Comentario biblico nvi

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2. edição


Editora Vida

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© 1979, Pickering & Inglis Ltd. Título do original New International Bible Commentary ©2009, Editora Vida Edição publicada com permissão de Grand Rapids, (Grand Rapids, Michigan, EUA)

Todos os direitos desta tradução em língua portuguesa reservados por Editora Vida. Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em breves citações, com indicação da fonte.

Editor responsável: Marcelo Smargiasse Editor-assistente: Gisele Romão da Cruz Santiago Editor de qualidade e estilo: Sônia Freire Lula Almeida Tradução: Valdemar Kroker Revisão de tradução: Daniel de Oliveria Revisão de provas: Josemar de Souza Pinto Projeto gráfico e diagramação: Arte Peniel e Karine dos Santos Barbosa Capa: Arte Peniel

Scripture quotations taken from Bíblia Sagrada, Nova Versão Internacional, NVI® Copyright © 1993, 2000 by International Bible Society®. Used by permission IBS-STL U.S. All rights reserved worldwide. Edição publicada por Editora Vida, salvo indicação em contrário. Todas as citações bíblicas e de terceiros foram adaptadas segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.

1. edição:  jan. 2009 2. edição:  jun. 2012

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Bruce, F. F. Comentário Bíblico NVI: Antigo e Novo Testamentos / editor geral F. F. Bruce; tradução Valdemar Kroker. — 2. ed. — São Paulo: Editora Vida, 2012. Título original: New International Bible Commentary. ISBN 978-85-383-0085-4 1. Bíblia. A.T. — Comentários 2. Bíblia. N.T. — Comentários I. Bruce Frederick Fyvie, 1910-1990. CDD-221.7 08-08636 -225,7

Índices para catálogo sistemático: 1. Vida espiritual: Cristianismo   248.4


Sumário Mapas............................................................................................ vii Prefácio à primeira edição........................................................viii Prefácio à segunda edição.........................................................viii Lista de colaboradores................................................................. ix Abreviações.....................................................................................xi Livros e revistas............................................................................ xii Abreviações gerais......................................................................xiii Parte 1: Artigos Gerais —O Antigo Testamento O Antigo Testamento e o cristão - F. F. Bruce......................... 17 O texto do Antigo Testamento - Alan R. Millard................... 24 As versões antigas - Robert P. Gordon..................................... 27 O cânon e os apócrifos do Antigo Testamento Gerald F. Hawthorne - Robert P. Gordon....................... 36 A arqueologia e o Antigo Testamento - D. J. Wiseman......... 50 O pano de fundo geral do Antigo Testamento J. M. Houston....................................................................... 55 A teologia do Antigo Testamento - H. L. Ellison.................... 65 A interpretação do Antigo Testamento - Harold H. Rowdon....77 Introdução ao Pentateuco - David J. A. Clines....................... 88 Introdução aos livros históricos L. O’B. David Featherstone.....................................................94 A cronologia do Antigo Testamento - F. F. Bruce................... 98 Introdução aos livros poéticos - F. F. Bruce............................ 99 Introdução à literatura sapiencial - F. F. Bruce.................... 104 Introdução aos livros proféticos - G. C. D. Howley............ 109 Parte 2: O Antigo Testamento Gênesis - H. L. Ellison (Capítulos 1—11) David F. Payne (Capítulos 12—50)................................. 118 Êxodo - Robert P. Gordon........................................................ 154 Levítico - Robert P. Gordon.................................................... 192 Números - T. Carson................................................................. 215 Deuteronômio - Peter E. Cousins........................................... 254 Josué - John Lilley..................................................................... 280 Juízes - Carl Edwin Armerding............................................... 305 Rute - Charles A. Oxley............................................................ 334 1 e 2Samuel - Laurence E. Porter............................................ 341 1 e 2Reis - Charles G. Martin................................................... 383 1 e 2Crônicas - J. Keir Howard................................................ 430 Esdras - Stephen S. Short.......................................................... 473 Neemias - Stephen S. Short..................................................... 481 Ester - John I. Bendor-Samuel................................................ 491 Jó - David J. A. Clines................................................................ 502 Salmos - John W. Baigent (1—72); Leslie C. Allen (73—150).................................................. 532

Provérbios - Charles G. Martin............................................... 632 Eclesiastes - Donald C. Fleming............................................. 667 Cântico dos Cânticos - R. W. Orr........................................... 678 Isaías - David F. Payne............................................................... 689 Jeremias - Donald J. Wiseman................................................ 736 Lamentações de Jeremias - W. Osborne............................... 770 Ezequiel - F. F. Bruce................................................................. 776 Daniel - Alan R. Millard........................................................... 812 Oseias - G. J. Polkinghorne...................................................... 836 Joel - Paul E. Leonard................................................................ 849 Amós - J. Keir Howard.............................................................. 857 Obadias - W. Ward Gasque..................................................... 877 Jonas - Michael C. Griffiths..................................................... 879 Miqueias - David J. Clark......................................................... 891 Naum - E. M. Blaiklock............................................................. 901 Habacuque - Alan G. Nute....................................................... 905 Sofonias - Victor A. S. Reid...................................................... 912 Ageu - F. Roy Coad.................................................................... 919 Zacarias - David J. Ellis.............................................................. 923 Malaquias - W. Ward Gasque................................................. 946 Parte 3: Artigos Gerais do Novo Testamento A autoridade do Novo Testamento - G. C. D. Howley........ 955 Texto e cânon do Novo Testamento - David F. Payne......... 962 A língua do Novo Testamento - David J. A. Clines.............. 969 Descobertas arqueológicas e o Novo Testamento Alan R. Millard.................................................................. 976 O pano de fundo social do Novo Testamento J. M. Houston..................................................................... 982 Pano de fundo histórico e político e cronologia do Novo Testamento - Harold H. Rowdon.................. 994 O pano de fundo religioso do Novo Testamento (pagão) - Harold H. Rowdon........................................ 1003 O pano de fundo religioso judaico do Novo Testamento - H. L. Ellison............................................. 1008 O desenvolvimento da doutrina no Novo Testamento Walter L. Liefeld.............................................................. 1014 O evangelho quádruplo - F. F. Bruce.................................... 1026 A igreja apostólica - F. Roy Coad.......................................... 1035 As cartas de Paulo - G. C. D. Howley.................................... 1046 As cartas gerais - F. F. Bruce................................................... 1056 O uso neotestamentário do Antigo Testamento David J. Ellis...................................................................... 1061 Parte 4: Novo Testamento Mateus - H. L. Ellison ............................................................. 1071

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su m a´ r io

Marcos - Stephen S. Short...................................................... 1105 Lucas - Laurence E. Porter...................................................... 1129 João - David J. Ellis................................................................... 1172 Atos - E. H. Trenchard............................................................. 1206 Romanos - Leslie C. Allen...................................................... 1252 1Coríntios - Paul W. Marsh................................................... 1282 2Coríntios - David J. A. Clines.............................................. 1321 Gálatas - F. Roy Coad.............................................................. 1346 Efésios - George E. Harpur..................................................... 1359 Filipenses - H. C. Hewlett...................................................... 1370 Colossenses - Ernest G. Ashby.............................................. 1381 1Tessalonicenses - Peter E. Cousins..................................... 1390 2Tessalonicenses - Peter E. Cousins..................................... 1397 Epístolas pastorais - Alan G. Nute........................................ 1402 1Timóteo - Alan G. Nute........................................................ 1405 2Timóteo - Alan G. Nute........................................................ 1415

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Tito - Alan G. Nute.................................................................. 1422 Filemom - Ernest G. Ashby.................................................... 1427 Hebreus - Gerald F. Hawthorne............................................ 1429 Tiago - T. Carson...................................................................... 1459 1Pedro - G. J. Polkinghorne................................................... 1474 2Pedro - David F. Payne.......................................................... 1487 As Cartas de João - R. W. Orr................................................. 1494 1João - R. W. Orr..................................................................... 1495 Segunda e terceira cartas de João - R. W. Orr.................... 1509 2João - R. W. Orr..................................................................... 1511 3João - R. W. Orr..................................................................... 1512 Judas - David F. Payne............................................................. 1513 Apocalipse - F. F. Bruce........................................................... 1516 Bibliografia............................................................................... 1561


Mapas No Título Página 1 A divisa Israel-Judá (1Rs 15; 2Cr 13—16).................................. vii 2 Canaã dos patriarcas......................................................................90 3 A península do Sinai.................................................................... 191 4 Jericó.............................................................................................. 283 5 Ai e Betel........................................................................................ 287 6 As cidades dos heveus................................................................. 288 7 A campanha no sul...................................................................... 289 8 A campanha no norte.................................................................. 290 9 Palestina e Transjordânia............................................................ 291 10 O território oriental.................................................................... 292 11 Judá, a divisa ao norte................................................................. 293 12 Judá, a divisa ao sul...................................................................... 293 13 Judá ocidental............................................................................... 294 14 Judá oriental................................................................................. 295 15 Efraim e Manassés....................................................................... 296 16 Benjamim...................................................................................... 297 17 Simeão............................................................................................ 298 18 Dã.................................................................................................... 299 19 Norte da Galileia.......................................................................... 301 20 Sul da Galileia .............................................................................. 302 21 Guerras dos juízes........................................................................ 316

No Título Página 22 Ataques dos filisteus.................................................................... 350 23 Distritos de Salomão................................................................... 390 24 O Reino do Norte......................................................................... 402 25 Invasões síria e assíria................................................................. 414 26 A queda de Judá............................................................................ 425 27 O retorno à terra........................................................................... 483 28 A terra dos profetas...................................................................... 721 29 O mundo dos profetas................................................................ 728 30 As estradas principais na época dos romanos.................................. 985 31 A Palestina dos evangelhos......................................................... 989 32 Ásia Menor.................................................................................... 990 34 O Oriente Médio nos tempos dos patriarcas........................ 1551 35 O êxodo e a conquista de Canaã............................................. 1552 36 O império de Davi e Salomão.................................................. 1553 37 O reino dividido......................................................................... 1554 38 A vida e o ministério de Jesus.................................................. 1555 39 Primeira e segunda viagens missionárias de Paulo............. 1556 40 Terceira viagem missionária de Paulo e viagem a Roma.... 1557 41 O Império Romano na época do Novo Testamento............ 1558 42 Mapa físico da Terra Santa....................................................... 1559

Mapa 1 — A divisa Israel-Judá (1Rs 15; 2Cr 13—16)

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Prefácio à primeira edição Este volume representa uma ampliação surgida a partir da publicação do A New Testament Commentary, em 1969. Cristãos evangélicos de todos os segmentos receberam muito bem aquela obra, e houve muitos pedidos para que se publicasse um livro abrangendo a Bíblia toda. Foi possível aumentar a nossa equipe inicial, e a presente obra é o resultado disso. Fomos encorajados pela reação daqueles que tão prontamente decidiram fazer parte do corpo de colaboradores. Uma alegria especial que experimentei é que quase todos os membros da equipe de autores estão ligados a mim por laços de amizade pessoal. Desde quando saiu o volume anterior, passei por um período de grave enfermidade, que deixou sua marca, e não poderia ter assumido a responsabilidade de editor geral não fosse a ajuda e o conselho constantes do professor F. F. Bruce. Na parte do Novo Testamento, o sr. H. L. Ellison atuou como editor consultor; na seção do Antigo Testamento, ele também prestou ajuda valiosa em uma série de questões, talvez especialmente no seu trabalho editorial no livro de Números, além do seu artigo sobre a Teologia do Antigo Testamento e o seu comentário sobre Gênesis 1—11. Os estudos bíblicos nunca podem permanecer estáticos, pois a passagem do tempo traz nova luz sobre o texto, seja com referência a dados históricos ou a outros dados factuais em consequência de novas descobertas, seja por intermédio de percepções de estudiosos e outros que se aplicam a refletir sobre a Palavra de Deus. A atmosfera atual do pensamento teológico é tal que correntes muito diferentes são discerníveis, tanto liberais quanto conservadoras. O propósito deste comentário é fornecer uma base para a exegese das Escrituras que procura estar atualizada. A natureza da obra evita a ênfase em aspectos devocionais ou exortativos; antes, ocupa-se em fazer um exame detalhado do texto como tal. Embora

a perspectiva seja conservadora, não será (assim esperamos) obscurantista. Queremos colocar nas mãos de cristãos de todas as correntes e denominações uma obra que esteja assentada sobre a crença histórica e ortodoxa na autoridade das Escrituras Sagradas. Procuramos evitar ser meramente acadêmicos; nosso objetivo é atrair a atenção tanto dos que não são experts em teologia como daqueles que têm uma formação mais ampla e percepções mais profundas nesse campo de estudo. Embora tenhamos tentado nos atualizar em todo o material, é compreensível que em algumas questões talvez nunca se alcancem as conclusões definitivas, em virtude de novos fatores que surgem de tempos em tempos. Os artigos que precedem cada seção do comentário cobrem um amplo leque de assuntos, e esperamos que se mostrem tão valiosos como acréscimos à obra quanto o foram os artigos incluídos no A New Testament Commentary. Convidamos colaboradores de diferentes ramos da igreja cristã, que não se limitam a nenhum grupo ou denominação. Eles demonstram uma atitude objetiva e positiva no seu trabalho, com liberdade para expressar suas ideias com relação aos assuntos que estão tratando, sem nenhuma tentativa de forçar suas contribuições para que caibam em um molde comum e uniforme. A Revised Standard Version da Bíblia foi usada como texto-base, e expressamos nossa gratidão ao Concílio Nacional das Igrejas de Cristo nos Estados Unidos pela permissão para usarmos esse texto. Como no volume anterior, lançamos esta obra com oração pela bênção de Deus sobre ela e sobre todos os que consultarem suas páginas ou refletirem sobre seu conteúdo para a edificação e fortalecimento da sua vida espiritual. G. C. D. Howley

