produção de energia elétrica, apesar de ser um consumo em que o volume da água volta quase que integralmente ao corpo hídrico, foi responsável pelo uso de cerca de 15% da água armazenada em reservatórios, concorrendo com o uso dessa água para abastecimento humano. 3 Plano Estadual de Recursos Hídricos. 2014. http://www.inea.rj.gov.br/cs/groups/public/documents/document/ zwew/mdgz/~edisp/inea0083952.pdf
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Uma estratégia digna desse nome deve buscar focar nos consumidores mais intensivos. Se os cerca de 16,5 milhões de pessoas residentes no estado consomem 42% da água e as cerca de 17 mil indústrias consomem 43%, parece evidente que uma política pública que se volte para a eficiência hídrica dessas empresas (mais fáceis de serem acessadas uma a uma) tem muito mais chances de resultar, em um menor espaço de tempo, em uma diminuição mais efetiva do consumo hídrico total do estado. Outro ponto importante que deve ser destacado é o desperdício no próprio processo de distribuição de água, pois somente as perdas físicas ultrapassam 30% do volume captado. Ou seja, sem incluir a água desviada através de ligações clandestinas ou não contabilizada por problemas de hidrometragem, somente as águas que se esvaem através de vazamentos equivalem a quase 1/3 de toda água captada. Ironicamente, o governo do estado e a Cedae, companhia de abastecimento, lançaram a campanha “Toda gota conta”, estimulando os consumidores a economizar cada gota. Sem menosprezar de forma alguma a necessidade de uso racional dos recursos naturais, mais uma vez a propaganda destaca o aspecto individual do consumo humano como relacionado à escassez, ignorando não só os diferentes usos, como também o próprio desperdício da distribuição. Outro aspecto muito negligenciado quando se trata da “crise hídrica” é a qualidade das águas dos corpos hídricos. Os rios, se não fossem poluídos, poderiam ser fonte de água para a população com baixos custos de tratamento. As principais fontes de poluição dos rios são a falta de saneamento básico para amplos setores da população – segundo o IBGE, mais de 50% dos domicílios do estado não estão interligados a estações de tratamento de esgoto – e a poluição advinda da fertilização química das áreas agrícolas e do despejo de efluentes de origem industrial. De acordo com o Plano Estadual de Recursos Hídricos, a média das violações poluidoras dos rios do estado com relação à classe II estabelecida pelo CONAMA é de 87% (acima do limite estabelecido pela normativa) para coliformes fecais, 67,7% para Fósforo total, 40,3% para Demanda Bioquímica de Oxigênio, 30,9% para o manganês e 20,4% para o chumbo, além de outros metais pesados. Este é um problema que se agrava nas regiões hidrográficas de maior concentração populacional, como a RH V que corresponde à Baía de Guanabara, mas estas violações poluidoras acima dos parâmetros se estendem por todo o estado. Um aspecto de âmbito federal que nos causa estranheza é a resolução CONAMA 357/2005. Nela parece que se trabalha com uma perspectiva de sacrifício dos corpos 87
Violações de Classe 2 na RH-V - Baía de guanabara - Coliformes Fecais
hídricos, permitindo que se lancem efluentes cada vez mais degradantes de acordo com a situação de degradação dos rios. Se um rio está muito poluído, é possível lançar efluentes com maior capacidade poluidora nesse rio, naturalizando sua destruição e impedindo qualquer perspectiva de recuperação dessa fonte de água. A degradação da vegetação natural no estado do Rio de Janeiro se encontra também entre as principais causas da escassez hídrica e o ritmo da destruição dessa vegetação foi literalmente devastador. Segundo o Plano Estadual de Recursos Hídricos, hoje, mais de 70% das terras estaduais já não têm mais vegetação natural. Segundo IEF-RJ (1994), no início do século XX (ano 1912), ainda havia 81% das florestas naturais e, em menos de 50 anos (ano 1960), foram reduzidas a 25%. Esse processo de destruição da vegetação original do estado do Rio de Janeiro está diretamente relacionado ao modelo de desenvolvimento pelo qual se optou aqui e em todo o Brasil, no qual significativos impactos ecológicos são vistos como externalidades ao 88
Remanescentes da vegetação natural nas regiões hidrográficas do estado do Rio de Janeiro e bacias compartilhadas (Fonte: MMA/Probio, 2007).
processo econômico e o meio ambiente visto como recurso a ser aproveitado para a geração de dividendos financeiros. Não à toa, a concentração temporal desse processo de degradação se encontra a partir do segundo quarto do século XX. Uma das provas dessa ligação entre a degradação florestal e o modelo de desenvolvimento econômico é a forma como se usa e ocupa o solo do estado. De acordo com o mapa de vegetação e uso do solo (SEA/UFRJ, 2009), o uso agropecuário (agricultura + pastagem) ocupa a maior parte do território fluminense (59%)4. Por outro lado, as medidas de recuperação florestal são ínfimas e absolutamente insuficientes. O Governo do Estado do Rio de Janeiro, além de não criar programas sérios de reflorestamento, não cumpre o papel de fiscalizar as medidas compensatórios relacionadas ao licenciamento ambiental de empreendimentos. Em ofício à CPI da Crise Hídrica da Alerj, por 4 http://www.inea.rj.gov.br/cs/groups/public/documents/document/zwew/mdyy/~edisp/inea0062133.pdf
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exemplo, se reconheceu que as condicionantes do COMPERJ relacionadas ao reflorestamento estavam 90% aquém do que se havia estabelecido no processo de licenciamento ambiental.
Uso do solo no estado: classes de uso, área ocupada e percentual do total Uso do Solo Pastagem Pastagem em Várzea Floresta Agrucultura (cana) Agrucultura (café) Agrucultura (cítricos-coco) Agrucultura (outros) Vegetação Secundária em Estágio Inicial Ocupação Urbana de Alta Densidade Ocupação Urbana de Média Densidade Ocupação Urbana de Baixa Densidade Comunidade Relíquia Restinga Cordões Arenosos Mangue Reflorestamento Áreas Úmidas Água Dunas Salinas Afloramento Rochoso Solo Exposto
Total
Área (ha)
Percentual
2.251.376 119.542 1.211.245 177.838 5.145 2.017 20.184 88.557 55.839 123.655 42.250 2.819 36.683 58.101 17.201 11.568 28.911 86.649 725 3.594 22.096 4.147 4.370.142
51,52 2,74 27,72 4,07 0,12 0,05 0,46 2,03 1,28 2,83 0,97 0,06 0,84 1,33 0,39 0,26 0,66 1,98 0,02 0,08 0,51 0,09 100.00
Para se construir uma estratégia global de enfrentamento a um possível colapso hídrico, é necessário articular essa diversidade de variáveis em uma análise multicausal e com iniciativas concomitantes em diferentes frentes e escalas. Tais medidas vão desde a mudança da matriz de transporte, passando pelo controle da degradação florestal e medidas efetivas de recomposição de vegetação, a começar por aquelas associadas aos corpos hídricos (como 90
as matas ciliares), maior controle das perdas físicas na distribuição de água, modernizando as redes de tubulações, e a obrigação de as indústrias instalarem estações de tratamento próprias para produzir sua água de reuso. Uma medida, no entanto, é a base para qualquer possibilidade de construção de um novo paradigma não predatório de uso das águas. Como bem comum, a água deve ter sua gestão compartilhada pelo conjunto da sociedade. Para se construir acesso democrático à água, devese democratizar radicalmente a gestão dos bens hídricos. Água não é mercadoria e todos os processos de privatização apontam no sentido do acesso desigual e no controle particular do que é público. Sob o livre mercado impera o ilogismo. Afinal, qual é a lógica que determina que o Alto Leblon seja abastecido regularmente com água da Estação de Tratamento Guandu, mais de 50 Km distante, e que os bairros populares a menos de 10 Km dali padeçam há décadas com a falta d’água? Sob o livre mercado, o acesso à água e ao saneamento ambiental é necessariamente desigual. Reproduz os padrões das desigualdades socioeconômicas da sociedade, resultando, ao final, na reprodução de um modelo de exclusão ao direito a esse bem comum, profundamente classista e racista. O planejamento democrático deve ser, portanto, a base das transformações que impliquem na reorientação de um modelo que nos encaminha para um colapso hídrico. Os Comitês de Bacia foram um passo importante nesse sentido, mas ainda estão muito aquém de uma verdadeira gestão comum e compartilhada dos bens hídricos, inclusive porque têm suas funções secundadas pelas iniciativas dos poderes regulares. O atual modelo de gestão aponta como solução para a “crise hídrica” a continuidade ou a intensificação das causas da própria crise. A proposta da Barragem do Guapiaçu é um exemplo disso. Uma imensa obra de engenharia que custará milhões de reais aos cofres públicos e remunerará fartamente as empresas de engenharia doadoras das campanhas eleitorais dos agentes políticos responsáveis pela execução e pelo licenciamento do empreendimento, nesse caso o INEA. Alagará cerca de 2.000 agricultores e uma das áreas mais férteis do estado. Até o prefeito de Cachoeiras de Macacu, do mesmo grupo político do governador, se opõe à obra. Diversos pesquisadores e os movimentos sociais que acompanham a questão apontam alternativas menos impactantes e possivelmente mais efetivas. Qual a lógica por trás de decisões desse tipo? Como saber se o que predomina é o interesse público ou a articulação de determinados grupos políticos com interesses empresariais? 91
A “crise”, portanto, não necessariamente aponta para a superação dos problemas. Ela pode ser uma oportunidade para determinados segmentos tirarem proveito e aprofundarem o modelo no qual se beneficiam, constituindo não uma saída virtuosa, mas um círculo vicioso. A ação política tem por isso um papel fundamental. É necessário enfrentar os gestores do atual modelo com a construção de iniciativas concretas de democratização do saneamento ambiental e da água e no terreno das alternativas societais, apontando para um modo de vida mais justo socialmente e menos predatório em relação ao meio ambiente. É importante, também, articular a denúncia do modelo privatizado de gestão, motor de desigualdades e injustiças no acesso à água, com propostas mobilizadoras que apontem para o engajamento da sociedade civil e especialmente para aqueles e aquelas que historicamente são impedidos de acessar os direitos sociais e ambientais no estado.
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Saneamento, saúde e direitos humanos: as iniquidades socioambientais e a luta pela água na Cidade do Rio de Janeiro Por Alexandre Pessoa Dias1 e Bianca Dieile da Silva2
1. Introdução A análise crítica da crise hídrica e de seus determinantes socioambientais requer uma abordagem multiescalar e multidimensional, que permita revelar as segregações socioespaciais e as violações do direito à água, que deveria ser disponibilizada de forma universal, em quantidade suficiente e qualidade adequada para saúde ambiental e humana na Cidade do Rio de Janeiro. Na macroescala global, temos os efeitos das mudanças climáticas e de seus eventos extremos, que revelam como a insustentabilidade do sistema capitalista e do modelo de desenvolvimento urbano-industrial, inaugurado com a Revolução Industrial, traz graves impactos socioambientais, cujo poder destrutivo atualmente supera a capacidade de recuperação e mesmo a resiliência dos territórios. Após várias décadas de debate internacional, em 28 de julho de 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas finalmente decidiu, por votação, reconhecer o acesso à água limpa e segura e ao esgotamento sanitário adequado como um direito humano. Vários países da América Latina, notadamente a Bolívia, o Equador e o Uruguai, tiveram uma atuação destacada na promoção e na aprovação final do direito humano à água. (Castro; Heller; Morais, 2015). É 1 Alexandre Pessoa Dias é engenheiro civil e pesquisador da Fiocruz. Atualmente é professor-pesquisador do Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Lavsa/ EPSJV) e do mestrado em Trabalho, Ambiente e Movimentos Sociais da ENSP/FIOCRUZ. 2 Bianca Dieile é bacharel em química. Atualmente é pesquisadora em Saúde Pública no Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Fiocruz, onde desenvolve estudos relacionados ao acesso à água, indicadores de qualidade da água e gestão dos serviços de saneamento.
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um dos mais novos direitos humanos, fruto das lutas e do mais avançado constitucionalismo latino-americano, a exemplo do boliviano3 e equatoriano4. Além do direito humano, deve-se considerar o próprio direito da água, enquanto bem comum, patrimônio da natureza e de suporte à vida na Terra, na Pachamama5. Podemos considerar, na mesoescala, as mudanças territoriais que ocorrem nas bacias hidrográficas. No Brasil, os impactos sobre as áreas remanescentes da Mata Atlântica, o processo de desertificação da Caatinga, as pressões e os avanços das fronteiras do agrohidronegócio sobre a Amazônia e o Cerrado chegaram a um nível e a uma extensão tais que interferem no ciclo hidrológico das águas de diversas regiões, impactando já na escala dos biomas. Na microescala, correspondendo às artérias e veias das cidades, temos os sistemas de saneamento, com a gestão das águas coletivas (de abastecimento, de chuvas e residuárias) interconectadas com o manejo das águas nas habitações, indústrias e demais edificações, tendo, no sistema de distribuição, o hidrômetro como o limite entre as responsabilidades pública e privada. A análise do estresse hídrico e dos caminhos das águas, incluindo suas prioridades no fornecimento e na distribuição socioespacial, precisam considerar a interdependência entre as escalas supracitadas. No Rio de Janeiro, o Sistema Guandu, com vazão de 43 m3/s, abastece doze municípios, cerca de 85% da população da Região Metropolitana (o que já se traduz em uma vulnerabilidade hídrica), e tem seus reservatórios regulados por demandas de abastecimento de água e de energia elétrica. A bacia hidrográfica do rio Guandu sofre historicamente diversos impactos negativos no sistema água-solo-planta, o que compromete os aspectos qualiquantitativos das suas águas. Os problemas vão desde desmatamento, poluição por efluentes industriais e resíduos sólidos, ausência de estações de tratamento de esgoto nos seus afluentes, extração de areia, assoreamento até impermeabilização do solo, dentre outros. É crítica a contaminação dos rios Poços, Queimados e Ipiranga, que deságuam no rio Guandu, imediatamente à montante da tomada d’água da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). O problema não é somente hidráulico, mas de complexidade socioambiental (Dias, 2003). 3 http://sedcero.org/bolivia-pionera-en-el-derecho-de-acceso-al-agua/ 4 http://www.agua.gob.ec/ley-de-aguas/ 5 h t t p : / / w w w 2 . s t f . j u s . b r / p o r t a l S t f I n t e r n a c i o n a l / c m s / d e s t a q u e s N e w s l e t t e r . php?sigla=newsletterPortalInternacionalFoco&idConteudo=195972
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A história do Rio de Janeiro pode ser contada por meio da luta pela água. Face ao seu papel vital, várias ações foram realizadas na tentativa de se preservar o rio Carioca. Segundo Maurício Abreu (1992), houve tentativas de proteção através de atos legais, desde o início do século XVII (1611 e 1638). Em 1817, determinou-se o cercamento dos terrenos ao redor das nascentes do Carioca e ao longo do aqueduto até Santa Tereza (Corrêa, 1939). Devido à crise no abastecimento, em 1843, o governo imperial constituiu um grupo de trabalho que propunha conservação das matas, tanto das Paineiras, como da Tijuca, em toda a extensão das cabeceiras e vertentes dos rios Carioca e Maracanã. Dentre as medidas adotadas destacaram-se o controle e a fiscalização das nascentes e, ao longo das linhas de abastecimento, desapropriações das fazendas de café com a implantação de um programa audacioso e pioneiro de reflorestamento (Abreu, 1992). Com nova escassez em 1860, o governo propôs a elaboração de um plano geral de abastecimento de água. Duas soluções foram apresentadas: a primeira se baseava na utilização das águas das encostas da serra do Tinguá, na serra do Mar; a segunda, vencedora, propunha a continuidade da utilização dos mananciais do Maciço da Tijuca, argumentando que seus rios ainda poderiam suprir as necessidades da cidade, bastando que, para isso, fossem preservados, além de oferecer solução para o problema das inundações (Abreu, 1992). Esta decisão viabilizou o primeiro parque nacional brasileiro e a recuperação da Floresta da Tijuca, maior floresta urbana do mundo replantada pelo homem, com uma extensão de 3953 hectares de Mata Atlântica. Ao longo do tempo outros mananciais passaram a ser utilizados e hoje, infelizmente, o rio Carioca, suas águas, fontes, chafarizes e reservatórios, enquanto patrimônio ambiental e histórico-cultural, de valor inestimável, está se deteriorando (Dias; Rosso, 2005). Na história da luta pelas águas nas favelas, temos o Museu da Maré do Rio de Janeiro6, inaugurado em 2006. É um espaço de memória e de resistência, que conta com produção filmográfica7 e uma bela exposição – Os Tempos da Maré – que retrata a vinculação do “Tempo da Água”, com a conquista dos tempos – casa, migração, resistência, trabalho, festa, feira, cotidiano, criança, medo (inclusive da água contaminada) e futuro – temas que misturam vários períodos da história da Maré, desde sua formação a partir da década de 40, até o presente. Uma comunidade que, pela ausência de políticas púbicas, recorreu à autoconstrução, carregando diariamente latas de água e de terra na cabeça. A luta pela 6 http://www.museudamare.org.br/joomla/ 7 https://www.youtube.com/watch?v=4qv--b7E5KE
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moradia digna se mantém até hoje frente à precarização do saneamento, quando, diante das inundações, os próprios moradores tentam desobstruir as valas e canais de esgotos que entrecortam o território. Essa realidade é recorrente nas favelas cariocas, perpetuando as iniquidades socioambientais e em saúde. As iniquidades em saúde entre grupos e indivíduos são aquelas desigualdades de saúde que, além de sistemáticas e relevantes, são também evitáveis, injustas e desnecessárias. Elas são um dos traços mais marcantes da situação de saúde do Brasil (Brasil, 2006). Podemos considerar, na determinação social dessas iniquidades em saúde, o atual modelo de desenvolvimento, gerador de concentração de renda, de infraestrutura e das políticas, sistemas, serviços e ações de saneamento. O presente artigo tem o objetivo de analisar a precarização, ou seja, as iniquidades socioambientais das políticas públicas de saneamento no Rio de Janeiro. Para tanto, irá se valer do conceito de justiça ambiental, constituído nos anos 80 a partir da experiência inicial dos movimentos sociais dos Estados Unidos e do clamor dos cidadãos pobres e das etnias socialmente discriminadas e vulnerabilizadas naquele país, quanto à sua maior exposição a riscos ambientais nas vizinhanças de depósitos de resíduos tóxicos. O tema veio à tona recentemente após a passagem do furacão Katrina, em 2005, em Nova Orleans, em que a raça e a classe social foram os fatores não verbalizados que definiram quem conseguiu escapar e quem ficou preso no caos (Herculano; Pacheco, 2006). Justiça ambiental, na definição do Movimento de Justiça Ambiental dos EUA, é “a condição de existência social configurada através do tratamento justo e do envolvimento significativo de todas as pessoas, independentemente de sua raça, cor, origem ou renda no que diz respeito à elaboração, desenvolvimento, implementação e aplicação de políticas, leis e regulações ambientais. Por tratamento justo entenda-se que nenhum grupo de pessoas, incluindo-se aí grupos étnicos, raciais ou de classe, deva suportar uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas resultantes da operação de empreendimentos industriais, comerciais e municipais, da execução de políticas e programas federais, estaduais ou municipais, bem como das consequências resultantes da ausência ou omissão destas políticas.” (Acselrad, 2009). 96
Na Declaração da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, movimento criado em 2001, a injustiça ambiental é definida como “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis.” (Herculano; Pacheco, 2006).
2. Saneamento básico ou ambiental? Saneamento significa a ação de sanear, ou seja, de “tornar saudável”. Em fins da década de 50, referindo-se basicamente às intervenções de água potável e de esgoto sanitário, o termo saneamento “básico” foi cunhado no Brasil para estabelecer o que era mínimo e, portanto, fundamental para a vida humana, frente aos reduzidos recursos governamentais destinados a essas atividades. Essa expressão ganhou força nas décadas de 70 e 80, com a implantação do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), que atuava no sistema de abastecimento de água (prioritariamente), no esgotamento sanitário e em poucas ações de drenagem dos centros urbanos (Dias, 2003). A Lei no. 11445/2007, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico no Brasil, considera-o como o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de abastecimento de água potável; esgotamento sanitário; limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e a drenagem e manejo das águas pluviais. A intersetorialidade está indicada quando os princípios fundamentais do marco regulatório orientam a integração das infraestruturas e serviços com a gestão eficiente dos recursos hídricos. Além disso, destaca-se a necessidade de articulação entre as políticas de desenvolvimento urbano e regional, de habitação, de combate à pobreza e de sua erradicação, de proteção ambiental, de promoção da saúde e outras, de relevante interesse social, voltadas para a melhoria da qualidade de vida, para as quais o saneamento básico seja um fator determinante. Mesmo considerando as ações de saneamento básico como prioritárias, elas não são suficientes para enfrentar a continuidade da crise hídrica e de seus conflitos. Nesse sentido, diante dos problemas sanitários e ambientais e da necessidade de ampliar e integrar as intervenções para a promoção da saúde ambiental e melhoria das condições de vida urbana e rural, propõe-se o saneamento ambiental. 97
O saneamento ambiental constitui-se em um conjunto de ações técnicas, socioeconômicas e culturais, contemplando o manejo das águas e integrando a gestão democrática das bacias hidrográficas, os sistemas de abastecimento de água, a preservação dos mananciais, das matas ciliares, o reflorestamento, a irrigação e o uso racional das águas, o manejo do esgoto sanitário, dos efluentes industrias e das demais águas residuárias, incluindo-se a redução na geração e as tecnologias de reuso, o manejo e aproveitamento das águas pluviais para consumo humano, o manejo sustentável dos solos e dos resíduos sólidos, as ações estruturantes de gestão e de educação em saúde ambiental, além de propostas de saneamento ecológico e da agroecologia (Dias, 2010). Isso implica dizer que as ações de saneamento ambiental atuam nas diversas escalas e processos que não se esgotam em uma questão de gestão das águas, mas fundamentalmente se baseiam em um modelo de desenvolvimento e em um projeto de sociedade contra-hegemônico. O Estatuto da Cidade, Lei n.o 10.257, de 10 de julho de 2001, em seu artigo 2, estabelece que a política urbana objetiva ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana e tem como uma das diretrizes gerais: I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações
3. Saneamento, a escala renegada As violações ao acesso aos serviços de saneamento no Rio de Janeiro se dão tanto pela falta de universalização dos serviços, quanto pela operação e manutenção inadequadas e, em muitos casos, precárias, dos sistemas existentes. O último diagnóstico dos serviços de água e esgoto do Brasil, publicado em 2013, pelo Ministério das Cidades (Brasil, 2014), com dados fornecidos pelas próprias concessionárias, indica que o percentual em perdas na distribuição da Cedae, que atende 64 municípios (Cedae, 2013), é de 30,4%. Este índice faz a comparação entre o volume de água disponibilizado para distribuição e o volume consumido. O valor médio das prestadoras no Brasil, no mesmo ano, foi de 37%. Os valores são expressivos e indicam a necessidade urgente de um plano de combate ao desperdício de água. Entretanto, quanto à redução do índice de perdas na distribuição da Cedae, o Diagnóstico de 2011 destacava: 98
Tal redução decorreu de alteração na metodologia de avaliação dos volumes e não de ações concretas de redução das perdas. Segundo a companhia, ao contrário de anos anteriores, em 2010 e agora também em 2011 foram computados os volumes de atendimento social em favelas como consumo autorizado, parte no volume de água consumido e parte no volume de água de serviço. Tal situação fez com que o índice de perdas na distribuição reduzisse de 51,1% em 2009 para 31,2% em 2010 e 31,6% em 2011. A análise expressa no diagnóstico complementa: O SNIS ressalta que mudanças metodológicas como esta devem ser resultado de controles operacionais consolidados na companhia, registrados em sistemas de informações e relatórios técnicos, assim como culturalmente internalizados pela equipe técnica. Ademais, para ser validada, tal metodologia deve resultar de macromedições no sistema de distribuição que possibilitem o controle dos grandes volumes de água disponibilizados para as favelas. Sem, ao menos, estas medições, não é possível registrar com uma precisão aceitável os volumes de atendimento social. As diversas formas de interconexão entre os sistemas de esgoto sanitário e de águas pluviais no município, agravadas por inundações recorrentes, mantêm uma condição de poluição das águas continentais e da orla marítima, que traz impactos à saúde e compromete a própria operacionalização dos respectivos sistemas. Argumentos de que a questão da poluição se deve às comunidades de baixa renda traduzem-se na lógica da responsabilização e criminalização das camadas populares, em vez de considerarem esses territórios como pertencentes à cidade e, portanto, com o direito de terem saneamento adequado (Dias, 2003). Verifica-se que algumas intervenções de obras públicas, em vez de reverter tal condição de insalubridade, assumem-nas como inevitáveis, como a instalação de unidades de tratamento de rio. A Estação de Tratamento do Rio Carioca, instalada em sua foz, tem como objetivo garantir a balneabilidade da praia do Flamengo, em detrimento da manutenção da poluição ao longo do rio (Dias, 2003). A Unidade de Tratamento do Rio Arroio Fundo tem como objetivo melhorar as condições do rio à jusante, reduzindo os odores na Vila do Pan, estando dentro dos Encargos para os Jogos Olímpicos de 20168. Entretanto, as condições de insalubridade se mantêm à montante da estação, cujo rio margeia diversas favelas, como a Cidade de Deus. 8
http://www.dtengenharia.com.br/obras/obras-rio-de-janeiro/utr-arroio-fundo
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Algumas regiões do Rio de Janeiro sofrem um racionamento seletivo de água estrutural, aumentando as desigualdades sociais. Quanto à intermitência, ou seja, à descontinuidade no fornecimento de água, de acordo com o padrão de potabilidade de água, determina a Portaria no. 2.914 estabelecida pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2011): Art. 25º. A rede de distribuição de água para consumo humano deve ser operada sempre com pressão positiva em toda sua extensão. Art. 26º. Compete ao responsável pela operação do sistema de abastecimento de água para consumo humano notificar à autoridade de saúde pública e informar à respectiva entidade reguladora e à população (grifo do autor), identificando períodos e locais, sempre que houver: I. situações de emergência com potencial para atingir a segurança de pessoas e bens; II. interrupção, pressão negativa ou intermitência no sistema de abastecimento; III. necessidade de realizar operação programada na rede de distribuição, que possa submeter trechos a pressão negativa; IV. modificações ou melhorias de qualquer natureza nos sistemas de abastecimento; e V. situações que possam oferecer risco à saúde. A Baixada Fluminense, parte mais pobre da metrópole, possui setores da população, que, embora localizados geograficamente próximos à Estação de Tratamento de Água do Guandu (ETA Guandu), sofrem pela falta d’água, exemplo categórico de injustiça ambiental (Costa; Ioris, 2015). Diante da demanda reprimida, o governo do estado apresenta a promessa do Sistema Novo Guandu, mais água para Baixada9. Outras áreas que sofrem sistematicamente com a falta d’água no município do Rio de Janeiro são Santa Cruz e outros bairros da Zona Oeste, levando a população a se organizar e reivindicar a melhoria no sistema de distribuição (Globo, 2014), questionando também a contradição das prioridades quanto à disponibilidade de água para um campo de golfe construído para as Olimpíadas (Altino, 2015). O Termo de Reconhecimento Recíproco de Direitos e Obrigações que entre si celebram o Estado do Rio de Janeiro, a Cedae e o Município do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, 2007) passou a responsabilidade da coleta, transporte e tratamento adequado dos esgotos sanitários e cobranças pela prestação desses serviços das “áreas faveladas” do município para a Prefeitura. Estas áreas 9
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https://www.youtube.com/watch?v=bQlVFuRFz_s
são definidas como oriundas de ocupações irregulares, de uso predominantemente habitacional, caracterizada por ocupação irregular de terra, por população de baixa renda, normalmente dotada de infraestrutura urbana e serviços públicos precários, vias estreitas e de alinhamentos irregulares, lotes de forma e tamanho irregulares e construções não licenciadas pelo poder público. Esta abordagem perpetua uma política institucional segregacionista e compromete a qualidade dos serviços. Por exemplo, no serviço de distribuição de água de abastecimento não há a definição dos volumes de água que serão disponibilizados (Britto, 2011). A tentativa de transferência de responsabilidade para a prefeitura não rendeu avanços, além de gerar o agravamento das condições de operação e de manutenção dos sistemas, já que há uma limitação da estrutura da prefeitura para realizar tais ações pela falta de investimento e estrutura operacional10. Esta situação se manteve até um novo acordo entre Cedae e Prefeitura ter sido anunciado em 2012, onde 19 comunidades “pacificadas” voltariam a ser responsabilidade da Cedae11. A diferenciação da titularidade do serviço, deixando a Prefeitura responsável pelo saneamento nas favelas, reafirma que estes locais, quando possuem ou têm algum serviço estruturado, o mesmo é pior do que no restante do município onde a Cedae é responsável. Neste cenário, várias comunidades, diante da negligência da prefeitura, possuem e administram seus próprios sistemas. Outro exemplo de projeto que manteve a iniquidade do acesso é o inconcluso Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), iniciado em 1991, que sofreu sucessivas prorrogações na sua execução a ponto de o Sistema de Esgotamento de Alegria não ter sido concluído até hoje, embora já exista, inclusive, a necessidade de expansão da mesma. A Figura 1, a seguir, disponível no site oficial da Cedae, apresenta o sistema, indicando os trechos dos coletores-tronco de esgoto executados em verde, bem como os troncos que ainda não foram executados (Manguinhos e Faria-Timbó), em vermelho. Observando as comunidades que ainda não tiveram os trechos executados, mesmo com a ETE Alegria localizada nas proximidades, são exatamente as áreas onde estão localizadas as favelas da Maré, Manguinhos e Alemão.
10 http://of.org.br/noticias-analises/quem-cuida-do-esgoto-das-favelas/ 11 http://www.jb.com.br/rio/noticias/2012/02/27/prefeitura-do-rio-passou-dois-anos-sem-investir-emsaneamento-em-favelas/
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Figura 1. Sistema Alegria de esgotamento sanitário, com a indicação dos coletores-tronco executados (em verde) e os coletores a serem executados (em vermelho). Fonte: Cedae. http://www.cedae.com.br/. Acesso em 15 de dezembro de 2015.
À luz da epidemiologia, essas comunidades deveriam ter sido priorizadas, exatamente por serem mais vulneráveis, de baixa renda, com maiores densidades populacionais e insalubres. Além disso, Maré e Manguinhos são áreas frequentemente inundáveis pelas águas contaminadas. Entretanto, as áreas que foram priorizadas correspondem aos bairros populares e de classe média do Centro, Tijuca, São Cristóvão, dentre outros. O traçado desses coletores indica a injustiça ambiental que as favelas continuam a sofrer. Um aspecto preocupante em relação ao direito à água está no risco da política de privatização dos serviços de saneamento, atualmente em curso, em que o lucro da prestação de serviços é direcionado para os acionistas das empresas privadas, cujo argumento, o da viabilidade econômica, pode comprometer a universalização dos serviços. Atualmente, o serviço de esgotamento sanitário da região correspondente à 102
área de planejamento AP-5 12, que engloba quase a metade do território do município e apresenta o maior aumento populacional, é uma concessão do Consórcio Foz Águas 5, desde 2012. De acordo com o presidente da Comissão de Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social, deputado Paulo Ramos (PSol), os moradores e trabalhadores da região denunciaram que a empresa que presta serviços de saneamento, a Foz Águas 5, não está executando o trabalho com a qualidade esperada, mesmo com o aumento da tarifa 13. Em outros municípios, como Rio das Ostras, há a dificuldade de pagamento dos serviços previstos no contrato de outra parceria público-privada responsável pelo esgotamento sanitário pela redução da arrecadação pelos royalties de petróleo 14. Outra questão referente aos serviços de saneamento é a dificuldade no acesso aos dados, como os planos diretores setoriais, o detalhamento dos projetos, a existência de manobras na rede, sem planejamento e divulgação, a falta de transparência nos custos e nos critérios de priorização das obras, o que compromete o direito à informação, a participação e o controle social, preconizados em diversas regulamentações das políticas públicas. O Plano Diretor de Esgotamento Sanitário da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e das Bacias Contribuintes à Baía de Guanabara é de 1994 (Cedae, 1994) e consequentemente obsoleto. Segundo o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB-RJ), “cabe frisar que este Plano não sofreu quaisquer revisões e, portanto, é o que está atualmente em vigor” (Rio de Janeiro, 2011). Os planos municipais não substituem a necessidade do estado em sistematizar as informações na escala metropolitana.
