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Luz, C창mera, Palavras


Luz, Câmera, Palavras ISBN 978-85-8236-004-0 Copyright © Edufac 2013, Francisco de Moura Pinheiro

Editora da Universidade Federal do Acre - EDUFAC Rod. BR364, KM04 • Distrito Industrial 69920-900 • Rio Branco • Acre Diretor Antonio Gilson Gomes Mesquita Diagramador Antonio de Queiroz Mesquita Editora de Publicações Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifacio Secretária Geral Ormifran Pessoa Cavalcante

Capa, Editoração e Projeto Gráfico Antonio Queiroz Foto Capa Allen Ferraz Revisão Márcio Chocorosqui


Luz, C창mera, Palavras Francisco de Moura Pinheiro Organizador

2013



Autores Artigos 1 e 4 Francisco de Moura Pinheiro Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), doutorando em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), membro da Academia Acreana de Letras (Cadeira 28) e jornalista na Universidade Federal do Acre (Ufac). E-mail: fdandao@gmail.com. Artigo 2

Humberto de Freitas Espeleta

Artigo 3

Francielle Maria Modesto Mendes

Artigo 3

Francisco Aquinei Timóteo Queirós

Artigo 4

Cynthia Luderer

Professor Doutor em Letras: Estudos Literários pela Unesp-Car. Atua na área de língua francesa e suas literaturas na Universidade Federal do Acre (Ufac). Tem pesquisas na área de ensino de língua e literatura francesa com recurso à informática e à internet; na área de teoria e crítica literárias e na área de tradução literária e intersemiótica. E-mail: hespeleta@uol.com.br.

Doutoranda do Dinter — USP/Universidade Federal do Acre (Ufac) em História Social. Professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), da Ufac, no curso de Comunicação Social-Jornalismo. E-mail: franciellemodesto@gmail.com.

Mestrando em Letras: Linguagem e Identidade, da Ufac. Professor do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), da Ufac, no curso de Comunicação Social/Jornalismo. E-mail: aquinei@gmail.com.

Historiadora, pedagoga e tecnóloga em gastronomia. Mestre e doutoranda pelo programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Bolsista pelo programa sanduíche da Capes — Programa de Antropologia da Universitat Rovira i Virgili, Espanha. Professora da Unimonte. Temas investigados: carnavalescos e chefs de cozinha. E-mail: cynthialud@gmail.com

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Artigo 5

Augusto Diniz

Artigo 6

Isabel Regina Augusto

Artigo 7

Milton Chamarelli Filho

Artigo 8

Ana Lucilia Rodrigues

Artigo 9

João Carlos de Carvalho

Jornalista, pós-graduado em Jornalismo Científico (lato sensu) pela Unitau-SP, com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). E-mail: augustodiniz@uol.com.br.

Recém-Doutora FACITEC junto ao Programa de PósGraduação em História (PPGHis) na Universidade Federal do Espírito Santo-UFES. Profª. Orientadora do curso Artes Visuais-Licenciatura e da Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça do NEAAD–UAB-UFES. PhD em História e Civilização pelo European University Institute (EUI-Firenze), Mestre em Comunicação pela UnB e especialista em Cinema pela mesma universidade, MbA em Desenvolvimento Rural pelo CORI SpA (Lucca), graduada em Comunicação/Jornalismo pela UFES. Associada INTERCOM e ANPUHES, sócia fundadora SOCINE. E-mail: isabelaugusto2005@yahoo.com.br.

Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUCSP. Professor do Curso de Comunicação Social/ Jornalismo da Ufac. E-mail: phaneron1@hotmail.com.

Psicanalista, membro da APPOA e do LATESFIP/ USP, autora do livro Pedro Almodóvar e a feminilidade (Escuta, 2008) e co-autora do livro Divã na tela. Desenvolve seu doutorado sobre cinema no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Organizadora da Jornada Paulista de Cinema e Psicanálise, cuja quarta edição foi realizada em novembro de 2012. E-mail: rodriguesanalucia@gmail.com.

Professor doutor da Universidade Federal do Acre (Ufac), Campus Floresta, na área de Letras. E-mail: jccfogo@bol.com.br.


Prefácio Há no rastro da Humanidade, que, em sobressaltos errantes, perambula por planaltos telúricos, desde a sua aparição no mundo, uma tentativa hercúlea para desvendar o mais imponderável dos enigmas, e que marca a sua cicatriz na grande teia do universo: a palavra. Palavra que nomeia seres e coisas; palavra que emerge das sombras para transcender corpos, visíveis e não visíveis; palavra que incendeia corações de poetas e fazem arder em horizontes crepusculares deuses, heróis e anjos do asfalto; e palavras que traduzem o Indizível. Este caminho sinuoso, longo e pautado pelos sulcos da eternidade consubstancia o emblema do Homem: o de Ser. E ser é, inconscientemente, um ato furioso do verbo que, radicalizado em vértices desconhecidos, submerge emoções inomináveis e expele dilúvios de ideias, que, muitas vezes, são filhas titânicas do silêncio. Silêncio apartado de palavras, mas congeminado em imagens. Fenômeno que exaure o fôlego da quimera e dá vida a heróis. A palavra, portanto, é mítica; e, como tal, expande seus pulmões ao transformar legendas em visões que as divindades, os semideuses, os profetas e os artistas testemunham, de forma colossal, uns acima do firmamento ígneo, outros sob a luz do luar. Assim, ao protagonizarem a ação na qual a verdade que desce dos céus é servida como banquete alado para os homens, essas personagens translúcidas transmutam a realidade ímpia e sacralizam, dionisiacamente, a palavra em imagem. Talismã vii


ímpar que, fundido em um corpo singular, porta o fogo roubado do Alto, blindado pelo ímpeto da voz, que, um dia, bradou os ecos da liberdade dos homens sob os auspícios imponderáveis do logos. Palavra e Imagem nasceram juntas porque foram concebidas juntas. Conjugadas na grande película universal, o Fiat Lux jamais teria existido se o verbo da Criação não repousasse sobre o colo uterino da palavra. A Letra-imagem estava formada: muda, porque era silêncio para as criaturas viventes; silábica, quando todos foram acolhidos pelo Tempo e, por fim, pensamento quando o imaginário percebera que a imagem fala na ausência reclusa da palavra e a palavra finca sua lâmina cega no silêncio que sangra a dor sem gritos, sem sons. Filhas legítimas da Luz, palavra e imagem habitam, barthesianamente, a câmara mais do que clara para focarem suas lentes em planos e altiplanos fantásticos, em almas convexas e corpos côncavos, em vapores densos e ares efêmeros e, quiçá, em esperanças mortas e saudades vivas. Labirintos do sem fim, onde olhares iluminados percorrem sendas adormecidas; seres anônimos, embalados por seus sonhos, que carecem, com uma angústia atlântica, descobrir, através da palavra, a imagem que, ainda, não fora vista; capturada pela objetiva arguta, capturada pelo olhar de águia. O Cinema é uma arte. Se ordinariamente for a sétima, ocupa, portanto, o espaço divinal. Assim, o Cinema reúne todos os seres iluminados e aqueles que serão iluminados, quer sejam pela luz, quer sejam pela palavra. Luz que funda verdades, palavra que consagra lendas. O Cinema é Luz. É centelha, viii


é chama, é logos; ilumina a palavra com a imagem incandescente que, diante dos olhares mortais e imortais, revela segredos e provoca cóleras. O Cinema é palavra. É verbo, é sentença, é imaginação; transcende os portais do infinito para eternizar nas telas a imitação, ora da Arte pela vida, ora da vida pela Arte. O Cinema é Luz, Câmera, Palavras!

João Carlos de Souza Ribeiro Pós Doutor em Poética

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Apresentação Há muito tempo que a ideia de publicar um livro com artigos sobre cinema transitava no meu pensamento. Mas era uma ideia solitária que acabava sempre adiada. Certo dia, expus esse projeto, numa conversa informal, a um estudioso do tema, o professor Hélio Costa Júnior, o Helinho, do Departamento de História da Universidade Federal do Acre (Ufac). De imediato, ele encampou a ideia. Encampou e se propôs a ajudar no empreendimento. Pronto. Era o que faltava para o projeto começar a sair do campo do imaterial. Acontece que, por aqueles dias, o Helinho andava extremamente atarefado com as atividades do seu doutorado, viajando em seguida para cursar algumas disciplinas em São Paulo. Mas o desafio estava lançado e eu resolvi tocar o barco (ou seria rodar o filme?) sozinho. E então, tratei de redigir umas regrinhas para a produção dos textos. Regras definidas, o passo seguinte foi contatar pesquisadores que eu julguei interessados no tema. Em princípio, todos os contatados se mostraram bastante animados com o trabalho. No correr dos dias, porém, por impedimentos das mais diversas ordens e procedências, muitos tiveram que desistir. Mas não sem profundos lamentos, externados por meio de atenciosos e-mails enviados para a minha caixa postal. No final das contas, nove autores das mais diversas origens e de várias cidades do planeta enviaram os seus textos. Nomino-os: Humberto de Freitas Espeleta (Rio Branco-AC), x


Isabel Regina Augusto (Vitória-ES), Francielle Maria Modesto Mendes (Rio Branco-AC), Francisco Aquinei Timóteo Queirós (Rio Branco-AC), Augusto Diniz (São Paulo-SP), João Carlos de Carvalho (Cruzeiro do Sul-AC), Milton Chamarelli Filho (Rio Branco-AC), Cynthia Luderer (Barcelona-Espanha) e Ana Lucilia Rodrigues (São Paulo-SP). Grupo ao qual se deve acrescentar o meu nome, Francisco de Moura Pinheiro, dado que contribuo para o volume com dois artigos. E assim, eis que, depois dessa historinha que eu contei nas linhas precedentes, é com uma enorme alegria que apresento Luzes, câmera, palavras!, com os seguintes artigos, elencados em ordem alfabética: A crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso — reescritura cinematográfica; A lição Neorrealista: a breve longa história de um movimento de resistência e libertação do cinema hegemônico; Avatar, Gaia e florestania: três dimensões; Bye bye Brasil: o mosaico narrativo das mudanças sociais brasileiras; Documentário científico: reconhecimento internacional de filme brasileiro sobre o transmissor da dengue; Em todas as manhãs um desconcerto: o valor do silêncio; Imagens. Medo e fascínio; Luzes e sombras — projeções do bem e do mal na tela do cinema; Registros da vanguarda gastronômica: imagens de uma cozinha criativa; e Retratos do feminino. Se haverá um segundo volume em algum lugar do futuro? Tomara que sim. Mas primeiro temos que ver como é que vai se comportar a bilheteria. Se o filme (digo, o livro) conseguir “arrasar o quarteirão”, é quase certo que se pense numa continuação sim. Em caso contrário... Bem, em caso contrário, viciados que somos tanto em palavras quanto em imagens, é xi


bem possível que a gente resolva se aventurar outra vez. Afinal, além de tudo, uma produção deste porte, reunindo tanta gente boa, acaba proporcionando, de verdade mesmo, um imenso (e intenso!) prazer.

Francisco de Moura Pinheiro

xii


Sumário Análise fílmicas ficcionais 1

Avatar, Gaia e florestania: três dimensões

19

O império derrotado pela multidão

20

Deslumbramento, pastiche e emoção

24

Hipóteses, lendas, ciência e ideologia fervem num mesmo caldeirão A hipótese de Gaia Lendas amazônicas Ecologia — Desenvolvimento Sustentável Florestania

29 29 31 33 35

Considerações finais

38

2

A Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso reescritura cinematográfica

45

3

Bye Bye Brasil: O Mosaico Narrativo das Mudanças Sociais Brasileiras 63

4

Luzes e sombras: Projeções do bem e do mal na tela do cinema 79 A primeira tela

80

Trinta segundos: horror e êxtase

81

Ilusão sincrética: a separação do bem e do mal

83

As fadas congelam o instante

84

Happy End e felicidade não rimam, mas servem de solução

86

Uma providencial infiltração

93

Scorsese e as duas faces da moeda

96

Companheiros de sono no ventre primitivo e o combate pela felicidade

99

xiii


Análises de filmes não ficcionais 5

Registros da vanguarda gastronômica: imagens de uma cozinha criativa 109

6

Documentário científico: reconhecimento internacional de filme brasileiro sobre o transmissor da dengue 123 Introdução

124

Reconhecimento

126

A epidemia que Deu Origem ao Filme

131

O Documentário e o Vídeo-Educativo

134

Desenvolvimento do Primeiro Documentário

Sobre o Aedes aegypti 137 Considerações Finais

141

Teorias do Cinema 7

A Lição Neorrealista: a breve longa história de um movimento de resistência e libertação do cinema hegemônico

149

O breve percurso de uma escola de resistência, transgressão e libertação

150

8

Imagens. Medo e fascínio

173

9

Retratos do Feminino

187

10 Em todas as manhãs um desconcerto: o valor do silêncio

xiv

199




Análise fílmicas ficcionais



Luz Câmera PALAVRAS

1

Avatar, Gaia e florestania: três dimensões1 Francisco de Moura Pinheiro

RESUMO

Mais de uma década depois de começar a ser concebido pelo cineasta James Cameron, finalmente o filme Avatar veio a público, trazendo à luz, a partir do elemento da tridimensionalidade, uma nova forma de fazer cinema. A questão dos recursos técnicos, porém, foi apenas uma parte dos fatores que fizeram do filme um campeão de bilheteria. A mensagem contida no argumento, sobre os perigos da depredação da natureza, numa época de mobilização global pela preservação dos recursos naturais, ajudou a dar à obra de Cameron um irresistível apelo popular. O que este artigo se propõe a fazer é uma reflexão sobre esse lado ecológico do filme, a partir dos conceitos contidos na hipótese de Gaia, em mitos da Amazônia, no desenvolvimento sustentável e na noção de florestania — neologismo criado no Acre nos últimos anos do século XX. Palavras-chave: Avatar. Cinema. Comunicação. Florestania. Meio ambiente.

1 • Artigo publicado originalmente nos Anais do IX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Norte.

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ANÁLISE FÍLMICAS FICCIONAIS

O império derrotado pela multidão

F

avoritíssimo ao Oscar de melhor filme de 2009, Avatar, do cineasta canadense James Cameron, 55 anos, acabou perdendo o título para Guerra ao terror, da americana Kathryn Bigelow, coincidentemente (ou não) ex-mulher do vencido. Das 17 categorias da premiação distribuída anualmente pela Academia de Ciências e Artes de Hollywood, apenas (!) três láureas foram concedidas à história do confronto entre os humanos e os habitantes de Pandora — efeitos visuais, direção de arte e fotografia. Muito pouco para um filme que arrastou multidões às salas de exibição ao redor do mundo e que passou cerca de 12 anos para sair da imaginação do seu criador (Cameron) e ganhar as telas, tornando-se a segunda maior bilheteria da história da sétima arte, ficando atrás somente de Titanic, dirigido pelo mesmo Cameron, em 1997. O enredo de Avatar até que não tem nada de complicado. A trama se passa no ano 2154. Uma enorme nave interestelar corta o espaço sideral rumo a Pandora, uma lua de vegetação luxuriante que abriga várias formas de vida, em órbita de um planeta gigante, nas imediações de uma das estrelas do sistema Alfa Centauri. Entre a tripulação, um ex-fuzileiro naval paraplégico chamado Jack Sully (Sam Worthington). Sua missão é substituir seu irmão gêmeo, cientista recém-falecido, num projeto supostamente científico, cujo objetivo seria estudar os nativos de Pandora, denominados Na’vi, criaturas de três metros de altura, pele azul, orelhas pontiagudas e dotadas de

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rabo, que não conhecem armas de fogo ou quaisquer tecnologias dessa natureza, não acumulam valores materiais, morando em comunidades e vivendo, fundamentalmente, da coleta de frutos e da caça, em harmonia com o meio ambiente. Para facilitar o contato com os Na’vi sem a necessidade de máscaras que ajudem a respiração, dado que a atmosfera de Pandora é diferente da terrestre, os humanos contam com avatares (daí o título do filme), que são corpos criados artificialmente, onde são combinados os DNA dos nativos e dos “invasores”. A conexão é realizada numa espécie de transferência do cérebro dos humanos para o corpo artificial, por meio de um complexo aparato tecnológico. O corpo humano permanece como se em estado de hibernação, enquanto a sua consciência passa a viver no corpo do avatar. Mais ou menos como se uma “casca” (ou “carcaça”) fosse trocada por outra. No caso, uma troca perfeita para o paraplégico Jack Sully, uma vez que no novo corpo ele se livra da cadeira de rodas, voltando a sentir a sensação de locomoção com as “próprias” pernas. O problema todo é que a missão dos humanos não tem nada (ou tem muito pouco) de tão científico assim. Existe, é verdade, uma equipe de cientistas voltada para o estudo dos Na’vi, mas isso é só uma cortina de fumaça para a verdadeira motivação da exploração de Pandora. De verdade mesmo, a motivação dos exploradores é totalmente econômica. É que Pandora possui as únicas reservas conhecidas de uma substância chamada de “unobtanium”, extremamente valiosa para os humanos por suas propriedades de supercondutividade. A exploração dessa substância está a cargo de uma companhia denominada RDA, 21


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que mantém toda a infraestrutura local, inclusive no que diz respeito aos experimentos científicos. Detalhe relevante: a maior jazida de “unobtanium” está localizada justamente no local onde fica a árvore sagrada dos Na’vi. O ex-fuzileiro paraplégico Jack Sully acaba, inicialmente, fazendo o papel de agente duplo. Trabalha para a equipe de cientistas, sob a liderança da Dra. Grace Augustine (Sigourney Weaver), a botânica responsável pelo Programa Avatar, mas também age como espião para os mercenários, sob o comando do coronel Quaritch (Stephen Lang), chefe de segurança humano em Pandora, personagem que tem enorme desprezo pela vida “selvagem” daquele mundo e ansioso para destruí-la em favor das atividades de mineração. Para convencer Jack Sully a colaborar, o coronel Quaritch usa dois argumentos: o espírito de corpo que deve acompanhar os militares, principalmente os fuzileiros navais, por toda a vida; e a promessa de uma cirurgia que faça Sully recuperar os movimentos das pernas, quando do retorno da missão à Terra. Mas esse papel de agente duplo vivido por Jack Sully só se mantém enquanto ele não conhece a nativa Neytiri (Zoë Saldana), princesa de um dos clãs dos Na’vi. Ao ser perseguido por um animal selvagem e se perder de um grupo de exploração comandado pela Dra. Grace Augustine, Sully é salvo da morte por Neytiri. Depois disso, ela o leva para o meio da comunidade Na’vi, onde ele passa a noite e começa a presenciar o modo de vida dos locais. Sully manifesta a intenção de aprender mais sobre a cultura dos Na’vi, desejo esse que lhe é concedido por Eytukan (Wes Studi), rei do clã Omaticaya e pai de Neytiri. Daí 22


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para a paixão entre Sully e Neytiri é apenas um passo. E então, o cérebro do ex-fuzileiro naval no corpo do seu avatar Na’vi passa a liderar a resistência nativa contra os ataques genocidas dos humanos. Mesmo os Na’vi usando táticas de guerrilha e lutando num território totalmente conhecido (estratégias que já deram certo em diversas situações da história da humanidade, onde impérios acabaram derrotados pelos povos invadidos), a disparidade tecnológica das armas entre nativos e invasores é tamanha que aqueles parecem fadados à morte. É nesse ponto que Jack Sully se revela uma espécie de “Messias”, o que anteriormente havia sido previsto por uma sacerdotisa Na’vi, convocando as forças da natureza, representadas por uma entidade superior, que parece estar ligada a todas as formas de vida daquele mundo. Com o auxílio de bandos de animais selvagens, e com Jack Sully cavalgando um ser alado até então indomado (fato que consolidou a liderança do humano/avatar), os Na’vi conseguem expulsar os humanos de Pandora. No que se refere aos personagens principais, além dos já citados Jack Sully, Dra. Grace Augustine, Coronel Quaritch, Neytiri e Eytukan, acrescente-se Mo’at (CCH Pounder), como rainha do clã Omaticaya, que demonstra grande desconforto com a visita de humanos ao seu mundo; Trudy Chacon (Michelle Rodriguez), ex-fuzileira naval, trabalhando como piloto para transportar os membros do Programa Avatar aos diversos pontos de Pandora; Tsu’tey (Laz Alonso), o melhor guerreiro do clã Omaticaya, escolhido para casar com Neytiri e tornar-se chefe quando morresse Eytukan; Norm Spellman 23


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(Joel David Moore), antropólogo recém-chegado a Pandora, ávido para iniciar as pesquisas de campo no local; e Parker Selfridge (Giovanni Ribisi), administrador geral das atividades da Companhia RDA em Pandora.

Deslumbramento, pastiche e emoção Do ponto de vista técnico, as opiniões foram praticamente unânimes quanto à competência dos realizadores de Avatar. É o que se lê, por exemplo, em Marcelo Gleiser, professor de física teórica no Dartmouth College (EUA), em artigo publicado no Caderno Mais, da Folha de São Paulo, de 10 de janeiro de 2010, página 9, cujo título é o próprio nome do filme: “[...] Sem dúvida, ação e efeitos especiais não faltaram. As técnicas de computação gráfica são revolucionárias e iniciam uma nova fase na história da cinematografia [...]”. E é o que se lê, também, em artigo de Marcelo Leite, intitulado “Gaia para presidente”, na mesma Folha de São Paulo, publicado em 7 de março de 2010, página 9, igualmente no Caderno Mais: “[...] Os olhos se enchem com as imagens possantes e o emprego virtuoso, nada exibicionista, dos recursos tridimensionais [...]”. Já no tocante ao argumento condutor de Avatar, os dois articulistas divergem total e absolutamente. Marcelo Gleiser afirma no mesmo artigo que o filme é um dos mais belos que ele já teve oportunidade de ver: “[...] As árvores majestosas e seus ‘espíritos’, uma representação da hipótese Gaia — segundo a qual a Terra como um todo é um ser vivo — são pura poesia visual [...]”. E vai além, Marcelo Gleiser, comparando o cenário de 24


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Avatar a um paraíso tropical semelhante à Amazônia. Enquanto isso, na análise de Marcelo Leite, igualmente no mesmo artigo em que elogia a realização técnica, o filme não passa de “[...] um pastiche de todos os clichês e gêneros cinematográficos de sucesso, mas resultaria inofensivo se não fosse a xaropada ambientalista [...]. O mito do bom selvagem rebrilha sobre uma pátina azul [...]”. O que se passa em Pandora, um planeta distante (aparentemente uma lua de um planeta gasoso), segue discorrendo Marcelo Gleiser, no mesmo artigo, é uma metáfora do que acontece aqui na Terra. E explica que, apesar de alguns acharem que é uma metáfora muito óbvia, quase revivendo os antigos filmes de faroeste, há uma diferença fundamental, que é a troca do lugar entre mocinhos (agora os nativos são os bonzinhos) e os vilões (agora a civilização americana é que encarna a turma do mal). Mas Marcelo Gleiser justifica a obviedade do argumento, afirmando que nem sempre uma história contada de maneira mais sofisticada e/ou cerebral traz um melhor resultado. “[...] Às vezes é necessário simplificar a mensagem para que seu conteúdo atinja o objetivo desejado. Kevin Costner fez o mesmo em ‘Dança com Lobos’ [...]”, diz o articulista. No contraponto da opinião de Gleiser, Marcelo Leite chama o filme de uma cópia constrangedora do motivo central da franquia Matrix. Literalmente, nas palavras de Marcelo Leite, no mesmo artigo “Gaia para presidente”, “[...] o upload da mente do herói no corpo de um avatar (virtual ou de carne e osso, tanto faz)”. E segue Marcelo Leite, listando os supostos defeitos e as supostas imitações de outros filmes perpetradas 25


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por Avatar: previsível final feliz de historinha de amor impossível; eterna luta do bem contra o mal; a ignomínia do capital; a irracionalidade da violência militar; as máquinas de “Guerra nas Estrelas”; os dinossauros (alados, no caso de Avatar) à moda de Parque Jurássico; caçadores que se debruçam compadecidos sobre as vítimas que acabam de imolar etc. Para além dos artigos publicados na Folha de São Paulo, por Marcelo Gleiser e Marcelo Leite, entretanto, e para efeito da continuação do presente texto, é preciso conhecer a opinião da senadora Marina Silva (PV-AC), publicada em 02 de março de 2010, no endereço eletrônico www.minhamarina.org.br/ blog, sob o titulo “Avatar e a síndrome do invasor”, onde ela, em outras palavras, fala da sua identificação com os Na’vi, e em uma espécie de conexão entre o mundo de Pandora e a história do Acre. “A arrasadora chegada do ‘progresso’ ao Acre seguiu, de certa forma, a mesma narrativa do filme [...]”, diz Marina Silva. “Principalmente”, explica a senadora em outro ponto do mesmo texto, “quando, a partir da década de 70 do século passado, transformaram extensas áreas da Amazônia em fazendas, expulsando pessoas e queimando casas [...]”. De acordo com a senadora acreana Marina Silva, teve um momento do filme que ela (Marina), quando Neytiri, a guerreira Na’vi bebia água numa folha, surpreendeu-se, levando a mão à frente do próprio corpo para tentar tocar a gota que escorria da planta, tão fortes foram, naquele momento, as lembranças da sua infância nos seringais acreanos.

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 A guerreira Na’vi bebendo água na folha como a gente bebia. No período seco, quando os igarapés quase desapareciam, o cipó de ambé nos fornecia água. Esse cipó é uma espécie de touceira que cai lá do alto das árvores, de quase 35 metros, e vai endurecendo conforme o tempo passa. Mas os talos mais novos, ainda macios, podem ser cortados com facilidade. Então, a gente botava uma lata embaixo, aparando as gotas, e quando voltava da coleta do látex, a lata estava cheia. Era uma água pura, cristalina, que meu pai chamava de água de cipó. E aprendíamos também que se nos perdêssemos na mata, era importante procurar cipó de ambé, para garantir a sobrevivência. (SILVA, www.minhamarina.org.br/blog, 02 de março de 2010)

E, em outra parte do texto postado no blog de Marina Silva, surgem mais pontos de identificação entre a prática dos Na’vi e a rotina dos seringueiros acreanos: o ensinar dos segredos da mata para os “civilizados”. É que Neytiri, na sua missão de fazer Jack Sully aprender a cultura Na’vi, baseada na comunhão de todas as coisas, tão estranha para aquele viajante do espaço, fala da conexão entre todos os seres vivos, da mesma forma que, nas memórias da senadora, o seu pai ensinava a todas as filhas os nomes das plantas. O prêmio oferecido pelo pai, nas palavras de Marina Silva, era a dispensa de algumas tarefas corriqueiras das jovens seringueiras.

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Me tocou muito ver a guerreira Na’vi ensinando os segredos da mata. Veio à mente minhas andanças pela floresta com meu pai e minhas irmãs. Ele fazia um jogo pra ver quem sabia mais nomes de árvores. Quem ganhasse era dispensada, ao chegar em casa, de cortar cavaco para fazer o fogo e defumar a borracha que estávamos levando. A disputa era grande e nisso ganhávamos cada vez mais intimidade com a floresta, suas riquezas e seus riscos. A gente aprendia a reconhecer bichos, árvores, cipós, cheiros. Catávamos a flor do maracujá bravo pra beber o néctar, abrindo com cuidado o miolinho da flor. (SILVA, op. cit.)

Voltando a Marcelo Leite, convém ressaltar que parece ter sido todo esse fervor ambiental e identificação de Marina Silva com a história contada por James Cameron, em Avatar, com a sua própria história de vida, que motivou o articulista da Folha de São Paulo à desconstrução da mensagem do filme. “A ex-ministra do Meio Ambiente traça uma série de paralelos biográficos e amazônicos com a saga dos Na’vi. Rola até uma identificação com a figura esguia dos gigantes azuis”, diz Marcelo Leite (Folha de São Paulo, op. cit.). E vai além o articulista, afiançando, num outro trecho, que Marina Silva foi fisgada pela pedagogia mística de Cameron. Como toque final, Leite critica esse componente místico e enaltecedor dos povos iluminados da floresta como fundamentais para adotar uma perspectiva ética nas relações entre homem e natureza. “Pode-se chegar a isso pela pura força da razão, sem a fantasia deslumbrante de eleger 28


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Gaia” (Folha de São Paulo, op. cit.). Uma evidente alusão negativa à candidatura de Marina Silva à Presidência da República nas eleições de 2010.

Hipóteses, lendas, ciência e ideologia fervem num mesmo caldeirão Independentemente das opiniões favoráveis ou desfavoráveis acerca da competência técnica ou do argumento de Avatar, parecem evidentes quatro referências usadas para a realização desse mais recente sucesso cinematográfico de James Cameron: a Hipótese de Gaia, proposta no século XX pelo cientista James Lovelock; lendas amazônicas; questões referentes à preservação ambiental planetária; e convergências relativas à florestania, o neologismo criado pelo povo acreano para designar tanto um estado de espírito amazônida quanto um modelo de desenvolvimento sustentável. A hipótese de Gaia Proposta pelo cientista norte-americano James Ephraim Lovelock, considerado um dos mentores do movimento ambientalista, a partir dos anos de 1970, a Hipótese (ou Teoria) de Gaia defende a idéia de que a Terra seja um corpo vivo e homogêneo. O planeta, no dizer de Lovelock, seria um superorganismo no qual todas as reações químicas, físicas e biológicas estariam interligadas e não poderiam ser analisadas isoladamente. Por essa proposta, então, no dizer do cientista, a Terra não teria sido feita como é para ser habitada. Ela teria se tornado o que 29


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é através do seu processo de habitação. Ou seja, a vida seria o meio, não a finalidade do desenvolvimento da Terra. De acordo com James Lovelock, a Teoria de Gaia deve ser considerada como uma alternativa absolutamente plausível à sabedoria tradicional, que vê a Terra como um planeta inanimado, só por acaso habitado pela vida. “Considere-a como um verdadeiro sistema, abrangendo toda a vida e todo o seu ambiente, estritamente acoplados de modo a formar uma entidade auto-reguladora”, diz Lovelock, citado no artigo Teoria de Gaia, in: www.healing-tao.com.br/artigos/teoriadegaia.htm. Em outras palavras, explica Lynn Margulis, no mesmo artigo, “a hipótese de Gaia afirma que a superfície da Terra, que sempre temos considerado o meio ambiente da vida, é na verdade parte da vida”.

Quando os cientistas nos dizem que a vida se adapta a um meio ambiente essencialmente passivo de química, física e rochas, eles perpetuam uma visão mecanicista seriamente distorcida, própria de uma visão de mundo falha. A vida, efetivamente, fabrica, modela e muda o meio ambiente ao qual se adapta. Em seguida este “meio ambiente” realimenta a vida que está mudando e atuando e crescendo sobre ele. Há interações cíclicas, portanto, não lineares e não estritamente deterministas. (MARGULIS, op. cit.)

