SERGIO CRUZ Filhos do Suor
O CRUZ do Suor
SERGIO AUGUSTO CRUZ OLIVEIRA nasceu em Belém do Pará, mas desde criança vive em Manaus, capital do estado do Amazonas. É arquiteto formado pela Universidade Gama Filho no Rio de Janeiro. Filhos do Suor é seu primeiro livro e a realização de um sonho antigo.
“... Quando com as crian procuram su extraindo fo com à lu faz Fi Filhos do suor é um romance brasileiro que, num cenário distante e inimaginável a todos que vivem nas metrópoles do país, revela o drama em que vivem as populações ribeirinhas da Amazônia. A história se desenvolve na cidade fictícia de Orotoco, às margens do rio Madeira. Com a dose certa de humor, drama e suspense, a história pontua o destino de um grupo de pessoas, que vindas de vários lugares do Brasil, chegaram à aldeia em busca da felicidade e deixar para trás seus passados e origens. Os contrastes naturais da Amazônia contornam o drama, acentuado pelo descompasso cultural existente entre os seus habitantes e aqueles que lá chegaram, suas relações físicas, emocionais, seus sonhos e ambições. Filhos do Suor é, acima de tudo, uma declaração de amor à natureza e aos filhos da Amazônia. O autor, também arquiteto, descreve com detalhes intrigantes todo o rico cenário onde a trama ocorre e seus personagens, quase reais e caricatos ao mesmo tempo.
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Ilustraçþes de
Mauro Britto
A EDITORA A Livros Ilimitados é uma editora carioca voltada para o mundo. Nascida em 2009 como uma alternativa ágil no mercado editorial e com a missão de publicar novos autores dentro dos mais diversos gêneros literários. Sem distinção de temática, praça ou público alvo, os editores ilimitados acreditam que tudo e qualquer assunto pode virar um excelente e empolgante livro, com leitores leais esperando para lê-lo. Presente nas livrarias e em pontos de venda selecionados, tem atuação marcante online e off-line. Sempre antenada com as novidades tecnológicas e comportamentais, a Livros Ilimitados une o que há de mais moderno ao tradicional no mercado editorial. Copyright © 2019 by Sérgio Cruz Copyright desta edição © 2019 by Livros Ilimitados Conselho Editorial: Bernardo Costa John Lee Murray ISBN: ISBN: 978-85-906493-59 Projeto gráfico e diagramação: John Lee Murray Ilustrações: Mauro Britto
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durante as noites, minha mãe me mandava contar as estrelas do céu, segundo ela, para que um dia eu pudesse contar histórias.” “Quando eu era menino,
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Marieta, a melhor escritora que eu conheรงo, apesar de jamais ter escrito um livro sequer.
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Maria de Fátima, por ter abdicado de mim nas madrugadas em que escrevia, e pela paciência de ter que aturar uma alma tão inquieta.
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os meus amigos da Escola de Arquitetura, pelo incentivo à realização deste sonho tão antigo, apesar dos tempos, dos mares e dos ventos... eus nomes estão expressos nos personagens dessa históS ria; seus sobrenomes não! Preferi preservá-los, para que nada pudesse lhes roubar a paz.
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Chinte, meu irmรฃo mais velho, que aos oito anos jรก ouvia as minhas primeiras histรณrias.