4. Análise do Plano Municipal de Saneamento da Cidade do Rio de Janeiro O planejamento poderia ser uma ferramenta para reduzir os problemas das iniquidades no saneamento ambiental do município por meio da adoção de medidas efetivas de reversão do quadro desigual em que o município se encontra, primeiramente em relação às áreas de 12 A AP5, mais conhecida como Zona Oeste, compreende as Regiões Administrativas: Realengo, Bangu, Campo Grande, Santa Cruz e Guaratiba. (Rio de Janeiro, 2011) 13 http://www.jb.com.br/rio/noticias/2015/09/13/comissao-de-trabalho-da-alerj-discute-privatizacao-da-cedaena-zona-oeste/ 14 http://odia.ig.com.br/odiaestado/2015-09-13/rio-das-ostras-impasse-poe-saneamento-do-municipio-emrisco.html
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favelas e também nas áreas de Planejamento AP-4 e AP-5, que são historicamente carentes de investimento em serviços básicos (Rio de Janeiro, 2011). Estas medidas deveriam ser integradas aos outros planos, como o plano diretor, plano de bacia hidrográfica, de recursos hídricos, de manejo de unidades de conservação, etc. Entretanto, o planejamento no Brasil é uma etapa geralmente negligenciada institucionalmente pelos diversos níveis e escalas, comprometendo a criação de uma visão de futuro que contemple a melhoria nas condições de acesso aos serviços de saneamento como um todo. No setor de saneamento básico, a partir da Lei no. 11.445/2007, a elaboração dos Planos Municipais de Saneamento Básico (PMSB) passou a ser uma exigência para o município acessar linhas de financiamento do governo federal. Desde a origem, esta exigência foi marcada por questionamentos quanto ao prazo de execução, à capacidade técnica-gerencial das prefeituras viabilizarem-na e à própria ausência, à época, do plano nacional de saneamento, bem como à falta de vontade política, já que as intervenções no saneamento eram normalmente realizadas por meio de clientelismo. A data limite de apresentação desses planos sofreu duas prorrogações (Brasil, 2010; Brasil, 2014), sendo o último prazo estabelecido para o fim de 2015, porém nem todos os municípios cumpriram com esta obrigação. Na Bacia Hidrográfica da Baía da Guanabara, alguns planos15, que já foram publicados, apresentam problemas, como diagnósticos incompletos e a prática de copiar e colar trechos comprometendo a definição das ações que devem ser específicas para cada realidade. Esta prática é muito comum por parte de consultorias que, por não conhecerem a realidade local, generalizam os problemas e soluções como se os municípios tivessem que percorrer os mesmos caminhos para a solução dos seus problemas, que são distintos. Os riscos dessa prática já tinham sido sinalizados por sanitaristas na 40a Assembleia Nacional da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), realizada em 14 de junho de 2010, em Uberaba, MG. O Decreto n.º 34.290, de 15 de agosto de 2011 (Rio de Janeiro, 2011), que aprova o Plano Municipal de Saneamento para os Serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário do município do Rio de Janeiro (PMSB-RJ), já indica, em seu título, que não contemplou o escopo do saneamento básico, conforme a Lei n.º 11.445/2007, mas somente os sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. A parte do plano referente à drenagem de 15 https://pmsbguanabara.wordpress.com/
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águas pluviais está sendo elaborada pelo Instituto das Águas do Município do Rio de Janeiro (Rio-Águas). O manejo de resíduos sólidos também não foi contemplado pelo plano. Na escala municipal, a elaboração dos estudos dos componentes do saneamento, de forma fragmentada, em épocas distintas, traz problemas no diagnóstico, na articulação das ações e no cumprimento de metas. O PMSB-RJ foi concluído, de forma parcial, em 2011 e deveria ser revisto após quatro anos, entretanto ainda não há um indicativo, por parte do município, de quando esta revisão ocorrerá. Isso revela outro problema do planejamento no setor de saneamento no Rio de Janeiro, que é a integração das ações das diversas instituições responsáveis pelo manejo de águas no município. Como já foi citado, o serviço de abastecimento de água e de esgotamento sanitário é de responsabilidade da Cedae em grande parte do município, com exceção das áreas favelizadas e da AP-5 (onde o esgotamento sanitário é de responsabilidade do Grupo Foz Águas 5), e o serviço de drenagem e manejo de águas pluviais é de responsabilidade da Rio-Águas. Como parte do sistema de coleta de esgoto ainda está indevidamente acoplado ao sistema de águas pluviais, é necessária uma ação conjunta das instituições na alteração, operação e manutenção destes sistemas, que são geridos por instituições distintas. Outra questão é que na AP-5, a Rio-Águas acumula a função de reguladora do contrato de prestação do serviço de esgotamento sanitário. Na Portaria Rio-Águas no.133/2013 (RioÁguas, 2013), consta: A RIOÁGUAS poderá desenvolver através da Diretoria de Saneamento o acompanhamento “on line” dos principais dispositivos de controle dos serviços concedidos, independente da formalização processual dos assuntos que forem necessários, gerando dados e relatórios oficiais para divulgação externa. Até o presente momento, no site da Rio-Águas, não foi disponibilizado nenhum relatório de acompanhamento, mantendo-se a prática de dificuldade no controle social por meio do acesso às informações. A regulação da Cedae é recente (desde agosto de 2015) e é feita pela agência Agenersa16, que iniciou os procedimentos para que o processo seja efetivo por meio da elaboração de manuais. A regulação e fiscalização é importante para a garantia da qualidade dos serviços e para a organização e divulgação de dados sobre o saneamento. 16 http://www.agenersa.rj.gov.br/agenersa_site/index.php?option=com_content&view=category&id=52&Itemid=91
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No esgotamento sanitário são descritas várias obras que faziam parte do acordo para o Rio de Janeiro ser sede das Olimpíadas de 2016 e que, até o presente, não foram realizadas conforme o plano apresentou, perpetuando a prática de se prometer a solução dos problemas de saneamento e depois se voltar atrás, dando prioridade a outras obras de maior visibilidade. No diagnóstico apresentado pelo PMSB-RJ, a intermitência no serviço de abastecimento público de água não é abordada, o que contraria a orientação da Portaria MS no. 2.914 (Brasil, 2011). O risco na ampliação dos reservatórios domiciliares decorrentes da falta de água e da precariedade do manejo das águas pluviais e dos resíduos sólidos pode interferir no aumento de criadouros de Aedes aegypti, vetor transmissor dos vírus da zika, dengue e chikungunya (Monteiro; Augusto, 2015). Os dados sobre a qualidade da água de abastecimento público fornecidos são defasados (2000 a 2002), além de não apresentarem os dados de qualidade nos pontos da rede de distribuição. Como a ETA Guandu é centralizada e a área de cobertura é extensa, a rede de distribuição é um risco potencial de contaminação, tanto pelo seu alto índice de perdas, quanto pela intermitência em determinados trechos gerando pressão negativa e potencializando a entrada de microrganismos patogênicos. É obrigação da concessionária garantir a qualidade da água, não somente na saída do tratamento como também em qualquer ponto da rede de distribuição, de acordo com as normas vigentes, o que deve ser verificado por meio das ações de monitoramento da vigilância em saúde. Entretanto, o município do Rio de Janeiro não tem cumprido nem 50% da meta de controle dos parâmetros de turbidez, cloro residual e coliformes totais/Esheirchia coli (Guerra, 2015). A ausência desses dados compromete a adoção de metas e, consequentemente, a melhoria no monitoramento e controle deste serviço. No caso das áreas favelizadas, o PMSB-RJ exclui estas áreas do seu plano de metas para a universalização do abastecimento público de água (Rio de Janeiro, 2011). Essa ausência de metas para as áreas mais vulnerabilizadas caracteriza uma injustiça ambiental que se perpetua nas práticas e nas políticas públicas de saneamento no município do Rio de Janeiro, comprometendo a melhoria no acesso ao serviço e na redução das iniquidades em saneamento e saúde. 106
Para finalizar a avaliação do plano, de acordo com o documento, o saneamento ainda não possui no Rio de Janeiro uma instância de controle social, mesmo sendo uma prerrogativa estabelecida na lei de saneamento, definida no Decreto n.º 33.767/2011, ainda como conselho consultivo.
5. Uma mudança de curso A luta pela democratização da água no Brasil implica na expansão e aprofundamento do debate sobre os direitos humanos e sobre as iniquidades socioambientais em saneamento e saúde. A incorporação do acesso à água limpa e segura e ao esgotamento sanitário adequado enquanto direitos humanos e de suporte à vida na Constituição Federal, nas constituições estaduais, nas regulamentações municipais e nos instrumentos de planejamento, a exemplo dos planos municipais de saneamento, poderá ser estratégica em um movimento contrário à mercantilização insustentável das águas e dos recursos naturais. A crise multiescalar das águas envolve os aspectos quantitativos e qualitativos da gestão hídrica e revela, atualmente, de forma dramática, a interdependência entre os sistemas de saneamento, os recursos naturais e a mobilização social, bem como da necessidade de políticas públicas intersetoriais que avancem na perspectiva do saneamento ambiental. Os caminhos das águas da cidade do Rio de Janeiro, desde a ETA (Estação de Tratamento de Água) Guandu até a ETE (Estação de Tratamento de Esgoto) Alegria, revelam a injustiça ambiental na política, gestão e oferta de água segura para consumo humano bem como no sistema de esgotamento sanitário adequado. O PMSB-RJ é uma expressão, um espelhamento das injustiças ambientais geradas pelo modelo de desenvolvimento e pelas políticas de saneamento, historicamente marcadas pela segregação socioespacial, alicerçada em uma visão tecnocrática, verticalizada e discriminatória. Na medida em que não enfrenta de forma prioritária as iniquidades sociais em saneamento, acaba por ratificá-las em sua metodologia, em seu diagnóstico e em suas metas. As favelas sofrem de invisibilidade social no próprio plano. A elaboração na escala municipal dos planos de mapas com a delimitação das áreas, não somente providas de redes de abastecimento de água, mas com a demarcação dos setores com 107
fornecimento contínuo e intermitente e das áreas com manejo inadequado das águas pluviais, sujeitas a alagamentos, é necessária para a elaboração dos estudos epidemiológicos das doenças relacionadas com a água, seja pela transmissão hídrica de microrganismos, ou pela proliferação de criadouros de vetores. A falta de sistematização dessas informações nos planos municipais dificulta as intervenções de vigilância em saúde e de prevenção de doenças. A população observa apenas a “ponta do iceberg” com relação à precarização dos sistemas de saneamento e seus impactos na desigualdade hídrica. O poder público não fornece as informações adequadas e por outro lado procura responsabilizar unicamente a população pela escassez hídrica. As informações sobre os serviços de saneamento são imprescindíveis para a comunicação em saúde, de forma que permitam à população contribuir com ações de saúde coletiva nas escalas habitacional, comunitária, nos bairros e no município. O saneamento ainda não possui, no Rio de Janeiro, uma instância de controle social, mesmo sendo uma prerrogativa estabelecida nas regulamentações. Não obstante, a sociedade civil organizada está se mobilizando e reivindicando que a lei de saneamento seja cumprida e que os problemas de falta de continuidade, transparência e qualidade sejam resolvidos. Neste sentido, a título de exemplo, temos a participação do Movimento Pró-Saneamento de São João de Meriti, que acompanhou a elaboração do PMSB daquele município e que continua na busca de uma cidade mais justa para todos. Há, também, o Movimento Baía Viva, que denuncia a degradação da Baía de Guanabara, a falta de saneamento e os riscos à saúde decorrentes da poluição das águas, e que reúne em suas ações organizações, pescadores, ambientalistas, esportistas, professores, estudantes, etc (Manifesto Baía Viva, 2015). O atual PMSB-RJ precisará ser renovado em 2016, o que implica a necessidade de um processo de mobilização social, acadêmico e institucional para que haja uma mudança de curso na consecução do mesmo, de forma que o escopo, a metodologia, e o processo como um todo possam oxigenar o debate e a definição das prioridades das políticas públicas tendo como objetivo a universalização do saneamento, a promoção da saúde ambiental e humana, com a proteção aos grupos mais vulneráveis. Como fonte de inspiração, finalizamos com a mensagem de encerramento de Oscar Oliveira, liderança do movimento contra a privatização das águas, conhecido mundialmente 108
como Guerra da Água, ocorrido em Cochabamba, na Bolívia (1999-2000), e apresentada no Seminário Internacional da Comissão Especial sobre o Colapso Hídrico: “Que Rio de Janeiro, o nome de nossa cidade, de nosso território, seja como isso: o rio que, antes de nos dividir como uma fronteira, nos possibilite o reencontro, o reconhecimento entre todos e todas nós. Que o rio seja, então, a fonte de água da qual possamos tomar a alegria, a transparência e o movimento na luta. Até a vitória!”
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A crise no abastecimento de água: Um olhar diferenciado através da lente dos Direitos Humanos Por Léo Heller1
O direito humano à água potável e ao saneamento básico foi explicitamente reconhecido por resoluções aprovadas na Assembleia Geral da ONU2 em julho de 2010 e no Conselho de Direitos Humanos3 em setembro de 2010, com forte apoio do governo brasileiro. A resolução da Assembleia Geral afirma explicitamente que esse direito “é essencial para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos”, o que pode ser entendido em conjunto com outras definições de direitos humanos, por exemplo, que “todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados”4. Essa ultima afirmação significa que o acesso à água potável e ao saneamento básico deveria ser considerado uma pré-condição fundamental para o “gozo de vários direitos humanos, incluindo os direitos a educação, moradia, saúde, vida, trabalho...” e deveria garantir igualdade de gênero e não-discriminação5. Especificamente, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reconheceu que o direito à saúde se estende aos determinantes subjacentes do assunto, inclusive o acesso à água potável e ao saneamento básico6. A combinação desses conceitos resulta na prerrogativa desses direitos aos cidadãos (incluindo o direito a reivindicá-los através do sistema legal) e em obrigações por parte dos Estados Nacionais e dos prestadores dos serviços. 1 Léo Heller é relator especial da ONU do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário. Foi Professor do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFMG e atualmente é pesquisador do Centro de Pesquisa René Rachou, Fiocruz. Título original: The crisis in water supply: how diferent it can look through the lens of the human right to water? 2 United Nations. General Assembly Resolution A/RES/64/292. The human right to safe drinking water and sanitation. http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/64/292. 3 Human Rights Council Resolution A/HRC/RES/15/9. Human rights and access to safe drinking water and sanitation. http://daccess-ods.un.org/TMP/5257991.55235291.html. 4 Vienna Declaration and Programme of Action. Adopted by the World Conference on Human Rights in Vienna on 25 June 1993. http://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/Vienna.aspx. 5 UN Office of the High Commissioner for Human Rights; UN Habitat; World Health Organization. The right to water. Fact Sheet n. 35. http://www.ohchr.org/EN/PublicationsResources/Pages/FactSheets.aspx. 6 Committee on Economic, Social and Cultural Rights. General Comment n. 15 on the right to the highest attainable standard of health. http://tbinternet.ohchr.org/_layouts/treatybodyexternal/Download. aspx?symbolno=E%2fC.12%2f2002%2f11&Lang=en
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Alcançar esse direito humano à água e ao saneamento (RtWS) significa garantir água com disponibilidade, acessibilidade, qualidade, segurança e a preço acessível, atendendo aos requisitos de aceitabilidade, dignidade e privacidade. Na medida em que o Brasil agora enfrenta uma dramática crise no suprimento de água, afetando severamente suas regiões mais populosas, urbanizadas e industrializadas, o paradigma do direito a água e saneamento fornece uma valiosa perspectiva para analisar a situação. Primeiro, analisando as raízes da atual crise, se os fornecedores de água tivessem respeitado os princípios do direito à água e ao saneamento, a atual oscilação climática não se teria convertido em falta de água para consumo humano. Princípios-chave do direito à água e ao saneamento incluem “maximizar os recursos disponíveis” e a necessidade de planejamento apropriado para assegurar o acesso à água. Acrescenta-se ainda que qualquer retrocesso no acesso viola o direito à água. Podemos afirmar seguramente que, se houvesse sido devidamente adotado um planejamento adequado para o suprimento de água nas localidades afetadas, enfatizando-se a segurança hídrica, o problema não se apresentaria com a intensidade atual. Quando é realizada a simulação de cenários futuros, um planejamento estratégico apropriado deve levar em consideração situações climáticas com baixa probabilidade de ocorrência, dentre outras variáveis7. As principais tendências contemporâneas no planejamento hídrico defendem um planejamento estratégico, criativo, participativo, e no qual um sistema hídrico adaptável deveria ser desenvolvido com a capacidade para aprendizagem social8. Se o planejamento hídrico no Brasil tivesse incorporado eficientemente esses princípios, as cidades brasileiras teriam aumentado sua resiliência a situações de estresse hídrico. Uma segunda questão que merece um olhar a partir da perspectiva do direito à água e ao saneamento é o conjunto de medidas adotadas para lidar com a crise. Essas medidas deveriam agora ser a preocupação central, uma vez que, durante qualquer restrição ao consumo, os grupos populacionais mais severamente afetados são justamente os mais vulneráveis. Grupos desfavorecidos têm menos recursos para lidar com a escassez de água devido a sua baixa capacidade econômica e são os mais fortemente impactados, especialmente no que concerne 7 Heller L, Rodrigues LA, Silveira RB. Scenarios for environmental sanitation in Brazil. Water Policy 2014; 16:501-19. 8 Pahl-Wostl C. Towards sustainability in the water sector: the importance of human actors and processes of social learning. Aquat Sci 2002; 64:394-411; Pahl-Wostl C, Jeffrey P, Isendahl N, Brugnach M. Maturing the new water management paradigm: Progressing from aspiration to practice. Water Resources Management 2011; 25:837-56; Shammout MW, Shatanawi M, Naber S. Participatory optimization scenario for water resources management: a case from Jordan. Water Resources Management 2013; 27:1949-62.
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à saúde. Populações vulneráveis incluem não somente os pobres, como os moradores de favelas, mas também os idosos, crianças, sem-teto, deficientes físicos, presidiários, pacientes hospitalizados e população escolar. A situação atual do Brasil demanda que os princípios do direito à água e ao saneamento sejam colocados no centro da agenda daqueles com poder decisório. O manejo da crise no abastecimento de água, através de medidas como racionamento, redução da pressão nos encanamentos, multas aos grandes consumidores e campanhas contra o desperdício, não deveria pressupor que os usuários sejam impactados de maneira uniforme. Enfrentar a crise demanda não apenas medidas universais, mas também medidas dirigidas, com foco nos grupos mais vulneráveis, no sentido de protegê-los dos efeitos das restrições de água e garantir a nãodiscriminação e o não retrocesso nos princípios do paradigma do direito à água e ao saneamento. A literatura científica explicou adequadamente e relatou exaustivamente os efeitos na saúde de um suprimento inadequado de água e saneamento. No entanto, retrocessos no acesso à água causados por medidas restritivas desafiam nossa capacidade de prever os tipos e a intensidade de riscos aos quais a população será exposta. A classificação ambiental de doenças relacionadas à água considera quatro grupos distintos de mecanismos de transmissão: 1) quando os patógenos são transmitidos através do consumo de água contaminada; 2) transmitidas por higiene pessoal e doméstica inadequada; 3) causadas por patógenos que passam parte do seu ciclo de vida em um animal aquático, sendo a esquistossomose9 o exemplo mais comum; e 4) transmitidas por insetos vetores que se reproduzem na água ou atacam próximo a ela10. Uma classificação similar foi desenvolvida para infecções relacionadas a excrementos11, que também poderá ser utilizada para lidar com a situação, considerando que a escassez de água impacta o descarte do esgoto (mas isso foge ao escopo deste artigo). 9 N.T.: A esquistossomose é uma doença parasitária, transmissível, causada por vermes trematódeos do gênero Schistossoma. O parasita, além do homem, necessita da participação de caramujos de água doce para completar seu ciclo vital (Sociedade Brasileira de Infectologia, 2005) 10 White GF, Bradley DJ, White AU. Drawers of water: domestic water use in East Africa. Chicago: University of Chicago Press; 1972; Ensink JHJ, Cairncross S. Abastecimiento de agua, saneamiento, higiene y salud pública. In: Heller L, editor. Agua y saneamiento: en la búsqueda de nuevos paradigmas para las Américas. Washington DC: Organización Panamericana de la Salud; 2002. p. 1-24. 11 Feachem RG, Bradley DJ, Garelick H, Mara DD. Sanitation and disease: health aspects of excreta and wastewater management. Chichester: John Wiley & Sons; 1983.
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A classificação de doenças relacionadas à água pode ser utilizada como referência para analisar potenciais impactos da escassez hídrica. A transmissão de doenças através dos mecanismos 1, 2 e 4 pode aumentar quando medidas restritivas são adotadas. No entanto, diferentemente das situações usuais, os impactos estão a ocorrer em uma condição “transitória”, não em uma condição “estável”, na qual a população passou por um longo período de adaptação ao suprimento de água com quantidade e qualidade adequadas e já adotou uma rotina específica de práticas de higiene. Isso poderia ser um fator exacerbante em relação aos impactos esperados na condição estável. Através do primeiro mecanismo, é plausível esperar por diferentes razões para a deterioração da água potável. Primeiro, a operação da rede de distribuição com uma presença intermitente de água é uma situação bem conhecida, na qual a água pode ser contaminada pela infiltração de patógenos do solo nas tubulações, causada pela pressão negativa dentro destas. Segundo, o armazenamento doméstico de água em recipientes improvisados (para enfrentar períodos de falta de água), juntamente com a manipulação da água dos tanques, claramente ameaça a qualidade da água. O segundo mecanismo parece evidente, considerando que os lares receberão menos água no período. A literatura fornece ampla evidência de que as práticas de higiene são fortemente afetadas em tais casos12. Mais importante, a prática de emitir multas para o consumo de água que exceda a média histórica (adotada ou planejada por alguns fornecedores) pode resultar, em alguns casos, em um consumo de água abaixo das necessidades essenciais. Esses dois primeiros mecanismos podem facilitar a disseminação de diversas infecções e doenças parasitárias, como vírus, bactérias e protozoários como os agentes etiológicos13. No que concerne ao quarto mecanismo, as atuais restrições ao consumo de água e o ceticismo resultante da população quanto à regularidade do fornecimento de água pública são uma poderosa combinação para o armazenamento doméstico de água, algumas vezes estocada em tonéis descobertos ou precariamente cobertos e com um manejo inseguro. A estocagem de água fornece um ambiente propício para a reprodução de vetores. Chama a atenção o fato de 12 Bartram J, Cairncross S. Hygiene, sanitation, and water: forgotten foundations of health. PLoS Med 2010; 7:e1000367. 13 Agente causador de determinada doença.
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que restrições ao consumo de água frequentemente ocorrem em período chuvoso, como medida preventiva, precisamente quando os surtos urbanos de dengue são mais comuns. Novas práticas no manejo da água causadas por tais restrições podem, de fato, ter agravado a transmissão dos vírus da dengue e da febre chikungunya14. A abordagem do direito à água e ao saneamento fornece uma perspectiva diferente para examinar essas previsões. Os riscos à saúde não são distribuídos igualmente ou aleatoriamente pela população. Grupos mais ricos podem mais facilmente proteger-se contra a crise pagando caminhões-pipa, furando poços ou comprando grandes quantidades de água engarrafada15, entre outras medidas. O direito à água e ao saneamento demanda que o setor público proteja os mais vulneráveis, minimizando os impactos sociais da crise. No setor da saúde, a crise no suprimento de água desafia a vigilância epidemiológica e ambiental a incrementar a mobilização e a se concentrar nos riscos relacionados à água sofridos pelos grupos populacionais mais vulneráveis. Finalmente, a atual crise hídrica brasileira destaca a importância de outros dois princípios do direito à água e ao saneamento: transparência e participação. As autoridades governamentais e as companhias que prestam serviço de abastecimento deveriam ser tão transparentes e responsabilizadas quanto possível, a fim de manter a população informada sobre a situação e seus possíveis desdobramentos. Restrições ao abastecimento não deveriam ser vistas como decisões meramente “técnicas”. De fato, diferentes soluções podem ser consideradas para lidar com a escassez de água, e a tomada de decisão desse tipo não é neutra, implicando consequências sociais. Processos decisórios democráticos, com a participação das comunidades mais afetadas, são a melhor forma de minimizar os impactos da crise, especialmente na saúde.
14 N.T.: Recentemente, pode-se acrescentar o vírus da Zika, transmitido pelo mesmo vetor (Aedes Aegypti) e cujas consequências para a saúde de mães e bebês vêm sendo motivo de grande preocupação das autoridades. 15 Queiroz JTM, Doria MF, Rosenberg M, Heller L, Zhouri A. Perceptions of bottled water consumers in three Brazilian municipalities. J Water Health 2013; 11:520-31.
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Água - direito humano fundamental e bem comum - e as mudanças climáticas Por João Alfredo Telles Melo1 e Geovana de Oliveira Patrício Marques2
1. Introdução Este artigo faz o debate acerca do Direito à Água em tempos de mudanças climáticas, analisando como esse direito é tratado em nossa legislação, nos documentos mais recentes da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Parlamento Europeu e ainda pelo novo constitucionalismo latino-americano. A negação desse direito se configura como uma injustiça hídrica, conceito novo que decorre da concepção já consagrada de (in)justiça ambiental. Inicialmente, é importante apresentar o atual contexto da crise hídrica como parte da crise planetária, com características socioambiental e civilizacional. Posteriormente, será feito o debate acerca do Direito à Água, corolário de outros dois direitos fundamentais, o da Saúde e do Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado. Sua negação, ou seja, os entraves ao acesso ao uso da água serão analisados como casos de injustiça hídrica, o que nos remete aos conflitos distributivos. A terceira parte do artigo se voltará à apresentação de como esse direito vem sendo tratado mais recentemente pelo Direito Internacional, especialmente no âmbito das Nações Unidas, do Parlamento Europeu e desse novo constitucionalismo dos Estados-nação tributários da cosmovisão andina do Bem Viver, onde se apontam saídas para os conflitos distributivos decorrentes dessa crise de escassez. 1 João Alfredo Telles Melo é bacharel e mestre em Direito (Universidade Federal do Ceará). Atualmente é vereador da cidade de Fortaleza/CE pelo PSOL e professor de Direito Ambiental da Faculdade 7 de Setembro, atuando principalmente em temas relacionados ao direito e à justiça ambiental. 2 Geovana de Oliveira Patrício Marques é advogada.
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2. A crise hídrica: parte da crise socioambiental planetária e civilizacional Nosso planeta está mergulhado em uma crise socioambiental de natureza planetária e civilizacional de dimensões impressionantes. Suas faces mais graves e mais visíveis são o superaquecimento da Terra e as mudanças climáticas. Ainda que já tenha sido apresentado, em 2015, o 5º Relatório de Avaliação de Mudanças Climáticas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, em sua sigla em inglês)3, foi a divulgação do relatório anterior, em fevereiro de 2007, que causou um grande impacto, dadas as suas gravíssimas conclusões, ao observar, no que diz respeito às mudanças no clima e seus efeitos, que o aquecimento do sistema climático é inequívoco, e que suas causas, ligadas à emissão de gases do efeito estufa (GEEs), são antropogênicas, e não naturais, e que seus impactos sobre a natureza e a sociedade já se fazem sentir. A situação atual já beira a tragédia: o ano de 2015 foi o mais quente já registrado desde que começaram as medições, em 1880, informaram a Administração Nacional do Espaço e da Aeronáutica (NASA) e a Agência Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA). Segundo as referidas instituições, a temperatura do planeta ficou 0,9 ºC acima da média do século XX e 0,16 ºC acima do recorde anterior, registrado em 20144. As projeções da ciência do clima já apontam para a perspectiva de acréscimo de catastróficos 3 ºC na temperatura média do planeta5. No entanto, o aquecimento global e as mudanças climáticas são apenas a face mais visível de uma crise maior, que se relaciona à atual configuração do modo de produção capitalista com seu modelo de desenvolvimento fundado na matriz fóssil e em uma visão produtivista - e sustenta um modo de vida das elites econômicas mundiais baseado no consumo perdulário, que é, a um só tempo, ambientalmente insustentável e socialmente injusto, não só em escala regional ou nacional, mas no âmbito planetário. 3 IPCC. Fifth Assessment Report (AR5). Disponível em: <http://www.ipcc.ch/report/ar5 /index.shtml>. Acesso em: 28 mar. 2015. 4 Disponível em: <https://www.nasa.gov/press-release/nasa-noaa-analyses-reveal-record-shattering-global -warm-temperatures-in-2015>. Acesso em: 02 fev. 2016. 5 GÜTSCHOW, J. et al. INDCs lower projected warming to 2.7°C: significant progress but still above 2°C. Climate Action Tracker. Disponível em: <http://climateactiontracker.org/ publications/briefing/223/ INDCs-lower-projectedwarming-to-2.7C-significant-progress-but-still-above-2C-.html>. Acesso em: 25 out. 2015.
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Trata-se não somente de uma crise ambiental e social, mas de uma crise da própria civilização do capital, de sua lógica econômica, de seu modelo de desenvolvimento, de seu modo de vida e de seus valores, que engendram, a um só tempo, uma desigualdade social cada vez mais abissal entre uma “oligarquia global” – onde “[...] a renda das 500 pessoas mais ricas do mundo é maior do que a de 416 milhões de pobres do planeta”6– e os mais de 1 bilhão de humanos que sobrevivem com menos de 1 dólar por dia, além da destruição acelerada das bases naturais que sustentam a vida em nosso planeta. Hoje, os dados ainda são mais graves do que aqueles levantados em 1980. Segundo o Comitê de Oxford para Alívio da Fome (OXFAM), o conjunto da riqueza acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial agora equivale, pela primeira vez, à riqueza dos 99% restantes7. A crise socioambiental tem refrações múltiplas, dentre elas o estresse hídrico que se manifesta em ordem planetária. A Empresa Brasil de Comunicação (2014) divulgou os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), que mostram que um total de 748 milhões de pessoas não têm acesso à água potável de forma sustentada em todo o mundo. Calcula-se, ainda, que outros 1,8 bilhão usem uma fonte que está contaminada com fezes. É importante ressaltar que acesso à água potável e ao saneamento adequado tem implicações em aspectos que vão desde a redução da mortalidade infantil à saúde materna, passando também pelo combate às doenças infecciosas, pela redução de custos sanitários e pelo meio ambiente. A crise hídrica que algumas regiões do Brasil estão enfrentando não é um fenômeno atual, mas já vem ocorrendo há muito tempo no mundo, sendo caracterizada não apenas pela seca e pela falta de água em regiões como no Nordeste e Sudeste do país, mas também por extremos hidrológicos, como as inundações que estão acontecendo na região Sul. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) apresenta os estudos do Instituto Internacional de Ecologia (IIE), que apontam que em 2014, por exemplo, foi registrada a pior seca no Nordeste e a maior enchente em Foz do Iguaçu, no Paraná, enquanto o Rio Grande do Sul e Santa Catarina são afetados por um volume de chuva excepcional, causando enchentes8. 6 KEMPF. Como os ricos destroem o planeta. Tradução Bernardo Ajzenberg. São Paulo: Editora Globo; 2010, p. 65. 7 Disponível em: <http://www.oxfam.org.br/noticias/relatorio_davos_2016>. Acesso em: 02.fev. 2016. 8 Disponível em: <http://agencia.fapesp.br/crises_hidricas_tendem_a_se_agravar_afirma_especialista/21 526/>. Acesso em: 02 fev. 2016.