Essa ideia da interação total entre todos os seres vivos, inclusive a Terra, proposta na Hipótese de Gaia, é explorada 30


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por James Cameron em Avatar, quando é mostrada na tela a conexão dos Na’vi com as suas montarias, quando os Na’vi se debruçam em oração sobre o animal imolado e quando os Na’vi praticam os seus rituais religiosos defronte à árvore mãe, símbolo maior da natureza em volta, a um só tempo útero grávido, habitat esplendoroso e parte física da própria carne deles. Um só corpo. Lendas amazônicas O recurso dos mitos e da exuberância amazônicos, signos de uma fantasia sediada na natureza, intencionalmente ou não, também foi largamente explorado por James Cameron na tessitura da história de Avatar. Num primeiro momento, no que se refere às guerreiras Na’vi, exímias amazonas, portadoras de armas rudimentares, porém de comprovada letalidade. Num outro momento, no tocante à prodigalidade da natureza, tanto em um quanto em outro caso (a região sul-americana e o cenário cinematográfico) plena de mistérios e indicadora de uma biodiversidade inimaginável (ou imaginada a partir de conjecturas pouco verossímeis). Até hoje, mesmo numa época de desvendamentos e de velocidade da informação, é possível que sejam encontrados relatos sobre a Amazônia que expressam a ilusão de outro mundo, fruto de discursos forjados a partir do século XVI, quando os primeiros exploradores, dentro do seu limitado conhecimento geográfico, quedavam-se perplexos ante a nova região, acreditando não ser possível que naquele local não habitassem seres a um só tempo monstruosos e maravilhosos. As adversidades 31


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faziam parte do cotidiano daqueles homens, que atravessavam o mar sob o impulso de ventos nem sempre constantes, em busca de cidades cobertas de ouro e de uma fonte da juventude eterna. Além do mais, a tradição religiosa da época afirmava que naquelas coordenadas geográficas onde se localizava o suposto Eldorado, nascia um grande rio, cujas águas guardavam enormes riquezas, bem como uma fonte que tinha o poder de suprimir todos os males sociais. Às muitas perguntas surgidas na mente daqueles exploradores após desembarcarem na nova terra, na falta de respostas comprovadas, então, erigem-se fantasias que ganham ares de verdades absolutas. No tocante às amazonas, elas eram, no relato mais sensacional propagado pelo aventureiro espanhol Francisco de Orellana (1490-1550), caracterizadas como mulheres bárbaras que arrancavam um dos seios, para melhor manejar o arco, companheiro inseparável na sua faina diária. Elas habitavam uma cidade de pedra, em cujo interior existiam imensos templos dedicados ao sol, adornados por ídolos de ouro. As tais mulheres seriam muito altas, brancas, andavam nuas e possuíam longos cabelos. James Cameron, que depois do sucesso mundial de Avatar esteve em Manaus-AM, participando de um “Fórum Internacional de Sustentabilidade” (última semana de março de 2010), naturalmente, não se apropriou integralmente do relato de Orellana. As guerreiras Na’vi, apesar de altas como as amazonas, cobriam sua nudez com minúsculas tangas (sob pena de, não sendo assim, o filme ser submetido a algum tipo de classificação etária) e não extirpavam os seios (provavelmente para 32


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não ferir a estética). Diferentemente, também, das amazonas originais, sua pele era azul, mas aí já entra um componente favorável a Cameron, tanto para efeito de melhor fotografia do que para se constituir numa espécie de reflexo do céu. Mas a idéia principal se estabelece: guerreiras ferozes, altas, arcos, flechas, cavalgando algum tipo de montaria, adoradoras de uma divindade (as amazonas, do sol; as mulheres Na’vi, da natureza). E quanto aos relatos míticos, boa parte deles também se repete na tela de alguma maneira: “unobtanium” (ao invés de ouro); fauna e flora exuberante; a eterna juventude (não relacionada com uma fonte de água, mas a uma transferência de consciência); inexistência de estratificação social etc. Ecologia — Desenvolvimento Sustentável O comportamento nos Na’vi em Avatar espelha exatamente os conceitos da ciência ecológica, quando esta se propõe a estudar todas as interações entre os seres vivos (visceralmente interligados e, por conseguinte, interdependentes, como na proposição da Hipótese de Gaia). Para a ecologia, é preciso compreender como os sistemas vivos funcionam em sua totalidade, como se dá o equilíbrio que permite a vida em todas as suas dimensões, ao contrário do que propõem outros ramos da ciência, que direcionam os seus esforços na análise desses sistemas, através da sua decomposição. A partir, então, da noção ecologia, é que se chega aos conceitos de desenvolvimento sustentável, mediante a compreensão de que é preciso existir equilíbrio entre todos os seres vivos, principalmente no que diz respeito à ação antrópica, sob pena 33


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de sobrevir um esgotamento futuro dos recursos naturais, com conseqüências inimagináveis para a espécie humana. E nem se pode dizer que esse é um raciocínio recente. Embora somente a partir da segunda metade do século XX a idéia de desenvolvimento sustentável tenha encontrado maior repercussão, é certo que já no século XVIII o economista inglês Thomas Malthus alertava para o descompasso do rápido crescimento demográfico, em relação ao crescimento lento dos meios de subsistência. Mas foi, de fato, nos início dos anos de 1970 que o planeta parece ter despertado para as questões do desenvolvimento sustentável, a partir de uma reunião do chamado Clube de Roma (Organização Não Governamental que reúne cientistas, empresários, economistas, funcionários de organismos internacionais e de governos, dirigentes e ex-dirigentes de todos os continentes etc.). Na sequência, as preocupações com a questão do meio ambiente foram crescendo e inúmeras reuniões, seminários e fóruns se sucederam desde então. Entre os mais emblemáticos, pode-se citar: a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, no ano de 1972, em Estocolmo; a Conferência Rio 1992, que reuniu o maior número de dirigentes políticos da história, oportunidade em que foi lançado um documento intitulado Agenda 21 (o primeiro compromisso internacional voltado a metas de longo prazo, de acordo com princípios de sustentabilidade ambiental); o Protocolo de Kyoto, em 1997, documento contendo normas comportamentais as quais os Estados Unidos não quiseram aderir; a Conferência de Johannesburgo, em 2002; e a Conferência de Copenhague, em 2009. 34


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No momento, quarenta anos depois dos primeiros movimentos e discussões em torno da questão do desenvolvimento sustentável, a partir da noção de ecologia e da interligação planetária visceral de todos os seres vivos (inclusive, ou principalmente, a própria Terra), parece ser consenso que, na prática, esse é um tema que ainda tem um longo percurso pela frente. É verdade que existe a certeza de que o direito ao desenvolvimento deve ser igualmente o compromisso de que ele seja sustentável, mas, daí até as práticas corretas para tal fim, parece ainda haver uma distância considerável. Além das certezas evidenciadas nas diversas reuniões, congressos e conferências, é preciso que tudo isso se transforme numa prática corrente, mais ou menos como fazem os “índios heróis” de James Cameron, em Avatar. Florestania A florestania é um conceito criado e desenvolvido pelo Partido dos Trabalhadores, no final dos anos de 1980, quando em campanha pelo Governo do Estado do Acre, a partir da mobilização em torno da questão do desenvolvimento sustentável. Trata-se de um neologismo que junta em um mesmo vocábulo as palavras “floresta” e “cidadania”. Uma forma inteligente de massificar a idéia de um Governo voltado para a exploração sustentável dos recursos florestais, bem como de prometer bem-estar às pessoas que nasceram, cresceram e vivem até hoje no meio da floresta, usando os benefícios desta para sobreviver, num pacto mútuo de não agressão.

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Sobre os principais elementos do projeto florestania, ninguém melhor para explicá-los do que o jornalista Antônio Alves Leitão Neto, um dos principais artífices da campanha vitoriosa do PT ao poder no Acre, que exerceu o cargo de Secretário de Cultura no primeiro mandato do governador Jorge Viana (1999-2002). “Em primeiro lugar”, diz Alves, “o reconhecimento da primazia indígena. Existem povos que estão e que conhecem a nossa região e cuja ciência deve ser respeitada. Este é o ponto um” (SAN’TANA JÚNIOR, 2004, p. 287). Antes, porém, desse ponto um, Alves afiança que existiria um “ponto zero”, cuja superação se fazia necessária. É o de que o antropocentrismo deveria ser superado. “O homem é parte da natureza, ele não é dono da natureza, ele não é toda a natureza, ele é uma parte dela. Ele tem direito, assim como o rio, o sol, a lua, a estrela, a paca, o tatu, a cotia, o mogno, a cerejeira [...]”, diz Alves (SANT’ANA JÚNIOR, p. 287). E existiria, ainda, um “ponto dois” no projeto, que seria o reconhecimento dos direitos das populações que desde sempre habitaram e os que passaram a habitar a região. No caso, índios e seringueiros, respectivamente. No tocante às diferenças entre “cidadania” e “florestania”, ao contrário do que o senso comum aponta quando se refere ao conceito como uma transposição de um conjunto de valores citadinos para a floresta, Antônio Alves explica que a primeira diz respeito a uma idéia de direitos e deveres, de conquista da civilização humana, de uma fase de desenvolvimento da individualidade do ocidente. “É semelhante à Declaração dos Direitos Humanos”, diz (PINHEIRO, 2009). Já a idéia de florestania, de acordo com a explanação de Alves, diz respeito a 36


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um conjunto de relações estabelecido dentro da floresta, que gera valores, hábitos, estéticas, éticas, mas, principalmente, um conjunto de relações que incluem animais, plantas, água, sol, chuva e a maneira como essas relações se estabelecem, numa tentativa de captar uma disfunção do antropocentrismo, ou até determinadas relações que se estabelecem antes mesmo de se constituir um antropocentrismo centralizado. “Então, a ideia de florestania é exatamente essa dissolução desse mal-estar da civilização que se esconde na palavra cidadania”, diz Antônio Alves. (PINHEIRO, 2009). Em muitos aspectos o argumento de Avatar coincide com as idéias expressas na florestania, conforme se pode depreender dos conceitos explicitados por Antônio Alves. No filme, por exemplo, uma cena que se repete, como uma espécie de mensagem subliminar, é o de um dos personagens abrindo os olhos. Mais ou menos como no discurso político acreano, em cuja essência está o despertar do elemento humano para a necessidade de preservar o meio ambiente, a partir da incorporação da sabedoria popular e dos preceitos existentes na natureza. Num e noutro caso (filme e discurso político), o reforço da necessidade da interação/comunhão entre as partes (homem/natureza), sem sobreposições de nenhum sobre o outro, sem traços de verticalidade ou de algum tipo de fluir de valores entre maior ou menor, mas, isso sim, numa espécie de eixo horizontal, onde se ressalta a interdependência entre os atores.

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Considerações finais Avatar, como se pode ver ao longo deste artigo, é um filme plural, em torno do qual ainda acontecerão inúmeras discussões (inclusive porque o diretor James Cameron promete duas continuações). Às opiniões divergentes de Marcelo Gleiser e Marcelo Leite (colunistas da Folha de São Paulo) sobre o argumento, e da senadora Marina Silva, que afirma identificar personagens da ficção com figuras da vida real, saídas da sua própria biografia, deve-se acrescentar as inequívocas convergências entre o referido filme e a Hipótese de Gaia, proposta por James Lovelock (a Terra como um ser vivo e uno em suas múltiplas partes); as lendas amazônicas (as ferozes e gigantes guerreiras mutiladas descritas pelo explorador Francisco de Orellana, quando da sua busca pelo Eldorado); as questões referentes à ecologia e ao desenvolvimento sustentável (o equilíbrio entre os seres vivos); e os conceitos fundadores da florestania (o homem como parte integrante da natureza e não como senhor absoluto dela). Mas, para além dessas divergências e convergências citadas, ainda são múltiplas as possibilidades de reflexão que podem ser levadas a efeito a partir desse mais recente sucesso de James Cameron. Três delas se configuram mais fortes no momento em que este artigo se encaminha para o seu desfecho: a comparação entre os conflitos de terra, nas décadas de 1970 e 1980, entre fazendeiros e seringueiros, no Acre (lembrados pela senadora Marina Silva, no texto “Avatar e a síndrome do invasor”, citado no item 2 deste artigo); a questão do conceito religioso de “avatar”; e o tema da transferência de consciência. 38


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Assim como os executivos americanos da companhia RDA invadiram Pandora, o habitat dos Na’vi, apoiados por um exército de mercenários, unicamente interessados na exploração econômica do mineral “unobtanium”, sem absolutamente se importar com os danos que causariam ao meio ambiente, processo semelhante aconteceu entre os anos de 1970 e 1980 na região acreana, com a chegada de fazendeiros do centro-sul do país, apoiados pelas armas de capangas e jagunços, cuja finalidade era a criação extensiva de gado bovino, sem nenhuma preocupação com os danos que causariam à terra. Assim, tanto na ficção cinematográfica quanto na vida real, se estabeleceram os conflitos sangrentos entre “invasores” e “invadidos”, prevalecendo, em um e outro caso (ficção e realidade), os interesses nativos, em nome da vida e da preservação do planeta. Com uma diferença: na tela, pelo menos até antes de serem produzidas as sequências prometidas por Cameron, com a radical vitória dos locais, sem nenhuma concessão aos invasores; na vida real, entretanto, com alguma conciliação dos interesses, mediante a adoção de práticas de desenvolvimento sustentável, que possibilitam uma exploração racional, sem a nociva e devastadora prática anterior. Quanto à noção de “avatar” mostrada no filme, de se criar um corpo em laboratório para abrigar uma consciência “externa”, nada tem a ver com a noção estabelecida pela religião hindu, para a qual a palavra designa uma manifestação corporal de um ser imortal, por vezes até do Ser Supremo. O vocábulo, religiosamente falando, deriva do sânscrito Avatāra, que significa

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“descida”, normalmente denotando encarnações de entidades divinas. A transferência de consciências, porém, não seria, exatamente, algo estranho nem para a ficção, nem para os anseios científicos. Vários filmes tratam dessa questão (Matrix, citado por Marcelo Leite como “inspirador” de Avatar, talvez seja o mais emblemático dos últimos tempos). E no tocante à relação com a ciência, “avatar” é uma palavra que se tornou recorrente, tanto nos meios de comunicação de massa quanto no linguajar da informática, dadas as figuras que são criadas a partir do usuário, processo que permite a “personalização” desse usuário no interior das máquinas e das telas de computador. Diz-se “avatar”, porque tal criação emerge como uma espécie de transcendência da imagem da pessoa, que ganha um “corpo virtual”. Nesse sentido de “avatares” e de “consciências transferidas”, ressalte-se que também não é necessariamente nova a idéia, no campo da inteligência e da vida artificiais, de uma civilização pós-natural, pós-biológica e pós-humana. Esse é um pensamento que surgiu em meados do século XX, com a invenção de máquinas capazes de “imitar o cérebro humano”, e continuou com o mapeamento da estrutura do DNA. É dessa época a convicção de que o homem biológico, como nós o conhecemos e nos reconhecemos nele, é um impasse do ponto de vista da evolução. “O homem mecânico, que na aparência está em ruptura com a revolução orgânica, na realidade se situa melhor na verdadeira tradição de uma sequência da evolução”, no dizer do biólogo britânico J. D. Bernal (GORZ, 2003, p. 89). E complementando o raciocínio, as palavras de Hans Moravec, 40


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para quem, ao final, “a consciência em si mesma poderá se estender numa humanidade completamente eterizada, perdendo seu organismo consistente, tornando-se massas de átomos que se comunicam no espaço por irradiação, e finalmente se resolvendo em luz” (GORZ, 2003, p. 89). Feixes coloridos na tela do cinema, ondas eletromagnéticas dançando sob o som das estrelas... No futuro, num átimo de segundo, a vida poderá fluir por entre pontos de luz... Além, muito além de um simples “avatar” e, naturalmente, totalmente distanciado no tempo do medo das ameaças industriais, tecnológicas, sanitárias, naturais e ecológicas expresas na obra de James Cameron.

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Referências bibliográficas CALLENBACH, Ernest. Ecologia — Um guia de bolso. São Paulo: Petrópolis, 2001. GLEISER, Marcelo. Avatar. Folha de São Paulo, 10 jan. 2010. Caderno Mais. GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994. GORZ, André. O imaterial — Conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005. IWERSEN, Rui. A teoria de Gaia de James Lovelock. Disponível em: <http:// gaianet.wordpress.com/2009/07/14/gaia-hipótese-teoria-ou-evidência>. Acesso em: 31 mar. 2010. LANGER, Johnni. As indestrutíveis amazonas. Revista de História da Biblioteca Nacional, jul. 2008. Disponível em: <www.revistadehistoria.com. br>. Acesso em: 31 mar. 2010. LEITE, Marcelo. Gaia para presidente. Folha de São Paulo, 07 mar. 2010. Caderno Mais. LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. La pantalla gobal — Cultura mediática e cine en la era hipermoderna. Barcelona: Anagrama, 2009. MARGULIS, Lynn. A teoria de Gaia. Disponível em: <www.healing-tao. com.br/artigos.htm>. Acesso em: 31 mar. 2010. NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do e VIANNA, João Nildo de Souza (Orgs.). Economia, meio ambiente e comunicação. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. NOGUEIRA, Salvador. Uma saga de 15 anos. Super Interessante, Edição Extra, n. 274-A, São Paulo: Abril, jan. 2010. PINHEIRO, Francisco de Moura. Entrevista gravada com Antônio Alves Leitão Neto, Secretário de Cultura do Estado do Acre na primeira gestão do governador Jorge Viana (1999-2002). Rio Branco, 2009. SANT’ANA JÚNIOR. Horácio Antunes. Florestania: a saga acreana e os povos da floresta. Rio Branco: Edufac, 2004. SCHELP, Diogo. O visionário de Avatar. Entrevista com James Cameron. Veja, edição 2160, 14 abr. 2010.

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A Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso reescritura cinematográfica Humberto de Freitas Espeleta

RESUMO

A partir de uma leitura fundamentada nos princípios da narratologia, segundo Gérard Genette, faremos um estudo do sentido da vida, dos dramas existenciais e do caráter demoníaco no romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, e no filme A casa assassinada, de Paulo Cesar Saraceni. Serão enfocadas algumas perspectivas de tradução reescritural entre culturas e linguagens. A transposição da literatura para o cinema dá a marca da técnica cinematográfica de Paulo Cesar Saraceni para recodificar a linguagem do romance, traduzindo-a para a linguagem do cinema sem desrespeitar a autoria de Lúcio Cardoso. Palavras-chave: Literatura. Cinema. Narratologia. Crônica. Linguagem.

A

narratologia busca, entre outros aspectos, o que há de comum entre as narrativas e aquilo que as distingue, como, por exemplo, o que aproxima e o que distancia conto, novela, romance, roteiro fílmico. Gérard Genette (1983), em seu livro Discurso da narrativa, 45


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distingue discurso, história (diegese) e narração, afirmando que o discurso é a ordem cronológica dos acontecimentos num texto narrativo; a história é a ordem em que as ações acontecem; e a narração é o ato de narrar. Existem três tipos de narradores: heterodiegético, homodiegético e autodiegético:

Distinguer-se-ão, pois, dois tipos de narrativas: uma de narrador ausente da história que conta [...], a outra de narrador presente como personagem na história que conta [...]. Nomeio o primeiro tipo, por razões evidentes, heterodiegético, e o segundo homodiegético. [...]. Haverá [...] que distinguir no interior do tipo homodiegético duas variedades: uma em que o narrador é o herói da sua narrativa [...], e a outra em que não desempenha senão um papel secundário, que acontece ser, por assim dizer sempre, um papel de observador e de testemunha [...]. Reservaremos para a primeira variedade (que representa de alguma maneira o grau forte do homodiegético) o termo, que se impõe, de autodiegético (GENETTE, 1983, p. 243-244).

A casa assassinada, de 1971, é um filme de Paulo Cesar Saraceni, baseado no romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, publicado pela primeira vez em 1959. É a história da decadência dos Meneses, família aristocrata de Vila Velha, Minas Gerais. O autor do romance cria um clima de diabolismo revelado pelo íntimo mórbido e atormentado de suas personagens, criando uma metáfora de que a casa é um jazigo, 46


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no qual se ocultam os mistérios da vida de cada uma delas. A obra é uma história narrada por meio de diários, de cartas, de narrativas, de confissões, de depoimentos das personagens, os quais escrevem polifonicamente o universo fantasmagórico da casa dos Meneses. As personagens narram suas histórias homodiegeticamente, porém podendo haver momentos de metadiegese. Este é o caso, por exemplo, de uma passagem do capítulo “37 Depoimento de Valdo”, no qual ele conta uma conversa que teve com Nina sobre uma carta que ela recebera. Valdo a interroga: “— De quem é, que carta é esta?”, ao que Nina responde: “— Valdo, preciso conversar com você.”. Em seguida, ao longo do capítulo, Nina revela que precisa de um médico, e por esta razão deverá partir para o Rio de Janeiro. Embora não seja revelado quem é o autor da carta que Nina está lendo, nem tampouco nos seja dado a ler o conteúdo dela, nós leitores podemos deduzir tratar-se de uma carta que Nina escreveu para alguém sobre seu estado de saúde, e que da qual ela lê a resposta sobre a necessidade de ela fazer exames, por meio dos quais se saberá que ela tem câncer. Toda a obra é metadiegeticamente construída, uma vez que cada capítulo é uma narrativa autodiegética: em cada um dos capítulos há uma personagem fazendo uma narrativa sobre Nina, a protagonista do romance. Porém, em cada narrativa, a personagem, autora do capítulo, coloca-se como protagonista. Ressalte-se, ainda, que a protagonista do romance também escreve cartas que compõem a narrativa.

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As personagens da Crônica são os irmãos Meneses: Valdo, casado com Nina; Demétrio, casado com Ana; e Timóteo, homossexual frustradamente apaixonado pelo jardineiro Alberto, que, por sua vez, era apaixonado por Nina, em quem sua cunhada Ana vê uma rival onipresente, já que ela desperta para si os amores de seu marido Demétrio, e de Alberto, a quem ela ama e deseja, sem ser correspondida. Povoam ainda o romance as seguintes personagens: a criada Betty, o Coronel, o médico, o farmacêutico, o Padre Justino e, finalmente, André, que se pensava ser filho de Nina e Valdo, mas que, ao final da obra, fica esclarecido que ele era filho de Ana, a esposa de Demétrio, e de Alberto, o jardineiro. Todos os Meneses vivem a miséria de suas almas e a decadência da aristocracia de sua família e de sua casa. A chegada de Nina vai desencadear o processo de desintegração total da família, até a mais completa ruína. O leitor vai conhecendo Nina, segundo a visão que cada personagem tem dela. O leitor sabe que ela vivia no Rio de Janeiro e que vem de um passado pouco claro e, aparentemente, casa-se com Valdo Meneses, supondo-o rico. Para se casar com ele, Nina deixa o Coronel, com quem ela mantinha um tipo de relacionamento muito próximo ao da prostituição, já que ele a sustentava em tudo de que ela precisasse, sem ter com ela vínculos de parentesco ou de matrimônio. O romance começa com o diário de André, assim como o filme que seguirá um fio narrativo escolhido por Saraceni na sua tradução da obra para o cinema, cuja primeira e última cena mostra o velório de Nina. No capítulo “1 Diário de André 48


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(conclusão)”, ele reflete sobre os últimos momentos das ações que o lançaram na dor e na revolta causadas pela morte de Nina. Ele se pergunta:

18 de... de 19... — (meu Deus, que é a morte? Até quando, longe de mim, já sob a terra que agasalhará seus restos mortais, terei de refazer neste mundo o caminho do seu ensinamento, da sua admirável lição de amor, encontrando nesta o aveludado de um beijo — “era assim que ela beijava” — naquela um modo de sorrir, nesta outra o tombar de uma mecha rebelde dos cabelos — todas, todas essas inumeráveis mulheres que cada um encontra ao longo da vida, e que me auxiliarão a recompor, na dor e na saudade, essa imagem única que havia partido para sempre? Que é, meu Deus, o para sempre — o eco duro e pomposo dessa expressão ecoando através dos despovoados corredores da alma — o para sempre que na verdade nada significa, e nem mesmo é um átimo visível no instante em que o supomos, e no entanto é o nosso único bem, porque a única coisa definitiva no parco vocabulário de nossas possibilidades terrenas...) (CARDOSO, 2005, p. 19).

No filme, concluída a passagem que reproduz esse primeiro parágrafo, ocorre a chegada do trem que traz Nina do Rio de Janeiro para Vila Velha, apenas para situar o expectador

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quanto às animosidades entre os Meneses, que de sua chegada adviriam, principalmente motivadas por Ana e Demétrio. Num jantar com sua nova família, Nina fica sabendo, por meio de seu cunhado Demétrio, que ela fora enganada pelo marido, que na verdade a família estava pobre e cheia de dívidas. O diálogo entre os irmãos revela um desentendimento familiar, pois Demétrio faz questão de expor, humilhantemente, Valdo, denunciando que ele não tem dinheiro algum. Timóteo, desajustado e rejeitado pelos irmãos devido a sua homossexualidade e por o considerarem louco, vive isolado em seu quarto, sempre vestido com as roupas e as jóias de sua mãe. Ele tem em Nina e na criada Betty suas únicas amizades. No seu comportamento delirante, é talvez o único que consegue, em meio a seus devaneios, compreender com lucidez o destino dos Meneses. No final do romance, finalmente ele consegue executar sua vingança contra todos durante o velório de Nina. Na Chácara dos Meneses vivia o jardineiro Alberto, num pavilhão nos fundos da propriedade. Ele será o eixo das paixões de Nina, de Ana e do cunhado dela, Timóteo, com o qual ele nunca terá nenhum envolvimento, além de suas fantasias. Ana, depois que Nina é surpreendida por Demétrio em atitudes suspeitas com o jardineiro, decide forçar sexualmente o jardineiro, de quem ela engravida. No mesmo período, Nina também fica grávida de Valdo, seu marido. As acusações de Demétrio contra a cunhada e o jardineiro levam o marido de Nina a tentar o suicídio. Não suportando mais viver em Vila Velha, Nina

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abandona o casamento e parte para o Rio de Janeiro. Toda essa situação leva o jardineiro Alberto ao suicídio. Ana se vê em má situação, não só por causa de sua gravidez e da indiferença de Demétrio, mas também pelo medo de que ele descubra toda a verdade sobre ela. Sabendo que seu marido não suporta mais a ausência da cunhada, por quem ele nutre um amor que não ousa declarar, cria um estratagema e parte para o Rio de Janeiro para tentar convencer Nina a voltar para a casa dos Meneses. Permanece no Rio de Janeiro o tempo necessário para ter seu filho com Alberto. Nina (que tivera seu filho e, supostamente, o entregara para adoção), em um encontro com a cunhada, conta-lhe sua decisão de ter abandonado seu filho com Valdo. Ana, então, volta para Vila Velha e entrega seu filho com Alberto para o cunhado Valdo, que o cria como sendo seu. André, o suposto filho de Nina, vai crescer até a adolescência sem conhecê-la. Nina volta para o marido e, a partir daí, a vida de André ganha os movimentos da paixão, do pecado e do crime de incesto. Ele vive um intenso amor com sua suposta mãe, sem se dar muito conta do que está acontecendo, interessado apenas em satisfazer seus desejos e viver as emoções que o amor lhe provoca. Élcio Fernandes publica, em 1969, na revista Momento literário, da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, o artigo “Lúcio Cardoso: o drama existencial e o demoníaco na Crônica da casa assassinada”, no qual indica que no romance há um drama existencial situado entre dois planos

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diferentes: o “Existencialismo ateu”, representado por Nina, e o “Existencialismo cristão”, representado pelo Padre Justino. Para Élcio Fernandes (1969, p. 8-9),

Nina é a consciência total do mundo. Somente as coisas do mundo lhe interessam. É a inconsciência do bem e do mal. Para ela tudo é permitido, desde que se arque com a responsabilidade de seus atos, aceitando totalmente o “pecado”. O “Existencialismo ateu” que tem como ponto de partida a frase de Dostoievski: “Se Deus não existisse tudo seria permitido”, [...] Através dessa personagem completamente desligada dos valores morais e religiosos pré-estabelecidos, a liberdade humana é levada ao mais alto nível.

É esse comportamento de Nina e todo o contexto de degradação moral e material dos Meneses que vão desencadear o diabolismo que domina todas as personagens do romance que vivem na Chácara dos Meneses. Aqui tomaremos algumas ações de Ana para demonstrar a predominância do demoníaco no desenvolvimento da narrativa escritural, o que Saraceni faz coincidir com a narrativa fílmica. Em um de seus relatos, Ana declara que Nina teria atirado pela janela o revólver com o qual o jardineiro — já abalado porque Demétrio o demitira — suicida-se depois de ter ouvido uma conversa entre Nina e Valdo, na qual ela diz que vai partir 52


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definitivamente para o Rio de Janeiro. Ana o vê morrendo e ri da cena como num triunfo por ver as consequências da relação adúltera entre Nina e Alberto. Em outro momento, quando André já é adolescente e Nina já voltara a viver na Chácara dos Meneses, Ana, suspeitando das relações dela com André e procurando vingança, os segue até o pavilhão onde ela vê os dois em relações sexuais. Ana e Nina sabem que aquela relação não era incestuosa, mas nada revelam a André, e nem mesmo a Valdo, que também desconfiava das relações de André com sua esposa. É essa atitude de Nina e Ana que melhor ilustra o demoníaco na Crônica da casa assassinada. Em seu artigo, Élcio Fernandes (1969, p. 8-9) diz que Nina é a representação do anti-Cristo,

o demônio que vem trazer a consciência do mundo aos Menezes (sic). Ana descobre na cunhada tudo o que ela não é. O estado de apatia, e conformismo com a sua situação de mulher que sem atrativos e sem paixões vai chocar-se com o mundo “vivo” de Nina, e causar um conflito interior que a leva a reconhecer a sua solidão [...] O desespero por não acreditar na graça divina e estar em choque com as paixões do mundo fá-la recorrer ao Padre Justino que representa aqui uma espécie de “existencialismo cristão” Padre Justino faz uma revisão total dos valores da Igreja católica. O desespero em que ela se vê leva-a a procurar o

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Padre Justino, que lhe diz: “O diabo, minha filha, não é como você imagina. Não significa a desordem, mas a certeza e a calma.”

É no último capítulo do romance que o leitor vai se deparar com a luta de Ana com seu íntimo. Ela chama o Padre Justino para se confessar momentos antes de sua morte e faz ao padre o relato das ações diabólicas de Nina e de suas próprias. Ela revela a verdade sobre o nascimento de André, sobre o conhecimento dessa verdade que Nina tinha, julgando-a mais culpada que a ela própria, a progenitora, por terem deixado André na ignorância de sua condição, carregando consigo culpas que não eram suas. Ana morre sem que o padre tenha tempo de perdoá-la. Aí, talvez esteja realizada uma parte dos propósitos de Lúcio Cardoso, que, segundo André Seffrin, em depoimento a Fausto Cunha, na época do lançamento do romance Crônica da casa assassinada, diz de seu livro:

“ 54

Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja é contra Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida mineira. Contra a fábula mineira. (SEFFRIN, 2005, p. 9).


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Fica nessas palavras já uma orientação de leitura, a que se pode dizer ser conveniente seguir para o reconhecimento do que André Seffrin afirma ser “a essência do livro”, que Paulo César Saraceni captou e levou à tela. Segundo François Jost e André Gaudreault (2010, p. 23):

“ “

É com Gerard Genette [...] que se considera ter iniciado a narratologia como disciplina, ou pelo menos esse ramo particular que o próprio Genette (1983, p.12) chamou de narratologia modal, em oposição a uma narratologia temática (no mesmo sentido, propôs-se a distinção entre narratologia da expressão/narratologia de conteúdo) (GAUDREAULT, 1988, p. 42).

Para esses dois autores citados, o que lhes interessa para o livro A narrativa cinematográfica (2010), que escreveram em parceria, é a “narratologia modal”, a “narratologia da expressão”: em razão mesmo da prioridade que concedemos à mídia — o cinema, ou mais extensamente o audiovisual, por oposição à literatura ou ainda à história em quadrinhos — por meio da qual a narrativa é primeiro posta em forma e em seguida ofertada (JOST; GAUDREAULT, 2010, p. 24).

André Gaudreault (1998, p. 325-327) analisando aspectos do nível intradiegético, para tentar resolver certas questões

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narratológicas fundamentais, e tomando o cinema como objeto de estudo, escreve:

Prenons le cas, fameux, des niveaux de récit ou de ce que l’on pourrait appeler l’« intradiégéticité ». Cette configuration diffère du tout au tout selon qu’on l’examine à partir du récit scriptural ou du récit cinématographique. Dans un récit scriptural, lorsqu’un premier narrateur (un narrateur premier) raconte que tel ou tel de ses personnages raconte telle ou telle chose, le sous-récit qui est ainsi produit est rapporté par le moyen du même véhicule sémiotique que que celui qu’utilise le narrateur premier: le langage verbal2. [...] Il s’agit, on en conviendra, d’une situation tout à fait commune et habituelle dans un récit scriptural, la langue, et aussi, bien sûr, à son caractère monodique3. Trata-se, convenhamos, de uma situação bastante comum e habitual numa narrativa escritural, a língua, e também, naturalmente, de seu caráter monódico.

2 • Tomemos o caso famoso dos níveis da narrativa ou o que poderia ser chamado de “intradiegético”. Essa configuração difere complemente, quando examinada a partir da narrativa escritural ou cinematográfica da narrativa. Numa narrativa escritural, quando um primeiro narrador (um narrador primeiro) conta que qualquer um de seus personagens diz tal ou tal coisa, a narrativa subjacente que é assim produzida é relatado por meio do memso veículo semiótico que o usado pelo primeiro narrador: linguagem verbal. 3 • Trata-se, convenhamos, de uma situação bastante comum e habitual numa narrativa escritural, a língua, e também, naturalmente, de seu caráter monódico.

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[...] Si pareille configuration va de soi dans un récit scriptural, tel n’est pas le cas du récit cinématographique. Il y a en effet pratiquement que « le film dans le film » qui permette une situation dans laquelle une instance de premier niveau cède la place à une instance de deuxième niveaux. [...] C’est que le récit cinématographique nous parvient par un média essentellement polyphonique, qui s’appuie sur les cinq matières de l’expression que sont les images mouvantes, les paroles, les mentions écrites, les bruits et la musique4.