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rotoco é uma cidade fictícia, pequena, bem pequena, cravada na Floresta Amazônica, às margens do Rio Madeira, afluente do grande rio. Região de mata exuberante e de rios caudalosos, sua beleza natural, sua fauna e sua flora acentuam o cenário místico do lugar. Em Orotoco, como em toda vila do interior, o tempo passa lento e a vida das pessoas também. Seus habitantes vivem em permanente estado de contemplação; de dia olham o sol, de noite miram a lua, e nas noites mais escuras, contam estrelas. Toda a atividade econômica do município se fundamenta no extrativismo, na agricultura familiar, na plantação de juta, na caça e na pesca, embora reza a lenda que suas matas e seus rios abrigam grandes reservas de ouro e de diamantes. É esta lenda que já começa a atrair a cobiça de homens aventureiros, vindos de outros lugares do Brasil e até mesmo do exterior. Em Orotoco, nada quebra a monotonia dos seus dias. Suas casas, em geral, têm as paredes caiadas de branco e são cobertas com telhas de barro ou palhas de buriti. As populações ribeirinhas se acomodam geralmente em palafitas, que são casas de madeira, cobertas com palhas, telhas de zinco ou alumínio, construídas sobre esteios altos, que as protegem contra as enchentes dos rios, fenômeno natural que se repete a cada ano. A praça da igreja é o local mais importante da cidade. À sua volta estão situados os prédios da prefeitura e da câmara dos vereadores, além é claro, da própria igreja. É nesta praça que são
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realizados todos os eventos culturais e religiosos da cidade, e é lá que o povo manifesta toda a sua alegria e a sua tristeza também. A grande maioria da população professa o catolicismo, embora já existam nichos crescentes das correntes evangélicas. O clima em Orotoco é quente e úmido, a exemplo do que acontece em toda região. O calor intenso só é amenizado pela brisa forte que vem do rio, ou pelas chuvas que caem no inverno, bem antes do entardecer. O abastecimento da cidade geralmente é feito pelos regatões, que em seus barcos trazem mercadorias, na maioria das vezes de Manaus e de Belém do Pará, para venderem aos comerciantes do município. De volta, levam os produtos regionais, como a juta, a castanha, a farinha, hortaliças e frutas. Por vezes, até os peixes e as carnes de caça, sendo estas últimas, clandestinamente, em virtude da caça ser atividade proibida pela legislação ambiental. A vida noturna de Orotoco se resume a passeios na praça e bate-papo nos poucos e pequenos bares da cidade. Nos finais de semana, festa no Clube Municipal, com muito forró comendo solto no salão. As famílias, ao final das tardes, cultivam o hábito de conversar nas calçadas, sentadas em cadeiras de balanço à porta das suas casas, observando as pessoas, contando lorotas, deixando o tempo passar. A vida em Orotoco é tão silenciosa, que os sons que mais se ouvem na aldeia são o do ranger de uma carro de boi, e em segundo lugar, o do badalar dos sinos da igreja.
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prefeito de Orotoco nem em Orotoco vivia; morava em Dourados, Mato Grosso do Sul. Era homem de posses, criador de gado e plantador de soja, também tinha empreiteira. Usava calças pantalonas e camisas apertadas, ligeiramente abertas, que lhe exibiam o peito nu. Duas vezes por semana, visitava Orotoco, caminhando por suas ruas lamacentas, desfilando autoridade, vomitando arrogância. Fingia ouvir o povo e, como a grande maioria dos políticos brasileiros, era corrupto e já não se importava ser chamado de ladrão. Não dizia seu nome a ninguém, embora todos soubessem que tinha nome americano e sobrenome árabe. Fazia questão de ser reconhecido por sua sigla, WMB, que ostentava como brasão e com a qual marcava o seu gado. Suas gargalhadas, de tão sonoras, espantavam até os urubus à procura de carniça, pelos becos e brejos de Orotoco. Como prefeito, alimentava na cabeça um sonho antigo: trazer uma caravana de mulheres e instalar um bordel na cidade. Achava que com esta medida, atrairia turistas endinheirados, mais impostos, desenvolvimento e mais, muito mais dinheiro para os seus bolsos.
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epois do prefeito, a maior autoridade do município era o delegado Dr. Márcio Tucano, homem de grande estatura, nascido na cidade do Rio de Janeiro, bacharel em Direito, adorava ser chamado de doutor. Chegou à cidade pelas mãos de WMB, de quem era amigo de longa data. Por seu jeitão de herói do oeste americano e por seu nariz avantajado, ganhou o apelido de “Tucano”, hoje incorporado ao seu nome. Exercia a sua autoridade, ostentando em sua cintura duas pistolas escondidas por um paletó de linho branco, que ele não tirava nunca, apesar do calor. Reforçava a sua imagem de cowboy, usando calça jeans, camisa quadriculada, botas pretas e um chapéu ligeiramente caído sobre a testa. Era homem bonito; quando passava, as mulheres suspiravam de emoção. Passava os dias na delegacia, sentado com suas pernas cruzadas e esticadas sobre a mesa, palitando os dentes, hábito que, segundo ele, cultivava desde menino. Fora do expediente, costumava ficar horas a fio conversando sobre arquitetura com o professor Jurandir. Conforme confessava aos mais íntimos, era a profissão que gostaria ter escolhido, embora a vida tenha lhe oferecido outros caminhos. “Mas, no futuro quem sabe, nunca é tarde demais para se viver”, costumava repetir e para si mesmo. Dos habitantes da aldeia, os que lhe davam mais trabalho, eram os bêbados, os brigões, os arruaceiros e um dos moradores mais polêmicos da aldeia, o Maluco Claudinei. No exercício da sua função, ninguém era mais severo do que o Dr. Márcio Tucano. Era intransigente com aqueles que
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quebravam a paz e a harmonia de Orotoco. Sabia usar a sua autoridade como ninguém, e talvez por isso fosse tão respeitado e tão temido pela população. No passado, não muito distante, foi noivo de Gilda, mulher exótica e de personalidade forte, que cansou de esperar por um casamento que não chegava nunca; acabou por aceitar proposta de um bicheiro carioca que por ela se apaixonou; casou e foi embora. Após o casamento, se tornou rainha da bateria da escola de samba Beija Flor de Nilópolis. Foi nesta época que o Dr. Márcio conheceu WMB, já eleito prefeito de Orotoco, que lhe fez o convite para cuidar da segurança do município. Em princípio rejeitou, não queria deixar sua vida de prazeres no Rio de Janeiro, nem suas praias; vivia cercado de mulheres lindas. Mas, por insistência do amigo, um dia resolveu aceitar a missão. Afinal, nunca foi homem de fugir de desafios; melhor seria, e menos arriscado, do que enfrentar um casamento naquele momento, assim pensava ele!