Prefácio à segunda edição A característica marcante desta nova edição do Bible Commentary for Today é a substituição da Revised Standard Version (Versão Revisada Padrão) pela New International Version (Nova Versão Internacional) como texto-base. Aproveitamos a oportunidade para fazer algumas correções e atualizações menores, especialmente nas bibliografias. Além do falecido sr. Andrew Gray, cujo trabalho em adaptar o comentário à New International Version é reconhecido a seguir, o dr. Robert P. Gordon e o

sr. David G. Deboys fizeram contribuições muito valiosas no preparo desta edição. Desde que a primeira edição foi publicada em 1979, dois membros da equipe editorial faleceram — sr. G. C. D. Howley e sr. H. L. Ellison. Esses dois homens investiram muito tempo de trabalho árduo neste Comentário, especialmente o sr. Howley, editor-chefe, para quem esta obra se torna um monumento digno e permanente. F. F. Bruce

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Dedicado ao falecido sr. Andrew Gray D.S.C., M.A., que dedicou muitas horas ao preparo desta nova edição.


Parte 1

A r tigos Gerais O A n tigo T estamento


O Antigo Testamento e o cristão F. F. Bru ce

O Antigo Testamento na igreja Além do seu status de Escritura sagrada, o AT é uma obra literária das mais interessantes e valiosas por si só, um objeto digno de estudos intensos e constantes. Posto na sua perspectiva histórica e interpretado corretamente, ele se constitui em fonte primária indispensável para uma fase importante da história — especialmente a história religiosa — do Antigo Oriente Médio. Parte do seu conteúdo é do mais elevado nível literário, e muito desse conteúdo ainda gera reações de apreciação espiritual no leitor e proporciona-lhe um meio de expressar as aspirações mais profundas da sua própria alma. Tudo isso vale tanto para leitores cristãos quanto para os outros, mas os cristãos têm de considerar ainda o seu status como parte das Escrituras Sagradas da igreja cristã. O AT está investido de autoridade especial como Escritura sagrada não só para cristãos, mas também para judeus e muçulmanos. Na ortodoxia judaica, a Bíblia hebraica, que contém a Lei, os Profetas e os Escritos, é toda a Palavra de Deus. A sua interpretação é regulamentada pela tradição e, por motivos polêmicos ou apologéticos, a tradição tem recebido algumas vezes status equivalente ao do texto, mas tanto em princípio como de fato o texto escrito tem prioridade e é normativo. No islamismo, o tawrat (as Escrituras judaicas), e o inji-l (as Escrituras cristãs) registram a revelação de Deus dada por meio de profetas anteriores, que seria então finalmente reiterada e confirmada na revelação dada por meio de Maomé e registrada por escrito no Alcorão. Já na igreja cristã, o AT é reconhecido tradicionalmente como o texto que registra os estágios iniciais desse processo contínuo de revelação divina e de resposta humana, que teve seu cumprimento em Cristo, sendo o NT o registro desse cumprimento. Se o que Deus falou a nossos antepassados por meio dos profetas, muitas vezes e de muitas maneiras, está preservado no AT, o NT, por sua vez, nos conta que “nestes últimos dias falou-nos por meio do Filho” (Hb 1.12). Mas, se colocarmos a questão dessa maneira, poderemos negligenciar o fato de que nas primeiras gerações da sua existência a única Bíblia da igreja cristã era o AT, e ela se deu muito bem tendo somente o AT. Quando nosso Senhor afirma que “são as Escrituras que testemunham a meu respeito” (Jo 5.39), ele está se referindo às Escrituras do AT. Quando é dito a Timóteo que “toda Escritura é inspirada por Deus”, a referência é àqueles escritos sagrados com que Timóteo estava familiarizado desde a infância — ou seja, os escritos do AT (a propósito,

na versão LXX). Timóteo é lembrado que esses são os escritos “que são capazes de torná-lo sábio para a salvação mediante a fé em Cristo Jesus” e que proporcionam uma instrução abrangente e completa “para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2Tm 3.15-17). Era do AT que os primeiros pregadores cristãos, seguindo o exemplo do seu Mestre, extraíam seus textos; e o faziam de maneira formal e expressa quando se dirigiam a audiências judaicas e de maneira implícita quando pregavam aos gentios. Assim como Jesus afirmou que não viera abolir a Lei e os Profetas, mas para cumpri-los (Mt 5.17), Paulo também afirma que a Lei e os Profetas testemunham do evangelho da justificação pela fé (Rm 3.21,22). Mesmo já quase na metade do segundo século da era cristã, os escritos do AT ainda desfrutavam dessa dignidade única. Tem-se comentado muitas vezes quão expressivo é o número de pagãos cultos do século II, como Justino Mártir e seu discípulo Taciano, que se converteram ao cristianismo — e eles mesmos dão testemunho disso — por meio da leitura do AT grego. Nessa época, naturalmente, a maioria dos documentos que constituem o NT já existia e circulava havia décadas, mas ainda não tinha recebido aceitação geral como uma coleção de escritos do mesmo nível que o AT, como sendo o volume do cumprimento ao lado do volume da promessa. No entanto, quando falamos desse status singular do AT na igreja primitiva, estamos falando do AT interpretado e cumprido por Jesus. A igreja e a sinagoga compartilhavam do mesmo texto sagrado (faz pouca diferença se, em algumas regiões de fala grega, o cânon da igreja era ligeiramente mais abrangente do que o cânon da sinagoga), mas o texto era compreendido de formas tão diversas pela igreja e pela sinagoga que poderia até parecer que estivessem usando duas Bíblias diferentes. Em vão, Justino tenta convencer Trifo, no seu Diálogo com o judeu Trifo, da verdade do cristianismo, recorrendo às Escrituras que ambos reconhecem como divinas: o apelo de Justino pressupõe uma interpretação que Trifo não consegue aceitar. Essa interpretação pode ser resumida na afirmação de que Cristo e o evangelho são o tema do AT. “Todos os profetas dão testemunho dele, de que todo o que nele crê recebe o perdão dos pecados mediante o seu nome” (At 10.43). Os profetas podem até ter investigado e examinado cuidadosamente as Escrituras “procurando saber o tempo e as circunstâncias para os quais apontava o Espírito de Cristo que neles estava” (1Pe 1.10,11), mas as pessoas que testemunharam os 17


O Antigo Testamento e o cristão

eventos da salvação não precisaram de tal investigação ou exame; elas sabiam. A pessoa era Jesus; a época era agora. Essa compreensão do AT permeia de forma tão ampla e completa os escritos do NT que ela certamente vai além desses escritos até o próprio Jesus, e este é, de fato, o testemunho dos Evangelhos e de todas as camadas da tradição que podem ser identificadas na sua base. O anúncio das boas-novas aos pobres, que de acordo com os profetas do AT caracterizava a proclamação do ano da bondade do Senhor (Is 61.1,2), é apresentado por Jesus como a essência do seu próprio ministério: “Hoje”, ele disse, “se cumpriu a Escritura que vocês acabaram de ouvir” (Lc 4.18-21; cf. 7.22). Ele deixou bem claro que isso fazia parte do advento desse reino que, de acordo com outro autor do AT, o Deus dos céus estabeleceria em dias futuros (Dn 2.44; 7.14, 22,27). Ele parabenizou seus discípulos porque eles viviam numa época em que podiam experimentar coisas que profetas e homens justos de outros tempos tinham, em vão, desejado ver e ouvir (Mt 13.15,16; Lc 10.23,24). E se no final seu ministério seria coroado com a morte, então isso também — para que ele “sofra muito e seja rejeitado com desprezo” — era algo que estava escrito acerca do “Filho do homem” (Mc 9.12). Seguro disso, ele submeteu-se a seus captores com as palavras: “Mas as Escrituras precisam ser cumpridas” (Mc 14.49). Os seus seguidores, portanto, descobriram que as Escrituras do AT estavam repletas de novo sentido à medida que desvendavam seus mistérios mais profundos com a chave que o seu Mestre lhes dera. Quando seu testemunho foi perpetuado de forma escrita, e os documentos que o perpetuaram foram, no devido tempo, reunidos e canonizados no NT, a autoridade do AT não foi, de forma alguma, diminuída. Também, quando na primeira metade do século II Marcião afirmou que Jesus e o evangelho eram coisas completamente novas, não relacionadas a nada que havia ocorrido antes, negando assim que o AT tivesse o direito de ser tratado como Escritura cristã, a igreja não deu nenhuma guarida a ele nem às suas convicções. Alguns argumentos usados para refutá-lo talvez tenham sido tolos, mas havia uma sã intuição de que o evangelho não floresceria com mais vigor se fosse cortado de suas raízes do AT.

A Palavra de Deus no AT É verdade que houve uma mudança de perspectiva na igreja desde os primeiros dias em que o AT era a sua única Bíblia, tornada compreensível pelo seu cumprimento em Cristo. Hoje em dia a tendência é valorizar mais o NT do que o AT. Creio que há concordância geral de que o conhecimento do AT é necessário para a compreensão do NT. Em primeiro lugar, ele registra a preparação para o evangelho, é o relato do que aconteceu antes, sem o que o evangelho não pode ser compreendido adequadamente. Além disso, o NT está de tal modo repleto de citações do AT que o conhecimento deste 18

é tão essencial para sua apreciação quanto o conhecimento dos clássicos gregos e latinos é essencial para a apreciação da obra de Milton (por exemplo).1 Mas para Milton os clássicos em grego ou latim não continham autoridade própria; eles proporcionavam uma mina inexaurível de alusões literárias. As alusões ao AT no NT, no entanto, não estão ali para efeitos literários; elas implicam o reconhecimento da autoridade inerente ao próprio AT. Os autores do NT consideravam que o conteúdo da sua mensagem estava organicamente de acordo com a mensagem do AT, a ponto de o AT e o NT poderem ser considerados duas partes de uma mesma sentença, cada parte sendo essencial para a compreensão do todo. Essa percepção está destacada no artigo VII dos “Trinta e nove artigos”, que começa assim: “O Antigo Testamento não é contrário ao Novo; porquanto em ambos, tanto no Antigo como no Novo, a vida eterna é oferecida ao gênero humano por Cristo, que é o único Mediador entre Deus e o homem, sendo Ele mesmo Deus e Homem...”. A unidade da mensagem dos dois testamentos não deve ser estabelecida por meio de exercícios tipológicos fantasiosos, que encontram nos escritos do AT as mais diversas doutrinas neotestamentárias, das quais nem os autores originais nem seus leitores poderiam sequer suspeitar. Essa unidade pode ser demonstrada de forma mais eficiente por meio do reconhecimento de um padrão recorrente de ação divina e resposta humana, como é traçado, por exemplo, em 1Co 10.1-11 ou Hb 3.7—4.13. Houve muitas tentativas de apresentar essa ininterrupta mensagem de uma forma que destacasse o seu significado básico e a sua adequada plenitude em Cristo. Entre essas tentativas, provavelmente a mais bem-sucedida seja aquela que a apresenta como a “história da salvação” (Heilsgeschichte), o relato dos atos salvíficos de Deus que tiveram sua consumação na obra salvífica de Cristo. Deus é aclamado repetidamente no AT como a “salvação” do seu povo. Ele se manifesta nessa qualidade em épocas sucessivas da história do AT, mas de forma especial no êxodo do Egito e no retorno do exílio babilônico (cf. Êx 15.2; Is 45.15-17). O registro da primeira dessas libertações fornece um modelo de narrativa no qual a segunda libertação pode ser retratada, e o registro das duas fornece um modelo de narrativa usado no NT para retratar a obra salvífica de Cristo. A salvação de Deus e o seu juízo, no Antigo Testamento, são dois aspectos da mesma ação: se ele vindicou o seu nome ao permitir que seu povo fosse para o exílio por se rebelar contra ele, da mesma forma vindicou o seu nome ao trazê-lo de volta. A salvação desse povo é a sua vindicação (cf. Sl 98.1-3). No ato culminante do evangelho, esses temas gêmeos de salvação e juízo coincidem: Jesus absorve o julgamento na sua própria pessoa e assim realiza a salvação do seu povo. 1. John Milton (1608-1674) é o maior poeta épico da língua inglesa. Sua obra-prima é Paradise Lost [O paraíso perdido, Ediouro, 2000]. [N. do T.]