Na citação acima, André Gaudreault explica que a diferença entre a narrativa escritural e a narrativa cinematográfica é marcada pela diferença existente entre o narrador que conta uma história, narrando o que uma personagem contou, utilizando o mesmo veículo semiótico: a linguagem verbal. Isso se deve ao caráter monódico da narrativa escritural em oposição ao caráter polifônico da narrativa cinematográfica, em que há o “filme no filme” que permite uma situação por meio da qual uma instância de primeiro nível cede lugar a uma instância de segundo nível. Isso acontece por causa do caráter polifônico da narrativa cinematográfica que se apóia sobre as cinco matérias 4 • Se essa configuração é evidente em uma narrativa escritural, esse não é o caso da narrativa cinematográfica. Há de fato quase como “o filme no filme” que permite uma situação em que uma instância de primeiro nível dá forma a uma instância segundo nível. ... É que a narrativa cinematográfica nos chega pela mídia eseencialmente polifônica, que se baseia em cinco conteúdos de expressão que são imagens móveis, letras, avisos escritos, ruídos e música.

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da expressão: as imagens em movimento, as falas, as menções escritas, os ruídos e a música. O trabalho com a linguagem que transpõe a literatura para o cinema revela uma preocupação transcultural e dá a marca da técnica cinematográfica de Paulo Cesar Saraceni para recodificar a linguagem do romance, traduzindo-a para a linguagem do cinema sem desrespeitar a autoria de Lúcio Cardoso. Nas últimas cenas do filme, que coincidem com as últimas passagens do romance, em que Ana vai aparecer, é que se pode observar aquilo que André Gaudreault afirma sobre o narrador escritural e o narrador cinematográfico. No caso de Paulo Cesar Saraceni, ele procura o máximo possível reproduzir a narrativa escritural na narrativa fílmica, como se nota na cena em que Ana se confessa com o Padre Justino. A fala de Ana no filme é uma espécie de declamação do texto do romance. A personagem Ana narra sua história autodiegeticamente, pois ela protagoniza sua própria narrativa, ao mesmo tempo em que narra homodiegeticamente sua história entrelaçada às histórias de Nina, de Alberto e de André. No entanto, temos de reconhecer, no último capítulo do romance, o capítulo “56 Pós-escrito numa carta de Padre Justino”, o aspecto polifônico da obra, ainda que, na linguagem teórica de André Gaudreault, a narrativa escritural seja de caráter monódico. Nesse capítulo, o padre desempenha a função heterodiegética na medida em que narra os acontecimentos relativos à confissão de Ana e à afirmação do diabolismo presente na casa dos Meneses; mas também realiza a função autodiegética, porque narra seu

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próprio protagonismo em sua última narrativa, que é, também, a última do romance. Essa análise das cenas finais, em que aparece a personagem Ana, e que, também, é o estudo do último capítulo de Crônica da casa assassinada, demonstra a fidelidade de Paulo Cesar Saraceni à técnica narrativa desenvolvida por Lúcio Cardoso, dando ao seu filme um caráter de cumplicidade narrativa com o romance e seu autor. Do ponto de vista da ideologia, a narrativa cinematográfica de Saraceni afasta-se da narrativa escritural de Cardoso, o que se pode verificar na cena da confissão de Ana ao Padre Justino, quando ela, em seu leito de morte, tem seu pedido de perdão inicialmente negado pelo padre, mas que, minutos de hesitação depois, tem um gesto de perdão, quando já é tarde demais. No filme, Ana aparece lúcida e bem de saúde (o contrário do que se lê na narrativa de Cardoso), porém dominada por uma espécie de transe. Ela procura o padre e faz seu relato de confissão e de denúncia contra Nina, não demonstra arrependimento e pede a condenação dela. O padre se afasta, recusando-se a conceder-lhe o perdão, sem demonstrar nenhuma hesitação. A cena se fecha com o grito de revolta de Ana contra a religião enquanto rasga o peito do vestido. Pode-se verificar, assim, uma provável revisão da ideologia própria do Cinema Novo nas suas duas primeiras fases, nas quais se nota mais claramente os propósitos de denúncia da cena política brasileira no final da década de sessenta, com sua adesão à ideologia marxista que é, entre outras de suas características fundamentais, a recusa às religiões. O afastamento ideológico de Saraceni da 59


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obra de Cardoso não se dá do ponto de vista moral dominado pela ideologia cristã católica, mas do ponto de vista político aderido pelo programa ideológico do Cinema Novo, a denúncia social. Assim, esse filme é importante tanto pelo material para estudo da narratologia fílmica, como por propor uma revisão da obra magnânima de Lúcio Cardoso no evidenciamento temático, por meio do qual se pode entrever a existência de um programa literário almejado por este célebre escritor mineiro, que Saraceni soube tão bem encenar cinematograficamente, compondo a trilogia Porto de Caxias, A casa assassinada e O viajante.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. FERNANDES, Élcio. Lúcio Cardoso: o drama existencial e o demoníaco na Crônica da Casa Assassinada. Momento Literário, Araraquara: FFCLA, n. 1, p. 7, 9 abr. 1969. GAUDREAULT, André. De la narratologie littéraire à la narratologie cinématographique (et vice-versa). In: DUCHET, Claude; VACHON, Sthéphane. La Recherche Littéraire, objets et méthodes. Montréal: XYZ, 1998, p. 324-332. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Tradução de: Fernando Cabral Martins. Lisboa: Veja, 1983. JOST, François; GAUDREAULT, Andre. A narrativa cinematográfica. 1. ed. Brasília: UNB, 2010. SEFFRIN, André. Uma gigantesca espiral colorida. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

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Bye Bye Brasil: O Mosaico Narrativo das Mudanças Sociais Brasileiras Francielle Maria Modesto Mendes Francisco Aquinei Timóteo Queirós

RESUMO

O artigo tem por objetivo analisar o filme Bye Bye Brasil (1979), do cineasta Carlos Diegues (Cacá Diegues), observando a narrativa ficcional e suas inferências históricas em relação às mudanças brasileiras em busca da modernidade. A obra narra as experiências e trajetórias de artistas mambembes que atravessam o país numa caravana chamada Rolidei, em busca de melhores condições de vida. A presença da estrada faz de Bye Bye Brasil um road movie, ou seja, um filme de estrada, que se caracteriza pela necessidade de romper fronteiras e experimentar o novo. Essa busca em forma de aventura se passa no final da década de 70, período em que o país ainda vivia sob a égide da Ditadura Militar. A caravana que segue com destino, por vezes, incerto, é a representação das inseguranças presentes em um Brasil em (des) (re)construção que ainda buscava rumo nas estradas tortuosas dos últimos acontecimentos sociais e políticos pelos quais passava. Palavras-chave: Cinema. Modernidade. Ditadura militar. Hibridização cultural.

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“Nada é pra sempre”. Salomé, personagem do filme Bye Bye Brasil

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ye bye Brasil é uma comédia brasileira de 1979, escrita e dirigida por Carlos Diegues. O filme narra a história de artistas mambembes: a dançarina de rumba Salomé (Bety Faria), o mágico e adivinhador Lorde Cigano (José Wilker) e Andorinha (Príncipe Nabor), o homem mais forte do mundo. Eles viajam com a caravana Rolidei pelo Brasil. E quando chegam ao sertão alagoano, juntam-se ao nordestino sanfoneiro Ciço (Fábio Junior) e à sua esposa grávida, Dasdô (Zaíra Zambelli), com os quais a caravana segue para o Norte, passando pela Amazônia através da rodovia Transamazônica em busca de um local chamado Altamira; e, posteriormente, rumo à Brasília, no Centro-Oeste. O filme foi lançado sob a égide do regime militar (19641985), período em que a produção artística no Brasil passava por mudanças e sofria censuras. Na música, no teatro, nas artes plásticas e no cinema, estabeleceu-se uma relação de forças entre os artistas e o Estado brasileiro: a censura imposta pelo governo militar passou a regular as produções artísticas realizadas no país. Segundo Marc Ferro, “a censura está sempre presente, vigente, e ela se deslocou da obra escrita para o filme e, no filme, do texto para a imagem” (1988, p. 202). O autor acrescenta que “os poderes públicos e o privado pressentem que ele [o cinema] pode ter um efeito corrosivo” (FERRO, 1988, p. 202), por isso o controle severo do Estado em relação aos filmes, por entender

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que eles funcionavam como espécie de testemunha. A câmera cinematográfica tira as máscaras, mostra a sociedade como ela é, com suas rupturas e fragmentações; e faz uma contra-análise social:

Só em 1969, o primeiro ano da era AI-5, foram censurados dez filmes e cinquenta peças teatrais, segundo o então chefe do Serviço de Censura de Divisões Públicas, Aluisio Mulethaler de Souza. (ALMEIDA; WEIS, 1998, p. 341)

Através da normatização do Ato Institucional nº5 (AI-5), em 1968, o governo militar suprimiu as liberdades políticas civis para o estabelecimento da ordem social, que só foram retomadas a partir de 1979, após a revogação do Ato. Nesse mesmo período era lançado o filme Bye Bye Brasil. Após o golpe militar de 1964, o Cinema Novo continuou empenhado na busca pela autenticidade brasileira. O cineasta Carlos Diegues foi um dos integrantes do Cinema Novo, movimento que procurava politizar as massas, além, é claro, de romper em termos estéticos e políticos com parte da produção cinematográfica brasileira produzida anteriormente. As críticas dos participantes desse movimento endereçavam-se, muitas vezes, especificamente às Chanchadas, que eram vistas como produções alienantes e de cunho estético duvidoso. Com uma pequena abertura política e a criação da Embrafilme (distribuidora de Bye Bye Brasil) no governo Geisel, muitos cinemanovistas

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passaram a colaborar com o novo órgão, a exemplo de Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. Segundo Randal Johnson (2008), o autor do Cinema Novo é visto como possuidor de uma forma superior de conhecimento social e cultural. Ele possui uma missão de conscientizar as pessoas da alienação e da suposta inferioridade delas em relação a outros povos, como meio de ajudá-las a superar suas fraquezas e usar suas forças para encontrar soluções para problemas. Em outras palavras, o cineasta do Cinema Novo é um intelectual, característica que se pode observar em Carlos Diegues. Diegues, antes de Bye Bye Brasil, realizou outros filmes importantes, como Joana Francesa, Chuvas de verão e Xica da Silva. Especialmente em Bye Bye Brasil, Cacá Diegues, como ficou conhecido o cineasta, adota uma postura engajada de forte teor político, criando, assim, um filme que discute, entre outras coisas, o hibridismo cultural e as mudanças vividas pelo Brasil na década de 70. Segundo Silvio Tendler5, o país estava trocando de pele em Bye Bye Brasil, o que significava dizer que muitas eram as modificações sociais, políticas e econômicas vividas pelo país. Como marcas da diferença, dois cenários se contrapõem no filme: o cenário das cidades do interior nordestino, identificadas com os signos da tradição (a praça central e a igreja, as pequenas casas, a religiosidade e o ritmo de vida mais lento); e o cenário das cidades do Norte, marcadas pelos 5 • A frase foi dita por Silvio Tendler no prefácio do livro A história vai ao cinema, organizado por Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira (ver referência bibliográfica).

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signos da modernidade urbana de então (as diversões nas casas noturnas, a música eletrônica e a ideia de riqueza fácil). Percebe-se que, ao longo do filme, duas narrativas se contrapõem e desenham uma realidade digressivo-simbólica: de um lado, os signos da modernidade (os prédios, as grandes cidades) e de outro, o sertão (o Norte e sua realidade eclipsada). Ao sobrepor esse mosaico de imagens, Cacá Diegues consegue captar a zeitgeist6, isto é, consegue traduzir para o cinema a intricada realidade brasileira, com suas conformações e, principalmente, suas contradições. No centro da trama do filme, está a discussão sobre as questões que envolvem o nacional-popular e que mostram um país ainda não conhecido em suas dimensões, um país em transformação, que vive a internacionalização da cultura, que almeja a modernidade através dos seus avanços tecnológicos, através do progresso das telecomunicações, principalmente da televisão. Mas que ainda mantém uma precária infraestrutura e, sobretudo, uma alienação política e cultural de seu povo. Segundo a narrativa do filme, o brasileiro comum é um sujeito despolitizado, à parte dos processos de transformação social. Exemplo disso é um dos diálogos entre um índio e Dasdô, em que ele pergunta: “Como vai o presidente do Brasil?”. Ela responde: “Sei lá”. Fica evidente que nenhum dos dois sabia, ao certo, como o país estava se organizando e, muito menos, quais

6 • Zeitgeist é um termo alemão cuja tradução significa “espírito de uma época, espírito do tempo ou sinal dos tempos”. Zeitgeist significa, em suma, o conjunto do clima cultural e intelectual do mundo, numa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo.

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mudanças e modernizações estavam acontecendo naquele momento. O filme apresenta uma crítica à realidade histórica vivida pelo Brasil. A trupe, assim como o país, passa por intempéries sociais em busca de sua reestruturação. A caravana sai pelo Brasil tentando encontrar o seu caminho, mostrando uma realidade fragmentada da modernidade que ainda tenta se organizar. A busca pelo Eldorado não é somente dos artistas mambembes, mas de toda a população brasileira que ainda vive as incertezas de seu regime político e os efeitos de seu milagre econômico. As cidades e lugares que surgem na tela — Altamira, Belém, Brasília — configuram espaços que se estabelecem de forma violenta e contraditória. Altamira vive uma dicotomia: as ruas sem asfalto e a pobreza contrastam com aviões de grande porte e com a tecnologia que chega trazendo a televisão. Brasília é a cidade em que assistentes sociais recebem bem os imigrantes (como na cena em que a atriz Marieta Severo, na pele de uma assistente, recebe Ciço e Dasdô); porém, lança-os à margem da convivência social em bairros sem asfalto, esgoto e demais necessidades básicas. Esse cenário de reorganização e hibridização social é representado ainda, a saber, por: um índio que ouve rádio de pilha, bebe Coca-Cola, chupa picolé e trabalha a serviço do Departamento Nacional de Estradas e Rodagens; boates que tocam música americana em plena região amazônica; uma caravana holiday abrasileirada em rolidei. Esse é o Brasil em construção. Em outras palavras, um país que ainda tem espaço a ser descoberto, que tenta ser moderno, tomando como referência 68


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os Estados Unidos. No entanto, que deixa rastro de destruição cultural, como no caso do povo indígena que é obrigado a resignar-se em meio às dificuldades. Os índios deixam suas terras, muitas invadidas por brancos, e saem em busca de reintegração social. A língua portuguesa também vive a perda de credibilidade em relação à língua inglesa. Falar outro idioma, principalmente o dos norte-americanos, é, muitas vezes, visto pela população menos escolarizada como símbolo de modernidade e internacionalização cultural. Para efeito desse recurso, Lorde Cigano usa, em alguns momentos, palavras e expressões como of course para denotar seu avanço intelectual em relação aos que vivem a sua volta. O próprio título do filme, que se utiliza de uma expressão de língua inglesa, evidencia essa necessidade de o brasileiro redimensionar suas fronteiras não só linguísticas, mas também culturais. No filme, o minério é visto como o futuro da Amazônia. Contudo, o presente ainda é marcado pela prostituição. Mais uma contradição da modernidade que se aproximava. Enquanto o enriquecimento não chega, criam-se estratégias de sobrevivência em meio à dificuldade. Salomé vende o corpo para sustentar a caravana após Lorde Cigano perder o caminhão numa aposta de queda de braço. A decadência dos mestres de cerimônia — Salomé e Lorde Cigano — funcionava também como metáfora de uma era que estava acabando e de um novo que precisava começar. Diante das limitações, não havia outra saída, exceto a de uma nova reintegração social.

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Lorde Cigano torna-se o centro das atenções em relação aos demais integrantes da caravana por causa de sua malandragem. A personagem de José Wilker incorpora o típico malandro, com seu “jeitinho brasileiro”: trapaceia, negocia, faz aposta e empresaria Salomé em “seus negócios”. Para Lorde Cigano: “Nesse negócio de amor dá para improvisar, mas em sacanagem não. Tem quer ser tudo bem organizado”. Segundo Roberto Damatta (1986), esse “jeitinho” é, sobretudo, um modo simpático, desesperado ou humano de relacionar o impessoal com o pessoal; é permitir juntar um problema pessoal com um problema impessoal. “Em geral, o jeito é um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando essa junção inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando.” (DAMATTA, 1986, p. 99) Na condição de vendedor de ilusões, Lorde Cigano faz da caravana, a princípio arcaica, um exemplo de modernidade. Em determinado momento, ele afirma que “o sonho do brasileiro é a neve”. Dessa forma, ele aproxima o Nordeste da Europa e, como discípulo de Nostradamus que é, “prevê” o futuro das pessoas presentes na plateia dos espetáculos da trupe. É ele também que define o ilusório caminho do Eldorado como destino comum para a caravana Rolidei. O Eldorado é a Amazônia, descrita por um motorista de caminhão, encontrado à beira do caminho pela caravana, como um lugar onde o “abacaxi é do tamanho de uma jaca”, onde “as árvores são do tamanho do arranha-céu”. A Amazônia em Bye Bye Brasil é abordada como terra prometida, o paraíso distante, desconhecido, que se quer alcançar. 70


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Enquanto as personagens são sujeitos de si, reinventam seus próprios caminhos e se apropriam dos novos espaços ocupados, a terra ainda é descrita pelo olhar do colonizador. A região ainda é uma metáfora do Brasil colonial: lugar idealizado, exaltado pelo exotismo e riquezas naturais, o lugar de recomeço; terra virgem, sem dono, onde “tem tudo e falta-lhe tudo...” (CUNHA, 1999, p. 3) de “fauna singular e monstruosa” (CUNHA, 1999, p. 2), onde o espaço é selvagem e tem “o dom de impressionar a civilização distante” (CUNHA, 1991, p. 9). Das cidades do interior nordestino às praias de Maceió, da Transamazônica a Altamira e, posteriormente, a Belém — lugar visto como local de recomeço após a perda do caminhão da caravana Rolidei —, todos os espaços são explorados pelo desenrolar da história das personagens. E são elas que usam a estrada como elo entre o retrógrado e o moderno, entre a desilusão e a esperança, entre a terra seca e a terra molhada. A estrada, aqui, é muito mais que lugar de passagem ou instrumento de integração propagado pelo governo militar. Ela é o entre-lugar na vida da caravana Rolidei. Aquilo que Bhabha (1998) define como o in-between, o entre-lugar da cultura, ponto que articula as temporalidades e as espacialidades do contemporâneo; a estrada é onde há o confronto permanente entre presente e passado, modernização e tradição, tecnologia e natureza. A presença da estrada faz de Bye Bye Brasil um road movie, ou seja, um filme de estrada, sub-gênero genuinamente norte -americano presente na cinematografia brasileira desde a década de 1960. Tendo origem nos westerns, o gênero de estrada 71


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tem algumas características como “os postos de gasolina, os motéis, dinners e borracharias. Importantes para dar suporte aos viajantes, [pois] esses pit stops são fundamentais para o andamento da narrativa.” (RODRIGUES, 2007, p. 20). Alguns desses cenários aparecem na obra de Diegues. É, por exemplo, em um posto de gasolina que Lorde Cigano recebe as primeiras informações sobre Altamira, “o centro da Transamazônia”, segundo um caminhoneiro. A caravana faz outras paradas à beira da estrada, rumo a Altamira, e são nessas paradas que Dasdô dá à luz a sua filha, Ciço é picado por uma arraia e a caravana dá carona aos índios. O road movie caracteriza-se por ter a estrada como cenário principal e pela presença de um automóvel com o qual as personagens podem se locomover ao longo da narrativa. Esse gênero também tem como característica a necessidade de romper fronteiras e experimentar o novo. O viajante normalmente está à procura de algo, seja interna ou externamente. A estrada funciona como elemento revelador da realidade que se almeja encontrar. Ela pode ser vista também, no caso de Bye Bye Brasil, como parte de uma sociedade movente que ainda busca as características de um país escondido em seus interiores, em constantes e profundas mudanças. No dizer de Ana Maria Mauad:

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[...] todo o filme é acompanhado pela mudança dos lugares da atitude das personagens, das condições, de vida, das emoções e relações. No filme de Diegues,


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nada será como antes neste Brasil de amanhã. (MAUAD, 2008, p. 79)

A estrada nesse filme pode ser vista como o espaço da busca que acaba revelando uma modernidade ainda periférica, sempre medida por meio de referências estrangeiras. Dessa maneira, tem-se representada no filme a concepção de Brasil como um país de pobreza, mas também de possibilidades. Há esperanças dentro das fronteiras nacionais. É ainda através da estrada que é explorada a imensidão, a variedade geográfica do Brasil e a diversidade cultural do brasileiro: o mar, o sertão, a floresta, o branco, o índio, o negro, todos os cenários e todos os povos dividem espaço no mesmo país em construção. Como dito anteriormente, é na estrada que nasce Altamira, filha de Ciço e Dasdô. A menina recebe o nome da cidade que era o destino da trupe. O nascimento da criança é a metáfora para a esperança que surgia com a chegada à floresta amazônica. É, também, na Transamazônica, que os artistas mambembes encontram os índios (que estão se deslocando para a cidade com o objetivo de “pacificar os brancos”), e que os exploradores recrutam mão de obra barata para trabalhar no meio da floresta, em projetos suspeitos, como, por exemplo, o Projeto Jari, para onde muitos iam, mas de onde ninguém nunca havia voltado para contar a história. Nesse caminho rumo à modernidade e às melhorias de vida, a caravana, ao longo de suas viagens, encontra a televisão, consolidando-se como meio de comunicação de massa, e o rádio, encurtando as distâncias. A televisão é chamada por 73


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Salomé de “espinha de peixe” e é considerada um veículo, a princípio, de discórdia por diminuir o público durante as apresentações da trupe. Cinema e televisão dividem espaço com o teatro mambembe na obra de Carlos Diegues. Mas o cinema, assim como a caravana, também já não era mais novidade em meio ao sertão, por isso os ingressos eram trocados por comida, farinha ou pela dormida de Zé da Luz, o responsável pela projeção do filme no interior das cidades nordestinas. Por causa da perda de público, em um determinado momento do filme, Lorde Cigano e Salomé, revoltados, explodem uma televisão em praça pública, que atraíra centenas de espectadores para assistir à novela Dancing days, da Rede Globo. Porém, na sequência final de Bye Bye Brasil, a televisão já aparece integrada a uma nova realidade na vida das personagens. Para Mauad, a televisão “transforma o povo espectador da sua própria tragédia” (2008, p. 83). Ciço aparece, ao lado de Dasdô e sua filha Altamira, tocando sanfona em Brasília — signo da modernidade na década de 70 —, em um palco repleto de aparelhos de TV, enquanto Lorde Cigano e Salomé chegam à capital federal com um novo caminhão (conseguido com o contrabando). As laterais do veículo são ocupadas com aparelhos luminosos de TV. Com isso, a televisão, deixa de ser entrave e passa a ser parte do espetáculo. A TV é a modernidade responsável pela alienação do povo, pela perda de identidade nacional e, de certo modo, responsável também pela suposta internacionalização do Brasil. O povo aparece passivo frente à TV, à margem da situação

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política e econômica, mas apesar disso, mantém-se religioso, devoto e esperançoso de um futuro melhor. O filme, dedicado ao povo brasileiro do século XXI, apresenta novas possibilidades de vida não só para as personagens, mas também para todo o povo do Brasil. Salomé e Lorde Cigano compram um novo caminhão, a caravana muda o nome de Rolidei para Rolidey e segue seu destino na estrada rumo a Rondônia porque, segundo Lorde, “a gente é feito roda: só se equilibra em movimento”. No alto-falante do veículo toca uma versão em inglês de Aquarela do Brasil, cantada por Frank Sinatra. Enquanto isso, Ciço, o maior sanfoneiro do planalto, e Dasdô se estabilizam financeiramente na capital federal, trabalhando numa casa de forró. A princípio, Salomé é oposição a Dasdô. Salomé é dançarina e prostituta, enquanto Dasdô é esposa, submissa e calada. Com a falência da caravana, Dasdô tenta se prostituir também, mas é impedida por Ciço. Lorde Cigano também é o oposto de Ciço. Ele é trambiqueiro, “internacionalizado”, alegre; Ciço é sério, moralista e acabrunhado. Porém, ao longo da narrativa, Ciço e Dasdô vão adquirindo características semelhantes à Salomé e Lorde Cigano, principalmente no que se refere à vestimenta e maquiagem. Na cena final, Ciço aparece maquiado e com roupa de show, exatamente iguais a do Lorde Cigano. Segundo Mauad, esses acontecimentos refletem:

a transmissão do velho no novo, do arcaico no moderno, é a atitude antropofágica da cultura brasileira, pois em vez de assumir características de uma nova

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identidade, atualiza suas próprias características transformando-se numa nova viagem. (2008, p. 81)

Em Bye Bye Brasil, a modernidade brasileira vive essa constante dicotomia entre o velho e o novo, apresentando-se ainda fragmentada, porém em construção. O destino, por vezes incerto da caravana, representa o caminho também incerto do Brasil que ainda buscava a edificação de uma nova realidade. Por isso, o filme permite pensar o país como um local de constante movimento. De certa maneira, o filme mostra que é preciso percorrer o Brasil para entendê-lo melhor e, então, atribuir-lhe conceitos. E esse percurso trilhado, seja de caminhão ou pelo olhar de uma câmera, não se esgota em algum consenso final.

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Luzes e sombras: Projeções do bem e do mal na tela do cinema7 Francisco de Moura Pinheiro

RESUMO

De forma quase invariável, as histórias procedentes do cinema feito nos Estados Unidos estabelecem uma dicotomia inconciliável entre as noções de bem e de mal. De forma quase invariável, também, no fim das contas o bem triunfa, mesmo que durante toda a trama as chamadas forças do mal sejam mais fortes, mais inteligentes, mais disciplinadas etc. Os princípios do maniqueísmo remontam ao século III, mas permanecem até hoje como guias da chamada sétima arte norte-americana. É impensável para a maioria dos espectadores a ideia de um “final infeliz”. Em 2007, entretanto, a Academia de Cinema de Hollywood, de forma surpreendente, resolveu conceder o seu maior prêmio a um filme que rompe com essa tradição: Os infiltrados, de Martin Scorsese. Tecer considerações sobre esse tema é o objetivo deste artigo. Palavras-chave: Cinema. Comunicação. Ficção. Infiltrados. Maniqueísmo.

7 • Artigo publicado originalmente nos Anais do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

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A primeira tela

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ão é difícil imaginar o espanto de um homem pré-histórico ao avistar a sua sombra projetada pelas chamas de uma fogueira na parede de uma caverna. Mágica e incompreensível, em princípio, logo ele deve ter apreendido que os três elementos (o homem, a sombra e a luz) se encontravam visceralmente ligados. Um movimento dele pra lá, um movimento dele pra cá, com o corpo interposto entre as chamas e a parede, e a sombra o acompanhando fielmente. E não é difícil também imaginar que o passo seguinte à descoberta da sombra projetada na parede da caverna, via incidência das chamas da fogueira, foi estabelecer um ato voluntário de projeção: mãos criando figuras animadas para a ilustração de narrativas e uma plateia maravilhada em volta, com a fome recém-saciada, esparramada sobre os restos da última caçada. Num encadeamento lógico e temporal, talvez seja mesmo possível afirmar que as pinturas rupestres das paredes das primeiras formações naturais usadas pelos ancestrais da espécie humana para se abrigar das intempéries surgiram a partir dessa descoberta do movimento animado pela simbiose de fogo, sombra e tela. A sombra tinha movimento, mas era efêmera, deixava de existir na medida em que um modelo se enchia de tédio e procurava um canto para esticar o corpo cansado. Já a pintura, apesar de estática, não dependia de condições especiais ou, muito menos, de um ator em constante interação para permanecer. O protagonista do espetáculo se retirava da cena, mas a obra continuava lá para ser admirada (ou execrada) por

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quantos passassem por aquele lugar, tanto faz se no dia seguinte ou nos anos vindouros. A “odisseia no espaço” da imaginação, que iria dividir posteriormente os seres humanos em tribos distintas e cujos pontos de conexão viriam a ser simbolismos das mais variadas espécies, dessa forma, parece ter nascido bem antes da projeção anunciada em folhetos e cartazes de uma sessão numa sala escura previamente escolhida para tal finalidade. A sala escura era o ventre eternamente grávido da Terra; os protagonistas eram os fetos adultos de cabelos fétidos, unhas encravadas e sexo à mostra; as lições, sem nenhuma conotação moral ou religiosa, tão somente narrativas do dia a dia, impregnadas de um candente exercício do trivial. O cinema já existia muito antes da própria concepção.

Trinta segundos: horror e êxtase Ao dar a impressão de fazer avançar um trem sobre a plateia na sua primeira exibição pública, o cinema deu exemplo da sua poderosa magia. Para as privilegiadas pessoas convidadas, em 1895, pelo cientista francês Louis Lumière para aquele momento histórico, testemunhar as sombras se movendo na improvisada tela branca era algo absolutamente irreal, que elas certamente haveriam de contar para os seus vizinhos, parentes e descendentes pelo resto das suas vidas. Era como se a vida, de repente, pudesse ser aprisionada numa caixinha de madeira e reproduzida num pedaço de pano branco. E, melhor ainda, carregada numa mala para os lugares escolhidos pelo detentor do 81


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poder de aprisioná-la. Se a fotografia, estática na sua moldura, tornava presentes quase para sempre os entes queridos, imagine só aquela recente invenção. Não poderia haver limites para o gênio humano. Logo todos poderiam ser imortais. Essa primeira exibição pública do cinematógrafo se constituiu de um projetor e uma câmera, com o movimento através da perfuração no filme. O espetáculo, que durou somente meio minuto, mostrava um trecho da plataforma de uma estação de trem banhada pelo sol, com damas e cavalheiros perambulando, e um trem vindo das profundezas do quadro e dirigindose para a câmera. Uma tomada com a câmera fixa que não era nada mais que um arremedo do que a nova descoberta possibilitaria no futuro. Possibilidades que jamais poderia imaginar o próprio Lumière ou, muito menos, retroagindo um pouco no tempo, seu antecessor, o fisiólogo E. T. Marey, criador da primeira câmera capaz de tomar uma sequência de fotografias. E muito menos, ainda, retroagindo mais, Louis Jaques Mandré Daguerre, Joseph Nicéphore Niépce, Henry Flox Talbot e J. A. Plateau, todos precursores dos estudos da imagem e do movimento. Do êxtase imediatamente inicial ao horror transcorreram cerca de trinta segundos. O trem parecia que ia sair da tela e esmagar as testemunhas do extraordinário acontecimento. O mais corajoso dos espectadores se encolheu apavorado na plateia. Senhoras chegaram a desmaiar. Um pandemônio que demorou alguns minutos para ser controlado. Depois da constatação de que tudo não passava de uma ilusão de ótica, o sorriso no rosto e a expressão de júbilo das testemunhas faziam prever 82


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que o mundo jamais seria o mesmo. E não demorou muito para que aquela invenção se transformasse no mais novo instrumento de comunicação de massa. A sétima e definitiva arte.

Ilusão sincrética: a separação do bem e do mal Até o século III da Era Cristã, o bem e o mal impregnavam o espaço e todas as coisas, vivas ou mortas, animadas ou inanimadas, materiais ou imateriais em proporções semelhantes. Mesmo os seguidores das religiões mais piedosas seguiam o preceito do olho ou do dente inimigo para reparar a ofensa do próprio olho ou do próprio dente perdidos. Os textos bíblicos estão repletos de histórias de batalhas encarniçadas contra os que ousassem invadir territórios ou, pelo menos, professar outra fé. Foram inúmeras as guerras santas. E todos os exércitos lutavam pelo que julgavam certo. Estando todos corretos, portanto, todos tinham razão e, assim, lutavam o bom combate, desfraldando a bandeira do bem. O que tornava, naturalmente, verdadeira a recíproca. Bem e mal trocavam de lado de acordo com as conveniências de um instante. Foi nessa época que “entrou em cena” o sacerdote persa Many Haya (216-277 d. C.), que declarou ter tido uma revelação de Deus, após um longo período de meditação, e se via como membro único na Terra de uma linhagem que incluía Buda, Zoroastro e Jesus. Combinando elementos do zoroastrismo, do budismo e do cristianismo, Many criou a doutrina denominada maniqueísmo (homenagem ao nome do citado personagem), que estabelecia uma visão dualista radical, segundo a qual se 83


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encontram no mundo (mas podem ser separadas) as forças do bem (ou da luz) e do mal (ou da escuridão), consideradas princípios absolutos, em permanente e eterno confronto. O reino do bem (ou da luz), segundo os princípios “maniqueístas”, seria o reino de Deus, enquanto o reino do mal (ou da escuridão) seria o reino de Satanás. Os reinos viviam em perfeita separação, mas por conta da inveja de Satanás, as forças da escuridão atacaram as forças da luz. A resposta das forças da luz foi o envio do Homem Primordial, que perdeu a batalha inicial, fazendo com que a alma humana fosse, assim, configurada por um pouco de luz aprisionada. A libertação da alma humana das trevas passou, dessa forma, a se constituir no principal problema a ser enfrentado, o que somente pode ser conseguido através do ascetismo e do conhecimento esotérico. O maniqueísmo, além do mais, nega que Jesus Cristo tenha sido crucificado, bem como a encarnação da segunda pessoa da Trindade em um corpo humano. Ao contrário, exibe um modelo de evasão de corporeidade como condição de salvação. Em sentido genérico, e principalmente para efeito deste ensaio, “visão maniqueísta” é aquela que reduz a consideração de uma realidade a uma oposição simplista entre algo que representaria o bem e algo que representaria o mal.