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O aumento da população em áreas urbanas que demandam grandes volumes de água e produzem enormes quantidades de resíduos sólidos e líquidos, além da competição pelo uso do recurso natural, são alguns dos fatores que geram e potencializam a crise hídrica. De acordo com o IIE, os recursos hídricos continentais, que representam apenas 2,7% do volume total de água doce da Terra, são usados hoje para múltiplas atividades humanas, como para as produções industrial e agrícola e para o abastecimento residencial. As mudanças no uso da terra, como a conversão de áreas de floresta para a plantação ou pecuária, têm afetado a evapotranspiração. Na reportagem Líquido e Incerto – O Futuro dos Recursos Hídricos do Brasil, publicada no jornal Folha de São Paulo em 2015, o Brasil, com 12% a 16% da água doce disponível na Terra, é um país rico desse insumo9. Cada habitante pode contar com mais de 43 mil m³ por ano dos mananciais, mas apenas 0,7% disso termina sendo utilizado. Em primeiro lugar, há o problema da distribuição: a água é mais abundante onde menor é a população e onde mais preservadas são as florestas, como na Amazônia. No litoral do país, assim como nas regiões Sudeste e Nordeste, muitas cidades já enfrentam dificuldades de abastecimento. Somam-se ao cenário de crise hídrica as crescentes emissões de dióxido de carbono (CO2) e de outros gases do efeito estufa, o que o potencializa. O Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), um comitê com alguns dos maiores especialistas do país em climatologia, fez projeções sobre as alterações prováveis nas várias regiões, mas com diferentes graus de confiabilidade. As mais confiáveis valem para a Amazônia (aumento de temperatura de 5 °C a 6 °C e queda de 40% a 45% na precipitação até o final do século, com 10% de redução nas chuvas já nos próximos cinco anos); para o semiárido, no Nordeste (respectivamente, 3,5 °C a 4,5 °C e -40% a -50%); e para os pampas, no Sul (2,5 °C a 3 °C de aquecimento e 35% a 40% de aumento de chuvas)10. A região Nordeste do Brasil, marcada historicamente por condições desiguais de acesso à água, é a área que mais sofre com a seca no país. Segundo o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, a diminuição das chuvas no inverno deve chegar a 50% no fim do século11. 9 FOLHA DE SÃO PAULO. Líquido e Incerto – O Futuro dos Recursos Hídricos do Brasil. Disponível em: <http://arte. folha.uol.com.br/ambiente/2014/09/15/crise-da-agua/>. Acesso em: 24 out. 2015. 10 PBMC Impactos, vulnerabilidades e adaptação às mudanças climáticas. Contribuição do Grupo de Trabalho 2 do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas ao Primeiro Relatório da Avaliação Nacional sobre Mudanças Climáticas [Assad, E.D., Magalhães, A. R. (eds.)]. COPPE. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 414 p. 11 Idem.
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É sabido que os períodos de estiagem fazem parte da história do semiárido mais populoso do mundo, o Nordeste brasileiro. Mas é fato também que, no contexto da atual era das mudanças climáticas, o aquecimento global agravará essa situação, posto que os extremos climáticos – como secas e inundações – tendem a se tornar mais severos e frequentes. Isso para não falar que a crise hídrica bateu às portas com muita intensidade na região Sudeste do nosso país, o que confirma que já estamos em plena época de mudanças climáticas.
3. O direito humano fundamental à água: sua garantia e efetivação e a injustiça hídrica como negação desse direito O Direito Ambiental é, em última análise, resultante da atual crise socioambiental que coloca em risco não só a sobrevivência de nossa espécie, mas da vida como um todo em nosso planeta. O surgimento desse novo ramo jurídico, em escala internacional, pode ser encontrado nos documentos produzidos durante a 1ª Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, no ano de 1972, convocada para debater os problemas ambientais que já alcançavam uma dimensão global12. O impacto dessa crise no âmbito do Direito se dá no fenômeno recíproco que Benjamin13 denomina “Constitucionalização do Ambiente e Ecologização do Direito”, o que leva a doutrina a encontrar em nossa Carta Magna elementos do que poderia se chamar, com Canotilho14, de “Estado de Direito Democrático e Ambiental”, ou, em Sarlet e Fensterseifer15, de “Estado Socioambiental de Direito”, ou, ainda, em Leite16, de “Estado de Direito Ambiental”, para quem essa forma de organização deve buscar “[...] uma condição ambiental capaz de favorecer a harmonia entre os ecossistemas e, consequentemente, garantir a plena satisfação da dignidade para além do ser humano”. 12 MILARÉ, É. Direito do Ambiente. 9. Ed. Ver. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2014, p. 25. 13 BENJAMIN, A H. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira. In: CANOTILHO, J J G; LEITE, J R M (orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 2ª. Ed. Ver. São Paulo: Saraiva; 2008. 14 CANOTILHO, J J. G. Direito Constitucional Ambiental Português e da União Europeia. In: CANOTILHO J J G; LEITE, J R M (orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 2ª. Ed. Ver. São Paulo: Saraiva; 2008. 15 SARLET, I W; FENSTERSEIFER, T. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo W (org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; 2010. 16 LEITE, J R M. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial: teoria e prática. 4ª. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 2011, p. 53.
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A concepção de que a fórmula política de nossa Constituição de 1988 é um Estado de Direito Ambiental (ou, numa definição mais detalhista, Estado Democrático Socioambiental de Direito), decorre da síntese dialética “pós-positivista” que supera, nas palavras de Belchior, a antinomia jusnaturalismo x positivismo17, onde aos princípios é reconhecido o status de norma jurídica, sendo, portanto, autoaplicáveis (e não meras declarações de direitos). Marlmestein, ao se referir sobre o que designa “triunfo do Constitucionalismo”, com a renovação dos quadros e do pensamento do Supremo Tribunal Federal, observa, ao analisar a produção da Corte, que, “[...] hoje, está pacificado na jurisprudência do STF o entendimento de que, por força da máxima efetividade da constituição, é possível extrair dos princípios constitucionais comandos diretos ao legislador”18. Dentre esses princípios estão aqueles que se referem aos direitos fundamentais, que, no dizer de Machado19, são os que a pessoa “[...] tem não pelo seu merecimento ou pelos seus esforços, mas o que entra em seu patrimônio simplesmente pelo fato de seu nascimento”, ou seja, acrescentaríamos, porque decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos cinco fundamentos do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil (conforme o art. 1º. de nossa Carta Magna). É dentre esses direitos fundamentais – de natureza socioambiental, no preciso ensinamento de Sarlet e Fensterseifer20 – que se encontram os Direitos ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado, à Saúde e à Água; os dois primeiros positivados de maneira explícita em nossa Lei Maior. Ainda que estejam em artigos diferentes de nossa Constituição, não há como interpretar de forma independente o Direito à Saúde, previsto no art. 196, e o Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado, no art. 225. 17 BELCHIOR, G P N. Hermenêutica Jurídica Ambiental. São Paulo: Saraiva; 2011. p. 90. 18 MARLMESTEIN, G L. 25 anos da Constituição de 1988: presente, passado e futuro. In: CARVALHO, P R M de; ROCHA, M V (Orgs). 25 anos da Constituição de 1988: os direitos fundamentais em perspectiva. Fortaleza: Expressão Gráfica; 2013, p. 29, grifo nosso. 19 MACHADO, P A L. Direito Ambiental Brasileiro. 22.ed. ver, ampl. e atual. São Paulo: Malheiros; 2014, p. 507. 20 SARLET, I W; FENSTERSEIFER, T. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo W (org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; 2010.
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Observe-se: Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. [...]. Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações21. A relação entre a qualidade do meio ambiente – que deve ser ecologicamente equilibrado – e a sadia qualidade de vida prevista no art. 225 pode ser encontrada na síntese que é a definição de saúde pela Organização Mundial da Saúde (OMS), qual seja, “[...] um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”22. Não há, portanto, como se pensar uma vida digna em um ambiente – seja em suas dimensões natural, artificial ou cultural – que não seja equilibrado, saudável, sustentável. É em Machado que vamos encontrar a defesa de que também a água é um “direito humano fundamental”, posto que o acesso ao “precioso líquido”, em quantidade suficiente e em boa qualidade, é condição sine qua non para uma sadia qualidade de vida. Nas palavras do mestre, o acesso individual à água merece ser entendido como um direito humano universal, significando que qualquer pessoa, em qualquer lugar do planeta, pode captar, usar ou apropriar-se da água para o fim específica de sobreviver, isto é, de não morrer pela falta d’água, e, ao mesmo tempo, fruir do direito à vida e do equilíbrio ecológico23. 21 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988. 22 “Health is a state of complete physical, mental and social well-being and not merely the absence of disease or infirmity.” World Health Organization. Disponível em: <http://www.who.int/about/defin ition/en/print.html>. Acesso em: 01 fev. 2016. 23 MACHADO, P A L. Direito Ambiental Brasileiro. 22.ed. ver, ampl. e atual. São Paulo: Malheiros; 2014, p. 507.
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O direito à água – e ao saneamento – também está nas atiladas reflexões de Sarlet e Fensterseifer, ao prelecionar que é no quadro teórico do Estado de Direito Ambiental, alhures referido, que vai ser encontrado aquilo que os autores denominam de direitos fundamentais socioambientais, posto que dentro da visão de indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos fundamentais reúnem aqueles direitos que são, a um só tempo, sociais e ambientais24. O Direito à Água não está presente, de forma explícita em nossa Carta Maior – o que leva alguns doutrinadores a reclamar sua inserção em nosso quadro normativo positivado na Constituição da República, como Machado25 –, já se encontra em alguns diplomas legais recentes, como é o caso do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e da Lei do Saneamento Básico (Lei 11.445/2007). Na primeira norma, o Estatuto da Cidade, o direito ao saneamento ambiental integra o elenco de garantias do chamado direito a cidades sustentáveis (uma das diretrizes da política urbana), previsto em seu art. 2º, conforme se vê pela redação do seu item I: “[...] garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer”26. A Lei 11.445/2007 define, em seu art. 3º., I, “[...] saneamento básico como o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de recursos sólidos e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas”27. A mesma lei estabeleceu como um de seus princípios fundamentais a universalização do acesso (ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico), nos temos do art. 2º, I, combinado com o art. 3º, III28. 24 SARLET, I W; FENSTERSEIFER, T. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo W (org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; 2010, p. 32-33, grifos nossos. 25 MACHADO, P A L. Direito Ambiental Brasileiro. 22.ed. ver, ampl. e atual. São Paulo: Malheiros; 2014, p. 509. 26 BRASIL. Estatuto das Cidades. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. 27 BRASIL. Lei 11.445/2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a Lei no6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras providências. 28 Idem.
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Por último, mas não menos importante, não se pode olvidar a lei que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, nesta busca de fundamentação do direito fundamental socioambiental à água, qual seja, a Lei 9433/1997, que é voltada especialmente para o uso da água bruta, posto que a questão da água tratada faz parte da política de saneamento já citada. Importante dizer que os princípios da PNRH (art. 1º. da Lei) trazem definições fundamentais para o trato do Direito à Água, a saber, o caráter da água como um “bem de domínio público” (o que é consoante com a concepção do meio ambiente como “bem de uso comum do povo”, inscrito no art. 225 de nossa Constituição) e dotada de “valor econômico”, o que poderia, em tese, encerrar uma contradição em ternos; a visão de “usos múltiplos” na gestão dos recursos hídricos, o que já aponta para uma perspectiva de conflito desses usos na disputa de um recurso limitado (como a própria Lei reconhece e que tende a se aprofundar em tempos de mudanças climáticas); e que em situações de escassez (e só nesses casos, o que seria outra contradição da Lei), o uso prioritário deverá ser “o consumo humano e a dessedentação de animais”29. O tema da escassez, tratado como “situações de calamidade”, é uma das circunstâncias que poderá levar à suspensão, parcial ou total, em definitivo ou por prazo indeterminado, da outorga do direito de uso dos recursos hídricos, ao lado de outros casos, como a prevenção ou reversão de grave degradação ambiental e a necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não se disponha de fontes alternativas30. Aliás, é a outorga de direitos de uso de recursos hídricos o instrumento criado para garantir “[...] o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água” (art. 11), para que, em última análise, se assegure o primeiro objetivo da Política Nacional de Recursos Hídricos, que é “[...] assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos”31. E é precisamente esse instrumento, criado para garantir o Direito à Água para as atuais e futuras gerações, que pode, ao reverso, ser responsável por situações do que se pode chamar 29 BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. 30 Idem. 31 Idem.
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hoje de injustiça hídrica, conceito que decorre de justiça ambiental, concepção desenvolvida por Acselrad et al., para quem esta expressão trata de um conjunto de princípios e práticas voltados à equidade, ao acesso à informação e, fundamentalmente, aos processos democráticos e participativos de definição não só dos usos dos recursos ambientais e da destinação dos rejeitos, mas, principalmente, das políticas públicas, em especial as de desenvolvimento socioeconômico. Em contraposição, os autores definem injustiça ambiental como sendo [...] o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis32. Por sua vez, Sarlet e Fensterseifer correlacionam direitos e deveres ambientais, quando definem que a justiça ambiental deve objetivar uma “[...] redistribuição de bens sociais e ambientais capaz de assegurar um mínimo de isonomia entre os Estados e as suas populações”33. Evidentemente, quando se fala dessa justa distribuição de bens sociais e ambientais, deve-se incluir entre estes a água, bem de domínio público34 e essencial à sadia qualidade de vida, preconizada pelo art. 225 de nossa Constituição Federal. Sua má distribuição, a negação ou entrave ao acesso a esse bem e direito fundamental de natureza socioambiental, como já visto, e o favorecimento de grupos econômicos em detrimento das populações humanas, se configuraria, à evidência, em manifestações de injustiça hídrica. O conceito de injustiça hídrica já vem sendo utilizado por cientistas do clima, como é o caso do professor Alexandre Costa, ao denunciar o uso excessivo da água pelo agronegócio35, ou por jusambientalistas, como o professor Paulo Affonso Leme Machado, que, ao criticar a 32 ACSELRAD, Henri et al. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Garamond; 2009, p. 37. 33 SARLET, I W; FENSTERSEIFER, T. Estado socioambiental e mínimo existencial (ecológico?): algumas aproximações. In: SARLET, Ingo W (org.). Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; 2010, p. 37. 34 BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. 35 NOGUEIRA, E. Professor critica “injustiça hídrica” e uso excessivo da água pela agricultura. Empresa Brasileira de Comunicação. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/notici a/2015-03/Professor-criticainjusti%C3%A7a-hidrica-e-uso-excessivo-da-agua-pela-agricultura>. Acesso em 25 out. 2015.
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autorização que define o uso da água retirada das nascentes das bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ) para abastecer a Região Metropolitana de São Paulo, disse que o município de Piracicaba “sofre injustiça hídrica”36. Trabalhar o conceito de injustiça hídrica significa, como ensina Porto-Gonçalves, pensar a água como território, ou seja, “[...] como inscrição da sociedade na natureza, com todas as suas contradições implicadas no processo de apropriação da natureza pelos homens e mulheres por meio das relações sociais de poder”37. São exatamente essas relações de poder, por meio da apropriação privada dos recursos hídricos – chancelada, muitas vezes, pelo instrumento da outorga de direito de uso – que produzem injustiça hídrica, negando, portanto, a amplas parcelas o direito humano fundamental à água. A superação da injustiça hídrica pode ser buscada no que se convencionou chamar de “[...] novo constitucionalismo latino-americano, que desponta como modelo alternativo de desenvolvimento político-jurídico institucional”38, especialmente a partir das experiências da Bolívia e do Equador, conforme se verá seguir.
4. O direito à água no direito internacional: as resoluções da ONU, o relatório do parlamento europeu e a água nos estados do bem viver A Organização das Nações Unidas já vem tratando do Direito à Água em vários de seus documentos, dentre os quais destacamos o Comentário Geral no 15, de novembro de 2002, do Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos e Sociais, que afirmou que “[...] o direito humano à água prevê que todos tenham água suficiente, segura, aceitável, fisicamente acessível e os preços razoáveis para usos pessoais e domésticos”; e a Resolução 16, de abril de 36 PORTAL G1. Especialista em direito ambiental diz que Piracicaba sofre “injustiça hídrica”. Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/2014/02/especialista-em-direito-ambi ental-diz-quepiracicaba-sofre-injustica-hidrica.html>. Acesso em: 30 jan. 2016. 37 PORTO-GONÇALVES, C W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2006, p. 418. 38 WOLKMER, M F S; MELO, M P. O direito fundamental à água: convergências no plano internacional e constitucional. In: MORAES, G O M; MARQUES JÚNIOR, W P; MELO, Á J M M, (organizadores). As águas do Unasul na RIO + 20: direito fundamental à água e ao saneamento básico, sustentabilidade, integração da América do Sul, novo constitucionalismo latino-americano e sistema brasileiro. Curitiba, PR: CRV; 2013, p. 17.
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2011, do Conselho dos Direitos Humanos, com a adoção do acesso à agua potável e segura e ao saneamento como um direito humano: um direito à vida e à dignidade humana39. Mas o destaque maior é para a Resolução A/RES/64/292, aprovada em 28 de julho de 2010 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que em dois artigos declarou ser a água limpa e segura e o saneamento um direito humano essencial para o gozo pleno da vida e de todos os outros direitos humanos, conforme se vê abaixo: 1. Reconoce que el derecho al agua potable y el saneamiento es un derecho humano esencial para el pleno disfrute de la vida y de todos los derechos humanos; 2. Exhorta a los Estados y las organizaciones internacionales a que proporcionen recursos financieros y propicien el aumento de la capacidad y la transferencia de tecnología por medio de la asistencia y la cooperación internacionales, en particular a los países en desarrollo, a fin de intensificar los esfuerzos por proporcionar a toda la población un acceso económico al agua potable y el saneamento [...]40. Na concepção de Wolkmer e Melo, já citados, pode-se dizer que houve um reconhecimento, no âmbito internacional, do Direito à Água, fazendo com que a comunidade internacional tenha assumido, por meio dos Estados nacionais, o compromisso de sua promoção e tutela41. Em âmbito europeu, muito recentemente, no dia 8 de setembro de 2015, o Parlamento Europeu, ao votar o Relatório sobre a Iniciativa de Cidadania Europeia “Right2Water”, da Comissão de Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar, aprovou o parecer da relatora Lynn Boylan, que reconheceu os Direitos Humanos à Água (que é, também, reconhecida como um bem comum) e ao Saneamento e, mais do que isso, instou a que a comissão desencoraje práticas de apropriação da água e de fraturação hidráulica (para exploração do gás de xisto), reconhecendo que são de interesse geral os serviços de água e saneamento42. 39 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/Ficha_16.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2016. 40 Resolução A/RES/64/292, aprovada em 28 de julho de 2010 pela Assembleia Geral das Nações Unidas. 41 WOLKMER, M F S; MELO, M P. O Direito Fundamental à Água: convergências no plano internacional e constitucional. In: MORAES, G O M; MARQUES JÚNIOR, W P; MELO, Á J M M, (organizadores). As águas do Unasul na RIO + 20: direito fundamental à água e ao saneamento básico, sustentabilidade, integração da América do Sul, novo constitucionalismo latino-americano e sistema brasileiro. Curitiba, PR: CRV; 2013, p. 13. 42 Portal Esquerda.net. Disponível em: <http://www.esquerda.net/artigo/parlamento-europeu-reconhece-aguacomo-direito-humano/38504>. Acesso em: 2 fev. 2016.
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Mas é no âmbito desse novo constitucionalismo latino-americano, em especial nos Estados plurinacionais em que se constituíram a Bolívia e o Equador, tributários da tradição indígena andina do Bem Viver, que vamos encontrar o melhor tratamento no que concerne à questão hídrica (como de resto, à própria questão ambiental), a partir da inovadora concepção de que a Natureza é portadora de direitos. A Lei da Mãe Terra (Ley de Derechos de la Madre Tierra), na Bolívia, reconhece os direitos da Mãe Terra como um sistema vivente, conforme se observa nos dispositivos abaixo transcritos: Artículo 1. (OBJETO). La presente Ley tiene por objeto reconocer los derechos de la Madre Tierra, así como las obligaciones y deberes del Estado Plurinacional y de la sociedad para garantizar el respeto de estos derechos. Artículo 3. (MADRE TIERRA). La Madre Tierra es el sistema viviente dinámico conformado por la comunidad indivisible de todos los sistemas de vida y los seres vivos, interrelacionados, interdependientes y complementarios, que comparten un destino común43. No Equador, vamos encontrar dispositivos semelhantes na própria Constituição da República, conforme se vê abaixo: Art. 71.- La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos. Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observarán los principios establecidos en la Constitución, en lo que proceda [...]44. Para Marques, o reconhecimento dos direitos da natureza está para além da “[...] longa história da universalização dos sujeitos de direito”; na verdade, emana da exigência, que o autor 43 BOLÍVIA. Lei nº 071. Disponível em: <http://www.cedla.org/sites/default/files/Ley%20N %C2%B0%20071%20 DERECHOS%20DE%20LA%20MADRE%20TIERRA.pdf>. Acesso em: 29 jan. 2016. 44 Idem.
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considera impreterível, da conservação do que resta da biota planetária, ou seja, para, em última análise, garantir a sobrevivência da sociedade atual45. No que concerne à água, estabelece a Carta Magna equatoriana: Art. 12.- El derecho humano al agua es fundamental e irrenunciable. El agua constituye patrimonio nacional estratégico de uso público, inalienable, imprescriptible, inembargable y esencial para la vida46. Ao reconhecer a água como “patrimônio nacional estratégico de uso público” e “essencial para a vida”, a Constituição equatoriana retira desse bem o caráter de mercadoria, rejeitando a hipótese de que possa vir a ser apropriada privadamente e, assim, tornar-se fonte de lucro e produtora de injustiça hídrica. Bem de uso comum do povo, como está em nossa Constituição, patrimônio nacional estratégico, como na Carta equatoriana, são conceitos que remetem à visão contemporânea de “bem comum” defendida por Dowbor. Para ele, “[...] se a água for vista apenas como um produto oferecido por um produtor e que um consumidor compra, teremos um poder desmesurado de quem controla a oferta, e do lado da demanda prevalecerá a lei do mais forte”. Assim, ele propõe que a gestão dos recursos hídricos se dê de forma democrática e participativa, de maneira que impeça que haja distribuição desigual e restrições sistêmicas ao seu consumo47. No final das contas, volta-se à questão central: em tempos de mudanças climáticas que tendem a diminuir a oferta de água como um todo, acentuando, portanto, sua condição de “recurso natural limitado”48, como administrar a distribuição do precioso líquido de forma a garantir, para atuais e futuras gerações, o Direito à Água, impedir seu esgotamento, garantir suas funções ecossistêmicas e impedir a injustiça hídrica? Trata-se, portanto, em última razão, da definição de prioridades. E a esse desafio é que se propuseram Carrasco, Zamora e Mecinas, que, com base na Declaração Europeia por uma 45 MARQUES, L. Capitalismo e Colapso Ambiental. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; 2015, p. 609. 46 EQUADOR. Constituição do Equador; 2008. 47 DOWBOR, Ladislau. O drama da água. Disponível em: <http://www.ecodebate.com.br/2015/06/03/o-drama-daagua-artigo-de-ladislau-dowbor/>. Acesso em: 30 jan. 2016. 48 Lei brasileira da Política Nacional de Recursos Hídricos, art. 1º, inciso II.
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Nova Cultura de Água e na Diretiva para o Manejo da Água na Europa, estabeleceram a seguinte ordem de prioridades: 1. Agua como derecho humano. Se refiere al establecimiento de un piso de dignidad básico de consumo, que garantice el bienestar individual y colectivo y que debe otorgarse de forma gratuita; los requerimientos para sostener la agricultura de subsistencia podrían caber aquí también. 2. Agua para los ecosistemas. El uso para el ambiente busca garantizar el buen estado de los ecosistemas hídricos privilegiando tanto su conservación como su rehabilitación. Aquí se eleva el ecosistema al estatus de un consumidor prioritario. Así, se debe asegurar que el consumo de agua del resto de los usuarios no supere la capacidad de recarga de los mantos acuíferos. 3. Agua para usos sociales y comunitarios. Con ello se obliga al Estado a imponer una nueva política que garantice el servicio de agua para todos los servicios públicos y urbanos incluyendo los parques, hospitales, escuelas, etc. Es decir, se consideran las instalaciones públicas necesarias para consolidar aquellas actividades de interés general, sin fines de lucro, conducentes a fortalecer la sociedade. 4. Agua para el desarrollo económico y bienestar social. Implica el mayor consumo de todos. Es aquí donde se clasificarían los consumidores residenciales que requieren más que lo contemplado por el ‘piso de dignidad’ mencionado en el primer destino. También contempla los usuarios agrícolas, comerciales e industriales, que consumen la mayor parte del agua disponible en el país, en el proceso de organizar sus actividades productivas con fines de lucro49. Essa ordem de destinação do uso da água, segundo os autores, prioriza o valor de uso ao valor de troca (na concepção marxiana) e compreende a água como direito humano e direito ecossistêmico (digamos, assim), assegurando que seu uso venha a se dar a partir de um esquema solidário e sustentável, cumprindo, desta forma, as exigências do que seria uma verdadeira justiça hídrica. 49 CARRASCO, Mario Enrique Fuente; ZAMORA, Daniel Tagle; MECINAS, Elizabeth Hernández. La justicia ambiental como atributo del ecosocialismo. Exploraciones teóricas y praxis comunitarias en la gestión del agua. Revista THEOMAI, 32; 2015, grifos nossos.
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5. À guisa de conclusão Não resta dúvida de que o Direito à Água faz parte do elenco dos direitos humanos fundamentais consagrados em nosso ordenamento jurídico. Seja porque a água é parte indissolúvel do meio ambiente, que é bem de uso comum do povo, segundo a Constituição, seja porque o país apoiou as resoluções da ONU que tratam desse direito, seja também porque está consagrado em leis importantes do país, como o Estatuto da Cidade, a Lei do Saneamento Básico e a Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos. É claro que sua explicitação na Carta Maior do país seria simbolicamente importante, além de não permitir que reste qualquer dúvida no que concerne ao seus status de direito fundamental. No entanto, o principal diploma legal que trata da política de gestão de recursos hídricos no Brasil – a Lei 9433/97 –, em que pese conter elementos avançados para sua época, já tem quase 20 anos de idade. Ainda é claramente insuficiente e, por vezes, contraditório e ambíguo, para garantir o direito humano fundamental à água em nosso país. Falta nele uma clareza maior do reconhecimento da água como direito de todos. Entretanto, sua concepção de que a água tem valor econômico pode induzir à produção de injustiça hídrica, por meio, irônica e contraditoriamente, do instrumento de regulação responsável pelo acesso a esse direito, que é a outorga dos recursos hídricos. Sua insuficiência e contradição se encontram ainda na compreensão equivocada e anacrônica de que a prioridade para o uso humano deve se dar apenas em situações de “crise” ou “calamidade”. Na verdade, esse uso, ao lado da dessedentação animal e da conservação do ecossistema, deveria ser sempre prioritário. Por outro lado, trata essas situações (crise ou calamidade) como se fossem casos fortuitos, em uma situação de regularidade do clima e do regime de chuvas em nosso país, em especial no semiárido nordestino. Ora, estamos em plena era de mudanças climáticas, e as projeções de colapso estão no umbral de nossos dias, confirmando (e até mesmo superando) as projeções anteriores do IPCC quanto ao agravamento dos fenômenos climáticos extremos, como as secas, que se têm tornado mais severas e mais frequentes. É preciso que o nosso Direito Ambiental – que já avançou muito na doutrina (a partir, especialmente, da formulação do Estado Democrático Socioambiental de Direito), mas que regride na produção legislativa, face à composição mais conservadora de nosso parlamento 134
atual – beba da fonte desse novo constitucionalismo indígena latino-americano, que concebe, a um só tempo, a água como sujeito e objeto de direito, isto é, o direito da água e o Direito à Água, numa concepção do ser humano como natureza, sujeito de direitos humanos e guardião dos direitos de todos os elementos da biosfera.
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A crise hídrica e a criminalização da pesca artesanal na Baía de Sepetiba - quem deve pagar a conta? Gabriel Strautman1, Iara Moura e Thiago Mendes 2
Sob o pretexto de enfrentar a chamada “crise hídrica”, as indústrias do bairro carioca de Santa Cruz, na Zona Oeste, decidiram construir uma soleira (barragem) submersa no Canal do Rio São Francisco, afluente do Rio Guandu, para a contenção da chamada “intrusão salina”. O problema é que a barragem tem impedido desde o primeiro semestre de 2015 o trabalho de centenas de pescadores artesanais de Santa Cruz, que não conseguem atravessar o canal em direção ao mar. O caso foi parar na Justiça. Pedido de liminar para demolir a obra foi negado dia 11/02/2016 pela 15ª Vara de Fazenda Pública. A Defensoria Pública e o Ministério Público Estadual continuam investigando o caso. 1 2
Gabriel Strautman é coordenador de programa do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs); Iara moura e Thiago Mendes são comunicadores do Pacs.
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A construção da barragem no canal do São Francisco impactou diretamente a pesca artesanal na região. Os barcos ficaram impedidos de atravessar o canal, em razão de uma forte correnteza criada no entorno das placas metálicas. Além disso, tem sido observada uma diminuição da passagem e desova de peixes no encontro do rio com o mar.
Segundo os pescadores, a entrada do rio e seus mangues são “o berçário dos peixes” e o período da construção coincidiu com a época de reprodução de algumas espécies marinhas, o que aponta para a possibilidade de impactos futuros ainda mais severos[1]. Moradores do entorno do Canal do São Francisco também chamaram a atenção para os impactos de transbordamento da água do canal durante o período de chuvas. Em janeiro de 2016, a estrutura metálica da barragem veio a se romper por conta do aumento do nível de água ocasionado pelas chuvas de verão. Se não tivesse arrebentado, os moradores apontam que os prejuízos seriam, provavelmente, ainda maiores. Nesse sentido, relembre-se que a construção se deu por meio da autorização ambiental IN030406, concedida pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea), em abril de 2015. Somente 24 dias depois de autorizada a obra, os técnicos do Inea se reuniram com os pescadores da região. A reunião, segundo relatam os pescadores, foi de apresentação do projeto e não de consulta e esclarecimento sobre os impactos decorrentes deste e as possíveis medidas mitigatórias. Chama a atenção que o estudo de impacto ambiental na fauna e flora da região tenha sido previsto para após o fim da construção da soleira. 138
Outro ponto que merece destaque é a tentativa da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) de se eximir do papel de protagonista de mais essa arbitrariedade em Santa Cruz. Funcionários da siderúrgica estiveram presentes em momentos-chave do conflito entre empresas e pescadores, que se mobilizaram em protestos contra a barragem. No dia em que pescadores foram conduzidos à delegacia (13/07/2015) após interromperem a obra e durante a audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) sobre o tema, estavam presentes funcionários da TKCSA[2]. Porém, a siderúrgica, durante todo o processo, transferiu a responsabilidade para a Associação das Empresas do Distrito Industrial de Santa Cruz (Aedin), entidade que reúne as empresas da região e que atua, na verdade, como ‘testa de ferro’ destas. O que se vê em Santa Cruz, portanto, é mais uma vez a prevalência do interesse dos megaempreendimentos em detrimento dos direitos das comunidades tradicionais que vivem na região. O histórico do desenvolvimento industrial do bairro remonta à implantação de indústrias metalúrgicas e portos. Um dos episódios mais trágicos para o ecossistema e atividade pesqueira da região foi o vazamento de metais pesados da Companhia Ingá Mercantil, ainda em meados dos anos 1980, que ocorreu na mesma época da instalação do Porto do Itaguaí. Mais recentemente, em 2010, instalou-se a TKCSA, que tem a mineradora Vale como uma das suas principais acionistas, e funciona sem licença de operação, graças a um questionável Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), renovado em 2014 e com vencimento previsto para abril de 2016. Conhecida por elevar em 76% as emissões de CO2 na cidade do Rio de Janeiro e por causar o fenômeno da “chuva de prata” em seu entorno, a siderúrgica já foi embargada pelo Ministério do Trabalho, multada por órgãos ambientais após pressão da sociedade, denunciada em reportagens na grande imprensa e alvo de dois processos criminais movidos pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Nos anos recentes, em resposta às mobilizações e resistências contra suas violações e na tentativa de consolidar uma imagem “sustentável”, a CSA tem investido fortemente nas medidas de “responsabilidade empresarial” [3] e marketing. Aproveitando-se do vácuo deixado pelo Estado no bairro, a companhia tem investido nas áreas de educação, esporte e lazer e outros benefícios sociais como serviços de identificação (produção de RG e CPF) e até a realização de casamentos comunitários. 139
A chantagem política se baseia ainda na conformação de uma relação dúbia com os moradores e pescadores do entorno. Em 2015, em reunião mediada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a empresa negou-se mais uma vez a assumir qualquer responsabilidade com os pescadores impedidos de trabalhar. No território, porém, representantes da empresa têm investido nas negociações e acordos informais com os trabalhadores numa clara tentativa de dividir, enfraquecer e silenciar a resistência. Nesse contexto, a construção da barragem é mais um episódio no histórico de violações cometidas pela TKCSA. Ressalte-se que a siderúrgica conta com vultosas somas de dinheiro público – em torno de R$ 5 bilhões – “investidas” de diversas formas: empréstimos do BNDES, doação de terreno e isenções fiscais. Integrando a cadeia de mineração, que, como sabemos, traz impactos irreversíveis para a vida das comunidades quilombolas, ribeirinhas, pescadores/ as, camponeses, indígenas e para o meio ambiente, a siderúrgica é um caso exemplar da relação Estado-Megaempreendimentos e dos resultados dessa associação. Abaixo, recuperamos o histórico do episódio – ainda em processo – de construção da soleira submersa no Canal do São Francisco.