O Antigo Testamento e o cristão

Nessa história da salvação, o ato divino e a palavra profética andam de mãos dadas: nenhum deles proporciona uma revelação completa sem o outro. A relação entre o ministério de Moisés e a libertação realizada no êxodo é equiparada à interação entre o ministério de profetas posteriores e os atos de misericórdia e juízo que eles proclamaram ou interpretaram. Quando chegamos à consumação do NT, o ato redentor e o ministério profético coincidem na mesma pessoa — Jesus. Alguns estudiosos encontraram no tema da aliança um princípio unificador para o relato do AT, que conduz ao cumprimento do evangelho. O Deus de Israel é um Deus que faz alianças e as cumpre: ele estabelece um relacionamento especial com as pessoas e dispõe-se a ser o seu Deus, entendendo que elas querem ser o seu povo. Nos dias de Noé, ele faz uma aliança com toda a raça humana(Gn 6.18; 9.8-17); por meio de Abraão, ele estabelece sua aliança com uma família específica, com anúncio de bênçãos para todas as outras famílias (Gn 15.8-21; 17.1ss; 22.15-18); e quando essa família cresce e se torna uma nação, ele confirma sua aliança com ela no monte Sinai, logo depois da sua libertação do Egito, com um código simples de leis que são a constituição básica dessa aliança (Êx 24.3-8; 34.10-28), e a reafirma em Siquém, logo depois de o povo se fixar na terra prometida(Dt 27.1-28,48; Js 8.30-35; 24.1-28). Uma aliança posterior e mais restrita foi feita com Davi, confirmando a ele e seus descendentes o reinado sobre Israel (2Sm 7.8-17; Sl 89.19-37; 132.11-18). A aliança de Deus com Noé recebe pouca ou nenhuma atenção no NT. “O juramento que fez ao nosso pai Abraão” (Lc 1.73) é considerado cumprido no evangelho da justificação pela fé (Rm 4.13ss; Gl 3.6-18); a aliança com Davi é considerada (especialmente nos escritos de Lucas) como cumprida na exaltação e soberania de Jesus (Lc 1.32,33; At 2.25-36; 13.22,23,32-37; 15.16-18). Mas a aliança dos dias de Moisés é contrastada com a aliança eterna introduzida por Jesus e selada com seu sangue; esta aliança é identificada como a “nova aliança” anunciada em Jr 31.31-34, que de fato deveria substituir a aliança deficiente e quebrada feita com os antepassados de Israel, quando Deus os tomou “pela mão para tirá-los do Egito” (cf. 2Co 3.4-18; Hb 8.6—9.22). A história da salvação e a história da aliança são chaves valiosas para a compreensão cristã do AT e do seu lugar na Bíblia como um todo, principalmente porque não precisam ser importadas para dentro do relato bíblico como princípios de organização, pois elas já estão presentes nesse relato. Mas elas não cobrem todo o AT, e será lastimável se sua importância for exagerada a ponto de serem negligenciadas as partes do AT que não possam ser adequadamente relacionadas com elas.

A resposta humana no AT Os “livros sapienciais” do AT não podem facilmente ser reunidos sob a rubrica da história da salvação ou da

aliança; mesmo assim, dão uma contribuição indispensável à mensagem do AT. O sábio estava ao lado do sacerdote e do profeta como comunicador da verdade divina para os seus compatriotas (cf. Jr 18.18). A literatura sapiencial da Bíblia hebraica é marcada por um aspecto internacional, seja no tratamento das coisas observadas no dia a dia da vida e da natureza (como em Provérbios), seja no tratamento dos problemas mais profundos da existência humana (como em Jó). A literatura sapiencial posterior (e.g., Sabedoria e Eclesiástico) está mais intimamente relacionada ao panorama religioso de Israel e tende a identificar a sabedoria com a Lei mosaica. O AT registra não somente a revelação que Deus fez de si mesmo no curso da história do seu povo, mas também a resposta do povo a essa revelação. Junto com os livros poéticos do AT (principalmente o Saltério), a literatura sapiencial pertence em grande parte à área da resposta humana à revelação divina. Homens e mulheres aos quais Deus se revelou por meio de uma experiência pessoal, como também por meio da história nacional, contam o que ele passou a significar para eles, e, no seu testemunho, aprendemos mais sobre os caminhos de Deus no trato com o ser humano — e aprendemos isso de tal maneira que as palavras desse seu testemunho fornecem um meio aceitável para o nosso próprio testemunho de como Deus lida conosco. Isso explica, em grande parte, a popularidade dos salmos como meio de louvor cristão.

nosso Senhor e o AT A avaliação que os cristãos fazem do AT não pode ser dissociada do uso que Jesus fez dele. Está claro que Jesus o considerava a última instância de apelação. Ele citou-o para justificar seu procedimento e expor as deficiências tanto dos fariseus quanto dos saduceus. No AT, ele encontrou alimento e conforto para sua alma; nele encontrou também o programa para seu ministério e a vontade de Deus para sua vida diária e seu sacrifício derradeiro. “O que foi indispensável para o Redentor”, tem-se dito com muita propriedade, “precisa sempre ser indispensável para os redimidos” (G. A. Smith, Modern Criticism and the Preaching of the OT, 1901, p. 11). No entanto, mesmo se baseando indiscriminadamente na Lei, nos Profetas e nos Escritos, não o fazia sem discernimento. Não há nada de estranho ou inadequado na sua aplicação do texto sagrado; tampouco ele o coloca, todo, em um mesmo plano. A letra da Lei precisa ser subserviente ao espírito da Lei. O descanso no sábado e a relação matrimonial foram instituídos para benefício de homens e mulheres, e são cumpridos de modo melhor quando esse propósito é promovido. Até mesmo a pressuposição de Moisés de que o divórcio é permitido (Dt 24.1-4) é tratada como uma concessão feita por causa da “dureza de coração” do ser 19


O Antigo Testamento e o cristão

humano; Jesus encontrou um caminho mais excelente embutido na ordenança do Criador (Gn 1.27; 2.24, citados em Mc 10.2-9). A observância literal da lei do sábado pode dar lugar a uma necessidade maior, como ocorreu no caso da observância da lei relacionada ao pão da Presença, quando Davi e seus homens estavam famintos (1Sm 21.1-6, mencionado em Mc 2.25-28). A lei do “olho por olho, dente por dente” (Êx 21.24) mostrou um avanço ético considerável na época, ao substituir a vingança do sangue pelo princípio da retribuição estritamente limitada, mas a seus discípulos Jesus recomendou o princípio melhor da não retaliação e, melhor ainda, o da retribuição do mal com o bem (Mt 5.3848). Ele resumiu toda a Lei (e os Profetas) no duplo mandamento do amor a Deus e do amor ao próximo (Dt 6.4,5; Lv 19.18); qualquer interpretação ou aplicação que não fosse condizente com a lei do amor estava consequentemente descartada (Mc 12.28-31; cf. Lc 10.25-37). Ele figurou na linhagem dos grandes profetas de Israel, e tratou o ensino destes com a dignidade que merecia, não como se fosse uma série de notas de rodapé da Lei. Como eles, ele atribuiu mais valor às questões éticas (interpessoais) do que às exigências rituais (e.g., Mt 5.23,24), no espírito de Os 6.6: “Pois desejo misericórdia, e não sacrifícios” (citado em Mt 9.13; 12.7). De todos os profetas, o que mais demonstra afinidade com Jesus é Jeremias, o profeta da nova aliança, que insiste na interioridade da verdadeira religião. Quando Jeremias faz uma retrospectiva do reinado do rei Josias, o que mais elogia não é sua reforma do culto, mas sua administração justa, sua forma de julgar os pobres e necessitados: foi nisso que Josias manifestou seu conhecimento de Deus (Jr 22.15,16). Há uma semelhança impressionante também entre o conselho de Jeremias para a submissão ao governante gentio dos seus dias (Jr 38.17,18) e a orientação de Jesus para dar a César o que é de César (Mc 12.17) ou sua reprovação do espírito de revolta contra Roma que um dia iria lançar Jerusalém ao chão (Lc 13.1-5; 19.41-44; 23.28-31). Para concluir, o uso que nosso Senhor fez do AT exibe um método exegético criativo e original, que fornece um modelo para seus seguidores; ele “está baseado em [...] uma profunda compreensão do ensino essencial da Bíblia hebraica e em um discernimento seguro da situação do seu tempo” (T. W. Manson, BJRL 34, 1951-1952, p. 332).

O AT como regra de fÉ Se a Bíblia é a regra de fé e prática do cristão, a contribuição que o AT faz a essa regra de fé já foi sugerida. Começa com Deus, apresentando-o como um só, como o Criador do Universo em geral e da humanidade em particular, como justo e misericordioso no seu caráter e como alguém desejoso de ver esse seu caráter reproduzido na 20

vida de homens e mulheres. Quando se diz que ele criou o homem à sua própria imagem, isso significa (talvez, entre outras coisas) que a intenção era que os seres humanos vivessem em comunhão não somente uns com os outros, mas também com ele. Eles devem atender a seus apelos e viver de forma responsável diante dele, recebendo sua graça, prestando-lhe seu serviço e exercendo sobre a terra a autoridade que ele lhes delegou. Quando os homens se revoltam contra a sua lei, experimentam seu juízo, mas em meio ao juízo ele não se esquece de ser misericordioso. O juízo, sem dúvida, é sua “obra muito estranha” (Is 28.21), estranha e sem congenialidade com a sua natureza, à qual ele se dispõe com relutância, ao passo que tem prazer em demonstrar misericórdia e graça perdoadora (Mq 7.18). Tudo isso é explicado, não na forma de um sistema teológico, mas no contexto histórico da relação de Deus com a humanidade e, especialmente, com aqueles que ele chamou para serem seu povo. Se o AT usa linguagem antropomórfica e antropopática quando fala de Deus, é porque ela é mais adequada ao retrato que o AT apresenta de seu ser e de seu caráter do que o uso de abstrações metafísicas ou de artifícios medievais, como a “via negativa” ou a “via da eminência”. “Deus não é homem...” (Nm 23.19; 1Sm 15.29), pois ele é o Criador e o homem é sua criatura, mas o homem foi feito à imagem de Deus e é encorajado a ser como Deus, de forma que o uso de um vocabulário comum tanto para Deus quanto para o homem é mais do que natural. Em algumas áreas do AT, a relação entre Deus e o homem é regulamentada por uma legislação sacrificial e cerimonial. É importante notar quão rapidamente aqueles que reconheceram a eficácia redentora do sacrifício de Cristo afastaram-se dessa legislação. Alguns, talvez, já anteriormente tivessem suas reservas em relação ao ritual do templo; mas as implicações da obra de Cristo foram decisivas. O que para muitos cristãos judaicos da primeira geração deve ter sido uma questão de intuição espiritual recebeu comprovação clássica na carta aos Hebreus, que argumenta muito bem em favor da abolição de todo o sistema, em Cristo. Os cristãos deveriam ser muito gratos pela providência que levou à inclusão dessa obra no cânon do NT: se a lei cerimonial foi abolida em Cristo, não precisamos perder tempo alegorizando seus detalhes para encontrar neles alguma sombra da sua obra redentora. Quando o autor de Hebreus compara o sacrifício definitivo de Cristo com o sacrifício do Dia da Expiação, repetido anualmente, ele destaca o contraste, e não alguma semelhança entre os dois. O NT está na linha da tradição daqueles salmistas e profetas do AT que sabiam se aproximar de Deus por meio da adoração sincera, sem necessitar da mediação sacerdotal (Sl 73.23-28), e reconheciam que ele não habitava em templos feitos por mãos, mas com o “contrito e humilde de espírito” (Is 57.15; 66.1,2).