As fadas congelam o instante A cultura ocidental não aceita a ideia da morte. São milhares de anos, gerações e mais gerações, se debatendo com a (má) ideia da finitude física. Mesmo boa parte dos religiosos, aqueles que professam uma arraigada fé na vida espiritual, 84


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embora não digam, é certo que se angustiam ante a perspectiva do fim das suas vidas (...e se tudo for apenas um imenso vazio?). Talvez por isso, os produtos culturais deste lado do planeta sejam, na sua maior parte, criados para entreter, oferecendo quase sempre a possibilidade do final feliz como regra absoluta, e estabelecendo o triunfo do bem sobre o mal. Uma espécie de congelamento de um instante (quando o mocinho e a mocinha da história trocam um beijo apaixonado, montam um cavalo branco e seguem rumo ao horizonte, tendo como pano de fundo um pôr do sol de indescritível beleza!). Felizes para sempre pelo simples movimento cabalístico de uma legião de fadas! Mesmo nas situações mais inverossímeis, é preciso que o herói, o legítimo representante do bem, leve a melhor sobre o vilão, o famigerado representante do mal, seguindo a dicotomia conceitual iniciada há mil e setecentos anos pelo sacerdote persa que se julgava representante de Deus na Terra. O mocinho é puro, cheio de bons sentimentos, trabalhando sempre em sintonia com os mais elevados valores morais. Ele não pode perder a batalha, mesmo quando conta apenas com as seis balas de um revólver contra bandoleiros armados até os dentes. O bandido tem má índole, não possui nenhum resquício de humanidade, é cheio de maus hábitos e trabalha sempre com a ideia do prejuízo a outrem, em benefício próprio. Ele não pode vencer a batalha, mesmo que seja mais inteligente, mais forte, mais capaz... Seria entregar o mundo às trevas! As histórias em quadrinhos, por exemplo, estão cheias dessa visão maniqueísta de que o bem se concentra todo de um lado só, em oposição a outro lado onde está concentrada a 85


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força do mal. Desde (ou principalmente) as histórias dedicadas ao público infantil (Tio Patinhas e respectiva família contra os Irmãos Metralha, Lucky Luke contra os irmãos Dalton, Asterix e Obelix versus o Império Romano...) até consumidores de uma faixa etária mais elevada (Super-Homem em oposição a Lex Luthor; Batman e Robin contra o Coringa ou o Pinguim; Tex Willer contra ladrões e assassinos de qualquer natureza que tirem o sono e os búfalos da pradaria dos amigos Navajos), não há, absolutamente, intenção de evidenciar que, num conflito de interesses, todo mundo tem alguma razão e para cada um dos lados o mal é sempre o outro (para um general, o mal é sempre o guerrilheiro combatente do país ocupado).

Happy End e felicidade não rimam, mas servem de solução É preciso ser feliz sempre. Mas a vida real não pode materializar esse ideal. Sendo assim, alguém (ou algo) tem que oferecer esse tipo de compensação. Nada melhor, nesse sentido, do que produtos culturais extraídos da imaginação do homem, ele mesmo o beneficiário de tal artifício. Os produtos culturais, dentro das suas múltiplas lógicas, devem cumprir a expectativa de que tudo (divino ou satânico, simbólico ou diabólico) pode ser maravilhosamente perfeito. Assim, é preciso cultuar e fazer estancar o instante onde tudo converge para a harmonia. Essa atitude, aliás, ao congelar um fragmento de tempo e desconsiderar o fluxo contínuo, que certamente conduzirá a momentos de futuro dissabor, parece ser uma lógica de trapaça, própria do ser humano, e não de uma divindade suprema 86


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e determinista, como entendeu Many. “Deus não engana nem trapaceia. [...] O homem engana e trapaceia, mais e mais que desaparece, às vezes, como Zeus sob a pele do touro, como Hera sob o ferrão do Moscardo”, diz Michel Serres. E continua: “A guerra entre o Diabo e o Bom Deus nunca teve lugar: um quer vencer; o outro não”. Sobre essa cultura do happy end, o pensador francês Edgar Morin situa o momento em que tudo teria começado, estabelecendo os anos 30 do século XX como marco seminal. “A partir da década de 30 delineiam-se nitidamente as linhas de força que orientam o imaginário em direção ao realismo e que estimulam a identificação do espectador ou leitor como herói”, diz ele. E continua afiançando que a partir desse marco temporal estabelece-se no cinema americano, cada vez mais solidamente, “uma correlação entre a corrente realista, o herói simpático e o happy end”.

A introdução em massa do happy end limita o universo da tragédia ao interior do imaginário contemporâneo. [...] O happy end rompe com uma tradição não só ocidental, mas universal [...]. Na universal e milenar tradição, o herói, redentor ou mártir, ou ainda redentor e mártir, fica sobre si, às vezes até a morte, a infelicidade e o sofrimento. Ele expia as faltas do outro, o pecado original de sua família, e apazigua, com seu sacrifício, a maldição ou a cólera do destino. A grande tradição precisa não só de castigo dos maus, mas do sacrifício dos inocentes, dos puros, dos

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generosos [...]. O happy end introduz o fim providencial dos contos de fadas no realismo moderno, mas concentrado num momento de êxito ou finalização [...]. (MORIN, 1990, p. 93-94)

A ideia de felicidade se torna núcleo afetivo do novo imaginário social, através do cinema, a partir desse marco temporal estabelecido por Edgar Morin e, correlativamente, o happy end passa a implicar um apego intensificado de identificação com o herói. Ao mocinho, acima de qualquer suspeita, representante das forças do bem, cujas sombras não se fixam sob o próprio corpo, não é dado o direito a nenhuma fraqueza: pode apanhar o filme inteiro, padecer as torturas mais cruéis que jamais trairá o ideal da sociedade, jamais sucumbirá, jamais poderá deixar de sentir o gosto do triunfo final. Pode até ser estúpido, não interessa. Ele resiste, às vezes, de forma até mesmo absolutamente milagrosa. Não importa, o destino determinado pelo script de um deus roteirista já o consagrou como uma criatura a quem está reservada a vitória e, consequentemente, a felicidade. “O elo sentimental e pessoal que se estabelece entre espectador e herói é tal, no novo cinema de simpatia, de realismo e psicologismo, que o espectador não suporta mais que seu alter ego seja imolado”, explica Edgar Morin. De modo geral, um bandido só é bem sucedido se na caracterização do seu personagem existir algo de altruístico. Um bandido cruel será sempre execrado e deve ser punido no fim, seja com a morte, seja com a prisão. Mesmo os personagens reais, quando “representantes do mal”, a eles devem ser 88


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carregadas as tintas para que a plateia exerça a sua ira contra os referidos vilões. Uma mera tentativa de compreender as atitudes da personagem malévola é rechaçada pelos espectadores. Não é comum, nesse sentido, algum tipo de negação da qualidade de um filme quando o vilão ousa obter algum tipo de compensação no fim da história. “Não gostei nem um pouco desse filme, com esse final onde o artista morre. Vê se pode. O bandido não podia triunfar. Isso não existe!”. O senso comum fulmina, inclusive, a tentativa do equilíbrio ou da compreensão de uma figura histórica. O cinema ocidental não gosta de releituras que fujam do lugar comum maniqueísta estabelecido nos anos 30 do século passado! Edgar Morin entra em cena mais uma vez para explicar a noção de felicidade ocidental que estabelece essa cultura do happy end, afirmando que a cultura de massa delineia uma figura particular e complexa da felicidade: projetiva e identificativa simultaneamente. “A felicidade é mito, isto é, projeção imaginária de arquétipos de felicidade, mas é ao mesmo tempo ideia-força, busca vivida por milhões de adeptos”, diz Morin, para quem esses dois aspectos estão, “em parte, radicalmente dissociados, em parte, radicalmente associados”. O tema da felicidade está ligado ao tema do presente. Edgar Morin explica o conceito:

O happy end é uma eternização de um momento de ventura em que se encontram enaltecidos um amplexo, um casamento, uma vitória, uma libertação. Ela não se abre na continuidade temporal do “eles foram

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felizes para sempre e tiveram muitos filhos”, mas, sim, dissolve passado e futuro no presente de intensidade feliz. Esse tema projetivo corresponde idealmente ao hedonismo do presente desenvolvido pela civilização contemporânea. Esse hedonismo é de bem-estar, de conforto, de consumo: desenvolve-se em detrimento de uma concepção da existência humana na qual o homem consagra seu presente a conservar os valores do passado e a investir no futuro. (MORIN, 1990, p. 126)

Nessa construção do triunfo do bem contra o mal, materializado pelo corte brusco no momento do happy end, não importa quanto possa ser diferente o real. No escurinho do cinema o que conta é a fantasia inebriante e a certeza de que os bons, cedo ou tarde, estarão no paraíso, enquanto os maus descerão ao reino de Lúcifer, paradoxalmente (ou sintomaticamente), pela etimologia da própria palavra que o nomina, o anjo da luz, sem quaisquer resquícios da sombra proposta pelo criador dos preceitos maniqueístas. “O futuro das imagens”, no dizer de Henri Bergson, “está contido em seu presente e a elas nada acrescentar de novo”. Nada pode ser introduzido no universo das imagens produzidas pelo cinema que não seja o que o espectador espera. As variações acontecem somente no percurso, mas qualquer coisa de diferente, no sentido de subversão do final, soa, de fato, “subversiva”. Tudo absolutamente explicável, esse congelamento do momento de felicidade oferecido pelo cinema, na forma de 90


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happy end, quando o mocinho sagra-se vencedor, sem precisar, como antigamente, expiar as culpas do mundo através da própria imolação, se for levado em conta que o princípio da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início, ensina o psicanalista Sigmund Freud, para quem, entretanto, “não há possibilidade de ele ser executado; todas as normas do universo lhe são contrárias”. E nesse sentido, afirma Freud, “ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja feliz não se acha incluída no plano da Criação”.

Nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas [...]. (FREUD, 1997, p. 25)

Ou seja: se a felicidade não está incluída no plano da vida real por obra e graça de um preceito do destino estabelecido por uma divindade, nada mais “natural” que os produtos da indústria cultural se apropriem de um antigo conceito filosófico-religioso como o maniqueísmo para “materializar” o que a vida não pode cumprir, percorrendo o caminho da fantasia. E nesse contexto entra o happy end. A imagem contraria a natureza humana, submetendo-se à ditadura da felicidade para ludibriar o espectador (ele quer ser ludibriado). A trapaça se sobrepõe na vida real. Os lados 91


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antagônicos só existem para estabelecer um vencedor, que já se sabe desde sempre qual será. Já existe a promessa prévia da recompensa desde o primeiro fotograma. As necessidades individuais são resolvidas pela ação do herói. Os signos pouco ou nada revelam de novo, porque somente existem para referendar uma ideia prévia: a da felicidade pelo final risonho e feliz, sem perspectiva de conflitos futuros. O único sentido que, de fato, faz sentido é o da vida eterna. Na tela do cinema, por conta da apropriação do maniqueísmo, a vida nega a si mesma. O herói do homem civilizado não pode morrer. Os 300 de Esparta, loucos para descobrirem o guerreiro inimigo que haveria de roubar-lhes a essência vital, eram bárbaros, gargalhavam ante a perspectiva de “jantar no inferno”, pertenciam a outro mundo. Para o homem dito civilizado, para quem a vida individual está mergulhada no progresso e no infinito, a morte não pode ter sentido. Inclusive porque, segundo seu sentido imanente, essa vida não deveria ter fim. E assim, segundo Morin, é justamente por não ter sentido que a morte é tão poderosamente recalcada pela mitologia da felicidade. A felicidade é, efetivamente, a religião do indivíduo moderno, tão ilusória quanto todas as religiões. Essa religião não tem padres, funciona industrialmente. É a religião da terra na era da técnica, donde sua aparente profanidade, mas todos os mitos recaídos do céu são virulentos... Constituem o que, a rigor, podemos chamar de ideologia da cultura de massa, isto é, a ideologia da felicidade. (MORIN, 1990, p. 129-130)

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Como não existe felicidade no sofrer e na dor (masoquistas à parte), que se pare o tempo no momento do beijo apaixonado, logo após a derrota do facínora!

Uma providencial infiltração A necessidade de quebrar essa norma de fazer o bem triunfar a qualquer custo, de vez em quando, foi materializada, ao longo desses quase oitenta anos, desde que se estabeleceu o princípio do happy end. Mas, só mesmo muito de vez em quando. E quase sempre com um elevado grau de rejeição, tanto do público quanto da crítica. O herói que morre no fim, ou então que vence, mas deixa o bandido livre ou sem castigo, não se realiza plenamente como herói no inconsciente do espectador. Torna-se uma espécie de herói pela metade. Em 2007, entretanto, a julgar pelos milhões de dólares arrecadados nas salas de exibição do planeta, bem como pelos prêmios recebidos por diversas associações de críticos, um filme subverteu, mesmo que de forma pontual e momentânea, essa dicotomia inaugurada por Many Haia, no século III da Era Cristã, de separação do bem e do mal para lados distintos e absolutamente sem mistura. Trevas e luz se misturaram por algumas horas, fazendo os protagonistas mudarem de lado, de acordo com as conveniências do instante. O filme, que poderá vir a ser uma espécie de divisor de águas dessa construção simbólica que envolve maniqueísmo e happy end num mesmo produto cultural, chama-se Os infiltrados, levado a cabo pelo diretor Martin Scorsese.

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Para se ter uma ideia de como foi bem recebido, Os infiltrados ganhou quatro Oscars na maior láurea do cinema mundial, conferidos pelos exigentes membros da Academia de Cinema de Hollywood (melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado e melhor edição). E ainda viu um dos seus atores, Mark Wahlberg, na mesma competição do Oscar 2007, receber indicação para o título de melhor ator coadjuvante. Além disso, ganhou o Globo de Ouro de melhor diretor, e o MTV Movie Awards de melhor vilão, pelo papel encarnado por Jack Nicholson. Sem falar nas quatro indicações recebidas no Globo de Ouro (melhor filme drama, melhor ator drama, melhor ator coadjuvante e melhor roteiro) e as seis indicações recebidas no BAFTA (categorias de melhor filme, melhor diretor, melhor ator, melhor ator coadjuvante, melhor roteiro adaptado e melhor edição). Em Os infiltrados, bem e mal não tem lugar fixo no universo, muito menos são privilégios de determinados personagens. Mesmo que algum dos personagens tenha tendências mais para um desses conceitos, também sobrevive nele algo do outro, de uma forma bem mais aproximada do que acontece na vida real. O vilão maior, o chefão mafioso que não hesita em matar a sangue frio, de repente pode afagar o rosto de uma criança e ordenar que um comerciante dê um determinado produto para alguém que não possa comprar. Os dois protagonistas, vividos por Leonardo DiCaprio e Matt Damon, então, vivem dramas existenciais de enorme magnitude, muitas vezes sem saber, exatamente a qual lado estão servindo, alternando momentos em que duvidam se 94


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estão fazendo a coisa certa e momentos de júbilo íntimo por estarem contribuindo para a vitória dos seus respectivos lados. Ambos traem, ambos mentem, ambos dissimulam, para fazer triunfar aqueles que lhes protegem (ou pagam). Não são bons, nem maus, embora estejam de lados que, por uma questão de construção imaginária social, por um simbolismo edificado ao longo da história do pensamento humano, se coloquem como bem e mal, independente da atitude que venham a cometer. Fins que justificam os meios. Os chamados bons quando matam, o fazem para evitar um mal maior; os chamados maus quando praticam um ato de bem querer, o fazem para obter uma compensação futura. A trama de Os infiltrados se desenvolve em torno da guerra travada pela polícia de Boston (Estados Unidos) contra o crime organizado. Billy Costigan (Leonardo DiCaprio), um jovem policial, recebe a missão de se “infiltrar” na máfia, mais especificamente no grupo comandado por Frank Costello (Jack Nicholson). Aos poucos, Billy conquista a confiança de Costello, ao mesmo tempo em que Colin Sullivan (Matt Damon), um criminoso que foi infiltrado na polícia como informante de Costello, também galga posições na hierarquia da corporação. Tanto Billy quanto Colin sentem-se aflitos, devido à vida dupla que levam, tendo obrigação de sempre obterem informações. Até o momento em que tanto a máfia quanto a polícia desconfiam que existe um espião entre os respectivos grupos e a vida de cada um dos “infiltrados” passa a correr perigo real e imediato.

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Em princípio, os supostamente bons contra os supostamente maus, aparentemente indicando que se desenvolveria mais uma história entre mocinhos e bandidos, cujo triunfo final somente poderia caber ao primeiro lado. Mas somente em princípio. Na sequência, no desenrolar dos fatos, o que se percebe, de verdade, é que tudo é duplo, tudo é dual. Mas a duplicidade e a dualidade se misturam (em proporções e variações diferentes para cada um) num mesmo ser. Os métodos são iguais nos dois lados antagônicos e o filme nos remete à sensação de absoluta igualdade, reproduzindo o princípio matemático de que somente pode haver equilíbrio nas coisas naturais se a medida de valor para o lado esquerdo se reproduza em exatamente igual proporção para o lado direito. E no fim, ninguém vence um ao outro. Os dois “infiltrados” sucumbem. Mesmo morrendo o chefão mafioso, também morreu o chefe policial da investigação, assim como os protagonistas Billy e Collin.

Scorsese e as duas faces da moeda Curiosamente, foi apenas quando resolveu mudar o enfoque dos seus filmes, andando na contramão dos manuais de Hollywood, no que diz respeito ao maniqueísmo e ao happy end, é que o diretor Martin Scorsese adquiriu o pleno reconhecimento da crítica. Ele, que um dia quisera ser padre, mas que depois optou por frequentar a escola de cinema da Universidade de Nova Iorque, acabou sendo reconhecido depois de abandonar os preceitos de um sacerdote que pretendeu tornar perfeita a religião cristã. 96


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É certo que Scorsese, já de algum tempo, era considerado por alguns estudiosos de cinema como “o maior realizador americano vivo”, com vários das suas obras ocupando lugar de destaque nas listas dos melhores filmes do American Film Institute. É certo, igualmente, que ele, desde algum tempo, vinha sendo alvo de grande admiração, além de um dos nomes mais reconhecidos da indústria cinematográfica americana. Também é certo que ele era considerado por muitos um grande injustiçado por jamais ter levado para casa a estatueta do Oscar. Mas foi somente com a realização de Os infiltrados (The departed, no original em inglês), contrariando a determinação de que o bem deve triunfar sobre o mal, minutos antes dos créditos, que o ex-candidato a padre Martin Scorsese atingiu a consagração total e absoluta. Antes, porém, de enveredar pela transgressão do manual da felicidade de Hollywood, sedimentado pela aprovação do público, Martin Scorsese dirigiu filmes extremamente maniqueístas. Caso de Cabo do medo, por exemplo, um suspense lançado nos cinemas em 1991, com Robert De Niro (o vilão) e Nick Nolte (o herói) nos papéis principais. Na verdade, um remake de Círculo do medo, filme de 1962, que teve Gregory Peck e Robert Mitchum nos papéis principais. Em Cabo do medo (Cape fear, no original em inglês), com roteiro e desfecho absolutamente diferentes de Os infiltrados, no que diz respeito às mensagens subjacentes ao filme, Max Cady (Robert De Niro), um psicopata que foi preso e condenado por estupro quatorze anos atrás cumpriu sua pena e agora está livre. A ideia fixa do psicopata, ao ser libertado, é se vingar 97


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de Sam Bolden (Nick Nolte), seu ex-advogado, que deliberadamente omitiu informações que alterariam o veredicto do júri. Enquanto cumpriu pena, Max Cady aprendeu a ler (era analfabeto quando foi preso) e estudou todos os aspectos legais possíveis do seu caso, além de exercitar exaustiva e compulsivamente o próprio corpo, transformando-se numa montanha de músculos. Em liberdade, Cady passa a aterrorizar Sam Bolden, a esposa Leigh Bowden (Jéssica Lange) e a filha Danielle (Juliette Lewis). No desenrolar dos eventos, Cady, o representante do mal, é mais forte, mais inteligente, planeja e executa à perfeição a sua vingança contra Bolden, representante do bem, porém, por um incidente fortuito, sucumbe no final. O bem não poderia mesmo perder. Um estuprador psicopata, em nenhuma hipótese poderia se sobrepor perante o advogado, só porque este negligenciou a defesa daquele, num rasgo de nojo pelos atos praticados pelo bandido. Seria insuportável para os parâmetros da moral vigente. Mais maniqueísta impossível! E por último, para fechar esse capítulo sobre Martin Scorsese, a informação de que entre as muitas premiações, antes do Oscar por Os infiltrados, o diretor acumulou sete indicações ao Globo de Ouro, sete indicações ao Oscar por filmes anteriores, seis indicações ao BAFTA de Melhor Realizador, vencedor da Palma de Ouro duas vezes (Festival de Cannes), vencedor de um Leão de Prata (Festival de Veneza), três indicações ao César de Melhor Filme Estrangeiro, duas vezes Prêmio Bodil de Melhor Filme Americano, Prêmio Broadcast Film Critics Association, Prêmio Fotogramas de Plata de Melhor Filme Estrangeiro, Prêmio Guild of Germain Art House Cinemas etc. 98


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Companheiros de sono no ventre primitivo e o combate pela felicidade Os discursos e conversações de Zaratustra, na parte mais antiga do Avesta, explicam que o bem e o mal teriam sido gêmeos no primeiro sono. Somente muito depois é que teriam se contraposto, entendendo-se como almas incompatíveis, inclusive na vida e na morte, “ficando o pior para os adeptos do embuste e o melhor para os adeptos da verdade”, segundo ensina Martin Buber. Contrapostos, porém dependentes um do outro para fins da própria existência. Contrapostos, mas não separados.

Em parte alguma da primitiva escritura do gênero humano, a nós transmitida, vêm associados e separados, como aqui, o bem e o mal como princípios. Provieram da comunidade mais primitiva como “gêmeos”. De que semente e de que seio nasceram, isto não vem dito, mas de outra feita ouvimos que o Deus supremo, Ahura Mazdah, o “sábio senhor”, seria o pai do espírito benéfico. Assim, provieram dele os dois opostos primitivos. Nada conseguimos saber de alguma mãe cuja participação pudesse esclarecer a contradição. O Deus cerca-se de forças boas, permite que lutem contra as más e fará com que vençam. Mas a oposição que ele combate foi por ele mesmo abarcada e a colocou, por iniciativa própria, no ser dos princípios. É como se ele tivesse que desfazer-se primeiro

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do mal para então poder subjugá-lo. Quando, com a oposição dos gêmeos, quer iniciar a criação que é por eles tecida, então o Deus, antes da criação, é o ainda -não bom, mas na criação luta o Deus que se tornou bom com seus eleitos. (BUBER, 1972, p.35)

Para Many Haya, o sacerdote persa que buscava a religião perfeita, pouco importava a essência do Avesta. Definitivamente, as duas substâncias nunca estiveram juntas e jamais se reunirão. Não podem, sequer, se tocar, sob pena de desfazer passado, presente e futuro, que são frutos de um antigo choque entre os dois. “Os dois reinos”, ensina Many Haya, “estão inteiramente separados, opondo-se entre si de forma dinâmica”. O discurso perfeito para a apropriação contemporânea dos produtos culturais que oferecem a ilusão da felicidade eterna. Cenário, por vezes, fantasma, repleto de semblantes irreais, o cinema acabou tornando-se um dos mais perfeitos artifícios para sedimentar a ideia maniqueísta da separação do bem e do mal, com o consequente triunfo do primeiro. “A ideia banal, enganosa, astuciosa da propaganda desdobra-se em claro-escuro com tanta poesia e habilidade, a ponto de mostrar, por trás dos ‘falsos semblantes’, o que se encontra sutilmente em questão: a ideologia, sem dúvida”, ensina Ignácio Ramonet, no livro Propagandas silenciosas — massas, televisão, cinema. Uma ideologia tão poderosa, fundada em conceitos tão enérgicos, que consegue subverter a noção de real dispersa em torno e dentro de cada espectador.

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Onipotente ideologia que sequer respeita a verve criativa dos autores de textos literários, se o fim do romance não terminar na falaciosa “felicidade para sempre”. É preciso, caso a tragédia permeie o final da história, modificar o instante da desgraça. Afinal, todos os espectadores estão esperando um herói invencível a qualquer custo. Edgar Morin foi o primeiro a perceber isso. “A força constrangedora do happy end se manifesta de maneira reveladora na adaptação das obras romanescas para o cinema”, diz o pensador francês. E continua a explanação, citando exemplos:

A pressão do happy end é tão forte que chega ao ponto de metamorfosear o fim dos romances, quando, no entanto, a adaptação deveria proteger o tabu do respeito à obra de arte. [...] Modifica-se o fim de romances contemporâneos consagrados como A ponte do Rio Kwai, de Pierre Boulle. [...] O romance de Pierre Boulle acaba com um fracasso. Por culpa do coronel inglês a ponte construída sobre o rio Kwai não explode. Só o trem japonês fica danificado. Pierre Boulle, que fez a adaptação do seu livro para a tela, batalhou longamente para que fosse aceito seu próprio fim. Mas os produtores foram intratáveis. A ponte deveria ir pelos ares. O heroísmo do pequeno comando britânico não poderia ser em vão [...]. (MORIN, 1990, p. 94-95)

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Nesse sentido, de não se admitir, via de regra, o final infeliz, é emblemática a reação do público diante das situações anticonvencionais de morte dos personagens do bem, fato encarado como triunfo das forças do mal. Foi o que se viu, por exemplo, no recente lançamento do filme Harry Potter e a Ordem da Fênix (julho de 2007), em Fortaleza, quando dois adolescentes (Karine Teixeira e João Pedro Arrais) foram entrevistados pelo jornal Diário do Nordeste, após a sessão. Karine confessou sua decepção pela morte do personagem Cirius Black. “Não gostei, acho que ele não deveria ter morrido”, afirmou. Já o segundo descartou qualquer possibilidade de Harry Potter sucumbir no último episódio da série, hipótese alimentada pela autora, a britânica J. K. Rowling. “Nem pensar em matar Harry no próximo filme. Isso não será legal e deixará todo mundo triste”, disse João Pedro Arrais. Por tudo o que foi dito até esse ponto deste ensaio, não seria demais dizer, então, que o cinema interfere na realidade, manipulando-a a serviço da busca desenfreada pela felicidade humana, mesmo que efêmera e circunscrita a imagens animadas projetadas no aconchego de uma sala escura e refrigerada, regada a pipoca e refrigerante. Para tanto, não se intimida em lançar mão de conceitos falaciosos, como é o caso da divisão entre as forças indivisíveis do bem e do mal, desenvolvida por Many Haya há quase dois mil anos, num tempo em que o misticismo e a religião valiam mais do que o conhecimento. Veja-se, a propósito de manipulação, no que diz respeito à construção de inimigos comuns e, naturalmente de happy end, uma última consideração: o da desqualificação do outro, 102


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do diferente, que é sempre o elemento do mal. Quem é, quase sempre, vilão nos filmes americanos? Elementar. Os índios, desumanos e selvagens; os mafiosos italianos, imorais e violentos; os latinos, eternamente vadios e indolentes; ou os negros, que ousaram um dia se rebelar e não servir mais de mão de obra escravizada. Todos esses se materializaram nas telas como elementos perigosos, que obstaculizavam a civilização, a marcha para o progresso e o fortalecimento do american way life. Enquanto isso, as forças da lei e da ordem, os representantes do Estado, incorruptíveis, éticos e capazes de arriscar as próprias vidas para salvar o gato de uma criança que ficou preso no telhado não falham jamais. Se o filme for de guerra, o “eixo do mal” será sempre o formado pelas nações contrárias. A tal ponto que ninguém, ou quase ninguém, praticamente se deixa comover por algumas toneladas de dinamite jogadas de avião em cidades povoadas por civis alheios ao conflito. Eles fazem parte do inimigo que, “covardemente”, atacou de surpresa os soldados do bem numa base no meio de um oceano qualquer. Os bombardeados são civis, mas pertencem à nação agressora e merecem ser varridos da face da terra. Os infiltrados têm o poder de romper, mesmo que por um breve tempo, essa construção maniqueísta inoculada pelo cinema nos corações e cérebros dos homens e das mulheres membros da cultura ocidental. Não há bem nem mal na trama dirigida por Martin Scorsese. Melhor dizendo: o bem e o mal estão por todas as partes na trama dirigida por Martin Scorsese. Ninguém é melhor ou pior do que ninguém. Ninguém vai ser imolado em praça pública ou pregado numa cruz para salvar os 103


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pecados do mundo. As moléculas de todos estão impregnadas de tudo, num princípio semelhante (ou igual) ao que determina a própria vida. As atitudes variam com o momento. “Ser herói ou criminoso, com uma arma na mão apontada para você, não faz diferença”, filosofa Frank Costello (Jack Nicholson). Não existe a linha mais tênue a separar as duas forças, simplesmente porque elas estão misturadas, visceralmente ligadas, como antes do começo de tudo, no mais profundo dos sonos vividos no ventre primitivo.

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Referências Bibliográficas BERGSON, Henri. Matéria e memória — ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de: Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BUBER, Martin. Imagens do bem e do mal. Petrópolis: Vozes, 1972. Harry Potter – fãs lotam cinemas na estreia do novo filme. Diário do Nordeste, Fortaleza, 12 jul. 2007. Caderno Cidade. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de: José Otávio Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago Editorial, 1997. JAPIASSÚ, Hilton e DANILO, Marcondes. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. LEITE, Sidney Ferreira. O cinema manipula a realidade? São Paulo: Paulus, 2003. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Tradução de: Maura Ribeiro Sardinha. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. PIRES, Zeca. Cinema e história — José Julianelli e Alfredo Baumgarten, pioneiros do cinema catarinense. Blumenau: Edifurb; Cultura em Movimento, 2000. RAMONET, Ignácio. Propagandas silenciosas — massas, televisão, cinema. Petrópolis: Vozes, 2002. SERRES, Michel. Os cinco sentidos — filosofia dos corpos misturados. Tradução de: Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

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Registros da vanguarda gastronômica: imagens de uma cozinha criativa Cynthia Luderer

RESUMO

O presente artigo traz uma análise do filme El Bulli: cooking in progress, um documentário de produção alemã que registrou a rotina da equipe do então restaurante catalão EL Bulli, um espaço emblemático para a gastronomia contemporânea, que era dirigido pelo chef de cozinha Ferran Adriá. A película é uma mostra do espetáculo que vem sendo valorizado em torno da gastronomia de vanguarda. Além disso, apresenta dispositivos que valorizam um cenário que favorece a tecnologia e um modelo de gestão de pessoas relacionado a um mercado capitalista que prima pela inovação. O enredo apresenta fotografias que incitam a discussão sobre as questões urbanas e a fuga dessas espacialidades e, esses aspectos, entre outros apresentados, podem ser discutidos sob o olhar da psicanálise. Palavras-chave: Gastronomia. Chefs de cozinha. El Bulli. Cozinha de vanguarda. Criatividade.