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m uma daquelas casas com paredes caiadas de branco, telhas de barro e varanda, morava um dos muitos personagens dessa história, o Maluco Claudinei. Homem complicado, de bucho avantajado, cabeça raspada e barba por fazer. Vivia seus dias sentado numa cadeira de balanço, ou deitado numa rede listrada estendida na varanda, quem sabe, esperando a morte chegar. Ranzinza e mau humorado, suas atitudes transloucadas lhe renderam o apelido. Em Orotoco, não havia quem não conhecesse ou tenha ouvido falar das lamúrias do Maluco Claudinei. Vez por outra, quebravam o silêncio da noite e até dos dias também: – Deus do céu, como pude vir parar aqui, terra maldita, pão que o diabo amassou, lugar imundo, só pode ser praga do papa, isto aqui é o cu do mundo. Dizem os moradores mais antigos, que já foi gente importante, já bebeu vinhos caros, já morou em palácios fora do Brasil, já se cobriu de seda, já até vestiu batina, comeu do bom e do melhor. Atormentado por seu passado, ainda hoje sente saudades de uma mulher que conheceu em Roma, com cabelos vermelhos de fogo e um umbigo que mais parecia uma hóstia santa. Esta mulher, um dia, ajoelhada ao confessionário, narrou-lhe o drama que viveu com um poeta, que lhe roubou tudo; a vergonha, a alma e o coração. Ao ouvir a história, excitou-se de um tal modo que, louco de ciúmes, deixou o confessionário e, diante de todos os fiéis presentes na igreja, quebrou o segredo da confissão. Como consequência, foi expulso da congregação.
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Sua batina, retirada e queimada em praça pública, como se fosse vítima da Santa Inquisição. Ofendido e humilhado, decidiu regressar ao Brasil, mas não para Maringá, sua terra natal, não suportaria a vergonha. Queria um lugar pequeno, onde não fosse reconhecido. Escolheu Orotoco, na Selva Amazônica, e, até hoje, não sabe bem porquê!
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grande opositor do prefeito WMB era o professor Jurandir, homem probo e de grande saber. Comentam por aqui que já foi arquiteto. Hoje, dá aulas nas escolas da aldeia, é jornalista e também vereador. Sua grande arma, sempre foi o seu verbo. Destilava ironia da sua tribuna e nos editoriais que escrevia para o folhetim O Penico do Madeira, denunciava os malfeitos do prefeito, sua ganância e o seu despudor. Em Orotoco, era a única voz que se levantava contra o prefeito, o único homem a quem WMB verdadeiramente temia. Entre os moradores da cidade, só ele conhecia o passado do Maluco Claudinei. Foram amigos de infância na distante Maringá. Mas, foi bem longe dali que sofreu a grande desilusão da sua vida. Aos 22 anos, foi estudar Arquitetura no Rio de Janeiro. Sonhava desenhar prédios e cidades. Durante o curso, se apaixonou por uma estudante de nome Liliane, filha de um grande político baiano, da família Magalhães. Liliane, na descrição do poeta, era moça linda, de olhos verdes, que não caminhava, levitava, no bailado sinuoso do seu corpo. No namoro, foram felizes, alimentaram sonhos, fizeram amor nas areias noturnas de Copacabana e, por várias vezes, testemunharam o sol nascer. Fizeram planos, e com os planos, os desenganos, até que o destino conspirou! Liliane, por influência da família, acabou se casando com um magnata baiano. Foi embora, partiu sem dizer um único adeus. Ao final do ano, com a sua formatura, Guata, como todos o conheciam, se fez o arquiteto Jurandir Guatassara Bueno, mas
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nem a Arquitetura, nem o tempo, nem a vida conseguiram curar tamanha dor. Desiludido, renunciou a tudo; sua profissão, seus sonhos e até a sua cidade, Maringá. Queria desaparecer do mundo, e para desaparecer, não encontrou lugar melhor: Orotoco, na Floresta Amazônica. Anos depois, já acostumado com a vida na aldeia, se fez vereador. Era adorado pelo povo; não criava gado, nem plantava soja, só plantava sonhos nos corações e mentes daquela gente sofrida do Norte do Brasil.