O Antigo Testamento e o cristão

O AT e a conduta humana Se o AT é usado como regra de conduta, é fácil reconhecer sua insistência fundamental na justiça e na misericórdia, mas precisamos reconhecer também o fato de que a aplicação prática dessas virtudes era feita em contextos sociais muito distantes do nosso. Elas precisaram ser reaplicadas mesmo nos tempos do AT, quando a vida pastoril deu lugar à agricultura e depois, novamente, quando a economia agrícola foi progressivamente substituída por outra mais urbana e mercantil. Esse trabalho de reaplicação ainda é necessário no judaísmo ortodoxo, no qual a lei tradicional continua sendo a norma para a prática. Isso significa que o AT precisa ser lido no seu contexto histórico, se quisermos nos apropriar corretamente do seu ensino ético. O próprio Jesus distinguiu sua interpretação da lei daquilo “que foi dito aos seus antepassados” (Mt 5.21ss) e repreendeu aqueles discípulos que queriam chamar fogo do céu para queimar algumas pessoas que discordavam deles, segundo o exemplo de Elias (Lc 9.51ss). É anacrônico julgar Josué ou Davi pelos padrões do Sermão do Monte, ou pensar em Israel no deserto como um tipo de Convenção de Keswick,2 em marcha. É esse tipo de pensamento anacrônico que suscita muitos dos “problemas morais” (como são chamados) do AT — problemas que se dissolvem prontamente quando vistos à luz do contexto da sua época, sejam eles de grande escala, como a instituição da guerra santa e do “anátema” (herem), exemplificados na entrega de Jericó à destruição completa, sejam problemas de pequena escala, como a proibição de emprestar a juros a pessoas da mesma comunidade. Neste último caso, o que era proteção para o que tomava emprestado, em um estágio da economia, tornava-se uma dificuldade em um estágio posterior, quando este ficasse muito contente por conseguir um empréstimo, a um juro razoável, para poder iniciar algum empreendimento vantajoso. No primeiro caso, a guerra era considerada um ato de Deus da mesma ordem como a fome, a praga, enchentes ou terremotos. Ela vinha, fazia seu estrago e ia embora. Mesmo que essas visitações sejam hoje chamadas de “atos de Deus” num sentido técnico e impessoal, na época do AT eram geralmente vistas como formas de juízo divino (cf. 2Sm 24.13; Ez 14.21). No NT, aliás, algumas são consideradas como prenúncios do juízo final (cf. Lc 17.26-30), embora as palavras de Jesus em Lc 13.1-5 sirvam de advertência contra conclusões sem fundamento sobre a pecaminosidade das vítimas desses eventos (o que, aliás, o livro de Jó faz no AT). A história de Israel mostra muito pouco daquele uso calculado do terrorismo como ferramenta de política imperial, fartamente atestado nos anais da Assíria. Se alguns dos reis 2.

“Convenção de Keswick” é um encontro anual de cristãos evangélicos para oração, estudo bíblico e mensagens. Começou em Keswick em 1875. [N. do T.]

de Israel foram tentados a usá-lo, mesmo que em modestas proporções — como quando Davi massacrou dois terços do exército moabita (2Sm 8.2) ou quando Joabe matou todos os homens em Edom (1Rs 11.15,16) —, o fato foi registrado sem aprovação, quando não até com reprovação declarada. Na própria narrativa histórica, às vezes pode ser percebido um avanço ético. O extermínio da família de Acabe, executado por Jeú, encorajado pelos principais profetas da época e realizado por meio de traição, um século mais tarde torna-se um abuso que atrai a vingança divina, dessa vez sobre a própria casa de Jeú (Os 1.4). Eliseu proíbe ao rei Jeorão matar os prisioneiros de guerra de Damasco, ordenando que os alimente e liberte (2Rs 6.15-23). Amazias é elogiado por não eliminar as famílias dos assassinos do seu pai, Joás, contentando-se com a execução dos homens culpados diretamente pelo crime (2Rs 14.5,6). No que tange a opiniões morais que possam ser formadas hoje a respeito de pessoas ou ações da história antiga, estas precisam ser formadas com base em uma perspectiva histórica. Isso vai nos proteger do artifício (ainda não totalmente obsoleto) de defender ações questionáveis dos hebreus na época do AT com argumentos que não seriam nem cogitados se ações semelhantes fossem praticadas por outras pessoas, e do artifício igualmente insatisfatório de atribuir respeitabilidade a sentimentos e atos moralmente indefensáveis, por meio da alegorização. Se os cananeus massacrados por Josué ou os malfeitores sobre cuja cabeça alguns salmistas reivindicam a retribuição dos céus são reinterpretados como referência àqueles inimigos espirituais — o mundo, a carne e o Diabo — com os quais o cristão trava uma batalha interminável, está bem; mas não se deve supor que esse seja o significado desses textos do AT. Essa alegorização, com certeza, é necessária por motivos devocionais naquelas tradições cristãs que prescrevem a repetição regular do livro inteiro de Salmos. Isaac Watts, parafraseando Sl 92.11, pode até cantar: Todos os meus inimigos interiores devem ser mortos Satanás não deve violar a minha paz de novo... mas não foi isso que o salmista quis dizer quando escreveu: “Os meus olhos contemplaram a derrota dos meus inimigos; os meus ouvidos escutaram a debandada dos meus maldosos agressores”. Mesmo sendo possível perceber um avanço ético em alguns estágios da narrativa do AT, ou até um avanço geral do início ao fim, não se deve pressupor que uma linha contínua possa ser traçada desde os tempos primordiais até o fim da história bíblica. As histórias patriarcais do Gênesis refletem um nível de comportamento civilizado que não pode ser facilmente equiparado àquele visto durante o período da conquista ou sob a monarquia. Até na época da monarquia, na verdade, a pena imposta pelo rei Asa a Maaca, a rainha-mãe, por seu envolvimento em um ritual 21


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cananeu (2Cr 15.16), parece exageradamente branda em comparação com os padrões mais rígidos dos comentaristas da Bíblia de Genebra (1560), que o censuram por ceder a uma “tola compaixão”. Além disso, “problemas morais” dessa ordem não são peculiares ao AT. Quando as ações em questão são executadas por motivos políticos ou militares conhecidos, não constituem problemas no campo ético: sabemos muito bem com que facilidade essas razões tornam-se mais fortes do que considerações humanitárias. Mas constituem problemas morais quando assumem a forma de terror em nome de Deus ou pelos interesses do “destino manifesto” de uma civilização supostamente mais elevada, pois é aí que se pode esperar que as considerações humanitárias se tornem predominantes. É verdade, as formas de genocídio na história de Israel parecem marcantemente amadoras e ineficazes quando comparadas com os campos de extermínio europeus do início da década de 1940 ou, olhando um pouco mais para trás, com o desaparecimento total de tribos inteiras como os aborígines da Tasmânia. Mesmo assim, o Deus revelado no AT é justo e misericordioso; sua justiça e misericórdia são os padrões da justiça e da misericórdia do seu povo, e a conduta injusta ou sem misericórdia não combina com a sua natureza. Há poucas expressões mais refinadas acerca desse aspecto da sua natureza no AT do que a pergunta com a qual ele silenciou a reclamação patriótica de Jonas: “Não deveria eu ter pena dessa grande cidade?” (Jn 4.11). Esta última referência nos lembra que o Deus de Israel é “o Juiz de toda a terra” (Gn 18.25); o AT retrata em uma grande tela o tratamento de Deus com as nações em geral, ao longo dos séculos, mostrando que ele “domina sobre os reinos dos homens e os dá a quem quer” (Dn 4.17,25,32). Isso antecipa a percepção de Schiller quando diz que “a história do mundo é o juízo do mundo”, mas insiste em que esse juízo é administrado pessoalmente.

O AT e a ordem social O AT destaca desde o início que o ser humano é um ser social. Isso está resumido na declaração do Criador em Gn 2.18: “Não é bom que o homem esteja só”; e é destacado também no relato da criação, de Gn 1.27, onde o “homem” a quem Deus criou é a humanidade, o homem na sociedade: “Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. A unidade social mais simples, a família, é prontamente instituída: pai, mãe e filhos. Até mesmo Caim, expulso da vida de uma comunidade fixa para seguir uma vida nômade, não precisa suportar o exílio sozinho: ele não somente se casa e cria uma família, mas até constrói uma “cidade” — talvez um modesto acampamento de tendas, mas, mesmo assim, um ambiente em que homens, mulheres e crianças podiam viver em sociedade (Gn 4.17). 22

Tentativas de estabelecer comunidades independentes de Deus estão fadadas ao fracasso porque têm falta de coesão, como ficou demonstrado em Babel e, posteriormente, em outros lugares (Gn 11.1-9; Is 8.9,10); mas a sua graça une as pessoas em famílias, tribos e agrupamentos mais abrangentes (Sl 68.6). As muitas genealogias dos livros do AT refletem essa ênfase na família e na solidariedade tribal, além de servir como esqueleto para ser revestido de uma narrativa viva. A valorização disso é demonstrada no NT nas duas genealogias do nosso Senhor (Mt 1.2-17; Lc 3.23-38), que fazem muito uso de dados do AT. Aliás, a solidariedade familiar, tribal e nacional no AT às vezes é tão destacada a ponto de ser indicada pela expressão “personalidade coletiva”; isso pode nos preparar para a distinção paulina das duas grandes solidariedades humanas ou personalidades coletivas “em Adão” e “em Cristo” (Rm 5.12-19; 1Co 15.21,22). Além disso, a responsabilidade do ser humano, não somente em relação a seus pares mas também em relação ao ambiente em que vive, é destacada. Há um vínculo entre as pessoas e a terra, no AT, que o leitor ocidental moderno tem dificuldade de entender; além disso, é um vínculo que é criado e mantido por Deus. Em Is 62.4,5 ele é retratado como um vínculo matrimonial. Esse vínculo aplica de forma intensa a um país a ordenança de Gn 1.26-30, na qual o homem recebe, sobre a terra e as criaturas que a habitam, um domínio que deve ser exercido por meio de mordomia responsável, e não de exploração egoísta. Em Rm 8.19-23, Paulo olha para o futuro na expectativa da realização universal dessa ordenança da criação, quando os filhos de Deus forem revelados. As exigências sociais da lei de Deus são destacadas com detalhes específicos para a vida do seu povo, Israel. Espera-se das nações vizinhas que observem os bons costumes básicos da boa fé, a consideração pelos fracos e o respeito pela dignidade humana, e são censuradas quando os violam (Am 1.3—2.3), mas o conhecimento que Israel tem de Deus e de sua vontade é muito maior do que o conhecimento desses povos, e a responsabilidade de Israel, portanto, é muito maior (Am 3.2). A reputação do Deus de Israel aos olhos dos outros povos depende, em grande parte, do comportamento do seu povo. A exigência de Deus para o seu povo é resumida de várias maneiras no AT. Podemos lembrar-nos do refrão do “código de santidade” no Pentateuco: “Eu sou o Senhor [...] o seu Deus; por isso, sejam santos, porque eu sou santo” (Lv 11.45). Essa santidade é uma característica positiva e que abrange tudo; suas implicações negativas são corolários da sua essência positiva. Essa essência positiva é evidenciada em declarações como a de Mq 6.8: “Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus”. A justiça e a bondade que as pessoas do povo de Deus devem mostrar umas às outras são a justiça e a bondade com que ele as tratou. Essas qualidades são aplicadas não somente na