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A

gastronomia tem se mostrado um fenômeno cultural na última década no Brasil, e uma parte deste histórico está relacionado ao trabalho desenvolvido pelo chef de cozinha catalão Ferrán Adriá. Esse profissional tem se destacado por estar à frente do que ele mesmo intitula como sendo uma cozinha de vanguarda. Adriá foi apontado constantemente, nos últimos anos, como o melhor cozinheiro do mundo por diversos veículos de comunicação, e seu prestígio tem se estendido para além dos ambientes gastronômicos. Esse chef é o profissional que estava no comando do restaurante El Bulli, tema central do filme aqui abordado. Esse documentário torna-se importante não apenas por ser uma fonte de registro de um ambiente que se tornou emblemático para a gastronomia, mas também por trazer outras abordagens bastante incipientes da contemporaneidade, as quais merecem ser discutidas, dentre elas, a criatividade. O filme foi lançado em 30 de março, junto a uma série de promoções culturais programadas para evidenciar o fechamento do El Bulli como restaurante, fato que ocorreu em 30 de julho de 2011, e, assim, promovê-lo como uma fundação que se constituirá a partir de 2014. Portanto, é clara a estrutura de marketing e publicidade evidenciada em torno do documentário de produção alemã. Isso, entretanto, ainda que relevante, não o desmerece, pois ele torna-se um registro importante para esclarecer, aos adeptos da área da gastronomia, as lendas que repercutiam sobre esse renomado restaurante.

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O filme enuncia as imagens dos ambientes que eram ocupados pelos respectivos protagonistas do El Bulli, ou seja, os chefs da equipe de Adriá. A rotina anual e diária que viviam esses sujeitos é elucidada de maneira linear, demonstrando as ações cotidianas e o ambiente de trabalho da equipe. Algumas cenas são peculiares e convidam o público a refletir sobre as ações a que são submetidos os profissionais de uma cozinha. Porém, o que mais se evidencia no filme são os aspectos de gestão e as relações interpessoais de um ambiente coletivo de trabalho. A figura estereotipada de um chef de cozinha temperamental se apresenta em algumas cenas, e esse papel é designado a Adriá. Por sua vez, o chef é evidenciado no filme como uma personagem que ocupa o papel de líder-gestor, o que requer precisão das ações de sua equipe. As personagens que ocupam o papel de chefs de cozinha estão relacionadas aos seus auxiliares diretos: Oriol Castro, Eduard Xatruch, Eugeni de Diego e Mateu Castañas. Os rapazes tomam quase todas as cenas do filme em que se exalta a importância do diálogo e da comunicação verbal e não verbal na relação interpessoal com os demais membros da equipe. Um fato pertinente a apontar em relação ao destaque que é dado a esses profissionais no enredo é que eles apresentam um perfil estético masculino valorizado nas narrativas midiáticas, ou seja, traços, acessórios e marcas que contribuem para que sejam enquadrados como galãs. Essas características tornam-se dispositivos facilitadores para convocar um público que se identifica com elas, tendo em vista que “o dispositivo busca capturar a atenção, motivar a fidelidade, a resposta ativa 111


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do consumidor em sua força de ouvidor, de seguidores de valores de consumo, de repercutidor, de consumidor”. (PRADO, 2010, p. 67) Outro aspecto elucidado no filme e que merece atenção são as contraposições das imagens das espacialidades que são tomadas em alguns trechos. Ainda que elas tenham um teor singular por ilustrar o entorno — rompendo o movimento contínuo dos ambientes fechados que servem como principais cenários do enredo —, deixam de ser aproveitadas para conectarem-se com o contexto da criatividade, um tema bastante exacerbado no documentário. A narrativa está estruturada em duas partes distintas, replicando o ciclo que vivia a equipe do restaurante em cada período do ano. Ou seja, de novembro a maio e de junho a outubro. A primeira parte é focada em um ambiente inserido na cidade de Barcelona, que servia como a cozinha-laboratório experimental para que a pequena e seleta equipe de chefs do El Bulli desenvolvesse suas habilidades investigativas com os alimentos. Esse panorama foi rompido poucas vezes, por meio de cenas que ilustravam a busca dos chefs pelas matérias-primas nos espaços dos barrocos mercados da capital catalã. O complexo mapa de informações — com coloridas e diversas formas expressas nos lugares visitados pelos sujeitos, acoplado aos diálogos travados com a coletividade — apresenta mensagens que agregam e favorecem o processo de criação (cf. LUDERER, 2007). Mas os rápidos mergulhos dos chefs na diversidade cultural do ambiente urbano foram pouco aproveitados como aspectos vinculados à criatividade. Essa experiência dos 112


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profissionais restringiu-se aos limites encontrados por eles no que tange às necessidades implicadas à disponibilidade sazonal da matéria-prima que procuravam. Desse modo, o híbrido cenário dos mercados de alimentos se destacou no enredo como um refúgio estratégico para trazer um colorido à tela, divertir o espectador com alguns personagens pitorescos e quebrar a extensa sequência de cenas desenvolvidas no ambiente interno da cozinha-laboratório, onde o prisma das cores era mais reduzido. Enquanto o foco das cenas estava neste ambiente, a evidência era dada aos diálogos reflexivos travados entre os chefs na busca pelas novas descobertas. Evidencia-se que, naquele momento, havia a oportunidade de a equipe jogar com as tentativas e os erros, construindo-se um repertório de ações que rechaçavam um dos aspectos mais limitadores presentes na rotina de uma cozinha profissional: o tempo. O contraponto desse episódio e que se apresenta como figura limitadora ficou a cargo do papel do chef Ferrán Adriá, que, na condição de líder-gestor, é sempre aguardado pelo pequeno grupo para sancionar, ou não, as ações e os resultados ali encontrados. Esse cenário, sob o ponto de vista do tema da criação, favorece as mensagens vinculadas ao mercado de negócios, valorizando inclusive os estereótipos promulgados pelo senso comum em torno do processo criativo. Desse modo, a memória, o acaso, a pluralidade dos sentidos que englobam o fazer culinário (além de toda a complexidade que está presente nas rotinas dos protagonistas, imbuídos num movimento de ir e

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vir) deixam de ser valorados no texto, e a criatividade passa a ser enunciada como um processo linear. Há um discurso explícito de Adriá, em uma de suas falas, que aponta o processo criativo como complexo, quando tenta expressar ao grupo dos jovens chefs, recém-chegados à equipe, que as descobertas não são frutos de passes de mágica. Mas, outras falas, direcionadas pela mesma personagem, ou pela de Oriol, fazem-nos deduzir que as conquistas inovadoras estariam implicadas a uma necessária prática produtiva, subentendida como fordista. Enquanto o primeiro destaca que no El Bulli está implicado o trabalho diário, diário, diário, outro momento tônico, que fica a cargo desse seu auxiliar, seria quando ele vem ditar aos calouros do restaurante que era preciso, naquele lugar, que trabalhassem como a precisão de relógios. Posto a gastronomia se firmar, cada vez mais, como parte da esfera da arte — inclusive com a participação do próprio Adriá em eventos de grande representabilidade nessa área, como ocorreu em 2007, quando ele fez parte do Documenta de Kassel (TRIGO, 2009, p. 92) —, seria oportuno relacionar as práticas culinárias aos conceitos da crítica genética e dos processos de criação (cf. SALLES, 2004, 2006). No entanto, o filme demonstra que essas metodologias, ora aplicadas para analisar a criatividade de outras expressões artísticas e culturais, ainda não são aplicadas quando se aborda a gastronomia. A segunda parte do filme ilustra a rotina que os profissionais mantinham entre os meses de junho a novembro, quando o El Bulli recebia o público externo (os comensais) e o interno, os vários profissionais estrangeiros que chegavam para fazer 114


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parte da família El Bulli8 naquela temporada. Desse modo, o cenário invertia-se ao da primeira parte do enredo, pois será no ambiente interno do restaurante que os sujeitos encontrarão o movimento, o colorido e a pluralidade cultural. Assim, para escapar desse agitado espaço, os chefs buscavam o descanso no quintal do El Bulli, ou seja, no paradisíaco cenário da praia de Cala Montjoli, onde estava instalado o estabelecimento. As tomadas da agitada cozinha do restaurante denunciaram que o processo de criação dos chefs não havia terminado no reduto da cozinha-laboratório localizada em Barcelona. Nessa contraposição entre os espaços internos e externos, valorizados por tomadas nas duas partes do filme, a árdua rotina dos chefs era buscar inovações, a partir de novas criações, para poder surpreender o comensal, que se deslocaria até ali para se surpreender com uma sequência de 35 a 40 iguarias, que seriam experimentadas em um período de três a quatro horas. Falhar em uma estrutura como essa seria uma heresia, e os diálogos são claros ao serem proferidos nesse sentido. Enquanto Ferrán Adriá determina, para seus auxiliares diretos, que não lhe deem nada para ele provar sem saber se estaria a contento do chef, Oriol Castro alerta os calouros que iniciam na temporada do El Bulli que ali não se poderia falhar em nada. O espaço da produção do restaurante tornou-se uma vitrine, tanto ou mais destacada do que o salão. As cenas de visitantes na cozinha fazem parte do enredo e demonstram que a casa tornou-se um lugar que estava além da nutrição alimentar, 8 • Termo direcionado por Adriá para designar a equipe de 75 pessoas que faziam parte do El Bulli.

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ou mesmo dos encontros dos que queriam ver e serem vistos. Ali estava um modelo empresarial constituído que se tornou paradigmático para o mercado capitalista contemporâneo. Na estrutura instituída pela sociedade moderna líquida — termo este aplicado por Bauman (2001) para designar as constantes mudanças que são necessárias na atualidade para sustentar a bolha do consumo —, as práticas criativas passaram a fazer parte do repertório como uma exigência. Desse modo, para acalmar a ânsia cobrada pelo mercado, o cenário da praia de Cala Montjoli é explorado no filme como a espacialidade paradisíaca e acolhedora para aliviar as rígidas cobranças impostas pelo mundo corporativo que também passaram a fazer parte dessa família. Ainda que o termo família seja pouco aplicado nos diálogos do texto cinematográfico, a performance das personagens principais, ou seja, Adriá e Oriol Castro, enuncia uma figura paterna no enredo. O primeiro apresenta o perfil mais autoritário, ocupando por vezes o papel de pai dos membros da equipe que lhe estão mais próximos. Oriol, por sua vez, ao ocupar o papel de filho, respeita a voz do pai, Adriá, mas não se exime de expor, nas oportunidades que aparecem, suas reflexões e determinismo a favor de causas específicas. Como pai, Oriol se apresenta mais complacente do que o modelo paterno representado por Adriá, e atua junto à equipe como um mestre e um provedor responsável pelos diversos atos desenvolvidos pelos demais. Esse modelo apresentado deixa uma ponte para que o enredo seja refletido sob o olhar da psicanálise, para verificar, 116


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a partir dos papéis desempenhados pelos protagonistas, os conceitos apresentados por Lacan sobre a imago paterna e o Nome-do-Pai. Ainda é possível discutir, nesse mesmo âmbito científico, o conceito de família empregado e defendido pela equipe El Bulli e as ações empregadas entre seus pares. Para tanto, torna-se pertinente dialogar com a discussão tomada por Birman (2003, p. 97), quando ele aborda a fraternidade e os impasses da figura do pai na atualidade. Este pesquisador articula o tema a partir dos aspectos discutidos por Freud e que estariam relacionados ao período moderno, o que o faz demonstrar que existe a necessária reflexão sobre essa questão quando vinculada ao tempo presente. Desse modo, o diálogo entre os dois textos — o do enredo cinematográfico com o acadêmico — mostra-se oportuno para o desdobrar das mensagens enunciadas no filme que recaem sobre as questões da figura paterna e de outras que circundam a atualidade. Para enfatizar o aspecto de vanguarda da cozinha El Bulli, a composição cinematográfica insiste em provocar alguns efeitos imagéticos para enunciar aspectos futuristas no cenário. Imagens como a do início do filme, em que aparece Adrià no escuro provando uma proteína fluorescente, é um exemplo. Outro, também nos primeiros instantes, está no modo como é apresentado o título da produção. A sonoplastia faz-nos acordar com esse cenário, emitindo uma composição musical produzida por efeitos sonoros com base em instrumentos eletrônicos, os quais fazem a vez dos ruídos que se ouvem dos metais em uma cozinha.

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Ainda que se construa um cenário tecnológico, composto de painéis, laptops, fumaça de nitrogênio líquido, fotografias digitais, dentre outros, o uso do papel como suporte para fazer os registros ainda era bastante presente. Esses, por sua vez, têm se tornado uma rica fonte de material para divulgação da história do restaurante, inclusive fazendo parte de exposições culturais que envolvem o nome do grupo. Ainda assim, no enredo, há um diálogo entre Oriol e Adriá em que ambos embatem sobre as prioridades dadas em torno desses materiais. Enquanto o primeiro mantém o papel como preferência para seus registros — o que para um pesquisador que investiga um processo criativo é, sem dúvida, uma das fontes mais ricas para análise —, o segundo determina que o suporte para organizar o processo deveria ser, prioritariamente, o computador. Os valores relacionados à tecnologia contrapõem-se, no cenário, com tomadas feitas pelas câmeras em que se notam as habilidosas mãos dos cozinheiros (manuseando partes de alimentos) que não são comumente vistas por aqueles que não desenvolveram afinidade com os ambientes culinários. O zoom das câmeras permite ao público perceber, com nitidez, a textura de alguns alimentos e o modo como são tratados pelos cozinheiros. As cenas que enfocam as ações dos chefs com as facas, e o preciso uso delas, demonstram o que Sennett (cf. 2009, p. 188-190) aponta sobre esses profissionais e o uso de suas ferramentas tidas como as mais importantes. Para o autor, as facas, quando usadas pelos chefs, tornam-se a extensão do conjunto

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de seus antebraços e mãos e denunciam que “o autocontrole anda de mãos dadas com a tranquilidade”. Outras cenas também apontam as necessárias mãos dos profissionais, essa parte do corpo que, segundo o mesmo autor, “é dotada da maior variedade de movimentos, que podem ser controlados como bem queremos” (SENNETT, 2009, p. 169). Elas ilustram e valorizam aspectos singulares que são tão necessários para a organização do cenário do El Bulli quanto os próprios alimentos. Desse modo, veem-se, por exemplo, as mãos de cozinheiros empenhadas em compor um mosaico com pedras, que fará parte do jardim do restaurante, ou cenas que demonstram as mãos de profissionais da equipe segurando um ferro de passar roupa que desliza sobre as toalhas estendidas sobre as mesas do salão. Nesse embate entre um discurso que valoriza a tecnologia ou o corpo e a mente humana, ou ainda as contraposições dos espaços urbanos e os paradisíacos cenários em que se ouvem as ondas do mar, o enredo deixou o tema da sustentabilidade em aberto. Esse discurso foi apenas esboçado no início do filme, quando se demonstrava o interesse da equipe em buscar produtos sazonais para fazer parte do cardápio. O Brasil foi citado duas vezes nos diálogos e, em ambos os casos, relacionado aos produtos diferenciados que tem a oferecer à gastronomia. No conjunto, nota-se que o teor que prevalece no enredo comunga com o que é destacado nas cenas selecionadas do trailer do filme, ou seja, o primor dado aos aspectos relacionados à gestão e à inovação. Mas, isso não impede que outras áreas possam apoiar-se no documentário para invocar reflexões 119


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diversas, mesmo porque o tema da gastronomia é, acima de tudo, complexo, interdisciplinar e transdisciplinar.

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Referências bibliográficas ADRIÁ, Ferran. La comida de la família — coma lo que se comía em El Bulli de seis y media a siete. RBA: Barcelona, 2011. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. BIRMAN, Joel. Fraternidades: destinos e impasses da figura do pai na atualidade. PHISIS: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 13 (1): 93-114, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/physis/v13n1/a05v13n1. pdf>. Acesso em: 29 abr. 2012. LUDERER, Cynthia. O processo de comunicação e criação do carnavalesco Raul Diniz. Dissertação de mestrado apresentada no Programa de Comunicação e Semiótica-PUC, São Paulo, 2007. PRADO, José Luiz Aidar. Convocação nas revistas e construção do a mais nos dispositivos midiáticos. Matrizes, dossiê, p. 63-78. Ano 3, n. 2, jan/jul 2010. Disponível em: <www.matrizes.usp.br/index.php/matrizes/article/ download/139/228>. Acesso em: 25 abr. 2012. SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 2004. ______. Redes da criação-construção da obra de arte. São Paulo: Horizonte, 2006. SENNETT, Richard. O artífice. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009. WETZEL, Gereon. El Bulli: cooking in progress. [Filme]. Produção de Westdeutscher Rundfunk (WDR), BKM, Bayerischer Rundfunk (BR), FFF Bayern, Kuratorium Junger Deutscher Film, if... Productions, direção de Gereon Wetzel. Alemanha. Site oficial do filme <http://www.elbulliderfilm.de>, 2010, 108 min.

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Documentário científico: reconhecimento internacional de filme brasileiro sobre o transmissor da dengue Augusto Diniz

RESUMO

O propósito deste trabalho é relatar a história do documentário O mundo macro e micro do mosquito Aedes aegypti: para combatê-lo é preciso conhecê-lo, produzido pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC) e dirigido por Genilton José Vieira, chefe do Serviço de Produção e Tratamento de Imagens do IOC. Lançado em 2004, o filme recebeu vários prêmios internacionais da área científica e é uma referência no Brasil para entender o ciclo de vida do principal vetor da dengue. A repercussão do trabalho foi incomum no País, naquilo que se refere à sua função como produto de divulgação científica. A persistência do diretor do filme em reunir imagens do mosquito transmissor da dengue, que exige elevada técnica de captação de imagem — na maioria das vezes não visível a olho nu — também merece reflexão neste trabalho. Palavras-chave: Aedes aegypti. Dengue. Documentário científico. Macrofotografia. Macrofilmagem.

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Introdução

O

documentário O mundo macro e micro do mosquito Aedes aegypti: para combatê-lo é preciso conhecê-lo, produzido pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC, unidade de pesquisa biomédica da Fundação Oswaldo Cruz — Fiocruz, vinculada ao Ministério da Saúde) e dirigido por Genilton José Vieira, chefe do Serviço de Produção e Tratamento de Imagens do IOC, é uma contribuição para o entendimento do ciclo de vida do mosquito. Um maior conhecimento do Aedes aegypti permite ao poder público a adoção de políticas mais claras e eficientes de combate à dengue — doença cujo principal vetor de transmissão é o Aedes aegypti e que se tornou um problema de saúde pública no País e no mundo. O filme, de aproximadamente 12 minutos, mostra uma sequência de imagens do ciclo de vida do vetor, utilizando recursos de macrofotografia e macrofilmagem, além de computação gráfica. O documentário foi feito utilizando imagens reais, capturadas com uma espécie de lupa acoplada a uma câmera, e virtuais, produzidas por computação gráfica, descrevendo o ciclo de vida do mosquito Aedes aegypti. Essas imagens — muitas nunca mostradas, no Brasil, ao público leigo — incluem a apresentação de eventos morfológicos do mosquito, a maioria imperceptível a olho nu: o ovo, a fase larvária, a diferenciação de larva para pupa e a fase adulta do mosquito, caracterizando, dessa forma, o seu ciclo de vida em seus criadouros naturais e artificiais.

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O documentário apresenta apenas uma narração na abertura, a partir de texto criado pelo próprio Genilton Vieira, explicando o conteúdo do filme. No restante, as imagens são exibidas acompanhadas de uma trilha sonora. O diretor do filme, Genilton Vieira, que teve o auxílio direto de seu colega de departamento, Leonardo Marcus Perim, na realização das animações, explica que o documentário é basicamente estruturado em imagem e música. Ele resume a obra como uma reunião bem sucedida da arte com a ciência. Para avaliar o potencial comunicativo do filme O mundo macro e micro do mosquito Aedes aegypti: para combatê-lo é preciso conhecê-lo, dentro do âmbito da divulgação científica, Juliana Barbosa Duarte (2008, p.132) realizou pesquisa junto a profissionais da área de saúde e também da área de comunicação, arte e design, para que, a partir de um cálculo de base científica, se chegasse ao real valor de comunicação do documentário. Pelo cálculo apurado por ela, cujo trabalho foi apresentado em dissertação de mestrado, o filme apresenta potencial de comunicabilidade de 75,87%. Ou seja, 75,87% de capacidade para desencadear uma interpretação sobre o ciclo de vida do Aedes aegypti para quem assiste ao documentário. No âmbito da comunicação, portanto, o documentário exerce um papel muito importante na divulgação científica, transmitindo para o público leigo a inovação e o conhecimento gerados pela ciência (DINIZ, 2004, p.72). O filme utiliza, também, uma plataforma inovadora, no Brasil, de exposição do trabalho científico: o DVD (digital vídeo disc). A tecnologia é um avanço do CD (compact disc), que combina, ao mesmo 125


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tempo, informações de som, vídeo e dados em um único disco (DIZARD, 2000, p.63), para exibição. Atualmente, o documentário está disponível na internet, seguindo a tendência do meio de, cada vez mais, se tornar, também, uma ferramenta de transmissão de produtos audiovisuais, com o aumento da velocidade das conexões (CRUZ, 2008, p.84).

Reconhecimento O documentário começou a ser produzido durante uma epidemia de dengue no Rio de Janeiro, em 2002. Foram dois anos de produção. O filme foi finalizado em 2004. Até 2008, países do exterior pediram 131 cópias do filme. No Brasil, essa conta ultrapassa 10 mil. Muitos pedidos foram atendidos, informando-se o endereço eletrônico na internet para acesso ao filme, na íntegra, pelo portal do Instituto Oswaldo Cruz. Foram produzidas três mil cópias do documentário. No projeto Ciência Móvel: Vida e Saúde para Todos, da Fiocruz — iniciativa inaugurada em outubro de 2006, pela qual são levadas exposições, jogos, equipamentos interativos, multimídias, oficinas, vídeos científicos, contadores de histórias e palestras para cidades da região Sudeste do Brasil —, o filme O mundo macro e micro do mosquito Aedes aegypti foi exibido, de 26 de abril de 2007 a 22 de maio de 2009, 86 vezes, para um público de 3.227 pessoas, em diversas cidades da região Sudeste. Marcus Soares, do projeto Ciência Móvel, ressalta a importância de exibição do filme, não só por ter sido feito pela instituição na qual trabalha, mas também pelo fato de levar 126


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informação sobre o ciclo de vida do Aedes aegypti, para que possa ser devidamente combatido. Após cada exibição do filme dentro dessa iniciativa, um debate em torno do tema era realizado com os expectadores. No início do segundo semestre de 2007, o documentário de Genilton Vieira começou a ser usado como uma das ferramentas educacionais do projeto “Onde está a dengue em Saquarema?”. Saquarema é um município da Região dos Lagos do Estado do Rio de Janeiro. Catarina Giacoia da Costa, professora da rede pública envolvida na iniciativa, explica que o filme foi exibido, inicialmente, em 2007, para alunos do segundo segmento do Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries) da rede municipal, representando um total de cerca de três mil alunos alcançados. No ano seguinte, os estudantes do primeiro segmento do Ensino Fundamental (3ª e 4ª séries) da rede municipal também foram envolvidos, além de alunos de Ensino Médio das redes municipal, estadual e particular do município — 45 estabelecimentos de ensino, no total. Segundo Costa, cerca de oito mil pessoas assistiram ao filme. Em 2009, o projeto aconteceu apenas em escolas da rede municipal — 35, no total. Este ano o projeto envolve, aproximadamente, seis mil alunos, conforme informação da educadora. Ela avalia que o documentário exibido no projeto de Saquarema foi um instrumento informativo que despertou a curiosidade e o interesse dos alunos pelo tema. O acesso ao filme pela internet segue o foco de dengue. Se há muita visita ao filme via internet, um local pode estar passando por uma epidemia de 127


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dengue. A epidemia de dengue na Bahia no início de 2009, por exemplo, fez com que o filme fosse muito acessado na região pela internet, de acordo com a base de dados de contagem de acesso ao portal do IOC. A primeira apresentação pública do documentário O mundo macro e micro do mosquito Aedes aegypti foi no II Simpósio de Ciência, Arte e Cidadania, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no dia 11 de setembro de 2004. Em dezembro do mesmo ano, foi exibido na Bienal de Pesquisa da Fiocruz. Em maio de 2005, foi apresentado no Simpósio Internacional de Etimologia na Ilha de Creta, na Grécia — a primeira exibição fora do Brasil. O documentário foi premiado com o 2º lugar no Festival Internacional de Cinema Mif-Sciences, em Havana, Cuba, em junho de 2006. Concorreu com 116 produções audiovisuais de diversos países. Genilton Vieira chorou com a premiação, mas acharam que o diretor tinha se abatido com a segunda colocação. Na verdade, chorava de alegria com o reconhecimento. Ele lembra que, quando retornou ao Brasil, foi recepcionado na Fiocruz, logo após deixar o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. O filme foi a única produção brasileira a participar do 15º Festival de Cinema sobre Medicina, Saúde e Telemedicina (Videomed), realizado em novembro de 2006, em Badajoz, na Espanha, no qual ganhou menção honrosa. Na mesma época, Genilton Vieira foi convidado, inesperadamente, para participar da reunião da Associação Mundial de Filmes de Medicina e Saúde, também em Badajoz, tornando-se 128


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membro da sociedade na ocasião. Já estava com passagem marcada para Madri. Porém, pediram que ficasse para o encontro da entidade. A bandeira brasileira foi postada, às pressas, na recepção da reunião. Para isso, improvisaram uma bandeira nacional, revelou ele sobre o inesperado convite, fruto da repercussão de seu filme no Videomed, que aconteceu quase que simultaneamente ao encontro da associação. O documentário foi exibido, ainda, na jornada mensal de cinema científico da Associação Espanhola de Cinema Científico (Asecic), que aconteceu em Madri, em março de 2007, e na 2º Conferência Internacional EMTECH — 44º Festival Internacional TECHFILM, em Praga, na República Tcheca, também em março de 2007. Nesse último, Genilton Vieira recebeu menção honrosa pelo filme, entre mais de 350 inscritos, 120 selecionados para a final e apenas 12 contemplados. O TECHFILM é a principal e mais antiga mostra de filmes científicos do mundo. Em abril de 2007, o filme foi apresentado no Festival Internacional de Filmes Científicos de Atenas, na Grécia — única produção latino-americana dentre os 40 filmes selecionados —, e voltou a ser premiado. O documentário participou, ainda, do festival italiano de filmes científicos Vedere la Scienza, realizado em Milão, na Itália, em março-abril de 2008. Em encontro anual, realizado em novembro 2007, em Paris, na França, a Associação Internacional de Mídia Científica (IAMS, da sigla em inglês) também aceitou Genilton Vieira como seu mais novo membro. O grupo reúne os mais importantes profissionais dedicados à produção e ao desenvolvimento 129


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de mídia científica no mundo: existem 112 membros. Genilton Vieira foi o segundo brasileiro a ingressar na entidade e o terceiro sul-americano. O documentário sobre o Aedes aegypti impulsionou a realização, pela primeira vez no Brasil, em novembro de 2007, do Videomed. O evento, que aconteceu no Rio de Janeiro, é realizado desde 1985, na Espanha e em países da América Latina. Na ocasião, foram exibidas 36 produções brasileiras e estrangeiras. O trabalho de Genilton Vieira propiciou a criação, ainda, de uma produtora de filmes científicos, a Fiocruz e Vídeo, possibilitando a comercialização de filmes científicos pela instituição. A proposta facilita a inserção de trabalhos desse tipo no exterior. O setor no qual Genilton Vieira atua, por exemplo, já havia sido credenciado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) como uma produtora de filmes, para que o seu documentário pudesse participar do festival internacional MifSciences, em Cuba, em junho de 2006, que valeu a sua primeira distinção. Os canais de televisão por assinatura Discovery Channel e Animal Planet exibiram em junho de 2008 e no início de 2009, na grade da programação brasileira, uma versão compacta de três minutos do documentário. Ser um brasileiro a participar de festivais internacionais foi bom por um lado, de acordo com Genilton Vieira, mas também expôs a deficiência, no Brasil, da divulgação científica. No festival Mif-Sciences (Cuba), onde o documentário sobre o Aedes aegypti foi pela primeira vez premiado, foram exibidos 34 filmes da Argentina, nove do Chile e seis de Cuba. Do Brasil, só o filme 130


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do IOC. Para Genilton Vieira, há a necessidade de se pensar, no Brasil, a produção de mais filmes científicos, gerando oportunidades para produtores brasileiros na área, além de possibilidades de cooperação internacional. Aedes aegypti e Aedes albopictus — Uma Ameaça nos Trópicos é o título do segundo documentário sobre os transmissores da dengue dirigido por Genilton Vieira, lançado em 2009. O filme, como o primeiro, é composto de imagens reais e virtuais dos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus, mostrando os continentes de origem, a sua dispersão pelo mundo, as suas características morfológicas, os seus hábitos alimentares, os seus mecanismos de alimentação, a sua reprodução e o ambiente onde vivem. A linguagem é diferente do primeiro. O trabalho é mais didático e tem narração durante todo o tempo de exibição. No segundo documentário, a trilha sonora é ainda composta de instrumentos de percussão a partir de materiais jogados no lixo, como latas, tubos etc.

A epidemia que Deu Origem ao Filme A dengue, cujo vetor principal de transmissão da doença é o Aedes aegypti, está presente nas regiões tropicais e subtropicais do mundo, como América Latina e alguns países da África e da Ásia, particularmente em áreas urbanas e semiurbanas. A enfermidade é responsável por uma média anual de 50 a 100 milhões de infecções no mundo, sendo 500 mil casos hospitalares e de 15 a 20 mil mortes, na maioria de crianças. 131


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Muito adaptado ao ambiente modificado pelo homem, o Aedes aegypti utiliza recipientes fabricados pelo próprio ser humano para depositar seus ovos, chamados de criadouros artificiais, como: caixa d’água, pratos sob vasos de planta, vasos de flores, cisternas, garrafas, pneus descartados etc. O mosquito pode ainda se reproduzir, ocasionalmente, em criadouros naturais (Wellcome Trust e Fundação Oswaldo Cruz, 2009). De acordo com a Fiocruz, o mosquito adulto Aedes aegypti sobrevive, em média, por cerca de 30 dias. Durante a estação chuvosa (no caso brasileiro, no verão), quando a sobrevivência do mosquito é mais prolongada, o risco de transmissão do vírus pode ser maior. Novos padrões epidêmicos emergiram nas Américas entre as décadas de 70 e 80, aumentando a incidência da dengue, segundo a Fiocruz. Foram eles: interrupção dos programas de erradicação do mosquito, urbanização mal planejada, crescimento da economia e maior circulação de pessoas e vírus. No Brasil, há 3.970 municípios infestados. Atualmente, a dengue é endêmica com surtos epidêmicos, geralmente associados à introdução de novos sorotipos. Em 2001, o sorotipo DEN-3 foi introduzido no Estado do Rio de Janeiro. Como consequência, no verão de 2001-2002 houve uma grande epidemia no País. Em 2002 (mesmo ano em que o documentário O mundo macro e micro do mosquito Aedes aegypti: para combatê-lo é preciso conhecê-lo começou a ser produzido), foram registrados 800 mil casos de dengue no Brasil, correspondendo a 80% das ocorrências de toda a América. Surto de dengue, em geral, inicia-se no Rio de Janeiro, porque o Estado recebe um grande 132


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fluxo de turistas, principalmente no verão, de acordo com a Fiocruz. Algumas outras espécies de Aedes transmitem a dengue, porém Aedes aegypti é o vetor da doença mais importante no mundo. Outros vetores existentes são: Aedes albopictus e Aedes polynesiensis. A dengue é transmitida entre humanos pela picada da fêmea do mosquito Aedes durante o repasto sanguíneo (alimentação de sangue, no caso do mosquito Aedes, principalmente no início da manhã e no final da tarde). O comportamento alimentar do mosquito fêmea é essencial para a transmissão da dengue, pois se trata da principal via de infecção humana. Ao se alimentar de sangue humano, uma fêmea de mosquito infectada transmite a dengue ao homem. É durante o repasto sanguíneo que o mosquito fêmea não infectado adquire a infecção, a partir de um humano. Apenas as fêmeas dos mosquitos se alimentam de sangue. A dengue clássica é uma doença febril aguda. São observadas as seguintes manifestações no homem: febre (geralmente alta, de início abrupto, e com duração de até sete dias), cefaleia, dor retro-orbitária (atrás dos olhos), mialgia (dor muscular) e artralgia (dor na articulação), exantema maculopapular (erupção cutânea) e leucopenia (número de leucócitos abaixo do normal). A febre hemorrágica da dengue, que pode levar o ser humano infectado à morte, é a manifestação mais grave da infecção por dengue. As suas principais características são: febre, trombocitopenia (número de plaquetas abaixo do normal),

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extravasamento de plasma devido ao aumento da permeabilidade capilar e tendências hemorrágicas.