1. Histórico Em 15 de abril de 2015, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) concedeu a autorização ambiental IN030406 para obra emergencial de construção de uma soleira submersa no canal do Rio São Francisco. A autorização ambiental tem validade de um ano, renovável por mais 140
um, e foi dada à Associação das Empresas do Distrito Industrial de Santa Cruz (Aedin), responsável pela obra. Depois de 24 dias da autorização, técnicos do Inea se reuniram com os pescadores da região para expor o projeto. Segundo o relato dos pescadores, durante o encontro os técnicos asseguraram que a obra não causaria impacto negativo à pesca. Quando questionados pelos pescadores sobre possíveis alternativas, os técnicos argumentaram que a obra já estava autorizada pela Marinha e pelo Inea. No dia 26 de junho de 2015, impedidos de trabalhar, os pescadores do Canal do São Francisco fizeram um protesto contra a obra da soleira submersa, espécie de barragem construída no rio. Ficou acertado junto aos representantes das empresas que os pescadores seriam recebidos pelos responsáveis pela obra na quarta-feira (01/07/15). Nesse dia, os responsáveis não compareceram ao encontro e os pescadores interromperam a obra novamente. Um novo encontro entre representantes da Aedin e os pescadores foi agendado para o dia 03/07/15. Os responsáveis pela obra da barragem se comprometeram a parar a construção da soleira submersa pelo menos até a sexta-feira seguinte. No dia 03, em reunião realizada entre pescadores, defensores públicos, representante da Aedin e o deputado estadual Flávio Serafini (PSOL/RJ), ficou acertado que a obra da barragem permaneceria parada até reunião marcada para quarta-feira (08/07/15), na Defensoria Pública. A proposta da Aedin seria a construção de um atracadouro e a instalação de um trator para “rebocar” os barcos que não conseguissem transpor a “correnteza” criada pela barragem. A ideia foi prontamente rejeitada pelos pescadores e defensores, uma vez que os deixa na dependência direta das empresas. A ação acabou sendo implantada no início de 2016 [4]. Terminou sem acordo a reunião entre defensores, pescadores e representantes das empresas, no dia 08/07/15, na sede da Defensoria Pública. A Aedin havia se comprometido a apresentar uma proposta para os pescadores, mas não cumpriu o acordo. Na ocasião, os defensores Lívia Carcéres e Sérgio Xavier formularam uma proposta de reparação e deram o prazo de até esta sexta-feira (10/07/15) para as empresas se pronunciarem. Até lá, as obras continuaram paradas. Nessa data, a Aedin retomou as obras de construção da soleira submersa e comunicou à Defensoria Pública que não faria acordo com os pescadores. 141
Três dias depois, os pescadores voltaram a interromper as obras. Pela manhã, cerca de 50 pescadores atracaram suas embarcações às margens da barragem, em protesto. A Polícia Militar foi acionada e os manifestantes foram levados à 36ª DP em Santa Cruz para prestar esclarecimentos. Orientados pela Defensoria Pública, os pescadores prestaram esclarecimentos e se retiraram da delegacia [5]. Em 29 de outubro de 2015, a Defensoria ingressou na Justiça um pedido de liminar que previa a demolição da soleira submersa. O processo continua sendo investigado. Em 10 de março de 2016, o Grupo de Atuação em Meio Ambiente, do Ministério Público, a Defensoria Pública Estadual, o deputado Flávio Serafini (PSOL/RJ) e o Pacs fizeram mais uma visita a Santa Cruz para ouvir os pescadores. Um inquérito foi aberto e uma força-tarefa fez vistoria no local.
2. #Pare TKCSA: Fortalecendo a resistência Em janeiro de 2016, a campanha Pare TKCSA, integrada por entidades da sociedade civil organizada, pesquisadores/as e moradores/as atingidos/as pela CSA, lançou uma plataforma virtual multimídia que reúne conteúdo exclusivo sobre as violações cometidas pela siderúrgica. A página contém uma linha do tempo com os fatos mais relevantes de 10 anos de resistência às violações, vídeos, relatórios e pesquisas sobre o tema. A reportagem exclusiva “Reta João XXIII: vida nas franjas do desenvolvimento nacional”, também disponível na página da campanha, aprofunda tais denúncias e relata o cotidiano de quem convive com a siderúrgica. Acesse: http://paretkcsa.org
3. Referências 1. https://www.thyssenkrupp.com/en/konzern/ 2. https://www.thyssenkrupp.com/documents/investor/Finanzberichte/eng/ ThyssenKrupp_2013_2014_AR.pdf 3. Veja a compilação de notícias sobre o tema em: http://www.pacs.org. br/?s=soleira&submit=Pesquisar 4. Sobre isso, ler: “Responsabilidade social para quê e para quem: análise crítica dos projetos de responsabilidade social da Tkcsa” (Pacs, 2015). Disponível em http:// www.pacs.org.br/files/2015/09/Cartilha-Responsabilidade-Social1.pdf 142
5. Veja em https://www.youtube.com/watch?v=OF1ThuTUAO0 6. Para saber mais sobre a intimidação feita pela Polícia Militar e sobre a prisão dos pescadores, posteriormente cancelada pela Polícia Civil, sob ordens do delegado titular da 36ª Delegacia Policial (Santa Cruz), ver: http://www.pacs.org. br/?s=barragem&submit=Pesquisar
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A Alternativa Ecossocialista Por Michael Löwy1
Há alguns anos, quando se falava dos perigos de catástrofes ecológicas, os autores se referiam ao futuro dos nossos netos ou bisnetos, a algo que estaria no futuro loginquo, dentro de cem anos. Agora, porém, o processo de devastação da natureza, de deterioração do meio ambiente, e de mudança climática se acelerou a tal ponto que não estamos mais discutindo um futuro a longo prazo. Estamos discutindo processos que já estão em curso – a catástrofe já começou, esta é a realidade. E realmente estamos numa corrida contra o tempo para tentar impedir, brecar, tentar conter esse processo desastroso. Quais são os sinais que mostram o caráter cada vez mais destrutivo do processo de acumulação capitalista em escala global? O mais óbvio, e perigoso, é o processo de mudança climática, um processo que resulta dos gases de efeito estufa emitidos pela indústria, agronegócio e sistema de transporte existentes nas sociedades capitalistas modernas. Esta mudança, que já começou, terá como resultado não só o aumento da temperatura em todo planeta, mas a desertificação de setores inteiros de vários continentes, a elevação do nível do mar, o desaparecimento de cidades marítimas – Veneza, Asmterdã, Hong-Kong, Rio de Janeiro – debaixo do oceano. Uma série de catástrofes que se colocam no horizonte dentro de – não se sabe – vinte, trinta, quarenta anos, isto é, no futuro próximo. Tudo isso não resulta do excesso de população, como dizem alguns, nem da tecnologia em si, abstratamente. Trata-se de algo muito concreto: das consequências do processo de acumulação do capital, em particular na sua forma atual, da globalização neoliberal sob a hegemonia do império norte-americano. Este é o elemento essencial, motor desse processo e dessa lógica destrutiva que corresponde à necessidade de expansão ilimitada – aquilo que Hegel chamava de “má infinitude” –, um processo infinito de acumulação de mercadorias, acumulação do capital, acumulação do lucro, que é inerente à lógica do capital e é necessariamente destruidor do meio ambiente e responsável pela catastrófica mudança do clima. 1 Michael Löwy é sociólogo e filósofo franco-brasileiro marxista, autor de obras como Walter Benjamin: aviso de incêndio (Boitempo, 2005) e Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (Boitempo, 2009). É também um dos principais teóricos do ecossocialismo, autor de livros e artigos sobre o tema, como Ecologia e socialismo (Cortez, 2005) e Ecossocialismo : espiritualidade e sustentabilidade (em parceria com Frei Betto, disponível no blog da Boitempo).
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Precisamos pensar, portanto, em alternativas que coloquem um outro horizonte histórico, mais além do capitalismo. Essa alternativa é o ecossocialismo, uma proposta estratégica que resulta da convergência entre a reflexão ecológica e a reflexão socialista, a reflexão marxista. O ecossocialismo é uma reflexão crítica. Em primeiro lugar, crítica à ecologia não socialista, à ecologia capitalista ou reformista, que considera possível reformar o capitalismo, atingir um capitalismo mais verde, mais respeitoso ao meio ambiente. Trata-se da crítica e da busca de superação dessa ecologia reformista, limitada, que não aceita a perspectiva socialista, que não se relaciona com o processo da luta de classes, que não coloca em questão a propriedade dos meios de produção. Mas o ecossocialismo é também uma crítica ao socialismo não ecológico, por exemplo, da ex-União Soviética, onde a perspectiva socialista se perdeu rapidamente com o processo de burocratização e o resultado foi um processo de industrialização tremendamente destruidor do meio ambiente. Há outras experiências socialistas, porém, mais interessantes do ponto de vista ecológico: a experiência cubana, por exemplo O ecossocialismo exige também uma reflexão crítica sobre a herança marxista em relação ao meio ambiente. Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo um produtivista, tanto quanto os capitalistas. Tal crítica me parece completamente equivocada: ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à ideia de que a produção de mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade. O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para participar da vida política, estudar, jogar, amar. Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e, notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de O Capital, Marx explica como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o próprio planeta. Assim, essa perspectiva, essa sensibilidade está presente nos escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida. O problema é que a afirmação de Marx – e, mais ainda, de Engels – de que o socialismo é a solução da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção, foi interpretada por muitos marxistas de forma mecânica: o crescimento das forças produtivas do capitalismo se choca com os limites que são as relações de produção burguesas – a propriedade privada dos meios de produção – e, portanto, a tarefa da revolução socialista seria simplesmente destruir as relações de produção existentes, a propriedade privada, e permitir 146
assim o livre desenvolvimento das forças produtivas. Parece-me que essa interpretação de Marx e de Engels deve ser criticada, porque ela pressupõe que as forças produtivas sejam algo neutro; o capitalismo as teria desenvolvido até um certo ponto e não pôde ir além porque foi impedido por aquela barreira, aquele obstáculo que deve ser afastado para permitir uma expansão ilimitada. Essa visão deixa de lado o fato de que as forças produtivas existentes não são neutras: elas são capitalistas em sua dinâmica e em seu funcionamento, e, portanto são destruidoras da saúde do trabalhador, bem como do meio ambiente. A própria estrutura do processo produtivo, da tecnologia e da reflexão científica a serviço dessa tecnologia, e desse aparelho produtivo, é inteiramente impregnada pela lógica do capitalismo e leva inevitavelmente à destruiçâo dos equilíbrios ecológicos do planeta. O que se necessita, por conseguinte, é uma visão muito mais radical e profunda do que seja uma revolução socialista. Trata-se de transformar não só as relações de produção, as relações de propriedade, mas a própria estrutura das forças produtivas, a estrutura do aparelho produtivo. Isto é, na minha concepção, uma das ideias fundamentais do ecossocialismo. Há que se aplicar ao aparelho produtivo a mesma lógica que Marx aplicava ao aparelho de Estado a partir da experiência da Comuna de Paris, quando ele diz o seguinte: os trabalhadores não podem apropriar-se do aparelho de Estado burguês e usá-lo a serviço do proletariado, não é possível, porque o aparelho do Estado burguês nunca vai estar a serviço dos trabalhadores. Então, trata-se de destruir esse aparelho de Estado e criar um outro tipo de poder. Essa lógica tem que ser aplicada também ao aparelho produtivo: ele tem que ser, senão destruído, ao menos radicalmente transformado. Ele não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores, pelo proletariado, e posto a trabalhar a seu serviço, mas precisa ser estruturalmente transformado. A título de exemplo, o sistema produtivo capitalista funciona com base em fontes de energia fósseis, responsáveis pelo aquecimento global – o carvão e o petróleo – de modo que um processo de transição ao socialismo só é possível quando houver a substituição dessas formas de energia pelas energias renováveis, que são a água, o vento e, sobretudo, a energia solar. Por isso, o ecossocialismo implica uma revolução do processo de produção das fontes energéticas. É impossível separar a ideia de socialismo, de uma nova sociedade, da ideia de novas fontes de energia, em particular do sol – alguns ecossocialistas falam do comunismo solar, pois entre o calor, a energia do Sol e o socialismo e o comunismo haveria uma espécie de afinidade eletiva. 147
Mas não basta tampouco transformar o aparelho produtivo, é necessário transformar também o estilo, o padrão de consumo, todo o modo de vida em torno do consumo, que é o padrão do capitalismo baseado na produção massiva de objetos artificiais, inúteis, e mesmo perigosos. A lista de produtos, mercadorias e atividades empresariais que são inúteis e nocivas aos indivíduos é imensa. O ecossocialismo propõe um novo modo de consumo e um novo modo de vida, baseado na satisfação das verdadeiras necessidades sociais, que é algo completamente diferente das pretensas e falsas necessidades produzidas artificialmente pela publicidade capitalista. Uma reorganizaçâo do conjunto do modo de produçâo e de consumo é necessária, baseada em critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da populaçâo e a defesa do equilíbrio ecológico. Isso significa uma economia de transiçâo ao socialismo, na qual a propria população – e não as “leis do mercado” ou um Burô Político autoritário – decide, num processo de planificação democrática, as prioridades e os investimentos. Esta transição conduziria não só a um novo modo de produção e a uma sociedade mais igualitária, mais solidária e mais democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização, ecossocialista, para além do reino do dinheiro, dos hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade e da produção ao infinito de mercadorias inúteis. Se ficarmos só nisso, porém, seremos criticados como utópicos. Os utópicos são aqueles que apresentam uma bela perspectiva de futuro, e a imagem de uma outra sociedade, o que é obviamente necessário, mas não é suficiente. O ecossocialismo não é só a perspectiva de uma nova civilização, uma civilização da solidariedade – no sentido profundo da palavra, solidariedade entre os humanos, mas também com a natureza –, como também uma estratégia de luta, desde já, aqui e agora. Não vamos esperar até o dia em que o mundo se transforme, não, nós vamos começar desde já, agora, a lutar por esses objetivos. Assim, o ecossocialismo é uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais, das lutas de classe e das lutas ecológicas, contra o inimigo comum que são as políticas neoliberais, a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o imperialismo americano, o capitalismo global. Este é o inimigo comum dos dois movimentos: o movimento ambiental e o movimento social. Em muitos países da América Latina e no mundo inteiro, cada vez mais se dá essa convergência. Mas ela não ocorre espontaneamente, tem que ser organizada conscientemente pelos militantes e pelas organizações. É preciso construir uma estratégia ecossocialista, uma 148
estratégia de luta em que se convergem as lutas sociais e as lutas ecológicas. Esta me parece ser a resposta ao desafio, a perspectiva radical de uma transformação revolucionária da sociedade para além do capitalismo. Sabendo que o capitalismo não vai desaparecer como vítima de suas contradições, como dizem alguns supostos marxistas – já um grande pensador marxista do começo do século XX, Walter Bejamin, dizia que, se temos uma lição a aprender, é que o capitalismo não vai morrer de morte natural, será necessário acabar com ele... Precisamos de uma perspectiva de luta contra o capitalismo, de um paradigma de civilização alternativo, e de uma estratégia de convergência das lutas sociais e ambientais, desde agora plantando as sementes dessa nova sociedade, desse futuro, plantando sementes do ecossocialismo. A alternativa ecossocialista implica, em última análise, numa transformação revolucionária da sociedade. Mas, o que significa revolução? Walter Benjamin escrevia o seguinte em 1940: «As revoluções não são as locomotivas da história, como pensávamos. Elas são o ato da humanidade, que viaja neste trem, de tirar os freios de urgência». O trem da civilização capitalista, do qual somos todos passageiros, está avançando, com uma velocidade crescente, em direção a um abismo: a catástrofe ecológica, a mudança climática. Precisamos puxar os freios de urgência da revolução, antes que seja tarde demais.
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Remunicipalização em um setor vital: sistemas urbanos de água Por Martin Pigeon1
1. Uma tendência contra as narrativas políticas contemporâneas dominantes Paris e Berlim retomaram o controle público da administração de seus sistemas de água municipais em 2010 e 2013. Essas cidades perceberam que era mais barato e relevante administrar os serviços essenciais domesticamente. Essa decisão política de duas capitais europeias não é uma exceção dos nossos tempos. Por um lado, essas decisões fazem parte de uma tendência global de remunicipalização da água que tem acontecido nos últimos 15 anos, em 235 cidades de 37 países do mundo, que cancelaram ou não renovaram contratos com companhias privadas de água, retornando os sistemas para a administração pública2. Essas decisões podem promover a melhoria e sustentabilidade desses sistemas, a ponto de se poder afirmar que a melhor gestão do sistema de água é a pública, desde que haja recursos e vontade política adequada. Mas essas noções vão contra a ideologia contemporânea dominante de que o mercado privado e as corporações devem ser as instituições preferidas para organizar a sociedade naquilo que não é competência exclusiva do Estado, como justiça, polícia e segurança. Os governos francês e alemão, em contradição com o que estava acontecendo nas suas próprias capitais, se juntaram às instituições da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional para pressionar a Grécia a privatizar o sistema de água nas duas maiores cidades do país, 1 Martin Pigeon é pesquisador da instituição Corporate Europe Observatory (CEO) e atua prioritariamente nos temas relacionados à água e à agroindústria. É organizador do livro Remunicipalización: El retorno del agua a manos publicas. 2 KISHIMOTO Satoko (editor), Our Public Water Future - The global experience with remunicipalisation – Transnational Institute, PSIRU, Multinationals Observatory, Municipal Services Project, March 2015 https://www.tni.org/ en/publication/our-public-water-future
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Atenas e Thessaloniki, em troca da redução da dívida pública. As mesmas pressões atingiram outros países em crise da União Europeia, como Portugal, Espanha e Itália3. Para além da ideologia, esse padrão duplo também pode ser explicado pelo interesse de empresas de água francesas e alemãs e instituições financeiras em tais recursos e reflete como a privatização e a remunicipalização da água podem ser afetadas pela correlação de forças independente de seus respectivos méritos. Quando Paris remunicipalizou seu sistema de água em 2010, a empresa pública, que agora opera o sistema, a Eau de Paris, economizou em torno de 35 milhões de euros em seu primeiro ano de operação (mais de 10% de seu volume de operações). Dois anos depois, a cidade reduziu a tarifa de água em torno de 8%, aumentou os investimentos, manteve uma forte capacidade de autofinanciamento, além de apresentar melhor desempenho do que as outras duas empresas privadas antecessoras, Veolia Environment e Suez Environment (as duas maiores empresas privadas de água do mundo). Esta perda significou uma grande derrota simbólica para estas empresas: as duas têm suas sedes globais na cidade.4 Mas os fatos por si só pouco podem contra a ignorância orientada pela ganância. Um relatório de dezembro de 2011 do Deutsche Bank sobre o potencial de privatização na zona do Euro recomendava “a privatização dos serviços governamentais de interesse geral, como por exemplo o fornecimento de água, serviços de saúde e tarefas administrativas não soberanas” 5. O relatório consistia principalmente em declarações dos princípios gerais da privatização, mas o momento em que foi produzido o tornou bastante interessante: a crise financeira de 20072008 e a consequente crise da dívida soberana (quando bancos foram resgatados com dinheiro de impostos de contribuintes) estagnaram o crescimento econômico, colocando o capital financeiro em situação de extrema necessidade de investimentos lucrativos para o reembolso de suas crescentes dívidas e colocando muitos dos governos nacionais da União Europeia sob pressão do mercado internacional.
3 EU Commission forces crisis-hit countries to privatise water, Corporate Europe Observatory, 17 October 2012, http://corporateeurope.org/pressreleases/2012/eu-commission-forces-crisis-hit-countries-privatise-water 4 PIGEON M., MACDONALD D., KISHIMOTO S., HOEDEMAN O., Remunicipalisation - Putting water back into public hands, Municipal Services Project, Transnational Institute, Corporate Europe Observatory, 10 March 2012, http:// corporateeurope.org/water-justice/2012/03/remunicipalisation-putting-water-back-public-hands 5 Revenue, competition, growth - Potential for privatisation in the euro area, Deutsche Bank research, 1 December 2011, http://www.dbresearch.com/PROD/DBR_INTERNET_EN-PROD/PROD0000000000281545.pdf
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As instituições da União Europeia e particularmente certos departamentos da Comissão da União Europeia, como a Diretoria Geral de Mercado Interno (DG Internal Market) e a Diretoria Geral de Assuntos Econômicos e Financeiros (DG Economic and Financial Affairs), usaram a crise como oportunidade para pressionar os Estados por privatização direta e indireta da água6: isso levou à criação da primeira iniciativa de cidadãos europeus (uma petição que recolheu assinaturas de mais de 1,6 milhão de cidadãos) assim como à oposição substancial das forças políticas dominantes da Alemanha para forçar a Comissão a excluir o setor de água das diretrizes da União Europeia para contratos de concessão em junho de 2013.7 A dimensão urbana do sistema de água privado e seus apoiadores não gostam de ouvir sobre a importância política do setor. O relatório do Deutsche Bank, mencionado anteriormente, afirmava que os projetos de privatização da água na Itália estavam encarando o “obstáculo” de um referendo: um detalhe que vale mencionar, já que 96% dos eleitores italianos expressaram sua oposição à privatização da água em seu país no ano de 2011. Um ponto importante a ressaltar é que, atualmente, administrar sistemas de água não é mais uma opção atraente para as companhias de água. A Veolia, que foi duramente afetada pela perda de contratos históricos que foram devolvidos à administração pública na França (incluindo redutos conservadores, como Nice), foi forçada a reduzir lucros, para assim manter seus contratos, e sofreu perdas dramáticas vendendo ativos e demitindo pessoal.8 A companhia Suez perdeu seu último grande contrato municipal em um país em desenvolvimento, a Indonésia, na cidade de Jakarta, porque a Suprema Corte do país decidiu que a empresa fracassou em prover o direito humano à água. Mas a batalha continua: vender um bem vital através de monopólio continua despertando apetites do mercado financeiro. O conflito entre interesses comerciais e preferências democráticas pode ser observado na maior parte dos setores da sociedade, porém o setor da água é particularmente sensível. A onda de remunicipalização que cresceu nos últimos anos, e foi acelerada com o caso de Paris, claramente emerge como um fenômeno importante que precisa ser melhor compreendido. Em 6 The battle to keep water out of the internal market - a test case for democracy in Europe, Corporate Europe Observatory, 20 March 2013, http://corporateeurope.org/water-justice/2013/03/battle-keep-water-out-internal-markettest-case-democracy-europe 7 Commissioner Barnier’s proposal to exclude water services success for Europe’s citizens, European Federation of Public Services Unions, 25 June 2013, http://www.epsu.org/a/9598 8 Veolia Environnement, First Half 2013 results, http://www.veolia.com/en/medias/press-releases/2013-halfyear-results.htm
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março de 2012, depois de dois anos de trabalho, publicamos o livro: “Remunicipalisation – putting water back into public hands” (Remunicipalização: devolvendo a água às mãos públicas, tradução livre). Esse texto resume suas principais conclusões.
2. A história se repete e a necessidade de investigar o desempenho dos serviços públicos É preciso maior precaução antes de entrar nessa discussão. Certamente, não é a primeira vez que o mundo testemunha debates sobre remunicipalização. A maioria dos serviços de distribuição de água pelo mundo começou como empresas privadas (meados dos anos 1800), mas a ineficiência de múltiplos setores privados acabou se tornando evidente e governos locais passaram a municipalizálos. Essa medida foi tomada em particular por causa da descoberta de agentes de doenças infecciosas, que fez com que a extensão do sistema de água e esgoto se tornasse questão de saúde pública, o que era um custo alto demais para o setor privado, já que as empresas não poderiam cobrar dos pobres o suficiente para investir em uma infraestrutura tão cara. Por razão de saúde pública, a Organização Mundial de Saúde afirma que cada dólar investido em infraestrutura de água traz um retorno de 3 a 4 dólares em benefícios econômicos. Em Londres, por exemplo, o sistema saiu de um “monopólio de nove cabeças”², nos anos de 1850, para uma administração pública centralizada nos anos de 1900, o Metropolitan Water Board. Até mesmo o economista liberal John Stuart Mill criticou a ineficiência de fornecedores de serviços privados, afirmando que “um serviço de tamanha importância pública só poderia ser conduzido em escala tão grande que tornaria a liberdade de concorrência quase ilusória [...], sendo melhor tratálo como uma função pública” (Mill, 1872: 88-9). Ele argumenta que é um erro acreditar que a competição entre empresas de utilidade pública manterá os preços baixos. O resultado inevitável é um cartel e não preços mais baixos. Depois da Primeira Guerra Mundial, quase todos os sistemas de água municipais eram administrados publicamente, com a notável exceção da França, onde as líderes globais em sistemas de água atualmente, Veolia e Suez, conseguiram manter importantes contratos, sobrevivendo às ondas de nacionalizações que varreram o país durante o século XX. Em alguns aspectos, os debates atuais sobre remunicipalização parecem repetir as discussões que aconteciam a mais de um século atrás, quando os sistemas eram praticamente idênticos. Cidadãos continuam preocupados com a privatização como meio de exclusão daqueles que não 154
podem pagar; a administração pública geralmente é mais barata e melhor que o setor privado no manejo de monopólios naturais como os serviços urbanos de água; e a natureza transversal da água a torna um ponto sinérgico de políticas públicas. Apesar disso, a mudança na concessão não produz por si só bons resultados. Investigar até que ponto os casos de remunicipalização trouxeram ou não progressos foi o principal objetivo do livro: uma das maiores razões para tantos sistemas de água terem sido privatizados em primeiro lugar foi a falha de administradores em prover um serviço eficiente. No entanto, como a administração pública pode alcançar resultados que o setor privado não pode, registrar casos de remunicipalização contemporânea foi uma oportunidade para auxiliar aqueles interessados em melhorar esses serviços públicos vitais.
3. Escolhendo os casos e os critérios de avaliação Decisões sobre quais casos examinar na pesquisa foram baseadas em um critério severo. Primeiro, tentamos selecionar locais onde a remunicipalização foi completa e onde houve tempo suficiente para se chegar a conclusões sobre o processo (apesar de todos ainda estarem em andamento). Em segundo lugar, tentamos pegar exemplos globais, localizados na Europa (Paris), América do Norte (Hamilton), América Latina (Buenos Aires), África (Dar es Salaam), e Ásia (Malásia), todos com contextos econômicos, políticos e geofísicos bem diferentes. A Malásia foi um caso particular: foi uma reforma nacional e não municipal, e não estava concluída no momento da redação do livro, mas sua escala e fundamentos políticos a tornam bastante interessante. O fato de este ser o primeiro estudo comparativo sobre remunicipalização da água acarretou alguns obstáculos, o primeiro sendo o fato de haver pouca literatura a respeito. Outra dificuldade foi a escassez de literatura sobre alternativas à privatização, sendo a maior parte de estudos sobre antiprivatização uma crítica à privatização, ao invés de uma exploração de opções de serviços nãoprivados. O ponto de partida da pesquisa foi questionar a história original de privatização em cada municipalidade, e os eventos e condições que levaram a este. Todas as experiências de privatização deixaram legados financeiros, estruturais e ideológicos significantes, os quais direcionaram a remunicipalização, muitas vezes restringindo o potencial de êxito do setor público. 155
Mas o centro do trabalho, e sua parte mais difícil, foi a avaliação da remunicipalização em si. Essa avaliação foi construída em uma série normativa de “critério de êxito”, o qual foi desenvolvido previamente para um estudo mais abrangente sobre alternativas à privatização. Nosso objetivo foi estabelecer um conjunto universal de critérios pelos quais se poderia avaliar o sucesso (ou não) do serviço de remunicipalização, permitindo uma diferenciação. Como nota Hachfeld, (2009, p.4), “não há modelo ‘bom’ ou ‘progressivo’ de serviço público de hidrossistemas”: como serviços de água são uma questão local, a interseção de hidrossistemas, culturas particulares e ambientes específicos substituindo a ideia “mágica” de modelo de administração que se adeque a todos os casos seria inútil e até autodestrutivo. Ao mesmo tempo, a água é uma necessidade vital em qualquer lugar e a distribuição municipal de água e esgoto contemporânea adotou um formato comparável em qualquer lugar do planeta: uma rede de tubos de padrões comuns, trazendo água de estações de tratamento (tipicamente inspirada nos modelos da Organização Mundial de Saúde), e depois levando de volta ao meio ambiente após ser usada e tratada. Levando em conta que homogeneizações técnicas podem ser problemáticas, esses pontos comuns, resumidos no quadro abaixo, nos permitiram estabelecer um critério claro com o qual podemos avaliar os resultados da remunicipalização e comparar resultados em espaços diferentes.
Critérios utilizados para avaliar a remunicipalização Equidade
• A disponibilidade do serviço é equitativa para grupos sociais diferentes? • A qualidade e a quantidade de água distribuída são equivalentes? • Os preços são acessíveis? • A equidade na prestação do serviço é formalizada, legalizada ou institucionalizada de alguma maneira?
Participação na tomada de decisão
• O escopo e a profundidade de participação são adequados? • Há igualdade de condições na participação? • A participação é formalizada, legalizada ou institucionalizada? • O modelo de participação é sustentável?
Eficiência
• O serviço é realizado de maneira financeiramente eficiente? • Investimentos adequados são feitos em manutenção de longo prazo? • Os ganhos de eficiência comprometem outros resultados positivos? • Os ganhos com eficiência levam em conta outros serviços e/ou níveis de governo?
Qualidade do serviço
• A qualidade geral do serviço é boa? • A qualidade está evoluindo?
Prestação de contas
• A prestação de contas é acessível aos usuários? • A prestação de contas é formalizada, legalizada ou institucionalizada de alguma
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Transparência
• O público compreende as responsabilidades do provedor de serviço? • As decisões sobre a distribuição de serviço são comunicadas ao público? • A transparência é formalizada, legalizada ou institucionalizada?
Qualidade do ambiente de trabalho
• Os trabalhadores da linha de frente participam da tomada de decisão? • Os trabalhadores recebem salários e benefícios justos? • Há numero de trabalhadores suficiente que garanta qualidade, segurança e sustentabilidade? • Há boas relações entre trabalhadores da linha de frente, gerentes e usuários? • Há equidade entre os trabalhadores?
Sustentabilidade
• Há recursos financeiros suficientes para garantir a continuidade do serviço? • Há apoio político suficiente para a remunicipalização em diferentes níveis de governo? • Os recursos naturais são utilizados de maneira sustentável pelo serviço?
Solidariedade
• Os servidores constroem solidariedade entre trabalhadores, comunidade, burocratas, políticos, ONGs e usuários? • Os servidores constroem solidariedade entre diferentes setores? (por exemplo, com servidores de saúde pública?) • O serviço ajuda a construir solidariedade em outros níveis do Estado?