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em distante dali, na cidade do Rio de Janeiro, a pastora Eliete Resende exibia o seu sucesso. Sua Igreja nunca arrecadara tanto. Seus cultos viviam cheios de gente, não havia lugar para mais ninguém. Mulher de charme e grande poder de sedução, cativava seus fiéis vendendo esperança, vendendo ilusões. Costumava oferecer o paraíso como recompensa, desde que os dízimos crescessem, e cresciam sempre e cada vez mais. Certo dia, no entanto, uma tragédia familiar mudou tudo. O marido da pastora, voando em meio às nuvens rasteiras, caiu com sua asa delta entre as montanhas do Rio de Janeiro. Sua dor foi tão grande, que ela até rompeu com Deus. Decidiu ir embora da cidade, já não conseguia olhar para o alto, tudo lhe lembrava o marido aventureiro, que acabou chegando ao céu até mesmo antes do que Deus pudesse imaginar. Num dia quente do verão carioca, criou coragem, arrumou suas coisas, fechou sua Igreja e arriscou uma última profecia. Jogou dadinhos sobre o mapa do Brasil, quando o cubinho parou, lhe indicou um novo destino: Orotoco, no coração da Amazônia.
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ma das figuras mais queridas de Orotoco era Dinah, nascida e crescida na região. Mulher de grande coração, abnegada como poucos, dedicava sua vida a servir ao próximo. Tinha o dom da cura; curava as pessoas com suas rezas, raízes, plantas, mandingas e ervas medicinais. Livrava as crianças do mau-olhado, da febre alta e das dores de barriga; também era a parteira do lugar. Rara era a criança de Orotoco que não nascera por suas mãos. Aplicava injeções, engessava braços e pernas, consertava todos os tipos de torções do corpo; era a grande curandeira do lugar. Não era por outra razão que todos a chamavam de Mãe Dinah. Sua grande paixão, era sua sobrinha Janaína, cabocla bonita, de cabelos castanhos, olhos negros e cintura fina. A todos encantava, com seu sorriso largo e seus gestos de menina. Aos catorze anos, já tinha corpo e alma de mulher. Costumava se banhar no rio, principalmente nas noites de lua cheia. Sua tia sempre a advertia: – Cuidado com o boto menina, não converse com ninguém que ainda não conheça, principalmente se estiver vestido de branco. Olhe lá! Tome cuidado! Mãe Dinah acordava bem cedo, adorava ver o sol nascer e ouvir o galo cantar. Tomava café com pão e manteiga, pegava sua maletinha, seus instrumentos, suas mandingas e pé na estrada; lá ia ela cuidar da vida, cuidar das pessoas. Só voltava à tardinha, e apesar de cansada, ainda arranjava tempo para fazer o jantar. Os outros serviços caseiros eram feitos por Janaína, embora o que a menina gostava mesmo era de subir nas mangueiras, plantar bananeira, se jogar numa rede, contemplar a natureza e esperar pela lua cheia para nadar no rio.
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erta manhã, a cidade acordou com a seguinte manchete no folhetim e na boca do povo: “Orotoco ganhará bordel”. O vereador Jurandir descarregou da sua tribuna na câ-
– Só pode ser coisa deste prefeito irresponsável. Este bordel só vai atrair gente ruim; virão aventureiros de todos os tipos, de todas as naturezas. Nossa paz está ameaçada pela ganância de WMB. Em defesa dos bons costumes, não podemos tolerar tamanha agressão. Convocou então a população para em passeata, seguir em protesto pelas ruas de Orotoco, e em romaria, as mulheres casadas, os velhos, os cegos, os surdos-mudos e as beatas. O Maluco Claudinei, de pronto se colocou a favor do projeto da prefeitura, contrariando o discurso do amigo de infância. Deixou o conforto da sua varanda e da sua rede e foi à praça da igreja para, com megafone na mão, defender a iniciativa: – Cidadãos cudumundenses! – Viva o prefeito WMB! Esse nosso prefeito é do caralho! Que venha o bordel! Agora vou poder comer mulher, toda hora e todo dia! Quando eu era padre só comia hóstia, só bebia vinho e água benta. Foda-se o Vaticano, vamos todos foder, foder até morrer. Pela primeira vez, desde que ele chegou a Orotoco, o povo parou para aplaudir o Maluco Claudinei, que naquele instante, não se lamuriava, muito pelo contrário, convocava todos os homens famintos de amor, que o acompanharam em ovação: – Viva Orotoco! Viva o Brasil! Quem for contra o bordel, Vá pra puta que o pariu!