O Documentário e o Vídeo-Educativo

O documentário, segundo RAMOS (2008, p.22): ...é uma narrativa basicamente composta por imagens-câmera, acompanhadas muitas vezes de imagens de animação, carregadas de ruídos, música e fala (mas, no início de sua história, mudas), para as quais olhamos (nós, espectadores) em busca de asserções sobre o mundo que nos é exterior, seja esse mundo coisa ou pessoa. Em poucas palavras, documentário é uma narrativa com imagens-câmera que estabelece asserções sobre o mundo, na medida em que haja um espectador que receba essa narrativa como asserção sobre o mundo. A natureza das imagens-câmera e, principalmente, a dimensão da tomada através da qual as imagens são constituídas determinam a singularidade da narrativa documentária em meio a outros enunciados assertivos, escritos e falados.

Ainda para Ramos (2008, p.72), o documentário pode se utilizar de diversas mídias para ser veiculado, como cinema, televisão e internet. De acordo com o autor, uma narrativa documentária pode ser plenamente aceita se composta por imagens animadas ou feitas no computador: “animação e documentário 134


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são campos que caminham de mãos dadas”. Ele afirma que pode parecer contradição para o documentário, que é comumente relacionado a conceitos de realidade e imagens realistas, ser composto por imagens de animação ou por meio da tecnologia, mas não o é.

A imagem animada constitui-se plenamente, dentro de nossa definição de documentário, como parte do conjunto de procedimentos estilísticos através dos quais a narrativa documentária estabelece asserções sobre o mundo (RAMOS, 2008, p.72).

O autor lembra que se o documentário é uma narrativa para o espectador estabelecer asserções sobre o mundo. Importa pouco, em termos estruturais, se essas asserções são feitas por imagens animadas por computadores, desenhadas, ou se são estabelecidas por imagens-câmera. Com esse raciocínio de Ramos, tem-se, com clareza, a definição do filme O mundo macro e micro do mosquito Aedes aegypti: para combatê-lo é preciso conhecê-lo como um documentário. Estendendo a uma reflexão maior do documentário sobre o mosquito Aedes aegypti, relacionamos a sua importância dentro do contexto do vídeo-educacional. O trabalho de Genilton Vieira também se enquadra nesse campo, já que se trata de apresentação, em vídeo, de um conhecimento real, composto pelo conhecimento científico e técnico (WOHLGEMTH, 2005, p.24). 135


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O autor destaca que, para a produção da mensagem pedagógica audiovisual, faz-se necessário realizar um trabalho deliberado sobre a realidade, transformando em imagens e sons um conjunto de informações, de dados educativos e elementos de capacitação (2005, p.10). Ele ressalta, ainda, a importância da linguagem visual no processo de ensino-aprendizagem. Wohlgemth (2005, p.25) lembra o destacado papel dos signos cognitivos do vídeo educativo — ou da representação simbólica à experiência.

A pedagogia audiovisual tem por princípio recuperar, produzir, conservar e reproduzir o conhecimento popular, agregado ao conhecimento científico moderno sempre que necessário. O vídeo é utilizado por ser um meio ideal para a criação de circuitos abertos de comunicação com esse propósito, em que a informação pode entrar em qualquer ponto e ser transmitida em diferentes direções. Aqui o aspecto econômico também é importante, uma vez que os custos de produção de vídeo são muito inferiores aos do cinema e da televisão (WOHLGEMTH, 2005, p. 87).

O autor esclarece, ainda, que a linguagem audiovisual utilizada na capacitação popular fundamenta-se, primeiro, em critérios pedagógicos e, depois, em critérios estéticos, nunca na avaliação de mercado.

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Desenvolvimento do Primeiro Documentário Sobre o Aedes aegypti Genilton Vieira nasceu em 23 de setembro de 1956. Começou a fotografar aos 14 anos, incentivado por um vizinho químico, que conhecia as técnicas de revelação e fixação de imagem fotográfica. Antes, já tinha interesse pela natureza — colecionava grilo, por exemplo. Chegou a fazer um curso de fotografia no Senac. Trabalhou como office boy no Centro Integrado Empresa-Escola (CIEE) de Nova Iguaçu, ainda adolescente. Depois, Genilton Vieira se formou em Física. Começou na Universidade Federal Fluminense (UFF) e terminou na Faculdade de Humanidades Pedro II (FAHUPE). A mudança se deu pelo fato de já estar trabalhando na Fiocruz e não ter mais horário disponível para concluir os créditos na UFF. Em ambas as instituições de ensino, ajudou a área de pesquisa na produção de imagens. Como precisava ganhar dinheiro, mesmo ainda cursando a universidade, passou um período trabalhando em uma produtora de comercial. Na agência, conheceu todas as etapas de produção de um filme. Em 1981, ingressou na Fiocruz como fotógrafo. De 1986 a 1989, Genilton Vieira ainda trabalhou, paralelamente, na Universidade do Rio de Janeiro (Uerj), no laboratório da instituição de ensino, manuseando imagens. Mas por um decreto estadual, teve que optar por um dos empregos públicos. Ficou com a Fiocruz. Genilton Vieira chegou a passar quatro anos emprestado à Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), em 137


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Campos-RJ, onde teve mais tranquilidade para se aprofundar nos conceitos de macrofotografia. Na UENF montou a estrutura de fotografia da universidade. Foi na sua passagem por Campos que Genilton Vieira fotografou o primeiro mosquito Aedes aegypti. Feita em preto e branco, a imagem foi captada quando o mosquito se alimentava sobre o rabo de um camundongo. Genilton Vieira explica que a fotografia macro tem algumas particularidades em relação à fotografia convencional. Quando retornou à Fiocruz, mostrou suas fotos de mosquito e os pesquisadores ficaram muito surpresos com o resultado de seu trabalho. Já a primeira foto de mosquito Aedes albopictus surgiu quando auxiliava a produção de imagens para uma monografia de iniciação científica — aliás, esta sempre foi a principal ocupação de Genilton Vieira no IOC: produção de imagens macro para monografias, dissertações, teses, apresentações e publicações científicas ou não. Certa ocasião, de volta ao IOC, estava realizando fotos do Aedes scapularis, trazido em uma gaiola por uma pesquisadora que estudava a evolução do mosquito. No laboratório, havia vários mosquitos soltos, voando. A pesquisadora pegou um, colocou-o sobre a pele e ele fotografou. Era a sua primeira foto do Aedes albopictus. Pesquisadores brasileiros, na década de 80, estudavam o aspecto morfológico do mosquito Aedes. Porém, eles se deparavam com um problema grande: não tinham imagem de mosquito no Brasil. Usavam foto proveniente dos Estados Unidos. 138


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Foi a partir desse problema que Genilton Vieira despertou para a produção de imagens na área. Através de sua participação em um concurso de fotografia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em meados da década de 80, ele tomou consciência da qualidade de seu trabalho. Nunca havia participado de concurso. Concorreu com uma foto de uma aranha, um Aedes scapularis e um Aedes albopictus — essa última fotografada quando fazia a foto anterior, do Aedes scapularis, para uma monografia de iniciação científica, conforme relatado anteriormente. Ganhou o 1º, 2º e 3º lugares com as três fotos. Genilton Vieira começou a fazer trabalhos mais densos e completos sobre o Aedes aegypti no início da década de 90. Já dominava as técnicas de filmagem e fotografia, frutos de trabalhos anteriores, realizados na Fiocruz e, ainda, antes de ingressar nessa instituição. Ele tinha alto interesse pela macrofotografia. Na época, ninguém dominava a filmagem de mosquito em movimento no País. A proposta dele era trabalhar com o mosquito vivo, e não morto. Para isso, teria que adquirir equipamentos — isso foi feito ainda na década de 90, além de criar uma infraestrutura adequada no IOC. O reconhecimento de seu trabalho veio na epidemia de dengue em 2001, no Rio de Janeiro. Genilton Vieira já tinha todo o ciclo do mosquito registrado. Com a epidemia, o Governo Federal, inicialmente, quis criar uma rede ampla de discussão pelo Brasil em torno do tema. A da Fiocruz foi a que mais funcionou. Genilton Vieira, a partir de então, começou a montar o documentário, entendendo a importância de realizá-lo em 139


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função das discussões criadas por conta da atualidade do assunto. Ele já tinha uma ideia do filme, no qual, inclusive, não iria incluir uma narração. O jornal diário O Globo, no auge da epidemia do verão 2001-2002, foi entrevistar pesquisadores da Fiocruz sobre o problema que o Rio de Janeiro estava enfrentando. O veículo de comunicação foi até a instituição e encontrou uma foto do mosquito Aedes aegypti presa à parede, no laboratório dos pesquisadores da instituição. Então, eles perguntaram onde encontravam mais imagens do mosquito. Genilton Vieira foi indicado para o jornal. No dia seguinte, uma editora de O Globo telefonou para Genilton Vieira. Conversaram e ele informou que o jornal usava foto errada nas matérias que publicava sobre a dengue: não era do vetor Aedes aegypti, mas sim de um Aedes fluviatilis, que nem dengue transmite. Genilton Vieira foi informado pelo veículo de que a foto foi retirada na internet, de um site nos Estados Unidos. Assim, O Globo pediu-lhe fotos do mosquito, com exclusividade. Suas fotos foram publicadas em uma edição de domingo do jornal, com chamada de capa. Sobre isso, Genilton Vieira lembra uma história:

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Fui questionado por um pesquisador por que teria vendido as fotos. Retruquei perguntando a ele quantas pessoas liam um artigo científico dele. O pesquisador me respondeu: “ah, umas 200”. Em seguida, eu disse: “você imagina quantas pessoas leram a matéria


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de O Globo, publicado em um domingo”. O pesquisador concordou com minha atitude.

Depois da matéria publicada, outros veículos de comunicação pediram também, ao IOC, imagens do Aedes aegypti. Em 2004, um esboço do documentário foi apresentado por membros no Programa de Desenvolvimento e Inovação Tecnológico em Saúde Pública (PDTSP), da Fiocruz. O programa pretendia criar produtos para combater a dengue. Em uma sala repleta de pesquisadores, o seu trabalho foi aplaudido de pé. No encontro, os pesquisadores argumentaram ser o único produto criado até aquele momento que poderia obter resultado efetivo no combate à doença. Foi a partir de então que liberaram recurso financeiro destinado, exclusivamente, para finalizar o documentário, pois não havia nada igual até aquele momento. O gasto total com o filme ficou em torno de R$ 130 mil. Ainda em 2004, o filme ficou pronto.

Considerações Finais O Brasil tem um histórico de realização de documentários. Além disso, uma parte dos filmes brasileiros de longametragem de grande bilheteria reúne, de maneira expressiva, ficção com asserções sobre o mundo — como define documentário o autor Ramos (2008) —, caso de Central do Brasil e Cidade de Deus, apenas para citar dois exemplos. Porém, a sua produção na área científica é bastante incipiente, pois a divulgação da ciência está muito concentrada no trabalho impresso escrito. Não é à toa que o rádio e a televisão 141


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são os maiores alvos de debate por falta de programas voltados à apresentação de iniciativas na área. Há, sim, muitos trabalhos nesses meios de comunicação, cujos temas envolvem a saúde, mas sempre com viés de utilidade pública imediata — sem desprezar a importância dessa prática — e pouco de entendimento das raízes do problema no seu campo primário, histórico e evolutivo, da pré-situação de risco. O documentário O mundo macro e micro do mosquito Aedes aegypti: para combatê-lo é preciso conhecê-lo representa justamente esse lado da necessidade de expor e contextualizar o meio-ambiente em que vivemos e os seres vivos nele compostos. O filme faz isso, com grande capacidade de comunicação, como demonstrado a partir de exibições em projetos de orientação pública, além da dissertação analítica sobre a questão apresentada por Duarte (2008). Esse documentário comprova, ainda, o potencial do filme científico de se tornar um instrumento importante de consciência e educação do público leigo, sobre problemas de saúde do País, bem como sobre os resultados do desenvolvimento da pesquisa científica, dentro das instituições, relacionada à prática. Soma-se a isso o fato da repercussão do documentário no meio científico, já que foi analisado e distinguido no Brasil e no exterior, em ambiente de reconhecido rigor na avaliação de trabalhos para difusão pública. Em outra vertente, destaca-se o importante papel que desenvolveu o diretor do filme junto à comunidade científica, realizando diálogos necessários e criando consensos, dentro de um centro de pesquisa, sobre sua função de levar a experiência 142


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à observação pública de forma ágil, clara e objetiva. Deve-se a isso, também, a sua incessante busca em estabelecer conceitos a partir de ensaios de macrofotografia e macrofilmagem, tão essenciais para mostrar as características de um ser vivo pouco visível — no seu sentido etimológico — ao grande público.

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Referências bibliográficas COSTA, Catarina Giacoia da. DVD sobre Aedes aegypti [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <augustodiniz@uol.com.br> em 21 mai. 2009. CRUZ, Renato. TV digital no Brasil: tecnologia versus política. São Paulo: Editora Senac, 2008. DINIZ, Augusto. Entre a mídia e a ciência: perspectivas de diálogo. In: DINIZ, Augusto (org.). Comunicação da Ciência: análise e gestão. TaubatéSP: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2004. DIZARD Jr., Wilson. A nova mídia: a comunicação de massa na era da informação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. DUARTE, Juliana Barbosa. O potencial comunicativo de imagens de divulgação científica. 2008. 155 p. Dissertação (Mestrado em Educação Tecnológica) — Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008. INSTITUTO OSWALDO CRUZ. Disponível em <http://www.ioc.fiocruz. br.> Acesso em: 02 abr. 2009. O MUNDO MACRO E MICRO DO MOSQUITO AEDES AEGYPTI: PARA COMBATÊ-LO É PRECISO CONHECÊ-LO. Direção: Genilton José Vieira. Rio de Janeiro: Instituto Oswaldo Cruz & Fundação Oswaldo Cruz, 2004. DVD (12 min), son., colorido. AEDES AEGYPTI E AEDES ALBOPICTUS: UMA AMEAÇA NOS TRÓPICOS. Direção: Genilton José Vieira. Rio de Janeiro: Instituto Oswaldo Cruz & Fundação Oswaldo Cruz, 2009. DVD, son., colorido. MORAES, Denis de. O concreto e o virtual: mídia, cultura e tecnologia. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... O que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008. SOARES, Marcus. Consulta [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <augustodiniz@uol.com.br> em 13 mai. 2009. VIEIRA, Genilton José. Entrevista concedida a Augusto Diniz. Rio de Janeiro, 02 mai. 2009. WELLCOME TRUST & FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Topics in International Health — dengue. Rio de Janeiro, 2009. CD-ROM. 144


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WOHLGEMUTH, Julio. Vídeo educativo: uma pedagogia audiovisual. Brasília: Senac-DF, 2005.

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A Lição Neorrealista: a breve longa história de um movimento de resistência e libertação do cinema hegemônico9 Isabel Regina Augusto

RESUMO

O Neorrealismo cinematográfico italiano, em particular no seu caráter humanista e respectivo modelo de produção, foi apontado por cineastas e críticos na sua recepção no Brasil, a partir dos tardios anos 1940, como o ideal para uma cinematografia periférica ou “subdesenvolvida”. 9 • Texto originado da tese Neorrealismo e Cinema Novo: a influência do Neorrealismo italiano na cinematografia brasileira dos anos 60, defendida junto ao Departamento de História e Civilização do EUI — Itália, com bolsa Capes. Apresentado no VII Encontro Nacional Rede Alcar (Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia), Fortaleza, 2009. Cf. Anais Rede Alcar. Fortaleza: Unifor, 2009, p. 1-17. In: Mídia Alternativa: alternativas midiáticas. Disponível em: http://paginas.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/7o-encontro-2009-1/A/20Lição/20Neo-realista.pdf. Acesso em: 12 fev. 2012.

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De fato, este foi o modelo que estimulou o surgimento do cinema “préneorrealista brasileiro” ou “proto-Cinema Novo”, ou seja, o cinema brasileiro moderno, da segunda metade dos anos 1950, assim como o nascimento do próprio Cinema Novo nos anos 60. Este artigo visa a uma breve análise do percurso e implicações desse Movimento cinematográfico italiano, feito de manifestações, embates políticos e leis, que se refletiram na produção dos filmes. Estes, por sua vez, servem para esclarecer aspectos importantes do paradoxo que constituiu a breve vida, em território italiano, do referido Movimento, bem como sua profícua germinação no florescimento dos novos cinemas dos anos 60 pelo mundo: um modelo de cinema do “subdesenvolvimento”, o que revela a permanente atualidade da sua lição, principalmente como modelo de produção (assim como em suas valências ideológico-estéticas), para realidades de “pós-guerra permanente”, como a brasileira. Palavras-chave: História. Cinema. Pós-guerra. Neorrealismo. Subdesenvolvimento.

O breve percurso de uma escola de resistência, transgressão e libertação “O cinema italiano deve ser destruído10”

A

criação do Centro Sperimentale di Cinematografia em 1936, a inauguração dos estabelecimentos de Cinecittà em 1937, a reconstrução de uma sociedade de distribuição como a Enic, a existência de um circuito de salas deram início a um plano orgânico de reestruturação

10 • Almirante Stone — Comissão Militar Aliada, 1945, in: Quaglietti, Lorenzo. Il cinema italiano del dopoguerra. Leggi, produzioni, distribuzione, esercizio. Quaderno Informativo n. 58 della Mostra Internazionale del Nuovo Cinema di Pesaro, 1974.

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e potencialização do setor, mirando constituir um cinema de Estado na Itália, a exemplo da Alemanha, que culminou com um progressivo fechamento aos produtos norte-americanos, a partir de 193811. Ao lado das limitações de mercado, das importações e da acentuada intervenção do Estado, começaram a levantarse vozes, especialmente na revista Cinema, de Vittorio Mussolini (da “primeira série”) 12, a favor de um mais elevado grau de concentração de estruturas produtivas, até então pulverizadas 13. De 1938 a 1943, o regime fascista tentou constituir um cinema nacional: os modelos de referência foram Hollywood (no que diz respeito à organização, equipamentos, métodos de trabalho) e a cinematografia soviética, pelo seu caráter integrado de cinema de Estado. A tentativa fascista ocorreu no interior de um plano geral, visando a alcançar a autarquia em todos os setores produtivos. Teve como eixo a limitação das importações

11 • Ver Isabel Regina Augusto, Neorrealismo e Cinema Novo: a influência do Neorrealismo italiano na cinematografia brasileira dos anos 60, tese de doutorado, European Universty Institute, Firenze, 2005. 12 • Conforti, Michele & Massironi, Gianni. Il modo di produzione del neorealismo, in: Il neoralismo cinematográfico italiano, 1999. 13 • É corrente considerar que o debate sobre o Neorrealismo cinematográfico foi iniciado por um artigo “Corrispondenza da Venezia”, de Umberto Barbaro, de setembro 1939, na Revista Bianco & Nero. Em seguida, este encontrou sua sistematização teórica em uma série de artigos de Alicata e Giuseppe De Santis, nos anos 40, principalmente na revista Cinema (dirigida por Vittorio Mussolini), que preexistia à Guerra, mas que retornou em uma “nova série”. Posteriormente, a discussão foi levada por André Bazin aos Cahiers de Cinema, na França, e, principalmente, pela revista Cinema Nuovo, de Guido Aristarco, na Itália.

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de filmes americanos e a reestruturação e potencialização da indústria cinematográfica nacional14. Portanto, o Neorrealismo se originou na Itália no interior de uma estrutura de produção e de um plano cultural, anterior, com características bem definidas que tiveram a sua estruturação já durante os últimos anos do regime fascista, que caiu com a Guerra. O cinema italiano esteve, primeiro, com o regime fascista, ao lado do Eixo e, no final, com a resistência , ao lado dos aliados, na Libertação. Terminada a Guerra, entretanto, continuou no front de batalha, de modo semelhante aos embates nas trincheiras daquela que foi singular e complexa para a Itália, em particular, fascista, mas também “partigiana” — um país dividido com uma guerra civil dentro da Grande Guerra. Pelo direito à vida, o cinema italiano lutava, contemporaneamente, contra dois inimigos: o fascismo vencido, o qual renegava; a indústria hollywoodiana, bem representada pelo Film Board e P.W.B nas forças aliadas vencedoras. O Neorrealismo surgiu, justamente, desses confrontos, caracterizando-se por ser uma “arte de resistência”. Deve-se compreender a intrincada dialética entre as forças em jogo na Itália da época para entender o que foi o Neorrealismo em suas contradições: um Movimento político e artístico, que se confundiu com aquele próprio momento e com a luta contra o fascismo; que “não teve nem mesmo tempo de fundar-se como escola estética”, como define Lino Miccichè, que o destaca mais pelo seu valor moral. 14 • Conforti e Massironi, op. cit.

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Para Lino Miccichè, o Neorrealismo cinematográfico italiano não foi somente “a realidade brevemente feliz do cinema italiano pós-bélico, combatida e destruída pela restauração moderada do centrismo”. Em suas palavras, o Neorrealismo cinematográfico foi, ao contrário, desde o início, “um episódio rico em transgressividade em relação às tendências gerais de oferta e da demanda cinematográfica da época, mas produtivamente bem mais circunscrito e comercialmente em tudo marginal, ainda que culturalmente vistoso”. Segundo esse autor, não foi a restauração moderada que acelerou o processo de marginalização, jogando com os mecanismos diretamente repressivos dos quais dispunha. Mas foi sua mesma rejeição por parte do mercado, leia-se público, que além dos parâmetros externos, “pouco mudara e continuava a amar os mesmos contadores de estórias — e as mesmas estórias — que o havia deliciado nos anos do fascismo antes do ciclone da Guerra”. Como já dito, o mesmo autor ressalta a projetualidade do herdeiro Cinema Novo brasileiro, que justamente faltou ao Neorrealismo. Embora concordando com Miccichè, segundo o qual não foram somente as forças externas a decretarem o fim desse Movimento italiano (o que não teria ocorrido naturalmente se houvesse um projeto e se não existissem tantas contradições e conflitos internos), é produtivo analisar o percurso, reconstituindo os fatos que marcaram e fizeram o próprio Movimento. Entre eles, o processo de debate e constituições de leis para o setor, que acabaram por se constituir em mecanismos repressivos; os papéis desenvolvidos pelo novo governo; as associações culturais; o surgimento de comitês de defesa e agitação; 153


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manifestos e manifestações públicas e o reflexo disso tudo na produção artística. Fatos que escreveram a história da escola cinematográfica italiana do pós-guerra, ou seja, “a pequena parábola do cinema neorrealista”, que diz respeito aos aspectos político-sociais e produtivo-econômicos. É ponto pacífico que o início, com a Guerra de Libertação e o espírito coletivo surgido desta, forneceu o material para o surgimento do Movimento. Percorrer em detalhes esse imediato pós-guerra e nos desdobramentos e relações de instituições em reorganização com o setor cinematográfico (1943-1953) se faz necessário, pois é daí que tiramos os elementos mais importantes para uma avaliação crítica do Neorrealismo, em sua dinâmica complexa, entre as forças e contradições internas e as forças externas, para avançar no seu entendimento, augurado por Carlo Lizzani15. 2 1945-1946: Governo provisório e Comitato di Liberazione Nazionale (CLN), a Comissão Aliada e o Comitato Temporaneo per la Cinematografia O imediato pós-guerra foi o momento da Comissione Temporanea per la Cinematografia, ainda com as negociações do Tratado de Paz, a reorganização das instituições, um novo governo de transição da Comissão de Liberação Nacional (CLN), que forneceu a primeira lei que regulamentou o setor, após o período fascista. Era o momento da transição por excelência, pois tudo era precário e provisório, considerando o fim da Guerra, o caos produtivo e social e a necessidade de recomeçar do zero a reconstrução 15 • Carlo Lizzani, “Il Neorealismo: quando è finito, quello che resta”, 1974, 1999, 908-105.

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do país — uma transitoriedade e tensão que permearam todo o Movimento. Na verdade, o que o alimentou e o manteve vivo. Parece que o Neorrealismo tirou da tomada de “consciência” (e a Guerra forneceu a “experiência16”), da vulnerabilidade e miséria do ser humano (da sua “finitude”) a sua força, mostrando-se como uma verdadeira “arte de resistência”. As dificuldades que marcaram o Neorrealismo e que subsistiram por muito tempo ainda certamente não o determinaram, mas o constringiram a encontrar soluções das quais tirou sua força e genialidade. “Assim como acontece com as verdadeiras correntes estéticas, é o fato que determina a teoria, e não o oposto”, como afirma Leprohon17. O Neorrealismo foi fruto de uma complexa dinâmica e, principalmente, do dialético confronto entre as diferentes forças em jogo durante e logo após a Libertação. Nesse sentido, negou o passado fascista pela transgressão das normas e cânones estéticos, enquanto a cinematografia do regime (bases culturais) retornava em certas práticas de alguns políticos, que a partir da eleição de 1948, definitivamente, tomaram a 16 • O que parece contradizer a ideia de W. Benjamin em sua tese histórica, “O Narrador”, sobre a baixa da “experiência comunicável” do homem que volta da Guerra. E a sua afirmação de que o “verdadeiro narrador” é aquele que “ensina” e “comunica experiências” longe no tempo e no espaço. Talvez seja um paradoxo, se visto à luz da referida tese de Benjamin, o caso italiano do pós-guerra que narra os horrores da Guerra, mas também este que é um cinema “anti-narrativo” e “antiespetacular”. Como dizia Alberto Latuada (G. P. Brunetta, 1995) na reunião histórica dos profissionais do setor, à qual se atribui o nascimento do Movimento cinematográfico: terminada a Guerra “era preciso fazer as contas com feroz honestidade e mostrar ao mundo as suas misérias”. 17 • Leprohon in Michel Martin (org.), A crítica francesa, Pesaro, 1974.

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direção do país. Trata-se do passado e dos valores dos quais o Neorrealismo não conseguiu se livrar e continuou combatendo, a partir da segunda lei (1947), que regulamentou a cinematografia (bases econômicas e políticas). As normas do período Andreotti (Mario Andreotti, subsecretário do Spettacolo e depois ministro) não deixavam nada a dever às leis fascistas no que concerne à censura e aos contributos e benefícios, maliciosamente articulados de modo a comprometer empresários e produtores e, assim, obter o controle total do cinema naquele país. Ainda poucos dias após a libertação de Roma (1945), Cinecittà havia sido transformada em campo de refugiados. Em uma sala da Via Veneto, nº 33 (requisitada e transformada na sede da Comissão Militar Aliada e nos escritórios da Film Board), reuniram-se representantes das forças armadas aliadas, dos trabalhadores no espetáculo e dos industriais do cinema. Essa reunião pode ser identificada como a primeira cena explícita da batalha que deveria travar o cinema italiano. O Almirante Stone, representante dos EUA nas Forças Aliadas assumiu a poltrona reservada ao presidente e disse, calma e decididamente, que “o cinema italiano deve ser destruído18”. Diante da perplexidade de todos os presentes e do embaraçoso silêncio que se seguiu a tal declaração, o almirante foi obrigado a esclarecer que “toda a legislação criada pelo fascismo deveria ser ab-rogada”. Nas próprias palavras do almirante norte-americano, o cinema italiano foi inventado pelos fascistas e, portanto, deveria ser suprimido. E deveriam 18 • Lorenzo Quaglietti. IL cinema italiano Del dopoguerra, Leggi, produzione, distribuzione, esercizio. Quaderno informativo n. 58 della 10 Mostra Internazionale Del Nuovo Cinema di Pesaro, 1974.

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ser suprimidos, também, os instrumentos que deram corpo a essa invenção. Deve-se registrar que, de todos os setores, o cultural, ou melhor, o cinematográfico era o único não contemplado com verbas pelos americanos no plano de reconstrução do país. E não faltaram, inclusive, projetos, como o da construção de uma cidade cinematográfica em Firenze (o que acaba por ser um documento a testemunhar as disposições dos EUA com relação à cinematografia italiana), conforme documenta um relatório confidencial do Exército Americano da época, que apontava a renascente cinematografia italiana como uma ameaça, portanto devendo estar fora das verbas destinadas à reconstrução, ao contrário dos outros setores da indústria19. O primeiro passo para o domínio do mercado pelos americanos era constituído pela ab-rogação de todas as normas protecionistas dos filmes italianos. Um dos pontos de maior polêmica eram as propostas concernentes ao reembolso de uma quota da taxa fiscal e a obrigatoriedade de programação a favor do filme italiano, além da instituição de uma taxa de dublagem de películas estrangeiras, reivindicada pelos trabalhadores, como forma de criar mecanismos que limitassem a importação de filmes que viriam à tona a seguir. Aliás, os dois principais pontos de discórdia, tanto na primeira discussão, como em todas as quatro normativas que surgiram no período do pós-guerra (respectivamente a de 1945, de 1947, de 1949 e 1956). 19 • Gian Piero Brunetta, Cent’ Anni di Cinema Italiano. Dal ’45 ai Giorni Nostri. Roma/Bari, Laterza, 1995.

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Fruto de intensas negociações com participação ativa dos EUA nas Forças Aliadas, em outubro de 1945 foi promulgado o primeiro “decreto-legislativo luogotenenziale”, para uma nova ordenação da cinematografia italiana, correspondente à estação 1945-1946. Foram ab-rogadas todas as normas do regime fascista, mas se manteve uma contribuição de 10% sobre a bilheteria a favor da produção de filme longa-metragem. Lorenzo Quaglietti destaca que a completa liberdade da nova lei — concedida pelo artigo 1º à produção cinematográfica, aliada àquela pequena ajuda oferecida à produção nacional — permitiu às empresas de cinema (que não haviam, na verdade, suspendido completamente suas atividades produtivas, mesmo durante a Guerra) uma expansão e uma retomada ou, até mesmo, um início de suas atividades. Desse modo, a indústria italiana retornava lentamente, em condições de voltar à produção. Na estação 1945-1946, foram colocados em circulação 50 filmes20. Alguns números são indicativos: em 1945 (ano coberto só em mínima parte pelo decreto nº 678), foram produzidos 25 filmes; mas, em 1946, produziram-se 65 filmes, e 70 em 1947. “Se analisarmos os vinte cinco filmes de 1945 sobre o metro da qualidade, o resultado médio é de um nível discreto, com um par de filmes de maior empenho (Le miserie del signor Travet, de Mario Soldati, e Il testimone, de Pietro Germi) e uma ‘ponta de diamante’: Roma, città aperta, de Roberto Rossellini”. A realização desse último filme, distribuído pela Minerva, teve uma história exemplar e notória. E é importante ressaltar que a sua importância, no primeiro momento, não foi tanto artística, 20 • Conforti e Massironi, op. cit.

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mas pela perspectiva que abriu. Afinal, foi Roma, città aperta que afrontou, em primeiro lugar, a temática e inaugurou um estilo que daria à produção italiana um caráter nacional próprio, abrindo as portas da exportação, dos mercados europeus antes e, depois, dos mundiais. Entretanto, Roma, cittá aperta, por si só, faz uma história à parte e pertence à História da arte cinematográfica, não à crônica da produção, mesmo que para essa crônica, como todos os filmes do mesmo valor e peso, desempenhe um papel de extrema importância, também, no aspecto econômico-produtivo21. Afinal, o filme que pouco depois receberia a etiqueta neorrealista abriu as portas do mercado externo para o cinema italiano. Roma, cittá aperta foi vendido nos Estados Unidos por três mil dólares e conseguiu arrecadar mais de um milhão de dólares22. É importante a constatação desse fato, já que, pela primeira vez depois do período de ouro precedente à Primeira Guerra Mundial, a produção cinematográfica italiana ganhou peso no âmbito internacional, tornando a Itália não somente um país importador, mas também exportador, mesmo que “os bons filmes tenham arrastado os medíocres e, também, os péssimos23”. De qualquer modo, aumentou o incentivo para os produtores

21 • Quaglietti, Lorenzo. op. cit. 22 • Na onda do sucesso de alguns filmes neorrealistas, é constituída a Italian Film Export (IFE) para a distribuição de filmes italianos no mercado norte-americano, e são feitas tentativas de co-produções com outros países europeus, especialmente com a França. A primeira experiência resulta completamente falimentar, enquanto a segunda dá lugar a um grande número de co-produções e, por um certo período, atrai aos estúdios de Cinecittà os melhores diretores franceses. 23 • Quagglietti, Lorenzo. op. cit.