Caráter público
• O modelo ajuda a criar/construir um “caráter público” mais forte na distribuição de serviço? • O modelo promove diálogo sobre conceitos de propriedade e controle públicos? • O modelo se opõe explicitamente à privatização e comercialização?
Transferibilidade
• O modelo é transferível para outros locais (inteiramente ou em parte)?
4. Casos Individuais 4.1. Paris (França) O fornecimento de água na cidade foi transferido com sucesso em 2009-2010 com resultados impressionantes em muitas frentes, de maior transparência e economia de custos a uma melhor proteção dos recursos hídricos. Como a maior remunicipalização na Europa até então, o exemplo de Paris não era de forma alguma uma questão simples, devido, em parte, ao fato de que o abastecimento de água da cidade era executado por duas empresas privadas de água, Veolia e Suez, cobrindo dois terços e um terço da cidade, respectivamente. Houve oposição interna entre partes da administração da cidade, já que a nova empresa pública era o resultado da fusão de três empresas, incluindo duas privadas – o que criou tensões entre as forças de trabalho –, e procedimentos de contratação pública rígidos criaram dificuldades para o novo operador público. Todavia, estes e outros problemas foram superados. 157
Graças à remunicipalização, a cidade economizou aproximadamente 35 milhões de euros em seu primeiro ano e foi capaz de reduzir a tarifa de água em 8%, mesmo que passando, como em qualquer outro lugar na Europa, por uma crise econômica com diminuição lenta do consumo de água e aumento dos custos do tratamento de água, o que colocam o seu equilíbrio financeiro interno em questão. A enorme economia fez refletir o fato de que as duas empresas privadas, Suez e Veolia, estavam extraindo lucros excessivos de seus contratos de concessão, algo em torno de 15%. O novo operador público eliminou a opacidade financeira e a má prestação de contas que tinham caracterizado a privatização, e demonstrou que remunicipalização não diz respeito apenas à transferência de propriedade e controle da gestão, mas também relaciona-se com a adoção de políticas de água progressistas, melhoria dos padrões ambientais, embarcar em projetos de solidariedade internacional e outros objetivos de interesse público. A empresa pública de água da cidade agora trabalha com uma perspectiva de longo prazo, que resulta em campanhas de sensibilização para promover a água do sistema público. Também começou a dedicar fundos para apoiar a agricultura orgânica em torno de áreas de captação e está desenvolvendo parcerias com serviços públicos de água nos países em desenvolvimento. Uma auditoria realizada em 2014 pelo escritório independente de auditoria regional confirmou que a transição tinha sido um sucesso e que as finanças da empresa pública de água eram bem administradas.
4.2 Hamilton (Canadá) A transferência para a gestão pública trouxe uma economia muito significativa e também ganhos de eficiência na cidade canadense de Hamilton. Após uma intensa campanha realizada por grupos e sindicatos contra o sigilo e a má gestão do operador de água privado, o maior contrato de privatização na América do Norte terminou com a não renovação do contrato. A transparência nas operações do serviço de água melhorou muito como resultado da remunicipalização, e também provou ser uma verdadeira fonte de poupança, uma vez que permitiu que o município avaliasse adequadamente o desempenho ao usuário e fizesse ajustes de orçamento de ano para ano. A operação foi um sucesso, embora nem todos os problemas tenham sido resolvidos. Existem preocupações sobre o serviço público ser cada vez mais corporativizado, o que pode resultar no servidor se comportando de forma semelhante a uma empresa privada e não ser 158
tão responsável perante os seus cidadãos como deveria ser. Hamilton, além disso, sofre de grandes desafios ambientais, incluindo um problema de disposição do lodo tóxico. A tentativa de solucionar esse problema, através de altos investimentos em grandes infraestruturas de tratamento de águas residuais em larga escala, é improvável para trazer sustentabilidade a longo prazo para o uso de água da cidade, e uma atitude mais inclusiva para tentar resolver este problema poderia ter ajudado. O problema de depender de grande escala, infraestrutura centralizada, e de dar preferência a soluções tecnológicas em vez de abordagens mais holísticas existe em graus variados em todos os casos abrangidos no livro e continua a ser um desafio para a maioria dos sistemas de água municipais contemporâneas.
4.3 Buenos Aires (Argentina) Em termos do número de habitantes, a remunicipalização em Buenos Aires foi ainda maior do que em Paris. Enquanto a transferência para a gestão pública em Paris aconteceu no momento em que o contrato privado terminou, a remunicipalização na capital argentina começou com o governo quebrando 30 anos de concessão com a Suez na metade do ano de 2003. Esta foi uma decisão difícil de tomar, dadas as consequências legais: o estado argentino foi imediatamente processado pela empresa com um pedido de US$ 1,7 bilhão ao Centro Internacional do Banco Mundial para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (ICSID), e muitos anos depois, em abril de 2015, o “tribunal” (três árbitros) foi parcialmente favorável aos Suez, condenando a Argentina a pagar US$ 405 milhões para a empresa9. A decisão de terminar o contrato veio depois de a Suez ter falhado em cumprir as suas metas contratuais de ampliar a cobertura e melhorar a qualidade dos serviços de água. A multinacional não executou os investimentos prometidos, o que não a impediu de continuamente insistir na renegociação de contratos para aumentar os lucros. A nova empresa pública, 10% detida pelo sindicato dos trabalhadores, tem alcançado resultados impressionantes nos primeiros cinco anos em termos de expansão da cobertura para os cidadãos nos bairros mais pobres, envolvendo seus moradores em programas de obras públicas e garantindo-lhes o acesso à água e saneamento. Estes resultados, financiados por investimentos públicos, foram possíveis apesar do decréscimo das receitas (a empresa 9 Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona S.A. and Vivendi Universal S.A v. Argentine Republic (ICSID Case No. ARB/03/19), International Centre for Settlement of Investment Disputes, World Bank. Argentina introduced a proceeding in annulment in August 2015 which is still running at the time of writing. https://icsid.worldbank.org/apps/ icsidweb/cases/Pages/casedetail.aspx?caseno=ARB/03/19&tab=PRO
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pública está perdendo dinheiro) e problemas na estrutura institucional, tais como a falta de possibilidade de envolvimento e influência dos utilizadores de água a nível de tomada de decisão da empresa, bem como outros legados da era da privatização, como um sistema tarifário injusto. A empresa pública de água ainda tem que assumir o desafio ambicioso de garantir um programa de gestão da água econômica e ambientalmente sustentável que abarque todo o ciclo da água. No entanto, isso depende de soluções para a água poluída nas bacias dos rios metropolitanos.
4.4 Dar es Salaam (Tanzânia) A remunicipalização em Dar es Salaam conseguiu reduzir os níveis de vazamento de água e ampliar a cobertura depois de uma curta e desastrosa experiência de privatização, mas o acesso universal à água e saneamento ainda está longe de ser alcançado. A dependência da Tanzânia de doadores internacionais, particularmente os bancos de desenvolvimento, teve uma influência decisiva sobre a experiência remunicipalização: o contrato de privatização mal-sucedido que o governo encerrou tinha sido imposto primeiramente pelo Banco Mundial e outros bancos de desenvolvimento, e essas instituições mal se limitaram a aceitar a substituição da empresa privada por uma pública sem alterar nada no antigo quadro institucional, permanecendo no controle de prioridades da empresa. Esta transição controlada por doadores contribuiu para um foco excessivo no aumento da arrecadação de receitas, pouca participação dos funcionários na organização, uma relação conflituosa entre a nova empresa pública de água e o estado da Tanzânia e para a promoção de projetos que não eram necessariamente os tecnicamente mais adequados. Este exemplo destaca o problema contínuo de países empobrecidos serem financeiramente dependentes de doações de instituições internacionais que promovem reformas com orientação mercadológica do setor da água e outros modelos de abordagens para os problemas locais.
4.5 Malásia A reforma do setor da água na Malásia foi um pouco diferente dos outros casos retratados neste livro, no sentido em que ocorreu em escala nacional. Consistiu em nacionalizar ativos e corporatizar a gestão local. Foi uma tentativa de harmonizar a gestão da água em todo o país depois de uma série de experiências de concessão decepcionantes em um contexto de grandes disparidades dentro do país. O objetivo do projeto foi impulsionar o 160
desenvolvimento da infra-estrutura de água nos estados mais pobres, devolver todos os ativos de água no país à mãos públicas e delegar a sua gestão para empresas públicas ou privadas que seriam reguladas através de indicadores de desempenho e padrões. Fundamentalmente, os dois objetivos essenciais da reforma foram a “despolitização” da fixação de tarifas e a implementação da recuperação do custo total. Até o momento, a reforma havia trazido resultados mistos. No lado positivo, os novos investimentos públicos pareceram melhorar a cobertura de serviço e a confiabilidade técnica em estados onde as necessidades eram maiores, e ofereceu um mecanismo de reclamações dos usuários para o gestor a nível nacional. Do lado negativo, a exclusão das questões de gestão de recursos hídricos foi um problema, bem como a degradação das condições de trabalho e responsabilidade pública decorrente da privatização dos serviços públicos. A centralização nacional também reduz a flexibilidade para responder às circunstâncias locais sobre os serviços de água, incluindo as necessidades sociais. Mais preocupante, a ambição tecnocrática por trás de toda a reforma, visando isolar a gestão da água da política, já se provou equivocada, prejudicando a prestação de contas de todo o sistema e mostrando que a água continua a ser um elemento altamente estratégico e político.
5. Principais resultados Como qualquer tarefa complexa, a adversidade está sempre nos detalhes. É essencial, portanto, que seja levado em conta o mérito próprio de cada estudo de caso. Há, no entanto, algumas conclusões comuns que podem ser destacadas aqui.
5.1. A remunicipalização é possível Esses casos demonstram que os serviços de água podem ser transferidos da gestão privada para a pública, com ruptura mínima e resultados positivos. A remunicipalização é possível. Em todos os casos, a entidade estatizada se tornou mais transparente, e na maior parte dos casos mais justa e eficiente. Outro ponto a se enfatizar é que a remunicipalização pode ser feita em várias escalas. Apesar de governos nacionais terem sido envolvidos, como no caso de Dar es Salaam e Malásia, a remunicipalização pode ocorrer dentro dos limites da jurisdição da autoridade 161
local, tornando mais fácil que grupos locais se mobilizem e advoguem por mudanças. Pequenas cidades e distritos municipais podem trazer a água de volta aos domicílios. Dito isso, bacias hidrográficas ultrapassam os limites políticos e esquemas intergovernamentais ou intermunicipais (parcerias público-privadas) podem desempenhar um papel crucial na assistência a municípios com poucos recursos.
5.2 A privatização é seu próprio inimigo... Um dos principais aliados da tendência de remunicipalização dos serviços de água é o próprio fracasso, cada vez mais palpável, da privatização (em todas as suas formas). Em quatro dos cinco casos foi o (quase) colapso da privatização que precipitou a mudança para a remunicipalização. A situação era desastrosa em dois casos (Dar es Salaam, Buenos Aires) e problemática em outros dois (Malásia, Hamilton). Em Paris, o fornecimento de água privada não foi um fracasso por si só quando se olha para indicadores de desempenho convencionais (o desempenho técnico das empresas privadas na verdade aumentou quando se tornou claro que a remunicipalização estava sendo considerada), mas as duas empresas privadas estavam colhendo lucros que poderiam ter sido direcionados à gestão pública e utilizados em investimentos, em vez de extraídos por acionistas privados. Em todos os casos, tornou-se óbvio que as empresas privadas de água estavam priorizando o lucro a curto prazo em detrimento da sustentabilidade a longo prazo, e a prestação seletiva de serviços ocorria em detrimento da equidade ampla, tratando os cidadãos como consumidores e a água como uma mercadoria. Significativamente, foram os próprios burocratas e políticos que reconheceram esses problemas e começaram a se perguntar por que a água tinha sido privatizada. Muito dessa consciência tinha sido desencadeada por uma crescente crítica mundial da privatização, mas as falhas locais eram tão evidentes que até mesmo aqueles que tinham anteriormente apoiado a privatização voltaram-se contra ela. O fato de a maioria dos decisores políticos entrevistados para esta pesquisa serem, em geral, a favor de políticas orientadas para o mercado, e até mesmo apoiam a privatização em outros setores, faz com que a rejeição à privatização da água seja ainda mais pungente e condenável.
5.3 ... mas revertê-la não é fácil Uma observação importante: a rescisão do contrato de privatização antes do término é claramente o caminho mais difícil à remunicipalização, em comparação com a não-renovação após o vencimento do contrato. Esses rompimentos envolvem embates políticos complexos, 162
assim como batalhas judiciais de longo prazo, e disputas de litígios nas Cortes, com frequência amigáveis às corporações. Provavelmente não é coincidência que os dois casos de rescisão de contrato de privatização deste livro, Buenos Aires e Dar es Salaam, também são as cidades onde a situação humanitária causada pela falta de acesso à água era mais severa. No entanto, ambos os casos demonstram que a rescisão de contratos de privatização é viável mesmo em condições muito hostis, se houver vontade política. Outra lição importante é que qualquer esforço em direção à remunicipalização deve tentar antecipar-se às armadilhas antes que se inicie a transição. O movimento dos cidadãos para a remunicipalização em Hamilton, por exemplo, dedicou atenção considerável às questões técnicas, tanto em termos de analisar as deficiências da privatização quanto na escolha de alvos estratégicos para a sua campanha, o que se revelou fundamental para o eventual sucesso da campanha. Por mais encorajadora que a força subjacente à remunicipalização da água seja, as dificuldades técnicas e políticas associadas não podem ser subestimadas. Mesmo onde existe forte vontade política, capacidade técnica e financeira, reverter a propriedade e gestão para o setor público encontra inúmeras dificuldades. Há uma perda de memória institucional, ativos degradados, “rastros venenosos”10 deixados pela empresa privada (e, por vezes, até mesmo uma atitude deliberada de tentar sabotar a transição), sistemas de informática e contabilidade que não se entrosam com os sistemas do setor público, e assim por diante. Os estudos de caso aqui apresentados revisam alguns dos desafios. No entanto, tiveram um escopo mais conciso do que seria desejável para uma revisão exaustiva. É exatamente nos detalhes que o risco à remunicipalização pode ser encontrado. Mobilização política para iniciar a remunicipalização da água é indispensável, mas o trabalho duro de longo prazo para que isso aconteça é, finalmente, o verdadeiro desafio. Para piorar as coisas, aqueles que defendem a remunicipalização dificilmente podem contar com financiamento dos doadores para estas reformas. Depois de décadas de generosa (e permanente) política de apoio à privatização pelas instituições financeiras internacionais e doadores bilaterais, a maioria dessas organizações de “desenvolvimento” têm efetivamente ignorado a tendência de remunicipalização, isso quando não lutam contra ela. O financiamento para a pesquisa neste domínio é apenas uma gota no oceano se comparado ao que é gasto em pesquisa e conferências pró-comercialização. O caso de Dar es Salaam é interessante na medida em que mostra como ainda falta apoio político e financeiro internacional para permitir 10
N.T.: No original, poison pills.
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aos países em desenvolvimento fazerem suas escolhas e desenvolverem localmente um manejo público de água progressista. O Banco Mundial insiste em continuar buscando novas formas de mercantilização e privatização da água e limita as suas recomendações aos serviços públicos ao incentivo de práticas privadas de gestão. As campanhas da sociedade civil para reformar os bancos de desenvolvimento internacionais e para a criação de alternativas a estas instituições são, portanto, de extrema importância. Felizmente, há esperança! Outras opções como parcerias público-público são tão úteis na campanha para remunicipalização como para realmente fazer com que ela de fato aconteça. O exemplo de Dar es Salaam, apesar das suas limitações, apresenta um caso interessante de como parcerias não-lucrativas com empresas públicas de outros lugares podem ser usadas para mobilizar conhecimentos técnicos e de gestão para a melhoria do abastecimento público de água em domicílio. A experiência de Grenoble, outra cidade francesa, foi extremamente útil para questões trabalhistas e problemas de TI em Paris, e desde que ocorreu a remunicipalização parisiense, provou-se uma inspiração para muitas outras (Nice, por exemplo). Parcerias público-público são cada vez mais populares porque podem acarretar melhorias práticas sem a desastrosa perda de controle local que acontece com a privatização, além de evitar suspeitas sistemáticas em torno de parcerias público-privadas decorrentes de casos passados de parcerias de “solidariedade” entre corporações transnacionais e departamentos públicos de água locais, que foram usado pelos “parceiros” privados para, basicamente, espionar possíveis presas. Desde 2006, as Nações Unidas criaram e apoiaram a Aliança de Operadores de Água Global (GWOPA), coordenada pelo UNHabitat, cujo papel é ajudar a facilitar tais parcerias. Um número crescente de serviços públicos europeus de água agora envolvem-se em parcerias internacionais solidárias, como as empresas públicas de água de Paris, Amsterdã e da região da Sevilha.
5.4 O papel do Estado e dos trabalhadores organizados Em linha semelhante, é igualmente importante reconhecer que o apoio popular e a participação pública só podem ir longe na ausência de reformas mais amplas e transversais na sociedade, para permitir a participação política genuína dos cidadãos. Sistemas modernos de água não são redes tão complexas, mas ainda assim precisam de profissionais especializados 164
em tempo integral para administrá-los. As frustrações que muitos grupos de ativistas tiveram com o estado são compreensíveis, mas a realidade dos sistemas de água complexos e a escala dos investimentos necessários para fornecer um serviço de qualidade a toda a sociedade são tamanhas que os governos devem desempenhar um papel fundamental na reforma. Essa colaboração será mais fácil em locais em que altos funcionários e políticos estejam comprometidos com a mudança, mas, mesmo na existência de sérias tensões, os mecanismos de cooperação e diálogo serão essenciais. O envolvimento dos trabalhadores também é importante. Sindicatos do setor público nem sempre tiveram a melhor posição possível em debates locais sobre remunicipalização, apesar do fato de que os trabalhadores da linha de frente têm importantes insights sobre problemas operacionais e oportunidades e que sindicatos do setor público têm estado na vanguarda da oposição à privatização em nível mundial. Relações de trabalho precárias com os gestores são parte do problema, mas também o antagonismo com os movimentos sociais são uma preocupação, muitas vezes relacionado aos trabalhadores do setor público sendo vistos como interessados principalmente em proteger os seus próprios empregos e benefícios em detrimento do conjunto da sociedade (a redução de tarifas em Paris, por exemplo, encontrou uma certa ansiedade pelos sindicatos, preocupados em ver a margem de manobra financeira da empresa sendo limitada). Dito isto, é evidente que um estreito envolvimento dos sindicatos foi fundamental no apoio à transição em todos os casos bem sucedidos. Alguns sindicatos têm feito impressionante progresso na abordagem destas tensões, e os casos estudados aqui mostram que é importante que as boas relações entre os sindicatos, comunidades locais e movimentos sociais sejam promovidas para que as campanhas de remunicipalização tenham impacto significativo.
5.5. Da propriedade pública para democracia Da garantia do acesso à água para os pobres em Buenos Aires a uma gestão reunificada e consistente de todo o ciclo da água em Paris, as entidades de água desprivatizadas estudadas demonstraram capacidade em pensar para além das suas fronteiras geográficas, setoriais e de contabilidade para tornarem-se mais abrangentes em seu pensamento e ação. Graças a sua ligação direta ao nível político, os novos gestores públicos de água muitas vezes puderam se envolver com muitos outros departamentos municipais, cujo trabalho foi relevante. Pode-se pensar em planejamento urbano, de terra, mas também a silvicultura, agricultura, indústria, produção de energia... Todas essas atividades têm um impacto muito importante sobre o ciclo 165
da água. O setor privado tende a se queixar que a inteferência política seria ruim para a gestão da água, mas nossos casos indicam que uma melhor coordenação da política pode não apenas ser extremamente benéfica para a gestão da água, mas também que a política é inevitável, sejá lá quem for o gerente. O crescente fenômeno da remunicipalização questiona a ideia de que a privatização seria tão consolidada a ponto de que deixá-la seria irreversível. Mas há uma necessidade de rever o que entendemos por água “pública”, principalmente nos países onde os serviços públicos têm sido muitas vezes sub-financiados, desiguais, não transparentes e abertos à corrupção. Em alguns dos nossos casos, os executivos da nova empresa pública também negaram serviços para comunidades de baixa renda por causa dos elevados custos de estabelecê-lo, ou fizeram cortes nos serviços para punir a inadimplência. A remunicipalização não deve ser vista como linear, uma via de mão dupla entre as noções polarizadas de serviço privado ou Estatal, mas sim como um momento que abre possibilidades para construir um sistema robusto, com uma boa política hídrica, e com uma definição ampla e justa do que são sistemas de água eficientes. Acesso a água potável é uma necessidade e um direito universal, e a própria água é o pré-requisito absoluto para a vida na Terra: qual a melhor forma, então, de trabalhar em direção a uma democracia real e imaginar modelos de sociedade que tornem o nosso futuro, como parte da vida neste planeta, uma perspectiva mais feliz?
6. Bibliografia PIGEON M., MACDONALD D., KISHIMOTO S., HOEDEMAN O., Remunicipalisation - Putting water back into public hands, Municipal Services Project, Transnational Institute, Corporate Europe Observatory, March 2012, http:// corporateeurope.org/water-justice/2012/03/remunicipalisation-putting-water-backpublic-hands MILL J.S., The principles of political economy with some of their applications to social philosophy. Boston : Lee and Shepard, 1872 HACHFELD D., TERHORST P., HOEDEMAN O., Progressive Public Water Management in Europe - In search of exemplary cases, Transnational Institute and Corporate Europe Observatory, January 2009, http://www.waterjustice.org/uploads/attachments/ A5%20format_En_Sep%202009.pdf 166
O levante das águas - Os bens comuns e a visão andina da água restabelecidos pelo povo na Bolívia e nos Andes Oscar Olivera 1 Nos han robado Nos quieren vender Si nos seguimos durmiendo Nuestra alma hemos de perder Panchi Maldonado, “Nunca Más!”.
Se a vontade política coletiva dos povos andinos, em particular a dos aimara, tem alguma importância em nosso tempo, é, talvez, porque o seu exercício (comunal) sustenta-se numa prática ancestral que rompe lógica e historicamente com a produção do capital (o individualismo, a chamada ética protestante e, sem dúvida, com a mercantilização das relações sociais). Em outras palavras, a nova era das tradições sociais e políticas andinas permitiu em grande parte que a resistência se convertesse em ofensiva nos últimos anos na Bolívia. Desta forma, além de “colocar o corpo em frente às balas” coletivamente, a maneira comunal da política tem se convertido numa das mais eficazes ferramentas contra o chamado capitalismo selvagem, o neoliberalismo, como forma possível de outra convivência e reprodução de gente simples e trabalhadora do campo e das cidades: tanto nas ruas e nas estradas quanto nos conselhos e assembleias gerais.
1 Oscar Olivera é ativista e foi uma das principais lideranças do episódio que ficou conhecido como Guerra da Água, mobilização contra a privatização da água em Cochabamba, Bolívia, em 2000.Atualmente luta pela justiça socioambiental no país.
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Nesses esforços, titanicamente coletivos, o povo da nossa terra demonstrou que, sim, é possível que a definição dos assuntos que são importantes a todos passe por acordos e consensos não excludentes. O mesmo ocorreu tanto na Guerra da Água em Cochabamba (2000) quanto em El Alto, em outubro de 2003, na Bolívia. Tínhamos sido removidos de tudo e, no fundo de nosso natural direito à vida, com a Privatização e o saque de nosso patrimônio, respondemos do campo da morte recuperando a voz e a dignidade. Temos gritado nosso próprio “Chega” ao avanço do dinheiro. O tema da água, especialmente nas comunidades com tradições mais consolidadas, é para os aimara um patrimônio particular: não pertence como propriedade ao conjunto dos seres humanos, mas é visto como um “recurso para a vida em si”. Ou seja, a água, por si já fonte de vida, é aproveitada pelo povo mas também pelos animais, plantas e a própria terra. Como tantas outras coisas de nosso mundo, para os aimara, a água é um presente da Pachamama [Mãe Terra] e não pode, sem colocar a vida em risco, ser “propriedade” de ninguém, porque não foi dada como presente para ninguém em particular. Se mais de dois terços da população atual do planeta carece de água, basicamente pela sua incapacidade para pagar o custo do seu consumo, consideramos pertinente pensar em uma forma distinta de conceber a água, uma forma que impeça radicalmente sua mercantilização, sua apropriação por parte de um grupo ou empresa, ao mesmo tempo que coloque em discussão mecanismos mais horizontais para seu aproveitamento no capitalismo. Esperamos, assim, que no futuro, a responsabilidade sobre a água seja coletiva de verdade. Como já dizia um dirigente do bairro 24 de Junho na zona sul de Cochabamba, durante um momento de escassez, a pessoa sem água é incapaz de “gerir as bases da vida”. E justamente, tanto na zona sul desta cidade quanto nos bairros de El Alto ou muitas outras zonas do mundo, a marginalização e a negligência estatal têm fomentado de maneira indireta que o povo lance mão das suas tradições organizativas para solucionar seus problemas. As estruturas do cotidiano têm servido para impor uma solução. Vista sob esta perspectiva, a Guerra da Água de 2000 foi a resposta a uma agressão contra a vida na qual o velho e o novo, a tecnologia social, se incorporaram em uma contundente negação que nos afirma em nossa potencialidade para fazer as coisas nós mesmos, da nossa forma. 168
Sabemos também que o conceito dos “comuns” tem diversos significados na atualidade, alguns relacionados com o meio ambiente e outros com a produção intelectual (como nos livros ou nos programas de computador). Sabemos que muitas tradições fazem da água e das sementes bens comuns, patrimônios humanos, como explicou recentemente Vandana Shiva sobre as lutas camponesas na Índia. Nossa contribuição, se tem alguma utilidade em conjunto ao acúmulo de ideias e propostas anteriores, propõe-se a estabelecer um contraste que nos parece imperativo na luta global de resistência, não somente frente aos posicionamentos das instituições financeiras internacionais que, há tempos, pretendem fazer do nosso patrimônio objeto de mercado. Também diz respeito a uma atitude que nos parece chave: o modo como nos concebemos nesta luta e, sobretudo, de que local defendemos o que querem nos roubar, não somente as corporações mas os estados e as classes políticas. Companheiros e irmãos, companheiras e irmãs, queremos lhes contar algo que aconteceu conosco uma vez, caminhando pelas comunidades. Ficamos com muita sede, pedimos água a uma senhora que nos ofereceu um copo bem grande, agradecemos e a senhora disse que não tínhamos que lhe agradecer porque ela não era a dona da água. E assim é, a água é um recurso para a vida. Em 2000, nós nos Andes, homens, mulheres, jovens, crianças, idosos do campo e da cidade, sem distinção de raça, etnia, classe social nem posição econômica, defendemos até a morte a água e a vida. Enfrentamos os poderes transnacionais que em cínica associação com as elites reacionárias do país quiseram ser os donos da água de um dia para o outro. Nosso mote é de que a água é de todos e de ninguém, não é um recurso natural, mas a própria vida; de que a água é, para uns, um dom de Deus e, para outros, o sangue da Pachamama e também um presente generoso da nossa “mãe terra”. Como é um presente para todos, ninguém pode apropriar-se dela. Foi assim que saímos às ruas e às estradas para lutar, saímos de nossas comunidades, de nossos bairros, de nossas casas para derrotar esta política de naufrágio humano, mercantilista e covarde, com a qual as transnacionais como Betcher, Edisson e Avengoa pretendiam nos vender a água da chuva. Hoje, 15 anos depois, nos dirigimos a vocês para relembrar aos povos do mundo que aquela Guerra da Água em 2000 uniu o campo e a cidade e foi possível a reconstituição do 169
tecido social que durante 15 anos o neoliberalismo destruiu. Nesses momentos de dignidade, de resistência e de luta, recuperamos os valores que nossos pais e avós nos ensinaram; valores como a reciprocidade, a solidariedade, a confiança mútua, a complementariedade, o respeito e a transparência. Foi reconstituída a convivência social e além de tudo – pelo tema da água – se restabeleceu uma relação de respeito e harmonia com a natureza, com a nossa mãe terra. Hoje, com a força acumulada e as dolorosas vitórias dos primeiros anos deste século, estamos aprendendo a fortalecer e consolidar nossa alternativa. No conflito em andamento, sabemos que o que pertence a todos não pode nem deve ser vendido, expropriado ou servir para o benefício de poucos. O que nossos pais e avós nos deixaram são para nossos filhos, e nós, bolivianos humildes, começamos a assumir esse cuidado com o nosso dever com a história. O modelo de desenvolvimento imposto pelo ocidente tem colocado o planeta numa situação de vulnerabilidade extrema, ao ponto de pôr em risco a vida de todas as espécies que o habitam. Se isto já é grave com a camada de ozônio sendo deteriorada, a poluição do ar é cada dia maior; o arsenal nuclear e o armamento químico e bacteriológico, em vez de diminuir, aumentam; com o novo modelo que se está implementando, com o extrativismo, a situação tende a piorar ainda mais e torna-se incontrolável. Os políticos sabem que este modelo só trará benefícios aos grandes consórcios industriais que hoje operam por cima dos Estados e lhes impõem suas próprias leis, tornando-se uma forma de colonialismo tão cruel e sem piedade para com os povos como foi a invasão espanhola. Já não é o ouro ou a prata o que interessa. Hoje são as terras amazônicas e altoandinas, seus recursos naturais e nossa cultura. Para isso, a água é indispensável. O valor que a água tem para as comunidades andinas – que são aqueles que cuidam dela, respeitam as leis da mãe terra e lhe dão um uso harmônico – não tem importância para o ocidente. Se a flora e a fauna são afetadas e condenadas ao extermínio, isso também carece de importância. A sociedade ocidental é antropocêntrica [centrada no homem]. O homem ocidental sente-se o rei da criação, como se tudo tivesse sido colocado ao seu serviço e como se pudesse 170
fazer e desfazer ao seu capricho. Não entende que a Mãe Terra nos dá os seus recursos para satisfazer as necessidades de todos os seus filhos e filhas. Durante milhares de anos, temos sabido cultivar a vida, forjando a nossa cultura segundo o nosso pensamento, espaço-territorial, zonas ecológicas, princípios de reciprocidade, troca, complementariedade das economias e de acordo com a nossa espiritualidade, para o benefício de todos e todas. A água não é, como pretende o ocidente, um recurso mineral necessário para a vida. A água é mais do que isso. A água é um ser vivo que, além disso, nos dá a vida. São as veias que atravessam o corpo da mãe terra e dão animação ao universo. A água tem a mesma função que o sangue que corre pelas nossas veias. Se ela escasseia, adoecemos. Se a perdemos, morremos. Ela sabe qual é o caminho que deve seguir e marca seu próprio leito. Se nós precisamos que vá por outro caminho, com os nossos rituais lhe pedimos permissão e a convidamos que aceite a ir por ali. Foi assim que as obras de engenharia hidráulica que vemos hoje nos sítios arqueológicos foram construídas na antiguidade. Esta forma de pensar foi fundamental para a conservação e reprodução dos recursos hídricos. La A visão do ocidente a respeito do andino é de total desconhecimento e ignorância e somente conhece o que antropólogos e sociólogos, formados em suas universidades, têm acreditado interpretar de nós. A partir disto, eles têm formado nossa suposta história, totalmente errada e humilhante para o índio. Hoje eles querem nos ensinar a utilizar a água e a terra, com uma visão que não é nossa, quando foram eles os que feriram gravemente o meio ambiente e nossos recursos naturais. O Estado fala sobre o seu interesse em nos integrar em sua sociedade e fazer parte ativa da nação. Mas, de que nação estão falando?, pois a deles somente existe no papel. Aqui convivem muitas nações indígenas não reconhecidas como tais pelo Estado, mas são elas que têm dado uma identidade cultural aos países. 171
O paradoxo é que os Estados que pretendem nossa integração agem com uma dupla moral: por uma parte, dizem sentir-se orgulhosos da biodiversidade do país e de nossa diversidade cultural e vangloriam-se frente ao mundo. Contudo, reprimem, criminalizam e encarceram os indígenas, os camponeses e os povos – por sua ancestral cultura – quando estes se opõem às suas políticas em defesa do território e comunidade. Para o agrônomo, o que importa é conseguir a maior produção no mínimo espaço disponível. Interessa-lhe o que vai semear e não as outras espécies que também habitam o lugar. Para ser especialista, ele terá de conhecer as características do solo, a qualidade da água, o clima e as exigências da semente que irá utilizar. Todo o seu conhecimento foi aprendido na universidade e nos livros. Portanto, é um conhecimento embasado, porém que supõe poder ser aplicado em qualquer terreno. Nós, homens e mulheres dos Andes, pensamos diferente. Para nós, a natureza é tudo. Não é um meio inerte, mas a soma de tudo o que existe no local (o que pode ser visto e o que não se vê). Trabalhando corretamente e com o respectivo ritual, podemos assegurar o sucesso da semeadura. Nesse trabalho não somos somente nós que cuidamos do cultivo, mas também outras espécies e entidades da natureza que ajudam e merecem respeito. Os governos têm interesse em conservar nosso ambiente, porém, sem os indígenas, sem os povos, sem as comunidades. O exposto até agora não é nenhum exagero, pois somente devemos observar o que está acontecendo na Amazônia, nos territórios mapuche do Chile e da Argentina, na Patagônia, com os indígenas TIPNIS na Bolívia. O que [os governos] pretendem é apropriar-se da água e dos recursos de nossa biodiversidade e, para tal, procuram um apoio legal para sua usurpação. A água é vital para a vida e um bem de domínio público. Portanto, não pode ser tratada como uma mercadoria, atribuindo-lhe um valor comercial e submetendo-a às leis de mercado. Aceitar isto é permitir que depois façam a mesma coisa com o ar que respiramos. A água é de todos e de ninguém. Pertence à terra e aos seres vivos, incluindo o homem. A mãe natureza a distribui segundo as nossas necessidades e as características de cada zona ecológica. A água não é patrimônio do Estado. A água é patrimônio da terra. Afirmar o contrário é uma aberração. 172
Que tempo de vida tem o atual Estado? Quanto tempo de vida pode ainda ter? Os Estados atuais não ultrapassam os 200 anos de existência. No entanto, nos Andes, há mais de 20.000 anos, nós desenvolvemos uma sociedade em harmonia com a natureza, a qual foi violentada com a invasão europeia e onde nossas comunidades, guardiãs do passado, conservaram parte da ciência que desenvolveram nossos avós. O Estado somente tem o direito de velar pela conservação e pelo bom uso dos recursos naturais, de nossos bens comuns, enquanto durar como tal. O Estado não pode hipotecar ou vender o que a terra nos dá gratuitamente e nossos avós cuidaram. O Estado não é eterno, a natureza tem estado conosco desde sempre. A fragilidade dos Estados é tão evidente que já se projeta uma mudança no mapa da América Andina para 2020, onde os Estados Unidos procuram uma realocação geopolítica, de acordo com as suas necessidades com o fim de continuar como potência mundial. Do interior do próprio Departamento de Defesa dos Estados Unidos, filtrou-se a informação de que países como Peru, Bolívia e Equador estão condenados a desaparecer, pois não são funcionais ao projeto globalizante. Contudo, é nestes territórios que há gás, petróleo, água e grandes recursos naturais. Sendo assim, o índio acaba sendo um obstáculo para se apoderarem destes territórios. Temos afirmado que a escassez de água é grave e preocupa-nos a todos. Isto tem levado o ocidente a apresentar uma proposta que, desde sua perspectiva, seria uma solução viável aos problemas de escassez. Essa proposta já foi apresentada em diversos eventos internacionais e pretende: • Que na agricultura, priorize-se a água para os cultivos e alimentos transgênicos, a fim de que o uso seja racional e controlado. Caso esta política seja aceita, constituiria um atentado contra a grande biodiversidade de cultivos andinos e amazônicos, gerando dependência das empresas biotecnológicas, com o perigo – também – da introdução de cultivos alheios a estes ecossistemas, os quais acabariam sendo afetados. • A priorização da água a favor dos cultivos de maior valor comercial. Tal fato levaria à destruição da produção familiar nos Andes, base da própria subsistência e cultura. 173
• Conseguir que o investimento privado seja o eixo para solucionar o problema da escassez de água e que o Estado privatize o serviço. • Que a água seja tratada como uma mercadoria, sujeita às leis da oferta e da demanda, com o fim de atrair o investimento privado. A água acabaria tornando-se arma do extermínio das comunidades andinas e amazônicas, as quais teriam de migrar para as cidades, gerando mais miséria. • A extração dos bens comuns e a priorização da água para a indústria extrativa e não para as pessoas e para a natureza. O quadro que se apresenta é alarmante. Este modelo, baseado no extrativismo e na espoliação dos povos indígenas, está gerando uma série de conflitos cada dia maiores. Isto nos leva a termos que aceitar que a água, sua propriedade e seu uso serão um dos novos conflitos que o mundo globalizado irá enfrentar. Em poucas palavras e para seguir vivendo, nós dizemos: autodeterminação e autogoverno. E, na Bolívia, onde “o levante das águas” trouxe à tona este assunto, pensamos que não somente é uma alternativa, mas uma responsabilidade. “Como a Água: Alegres, Transparentes e em Movimento”2
2 Este texto foi elaborado com as contribuições de Luis Gómez (do México) e Juan Rivera Tosi (dos Andes Peruanos), embora sem a sua permissão. Evidentemente foi elaborado também com o pensamento, a palavra e a ação de nossos povos.