O Antigo Testamento e o cristão

via principal da ética social, mas também em regras tão raras quanto aquela que proibia a pessoa que emprestava dinheiro de ficar com o manto do devedor durante a noite como garantia, “porque o manto é a única coberta que ele possui para o corpo” (Êx 22.27,28). A lei da retaliação do AT — “olho por olho e dente por dente” (Êx 21.24) — à qual já nos referimos, está mais intimamente relacionada à lei áurea do que muitas vezes se pensa: “que seja feito a você como você fez aos outros” pode ser facilmente visto como corolário de “faça aos outros o que você gostaria que fizessem a você”. Até mesmo quando a monarquia foi instituída em Israel, o rei não estava acima da lei que regulamentava a vida dos seus súditos. Quando Nabote se nega a vender sua vinha a Acabe, este fica aborrecido, mas não pensa em violar os direitos de Nabote até que Jezabel, que fora criada segundo uma outra ideia de reinado, dá passos para garantir a vinha para seu marido por meio de uma sequência de ações cruéis e juramentos falsos, o que acabou ocasionando a denúncia profética contra toda a dinastia de Acabe (1Rs 21.1-24). E quando, na geração seguinte, a crescente prosperidade mercantil conduziu à emergência em Israel de uma nova classe abastada, que podia comprar todas as pequenas propriedades e reduzir seus antigos proprietários a meros escravos, foram os profetas que condenaram a quebra da aliança demonstrada na aquisição de “campos e mais campos” por parte dos ricos e no moer “o rosto dos necessitados” (Is 5.8; 3.15; cf. Am 4.1; Mq 3.1-3). Esse tratamento dispensado ao próximo era um pecado contra Deus. Na relação entre o povo de Deus e os povos vizinhos, há uma tensão não resolvida no AT. Por um lado, há advertências duras contra o casamento de seus filhos com os filhos dos povos e contra a assimilação: um tesouro fora confiado a Israel — o conhecimento de Deus — que poderia facilmente se perder ou ser dissipado se Israel não preservasse sua identidade nacional e religiosa. Daí o chamado a Israel para se manter separado dos outros povos. Ao mesmo tempo, o tesouro confiado a Israel deveria ser compartilhado com os outros, para que estes também viessem a conhecer o Deus vivo. Nos primeiros tempos do povo de Israel, alguns grupos não israelitas juntaram forças com ele e aceitaram a aliança com Javé. Mas quando Israel se mudou do deserto para Canaã, a atração dos rituais de fertilidade praticados na terra conquistada tornou-se tão perigosa que foi imposta uma severa proibição quanto a fazer qualquer tipo de associação com os cananeus. Mesmo assim, algumas pessoas, como Raabe e Rute, isso sem falar dos gibeonitas (Js 9.3-27), reconheceram a grandeza do Deus de Israele foram aceitas na comunidade da aliança. Mas foi no contexto do exílio babilônico e do seu retorno que a missão de Israel no mundo foi expressa mais claramente. Quando um grupo significativo de israelitas se achou vivendo como exilados em uma comunidade não israelita, eles foram encorajados a participar

de seu bem-estar e orar por sua prosperidade, porém não deveriam se envolver a tal ponto que não pudessem transcender os valores dessa comunidade estrangeira (Jr 29.410). Quando a permissão de voltar do exílio foi dada, a responsabilidade internacional de Israel foi descrita como a comunicação, em nível mundial, do conhecimento de Javé, cuja ação a favor de seu povo mostrava que somente ele era Deus (Is 45.22,23). A restauração dos israelitas os qualifica a serem suas testemunhas (Is 43.10), mas sua missão deve ser assumida e concluída pelo Servo do Senhor, que, além de cumprir um ministério para com Israel, é enviado como uma “luz para os gentios” para que a salvação de Deus chegue “até os confins da terra” (Is 49.6). Junto com essa ênfase na difusão, o período subsequente ao retorno dos exilados testemunhou uma nova política de segregação, sob o governo de Esdras e Neemias, que não tem sido fácil de conciliar com o chamado para a missão mundial. A tensão entre esses dois aspectos estava viva ainda na época do NT, não somente no conflito entre a visão mais ampla de Jesus e o separatismo dos fariseus; mas também na igreja primitiva, no conflito entre os defensores da missão, livre da lei, aos gentios e aqueles cristãos judaicos que acreditavam que os convertidos dentre os gentios deveriam ser admitidos na comunidade cristã com salvaguardas semelhantes àquelas que regiam a admissão de prosélitos à comunidade de Israel. Os defensores da missão aos gentios de fato apelaram para a comissão do Servo do Senhor como sendo sua própria comissão (At 13.47). Nesse, como também em outros aspectos, o retrato do Servo em Isaías pode ser considerado o clímax do AT em sua função de preparo para o evangelho.

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O texto do Antigo Testamento Alan R. M i l l ard

A escrita no mundo do Antigo Testamento Quando o homem inventou a escrita, ele descobriu uma forma de preservar suas ideias e experiências para que atravessassem a barreira do tempo. Era natural que o Deus que estava preparado para falar a linguagem humana fizesse que suas palavras fossem registradas por intermédio desse meio humano. Pela sua providência, a maior parte da sua revelação foi dada a um povo que tinha herdado um alfabeto pronto para o uso universal, para que qualquer pessoa que quisesse pudesse aprender a ler os livros sagrados. Moisés é o primeiro israelita de que temos notícia que escreveu algo (Êx 17.14), e ele certamente viveu num mundo em que a escrita era bem conhecida. Entre 2000 e 1000 a.C., quase uma dezena de escritas eram usadas na Síria-Palestina. Entre elas, as mais importantes eram os 600 sinais cuneiformes da Babilônia, inscritos com um buril em tabuinhas de barro, e os 700 sinais hieroglíficos dos egípcios, na sua forma cursiva para o dia a dia, o hierático, escrito com pena e tinta em papel (papiro) e sobre outras superfícies lisas. A escrita egípcia era pouco difundida fora de áreas de forte e contínua influência egípcia, como a Palestina e as cidades costeiras da Fenícia, ao passo que a escrita cuneiforme era o meio internacional de comunicação em todo o Oriente Médio. Este sistema e todos os outros eram complicados e empregados principalmente na administração, nas leis, na religião e na diplomacia. Constituíam praticamente um monopólio da classe dos escribas. Um pouco antes de 1500 a.C., surgiu um rival que, eventualmente, suplantou todos os outros: o alfabeto. Provavelmente familiarizados com o egípcio, os inventores semitas do alfabeto descobriram como um pequeno conjunto de símbolos poderia substituir os incômodos hieróglifos: era necessário um sinal para cada som da língua, em torno de 30 ao todo. Os sinais eram imagens, escolhidas, podemos supor, de acordo com o princípio acrofônico “dado=d”. Como nenhuma palavra semítica começa com vogal, e já que as vogais são suplementares às consoantes nas línguas semíticas, ainda que necessárias, não era vital registrá-las. (Os sinais vocálicos foram sistematicamente criados quando os gregos tomaram emprestado o alfabeto em torno de 900 a.C., pois sua língua não podia ser escrita claramente sem esses sinais.) Ao final do segundo milênio a.C., o alfabeto estabilizou-se e começou a desalojar os outros sistemas. 24

Ele gerou imitações pelas mãos de escribas treinados na tradição babilônica, os quais produziram alfabetos de sinais cuneiformes para uso em superfícies de argila, especialmente em Ugarite, na Síria. Por menor que seja o número de exemplos do alfabeto nascente, serve para mostrar o amplo uso da escrita, que se tornou possível por meio da simplicidade do sistema alfabético, quebrando assim o monopólio dos escribas.

A escrita no antigo Israel Na conquista de Canaã, Israel tomou posse de cidades em que a escrita era conhecida, e o alfabeto básico era familiar. História, leis, profecias, itinerários, narrativas, listas de impostos, tudo já era registrado com facilidade (cf. Jz 8.14). Infelizmente, seguindo a prática egípcia, o alfabeto era normalmente escrito em papiro, um papel vegetal que se desfaz em solo úmido; por isso, não temos exemplos para mostrar a extensão e o estilo da escrita israelita antiga. Pequenas amostras de hebraico antigo sobreviveram, presentes em materiais mais duráveis, cerâmica e pedra, que nos permitem ver como a escrita era usada na vida diária e inferir a existência de livros de couro e de papel em forma de rolo. Isso não nos permite, nem de longe, deduzir que todos sabiam ler ou escrever, mas nos tempos de Isaías e Jeremias parece provável que havia poucas aldeias sem pelo menos um habitante que pudesse fazê-lo. O Antigo Testamento também nos dá essa impressão, embora qualquer obra de homens instruídos — como é o caso — tenderá a destacar a habilidade deles! Esse pano de fundo ajuda-nos quando consideramos as origens e o desenvolvimento dos livros do Antigo Testamento. Informações valiosas sobre os hábitos dos escribas podem ser tiradas dos próprios documentos antigos, e elas podem ajudar-nos a detectar os tipos de erro cometidos à medida que uma geração copiava os livros de outra. Até mesmo notas insignificantes, escritas em fragmentos de cerâmica, evidenciam a habilidade de uma eficiência prática, o cuidado para que se alcançasse a legibilidade, um modo de escrita aceito. Um cuidado semelhante pode ser identificado nos manuscritos literários assírios, babilônicos e egípcios de 2000 a.C em diante, os quais fornecem uma analogia satisfatória para a prática israelita. Por um lado, existe uma grande preocupação em reproduzir um texto antigo de forma exata, talvez com a atualização da ortografia, observando


O texto do Antigo Testamento

os danos causados à cópia mestra, contando as linhas, acrescentando o nome do escriba, às vezes também o nome de um revisor, a(s) fonte(s) da cópia mestra (ou cópias mestras), a data e o destino da cópia — rei, templo ou indivíduo. Por outro lado, uma composição podia passar por mudanças editoriais e por revisão, criando uma ampla variação entre diversas cópias. Nesses casos, as diferenças são muitas vezes inexplicáveis ou sem sentido agora e não seguem padrão algum; são impossíveis de ser descobertas ou previstas com base em apenas um texto, fato que precisa receber peso especial na hora de reconstruir a história literária dos escritos do Antigo Testamento. Para leitura adicional acerca do tema desta seção, v. The Practice of Writing in Ancient Israel, The Biblical Archaeologist 35 (1972), p. 98-111; Approaching the Old Testament, Themelios 2 (1976), p. 34-9, ambos por este autor.

notas sugerem vogais alternativas para um conjunto ambíguo de consoantes, como 2Sm 18.13, em que “se eu tivesse atentado traiçoeiramente contra a vida dele” ou “contra mim” dependem de napšô e napšî respectivamente. As formas no texto escrito são denominadas kethîbh “escrito”, e as anotadas pela Massorá, nas margens, qerê “que se leia”. A tradição também relata algumas passagens em que o texto fora alterado para evitar ideias inaceitáveis, como em 1Sm 3.13, em que Deus diz que os filhos de Eli “atraíram maldição sobre si mesmos (cf. VA, RV), em vez de “me amaldiçoaram”(cf. RSV, NEB; a NVI traz: “seus filhos se fizeram desprezíveis”). Esse texto massorético é representado hoje por alguns manuscritos copiados nos séculos nono e décimo d.C., e os principais estão preservados no Cairo, Jerusalém, São Petersburgo e Londres e por todas as Bíblias hebraicas escritas ou impressas posteriormente.