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de filmes, de fato elevando o número da produção de 25 para 65 em um ano. Constatamos que, em 1946, os filmes de produção italiana saltaram de 25 para 65, subdivididos em três das 48 casas de produção, das quais somente oito realizaram mais de um filme, precisamente: Lux (6), Excelsa (4), Scalera (4), Orbis (3), Titanus (2), Áurea (2), Ref (2), CVL (2). Pelo menos 10 dos 65 filmes realizados em 1946 eram de nível artístico superior à média e, desses 10, pelo menos cinco eram importantes. São eles: Paísà, Sciuscià, Il sole sorge ancora, Um giorno nella vita, Vivere in pace. Eram cinco filmes que prosseguiam desenvolvendo e enriquecendo o veio descoberto por Roma, città aperta. O triunfo, no entanto, durou pouco, porque surgiram dificuldades imediatamente depois da feliz explosão de Roma, cittá aperta. Com a nova lei que teve participação ativa das companhias hollywoodianas, representadas pelas Forças Aliadas, foi dado, também, enorme impulso à circulação de filmes estrangeiros na Itália. Além disso, o público estava ansioso pelas fitas americanas, das quais tinha sido privado durante o período fascista, e bem “educados” no gosto pelas películas dos “telefoni bianchi” (“telefones brancos”, como ficou conhecido o cinema de entretenimento produzido pelo regime fascista). Ambos eram produtos de evasão (cujos aspectos os neorrealistas combatiam), somados a normas e acordos que promoviam a invasão do mercado pelas películas norte-americanas. Em breve, também, os tentáculos da “censura” retornariam. Assim, estavam colocadas as cartas na mesa que iriam decretar o fim da renovadora corrente cinematográfica, que não possuía, na

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verdade, um projeto sólido para o enfrentamento, dali a tão breve tempo. O decreto de 1946 não tinha dispositivos adequados para defender o cinema nacional. O Film Board com ele havia conseguido duas vitórias fundamentais: a abolição de qualquer limite às importações de filmes estrangeiros e a exclusão, na lei, de qualquer norma, ainda que indireta, que vinculasse a exibição para favorecer a projeção dos filmes nacionais. Entre as várias “liberdades” que o Film Board impôs e que o decreto 678 sancionou estava o direito à circulação, na Itália, dos filmes estrangeiros dublados no exterior. Desse modo, o terreno estava preparado para que as companhias americanas retomassem o controle direto da situação. Até então, elas haviam atuado por interposta pessoa, delegando ao Film Board as negociações das condições econômicas e políticas gerais e atribuindo ao PWB as funções próprias de agência de distribuição dos seus filmes. Logo, todas elas, “uma a uma, reabriram suas filiais na Itália: a Metro Goldwyn Mayer, a Paramount, a Twenty Century Fox, a Warner Bros, a R.K.O., a Universal International, enquanto a Colúmbia se apoiava, como no passado, à Ceiad, da qual possuía a metade do capital acionário, e a United Artist, por sua vez, à Artisti Associati, mesmo reservando-se o direito de dar a sua produção a quem desejasse e fosse disposto a pagá-la em dinheiro24”. Importante ressaltar que a quota de arrecadação dos filmes italianos, que entre 1938 e 1942 havia passado de 13% a 40%,

24 • Quaglietti, Lorenzo, op. cit.

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tornou a cair em 1946, para 10%, e somente dez anos mais tarde conseguiria alcançar o percentual do período ante-guerra25. A “Comissão Temporária para a Cinematografia” deixou lugar ao “Serviço para a Cinematografia”, ainda no período de transição, em 1946, e a Anic organizou-se e passou a se chamar Associazione Nazionale Industrie Cinematografiche e Affini (Anica), acolhendo no seu corpo os distribuidores e, depois, também as empresas de imprensa e divulgação. Em maio de 1947, resultado de concorrido debate (o primeiro que participou foi Giulio Andreotti), veio emanado um novo ordenamento da indústria cinematográfica nacional, no qual o contributo automático para o filme nacional foi aumentado para 16%.26 A política empreendida pelo novo sub-secretário, com base na nova lei de maio de 1947, provocou a redução dos filmes produzidos. Em 1947, os filmes produzidos foram 68; já em 1948, ano inteiramente coberto pelos benefícios da lei, o número dos filmes produzidos caiu para 48. Isso em concomitância com a instalação de Andreotti e sua política na Via Veneto, sendo o núcleo central da produção representado pela Lux. Os números relativos, a propósito, são eloquentes: se Roma, città aperta foi o “campeão de bilheteria” da estação 19451946, a estação sucessiva via, na ponta, Rigoleto, do reabilitado Gallone, seguido por Genoveffa di Barbante, de Primo Zeglio, e por Áquila Nera, de Riccardo Freda. Na estação 1947-1948, dominaram Come si persi la guerra, de Carlo Borghesio (com Erminio 25 • Conforti e Massironi, op. cit. 26 • idem.

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Macário), e La signora delle camelie, outro filme-ópera de Carmine Gallone. Na realidade, o mercado ficou inteiramente nas mãos de Hollywood, que naquele período inundou o país com a produção de seis anos, ou seja, dos anos nos quais tinha sido interrompido grande parte do fluxo dos filmes norte-americanos na Itália, por culpa do monopólio Enic antes, e depois pela Guerra. Enfim, prevalecia, de modo geral, o produto americano. “E as raras vezes nas quais o público italiano procurava um filme nacional, preferia Gallone em vez de Rossellini, Malasomma no lugar de De Sica”. Das 48 casas produtoras que em 1946 produziram 65 filmes, somente oito realizaram mais de um filme. Em 1947, a produção dos 67 filmes concorrereu entre 47 produtoras e ainda oito foram as que realizaram mais de um filme também, precisamente: Lux (9), Excelsa (5), Scalera (3), Pegoraro (2), Cinopera (2), OFS (2), Romana (2), Amoroso (2)27. O período de 1947 a 1948 foi bastante combativo. Em dezembro de 1947 houve o primeiro ato da censura28, a constituição do primeiro “Comitato per la Difesa del Cinema” e seus manifestos com polêmicas nos jornais, entre trabalhadores e Governo,

27 • Quaglietti, Lorenzo. op. cit. 28 • 21 Cuja vítima fora Gioventú Perduta, de Pietro Germi. Como reação, um grupo de 35 diretores assinaou uma primeira “carta aberta” da Associazione Culturale Del Cinema Italiano (ACCI), enviada a toda imprensa italiana, mas integralmente reproduzida por poucos quotidianos de oposição. Ela trazia assinatura dos mais variados nomes possíveis: “de Visconti a Alessandrini, de Rossellini a Ballerini, de Fellini a Matolli. Engajados e não comprometidos, resistentes e republicanos, epuradores e epurados, católicos e comunistas, todos unidos para defender o cinema italiano daquele jovem afável mas duro, flexível mas ameaçador”.

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culminando com as eleições políticas29. Estas confirmam o desejo de boa parte da população pelo retorno dos valores conservadores perpetuados pelos filmes de evasão, ao estilo do velho regime — venceu a Democracia Cristã do sub-secretário Giulio Andreotti. Surgiram consequentes cisões nos Círculos Culturais e nas entidades representativas dos profissionais do cinema. Era o início do mais duro combate dos cineastas renovadores. O ano de 1948 foi cheio de contradições. Andreotti venceu a campanha eleitoral. Diego Fabri, das colunas da Fiera Letteraria fez um convite ao reconhecimento da “majestade dos valores tradicionais”. O cinema lançou algumas “obras pimas”: Ladri di Biciclette, La Terra Trema, Germânia Anno zero. O que, entretanto, explica-se com o fato de que esses filmes haviam sido concebidos antes de 18 de abril e chegaram às telas no momento para eles menos propício30. Era o período que antecedia a discussão da lei que se chamaria Andreotti, de 1949, e que, por muito tempo, o secretário iria protelar. O número de filmes importados, em 1948, dá uma ideia precisa da seriedade da ameaça representada pelo filme americano: de 864 filmes, 90% eram americanos. E a lei Andreotti entraria em vigor em dezembro de 1949. 29 • A grande imprensa com Andreotti e os Círculos do Cinema apoiaram a oposição. De um lado Pietrangeli, pela “Frente Popular”, contava com os Círculos. Nesse clima, Andreotti obteve a vitória sobre Pietrangelli. E os “homens do cinema que haviam votado em maioria pelo ‘Blocco Del Popolo’, não obstante as recomendações de Alida Valli, observaram a situação preocupados”. 30 • Quaglietti, Lorenzo, op, cit.

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Na onda do triunfo, Andreotti aproveitou para entregar centros de importância vital do cinema italiano à Democracia Cristã. A operação não se limitou ao setor econômico, mas incluiu também o cultural: Centro Sperimentale di Cinematografia, revistas especializadas como Bianco e Nero, Cinema etc. Com os Círculos de Cinema e com cineastas, o objetivo foi alcançado totalmente, tanto que, àquela altura, a batalha política em defesa do Neorrealismo entrou na ordem do dia. O número 6 da Revista Cinema, dirigida por Adriano Barracco, de 15 de janeiro de 1949, abria com um editorial denunciando que “havia um único filme sendo realizado no país, e este era estrangeiro”. Logo, “as forças vivas do cinema italiano”, refeitas da desorientação e desânimo após a derrota eleitoral, reunidas no Comitê de Defesa, reencontraram-se na Piazza del Popolo, num comício organizado pela CGIL, no domingo, 20 de fevereiro de 1949. O tema era a falta de trabalho, a necessidade de oposição ao dumping continuado das Mayors de Hollywood. No palco dos oradores, ao lado de Di Vittorio, estavam Blasetti, Gino Cervi, De Sica e Anna Magnani, membros do Comitato di Difesa Del Cinema Italiano (o segundo dos tantos após o primeiro deles, criado um ano antes, em fevereiro de 1948, após o primeiro ataque da censura): “um dos inúmeros comitês de vida efêmera que proliferarão nos anos seguintes” ao lado dos sindicatos e das associações de categorias. Mas a manifestação de Piazza del Popolo não causou muitos danos a Andreotti e à Democracia Cristã. Dois anos depois da segunda lei, com duas leis de 26 de julho de 1949 e de 29 de dezembro de 1949, foi novamente reordenado 165


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e aperfeiçoado o inteiro complexo de normas relativas aos contributos a favor dos filmes, fixados definitivamente em 10% para os longa-metragens e 18% para cinejornais e documentários31. Durante todo esse período, a estrutura produtiva italiana foi, de novo, pulverizada em um grande número de produtores, que às vezes nasciam para um só filme, que não tinha condições de fazer frente aos americanos, que dominavam 88% do mercado italiano em 194832. De 1945 a 1949 foram importados, em média, 500 filmes por ano, e somente em abril de 1951, com um acordo Anica-MPEAA, esse número reduziu-se para 230 e essa média foi mantida constante no decênio sucessivo33. A quota das entradas de bilheteria dos filmes italianos que entre 1938 e 1942 havia passado de 13% a 40%, tornava a cair em 1946 a 10% e somente dez anos mais tarde retornaria a alcançar o percentual do ante-guerra34. Com a lei Andreotti (1949), as classes empresariais estavam satisfeitas, até porque se deram conta de que a festa da autarquia não retornaria. Por outro lado, os exibidores, isto é, os que mais temiam medidas coercitivas com relação à livre programação de filmes, deram-se conta de que a situação não era tão feia quanto havia sido pintada, após a pressão exercida por cineastas e trabalhadores na Piazza del Popolo. De fato, Andreotti teve a perspicácia de unir a programação obrigatória de 31 • Conforti e Massironi, (1974), op. cit. 32 • Idem Conforti e Massironi. 33 • Idem. 34 • Ibidem.

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filmes italianos por um certo número de dias com uma série de bônus fiscais com concessão de notáveis isenções fiscais. A partir daquele momento, ele se transformava, para industriais e exibidores, no salvador do cinema italiano, no que diz respeito, certamente, à iniciativa privada. 3 A grande crise do cinema italiano do pós-guerra em 1953 (fim do Movimento?) A escola italiana iniciou a sua guerra particular no fim da Grande Guerra e resistiu até 1948, para os mais exigentes. Segundo outros, entretanto, sobreviveu até exatamente 1953, quando se deu a grande crise, embora os mais generosos a estendam até os anos 60 e 70. Nomeado sub-secretário para o Espetáculo em 4 de junho de 1947, Andreotti permaneceu definindo e dirigindo a política cinematográfica na Via Veneto até 20 de agosto de 1953. Nas eleições políticas de 1953 passou o cargo a outro. No entanto, os efeitos da lei Andreotti não tardaram a manifestar-se. De acordo com Lorenzo Quaglietti, os problemas da primeira crise do cinema italiano ocorreram no início de 1954, pois o Partido dominante pareceu incapaz de dirigir um setor a que havia obedecido docilmente ou quase a um homem habilidoso nas negociações como Andreotti. O governo prorrogava a lei batizada com seu nome por um ano. Algumas falências transformaram o alarme em pânico. Logo, uma nova lei que consentisse ao cinema italiano a retomada era indispensável. Entre 1954 e 1956 não se passou um dia sem que as associações de categorias, os Círculos Culturais, os organismos sindicais e a própria imprensa não discutissem a nova lei, para apresentar 167


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diferentes exigências individuais, para tutelar os respectivos interesses. Andreotti participava ativamente do debate, a essa altura como ministro, continuando no controle do cinema. Em 19 de janeiro de 1956, com 19 dias de atraso em relação ao prazo final da lei de 49, que havia sido prorrogada para 31 de dezembro de 1955, a comissão especial encarregada de analisar o projeto de lei iniciou os trabalhos. O conselho dos ministros aprovou o projeto nos primeiros dias do mês de dezembro de 1955. O reflexo na produção não poderia deixar de se sentir depois de anos de censura e mecanismos repressivos e da lei do desempenho comercial. “O progressivo abaixamento do nível da produção nacional, a crise que apertava a nossa cinematografia, a sensível distância do público em relação ao filme italiano tinha na censura a sua causa principal. Na censura e nos mecanismos burocráticos da lei de 1949”35. Mas evidente que uma liberalização dos critérios censórios (que eram ainda aqueles das lei fascista de 1923) teria abatido também a burocracia. “Certos sistemas instaurados, indecisos entre a chantagem ou a ameaça e o paternalismo, não seriam mais eficazes sem o apoio de um instrumento contra o qual os produtores mais audaciosos, se existissem, obviamente, não tinham armas para se defender”, argumenta Lorenzo Quaglietti. Veio à luz, finalmente, em 31 de julho de 1956, a nova lei que regulamentava a cinematografia italiana, a quarta nos 10 anos que se completavam do fim da Guerra, após a necessária discussão na comissão legislativa especial do Senado, que fez 35 • Quaglietti, Lorenzo. op. cit.

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algumas modificações, tornando indispensável a provação da Commissione Speciale Parlamenetare. Essa lei regulamentou a atividade cinematográfica italiana até 30 de junho de 1959. Esse período coincidiu, ou melhor, cobriu (pois há a diferença de seis anos) aquele considerado por Cosulich, por exemplo (que escreveu de dentro das trincheiras do Movimento), como a estação neorrealista. No entanto, “a crônica dos dados da produção italiana de 1945 a 1953 se resumiu em duas cifras: 25 e 161. Pois foram 25 os filmes realizados no ano de 1945; e 161 os realizados em 1953”, escreveu Lorenzo Quaglietti36. Como indica esse autor, os anos respectivamente de nível quantitativo mais baixo e mais alto. Entre os dois, estava o ano de 1948, denso de incógnitas, incerto e, por muitos motivos, até mesmo dramático e também do apogeu, que nos ambientes da produção assumiu contornos de “sonho”, se não de suplantar, pelos menos de incomodar a indústria hollywoodiana e que, com efeito, suscitou, do outro lado do Oceano, alguma apreensão (que seja só pela fraqueza interna mais do que pela força do frágil concorrente italiano)37. Como afirmara Lino Miccichè, “Neorrealismo foi, sobretudo, o nome de uma batalha, de um fronte, de um conflito: aquele que os fautores daquela ‘ética da estética’ conduziram contra os fautores de uma estética (aparentemente) sem ética, ou seja, de uma prática artística que, fingindo-se autônoma das coisas do

36 • Quaglietti, Lorenzo. “Arte Industria o speculazione?” in: Neorealismo: leggi, produzione (1974) op. cit. 37 • Quaglietti, Quaglietti op. cit.

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mundo, é funcional à sua conservação já que é o ‘espetáculo’ que ‘distrai’ das penas que ele gera38”. É possível, como visto, através da reconstrução dos tortuosos caminhos de ações políticas, meandros jurídicos e da produção cinematográfica, conhecer melhor as “batalhas” que fizeram a história desse Movimento. A história de uma “escola” cinematográfica renovadora, de uma “arte de resistência”, de libertação do cinema hegemônico, que paradoxalmente prolongou-se no tempo fora do seu território, já que frutificou nos novos cinemas espalhados pelo mundo, e que representa um divisor de águas para a própria História do Cinema.

38 • Miccichè, Lino (1999). Per uma verifica del Neorealismo cinematográfico, op. cit.

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Imagens. Medo e fascínio Milton Chamarelli Filho

RESUMO

Neste artigo, discutimos, de forma breve, as origens do medo provocado pelas imagens e do fascínio despertado por elas. Partimos, sobretudo, da discussão sobre as imagens na alegoria do Mito da Caverna e de como esse pensamento produziu uma forma radical de se pensar a imagem a partir da separação entre o mundo possível e Ideal e sua reprodução sensível. Formas ancestrais de se pensar a imagem, mas que sucumbem com a chegada do homem ao Renascimento e à Modernidade, períodos que reavivarão a vocação imemorial do homem de ver sua imagem gravada, narrada e materializada em imagens em movimento. Palavras-chave: Cinema. Imagens. Filosofia. Mímese.

A

palavra imagem tem um número de acepções limitadas se comparadas à quantidade de aspectos que o termo efetivamente recobre. São imagens as imagens dos nossos sonhos, do que imaginamos, dos nossos gestos, dos desenhos e das pinturas (das mais primitivas às mais abstratas). O conceito, registra o dicionário, chega-nos pelo latim, imágo, inis, e tem em seu étimo conceitos relacionados tais como os de “semelhança”, “representação” e “retrato”.

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Nos primórdios da filosofia ocidental, o relato sobre a importância insuspeita das imagens foi abordado no livro VII de A República, de Platão, no qual Sócrates sugere a Glauco imaginar imagens projetadas de homens agrilhoados, em fundo de uma caverna. A alegoria do Mito da Caverna, como assim ficou conhecida, é talvez um dos relatos mais antigos e mais ilustrativos sobre a associação entre imagens (“sombras”) e o que elas representam (ou o temor que elas provocavam), pelo fato de a imagem ser avaliada, a partir do pensamento platônico, como cópia do mundo ideal. Fundamentadas no conceito de mímese (mímése, “imitação”), cópias também são: a escrita, os nomes, os discursos e as instituições, o nome e a arte. Para essa última, o filósofo ateniense reserva um degrau inferior em sua hierarquia de imitações de seu mundo ideal, por ter, sobretudo, uma feição reduplicativa e ilusionista (CHEVROLET, 2008, p. 2); por outro lado, sublinha-se aqui que esses caracteres foram considerados mais essenciais à arte, principalmente após o Renascimento, visto que até a Idade Média as artes visuais tinham um caráter prático, utilitário. Para Platão, como nota Neiva Jr. (1994), as imagens constituem “um grau no processo de conhecimento39”, e, por essa condição, seriam consideradas uma cópia, portanto, distante da ideia e do inteligível. Podem as imagens, por esse motivo, 39 • “Há o objeto, depois o nome, a definição, a representação e finalmente o conhecimento e o entendimento. [...] Todos os estágios descritos relacionam-se por imitação. [...] Quando a representação é imitativa, a verdade passa a ser o padrão lógico que julga as imagens e permite a seleção, a exclusão e até mesmo a condenação”.

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serem consideradas “cópias de cópias”, “simulacros” e como tal, “afastadas da verdade”. Diz-nos Neiva Jr. (1994, p. 28):

No universo existem três níveis hierárquicos: as formas intelectuais e perfeitas; o mundo sensível que, em sua multiplicidade, copia deformando esse modelo ideal; as cópias de cópias — mutantes e de extrema falsidade, como os reflexos do sol criando imagens luminosas e instáveis na superfície das águas ou na lâmina dos espelhos.

Por isso, as imagens, como cópias imperfeitas, já nasceram, pelo pensamento platônico, com o fado ao embuste40. A busca da verdade condenava as imagens e seus congêneres ao degredo porque, uma vez tida como imitações, não poderiam senão almejar um papel secundário no mundo das imitações. Aristóteles, a partir da noção de verossimilhança, retoma o conceito platônico de mímese, o que dá a esta um caráter completamente diferente. Coloca o filósofo estagirita: “pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (Poética). Ou seja, o conceito aristotélico desobriga a obra de arte ou a história de reproduzir a realidade ou de colocá-la sob os critérios de verdadeiro e falso,

40 • Ao mesmo tempo em que existem com essa espécie de pecha primordial, são, pelo mesmo fato, consideradas o duplo do homem, objeto também de encanto diante da própria imagem duplicada.

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visto que o que está em jogo são “os elementos imaginosos ou fantásticos sejam determinantes no texto”41. Desde então, a imagem torna-se, para o homem ocidental, um misto de medo e de fascínio, uma vez que está, ao mesmo tempo, na condição de duplicar o vivido e, consequentemente, de extrair desse vivido a existência (ou a essência dessa existência) e colocá-la em algo externo a ele, criando assim uma imagem semelhante a ele, e outra diferente dele. No pensamento cristão, o homem já nasce como imagem, feito à semelhança e à imagem de Deus, como está em Gênesis, 1, 26. Mas é vetado a ele construir imagens, como está em Êxodos, 20, 4. O Alcorão, o livro sagrado da religião mulçumana, e a Torá, a lei mosaica, também proíbem o uso de imagens. A imagem ou a memória extrassomática é o prenúncio de que o conhecimento e sua forma de transmissão oral estavam ameaçados. Estamos por volta de 400 a.C. e a escrita já demarca um campo da reflexão filosófica, porque considerada um substituto da fala, portanto, uma imagem, como mostra o Fedro, de Platão. Nas palavras de Sócrates:

— É isso precisamente, Fedro, o que a escrita tem de estranho, que a torna muito semelhante à pintura. Na verdade, os produtos desta permanecem como seres vivos, mas, se lhes perguntares alguma coisa,

41 • Parte da definição de verossimilhança fornecida pelo Dicionário Houaiss.

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respondem-te com um silêncio cheio de gravidade. O mesmo sucede também com os discursos escritos.

Como posição doutrinária, “as restrições de Platão contra a escrita devem ser compreendidas como restrições contra uma proliferação de livros e manuais escritos” (THOMAS, 2005, p. 19). Com efeito, a escrita ameaçava, mormente, aquela faculdade mais cara ao homem antigo, a memória, que era o fundamento da transmissão do conhecimento e da literatura grega, pela oralidade. Como coloca Thomas (2005, p. 4):

A maior parte da literatura grega, porém, tinha por finalidade ser ouvida ou cantada — transmitida oralmente, portanto — e havia uma forte corrente de aversão pela palavra escrita, mesmo entre os altamente letrados: documentos escritos não eram considerados, por si mesmos, prova adequada em contextos legais até a segunda metade do século IV a.C.

A importância que os gregos atribuíam à memória pode ser resgatada pela própria mitologia. Memória, personificada na figura de Mnemosine42, foi uma das Titânidas geradas da união entre Urano (Céu) e Gaia (Terra). Na genealogia helênica, Mnemosine une-se a Zeus, e, dessa união, nascem as Musas43

42 • Cujo significado de seu nome é “lembrar-se de”. 43 • O significado da palavra musa, segundo Brandão (1994, p. 202-3), reporta-se a “fixar o espírito sobre uma ideia, uma arte” e que estaria relacionado, segundo o mesmo autor, ao verbo “aprender”. Legou-nos também “museu” e também “música”.

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“as cantoras divinas que tinham por função primeira presidir as diversas formas do pensamento44”. É pelo coro dessas deusas e de Mnemosine que chega o conhecimento, conforme nota Torrano (1996, p. 25 apud ROSARIO):

É através da audição deste canto que o homem comum podia romper os estreitos limites de suas possibilidades físicas de movimento e visão, transcender suas fronteiras geográficas e temporais, que de outro modo permaneceriam infranqueáveis, e entrar em contato e contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do canto se tornam audíveis, visíveis e presentes. O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que lhe é conferido pela Memória (Mnemosine) através das palavras cantadas (Musas).

O mito grego da memória e o trecho de Torrano apontam para o fundamento e “finalidade” da arte, uma arte que se passava e se constituía pela audição, sentido que conduziu a transmissão de conhecimento para o homem até a Idade Média45. 44 • ROSÁRIO, Claudia. O lugar mítico da memória. 45 • E que de fato parece ter vigorado até a Idade Média. Como nota Loyon, ao dissertar sobre a educação na Idade Média: a sala de aula medieval refletia a natureza preponderantemente oral da cultura medieval, com o professor lendo e explicando o texto, e o estudante absorvendo-o e confiando-o à memória; a capacidade da memória estava altamente desenvolvida na Idade Média. (Grifo nosso).

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Com a chegada do Renascimento e com o nascimento do homem tipográfico, como nota McLuhan (1977), muda a base da compreensão do homem, porque se vai, a partir de então, privilegiar o sentido da visão, em virtude da especialidade que esse sentido passa a ter, passando a ser proeminente não somente em relação aos demais sentidos, mas, sobretudo, em relação à audição, O marco alegórico dessa separação instala-se, segundo o pensador canadense, quando o rei da Bretanha (Rei Lear) divide seu reino entre suas filhas, e, ao fazê-lo, lança mão de um recurso: um mapa; o que demonstraria já “o isolamento do sentido visual” e, com isso, sua importância. Ver torna-se compreender. Ver tornou-se sinônimo de compreender a partir do momento em que o homem se torna visual. E isso ocorre com a criação da prensa de tipos móveis por Gutenberg — privilégio da visão e separação desta dos demais sentidos. Desde então, segundo McLuhan, o homem torna-se visual, e a arte e o ensinamento que chegavam pelo ouvir passam agora, sobretudo, a estar sob o domínio da visualidade e de sua materialidade. A escrita e a arte visual tornam presentes seres que só existiam na imaginação e que só chegavam por aquele sentido mais abstrato que é a audição. A opção pela visualidade custou caro ao homem. Talvez por isso as “imagens” de El ingenioso hidalgo Don Qvixote de La Mancha são tão reais ao cavaleiro da triste figura, que viu sua vocação pelas imagens tolhida pelos preceitos religiosos tanto do ocidente como os do oriente.

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A duplicação da imagem do homem, ou, em última instância, do vivido, marca a arte ocidental até o final do século XIX. O homem, no entanto, não deixou de criar imagens que produziam um efeito de realismo, pelo menos até o Impressionismo, período em que elas se tornaram menos “nítidas”, o que, por outro lado, permitiu abrir espaço para a nova figuratividade inaugurada pelas máquinas de reprodução de signos visuais: fotografia e cinema. É na fotografia, pelo seu caráter realístico, e, posteriormente, no cinema, que o tema de o homem e seu duplo46 é retomado. Na França, a ilusão de realidade assombra os espectadores da primeira projeção cinematográfica, ao julgarem real L’arrivée du train au gare de La Ciotat. Começava, então, com os irmãos Lumière, a primeira projeção de imagens em movimento. Mas faltou aos irmãos franceses, como nota Rogério Durst (2000, p. 42) o elemento narrativo; faltou-lhes o inventivo, o mágico e a fantasia que marcou as projeções de outro francês, chamado Georges Meliès. Com Viagem do homem à lua, A coroação de Eduardo VII e outras poucas obras, o visionário diretor criou técnicas cinematográficas, experimentalmente 46 • A duplicação da imagem do remete-nos ao tema imemorial criador e criatura, presente no imaginário ocidental, mas, mais diretamente, como se sabe, aos mitos da Grécia antiga, como, por exemplo, em Pigmalião e Galatea. Situa-nos na cultura helênica e igualmente em uma concepção de arte realística, na medida em que se supõe ver, na representação da imagem criada e duplicada, a perfeição; torna-a, neste sentido, o anseio da criação do incorruptível, quiçá se poderia a elas se referir como fazendo parte de um mundo de “simulacros”: amados pelo fato de para eles convergirem os nossos desejos de imortalidade e demonizados, por representarem a ideia do duplo que subjuga o criador.

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ou não, que formaram o repertório do cinema moderno. Foi Meliès, também, o “inventor do cinema fantástico”, por meio do qual trouxe esse recorte dessa nova construção da realidade, imaginosa e inventiva, não se esquecendo das várias profissões artísticas que exercia (Meliès era mágico). Essa segunda realidade passa a constituir o nosso “repertório” de vida e passa a corporificar a dimensão do imaginário e do onírico, desterrados das obras de Platão. O cinema concretiza, pelo aspecto físico, o que Platão descrevera no Mito da Caverna, ou seja, descreve o primeiro modelo de cinema, com a projeção das imagens no fundo da caverna (MACHADO, 1997, 28): pelo aspecto estrutural interno e figurativo, a função que Aristóteles propunha para a obra de arte; pelo aspecto cinemático, a técnica das imagens em movimento; pelo aspecto da ilusão, a concretização de o homem ver sua imagem duplicada, vocação imemorial de o homem ver sua imagem (seu duplo, sua outra existência) encarnada e materializada em algo externo a ele e criado por ele. Não passou despercebido ao cinema o aspecto de uma vida que se constrói pelo reino dos simulacros, ao refletir quão paralelos poderão ser os destinos dos homens e das imagens. Direta ou indiretamente tangem essa temática os filmes: Metrópoles, Frankstein, O médico e o monstro, O retrato de Doryan Gray, Blade runner: o caçador de androides, ExistenZ, Substitutos, Inteligência artificial, Matrix, Avatar, para ficarmos com os mais conhecidos. Afora a temática da ficção propriamente dita, é curioso observar que alguns desses filmes foram inspirados 181


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paradoxalmente ou, antes, criados pela literatura fantástica, visto que alguns deles foram baseados em romances. São características que aqueles filmes herdam dessa literatura: a invisibilidade, a transformação, o dualismo, sendo recorrente temas tais como fantasmas, sombras, duplos, dupla personalidade, reflexo (espelhos), etc. Estamos chegando ao paroxismo da visualidade, e a literatura nos diz isso anos depois, na voz do narrador de A invenção de Morel, numa espécie de “prenúncio do passado”:

Acaso não se deve chamar vida ao que pode estar latente num disco, ao que se revela quando a máquina do fonógrafo funciona, se eu aperto um botão? Terei de insistir em que todas as vidas, como os mandarins chineses, dependem de botões que seres desconhecidos podem apertar? E vocês mesmos quantas vezes terão interrogado o destino dos homens, terão feito as velhas perguntas: Para onde vamos? Onde jazemos, como as músicas eruditas num disco até que Deus nos manda nascer? Não percebem um paralelismo entre o destino dos homens e das imagens? (CASARES, 1987, p. 56-57)

As imagens “ganham vida” não apenas porque são imagens em movimento, mas porque podem fixar e fabular a vida de seus interlocutores em um eterno jogo de espelhos em mis -anabîme, pelo qual veem suas vidas, pelo que aquilo que nela

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julgam incorruptível, pelo tempo, essa outra imagem, arquitetura e moldura, imortalizadas47. O Outro, a alteridade (em latim alter, “outro”) é a condição para que se possa se ver, o que de outra forma se pode também dizer que só se consegue existir (de existère), se “saímos de” para ver ou para representar, para melhor (se) conhecer. Até quando continuará essa busca das nossas imagens, que envolve e enovelam o ser humano em medo e fascínio?

47 • Como o quadro de Doryan Gray. Embevecido pela sua imagem “real” e corrompido pela imagem plástica, Doryan Gray torna-se a própria contradição pela qual, por semelhança, nos “vemos” nas imagens: “a procura do eterno no transitório”. O uso dessa expressão é dado por NEIVA Jr. (1994, p. 27). Não foi outra a decisão de Narciso, senão deixar-se levar pela contemplação de sua imagem fugidia nas águas da fonte. Narciso, cuja etimologia remonta, como nota Junito de Souza Brandão (1987, p. 173), a torpor e nárke, que nos deu “narcóticos”, entorpece-se pela sua imagem e, ao aproximar-se dela, morre, absorvido completamente pela imagem — seu duplo, mas sua alteridade —, que o fascina. Curiosamente, Narciso, que é o mito que sucumbe pela contemplação do duplo de sua imagem, assim foi “punido por Afrodite por ter repelido Eco”, a ninfa que adorava a sua própria voz ou o seu duplo.

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Retratos do Feminino Ana Lucilia Rodrigues

RESUMO

O presente artigo propõe uma reflexão sobre a maneira como o sistema de criação de Estrelas (Star System), usado no cinema clássico norte-americano, influenciou e vem influenciando as representações do feminino ao longo do século XX. A Star, enclausurada em estereótipos de “mulher” determinados pela ideologia patriarcal, foi criando uma imagem fixa de mulher, portadora de significados impostos, mas não produtora destes. Palavras-chave: Cinema. Feminino. Representação. Star System. Stars.