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Águas públicas: Lições de Buenos Aires por Daniel Azpiazu 1 e José Esteban Castro2
Em 1993, o governo argentino outorgou ao consórcio privado Águas Argentinas S.A. (AASA), dirigido pela empresa multinacional francesa Suez, uma concessão de 30 anos para prover os serviços integrados de água e saneamento da Área Metropolitana de Buenos Aires (AMBA). Naquele momento, AASA tornou-se a maior concessionária privada deste tipo no mundo, cobrindo uma população de aproximadamente nove milhões de pessoas. O processo constituiu-se um dos maiores e mais acelerados programas de privatização do mundo (com exceção das economias do ex-bloco soviético), completamente identificado com as recomendações do chamado Consenso de Washington. Este processo anunciou-se como o carro-chefe da privatização, que devia reproduzir-se em outros países3. Depois de quase 13 anos de gestão caraterizada pela falta de cumprimento de acordos por parte dos empresários, que contaram frequentemente com a complacência oficial, no fim de março de 2006 o governo nacional presidido por Néstor Kirchner decidiu reverter ao estado a responsabilidade da prestação do serviço. Estritamente falando, a desprivatização de AASA não foi um caso de “remunicipalização”. Primeiro, a concessão havia sido outorgada pelo governo federal e não pelas autoridades municipais. Segundo, a concessão foi adquirida por uma companhia pública especificamente criada para o momento, Água e Saneamentos Argentinos (AySA), controlada pelo governo nacional. Contudo, o serviço opera a nível municipal e as lições aprendidas neste caso são importantes para o assunto da remunicipalização tratado neste 1 Daniel Azpiazu faleceu pouco depois de haver completado seu trabalho para este capítulo. Azpiazu era um pesquisador comprometido com a defesa dos bens públicos e realizou uma notável contribuição para a compreensão das causas da desigualdade socioeconômica e a injustiça na Argentina, incluídas as associadas com a privatização de serviços públicos essenciais. 2 José Esteban Castro é licenciado em Sociologia (Universidad de Buenos Aires) e Doutor em Ciências Políticas (Oxford). Atualmente é professor titular de Sociología na Universidade de Newcastle, Reino Unido e coordenador da rede Waterlat-Gobacit. 3 Idelovitch, E. y Ringskog, K. (1995) Private sector participation in water supply and sanitation in Latin America. Washington, DC: Banco Mundial.
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livro. Em particular, o caso destaca como o legado do processo de privatização dos serviços de água e saneamento dificulta a reorganização de tais serviços com respeito a objetivos de bem público, em especial, o objetivo de subordinar a rentabilidade empresarial às metas sociais de acesso universal a serviços públicos de qualidade. Na primeira parte deste capítulo examinamos aspectos chave da concessão outorgada a AASA para contextualizar o posterior cancelamento do contrato privado. A seguir analisamos o longo e conflitivo processo de renegociação contratual que teve lugar entre 2002 e 2006, o qual envolveu não somente o governo nacional, o Congresso e o operador privado, mas governos estrangeiros, tribunais internacionais, sindicatos (principalmente o Sindicato Grande Buenos Aires de Trabalhadores de Obras Sanitárias, SGBATOS), organizações não governamentais e instituições públicas independentes, entre outros. A terceira parte aborda os problemas associados ao marco institucional normativo e regulatório que foi criado a partir da renacionalização e a criação de AySA. Finalmente, analisam-se o desempenho e as principais características do operador público4. Conclui-se com as lições extraídas da traumática experiência privatizadora de Buenos Aires, especialmente em relação às formas de gestão que permitem ou dificultam a defesa do caráter público e universal do acesso aos serviços básicos de água e saneamento.
1. Obtendo benefícios de um mau desempenho empresarial Qualquer que seja a dimensão analítica considerada, a gestão de AASA reconhece dois grandes subperíodos. O primeiro, entre 1993 e início de 2002, caracterizou-se por recorrentes renegociações contratuais relacionadas com aumentos tarifários e por repetidas queixas governamentais por descumprimentos em matéria de investimentos, metas de expansão, prevenção ambiental e controle da qualidade da água, entre outros assuntos. Estas renegociações sempre foram favoráveis aos interesses da concessionária e a complacência oficial transformou-se em falta de vontade de assumir o custo político de interromper o esforço privatizador. O segundo, analisado na próxima seção, remete ao demorado e conflitivo processo de renegociação contratual disposto no marco do abandono do regime de conversão fixa com o dólar estadunidense5.
4 Nota relativa à tradução para o espanhol (que baseou a tradução para o português): mantivemos os dados da versão em inglês deste capítulo, embora algumas questões mudaram desde que a versão original foi escrita. 5 Lei nº 25.561 de Emergência Pública e Reforma do Sistema de Intercâmbio (6 de Janeiro, 2002).
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Os termos da concessão original, as principais modificações introduzidas posteriormente e os fatores subjacentes à estratégia da empresa auxiliam no entendimento das dinâmicas destes dois períodos. Em poucas palavras, no contrato original, o operador privado comprometia-se a: 1) garantir o acesso universal para o ano 2003 (passando de 70% de cobertura para o serviço de água em 1993, a 100% em 2003 e de 50% a 95% para o serviço de saneamento no mesmo período); 2) melhorar a qualidade do serviço para atingir padrões internacionais; e 3) incorporar novas tecnologias para o tratamento de esgoto. Estes objetivos deviam ser atingidos enquanto as tarifas mantinham-se “razoáveis”. Vale ressaltar que um elemento determinante na outorga de concessão à AASA foi a oferta de uma redução inicial de 26,9% sobre a tarifa vigente em 1993, que superou as ofertas dos outros candidatos da licitação6. O contrato original dividia o período da concessão em seis quinquênios e estipulava revisões do contrato ao final de cada período para verificar o cumprimento do operador com as metas de expansão, investimentos e congelamento das tarifas que eram parte integral da oferta original. Porém, os primeiros 10 anos do contrato foram isentos desta congelação de tarifas a partir da solicitação da companhia. A regulação do serviço, como surge do próprio Marco Regulatório estabelecido pelo Decreto 999/9, estava sob a responsabilidade do Ente Tripartido de Obras e Serviços Sanitários (ETOSS). Em relação à qualidade da provisão da água e saneamento, o contrato adotou os parâmetros físico-químicos e bacteriológicos recomendados pela Organização Mundial da Saúde. Acordaram-se medidas específicas de proteção ao meio ambiente que requeriam a construção de plantas para o tratamento de esgoto por parte da concessionária, com o objetivo de eliminar progressivamente a poluição dos corpos hídricos. A regulação das tarifas baseouse em um limite imposto aos aumentos que o operador privado podia solicitar determinado pelo ingresso promédio por usuário, pelo qual o ETOSS podia exigir reduções das tarifas caso este ingresso excedesse um nível estabelecido. No entanto, assim como com outros termos do contrato original, nos anos consecutivos este critério foi modificado em renegociações contratuais, sempre em benefício dos interesses da companhia privada. O contrato também estabelecia duas possibilidades para conceder ajustes nas tarifas: ajuste “ordinário” e “extraordinário”. O primeiro seria considerado durante as revisões do 6 A resolução 155/1992 do Ministério das Obras Públicas e Comunicações (SOPyC) atribuída a concessão para a AASA; A resolução foi confirmada pelo Decreto Nacional Governo 787/1993.
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cumprimento ao final de cada quinquênio, enquanto o segundo poderia ser concedido em caso de mudanças nos custos operativos da companhia, calculados a partir de um índice especial. Mesmo antes do primeiro ano da concessão acabar, a AASA solicitou uma “revisão extraordinária” das tarifas com o argumento de que havia tido perdas operativas não previstas e o ETOSS autorizou um aumento da tarifa de 13,5%, o qual somou-se a um aumento considerável na “taxa por infraestrutura” fixa que aplicava-se aos novos usuários conectados à rede7. A partir desse momento, a concessão caracterizou-se por um aumento nos descumprimentos das metas contratuais, especialmente em relação ao ritmo de investimentos, à expansão da cobertura e à qualidade dos serviços. Também houve uma pressão contínua do operador para extrair concessões por parte das autoridades, incluindo demandas para “dolarizar” as tarifas e buscar uma solução aos problemas de morosidade e não pagamento da taxa por infraestrutura por parte dos novos usuários, na sua maioria pobres. O governo respondeu favoravelmente às demandas da companhia e em 1997 estabeleceu um processo para renegociar o contrato, o qual introduziu modificações substanciais nos termos originais (Decreto 149/97 e 1167). As renegociações continuaram entre 1997 e 1999 e resultaram em modificações adicionais para responder aos interesses do operador privado. Os novos termos do contrato incluíram, dentre outros: a dolarização real da tarifa, que chegou a ser vinculada diretamente com a evolução de um índice combinado de preços dos EUA8; a eliminação do princípio regulatório que limitava os aumentos da tarifa em função do ingresso médio por usuário; a introdução da possibilidade de solicitar uma “revisão extraordinária” do contrato anualmente; e o cancelamento e o adiamento de vários compromissos do investimento originalmente estabelecido. Neste contexto, a primeira revisão quinquenal do contrato, inicialmente agendada para 1998, foi adiada até 2001, momento no qual AASA e ETOSS negociaram a portas fechadas uma ata de acordo em que foi aprovado o Segundo Plano Quinquenal. O novo plano estabeleceu que, frente aos novos compromissos da AASA de efetivar os investimentos não realizados, adiantar outros e atingir as metas estabelecidas inicialmente, era necessário estabelecer um aumento tarifário9 e a incorporação de novas taxas fixas. Todavia, apesar de todas as revisões introduzidas a favor da concessionária privada, o ETOSS estimou que, no período entre 1993 e 2002, a AASA somente cumpriu 60,9% dos seus objetivos 7 8 9
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ETOSS (Entidade Tripartite de Obras e Serviços Sanitários), Resolução 81/1994. Em contradição com a Lei de Convertibilidade 23.928 então vigente. De 3,9% anual acumulativo entre 2001 e 2003.
contratuais de investimento e expansão. Um desempenho pífio, pois o cálculo foi feito sobre a base de compromissos de investimento reduzidos através de revisões contratuais10. Em termos de proteção ambiental, a AASA tampouco cumpriu com os compromissos do contrato. Por exemplo, segundo a revisão do ETOSS, continuavam a registrar-se níveis de substâncias tóxicas (como arsênico, cianureto, metais pesados e nitratos) muito superiores aos recomendados pela Organização Mundial da Saúde. Por outra parte, a AASA não havia avaliado os possíveis impactos ambientais quando decidiu fechar vários poços de água subterrânea na zona sul da Grande Buenos Aires, tornando várias municipalidades dependentes do abastecimento de água bombeada do Rio da Prata. Esta decisão finalmente ocasionou um aumento da capa freática do local, o que causou inundações recorrentes de edifícios e ruas nos municípios de Lomas de Zamora, Quilmes e Morón, piorando também a contaminação das fontes de água subterrânea da região. Em 2001, o município de Berazategui apresentou uma demanda judicial contra a AASA pelo não cumprimento dos compromissos contratuais originais de construir instalações adequadas para o tratamento de esgoto, as quais ainda estavam despejadas sem tratamento no Rio da Prata. Posteriormente, as evidências acumuladas deste tipo de impactos ambientais causados pelas atividades da AASA resultaram em um elemento central para o cancelamento do contrato11. A falta de cumprimento dos compromissos originais refletiu-se também no descumprimento dos objetivos de expansão. Embora a meta original de passar de 70% a 100% na cobertura de abastecimento de água em 2003 havia sido reduzida a 88%, em 2002 somente atingiu-se 79%. Da mesma forma, a meta de aumentar a cobertura do serviço de saneamento de 58% a 95% havia sido reduzida para 74%, porém atingiu-se apenas 63%. Isto supõe que em 2002 ainda havia 800.000 pessoas sem acesso à água e mais de um milhão sem saneamento. O baixo desempenho é ainda maior se consideramos os objetivos originais para o tratamento primário de esgoto, em que a AASA somente conseguiu atingir 7%, o que levou a mais de seis milhões de pessoas sem este serviço12. Outro indicador do baixo desempenho da concessionária privada é o aumento das tarifas. Primeiro, entre maio de 1993 e janeiro de 2002, a tarifa residencial média aumentou em 87,9%, enquanto, durante esse mesmo período, o Índice de Preços ao Consumidor somente aumentou 7,3%. Segundo, durante as renegociações do contrato, uma série de critérios progressivos que 10 ETOSS (2003) Informe sobre el grado de cumplimiento alcanzado por el contrato de concesión de Aguas Argentinas S.A., Nota UNIREN, no. 73. Buenos Aires: ETOSS. 11 Decreto de Necesidade e Urgência 303/2006. 12 ETOSS (2003) Informe sobre el grado de cumplimiento alcanzado por el contrato de concesión de Aguas Argentinas S.A., Nota UNIREN, no. 73. Buenos Aires: ETOSS.
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proporcionavam certo nível de subsídio cruzado para os usuários de baixa renda foram eliminados, o que levou a um impacto desigual no aumento de tarifas em relação aos diferentes usuários. Neste sentido, entre 1993 e 2002 a tarifa básica aumentou 177% e a fatura promédio subiu 62%. Contudo, os usuários de alto consumo registraram um aumento de 44% apenas13. O abordado até então apresenta uma análise sintética das condições que permitiram à concessionária privada tirar proveito de uma taxa média de lucro de mais de 20% dos ativos líquidos e de cerca de 13,3% no volume de negócios entre 1994 e 2001. A baixa elasticidade da demanda e a estabilidade relativa do consumo, junto a um risco zero garantido pela complacência e indulgência das autoridades, permitiram que a AASA obtivesse benefícios extraordinários ao mesmo tempo que descumpria os compromissos contratuais. Isto remete a outro aspecto central na estratégia desenvolvida pela AASA desde o início da gestão: a minimização de aportes de recursos próprios (apenas 2,6% da origem total do investimento entre 1993 e 2001) e, fundamentalmente, uma agressiva e desproporcionada política de endividamento, superando com folga os valores máximos estabelecidos no contrato de concessão. Esta dívida foi obtida principalmente com organismos multilaterais de crédito, com juros muito mais baixos que os vigentes então no mercado local. Isto levou, ao desconsiderar o risco de câmbio quando aconteceu o colapso do regime de convertibilidade em 2002, a que a concessionária enfrentasse um endividamento de 700 milhões de dólares, equivalente a mais de três anos de faturação bruta e mais de 20 vezes seu patrimônio. Ao mesmo tempo, este fato explica por que nesse ano o déficit contábil da empresa superou em 13% o total faturado. Em suma, o primeiro período da concessão esteve marcado por uma série de modificações contratuais, principalmente relacionadas ao aumento das tarifas e ao descumprimento dos compromissos relativos aos investimentos, objetivos de expansão, proteção do meio ambiente e qualidade do serviço, enquanto a companhia concentrava benefícios e dívidas.
2. A saga da renacionalização A aprovação no começo de 2002 da Lei de Emergência Pública e de Reforma do Regime Cambiário (Lei 25561) deu início ao processo que culminaria no cancelamento do contrato da 13 CRCOSP (Comisión de Renegociación de Contratos de Obras y Servicios Públicos) (2003) Informe del equipo técnico y análisis, sector agua y saneamiento sobre el procedimiento de documento de consulta de Aguas Argentinas S.A. Buenos Aires: CRCOSP. http://www.mecon.gov.ar/crc/inf_doc_cons_aguas.pdf (se accedió el 12 de diciembre de 2011).
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AASA. A nova legislação acabou com a paridade fixa entre o peso argentino e o dólar estadunidense e estabeleceu um novo contexto operativo para companhias privatizadas durante a década de 90. Em particular, a lei cancelava os mecanismos de indexação, previamente aplicados para aumentar as tarifas, e fez com que as tarifas do serviço público retornassem à moeda nacional (“pesificação”). A lei também estipulava que todos os contratos com companhias privadas estavam sujeitos à renegociação, contudo, os operadores privados não podiam suspender ou alterar os termos de cumprimento de suas obrigações contratuais. Neste contexto, a renegociação com a AASA entrou em uma etapa complexa. A companhia privada reagiu rapidamente com pressões ao governo – de forma direta e através de seus acionistas estrangeiros – e, especialmente, com apelações frente ao Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (CIADI) do Banco Mundial14. Além disso, os governos de países onde os acionistas tinham suas sedes, em particular França, protestaram frente ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para pressionar a Argentina a resolver o assunto em favor da AASA. Estes acontecimentos impuseram severas restrições e pioraram as condições do longo e conflitivo processo de renegociação do contrato. A AASA não havia mudado seu enfoque desde os anos 1990 e não mostrou interesse em aceitar a perda dos privilégios dos quais havia usufruído durante quase uma década. Durante os dias da promulgação da nova lei, a AASA preparou um plano de emergência e fez uma série de petições ao governo: que lhe proporcionaria um seguro retroativo para cobrir a diferença cambiária que havia aumentado sua dívida externa em até aproximadamente 700 milhões de dólares; a concessão de uma paridade do peso frente ao dólar para suas importações (principalmente transações internas entre sucursais estrangeiras e locais do próprio consórcio); e a suspensão de todos os investimentos de forma unilateral e indiscriminada15. Quando Néstor Kirchner assumiu a presidência em 2003, seu governo começou a considerar seriamente a rescisão do contrato com a AASA. Existia naquele momento uma forte convicção de que as privatizações da década de 90, em particular a da AASA, acarretavam em um grande custo social. Uma série de informes 14 Os principais acionistas da AASA apresentaram seus casos ante CIADI como Suez, Sociedade de Águas de Barcelona S.A. e Vivendi Universal S.A. vs A República Argentina (CIADI Caso No. ARB/03/19); outros como Anglian Water Limited apresentaram o caso à Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional (CNUDMI). 15 AASA (Aguas Argentinas S. A.) (2002) Respuesta a la información solicitada por el Ministerio de Economía por medio de la guía de procedimientos. Resumen Ejecutivo. Buenos Aires: AASA; Azpiazu, D. y Porcinito, K. (2004) Historia de un fracaso: La privatización del sistema de agua y saneamiento en el Área Metropolitana de Buenos Aires. En Azpiazu, D., Catenazzi, A. y Forcinito, K. (Eds.), Recursos Públicos, Negocios Privados. Agua Potable y Saneamiento Ambiental en el AMBA. Los Polvorines, Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento. 95 Aguas públicas: Lecciones desde Buenos Aires
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oficiais16 e dados recolhidos por organizações da sociedade civil, incluídos grupos de usuários e consumidores, e organizações não governamentais, sugeriram que havia provas suficientes de descumprimento sistemático do acordo por parte da concessionária para anular o contrato. Sobre a mesa havia também outras alternativas, como uma administração privada (preferivelmente com uma estrutura diferente de acionistas) com mais intervenção do estado para o planejamento de infraestrutura e de desenvolvimento, ou um contrato adaptado que facilitasse a “gestão” privada da companhia, mas que transferisse ao governo a total responsabilidade da expansão de infraestrutura e de manutenção17. A princípio, o governo tentou encontrar uma resolução “ordenada” que, por um lado, não implicasse em arcar com o exorbitante endividamento externo da concessionária e, por outro, evitasse as fortes pressões internacionais em caso de rescisão do contrato. Nesse contexto, em maio de 2004, assinou-se um acordo pelo qual as tarifas vigentes no momento seriam mantidas, o Estado suspenderia a execução das multas aplicadas à companhia e acordava financiar um plano de obras; e a AASA suspenderia o trâmite das “questões de fundo”, incluindo a demanda apresentada no CIADI, comprometendo-se a apresentar um plano de reestruturação de sua dívida. Contudo, a renegociação tomou outro rumo em outubro de 2004 quando a AASA apresentou uma nova proposta que reavivou o confronto com o governo. A proposta da AASA incluía uma série de passos orientados a reconstituir o equilíbrio econômico e financeiro da concessão: um aumento dos ingressos de 60% a partir de janeiro de 2005; intervenção do estado para obter um empréstimo de 250 milhões de dólares a serem pagos em 18 anos, com uma taxa de juros de 3% e um período de carência de três anos; o compromisso do governo de assumir 48% dos futuros investimentos em infraestrutura; e a isenção do imposto sobre a renda. As autoridades argentinas consideraram a proposta inaceitável, o que levou a um impasse nas renegociações. O processo tornou-se ainda mais antagônico nos meses posteriores, possivelmente porque os principais acionistas do operador privado acreditavam que o CIADI se pronunciaria a seu favor e contra a Argentina18. 16 Ver, por exemplo, AGN (Auditoría General de la Nación) (2003) Resolución 185. BuenosAires: AGN. http://www. agn.gov.ar/informes/Aguas.PDF (se accedió el 12 de diciembre de 2011); CRCOSP (2003), op.cit.; DPN (Defensor del Pueblo de la Nación) (2003) 17 Azpiazu, D., Schorr, M., Crenzel, E., Forte, G. y Marín, J.C. (2005) Agua potable y saneamiento en Argentina. Privatizaciones, crisis, inequidades e incertidumbre futura. Cuadernos del CENDES 59(22): 45-68. 18 Enquanto escreve-se este trabalho (abril de 2011) ainda está pendente o caso apresentado por AASA ante CIADI (Caso No. ARB/03/19).
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Finalmente, depois de enfrentamentos cada vez maiores durante a negociação, o governo aprovou os decretos de Necessidade e Urgência 303/2006 e 304/2006 em março de 2006 com o objetivo de cancelar a concessão da AASA e criar a empresa pública AySA. A nova empresa foi desenhada com um esquema de propriedade participativa (o estado possui 90% e o sindicato dos trabalhadores os 10% restantes) e assumiu imediatamente a responsabilidade do fornecimento de serviços de água e saneamento no AMBA.
3. Um desenho institucional imperfeito O caso da AySA foi o único na série de renacionalizações implementadas pela administração de Kirchner, entre outros motivos porque buscou-se a consolidação do retorno operativo-institucional da nova empresa pública através de ações normativas. O Marco Regulatório proposto, submetido ao Congresso em 2006, estabelecia normas específicas para os serviços de água e saneamento que faziam parte de uma lei nacional, em vez de depender de decretos especiais ad hoc sancionados pelo executivo, que havia sido a regra durante a década de 90. Além disso, parecia que o governo estava disposto a promover um debate público sobre os serviços de água e saneamento e mais amplamente sobre os bens públicos em geral. Infelizmente, o impacto desta bem-intencionada iniciativa foi limitado por causa de uma série de fatores. Em primeiro lugar, o debate parlamentário – e, ainda mais, o social – foi escasso, pois fez-se valer a maioria parlamentar oficial nas duas Câmaras, praticamente sem discussão (nem em comissões nem no recinto) em relação à transcendência do assunto19. Em segundo lugar, a lei, finalmente aprovada em março de 2007, tinha uma série de deficiências importantes no que se refere às normas e experiências internacionais existentes. Por exemplo, não contava com um acúmulo para a discussão pública do processo de renacionalização da AASA, reflexo da inexistência de uma mobilização popular massiva para pôr fim à concessão privada, com exceção das propostas organizadas pela coordenadora de assembleias de vizinhos contra a Águas Argentinas. A legislação criou um novo órgão regulatório de monitoramento e controle, o Ente Regulador de Água e Saneamento (ERAS), que fazia parte do Ministério de Planejamento Federal, Investimento Público e Serviços (MINPLAN). Seus três diretores foram designados 19 CELS (Centro de Estudios Legales y Sociales) (2007) Derechos humanos en Argentina. Buenos Aires: CELS-Siglo Veintiuno Editores Argentina; contudo, o debate no Congresso ajudou a esclarecer a natureza da nova empresa pública e a evitar potenciais conflitos de interpretação. Levou à aprovação do Decreto 373/06 no qual a AySA é claramente definida como uma empresa pública de interesse social e onde as ações da companhia em mãos estatais foram declaradas não transferíveis.
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pelo executivo federal sem concurso público, sobre a base de méritos profissionais e sem consulta ao Congresso. Portanto, o nível de autonomia do novo regulador estava seriamente comprometido. A lei também estabelecia a criação da Agência de Planejamento (APLA), sendo parte de MINPLAN, “com funções de avaliação, estudo, planejamento, projeto, execução e controle dos investimentos”20. A Subsecretaria de Recursos Hídricos (SsRH) tornou-se a autoridade executiva, com a responsabilidade de fixar as tarifas dos serviços de água e saneamento e seu Diretor seria o mesmo que o da APLA. Estas considerações manifestam que, apesar dos importantes avanços realizados para estabelecer uma nova entidade pública, o desenho institucional de AySA tinha importantes deficiências. Estas vão desde a delimitação imprecisa de incumbências para as distintas entidades, acentuada pela multiplicação dos organismos governamentais envolvidos, até a limitação do papel do regulador nas funções de monitoramento e controle, com a concentração da autoridade de execução, planejamento e regulação nas mãos do MINPLAN. Além disso, a nova lei não obriga a realizar consultas públicas para modificações substanciais ao sistema (p. ex. alterações de tarifas ou dos objetivos de expansão). Da mesma forma, a participação dos usuários limita-se à constituição, a partir das entidades reconhecidas como organizações de defesa dos seus direitos, de uma Auditoria de Usuários, de caráter meramente consultivo e ad honorem. Ao mesmo tempo, estabeleceu-se a figura do Defensor do Usuário, o qual devia ser selecionado por concurso público levando em conta os méritos profissionais, um processo que somente foi iniciado no fim de 2010. Fica evidente que, neste contexto, os usuários tinham poucas oportunidades de participação em decisões cruciais como a fixação de tarifas ou o planejamento da infraestrutura. Quando finalmente entrar em cena a incorporação dos usuários no ERAS através do Defensor do Usuário e, em menor medida, através da Auditoria, tal representação será meramente simbólica, a menos que mudanças sejam introduzidas. Resumidamente, a criação da AySA permitiu avanços importantes, em particular ao estabelecer um marco regulatório específico para o setor de serviços de água e saneamento que facilitasse o controle e monitoramento. Contudo, a concentração de funções regulatórias e de outros tipos nas mãos do executivo está longe de representar as melhores práticas internacionais. Atualmente, o escopo institucional e operativo da AySA está fragmentado, mas a tomada de decisões é centralizada. 20
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Decreto 373/06.