O texto hebraico tradicional do Antigo Testamento

Textos mais antigos

A escrita já existia em Israel, mas não sabemos como e quando os livros que herdamos foram escritos pela primeira vez, pois não há cópias disponíveis anteriores ao terceiro século a.C. As cópias mais antigas que ainda existem, os manuscritos do mar Morto, revelam certa diversidade que vai ser discutida a seguir. Elas também revelam a existência, entre 200 a.C. e 65 d.C., da forma textual conhecida em um estágio posterior como o Texto Massorético (TM) ou Tradicional, no qual as traduções para as línguas modernas são baseadas. A partir do exílio, o hebraico decaiu para o status de língua de uma minoria entre os judeus, embora um dialeto persistisse na Judeia, sendo então substituído pelo aramaico, a lingua franca do Império Persa. À medida que o processo continuava, havia a necessidade crescente de preservar a pronúncia “correta” do texto da Bíblia hebraica na leitura da sinagoga. Para ajudar o leitor, algumas consoantes podiam representar vogais, um uso que se iniciou no período da monarquia e que alcançou o seu pico na época herodiana. Por volta dos séculos VII e VIII d.C., surgiram métodos mais precisos de representação de vogais e acentos, que culminaram no esquema de pontos e sinais colocados acima, abaixo e dentro das letras, usados desde então para produzir os sons e a entonação aceitos. Os estudiosos judeus que aplicaram esse sistema ao texto consonantal herdaram regulamentações rígidas, designadas para manter a precisão nas cópias, as quais eram comparáveis às antigas atitudes babilônicas e, talvez, derivadas delas. Eles também registraram variantes no texto escrito que lhes foram repassadas (a Massorá). Algumas dessas variantes, na verdade, corrigiam erros que foram conservados como relíquias no texto escrito; assim, em Is 49.5 está escrito lo- “não”, como está na ARC, enquanto a Massorá nos instrui a ler lô “a ele”, como na ARA, RV, RSV, NEB, NVI e manuscrito A do mar Morto de Isaías. Outras

A recuperação dos manuscritos do mar Morto provou a existência de outros textos hebraicos além do tipo tradicional, na Palestina, durante o século I a.C. até 68 d.C. Tem-se dado destaque a esses textos variantes inevitavelmente porque são novos para nós, mas devemos observar que eles são minoria entre os manuscritos do mar Morto e, além disso, são muito fragmentários. Suas diferenças do texto massorético são mais do que erros acidentais resultantes de enganos dos escribas, embora estudos mais aprofundados mostrem que muitas delas são deslizes, e não mudanças intencionais. (Assim, o acréscimo de Êx 20.11 a Dt 5.15, em uma das cópias, pode ter ocorrido em virtude de uma associação mental inconsciente.) No livro de Jeremias, um pequeno fragmento parece ter um texto mais curto do que o massorético, concordando de certa maneira com o texto da LXX, que é um oitavo mais curto do que o TM, nesse livro. (Em Jr 10, os v. 6-8,10 são omitidos, e o v. 5 vem depois do 9.) Um texto de 1Sm 1 e 2 faz o contrário: acrescenta várias frases. Algumas delas, de novo, são encontradas na LXX (e.g., 1.25 parece ter começado com “Eles vieram perante o Senhor, e o seu pai ofereceu o sacrifício como ele fazia ano após ano ao Senhor”) e algumas não, como em 1.22, onde lemos explicitamente que Samuel deveria ser um nazireu para sempre, como implica o v. 11 e como defende a tradição judaica posterior. Mais tarde, vamos discutir questões como: qual era a liberdade que os escribas tinham ao copiar um texto bíblico, quão livres eram para acrescentar comentários ou explanações desse tipo, ou de omitir frases repetidas, e se havia classes diferentes de cópias, como mais tarde quando foram implantadas regras rígidas para a produção de textos para a leitura pública. Havia claramente várias tradições de texto, talvez desenvolvidas em comunidades separadas (Palestina, Egito e Babilônia são lugares sugeridos), mas não necessariamente as mesmas 25


O texto do Antigo Testamento

para cada parte da Bíblia. Quando elas divergiam do texto ancestral comum a todas não se sabe, e é uma questão relacionada à história do reconhecimento da autoridade dos livros do cânon do Antigo Testamento (v., a seguir, p. 33).

Crítica textual Esses diversos tipos de texto em hebraico, agora revelados, realçam o valor da crítica textual e complicam sua prática. O objetivo dessa arte é recuperar tanto quanto possível as palavras do autor ou a primeira forma escrita do livro em estudo. Os erros que se introduziram ao longo de séculos de cópias precisam ser detectados e corrigidos sempre que possível, acréscimos precisam ser descobertos e removidos e outras alterações precisam ser substituídas. Se não forem fundamentadas em evidências de manuscritos, essas atividades são meramente teóricas e podem se tornar muito subjetivas. Comparar uma cópia com outra pode revelar os erros de um escriba; quando todas as cópias estão de acordo, a descoberta dos erros é mais difícil. Sinais de que algo pode estar errado são palavras gramaticalmente incorretas ou ininteligíveis, divergências com as versões antigas (v., a seguir, p. 24) ou com citações antigas, e características singulares que destoam do texto como um todo. Nenhum desses sinais é conclusivo por si só; cada caso precisa ser analisado individualmente. Os tradutores antigos talvez tenham parafraseado, as citações podem ser inexatas e uma peculiaridade irregular ou ininteligível pode mostrar-se aceitável por meio de uma nova descoberta. Mesmo assim, a crítica textual tem tido muito sucesso, dando-nos um texto mais claro, com maior probabilidade de ser autêntico, e uma compreensão melhor das palavras existentes. Alguns exemplos vão demonstrar os métodos. Entre os erros simples, temos: a) Confusão de letras semelhantes como d e r : Gn 10.4: “Dodanim”; 1Cr 1.7: “Rodanim”. b) Transposição de letras, como em Sl 49.11, em que o qirba-m do TM é traduzido por “pensamento interior” pela ARC (significa “interior”, “entranhas”), mas deveria ser lido qibra-m, “seus túmulos” como está na NVI. c) Repetição por engano (“ditografia”), e.g., 2Rs 19.23 TM brkb rkby, em vez de brb rkby “com meus carros sem conta”. d) Omissão por engano (“haplografia”) exemplificada em muitas cópias que omitem Js 21.36,37 com um salto das palavras “tribo de Rúben” para “tribo de Gade”, cf. 1Cr 6.63,64. O manuscrito A de Isaías do mar Morto tem um bom exemplo: o escriba saltou de “templo do Senhor”, no final de 38.20, para “templo do Senhor ”, no final de 38.22, omitindo completamente os v. 21, 22; eles foram acrescentados mais tarde numa nota marginal.

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e) Separação incorreta de palavras. Um exemplo excelente é Am 6.12 TM bbqrym AV, RV, NVI, ACF: “lavrar-se-á nela com bois?”, a ser lido bbqr ym “será que os bois podem puxar o arado no mar?” como a BLH em português, e também expressões equivalentes em inglês (RSV, NEB), dando sentido e poética melhores. O grau de incerteza cresce com a extensão e a complexidade de qualquer suposto erro. Suponha que a haplografia em Is 38 (no item d citado) tivesse prevalecido em todas as cópias posteriores; seria muito difícil corrigir o erro com base somente no texto hebraico. Além de mudanças resultantes de erros, pode ter havido alterações intencionais feitas para “melhorar” o texto. Substituições bem-intencionadas de “amaldiçoe a Deus” por “abençoe a Deus”, além das que estão registradas na tradição, vistas anteriormente, podem ser observadas em Jó 1.11; 2.19; 1Rs 21.10 etc., e do nome do deus Baal por “vergonha”, nos nomes pessoais Is-Bosete (2Sm 2; cf. 1Cr 8.33) e Mefibosete (2Sm 9.6; cf. 1Cr 8.34). A nota parentética, “esses nomes foram mudados”, em Nm 32.38 pode ser uma orientação ao leitor para evitar nomes de divindades pagãs. Notas desse tipo, denominadas “glosas”, podem acrescentar informações de atualização, embora seja muitas vezes impossível decidir se são obra do autor ou de um escriba posterior. Podemos ver alguns casos em Gn 14.2,3,7,8,17 (“que é...”); em Rt 4.7; e 1Rs 8.2 “o sétimo mês”. A possibilidade de rearranjos mais significativos nos textos, acidentais ou intencionais, como faz a NEB (em Is 27; 38; 53, por exemplo), deve ser admitida, mas é uma questão de opinião e não pode ser comprovada. Descobertas em outros documentos antigos podem lançar luz sobre passagens em que um erro textual não parece existir, mas mesmo assim o texto permanece obscuro, contendo, talvez, uma das 1500 palavras que só aparecem uma vez no texto hebraico. O ugarítico, uma língua próxima do cananeu e do egípcio, preservou uma palavra para navio que nos permite traduzir Is 2.16, “e contra todas as pinturas desejáveis” (ARC), de forma mais satisfatória por “e todo barco de luxo” (NVI) ou por “toda bela embarcação” (RSV). Todos esses métodos têm de ser usados com prudência, com atenção a cada alternativa, com cuidado para não impor um sentido estranho ao texto. O texto tem sido preservado de forma extraordinária ao longo de muitas gerações; é um tesouro a ser valorizado, estudado e reparado nos lugares em que o tempo causou pequenas imperfeições. Não pode ser distorcido ou remodelado para agradar gostos e opiniões sempre em mudança. A todos os que estão dispostos a ouvir de forma reverente e atenciosa, ele transmite sua mensagem eterna.

Bibliografia V. a bibliografia conjunta no final de “As versões antigas”, p. 32.


As versões antigas Ro bert P. Gordon

Enquanto os judeus permaneceram na Palestina e falaram sua língua materna, não tiveram problemas em entender suas Escrituras Sagradas. Mas já no século VI a.C., e muito tempo antes de ser concluído o cânon do AT, muitos judeus viviam longe da terra natal de seus ancestrais. Alguns foram deportados para a Mesopotâmia depois que os babilônios conquistaram Jerusalém, em 597 a.C.; outros — mais ou menos na mesma época — seguiram o precedente estabelecido, muito tempo antes, de buscar refúgio no Egito. Mas mesmo que essa dispersão não tivesse ocorrido, os judeus dificilmente teriam evitado a exposição aos sons estranhos do aramaico e do grego nos séculos seguintes à destruição do seu Estado. A hegemonia babilônica no Oriente Médio teve vida curta; seu fim repentino aconteceu com a chegada dos persas à Babilônia, em outubro de 539 a.C. Nos 200 anos seguintes, os persas dominaram o Oriente Médio, e sob o seu domínio o aramaico desfrutou do status singular de língua oficial do império. Tanto na Palestina quanto no Egito e na Mesopotâmia, os judeus descobriram que era necessário, para não dizer vantajoso, tornarem-se fluentes na lingua franca do império. Os arquivos da comunidade judaica de Elefantina, no Egito, mostram a profundidade com que o aramaico se arraigou nesse canto do império no quinto século a.C. Muito tempo depois que os persas foram expulsos por Alexandre e pelos gregos, o aramaico permaneceu como um monumento ao domínio persa, sendo falado e escrito em várias partes do Oriente Médio, incluindo a Palestina. Os feitos prodigiosos de Alexandre pavimentaram o caminho para a propagação da língua e cultura gregas no Oriente, e nenhum território vassalo foi mais afetado do que o Egito e sua recém-fundada Alexandria, de estilo grego. Foi em reconhecimento das necessidades dos judeus de fala aramaica, na Palestina, e dos judeus de fala grega, no Egito, que se fizeram as primeiras tentativas de traduzir o AT do original hebraico para essas línguas. Há várias razões por que os estudiosos deveriam estar interessados nas versões antigas do AT. Em primeiro lugar, as traduções são importantes para o estudo das línguas em que foram escritas. Em cada caso, proporcionam informações valiosas a respeito do vocabulário, flexão e sintaxe dessas línguas em estágios específicos da sua história. Em segundo lugar, nenhuma tradução é feita num vácuo ideológico. “Muitos e diversos fatores deixam sua marca sobre a obra — os pressupostos intelectuais que os tradutores herdam de sua própria época e cultura, as opiniões religiosas e de outra natureza que defendem ou às quais devem

demonstrar respeito, os preconceitos ou desejos pelos quais são condicionados consciente ou inconscientemente, o seu grau de instrução, a sua própria habilidade de se expressar e a amplitude dos conceitos da língua para a qual estão traduzindo, além de muitos outros fatores”.1 Além disso, a objetividade profissional e a neutralidade teológica não eram aspectos tão valorizados pelas equipes de tradução da Antiguidade — se é que havia equipes — como são hoje. A ideia de sofrimento vicário em Is 53 era inaceitável para os que traduziram o texto para o aramaico, e assim reescreveram o capítulo para adaptá-lo à sua teologia. Jerônimo, por outro lado, não viu nenhum problema em introduzir na Vulgata ideias neotestamentárias na sua tradução do AT. Quando traduziu Sl 149.4 (“ele coroa de vitória os oprimidos”) por “ele exaltará os mansos em Jesus”, não precisamos pensar que ele tivesse deficiências no conhecimento do hebraico. É possível aprender muito acerca das posturas e tendências teológicas dos tradutores antigos, e de seus círculos de leitores, por meio da comparação entre o seu trabalho e o original hebraico. Em terceiro lugar, as versões antigas estão baseadas em manuscritos hebraicos mais antigos do que a maioria dos textos que estão disponíveis hoje. Isso foi destacado por meio da publicação dos textos bíblicos da região do mar Morto; em muitos pontos, as versões antigas, especialmente a Septuaginta, concordam com esses textos em contraste com a tradição massorética padrão. Aqui está a explicação de uma tendência das versões inglesas e de outras línguas modernas, como foi observado por Kubo e Specht: “No AT, o Texto Massorético ainda é fundamental, mas é desafiado pelas versões antigas e pelos MSS dos rolos do mar Morto”.2 Geralmente não é muito difícil reconstruir o texto hebraico subjacente (o termo alemão Vorlage é muitas vezes usado para denotar o texto-fonte) a dada versão ou leitura, e, em trechos em que às vezes o texto hebraico padrão é obscuro ou ininteligível, essa retroversão vai proporcionar uma leitura melhor e um sentido mais compreensível. É verdade que há muitas ciladas a serem evitadas nesse tipo de exercício; quando o trabalho se tornava difícil, o tradutor antigo fazia “emendas silenciosas” tão prontamente quanto o seu colega moderno.3 Não 1. E. Würthwein. The Text of the Old Testament. Oxford, 1957, p. 33. 2. S. Kubo & W. Specht, So Many Versions? (Grand Rapids, 1975), p. 13. 3.