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história vem nos mostrando diversas formas de se contar e compreender a história das mulheres ao longo dos séculos. Mas desde o surgimento do cinema norte-americano podemos observar que a narrativa sobre a mulher, muitas vezes, aloca as personagens femininas em estereótipos fixos, que se repetem em sua essência através de décadas: superficialmente, as representações se vestem de novas modas, novos estilos, mas se arranharmos a superfície encontraremos um mesmo modelo, baseado em uma mesma essência imposta à mulher. A narrativa mais insistente sobre a mulher assinala que até o final do século XIX a idolatria ao belo sexo se desenvolveu 187


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em um quadro social estreito. As homenagens artísticas às mulheres e as práticas estéticas quase não ultrapassavam os limites do público aristocrático. Eram nos círculos superiores da sociedade que se cultuavam as imagens resplandecentes do feminino e suas valorizações poéticas. Em contrapartida, nas sociedades camponesas ocidentais, até a Primeira Guerra Mundial, o feminino recebia as acusações tradicionais contra seus encantos. Os séculos cristãos manifestaram uma hostilidade particular à sedução feminina. Ao longo da Idade Média, e por vezes até o século XVIII, existia uma atitude social predominante de receio para com a mulher, vista como criatura vaidosa e viciosa, que se servia de Satã para precipitar o homem no inferno. Encarnando o mal, o corpo da mulher, assim como tudo que a embelezava48 (toaletes, maquiagens, joias), eram oprimidos sem descanso e considerados como artifícios mentirosos, como abismos da perdição: a beleza anunciava o inferno e escondia a feiura da alma. E a beleza feminina não era perigosa apenas para os homens, o era também para as próprias mulheres. Vê-se, assim, que as representações do feminino confundiam-se com as hesitações e suspeitas que recaíam sobre o próprio estatuto da imagem como tal: imagem que engana, ilude e falseia justamente pelo poder fascinatório do qual é capaz. Ainda no século XIX estava em voga a beleza maldita que semeava a ruína entre os homens. Prolongando uma tradição literária que remontava à Antiguidade clássica, os românticos 48 • Diferentemente dos dias atuais com os aparatos dos mais variados (silicones, plásticas, etc...) que chegam antes da própria mulher.

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e as correntes “decadentistas” deram um relevo particular ao tipo de mulher vampiresca: bela, impura, inumana e funesta. De Carmem (Mérimée) a Salammbô (Flaubert), de Célile (Sue) a Maria (Stwinberne) ou Salomé (Wilde, Laforge ou Malarmé), enfim, há uma galeria de retratos que ilustram a figura da “bela dama impiedosa” que reúne todos os vícios e todas as volúpias. Poetas, romancistas e pintores fizeram triunfar a “beleza do mal”, a aliança do encanto e da decadência, a beleza meduseia impregnada de trágico de perversidade e de morte. As representações da mulher foram assim ordenadas em dois grandes estereótipos durante o século XIX: a pureza e a luxúria, o anjo e o demônio, a beleza virginal e a beleza destruidora. No início do século XX, no auge da burguesia e da economia capitalista, fundamentadoras da indústria cinematográfica, o Star System vai ganhando força, criando modelos estereotipados onde a mulher é sempre portadora de significados, e nunca produtora. A Star cinematográfica passa a ser a representante máxima de sedução e da feminilidade. A bipolaridade dos tipos femininos vai perdendo seu caráter central e dando lugar à mulher fatal. Mas uma fatalidade que não mais requeria distanciamento e vigilância; sedução intencional, construída para provocar uma espécie de identificação nas expectadoras femininas que as levasse em direção a sua feminilidade. Assim, no cinema, que produz imagens em movimento, não como à fotografia que congela a sedução, a feminilidade tornou-se sinônimo de atração sexual. A mulher interiorizou os conceitos divulgados pelo cinema como se fossem

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a sua própria identidade. Nesse processo foi objetivada como consumidora. Entre 1913 e 1919, a figura da estrela se cristaliza, o conteúdo, a direção e a publicidade gravitam ao redor da estrela simultaneamente nos EUA e na Europa. A metáfora da estrela indica que em meio a uma miríade de astros há alguns que brilham mais intensamente. A primeira exemplar de estrela é Mary Pickford, também conhecida como a noivinha do mundo: suas personagens são revestidas de uma áurea infantil que evoca e comove pelo apelo de proteção. Em oposição encontraremos a diva italiana Francesca Bertini: melodramática, possessa de amor, é exageradamente expressiva. Há também a vampe dinamarquesa Terá Bara, que introduziu o beijo nos lábios, com o qual a mulher vampiro suga a alma de seu amante. Temos então três modelos de representação da feminilidade nos primórdios do cinema: a virgem indefesa, a fatal e a exótica. Pouco depois, em 1918, Cecil B. Mille lançará o modelo da mulher bela, provocante e excitante que imporá a Hollywood os cânones de beleza-juventude e sex appeal. Nos anos de 1930 a 1940, Hollywood produz um tipo de cinema para as audiências femininas, o chamado “filmes de mulheres”. Comédias como A costela de Adão (1949), dramas médios como Negra Vitória (1939), histórias de horror como Rebecca (1940), histórias sentimentais como Cartas de uma desconhecida (1948) e melodramas naturais como Stella Dallas (1937) centravam-se todos em torno de uma protagonista feminina e tratavam de questões e emoções consideradas femininas. Apesar de apresentarem as mulheres como heroínas e 190


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darem voz aos conflitos femininos, eles mostram repetidamente personagens passivas ou patéticas e apelam ao sofrimento empático das expectadoras. A tensão mantida no “filme de mulheres” entre autonegação e autoafirmação revela as contradições com que as mulheres tinham de viver. O período entre guerras é uma era gloriosa para alguns arquétipos femininos: a virgem inocente ou rebelde com imensos olhos crédulos, de lábios entreabertos ou suavemente sarcásticos. A vampe das mitologias nórdicas e a grande prostituída, oriundas das mitologias mediterrâneas, diferenciam-se e confundem-se no seio da grande imago da femme fatalle, que é universalizada rapidamente. Entre a virgem e a mulher fatal nota-se, numa região intermediária, uma transformação da imagem da mulher apaixonada. Não se trata mais daquela mulher em perigo passivo, tampouco da ativamente desejante, mas de uma exploração cada vez mais sistemática da figura da mulher que opta por participar de uma situação de passividade. É a mulher que escolhe sofrer por amor. Se a figura virginal evoca o masoquismo erógeno e a figura apaixonada se liga ao masoquismo moral, é nesta figura intermediária que poderíamos supor a melhor exploração do que Freud chamou de masoquismo feminino. Greta Garbo seria uma das melhores representantes dessa mulher que encarna “a beleza do sofrimento”, como atesta uma das suas frases mais conhecidas: “Leave me alone” (deixe-me só). A partir de 1930, os filmes tornam-se mais complexos, mais realistas, mais psicológicos. É também o início do sistema sonoro, que subverte o equilíbrio entre o real e o irreal 191


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estabelecido pelo cinema mudo. É nessa época que Hollywood opera sob o signo do otimismo para esquecer os efeitos da “grande depressão”. O happy end, que substitui o fim trágico, passa a ser uma exigência, um dogma. Todos estes movimentos precipitam e orientam a evolução do cinema, mas essa evolução é em si mesma determinada pelo final feliz, mais uma corrente fruto do aburguesamento do imaginário cinematográfico. O cinema teve sua origem como “espetáculo plebeu” aproximando-se dos temas de folhetim popular e de melodrama. O realismo, o psicologismo, o happy end e o humor mais complexo são efeitos desta indução secundária propiciada pelo avanço do imaginário. Uma expressão típica desse movimento são os chamados filmes musicais. Eles retratam a mulher substituindo sua atividade devaneante ou sua interiorização reflexiva pela irrupção do canto e da dança. De moral conciliatória e final feliz, os musicais resgatam a teatralidade das personagens femininas em uma combinação explícita dos tipos femininos hegemônicos. Sua densidade é, não obstante, reduzida pelo recurso à interpolação musical. As projeções-identificações, que caracterizam a personalidade no estágio burguês, aproximam-se do real ao multiplicar os sinais de verossimilhança e credibilidade. Atenuam e minimizam as estruturas melodramáticas para substituí-las por intrigas — daí o que se chama de realismo. Seus componentes são as motivações psicológicas e as tramas de interesse. O mesmo movimento que aproxima o imaginário do real aproxima o real do imaginário. Em outras palavras, a vida da alma se amplia, enriquece e hipertrofia, de fato, no interior da individualidade 192


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burguesa. A alma é precisamente o lugar da simbiose no qual imaginário e real se confundem e se alimentam um do outro. O amor, fenômeno da alma que mistura de maneira íntima nossas projeções-identificações imaginárias e nossa vida real, ganha mais importância. É com esse cenário social que as antigas imagos femininas se desfazem, dando lugar a forma ideal mais fiel à realidade. Ainda com raízes nos antigos estereótipos da virgem inocente, da noivinha e da exótica aventureira, há uma nova transmutação. Surge a mulher chique, a feminine-masculine girl, simultaneamente amante e companheira. A decadência da virgem corresponde ao declínio acentuado da vampe, que se estereotipa de modo crescente, reservando-se cada vez mais aos papéis coadjuvantes. Tornando-se personagem secundária, não pode mais adaptar-se ao novo clima realista do cinema sem parecer caricata: a piteira longa e os olhares fatais provocam risos, a unidimensionalidade da vampe a torna previsível e anacrônica em face de complexidade de novos tipos femininos, as estrelas se humanizam abrindo caminho para as mulheres reais. A partir de 1949, a antiga vampe, ao desagregar-se de sua estereotipia, liberta uma imagem erótica que se expande para a mulher chique desinibida, cantora de cabaré ou bailarina do teatro de revista. O sex appeal da vampe é incorporado agora em nova chave, marcada pela interiorização. Mas é no glamour que se processa a síntese da vampe, da amorosa e da virgem, introduzindo a good-bad girl. Apresenta-se, então, como uma mulher impura, com roupas leves, atitudes ousadas e carregada de insinuações. Ela situa-se em um novo tipo de narrativa em 193


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que as relações são de suspeita, mas não perversas, como as divas Rita Hayworth ou Lauren Bacall. É apenas ao final da trama que o espectador descobre que nela estava escondida toda a virtude das virgens: alma pura, bondade inata, coração generoso. Nada ilustra melhor o fim imaginário da beleza maldita do que a estética criada pelos desenhistas e fotógrafos dos anos 1940 e 1950. Esse período é marcado pelo surgimento de um novo tipo feminino: a pin-up, personagem autoirônica que sabe estar representando para os homens e o mundo, mas que, ao mesmo tempo, situa-se em outro lugar, como que a observar esta representação. São provocantes, mas não perversas. Suas imagens invadem, pouco a pouco, os mais variados meios de informação: os calendários, os painéis publicitários, os fliperamas e os cartões-postais. Antes da “revolução sexual” dos anos 1960 a 1970, as imagens explosivas, coloridas, juvenis das pin -ups exprimiram o advento de um feminino liberto de todo o mistério, de toda culpa e do “furor de viver”. As pin-ups, como Betty Boop, descobrem uma nova imago, a da adolescente que “se faz virginal”. É a partir daí que se inicia a época das “Vênus de blue jeans”, das belezas das imagens mais lúdicas que tenebrosas, mais pop que românticas, mais dinâmicas que enigmáticas. As figura das pin-ups são para a estética feminina o que o rock foi para a música. A oposição entre a beleza etérea e a beleza malsã se desfez em benefício de uma beleza sexy, direta, tônica e dessublimada, sem sombras nem profundidade. O cinema também consagrou o reino da pin-up colocando em cenas estrelas explosivas, com um sex appeal sem mistério. Foi Marylin Monroe quem levou essa representação à 194


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sua condição de mito. O modernismo da pin-up desenvolveuse reafirmando traços típicos de uma feminilidade marcada pelo primado das expectativas femininas clássicas. Na Europa, Brigitte Bardot foi a representante dessa nova feminilidade que projeta um erotismo desinibido natural e juvenil marcados por decotes, o stripe tease das estrelas, os banhos, o despir-se, o tornar a se vestir, danças, etc... Apresenta-se uma formação de compromisso entre duas lógicas: a moderna, concretizada na estética do corpo esbelto, nas pernas longas, uma hipersexualização do olhar e da boca, num sex appeal lúdico, e a tradicional “mulher-objeto”, definida por atrativos eróticos em excesso. O momento democrático do belo sexo significa o eclipse da mitologia da mulher fatal e a consagração de uma cultura eufórica, da beleza sem ambivalências. Chegamos à década de 70, momento em que os movimentos feministas, os discursos emancipatórios e a sedimentação das transformações do pós-guerra tornou a condição feminina um tema político. O cinema começou a ser povoado por “mulheres reais”. Isso não significou o desaparecimento da Star do cenário da cultura, mas sim, sua absorção por uma categoria mais ampla e aglutinadora. Mas depois do apogeu, vem a decadência: o suicídio de Marylin Monroe em 1962; Elizabethe Taylor com seus tormentos; a tentativa de suicídio de Brigitte Bardot; ou ainda, o acidente de James Dean, o jovem rebelde e transgressor — com seus excessos, ele não poderia ter outro destino. Este processo patológico deixou evidente que o verdadeiro caminho das

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estrelas não era a felicidade, o luxo e os prazeres, mas sim o caminho da carência. Com a sociedade do espetáculo, denunciada por Guy Debord, que se delineia mundialmente, sobretudo através do poder de sedução da mídia, a Star contemporânea deixou de ser o sonho de existência e metáfora do desejo para tornar-se um curioso objeto de consumo, não mais por sua áurea de sensualidade, e sim pelos excessos das Stars, pelos escândalos de tabloide. A promoção de uma imagem negativa passou a ser desejável quando se tratava de manter a exaltação midiática de um ícone. A Star foi, a partir de então, o modelo da dissonância, da negatividade e da humanidade total. Tendo em vista que nenhum objeto escapa da lógica formal da mercadoria, a parte maldita termina por constituir um disputado produto. As Stars contemporâneas reformulam o conceito que representam ao estamparem os objetos como embalagem, ao contrário das Stars de antigamente, que eram obedientes a um caráter pré-fabricado. Um bom exemplo seria o caso recente de Amy Winehouse, cercado de confusões, internações e depressões, evoca um modelo que está se tornado comum: aquele da diva incompreendida, de vida e de amores conturbados, que enfrenta seus conflitos cantando no palco e sofrendo fora dele. Essa visibilidade decadente desconstrói os mitos e humaniza os sujeitos, ao mesmo tempo que transforma os infortúnios em moeda de troca. O consumo é um território que desconhece os limites, que se expande na linha da compulsão; é a própria compulsão. O consumo nasce de uma prática idealista, é estar longe da 196


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satisfação das necessidades básicas e do princípio da realidade. Portanto, nunca traz a satisfação. O objeto é sempre uma promessa: a Star é um conceito que promete. Assim, os projetos frustrados são abolidos em objetos sucessivos, produzindo a Star em série. Na qualidade de objetos-signos, que se equivalem e, por isso mesmo, se multiplicam ao infinito, está a dinâmica existencial e indefinida de signos, mas por uma razão de viver em constante ascensão. Uma metástase se alastrou pela civilização, tendo em vista que o consumo possui a qualidade de um novo mito tribal constituindo a base moral do mundo contemporâneo, correndo o risco de não existirem nem mesmo signos totêmicos ou ídolos de barro para serem venerados.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DEBORD, Guy. A Sociedade do espetáculo. Tradução de: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1997. MORIN, Edgar. As estrelas-mito e sedução no cinema. Tradução de: Luciano Trigo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. RODRIGUES, Ana Lucilia. Pedro Almodóvar e a feminilidade. São Paulo: Escuta, 2008.

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Em todas as manhãs um desconcerto: o valor do silêncio João Carlos de Carvalho

RESUMO

O artigo discute as formas de compromisso do cinema com a era do caos. O absurdo da existência confrontado em nosso cotidiano. O resgate da memória afetiva feito pelo cinema e a poesia das sensações. Ilustração com os filmes Apenas uma vez e Pequeno dicionário amoroso. Em ambos, a capacidade de recuperar aspectos essenciais perdidos na banalização das relações sociais. Palavras-chave: Verdade e aparência. Cinema e lugar comum. Resgate e essência.

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uando acordamos, o aparente caos diário se reverte quando nos lembramos dos nossos compromissos. Não é um destino grandioso o que nos espera, são geralmente as mesmas coisas que nos aborrecem de tanto serem repetidas. Mas encontramos nessa arrumação um sentido para continuarmos as nossas vidas. Não é, na aparência, nenhum tempo precioso que nos aguarda, mas tão somente um pouco mais de graça em cada minuto onde o perigo do diferente nos acompanha, se prestarmos atenção. 199


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Sem dúvida, conseguiremos contar essa mesma história, sem enredo, em nossas memórias, um dia, sobre um certo cotidiano em que éramos mais felizes, porém, talvez, um pouco desavisados das consequências. Não temos como saber o que nos tornaremos, mas, tanto melhor, no meio das trevas do nosso inconsciente o importante foi em algum outro momento da vida termos nos alertado para o que foi tão importante ter perdido. Ou melhor, perceber que em um outro dia perdemos o que considerávamos essencial sem que isso soasse tão inevitável. A poesia me deu conta da enormidade que é o compromisso com o cotidiano. Como se nos violentássemos todas as vezes que corrêssemos sempre que há uma necessidade de cumprir horários, negligenciando nossos rituais diários. Mas a poesia não salva ninguém da perda, claro. Mas faz dela uma inexorável sentença que possa ser recuperada no estilhaço da memória das sensações. O cinema, digo a sala escura, sempre foi um refúgio para mim, como para muitas gerações antes de mim, simplesmente porque eu possuía um espaço meu durante duas horas. Na era do 3D, importa, parece, a sensação de se viver uma mesma realidade epidérmica a todo custo, mas para mim, solitário cinéfilo, o importante era estar em outra realidade onde uma velha emoção pudesse ser recuperada comigo mesmo. O cinema, não importa qual nacionalidade, tinha o poder de revelação de lógicas que eu jamais compreenderia por inteiro fora daquele espaço. Esconder-me ali, matando aula muitas vezes, seria um mergulho na própria ausência. Recuperar de maneira impossível a nossa essência do contraditório. Perceber que a degradação do 200


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mundo me fazia irmão e parceiro de uma multidão de artistas que encaravam sua timidez ou ousadia como falhas. O esgotamento das utopias, mais uma vez, coloca-nos de frente ao imperdoável. Não podemos ou não temos a chance de encontrar no outro a mesma miséria que nos assola. Nem o capitalismo nem o socialismo venceram no final das contas, apenas vivenciamos as nossas crises como se elas fossem a última dos nossos tempos, pois a realidade econômica se renova no seu sabor imponderável de urgências, mas nenhum economista poderá nos dar a dimensão dos projetos humanos frustrados nas pequenas coisas. É preciso restabelecer elos se queremos prorrogar o jogo. A realidade que bate a nossa porta não permite tempo para tergiversações, mas toda realidade nos escapa ao controle quando pensamos que a conhecemos. A história dos grandes romances da era burguesa, desde o século XIX, convida-nos a encarar o outro como um potencial inimigo. Não temos tempo para conhecer nem a nós mesmos, mas o que ainda resta de sensível no mundo é sempre uma possibilidade de mergulho em nossa noite particular. Não há lugar para velhas idiossincrasias, mas nos permitimos conhecer o outro também à medida da necessidade do nosso gozo. Mas o gozo é apenas a finalidade, não o resultado de todo o percurso da doença. Nossas chagas se curam nas próprias chagas e, ao apostar em transições possíveis, nada reanima tanto o nosso imaginário quanto a maldição de procurarmos uma verdade no fundo de tudo isso. A vida humana realmente se apresenta como uma armadilha em que a História procura pôr as coisas no lugar, mas no fundo lidamos com estilhaços discursivos, e a 201


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memória sempre aparece tarde para nos salvar. A graça de tudo pode estar aí. Quando a sociedade industrial começou a se pronunciar em sua ardente lógica produtiva, pensávamos ter resolvido alguns desafios essenciais: Deus está lá e eu aqui. O malogro se travestiria em acenos de felicidade, onde coubesse mais uma fantasia inventada pela idade contemporânea. A cobrança em torno do indivíduo era a sua própria condição insuportável de consciência. Ninguém tinha um remédio pronto para secar as feridas do ontem, pois a nostalgia era que secava a nossa crença no futuro, e nenhuma fórmula teológica, ou apenas lógica, recuperar-nos-ia da fratura essencial. O indivíduo, perdido na multidão, se aquecia no seu próprio luxo de poder optar pelo seu equívoco. Na alma, o que importava era a dimensão que o drama da existência sugeria como a possibilidade da reversão da injustiça. Sabíamos concebidos numa era limite, de surpresas justas, temperadas pela placidez pequeno-burguesa. O homem contemporâneo inaugurou um tipo de solidão nova, aquela que se reparte com os fantasmas da sua emancipação enquanto sujeito ou indivíduo. O mais difícil disso tudo sempre foi o reconhecimento do processo em que estávamos inseridos. A possibilidade no mergulho de um projeto que no fundo é o de toda uma era doentia. De uma civilização que padecia da sua própria implicância ao se arrostar com a possível felicidade. Nenhum homem pôde se dizer feliz, no entanto, o excesso, que permitia o desenvolvimento tecnológico, formatava um aparelho cada vez mais sofisticado de repressão do que antes era apenas básico para compensarmos nossas perdas primitivas. 202


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Ao nosso lado, uma multidão anônima se confundia com os nossos desejos e a violência interior se transmudava num processo inevitável de máscaras invisíveis. A pobreza de espírito e a miséria material foi o óleo que lubrificou a grande máquina do mundo em que aparentemente cabiam todos os novos sonhos. As notícias de além-mar refugiam-se em memórias de promessas cada vez mais falidas. Não há saída sem que possamos avaliar a nossa capacidade de frustração. Os desejos se multiplicam como vontades, pois já não sabemos o que é o desejo. A nossa era é cada vez mais permissiva com os sonhos de superação. Não há nada que possa soar como malogro maior. Estamos sozinhos mesmo acompanhados. Nossos fantasmas nos fazem melhor companhia do que os possíveis semelhantes. Nossos cães e gatos, por não nos causarem maiores surpresas, se tornam depositários de nossas carências essenciais. Quando nos conhecemos é quando nos estranhamos. A provocação em torno da fera que nos habita se concebe no quanto de antemão já nos sentimos comprometidos com o nada. Condenamo-nos nos mínimos gestos e palavras suspeitas. A arte é o refúgio que a multidão não tem acesso, mas não abrimos mão de nos consagrarmos por meio da busca da beleza. O reconhecimento, entre as dores do parto, reafirma a energia do indivíduo solitário em nós. Não podemos negar o campo de luta, mas ele não nos faz mais fortes apenas por teoria. O imprescindível parece ser a necessidade de traição à nossa própria época. Da rebeldia da juventude, por meio de toda uma energia gasta em tantas e outras (des)necessidades do percurso da vida, apenas acentuamos um pouco mais de sutileza 203


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às nossas vontades à medida que envelhecemos. O grande desafio, num primeiro momento, é saber se se é velho mesmo jovem, repetindo fórmulas ultrapassadas. Contam-se as experiências como se contam os dias que nos faltam para morrer. Elas abalizam qualquer grau de elucidação dos fatos. Mas os fatos nos ludibriaram e restou a agonia dos eternos parâmetros entre outras aparentes fórmulas de sucesso. O mundo doente não é capaz de diagnosticar-se apenas epidermicamente. As pessoas caminham em multidão e arrastam suas carências invisíveis como se pudessem apinhar em torno de si qualquer coisa para depois. Não há coragem suficiente para abrirmos o peito e gritarmos a nossa solidão essencial. Nossas necessidades de posse impressionam pela composição de um mundo que urge pelo inacabamento como única válvula de escape. Igrejas, estádios de futebol ou palanques políticos celebram as nossas imperfeições como medalha, mas a ferida do sucesso volta a nos incomodar: nenhuma promessa foi cumprida. Estamos prenhes de urgências, mas não sabemos o que fazer quando temos alguma resposta ou alento. Somos tão traidores como traídos. Não sabemos também o que fazer com as sobras das nossas ilusões e responsabilizamos quase sempre a nós mesmos ou ao sistema, mas nada aplaca a dor de nos sentirmos abandonados pelos nossos sonhos. Agarramo-nos às nossas idiossincrasias sem temperarmos o potencial de nossas fantasias. A sociedade, cada vez mais envergada, ainda tenta se debruçar sobre os pesadelos como se eles fossem também uma compensação na esperança de um futuro glorioso. Não há saída sem limitarmos as nossas

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ambições, no entanto, ninguém quer pagar o preço de apostar no vazio. Um filme como Apenas uma vez49 nos indica caminhos interessantes de reflexão e emoção sobre alguns dos pontos discutidos até aqui: a busca do par perfeito, o reconhecimento ou o romantismo como alento, tudo isso nos revelam aspectos sugestivos de um universo traído de antemão. Nesse drama (romântico?) as canções de amor e desilusão nos dão o tom da medida de uma série de despropósitos, de um roteiro construído para cativar e fazer enfrentar o sentimento de impotência. Estamos escondidos no meio desses heróis comuns, combalidos desde o início com suas carências, onde uma câmera nervosa parece querer manobrar à distância um mundo de destinos indefinidos. Temos o Cara e a Garota, sem necessidade de nomeação, já que eles representam uma multidão de anônimos com seus sonhos e fantasias, mas que no fundo precisam se reconhecer. Tocando em pontos essenciais dessa multidão de projetos frustrados que se (des)realizam nos mínimos detalhes, ambos são personagens famintos de tudo. Nossa identificação é imediata. Ele, um obscuro compositor e cantador de rua, que trabalha com o pai eventualmente consertando aspiradores de pó, e ela, uma imigrante tcheca, que vende flores na rua e se anima em demasia quando consegue uma ocupação como faxineira bem remunerada. A música é o passaporte para que os sonhos se aproximem, por meio do violão dele e o piano emprestado que ela toca todos os dias de favor numa loja. São dez 49 • Apenas uma vez (Once), direção e roteiro de John Carney, produção irlandesa, 2006, com atuações e composições de Glen Hansard e Markéta Irglová.

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baladas românticas que envolvem essas duas vidas sem maiores ânimos, povoados de memórias da dor da perda. Ambos cresceram e não cresceram suficientemente. Moram com o pai e a mãe, e ela, separada, cria praticamente sozinha a filha. Pois bem, os sonhos os reúnem e os separam. Entre eles não há a mínima chance de acontecer absolutamente nada e é isso que é surpreendente e doloroso no filme. Tudo que eles tinham para se dizer eles disseram num primeiro momento imprescindível onde o encontro de duas vidas começam. Tudo que era preciso conhecer de suas carências por meio das canções foi testado. Enfim, eles se ouviram porque se identificaram no mais pleno que uma relação pudesse envolver e direcionar para juntar esses dois percursos tão cheio de perdas. No meio do caos urbano do anonimato, daquela fria Irlanda, eles deram a cada um o suficiente: confiança. Mas a confiança não permitiu que ambos pudessem provar de uma relação homem e mulher, pois a profundidade havia sido alcançada em outro nível e qualquer compromisso a partir dali destruiria o essencial. Ambos se deram precipitadamente na fome do conhecimento do ser e só restou que a vida seguisse em frente em suas apostas triviais: ele vai para Londres tentar o reconhecimento e ela recomeça o relacionamento com o marido. Esses heróis sem nome traduzem enormemente a nossa capacidade de arrastarmos nossas fraturas de alma sem o direito a nenhum tipo de piedade, pois mesmo a emoção do expectador será incapaz de recuperar a frustração primária que move esses seres desde o início. A música é bastante e é pouca: somos predadores da origem e nos regulamos por doses cada 206


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vez maiores de autocomplacência apostando na utopia do que ficou por se dizer. Em Pequeno dicionário amoroso50, temos uma aparente leve comédia amorosa, talvez muito descontraída, que nos fala do encontro e desencontro de um casal através de alguns verbetes tidos como essenciais: felicidade, litígio, juramento, separação etc. Lembra-nos um pouco Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, numa situação mais ou menos obsedante de tentar encontrar o fio da meada perdido entre o início e o fim de um relacionamento. O que torna o filme agradável é a relação que se estabelece entre as tomadas individuais, e suas avaliações precisas e irônicas muitas vezes, ilustrando o fio narrativo em pedaços. Há uma guerra de sentidos que se divide entre os dois protagonistas e os seus duplos (seus melhores amigos), onde de um lado a experiência concreta se confronta com as hipóteses biológicas ou estatísticas. Todo o filme é uma crônica do fim/início anunciado. Mesmo que saibamos que o fim não é o fim, mas o recomeço, o que perdura como norte para o expectador é que ele está de frente para o abismo. Os defeitos não são meros desajustes de personalidades muito diferentes, nem as virtudes contam tanto assim. O que parece interessar para aqueles seres é testar sua capacidade de implicância no próprio cerne dos elementos que o juntaram. O que importa é que a promessa inicial foi traída, e nenhum deles está disposto a pagar a conta. O que lhes resta é se contorcerem no limite dos significados perdidos. Não há nada que 50 • Pequeno dicionário amoroso, direção de Sandra Werneck, roteiro de José Roberto Torero e Paulo Halm, produção brasileira, 1997, com atuações de Andréa Beltrão e Daniel Dantas.

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possa compensar a magia perdida. O indivíduo mesmo sendo facilmente substituível surge como sinal de um desamparo impressionante e fica difícil apostar no que permanece, pois não há nada que exprima o que eles realmente são ou vivam. O testemunho que resta reflete apenas a sanha devoradora sígnica de um tempo onde o valor da palavra não vale tanto quanto o que a gerou. Ambos os protagonistas são confundidos com o próprio valor da aposta que fizeram. As palavras e os sentidos complicam mais do que elucidam. Em períodos próximos (o que separa os dois filmes são apenas nove anos), início de um século e fim de outro, temos a ilustração corrente de um período esmagado pela urgência da individualidade. O sucesso e o reconhecimento se confundem com a busca da beleza. A harmonia não é possível fora dos planos pessoais de cada um, já sobrecarregados de justificativas. As palavras se articulam como armadilhas que aproximam e afastam as pessoas do sentido original, e cada retorno é sempre um outro retorno que faz da dor uma lógica inexorável que nenhum lugar comum compensa. Em ambos os filmes, a separação é inevitável, onde os riscos são praticamente iguais. No filme irlandês, a situação econômica pesava para que ambos pudessem de fato apostar num futuro possível, com uma criança e uma mãe a tiracolo por parte dela. No filme brasileiro, personagens de classe média, razoavelmente estabelecidos, o encontro meio desvairado no início se comuta em uma sensação de desperdício inelutável. A busca essencial é o que os movimenta sem saberem que a perda é imprescindível, mas no expectador o que permanece é o luxo de ter partilhado de 208


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solidões relatadas que, custasse o que custasse, o sufocaria com a própria escassez de referências de nossa época. Aprender é realmente o que importa em todo esse processo e talvez as lições tiradas dessas películas nos venham a dar algum alento no meio do nosso caos doentio. Se não podemos mais acreditar no amor como ele se projeta em nossas fantasias de antanho, a era que se anuncia obriga mais de nossas parcerias invisíveis na solidão. A sensação de beleza não pode vir desacompanhada de um sentimento de dor, senão corremos o risco de não nos darmos a nós mesmos e então nos reconhecermos no silêncio. O cinema talvez seja a expressão narrativa que reúna, em nossa época, todos os ingredientes para juntarmos as sensações verbo-visual-voco-auditivo simultaneamente, como entretenimento de massas, capaz ainda de anunciar algo fora de nossas prisões cotidianas. E encontrar, mesmo neste cotidiano massacrado, a nossa relação com esse essencial obscuro, indizível. Tal como uma música de orquestra, com sua aura, há algo que não nos permite abandonar um tipo de relação íntima com as nossas procuras mesmo por meio de um veículo de massas. O cinema, de um modo geral, acena para o nosso apelo original. Ambos os filmes trazidos aqui para a discussão, mesmo envolvidos em clichês, retomam aspectos importantes da nossa capacidade de enxergar o outro na sua monstruosidade sígnica, na sua superabundância simbólica do amor, por isso cativam. Retomamos a luta contra o tempo, apenas para conhecer mais uma vez os nossos limites.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de: Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. 200 p. LINS, R.L. O felino predador: ensaio sobre o livro maldito da verdade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. 340 p.

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