4. O desempenho da AySA sob avaliação Embora a AySA seja uma empresa recente, é útil avaliar seu desempenho em termos de “eficiência”. Na visão convencional, neoclássica, a definição de eficiência prioriza a maximização das taxas de lucro empresariais. Nós argumentamos que é necessário ir além dos limites desta definição e recuperar o sentido mais amplo de eficiência. Este deve incluir, por exemplo, o rol de subsídios estatais à provisão de bens públicos essenciais e serviços e reconhecer os benefícios sociais e ambientais de investimentos cujo impacto vai além de uma agência ou setor. Se aceitássemos o posicionamento neoclássico, o desempenho da AASA entre 1993 e 2001 seria considerado altamente eficiente, pois obteve uma taxa de benefícios média de mais de 20% sobre os ativos netos. Em contraposição, a eficiência da AySA desde a sua criação pode ser considerada negativa. Apesar de haver recebido transferências diretas do orçamento nacional equivalentes a 60% do rendimento bruto, o balanço da companhia em 2010 mostrou perdas de 18,5% sobre o rendimento bruto e de 6,6% sobre o patrimônio líquido21. Como alternativa, dando prioridade analítica a indicadores como a ampliação do acesso a serviços de água e saneamento para atingir objetivos sociais essenciais, o desempenho da AySA até agora teria de ser considerado muito mais “eficiente” que o do seu predecessor. Quando a AySA iniciou suas operações em março de 2006, o déficit na cobertura do serviço era de 16% (1,5 milhão de pessoas) para a água potável e de 36% (3,5 milhões de pessoas) para a rede de esgoto. Em resposta, a AySA pôs em funcionamento o Plano de Ação Imediata (PAI), o qual destinava investimentos em infraestrutura de aproximadamente 40 milhões de dólares. O PAI tinha vários subcomponentes e estava principalmente orientado a: 1) recuperar a qualidade dos serviços (Plano Nitratos) que havia se deteriorado em algumas áreas pela pobre gestão ambiental da AASA; 2) expandir a capacidade para o tratamento e transporte de água potável e incrementar o acesso de novos usuários; e 3) garantir a provisão do serviço durante o período de maior demanda (o Plano Verão incluía obras de reabilitação, renovação, redes de interconexão, etc). Com um longo caminho a seguir, o Plano Diretor de Saneamento 2006-2020 (PDS) foi lançado em outubro de 2006 pelo presidente Kirchner. Este plano estabelece para a AySA a meta prioritária de garantir rapidamente o acesso universal a serviços de água e saneamento. 21
AySA (Agua y Saneamientos Argentinos S. A.) (2009a) Informes anuales. Buenos Aires: AySA.
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O PDS está dividido em duas fases, o Plano Quinquenal (2007-2011) e o período posterior a 2012. O Plano Quinquenal 2007-2011 supõe a incorporação ao serviço de água potável de 1,5 milhão de habitantes (cobertura 100%) e de 1,4 milhão à rede de esgoto (cobertura de 80%), ao mesmo tempo em que aprofunda as atividades vinculadas a garantir a qualidade da água potável, assim como à recuperação e reabilitação da infraestrutura. O PDS como um todo (2006-2020) procura atingir 95% da cobertura da infraestrutura. O PDS representa um investimento total de aproximadamente 5,7 mil milhões de dólares, financiados de forma compartilhada pela AySA (52%), o governo nacional (38%), a Cidade Autônoma de Buenos Aires (5%) e os governos da Província de Buenos Aires e os municípios adjacentes (5%). Em suma, a avaliação do rendimento econômico e financeiro da AySA precisa levar em consideração que o motivo da existência da empresa não é obter benefícios, proporcionar dividendos aos acionistas privados ou tornar-se uma empresa de água e saneamento que possa competir nos mercados internacionais. A aspiração da AySA é a universalização do acesso no AMBA para 2020, pois forma parte de um programa político que prioriza a saúde pública, o meio ambiente e o bem-estar da população. O governo nacional comprometeu-se a realizar grandes investimentos para atingir essas metas, pois chegou à conclusão de que os fundos não podem provir somente da receita da AySA. Em concreto, o governo federal tem incrementado as transferências, com previsão de aumentar de 137 milhões de dólares em 2009 para 340 milhões em 2010. A necessidade de equilibrar as exigências de autossuficiência econômica e financeira da companhia com as ambiciosas metas sociais de universalização estabelecidas pelo PDS para 2020 demandará a adoção de decisões políticas importantes. É necessário avaliar criticamente o modelo econômico-financeiro vigente, com o objetivo de prever problemas potenciais que venham a pôr em risco o desempenho futuro da empresa e, consequentemente, a capacidade do governo de cumprir com seus objetivos. Dentre os fatores chave que influenciam nas possibilidades de que a AySA cumpra estes objetivos estão os programas de infraestrutura financiados pelo Ente Nacional de Obras Hídricas de Saneamento (ENOHSA) e as políticas tarifárias, as quais serão abordadas a seguir.
5. Política tarifária O PDS reconhece explicitamente que as receitas da AySA não serão suficientes para financiar os investimentos necessários para cumprir com seus ambiciosos objetivos. Isto é sabido 186
desde 2007, já que as receitas têm sido sistematicamente inferiores aos custos de operação22. Esta situação exige uma análise crítica da estrutura de tarifas. Uma revisão das tarifas poderia ajudar a introduzir mais equidade e solidariedade entre usuários, induzir ao uso mais racional da água e permitir uma redução da contribuição requerida do orçamento nacional para realocar recursos em áreas prioritárias. É preciso lembrar que as tarifas de água e saneamento estiveram congeladas desde janeiro de 2002, enquanto o Índice de Preços ao Consumidor aumentou em 150% entre janeiro de 2002 e novembro de 2010. Fica evidente que a política de congelamento de tarifas teve um impacto significativo nas receitas da companhia. Além disso, a estrutura tarifária da AySA foi herdada da AASA, a qual, como já foi dito anteriormente, sofreu uma série de distorções pelas taxas fixas regressivas introduzidas durante as renegociações do contrato original. Um resultado inesperado da decisão de manter a estrutura de tarifas herdadas da AASA foi o enraizamento de desigualdades inaceitáveis no sistema, desigualdades que têm se agravado consideravelmente devido à congelação de tarifas. Esta situação é particularmente evidente no caso do chamado sistema de torneira livre, utilizado pelos usuários de altos ingressos e com elevado volume de consumo. Além do importante atraso na revisão das taxas fixas introduzidas durante a concessão à AASA, teria sido importante atualizar e ampliar o valor de alguns componentes tarifários para garantir um maior grau de equidade no sistema. Em particular, coeficientes “Z” da fórmula tarifária (condições socioeconômicas da área como indicador da capacidade de pagamento do usuário) e “E” (qualidade e antiguidade do edifício) que, em princípio, proporcionam um mecanismo para arrecadar mais dos usuários de altos ingressos do que dos de baixos, deveriam ter sido revisados por mostrar-se insuficientes. Em outras palavras, existe a necessidade de atualizar e ampliar o sistema de subsídios cruzados que formava parte da estrutura original das tarifas aprovadas durante a privatização, porém, abandonado posteriormente durante as sucessivas renegociações do contrato. Isto é importante não somente para estabelecer um sistema mais justo de tarifas, mas para induzir a um uso mais racional dos serviços, já que o congelamento de tarifas tem provocado uma queda substancial do custo dos serviços de água e saneamento para os usuários, fato que leva ao desperdício de água, principalmente entre os mais endinheirados. Até que as estruturas tarifárias não sejam reavaliadas e o consumo real seja contabilizado, é difícil determinar a possível eficiência das campanhas da AySA para a educação do usuário sobre o uso da água. 22
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É importante destacar que foram feitos alguns esforços para corrigir desequilíbrios na estrutura tarifária herdada da década de 90. Por exemplo, a primeira renegociação “ordinária” do contrato com a AASA em 2001 introduziu uma Tarifa Social implementada no ano seguinte. Esta tarifa está voltada às famílias vulneráveis que não podem pagar o custo dos serviços e sua aplicação inclui um conjunto complexo de atores, incluindo a empresa de serviços de água e saneamento, o órgão regulador, as organizações de usuários e consumidores, as associações de vizinhos e as autoridades locais. A tarifa consiste em um subsídio que varia de acordo com as necessidades e caraterísticas das residências. Até 2008, o número de beneficiários do sistema oscilou entre 100.000 e 120.000 residências, enquanto em 2009 o número caiu para 57.329 residências, com uma subvenção promédio de 2,90 dólares por mês23. Esta redução pode ser produto de uma combinação de fatores como a diminuição nas faturas de água e saneamento devido ao congelamento das tarifas e a clara melhoria das condições socioeconômicas das famílias mais pobres registrada nos últimos anos. Porém, a Tarifa Social é somente um entre muitos programas direcionados a proteger as necessidades dos usuários mais pobres que foram implementados inicialmente para fazer frente ao impacto da privatização.
6. Infraestrutura e expansão do acesso As iniciativas vigentes em relação ao desenvolvimento e renovação da infraestrutura e à expansão no acesso são produto da avaliação quinquenal do contrato de concessão da AASA, originalmente programada para 1998 e finalizada somente em 2001, a qual levou a uma renegociação de aspectos-chave do acordo. De fato, este processo gerou uma série de novas iniciativas destinadas a compensar os erros da empresa privada no cumprimento dos objetivos inicialmente acordados, relativos à ampliação da cobertura aos setores de baixa renda. Estas iniciativas seriam financiadas com fundos públicos ou baseadas na oferta de mão de obra e recursos por parte das próprias comunidades, por exemplo, através do Modelo Participativo de Gestão (MPG), também conhecido como Programa Bairros Carentes, o qual iniciou-se em 2009, ou o Plano Água+Trabalho, financiado por ENOHSA, implementado em 2004, sob controle da AySA a partir de maio de 2007. O MPG é organizado através do trabalho em conjunto da AySA, os municípios e as comunidades dos bairros, com vizinhos que aportam mão de obra em troca de descontos nas faturas de água e saneamento. O MPG é financiado quase por completo pela AySA que 23
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também proporciona a supervisão técnica das obras e seu objetivo é ampliar a cobertura de água e saneamento nas comunidades mais pobres. Embora o impacto do MPG tenha sido modesto, este tem permitido a conexão de aproximadamente 44.000 pessoas ao abastecimento de água e em torno da metade deste número à rede de esgoto. Ainda mais importante, o Plano Água+Trabalho tem tido um papel de destaque na expansão da rede de água nos últimos anos. Este plano tem objetivos múltiplos, incluindo a mitigação dos riscos sanitários que afetam a população sem acesso a serviços de água e saneamento, a redução do custo da expansão da rede aos bairros de baixa renda e a promoção de oportunidades de emprego através da criação de cooperativas. Desde 2007, a AySA financia e contribui com o desenho e supervisão de obras de infraestrutura, enquanto as cooperativas aportam a mão de obra. Estas cooperativas são formadas por vizinhos beneficiários de assistência social ou por desempregados sem benefícios sociais. O SGBATOS cumpre também um papel importante na formação dos trabalhadores das cooperativas, enquanto só municípios dirigem os projetos. Desde a criação da AySA em 2006, o Plano Água+Trabalho já ajudou mais de 330.000 pessoas a se conectarem à rede de abastecimento de água e esperava-se que mais 550.000 se conectassem através de projetos iniciados no final de 200924, o que constitui uma contribuição importante para os objetivos estabelecidos pelo governo no PDS. Com base neste sucesso, o plano irmão Saneamento+Trabalho teve início em 2008. Esta iniciativa inclui uma série de projetos em andamento à espera de que mais de 16.000 pessoas de municípios adjacentes a Buenos Aires sejam conectadas à rede de esgoto num futuro próximo25. Uma característica comum destes programas é a participação direta dos residentes, em sua maioria de comunidades vulneráveis, e a formação técnica que recebem para ampliar o abastecimento de água e redes de esgoto, melhorando o acesso aos serviços prestados pela AySA. Os programas impulsionam significativamente os objetivos centrais estabelecidos pelo governo no Plano Quinquenal (2007-2011) para avançar em direção à universalização do abastecimento para 2020. Ao fim de 2009, a AySA havia conseguido conectar mais de 540.000 pessoas à rede de abastecimento de água e esperava estender o serviço a mais 415.000 até o fim de 2011. Em relação aos serviços de saneamento, um total de 77.285 usuários foram conectados até o fim de 2009 e esperava-se conectar mais de 525.000 pessoas 24 25
AySA (2009b) Informes al usuario. Buenos Aires: AySA. AySA (2009a), op.cit.
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até o fim de 2011. Portanto, as autoridades da APLA confiavam que as metas estabelecidas no Plano Quinquenal seriam cumpridas26.
7. Os trabalhadores sobem a bordo O desempenho operativo da AySA depende em grande parte da colaboração do sindicato SGBATOS, uma organização que cumpriu um papel ativo na privatização da empresa na década de 90 quando lhe foi prometida uma participação do 10% no serviço privatizado. O presidente da companhia, Dr. Carlos Ben, está estreitamente associado ao sindicato e foi membro do comitê encarregado do programa de privatização e posteriormente diretor adjunto da AASA. Esta forte implicação de Ben e do sindicato no negócio da privatização dos serviços públicos é objeto recorrente de comentários por parte de críticos que veem uma preocupante continuidade com o passado no funcionamento do serviço renacionalizado. É difícil ignorar estes problemas. O governo nacional tem tratado de contornar estas críticas, em particular no discurso pronunciado por Néstor Kirchner durante o anúncio público do PDS, em 12 de outubro de 2006: Não tenho nenhuma dúvida de que os trabalhadores da empresa AySA, trabalhando conjuntamente com o povo argentino, as empresas e as licitações que irão sendo convocadas, serão um verdadeiro exemplo do que nós argentinos somos capazes de fazer. Estou totalmente convencido27. Deve-se considerar que a força de trabalho da AySA cresceu de forma constante, de 4.058 empregados em 2006 a 4.596 em 2009, números muito distantes dos alcançados durante o período de privatização, com 4.267 trabalhadores da AASA em 1998 (27). Levando em consideração o nível de produtividade, medido pela divisão de metros cúbicos de água bruta produzida por dia por número de trabalhadores, o rendimento atual da AySA mostra tendências positivas: levemente acima de 1.000 m³ por trabalhador, em comparação com os 968,4 m³ registrados pela AASA em 1998 (28). Os técnicos e profissionais da AySA se beneficiam de uma diversidade de programas de capacitação, organizados com a participação ativa de SGBATOS, que abordam aspectos 26 AySA (2009a), op.cit. 27 Kirchner, N. (2006) Palabras del Presidente Néstor Kirchner en el acto de presentación del Plan Director de Aguas y Saneamiento Argentino, Buenos Aires, 12 de octubre. http:// www.presidencia.gov.ar/discursos-2007/24818 (se accedió el 17 de diciembre de 2012).
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técnicos, comerciais e administrativos. Além disso, há oficinas de treinamento para trabalhadores qualificados em solda, mecânica e eletromecânica, entre outras áreas. As horas de formação dadas por estes programas aos trabalhadores da AySA têm aumentado significativamente, passando de 21.874 horas em 2006 para 60.000 em 2009 (29). Ainda, os dados sugerem que a AySA foi rápida em desenvolver melhores condições de trabalho em matéria de segurança e higiene pessoal.
8. Conclusão A experiência recente com os serviços de água e saneamento da Área Metropolitana de Buenos Aires revela lições úteis sobre os processos de reconstrução de empresas de serviços públicos recuperadas após um período de privatização. O caso da Argentina é particularmente valioso devido ao processo de recuperação da empresa pública ter-se dado em um contexto de mudanças bruscas no entorno macroeconômico, social e político experimentadas pelo país em décadas recentes, o que obriga a examinar as rupturas e continuidades entre o neoliberalismo da década de 90 e as políticas econômicas e sociais posteriores a 2002 dirigidas pelo estado. Neste texto, dedicou-se muitas páginas sobre o desemprenho da AASA, mesmo tendo sido revisados aqui apenas alguns aspectos-chave. As principais conclusões são que a empresa privatizada descumpriu com as obrigações contratuais e seguiu uma estratégia impulsionada pela busca de benefícios extraordinários. Esta estratégia teve sucesso para a AASA durante o período de estabilidade forçada da moeda argentina (1993-2001), mas veio abaixo com o colapso do modelo neoliberal em 2002. Não existe ainda uma compreensão total dos custos econômicos, financeiros, ambientais, políticos e sociais da privatização de serviços de água e saneamento de Buenos Aires, porém, os dados sugerem que estes custos foram muito elevados e que suas consequências persistentes põem em risco a capacidade da Argentina de conseguir seu objetivo de universalização de serviços públicos essenciais para 2020 (30). Neste sentido, os diferentes acordos vinculantes subscritos por países como a Argentina para proteger os investimentos estrangeiros, principalmente os Acordos de Promoção e Proteção de Investimentos (APPIs) bilaterais (31), são um exemplo de condições estruturais (e estruturantes) que constituem o legado da época neoliberal. Estes acordos têm permitido que as corporações privadas, como Suez, cobrem dos governos que decidam interromper os contratos de privatização, mesmo quando o cancelamento do contrato está justificado por descumprimentos do operador privado. Apenas no caso da Argentina, há dezenas de casos 191
apresentados ao CIADI, incluídos os de corporações como Enron, que enfrentam acusações de corrupção e lavagem de dinheiro nos Estados Unidos. Contudo, devido aos APPIs, estas corporações têm o direito de reclamar indenizações nos países do Sul. Desde 2006, o desempenho da AySA tem estado marcado pela tensão entre os honrados esforços do governo nacional para priorizar a universalização dos serviços de água e saneamento, por um lado e, por outro, pela resistência que enfrenta o governo para dar continuidade com esta política, por causa dos legados de privatização. É possível afirmar que os efeitos positivos de haver recuperado os serviços de água e saneamento e colocá-los sob o controle público têm sido limitados por uma série de razões. Entre elas encontram-se as deficiências no marco institucional que foi adotado para a gestão da AySA; a continuidade da influência dos quadros diretivos inicialmente associados ao experimento da privatização sobre as políticas; o funcionamento da empresa; ou as heranças do período da AASA como a irracional estrutura de tarifas ou os negativos impactos ambientais derivados dos descumprimentos do contrato. Existe a necessidade de melhorar o planejamento estratégico das atividades da AySA mediante a incorporação de todos os aspectos pertinentes aos serviços de água e saneamento. São de particular importância os problemas ambientais que, embora estejam formalmente integrados, na prática foram esquecidos. A AySA está sob crescente pressão para adotar um papel mais ativo na gestão integral das bacias dos rios metropolitanos, que historicamente foram abandonados e agora encontram-se poluídos. Uma sentença da Corte Suprema de Justiça da Nação, aprovada em 2008, ordena que o governo providencie as medidas necessárias para limpar a bacia Matanza-Riachuelo, altamente poluída, elevando o custo da gestão da água de forma exponencial na Área Metropolitana de Buenos Aires, tendo também implicações muito importantes em outros lugares. Esta decisão foi tomada após grandes mobilizações por parte da ampla aliança de organizações cidadãs, usuários da água, organizações não governamentais, governos locais e grupos ambientalistas. A decisão tem sérias implicações para o futuro das estruturas administrativas e para o desempenho da AySA. Assim, o governo terá de considerar mais as demandas de uma sociedade civil que pede mecanismos institucionalizados para garantir uma participação mais real dos usuários no processo de democratização da governabilidade dos serviços de água e saneamento no país. Apesar destes problemas, a renacionalização da empresa de água e saneamento em Buenos Aires tem dado lugar a transformações importantes e necessárias na forma de governar 192
e administrar estes serviços. Estas transformações oferecem importantes lições para outros projetos de renacionalização ou remunicipalização. O mandato da AySA deriva-se de uma decisão política, tomada pelo governo nacional que introduziu mudanças significativas no status dos serviços de água e saneamento. Estes serviços encontram-se agora formalmente reconhecidos como direitos humanos e bens públicos que não podem ser tratados como mercadorias regidas pelas forças de mercado. Ainda há obstáculos no caminho, mas o governo trabalha em conjunto com a empresa de serviços para conseguir a plena universalização de serviços essenciais. O caso da AySA contém muitas lições sobre os desafios e oportunidades que enfrentam os governos quando se dedicam a recompor empresas públicas que foram virtualmente desmanteladas pelos processos de privatização pobremente regulados durante o período neoliberal. Em tom mais otimista, o caso da AySA também aporta lições importantes para aqueles projetos que procuram garantir, com base em uma gestão pública e democrática, a provisão de serviços básicos universais de qualidade que a vida civilizada do século XXI exige.
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A água em Paris: um novo serviço público Por Anne Le Strat1
A água ocupa um lugar especial em nossas vidas. Ao contrário de outros bens com os quais podemos compará-la, como a energia, ela não tem substituto e afeta integralmente todas as atividades humanas e, de forma mais abrangente, qualquer possibilidade de existência. É possível substituir um alimento por outro, uma fonte de energia por outra; mas a espécie humana e o conjunto dos ecossistemas não podem substituir a água. Esse status singular de recurso vital insubstituível resulta em condições específicas de provisão desse bem. É possível escolher o seu fornecedor de energia, transporte, telefonia, mas não o seu fornecedor de água. Há somente uma rede conduzindo água às torneiras. A propriedade de plantas, de unidades de tratamento e potabilização, dos aquedutos, etc. é indivisível. Não pode haver concorrência nas atividades de produção e distribuição no âmbito de um serviço de água. A concorrência pode ser exercida à “montante”, no momento da escolha do operador pela coletividade, mas não pelo usuário. E, uma vez que ninguém pode ficar sem água, os consumidores constituem uma clientela cativa. Trata-se, nas palavras dos economistas, de uma “economia de renda”2 sendo exercida no quadro de um monopólio natural de um recurso essencial. Isto confere à água um estatuto especial. Sua gestão perpassa interesses locais e nacionais, financeiros e políticos, industriais e administrativos. Deve-se acrescentar, ainda, a dimensão simbólica e sensível que torna o debate acalorado. A água é claramente uma questão política. Estamos, contudo, ainda longe de uma verdadeira democracia da água, alimentada pelo debate político e por uma apropriação por parte de cidadãos e usuários das múltiplas questões envolvidas. Neste contexto, a França apresenta uma situação singular. Ela é o país que mais delegou os serviços de água e esgoto no mundo e que viu surgir as duas maiores multinacionais de água e meio ambiente. Por mais impressionante que possa parecer, o país que se orgulha de ser o 1 Ex vice-prefeita de Paris a cargo da política municipal de água; ex-presidente da Eau de Paris; co-fundadora da Aqua Publica Europea. 2 N.T.: No original, “économie de ‘rente’”.
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país dos serviços públicos – muitas vezes equivocadamente – preferiu delegar, na maioria das cidades, a gestão de um serviço público tão vital aos grandes grupos privados. Esta paisagem muito singular do mundo da água francês constitui o pano de fundo da história da água parisiense. A remunicipalização do serviço de água em Paris foi na contramão de um modelo dominante. Essa reforma, fundamentada em uma forte vontade política, foi conduzida segundo dois princípios. O reconhecimento da água como um bem comum exigia uma gestão pública. Entretanto, tratava-se também de criar um novo serviço público de água cujas qualidades de gestão fossem superiores àquelas reivindicadas pelo setor privado. Neste artigo, relatarei de maneira sintética as principais etapas da reforma parisiense e os benefícios para a comunidade e o município.
1. Uma decisão política Em 1984, Jacques Chirac, então prefeito de Paris, toma a decisão política de desmontar o departamento municipal de água, confiando sua gestão a vários operadores privados. Até então, a produção e distribuição de água eram asseguradas por uma empresa municipal3. O faturamento, entretanto, já havia sido delegado ao setor privado. Portanto, delegando às empresas privadas a distribuição de água, Jaques Chirac dava o primeiro passo em direção ao desmantelamento deste serviço público, o qual seria concluído três anos mais tarde, em 1987, com a criação de uma sociedade de economia mista (SEM) para a produção de água.4 A divisão organizacional era, no mínimo, original, e não obedecia a nenhuma racionalidade técnica ou econômica. No que diz respeito à distribuição, dois contratos de arrendamento5 de 25 anos foram realizados, sem concorrência, em cada uma das duas margens do rio. A Compagnie des eaux de Paris, uma subsidiária da Générale des Eaux (grupo Veolia) ficou com a responsabilidade pela margem direita, ao norte do Sena; e a Eau et Force Parisienne, uma subsidiária da Lyonnaise des Eaux (grupo Suez), se encarregou da margem esquerda. Uma empresa de economia mista, Société 3 N.T.: No original: régie. 4 Na França, o termo “régie” designa um estabelecimento de propriedade pública a cargo de um serviço público. A “régie” se opõe à concessão de serviço público, através da qual o poder público concede a gestão de um serviço por contrato a uma empresa privada, a concessionária, que é remunerada através da exploração do contrato. Os contratos podem ser de vários tipos: em um contrato de “arrendamento” (affermage), o poder público continua a assegurar os investimentos, enquanto os concessionários se incumbem da exploração e manutenção e são remunerados diretamente pelos usuários; em um contrato de concessão, o concessionário responsabiliza-se pelos investimentos. Uma sociedade de economia mista é uma empresa privada cujo capital é majoritariamente detido por uma pessoa pública e tem como acionistas, ao menos, um ente privado. 5 N.T.: No original: affermage.
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Anonyme de Gestion des Eaux de Paris, foi criada em 30 de janeiro de 1987, tendo como missão a produção e o transporte de água potável. A administração parisiense detinha 72% do capital, sendo os 28% restantes de propriedade das distribuidoras privadas. Assim, por quase 25 anos, três concessionárias privadas assumiram o comando de toda a produção, distribuição e cobrança de água em Paris através de três contratos de delegação de serviço público. O percurso da gota de água que chega à torneira do consumidor parisiense passa, portanto, por vários operadores. Ela é captada, tratada e transportada até Paris pela SEM. Em seguida, ela é armazenada em reservatórios geridos pela mesma ou pelos distribuidores privados. Finalmente, ela é distribuída e faturada pelas duas subsidiárias dos grandes grupos privados da água, cada um em uma margem. A municipalidade, decidindo tudo delegar, inclusive suas obrigações de regulação e controle, define a SEM como reguladora dos distribuidores, o que equivalia a demandar-lhe controlar seus próprios acionistas! Com a mudança política de 2001, é lançado o debate sobre a reorganização do setor da água em Paris. Depois de décadas do poder municipal nas mãos da direita, uma coalizão plural de esquerda (Gauche Plurielle) – reunindo socialistas, comunistas, Verdes e outras esquerdas – venceu as eleições municipais em março de 2001. O novo governo municipal, chefiado pelo prefeito Bertrand Delanoë, logo decidiu repensar integralmente o serviço de água de Paris. As irregularidades do sistema haviam sido apontadas por muitos relatórios independentes (como o da seção regional do Tribunal de Contas, por exemplo). A conclusão foi clara: ausência total de controle dos operadores privados, absoluta opacidade financeira e falta de competência técnica sobre o serviço de água. A gestão era extremamente lucrativa para o setor privado, mas não era interessante para a coletividade ou para os parisienses. As primeiras mudanças foram então decididas e colocadas em prática. O município de Paris restaurou suas competências em relação aos serviços municipais para assegurar um mínimo de controle e, assim, começar a recuperar o domínio do serviço. Em 2003, o município se engajou nas negociações com os operadores privados. Estas foram as primeiras negociações autênticas desde o início dos contratos em 1985 e tratavam do montante dos trabalhos, do cálculo das provisões financeiras, da gestão das atividades de cobrança, e do controle das atividades dos concessionários. Pela primeira vez foi feito um balanço, mesmo que parcial, 197
depois de quase vinte anos de concessão. Mesmo que este balanço tenha concluído por aditivos aos três contratos, especialmente sobre as obrigações de serviços a serem executados pelas empresas, essa sequência de negociações confirma que o sistema de concessão privada não podia perdurar. A vontade política de se reapropriar do serviço se reforçava, especialmente conforme o fim dos contratos ia se aproximando: dezembro de 2009 para o de distribuição; e dezembro de 2011 para o de produção. Em 2006, foram realizados estudos para definir os contornos de um novo serviço parisiense de água. Uma consulta ao pessoal do SEM – capaz de julgar melhor as questões operacionais – é organizada, intitulada “Água de Paris Amanhã” (Eau de Paris Demain). Essa consulta levou à conclusão de que era necessário constituir um único operador público. Em paralelo se concretizou, em março de 2007, a retirada de capital da Lyonnaise des Eaux e da Compagnie Générale des Eaux da SEM – renomeada “Eau de Paris” em 2005. As eleições municipais de 2008 ofereceram a oportunidade a Bertrand Delanoë, candidato à reeleição, de se comprometer perante os cidadãos com o retorno a uma gestão pública integral dos serviços de água, caso fosse reeleito. A esquerda vence as eleições em março de 2008 e a remunicipalização é garantida com a deliberação inaugural do futuro serviço de água, aprovado pelo Conselho de Paris (Conseil de Paris) em 24 de novembro de 2008. A isso sucederão, ao longo de 2009, diversas etapas técnico-administrativas, cruciais para implementar a transferência gradual dos meios da SEM para a administração municipal, a transferência das atividades de distribuição e pessoal (em vigor a partir de 31 de dezembro), e o regulamento do novo serviço público de água de Paris.
2. Uma gestão pública redescoberta e reconfigurada A partir de 1º de janeiro de 2010, o serviço de água em Paris passa a ser assegurado por um único operador público: a Eau de Paris. Trata-se de uma instituição pública da cidade de Paris, de caráter industrial e comercial, autônoma e dotada de personalidade jurídica e orçamento próprio. Contabilizava cerca de 940 funcionários, incluindo 228 que foram transferidos dos operadores privados, trabalhando para garantir um serviço de qualidade para os parisienses. As negociações com o conjunto de parceiros foram conduzidas para harmonizar as condições de trabalho e condições salariais. O resultado foi uma harmonização social pelo alto, bastante favorável para todos os funcionários. 198
A integralidade das funções empresariais e operacionais do serviço foram reunidas, o que permitiu aos usuários ter um interlocutor único. O sistema de abastecimento, antes muito complexo, foi bastante simplificado e racionalizado através da criação da empresa municipal (régie), pondo um fim à duplicação de funções e de trabalhos existente com os três operadores. Uma maior sinergia das atividades de produção e distribuição contribuiu para uma maior eficiência técnica. Hoje temos o histórico completo da gota d’água desde a captação até a torneira. Depois de mais de cinco anos de funcionamento, podemos identificar os benefícios da gestão pública e compará-la ao modelo em vigor anteriormente.
Um contrato renovado com o usuário parisiense Atualmente, com a nova administração, as funções de faturamento foram internalizadas. Para tanto, foi constituído um serviço de comunicação entre os prestadores e os usuários para tratar questões relacionadas ao serviço e à conta d’água. Isso permitiu recuperar o lucro que os concessionários tinham sobre o faturamento. Empregos foram criados a um custo menor que no sistema de delegação anterior. Novos serviços foram concebidos para um melhor acompanhamento do consumo individual, uma melhor informação sobre o serviço e maior atenção às expectativas dos consumidores. A Eau de Paris desenvolveu igualmente diversas ações pedagógicas e de sensibilização relacionadas às questões da água em Paris e no mundo. Campanhas de valorização da água do sistema de abastecimento6, mais ecológica e mais econômica que a água engarrafada7, foram lançadas.
Um balanço econômico consolidado Em primeiro lugar, é necessário sublinhar os importantes ganhos econômicos possibilitados pela reforma. Enquanto no sistema de concessão ao setor privado os lucros gerados pela operação eram em parte utilizados para remunerar outras atividades dos grupos privados e à consolidação de sua margem de lucro, eles são hoje inteiramente reinvestidos no serviço de abastecimento. No primeiro ano, os ganhos iniciais foram estimados em cerca de 35 milhões de euros. As razões para este ganho são muitas: internalizamos a renda econômica que os operadores privados realizavam de várias maneiras. Com o sistema de delegação, as obras na 6 N.T.: No original, “eau du robinet”, cuja tradução literal seria água de torneira. A expressão, entretanto, é utilizada para designar a água do sistema público de abastecimento em oposição à água engarrafada. 7 A água engarrafada inclui tanto a água mineral quanto a água purificada e engarrafada pela indústria de bebidas.