A RSV em Isaías 2.6 traz “dar as mãos aos estrangeiros” (NVI: “fazem acordos com pagãos”). Não há sinal de emenda do TM mudando byldy para bydy; cf. “filhos” nas versões ARA e ARC, como o TM, para “mãos”, na RSV.

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As versões antigas

há substituto para a familiaridade e a intimidade com os métodos de tradução e as características especiais de determinada versão, se quisermos avaliar de forma correta as diversas leituras. Em quarto lugar, as citações que o NT faz do AT são, com frequência, diferentes do texto hebraico padrão. A explicação está, em parte, no fato de que os autores do NT citavam, com maior frequência, de traduções gregas, e, assim como hoje não há uma Bíblia inglesa ou portuguesa padrão, não havia uma tradição padrão de Bíblia grega naquela época. No século I d.C. a chamada “Septuaginta” existia em várias recensões, ou versões; os autores muitas vezes só tinham acesso a uma delas e geralmente se contentavam em fazer citações do seu exemplar, contanto que isso servisse satisfatoriamente a seu objetivo principal. Além disso, há alguns lugares em que parece que os autores ou suas fontes fizeram uso de paráfrases aramaicas chamadas “targuns”. O rastreamento das citações até as suas versões originais é, em geral, cercado de muitas dificuldades e só pode ser facilitado por meio do bom conhecimento das origens e do desenvolvimento das versões antigas, em geral, e da tradição grega, em particular.

O Pentateuco samaritano O Pentateuco é a única parte das Escrituras hebraicas que os samaritanos consideram canônica e investida de autoridade. Uma das consequências do cisma entre os judeus e os samaritanos foi que suas edições do Pentateuco foram transmitidas de modo independente entre si, já a partir do século II a.C., no mais tardar. Mas embora não haja dúvidas quanto à antiguidade do Pentateuco Samaritano (denominado PS a partir de agora), ele não é, nem de perto, tão antigo quanto a comunidade samaritana sempre acreditou. Afirmações inverossímeis são feitas especialmente em favor do rolo de Abisha;c diz-se que foi copiado por Abishua (ou Abisua), o bisneto de Arão (1Cr 6.3,4), no décimo terceiro ano da instalação dos israelitas em Canaã. Isso, indubitavelmente, é propaganda exagerada que visa a amparar as afirmações a favor da recensão samaritana contra sua rival judaica. Na verdade, o rolo é constituído de duas partes costuradas. A cópia da parte mais antiga (contendo Nm 33.1—Dt 34.12) é relativamente recente, pois foi feita no século XI d.C. A rigor, o PS “na verdade não é uma versão, mas uma transcrição”.4 Por ser a forma textual do Pentateuco que foi transmitida no norte de Israel, tem suas peculiaridades, mas suas discrepâncias com a tradição massorética dificilmente podem ser consideradas substanciais. Pois, embora haja em torno de 6 mil diferenças entre o TM e o PS, muitas delas são meras variantes ortográficas. Além disso, o PS tem a tendência de simplificar formas e construções difíceis e, em geral, de fazer “alterações típicas de textos populares”.5 Algumas 4. S. Jellicoe. The Septuagint and Modern Study. Oxford, 1968, p. 243. 5.

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Würthwein, op. cit., p. 32.

das outras discrepâncias do TM são resultado evidente de preconceitos e tendências sectárias em ação no PS. Há várias referências, tanto explícitas quanto implícitas, a Gerizim, o monte sagrado dos samaritanos (cf. especialmente as interpolações depois de Êx 20.17 e Dt 5.21). A intenção é sempre apresentar Gerizim, e não Jerusalém, como o centro de adoração escolhido por Deus em Canaã. Em muitos lugares — as estimativas variam entre 1600 e 2 mil —, o PS concorda com a Septuaginta contra o TM; às vezes a evidência conjunta dos dois pode ser usada para corrigir o TM, como em Gn 4.8, onde o TM não traz as palavras “Vamos para o campo” (cf. nota de rodapé na NVI). O PS, no entanto, não foi transmitido com a mesma precisão e fidelidade quanto o TM, e isso, em conjunto com a óbvia coloração sectária, responde pela negligência com que os críticos textuais o tratam. Só ocasionalmente alguma citação ou alusão ao AT, no NT, concorda exclusivamente com o PS, tal como, de forma especial, no registro do discurso de Estêvão em At 7. Em tais casos, não precisamos supor que o autor do NT estivesse consultando o PS. Antes, é preferível concluir que o PS é o único testemunho remanescente de uma leitura que, sem dúvida, em certa época, esteve representada em algum lugar da tradição da Septuaginta, ou até dos targuns. A primeira cópia do PS a chegar ao Ocidente foi trazida de Damasco por Pietro della Valle, em 1616, e as primeiras edições impressas foram as que apareceram nas Poliglotas de Paris e de Londres (1632 e 1657 respectivamente). Uma edição apenas com esse texto foi publicada em Oxford, em 1790, por Benjamin Blayney. Naquela época, o PS era tido em alta estima, e foram necessários as pesquisas e os pronunciamentos do grande crítico alemão Gesenius, no início do século XIX, para rebater as reivindicações infundadas que foram feitas em favor desse texto. Pesquisas mais recentes da morfologia do PS mostram que ele reflete o hebraico comum da Palestina, entre o século II a.C. e o século III d.C. Os estudos paleográficos do erudito americano F. M. Cross concordam com esta avaliação: a versão não pode ser datada antes do período asmoneu.

A Septuaginta A Septuaginta é a decana das versões do AT. Além do seu direito de primogenitura, sua singularidade está garantida também por seu uso constante por parte dos autores do NT e dos cristãos primitivos, em geral. Além do mais, essa versão tem um lugar especial na antiga literatura grega, pois as Escrituras hebraicas foram “o único escrito religioso oriental que alcançou a honra de ter uma tradução para o grego”.6  Na verdade, o termo “Septuaginta” aplica-se apenas à tradução do Pentateuco, mas seu uso como referência a todo 6. S. P. Brock. The Phenomenon of Biblical Translation in Antiquity, Alta (The University of Birmingham Review), 2/8, 1969, p. 96.


As versões antigas

o AT grego pode ser verificado já nos escritos de Justino Mártir e Ireneu, no século II d.C. O relato mais antigo da origem da Septuaginta é dado na Carta de Aristeias, escrita no segundo século a.C. Aristeias conta como, por ordem de Ptolomeu II Filadelfo (285—247 a.C.), uma equipe de 72 tradutores veio de Jerusalém para Alexandria e verteu o Pentateuco para o grego em 72 dias. A Carta é uma narrativa incoerente, contendo uma pequena quantidade de fatos e cercada de muita ficção. Ela é também uma obra apologética e parece ter sido escrita numa época quando a exatidão do Pentateuco grego (no mínimo) estava sendo questionada. Assim, o autor discorre longamente sobre a erudição impecável dos tradutores e o início auspicioso da sua tradução. Nos séculos seguintes, os elementos lendários da história multiplicaram-se e tornaram-se mais forçados e artificiais, e, em pelo menos alguns lugares, as pretensões acerca da tradução tornaram-se ainda mais exageradas. Para Fílon de Alexandria, que viveu no início da era cristã, a Septuaginta era tão divinamente inspirada quanto o original hebraico, e os seus tradutores tinham status profético e sacerdotal. Mas há detalhes no relato original de Aristeias que, de modo geral, são considerados dignos de crédito. É muito provável que o Pentateuco tenha sido a primeira parte do AT a ser traduzida para o grego e que o trabalho tenha sido realizado por judeus bilíngues em Alexandria, no início do século III a.C. Não é tão provável, por outro lado, que Ptolomeu Filadelfo tenha sido o instigador do empreendimento. Há razões suficientes para o projeto no fato de que nessa época existia no Egito uma grande comunidade de judeus que só sabiam falar o grego. Depois que o Pentateuco foi traduzido, o restante dos livros canônicos também deve ter sido tratado da mesma maneira, de modo que, em torno de 100 a.C., uma versão completa do AT grego estivesse à disposição. A profusão de variantes nos MSS existentes da Septuaginta e o método apropriado de explicá-los são o nosso próximo assunto. O texto do AT grego nunca foi estático; ele era sempre copiado e submetido a revisões, buscando-se cada vez mais fidelidade ao original hebraico, ou um estilo grego melhor, ou ainda no intuito de seguir uma teoria específica de tradução. Assim, um dos principais unciais, o Códice Alexandrino, pode incorporar diferentes tipos de texto e recensões, e todos dependendo dos MSS de cada um dos livros, disponíveis na época da transcrição. Alguns estudiosos, seguindo a proposta do falecido Paul Kahle, argumentam que o excesso de variantes textuais é explicado de modo melhor com base na pressuposição de que não houve uma “Septuaginta original” (Ur-Septuaginta), mas somente uma variedade de traduções independentes, da qual eventualmente surgiu um texto padrão. A maioria dos estudiosos da Septuaginta, embora não exclua a possibilidade de antigas tentativas “não oficiais” de tradução, defende que os diversos textos e recensões tenham todos, em teoria, uma fonte comum. Jerônimo, no seu Prefácio a Crônicas, fala de três recensões principais do AT grego que eram reconhecidas pela

igreja nos seus dias. “Alexandria e o Egito reconhecem Hesíquio como o autor da sua Septuaginta; de Constantinopla até Antioquia, a versão de Luciano Mártir é reconhecida; as províncias da Palestina entre essas duas localidades usam códices que foram produzidos por Orígenes e publicados por Eusébio e Panfílio. O mundo todo discorda entre si acerca dessa tríplice variedade”. O estudo da história da transmissão da Septuaginta precisa começar com essas três recensões e, particularmente, com a obra de Orígenes. Desde cerca de 230 d.C. até 245 d.C., Orígenes empenhou-se na compilação de sua Héxapla, uma edição em seis colunas do AT em hebraico e grego. Era um empreendimento enorme, mas Orígenes estava convicto da sua utilidade; a Septuaginta tinha grande necessidade de uma revisão com base no texto hebraico para continuar sendo a poderosa arma apologética que fora nas mãos de gerações anteriores de cristãos. A primeira das seis colunas da Héxapla apresentava o texto hebraico do AT, e as cinco colunas restantes apresentavam uma transliteração do hebraico em letras gregas, as versões de Áquila e Símaco, a reconstrução que o próprio Orígenes fizera da Septuaginta e, finalmente, a versão de Teodócio. Usando os símbolos de Aristarco,7 Orígenes indicou acréscimos da Septuaginta ao original hebraico e também o material interpolado com que ele corrigira as omissões da Septuaginta. Somente pequena parte da obra de Orígenes sobreviveu. E mesmo que gerações subsequentes de estudiosos tenham muito que agradecer a Orígenes, é preciso observar que, com respeito à coluna da Septuaginta que ele elaborou, “tendia a suprimir as características mais originais e distintivas da Versão”.8  O método de alinhar o texto grego com o hebraico, com o qual Orígenes estava familiarizado, não levou em consideração as mudanças que o hebraico veio sofrendo, ou pelo menos sofreu, desde o tempo em que a Septuaginta foi primeiramente traduzida. Não eram somente os aspectos físicos da antiga Septuaginta que se tornavam mais obscuros; a possibilidade de reconstrução de leituras hebraicas que fossem anteriores à padronização do texto protomassorético tornou-se mais remota. Acerca das revisões de Luciano e de Hesíquio, sabemos ainda menos. A primeira está associada ao nome de um presbítero de Antioquia que foi morto como mártir em 311 ou 312 d.C. O interesse de Luciano era, em parte, o de um estilista literário, e sua obra mostra clara preferência pelas formas áticas mais clássicas, em contraste com os helenismos comuns à tradição mais aceita da Septuaginta. Com o propósito de preservar leituras antigas, Luciano fez questão de apresentar um texto que combinava leituras variantes; sua edição dos livros históricos (Os Profetas Anteriores) é 7. Símbolos usados na crítica dos textos de Homero pelo gramático alexandrino Aristarco. 8. S. R. Driver. Notes on the Hebrew Text and the Topography of the Books of Samuel, 2. ed., Oxford, 1913 [reimp. 1960], p. xliii.