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rede (canalizações, processos de tratamento...) ficavam a cargo de subsidiárias das empresas, o que geralmente era acompanhado de um superfaturamento. Essas obras são agora submetidas à concorrência pública, o que gerou grande decréscimo em seus montantes. As funções de coordenação do projeto, ou mesmo de empreiteiro, são exercidas pela empresa pública, o que permite um controle e um domínio total das operações. Ela opera, controla e criou seu próprio sistema de informação. O funcionamento que prevalecia anteriormente era típico da organização mais geral do setor da água, onde reinava uma economia de renda lucrativa para as multinacionais sob o manto da concessão. Não há mais necessidade de remunerar os acionistas e nem de desviar para esta finalidade uma parte dos fluxos financeiros gerados pelo serviço de água. Agora, os rendimentos das operações são totalmente reinvestidos no serviço e há total transparência financeira, enquanto as contas dos delegados privados eram caracterizadas por grande opacidade – o que foi denunciado por muitos relatórios de acompanhamento. Os parisienses agora pagam o preço justo pela água!
A redução na tarifa e a efetivação do direito à água Em termos de política social, desenvolvemos uma política em duas frentes: o preço da água e uma política de bem-estar social relacionada à água. É necessário compreender que somente o usuário consumidor é contribuinte financeiro do serviço por meio de sua fatura de água. A fatura compreende a parte “água” (isto é, o serviço de água, da produção ao faturamento), a parte “saneamento”, e a parte “royalty”8. A parte “água” tinha aumentado 260% desde 1985. A reforma permitiu baixar o preço da água em 8%, uma redução razoável considerando a redução no consumo de água que resultou também em uma baixa das receitas. Paralelamente, uma ambiciosa política de bem-estar relacionada à água foi colocada em prática. Uma parte dos subsídios à habitação e destinados ao pagamento de despesas com aluguel são acompanhados de uma “ajuda d’água”. Isto representa vários milhões de euros que servem de auxílio ao pagamento de contas, antes do aparecimento de problemas de inadimplência. A isso se juntou um FSL Eau (fundo de solidariedade), dedicado ao tratamento das contas não pagas. Esta disponibiliza o montante de até 500.000 euros para 8
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N.T.: No original, redevance.
o pagamento de faturas inadimplentes – quatro vezes mais do que disponibilizavam os concencionários privados. Além disso, em cooperação com o operador Eau de Paris, todos os pedidos de corte de água são analisados pela prefeitura e é buscada uma solução para evitar qualquer corte de água. No caso de ocupações sem direitos ou títulos, foi incorporada ao regulamento do serviço uma cláusula que permite que os ocupantes continuem a dispor de uma alimentação de água (o que está condicionado ao imóvel não oferecer risco e ao estabelecimento de contrato). Adicionalmente, foram colocadas em prática ações específicas voltadas aos grupos desfavorecidos e, particularmente, às pessoas sem domicílio fixo (sem-teto). Com essas medidas, é possível afirmar que Paris implementa concretamente o “direito à água”.
3. As ferramentas de avaliação do serviço O posicionamento político de defesa da gestão pública da água é acompanhado de uma vontade de que a gestão pudesse ser avaliada de forma criteriosa. A fim de avaliar a qualidade do serviço prestado pelo operador municipal, um contrato de objetivos é firmado entre a Eau de Paris e a municipalidade todos os anos e revisado de acordo com a demanda do município. Baseado em um grande número de indicadores técnicos, financeiros, sociais, patrimoniais etc. relativos ao conjunto das atividades da administração, esse contrato permite seguir sua realização efetiva e avaliar a gestão do serviço. A comunidade municipal possui, finalmente, o controle das orientações estratégicas de seu serviço de água. Ferramenta de controle da administração municipal (Departamento de Águas e Departamento de Finanças), está sujeito a avaliação regular pelos serviços técnicos, mas também pelo Conselho de Paris e pelo Observatório Parisiense da Água. O contrato de avaliação foi igualmente concebido para oferecer informação detalhada sobre a conduta do governo.
4. Uma experiência inovadora em matéria de democracia da água A reforma da política municipal tinha como ambição criar um novo modelo de serviço público no qual fosse dado ao cidadão-usuário um lugar no processo de elaboração da política de água. Assim, inovações democráticas foram instauradas para tornar concreta essa ideia política. 201
5. O Observatório da Água Um dispositivo de controle cidadão foi implementado com o Observatório Municipal da Água. Composto do conjunto de atores envolvidos com a água, aberto ao público, autônomo em seu funcionamento (decisão de agenda, orçamento para realizar estudos, etc.), é um local de iniciativa, de consulta e de debate em torno das questões da água parisiense. Presidido por uma personalidade independente, eleita no âmbito do Observatório pelos seus membros, ele é hoje informado de todas as deliberações importantes referentes à gestão da água, sobre as quais ele emite um comunicado antes que elas passem para a assembleia deliberativa. Todos os relatórios anuais pertinentes são submetidos a ele. O papel do Observatório é também reforçado pela presença de um de seus membros no conselho administrativo da Eau de Paris com direito a voto. A criação do Observatório da Água modificou profundamente o trabalho das equipes municipais e da Eau de Paris. Na medida em que ele representa uma etapa prévia no calendário de validação dos grandes atos da política da água, seu parecer, ainda que consultivo, é levado em conta tanto no nível dos serviços quanto pelo nível político. A partir das recomendações dos membros do Observatório, os documentos institucionais tornaram-se mais inteligíveis e acessíveis, condição necessária a uma boa informação e compreensão de todas as questões da água. Atualmente é possível também obter todas as informações que concernem ao serviço de água: uma diretriz de transparência nas informações foi dada, sob minha presidência, às equipes da Eau de Paris e à administração municipal. Estrutura jurídica inovadora, o Observatório da Água demonstrou sua utilidade para as organizações sociais e cidadãos na obtenção de informação sobre os serviços de água. Ele permite formar os leigos nas questões da água e difundir mensagens através de serviços de comunicação com os quais o serviço de água não trabalha tradicionalmente.
6. Uma governança aberta Com a criação da empresa municipal, a ideia era claramente envolver ainda mais a sociedade civil no processo decisório. Rompendo com a composição tradicional dos conselhos de administração deste tipo, o objetivo é dar voz aos usuários e às associações, bem como aos funcionários. France Nature Environnement e UFC-Que Choisir – duas associações de âmbito nacional – representam respectivamente o mundo do meio ambiente e o dos consumidores 202
no conselho de administração. Um representante do Observatório também tem assento no conselho para reforçar seu papel e para estabelecer as pontes entre esse espaço de consulta e o lugar de decisão representado pelo conselho de administração. Todos têm direito a voto, como os representantes eleitos e os funcionários. Além destas três representações, dois representantes do pessoal da autarquia e duas pessoas qualificadas, escolhidas no campo institucional ou entre pesquisadores, completam o conselho ao lado dos representantes eleitos do espectro político do Conselho de Paris. A presença associativa não é meramente simbólica; ela modifica substancialmente o desenrolar das sessões do conselho. Primeiramente, ela obriga as equipes da Eau de Paris a apresentarem todas as deliberações e documentos de forma acessível de maneira a tornar as questões inteligíveis aos leigos. As orientações estratégicas são debatidas antes de qualquer decisão operacional. Os representantes da sociedade, assim como os outros, podem solicitar que os pontos referentes à gestão da entidade sejam submetidos ao exame do conselho administrativo. A contribuição de um olhar externo à classe política e ao mundo técnico da água é valiosa. Isso permite confrontar diferentes perspectivas e olhar os problemas a partir de ângulos geralmente não analisados.
7. A necessidade de consolidar os atores da gestão pública O retorno da água para a administração pública representa, com efeito, uma fissura significativa na vitrine comercial das multinacionais francesas de água. Os representantes da Suez e da Veolia admitiram isso explicitamente: a perda do mercado parisiense certamente lhes infligiu uma perda financeira, mas o dano foi ainda mais grave do ponto de vista de sua imagem. Em todo o mundo, essa empresas apresentavam a gestão da água em Paris como um modelo. O objetivo da reforma era defender uma boa gestão em benefício dos usuários parisienses, e não ajudar os grandes grupos a ganhar parte do mercado da água no mundo. A experiência parisiense não é evidentemente o único exemplo de gestão pública vitoriosa mas, por sua característica emblemática, gerou uma repercussão muito grande na França e internacionalmente. O fato de que a capital tenha devolvido a gestão da água para o poder público tem dado maior peso aos argumentos dos partidários da gestão pública. Comunidades francesas importantes, cada vez mais numerosas, estão interessadas em retornar os serviços para as mãos públicas e várias já deram o primeiro passo: Brest, Rennes, Montpellier, Nice, etc. O exemplo de 203
Paris mostra que é possível recuperar o controle da água; aquilo que foi possível na capital pode ser em outros lugares, mesmo que as condições de sucesso sejam diferentes segundo o contexto. Uma rede francesa de Água Pública foi organizada em 2012 para compartilhar as experiências de gestão, a expertise e as competências para a consolidação dos serviços públicos de água. Com o objetivo de se fazer ouvir a voz da gestão pública no nível europeu e além, tornou-se necessário reforçar a cooperação entre os operadores públicos. Em 2009, foi lançada em Paris a Aqua Publica Europea, uma rede de operadores públicos de água europeus, sendo a Eau de Paris um dos membros fundadores. Os operadores públicos europeus constataram que eles não eram ouvidos, ou o eram muito pouco quando comparados ao setor privado – o qual sabe se fazer ouvir, criar associações e organizar ações eficazes de lobby. Assim, desejavam que a gestão pública da água, baseada nos valores do serviço público, fosse defendida no nível europeu. Atualmente a rede agrupa operadores italianos, belgas, franceses, suíços, espanhóis, escoceses, etc. Trata-se de dar visibilidade aos operadores públicos europeus mas, igualmente, de compartilhar suas experiências e de harmonizar suas ações. A Aqua Publica Europea é um verdadeiro espaço de elaboração coletiva, de troca e de colaboração entre operadores públicos. Após um primeiro momento de não consideração pelas instituições europeias, estas compreenderam que não eram apenas as empresas privadas que tinham importância no setor da água. A Aqua Publica Europea é hoje solicitada pelas instâncias europeias no quadro de seus trabalhos sobre questões relativas à água. Atualmente, é possível conceber parcerias público-públicas com financiamento europeu. O peso do setor privado ainda é grande, mas uma certa predisposição para o reequilíbrio está emergindo. Com essa reforma, o município de Paris e, portanto, os parisienses retomaram a gestão do serviço de água, atribuindo a ele objetivos ambiciosos nos níveis ambiental, econômico, democrático e social. Conseguimos criar uma empresa pública de água em Paris, na contramão do modelo dominante. Compromissos foram assumidos e o discurso público se materializou em ações. A remunicipalização da água foi decidida com base em uma escolha política e ideológica forte, assumida como tal: a água é um bem comum, daí a necessidade absoluta de controlar a exploração deste recurso, com base em uma visão e em um projeto de longo prazo. A criação da Eau de Paris almejava demonstrar a existência de alternativas: outras vias não são apenas imagináveis, mas possíveis, com a condição de serem levadas a cabo com vontade política. É hora de perceber que podemos escolher outros modelos de gestão de bens comuns e de serviços públicos. O que foi possível em Paris é possível em todas as coletividades que queiram construir um serviço de água em nome do interesse geral e não segundo os interesses privados. 204
O colapso hídrico no Rio de Janeiro e o papel central da Cedae enquanto empresa estatal de saneamento para atenuar os efeitos desta crise Por Ary Girota 1
A crise hídrica, divulgada por todas as mídias desde o início de 2014, não é fruto do acaso, não é consequência da falta de chuvas, não é um fenômeno atípico imprevisível. A região mais rica, populosa e industrializada do Brasil, a região sudeste, caminha para vivenciar uma crise econômica e institucional sem precedentes, não por conta das questões político-partidárias, mas em função do descaso e irresponsabilidades politicas nas questões ambientais que trarão prejuízos a toda sociedade, em especial às populações mais vulneráveis e periféricas. A devastação de matas e florestas, o uso indiscriminado dos recursos naturais, a ausência de políticas públicas voltadas para preservação dos mananciais, a falta de prevenção e de conscientização sobre os impactos ambientais oriundos da exploração econômica indiscriminada já há algum tempo sinalizam para o esgotamento do modo de vida capitalista, deste modelo de desenvolvimento pautado na exploração incontrolável dos recursos naturais transformados em recursos econômicos. As questões ambientais sequer são contempladas nas discussões pelos políticos e população brasileira, e muito menos as questões ligadas aos recursos hídricos, até então considerados abundantes e infinitos. No entanto, no ano 2014, o assunto acabou por vir à tona, em função da gravíssima crise que se abateu sobre a região sudeste, situação que é corriqueira 1 Ary Girota é funcionário da Cedae e delegado sindical pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos de Niterói – STIPDAENIT.
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na região nordeste do país, diga-se de passagem. O acelerado processo de industrialização e o avanço do agronegócio, com a maximização do lucro em detrimento de estudos de impacto ambiental confiáveis, aliados à destruição de biomas inteiros, causaram danos profundos sobre mananciais, nascentes, pequenos afluentes e bacias hidrográficas como um todo, condenando à morte importantes rios e transformando-os em valões de esgoto e resíduos industriais a céu aberto nas grandes metrópoles. Como uma das consequências diretas e imediatas temos o aumento do custo para tratar a água destinada ao consumo humano. Aumentam também a contaminação na agricultura em virtude da poluição dos mananciais utilizados para irrigação e o número de mortes e doenças por falta de saneamento básico. Perpetua-se, assim, um ciclo vicioso de total degradação socioambiental. Estudos científicos indicam que esta desordenada e acentuada exploração dos recursos hídricos e o desmatamento do Cerrado são responsáveis diretos pelo desaparecimento de vários afluentes de importantes rios de outras regiões do Brasil, como, por exemplo, do São Francisco. Tal situação, aliada ao acelerado processo de desmatamento da Amazônia, ocasiona drástica redução da umidade atmosférica proveniente do norte do País, conhecida como “Rio Voador”. É essa umidade que possibilita grande parte das chuvas nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. Ou seja, toda dificuldade que estamos vivendo hoje com relação aos recursos hídricos e seu colapso é consequência da ação direta do homem sobre a natureza ou ainda de sua omissão. É claro que não podemos cair no reducionismo de responsabilizar o “Ser Humano” aleatoriamente, pois estaríamos dividindo a responsabilidade e culpa da crise com quem menos responsabilidade tem. Sabemos que poucos são os que controlam os recursos hídricos, assim como as terras no Brasil. Tal fato explicita a face mais cruel de toda crise, na qual a população acaba sendo duplamente penalizada quando é responsabilizada e cobrada a fazer a economia de um recurso do qual essa mesma população responde por 10% de seu uso. Efetivamente, não podemos controlar os eventos climáticos, como estiagens prolongadas ou não. No entanto, é possível prevê-las e realizar políticas públicas para atenuar seus efeitos. Responsabilizar “São Pedro” é no mínimo uma atitude de extrema má fé advinda dos gestores da coisa pública e em particular dos recursos hídricos. Há mais de uma década, estudiosos do tema alertam para a possibilidade de colapso nos sistemas de abastecimento de água da região Sudeste como consequência da 206
perspectiva projetada de crescimento substancial da demanda sem contrapartida na oferta. No entanto, pouco ou quase nada foi feito para mudar esta perspectiva. Como explicar então a inexistência de ações concretas para evitar que se chegasse a esse ponto de crise? Simplesmente a questão de saneamento básico e, em última instância, a questão hídrica não figuravam na agenda dos políticos, a não ser nos respectivos períodos eleitorais, quando a água é transformada em moeda de troca e sedução. O cenário atual é o mais grave vivido nos últimos 10 anos e hoje chegamos muito perto do volume morto dos quatro reservatórios (Paraibuna, Santa Branca, Jaguari e Funil) que abastecem o Estado. Qual a constatação? A única preocupação do governo hoje não é preparar/orientar a população para esta catastrófica situação. A preocupação é única e exclusivamente garantir que no município do Rio de Janeiro, cenário principal dos megaeventos (Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos de 2016), cidade mercadoria, vitrine do capital especulativo internacional, seja garantido o abastecimento de água, de qualidade questionável, independente do sofrimento imposto à população do Estado. No estado do Rio de Janeiro, o principal manancial é o rio Paraíba do Sul, que abastece 64 sistemas operados pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae); diversos sistemas autônomos municipais (SAEs); além de 13 sistemas municipais operados por empresas privadas. Todos, sem distinção, já enfrentam o problema da falta d’água. A crise atual afeta a vida de milhões de pessoas que, em função da não informação, negligenciada pelos meios de comunicação e negada pelo poder público, sofrem inertes com a escassez. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, duas grandes áreas podem retratar muito claramente como o colapso tão propalado nos últimos meses já fazia parte do cotidiano de milhares de famílias alijadas do direito humano de acesso a água e saneamento: a Baixada Fluminense e o Leste Fluminense. Nessas regiões, a injustiça socioambiental demonstra que, quanto mais periférica a população, menos assistida será pelas políticas públicas. Na baixada fluminense que, entre outros municípios, congrega São João de Meriti, Mesquita, Nova Iguaçu, Queimados e Belford Roxo, encontramos os piores índices de atendimento de saneamento básico e acesso à água potável. Pelo lado do Leste Fluminense – que abrange os municípios de Niterói, São Gonçalo, Itaboraí – a situação não é diferente, com exceção do município de Niterói, que tem o sistema de distribuição de água e esgotamento sanitário privatizados e, em função disso, tem um sistema operado de maneira diferenciada. Já São Gonçalo e Itaboraí seguem a mesma lógica da Baixada Fluminense: dada a precariedade dos 207
serviços, têm como constante, além das doenças, elevado nível de internações hospitalares da população e, no caso mais dramático das crianças, ainda afeta seu desenvolvimento e impede que as mesmas frequentem com regularidade as aulas escolares, tornando mais cruel os resultados da negligência estatal. A ausência de saneamento na Baixada Fluminense contribui para o elevado gasto com tratamento da água na ETA do Rio Guandú (fonte de abastecimento da RMRJ-Região Metropolitana do RJ), que recebe “águas” de afluentes completamente contaminadas pelo lançamento in natura de esgotos domésticos e industriais. Já o sistema Imunana-Laranjal, onde se localiza a ETA Laranjal, que trata as águas dos rios Guapiaçu e Macacu, que abastecem o leste Fluminense, diferentemente do rio Guandú, ainda podem ter suas águas classificadas como de boa qualidade. No entanto, em função da degradação ambiental, remoção da cobertura vegetal original e sobretudo das matas ciliares, observa-se um acelerado processo de erosão que, aliado ao crescimento desordenado, à industrialização e à falta de políticas públicas de saneamento nos municípios integrantes da bacia, começa a prejudicar a qualidade dessas águas. Ambos os sistemas operados pela Cedae atendem a um universo de aproximadamente 10 milhões de pessoas. Nesse contexto, é de suma importância garantir acesso à água potável para o consumo humano. Tal garantia deve ser prioridade de quaisquer governantes. No entanto, apesar de todo conhecimento tecnológico disponível, a falta de vontade política para implementação de ações efetivas nos coloca em uma posição aquém do necessário. No Estado do Rio de Janeiro, a situação não é diferente de São Paulo ou qualquer outro ente da federação. As políticas de saneamento básico têm sido objeto da mais ampla e descarada omissão de Estados e Municípios em promover sua execução e consequente universalização. O baixíssimo interesse de nossas autoridades esconde a atuação de grandes grupos transnacionais (VEOLIA, SUEZ, NESTLE) e financiadores (BM - Banco Mundial, BIRD - Banco Interamericano de Desenvolvimento e a própria ONU - Organização das Nações Unidas), que, entendendo a água como uma commoditie, e como tal passa a ter valor de mercadoria e objeto de lucro garantido, disseminam o conceito de que o Estado não consegue oferecer os serviços adequadamente. Assim, somente a privatização total dos sistemas ou um modelo menos agressivo, mas igualmente privatista, as Parcerias Público-Privadas (PPPs), poderiam atender suas necessidades. 208
A ineficácia dos projetos destinados a promover a universalização do saneamento no estado do Rio de Janeiro comprova o esforço orquestrado pelos citados grupos e organismos internacionais. Estes influenciam as políticas locais para precarização dos serviços prestados pela estatal Cedae, que junto ao Governo Estadual foram responsáveis diretos por sua concepção, execução, e que consumiram, ao longo dos últimos 20 anos, 1,17 bilhão de dólares de financiamento nacional e internacional que, ao final, foram literalmente esgoto abaixo, nos tortuosos caminhos da corrupção, desvio de recursos e total falta de controle de qualidade dos serviços executados, beneficiando, assim, interesses privados. Ao longo dos últimos 20 anos, sucessivas tentativas de privatização da Cedae foram orquestradas, ora pelo Executivo diretamente, ora pelo Legislativo, todas, porém, objeto de luta e resistência dos trabalhadores e da sociedade. Através da divisão com a desculpa da reestruturação, para em seguida vendê-la em partes durante o governo Anthony Garotinho, ou ainda com a tentativa de abertura de capital no governo Sérgio Cabral, ambas não prosperaram. Ao analisarmos mais atentamente a realidade da empresa, constataremos o desmonte intencional, o loteamento político de cargos que ocasionam uma disputa interna pelo poder, ao longo dos anos que sucederam as infrutíferas ações para privatização. E como exemplo do desmonte podemos citar o município de São Gonçalo com alto índice de inadimplência e de perdas físicas, onde ações mais efetivas e constantes, para hidrometração e estímulo à realização de ligações intradomiciliares das redes de esgoto, representariam um aumento da ordem de 100% na arrecadação, de uma região que é, segundo dados do balanço financeiro de 2014 da própria Cedae, a 2ª maior em número de economias (233.386) no estado que em valores para o ano de 2015, representou uma arrecadação da ordem de R$ 123.000.000,00. Esta situação de desmonte, leva o setor comercial, espinha dorsal da empresa, a não cumprir efetivamente seu papel na ponta, na prestação adequada dos serviços à população, prejudicando todo o conjunto de serviços de manutenção na região metropolitana e interior, mesmo a empresa sendo contemplada com os Programas de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e por último o Programa de Saneamento dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara (PSAM), que trouxeram um grande aporte de recursos. Neste processo a imagem da empresa perante os consumidores piora a cada dia, em função do aumento dos prazos para atendimento de demandas e reclamações sobre inúmeros vazamentos nas redes de água assim como obstrução nas redes de esgotos. Tais situações 209
abrem caminho para o discurso de que o serviço estatal é ineficiente e portanto deve ser entregue a iniciativa privada. Ao mesmo tempo, assistimos a um acelerado processo de terceirizações dos recursos operacionais assim como do capital humano. Viaturas, retroescavadeiras, caminhões com diferentes usos, equipamentos básicos como conjuntos moto-bombas e compressores, entre outros, hoje são alugados “a peso de ouro”, sem nenhum questionamento sobre valores ou comparação sobre o custo para se manter frota e equipagem próprios. Os trabalhadores terceirizados compõem hoje parte considerável do quadro de trabalhadores atuantes na empresa, mas como não poderia deixar de ser, a rotatividade característica deste tipo de relação trabalhista impede que se crie uma cultura do conhecimento acumulado e o compromisso com a empresa e o usuário final dos serviços. Em um universo que já chegou a ter 12 mil trabalhadores do quadro efetivo, hoje estamos reduzidos a pouco mais de 6 mil em uma lógica perversa, pois a população aumentou, as demandas por serviço também e a empresa em função do processo maquiado de desmonte diminuiu. Se, por um lado, podemos constatar algumas mudanças positivas com a democratização do fornecimento de água para boa parte dos municípios atendidos pela Cedae, por outro, constatamos que em relação ao esgotamento sanitário, a realidade continua deixando a desejar, já que deliberadamente a empresa, pautada em uma interpretação equivocada da Lei 11.445/2007 (marco regulatório do saneamento básico), abre mão de tratar os esgotos alegando que é obrigação dos municípios. Alguns gestores, baseados nesta equivocada interpretação, ainda alegam que a operação dos sistemas de esgotamento sanitário traz prejuízos econômicos para empresa e assim pavimentam o caminho para entrega dos sistemas de tratamento de esgotos à iniciativa privada, que visa lucro econômico. O interesse das empresas privadas em assumirem os diversos sistemas de esgotamento sanitário por si só já desconstrói a frágil justificativa do prejuízo econômico. Devemos ter bastante claro que o acesso à água de boa qualidade e ao tratamento de esgotos deve ser tratado como uma questão de saúde pública e, portanto, objeto de lucro social e não econômico. No ano de 2014, depois de muita resistência encontrada, o governador e membros do Legislativo retornam a carga e, mais uma vez, contando com a aparente desmobilização e insatisfação da sociedade, tentam realizar a entrega dos sistemas via PPPs, objetivando 210
conceder os setores comercial e de operação e tratamento de esgotos nos municípios da região metropolitana operados pela Cedae. Fruto da carência e precarização produzidas nesses setores, a inviabilização e não ampliação dos mesmos tenta convencer a população que somente com a privatização do setor através das PPPs se poderá dar solução para os problemas de infraestrutura. Tal medida continuará a render frutos para o capital com a apropriação corporativa de serviços públicos de água. As PPPs representam uma sofisticação no pensar e agir das instituições internacionais quando não são apresentadas como privatização do sistema, mas um subterfúgio para que, através da participação na construção e operação dos sistemas sob regime de concessão, assumam sem riscos os respectivos projetos. No entanto, a atual crise hídrica tem propiciado novos rumos e espaços de discussão, ampliando a possibilidade de luta coletiva pelo direito a este bem essencial a vida e, consequentemente, a luta para que o controle e a operação dos sistemas de água e esgotos permaneçam estatais, implementando ainda a participação popular nas decisões sobre as políticas para o setor. Neste momento, o Brasil caminha na contramão de cidades da Europa, EUA, América do Sul e Ásia onde, em decorrência das inúmeras experiências negativas com relação às privatizações dos serviços de água e esgotos, reestatizaram os serviços através dos governos locais, provocados pelas respectivas populações. Cidades como Paris, Berlim, La Paz e Johannesburgo, entre 180 outras espalhadas por mais de 35 países, reestatizaram seus sistemas. A luta pela manutenção da Cedae pública e estatal segue sofrendo ataques diretos, mais recentemente com a aprovação da lei 7043 de julho de 2015, em seção extraordinária na Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro). A referida lei promove a adequação ao Estatuto das Metrópoles (lei 13.089/15), no sentido de que o governo estadual passa a ser responsável por coordenar e direcionar as políticas públicas e o planejamento urbano em conjunto aos municípios integrantes da região metropolitana, podendo unilateralmente abrir mão de cumprir com suas obrigações constitucionais de proporcionar acesso à saúde, educação e saneamento básico como serviços públicos, entregando os mesmos à iniciativa privada.Uma lei que deveria servir para melhorar a implementação de políticas públicas nos municípios de interesses convergentes na região metropolitana poderá ser usada para atender interesses privados. 211
Sabe-se que o setor de saneamento tem verbas orçamentárias da ordem de mais de R$ 508 bilhões disponíveis nos próximos 20 anos, segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico. Estas verbas estão na mira das empreiteiras participantes dos consórcios e empresas privadas de saneamento. Essas jogam todas as suas fichas ao financiarem campanhas políticas nos três níveis de poder - municipal, estadual e federal – para garantirem aprovação de leis que venham a beneficiar seus planos de expansão no setor. No Rio de Janeiro, o número de municípios atendidos pela Cedae vem diminuindo a cada ano, com o cancelamento de concessões por parte dos municípios e até mesmo pelo desinteresse da direção da Cedae em atender outras cidades que considera não rentáveis. Podemos citar como exemplo de privatização rentável a cidade de Niterói, primeira a ter todo sistema privatizado e entregue à empresa privada Águas de Niterói. Em seguida, o mesmo governo Marcelo Alencar entregou sem nenhuma contrapartida, a região de Araruama, Saquarema e Silva Jardim, onde opera a Águas de Juturnaíba, pertencente ao grupo privado Águas do Brasil. Outras cidades da região dos Lagos, como Cabo Frio, Búzios, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia e Arraial do Cabo, hoje são operadas pela empresa Pró Lagos, do grupo AEGEA. Apesar de demonstrar certos resultados positivos na expansão dos sistemas, isso veio junto com o aumento das tarifas, que não foi acompanhado de melhorias para as camadas populares e, hoje, tais empresas enfrentam a insatisfação das populações. No Rio de Janeiro, avançam as privatizações do esgotamento sanitário através das PPPs na região metropolitana. Regiões inteiras, como a AP-5, que compreende bairros de Deodoro até Santa Cruz, assim como os municípios de São João de Meriti e São João da Barra, foram entregues sob regime de PPPs. Já a região chamada de AP-4 (Barra da Tijuca e Jacarepaguá), que recebeu investimentos da ordem de R$ 1,3 bilhões com 90 % de obras concluídas, é objeto de uma possível retomada pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Tornou-se um verdadeiro escândalo a tentativa de entrega de uma área quase 100% saneada que começa a dar retorno financeiro. O escândalo é tamanho que hoje já se fala em valores da ordem de US$ 4 bilhões, isso mesmo 4 bilhões para entrega desta região à iniciativa privada sob o pretexto de salvar as contas públicas e a folha de pagamento do Estado até 2018. A Cedae, nos últimos 4 anos, seguiu na busca de recursos financeiros para a implantação, ampliação e modernização de suas instalações. Os investimentos previstos para a área de saneamento no estado do Rio englobaram recursos do Programa de Aceleração do Crescimento 212
(PAC) do governo federal e recursos próprios do governo fluminense, incluindo os oriundos do Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano (FECAM), na ordem de R$ 3,4 bilhões. Até a Olimpíada de 2016, a Cedae estima que serão investidos R$ 888,3 milhões em saneamento na capital Rio de Janeiro, R$ 321,9 milhões na Baixada Fluminense, R$ 1,866 bilhão na região leste do estado São Gonçalo, Itaboraí, Maricá, R$ 416,1 milhões em outras áreas. Do total de recursos, 60% serão aplicados em projetos e construção de sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, visando à universalização dos serviços, isto é, atender a 100% da população do estado. Os 40% restantes serão investidos na compra de equipamentos. Com esse volume de recursos disponíveis, é até compreensível a sanha da iniciativa privada em estimular e acelerar o processo de implementação das PPPs. Lamentavelmente, alguns gestores da companhia e políticos concordam com essa política, e defendem que a empresa opere com a lógica do lucro econômico ao invés do social, ferindo o princípio da continuidade da prestação de serviços essenciais e deixando vulneráveis populações inteiras que não terão garantido seu acesso a esses serviços essenciais à vida. Seguimos na luta: saneamento não pode ser sinônimo de lucro. Deve proporcionar saúde às populações atendidas, para que possam ser contempladas com redução de casos de doenças de transmissão hídrica, com a regular implantação de uma rede de esgotos que, ao final, resultará em economia nas redes públicas de saúde, melhor rendimento escolar e dignidade com qualidade de vida das populações. Garantir o acesso ao saneamento básico com a universalização para toda a sociedade tem que ser compromisso de qualquer governante. Devemos, ainda, difundir a ideia da participação popular para o controle social das decisões sobre as políticas públicas para o setor, previsto inclusive no Decreto 8.211/2014. Com este instrumento, a população, informada e empoderada de seus direitos, criará uma nova dimensão política, na qual, através de intervenções conscientes, ditará os rumos das mudanças que necessitarem. Exemplo disso aconteceu em 2013 na cidade do Rio de Janeiro, quando moradores da Favela da Rocinha, na Zona Sul do Rio de Janeiro, reivindicaram que fossem realizadas obras de saneamento ao invés da construção de um teleférico. Ou seja, a busca pela qualidade de vida teve maior peso, e a população disse claramente quais eram suas prioridades. A luta pelo saneamento público e estatal tem que ser fortalecida com a participação popular. Isto implica chamar as populações preteridas para que possam ser sujeitos de suas histórias em busca da conquista da dignidade e qualidade de 213
vida. E somente uma empresa pública e 100% estatal, com controle social, poderá garantir esta universalização. Nesta perspectiva, o coletivo “Água, Sim - Lucro, Não” cumpre papel fundamental nas lutas contra as privatizações e em defesa do ecossocialismo como alternativa a este sistema que tudo transforma em mercadoria. Lutar pelo direito à água e ao saneamento é lutar pelo direito à vida.
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