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As versões antigas

especialmente valiosa como um relicário de leituras antigas. Mas há indicações de diversas fontes — as antigas versões latinas, o papiro grego Rylands no. 458, textos da caverna IV de Cunrã — de que o mérito de Luciano é o de um continuador, e não o de um inovador. “Encontramos no papiro Manchester (no. 458) uma passagem relacionada ao texto luciânico da Bíblia, escrita cerca de 500 anos antes do próprio Luciano”.9  Hesíquio provavelmente foi um bispo egípcio que viveu aproximadamente na mesma época de Luciano. Embora Jerônimo afirme que sua revisão se tornou o texto padrão da igreja no Egito, tem sido difícil identificá-la nos MSS existentes hoje. Se soubéssemos mais sobre os princípios segundo os quais Hesíquio realizou sua revisão, a tarefa de identificar os originais desse revisor seria grandemente facilitada. Argumentos a favor da natureza hesiquiana de diversos MSS foram elaborados em uma ou outra época. Alguns estudiosos chegaram até a sugerir que a recensão de Hesíquio fora produto da imaginação de Jerônimo. De qualquer maneira, houve outras revisões da Septuaginta além das mencionadas por Jerônimo, e uma das realizações dos estudos modernos dessa versão foi identificar e isolar várias delas. Sem dúvida, o avanço mais significativo nessa área foi identificar a recensão chamada Kaige, precursora da versão extremamente literal de Áquila. O trabalho dessa escola de tradução é marcado por idiossincrasias, tais como a tradução do advérbio hebraico gam por kaige, daí o seu nome. A pista da existência dessa corrente de recensões surgiu com a descoberta do rolo grego dos Doze Profetas (Menores) — o Dodekapropheton —, cujos fragmentos vieram à luz em Cunrã em 1952 e nos anos seguintes.10 O padre Barthélemy, pioneiro nesse campo, afirma que a versão de Teodócio e vários outros textos e tradições dentro do AT grego são representativos da escola Kaige. Como tradução do AT hebraico, a Septuaginta é mais bem caracterizada como “boa, em partes”. Em virtude da primazia do Pentateuco na sinagoga, esses livros eram, como um todo, tratados com cuidado, e traduzidos de forma bastante literal.11 Outros livros, tais como Jó, Daniel e Provérbios, foram tratados com mais liberdade; neste último, provérbios hebraicos aparecem muitas vezes com forma ou feição grega. Há dois textos de Juízes mesclados na Septuaginta, mas não são versões independentes: “um usou o outro, ou ambos vieram do mesmo arquétipo”.12 A tradução de Isaías é — e isso é um tanto surpreendente — de qualidade mediana. Jó e Jeremias foram traduzidos de textos hebraicos que eram significativamente mais curtos do que o TM. Provavelmente o fragmento mais antigo da Septuaginta ainda existente seja o papiro grego Rylands 458, já 9.

P. E. Kahle. The Cairo Geniza. 2. ed., Oxford, 1959, p. 221.

10.

V. D. Barthélemy. Les Devanciers d’Aquila. Leiden, 1963.

11. Isso não se aplica a Êxodo, especialmente quando se trata da tradução de termos técnicos. Cf. D. W. Gooding. The Account of the Tabernacle. Translational and Textual Problems of the Greek Exodus. Cambridge, 1959. 12.

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Jellicoe, op. cit., p. 280-1.

mencionado. É datado do século II a.C. e contém partes de Dt 23—28. O papiro Fouad 266, com fragmentos de Gênesis e Deuteronômio, é quase igualmente tão antigo. Da caverna IV de Cunrã vieram fragmentos de Lv 2—5, em grego, e, da caverna VII, fragmentos contendo Êx 28.4-7 e a epístola apócrifa de Jeremias (43 e 44); remontam provavelmente, em antiguidade, ao século I a.C. Os principais unciais — a peça-chave da pesquisa da Septuaginta — são os códices Sinaítico (século IV), Vaticano (século IV), Alexandrino (século V), Efrén reescrito (século V) e o Marcaliano (século VI). Um bom número de versões antigas baseou-se, no todo ou em parte, na Septuaginta, principalmente a Latina antiga (Vetus latina), a copta, a armênica, a geórgica, a gótica, a eslavônica, a etiópica, como também algumas traduções arábicas. Algumas dessas têm valor em virtude da luz que lançam sobre os seus originais gregos. As mais importantes nesse aspecto são as em etíope, latim e copta.13 A versão copta saídica desfruta ultimamente de uma estima incomum por conta de pontos de concordância com o já mencionado Dodekapropheton. Várias traduções foram produzidas para atender às necessidades de igrejas nativas em situações semelhantes às que são encontradas por missionários hoje. Úlfilas e Mesrop tiveram de inventar alfabetos, o gótico e o armênio respectivamente, para que pudessem verter as Escrituras para o vernáculo.

As versões gregas menores O uso — e o abuso — cristão da Septuaginta conduziu finalmente ao desagrado dessa versão por parte dos judeus, seus antigos promulgadores. Mas houve mais um fator responsável pela mudança de estima da Septuaginta por parte dos judeus. O processo de padronização do texto hebraico consonantal parece ter alcançado seu clímax no final do século I d.C. Enquanto os cristãos podiam usar — e de fato usavam — a Septuaginta como se nunca tivesse havido um original hebraico, a atitude dos judeus não podia ser a mesma. Ali, o abismo entre a tradição grega e a tradição hebraica, então estabilizada, foi considerado grande demais para continuar a ser tolerado. Tentativas anteriores de trazer a versão grega a uma conformidade maior com o hebraico foram agora canalizadas para uma versão cujo princípio dominante era o de fidelidade ao texto hebraico ad extremum. Áquila publicou sua tradução em algum momento do início do século II d.C., provavelmente na Palestina. Sua reação à cristianização do AT foi produzir uma versão exageradamente literal dos originais hebraicos, representando nuanças, etimologias, solecismos e tudo o mais. Ao empregar essa sistemática, ele estava adotando os princípios exegéticos ensinados por seu provável mentor, o famoso rabino Akiba. Podemos comparar a versão de Áquila aos textos interlineares 13. As versões armênica e geórgica talvez tenham sido apenas revisadas com base nos textos gregos.


As versões antigas

modernos do NT, quando fazem uma tradução absolutamente literal do original.14 Também a obra de Áquila deve ter tido o mesmo tipo restrito de público-alvo. A versão de Áquila desapareceu, em grande parte, mas há fragmentos em número suficiente para demonstrar a coerência com que foram aplicados os princípios de tradução. Um dos testemunhos mais importantes dessa versão é o palimpsesto da Héxapla do século X, descoberto pelo cardeal Mercati na Biblioteca Ambrosiana em Milão, em 1896. O palimpsesto contém em torno de 150 versículos de Salmos, omitindo somente a primeira coluna (o texto em hebraico) da Héxapla, conforme fora originariamente produzida por Orígenes. Pelo menos duas outras traduções gregas do AT foram publicadas no período entre o final do século II e o início do século III d.C. Assim como Áquila, Teodócio parece ter edificado sobre um alicerce estabelecido muito antes de sua época; de outra forma, seria difícil explicar leituras “teodociônicas” que já estão presentes no NT e nos pais apostólicos. Ireneu nos informa que Teodócio era judeu prosélito e natural de Éfeso. Orígenes obviamente tinha a versão de Teodócio em alta estima, usando-a com frequência para preencher omissões na coluna da Septuaginta de sua Héxapla. A superioridade da versão de Teodócio do livro de Daniel foi tamanha que desalojou quase que completamente a frágil versão da Septuaginta desse livro; há somente dois MSS para representar esta versão. A tradução de Teodócio está em algum lugar entre o literalismo de Áquila e a elegância estilística de Símaco. Ele tinha uma tendência desconcertante para a transliteração, especialmente de termos técnicos, e há mais de cem exemplos desse fenômeno nas porções de sua obra que sobreviveram. Símaco, terceiro componente do trio, fazia parte da seita judaico-cristã dos ebionitas. Seu compromisso com a elegância do estilo grego faz da sua versão a antítese completa da obra de Áquila, embora haja evidências de que ocasionalmente fizera uso desta! Na sua atenuação dos antropomorfismos, talvez possamos descobrir mais uma expressão do desejo de Símaco de apresentar o AT ao mundo grego da forma mais favorável possível, embora seja possível também atribuir essa tendência a seu conhecimento e respeito pelas ideias rabínicas sobre a questão. É muito difícil determinar com exatidão a data da composição de sua obra; as primeiras décadas do século III talvez sejam um bom palpite.

Os targuns aramaicos A tradição talmúdica associa a origem dos targuns à ocasião descrita em Ne 8: “Leram o Livro da Lei de Deus, interpretando-o e explicando-o (mg., “com interpretação”),

14.

Podemos também comparar a obra de Young, Literal Translation of the Bible. A comparação é adequada no sentido de que Young, como Áquila, tinha uma teoria de tradução predileta — e, no caso deste, isso afetava a tradução do Waw Consecutivo hebraico.

a fim de que o povo entendesse o que estava sendo lido” (v. 8). Essa pode bem ter sido a primeira vez que o Pentateuco foi parafraseado em aramaico, em público, para beneficiar aqueles que não entendiam o hebraico. “Targum” significa “interpretação”, e podemos facilmente imaginar que naqueles dias, logo após o exílio, as “interpretações” em aramaico acompanhavam a leitura do Pentateuco na sinagoga. No início, o Targum talvez só existisse em forma oral; era proibido ter o texto aramaico por escrito junto com o rolo do texto hebraico, na sinagoga, para que não parecesse que a autoridade do original estivesse sendo desacreditada. Há uma indicação em uma história talmúdica de que algumas autoridades olhavam com desconfiança para targuns escritos, fosse na sinagoga ou não. A Mishná (c. 200 d.C.) estabelece regras para a leitura e tradução das Escrituras na sinagoga, e com base nelas fica claro que muito cuidado era tomado na tradução do Pentateuco. Aliás, a inclusão de leituras dos Profetas e dos Escritos (hagiógrafos) parece ter sido um desenvolvimento posterior. Apesar dos desestímulos que possa ter havido, a tarefa de colocar os targuns por escrito deve ter se iniciado antes da era cristã. Fragmentos de um targum de Jó, que foram descobertos em Cunrã, foram datados como da metade do século I d.C.; a forma de aramaico usada sugere que o século anterior tenha sido a época da real composição do targum. Não há o que se poderia chamar de um targum do AT; o que existe são vários targuns do Pentateuco, um targum completo dos profetas e targuns específicos para a maioria dos hagiógrafos. O targum Onkelos, para o Pentateuco, e o Jônatas, para os profetas, receberam o status de traduções oficiais dos judeus da Babilônia, embora na sua origem sejam produtos das sinagogas palestinenses, tanto quanto os outros targuns. Quando foram levados para a Babilônia, provavelmente algum tempo após a destruição de Jerusalém em 70 d.C., foram revisados para concordar de forma mais próxima com o original hebraico. O Onkelos tem sinais de ter sofrido uma revisão minuciosa e completa, e grande parte do material distintamente palestinense foi eliminada. Os targuns do Pentateuco que não foram sujeitos à redação na Babilônia são extensos e parafrásticos, repositórios valiosos da tradição e da erudição rabínica. Além dos dois targuns completos do Pentateuco, Pseudo-Jônatas e Neofiti (identificado somente em 1956), o targum palestinense é representado também por vários fragmentos cujo significado não é diminuído pelas dificuldades consideráveis que apresentam. Os targuns para os hagiógrafos parecem ter sido compostos, em grande parte, em época relativamente tardia. Há diferenças realmente fundamentais entre o antigo targum para Jó, representado nos fragmentos de Cunrã, e o targum que antes era a única versão aramaica desse livro conhecida por nós. Há um estilo caracteristicamente “targúmico” que transcende os limites dos targuns individuais; e visto que os targuns são interpretações, e não simples traduções, há muito mais espaço para que essas características comuns 31


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