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Quando o delegado, Dr. Márcio Tucano, quis entrar em ação, foi contido pelo prefeito: – Calma, não faça nada! Eles estão se manifestando a nosso favor, volte para o seu canto. O delegado, então, guardou suas pistolas sob o paletó de linho branco e voltou para a delegacia contrariado. Adorava prender pessoas, cumprir com aquilo que ele considerava ser o seu dever e a sua sina. O poeta que a tudo observava, corrigiu: – Dever não, sina também não, prazer!
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dois dias de distância, o Sereia do Solimões, embarcação regional, singrava as águas turvas do Rio Madeira. Trazia seu nome impresso nas duas laterais da sua proa. Na sua rotina, transportava mercadorias e gente. Naquela viagem, todavia, só transportava um grupo de mulheres, carregadas de dores, de dissabores e de esperanças também. Viajavam em busca da felicidade, sonhavam com uma vida melhor; só queriam esquecer seus passados recentes, quem sabe, nas águas barrentas daquele rio. Formavam a caravana de mulheres de Madame Lyly, ex– pastora protestante, que após brigar com Deus, fez pacto com o diabo. Não mais ofereceria o paraíso, como em seus cultos, muito pelo contrário, venderia amor, mulheres e prazer. Debruçada sobre o guarda-corpo do convés, ao entardecer daquele dia, contemplou o sol que já se escondia no horizonte, engolido pelas águas do rio. Diante do espetáculo maravilhoso da natureza, sentiu a presença de Deus, e depois de muitos meses, vontade de rezar. Afastou o seu pensamento e a sua vontade, mas não conseguiu afastar o seu pranto, simplesmente chorou! Fora do Sereia do Solimões, às margens dos rios, este universo de contrastes que é a Amazônia, misturados numa só paisagem, as águas, as terras firmes, as várzeas, os igapós, as matas densas e as barrancas caídas. Palafitas e tapiris, expressão mais simples e espontânea da arquitetura regional, completavam o cenário mágico do lugar. Homens de pele parda, enrugadas e envelhecidas pelo sol,
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durante o dia, espingardas, caniços e malhadeiras na mão, caçam, pescam, plantam mandioca e plantam juta, criam porcos e galinhas; cães e gatos fazem parte das famílias. Em suas canoas, remam até contra as correntezas do rio, porque a vida para eles é dura mesmo, não é mole não, é dura de doer! Sobrevivem a tudo, das grandes enchentes às grandes secas, fenômenos costumeiros de uma natureza hostil, apesar de encantadora. Suas mulheres, no fogão à lenha, nas redes ou nas janelas, refletem a rotina dos seus dias. A cada nove meses carregam um filho na barriga, enquanto outros brincam no quintal. Crianças descalças e maltrapilhas correm e brincam pelas campinas, pelos chãos de terra batida e pelos capinzais. Nadam nos rios e nos igarapés, como se fossem peixes e se expõem a todo tipo de perigo. Cobras venenosas, jacarés e onças pintadas, além das correntes traiçoeiras das suas águas. Finalmente, acenam para os viajantes como se estivessem se despedindo da própria vida. À tardinha, antes do pôr do sol, regressam às suas casas, com medo da Matinta Perera, que na lenda amazônica é um misto de velha e pássaro negro, que assobia quando quer tabaco, assustando todos os moradores da região. Tem também a lenda do Curupira, caboclo pequeno e forte que tem o corpo coberto de pelos e os dentes verdes. Sua missão é proteger a floresta contra os caçadores e os predadores, alterando o sentido das suas rotas, com seus pés voltados para trás. As populações ribeirinhas e das matas vivem sem a assistência médica devida e sem educação formal. Simplesmente cumprem a sina de viver sem esperança e sem razão.
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Mas, como eles sempre afirmam: “Deus é bom!” Tão bom que ao erguerem seus olhos para o alto, a natureza lhes oferece a recompensa: um céu de azul intenso, um sol que pela manhã surge no horizonte, como que parido pelas águas e que nas águas submerge ao final de cada entardecer. Sol que lhes aquece o corpo, a alma e o coração. Sol que dá vida às florestas, às flores e aos frutos. Tão bom que acordam todas as manhãs ouvindo o canto dos pássaros, o barulho dos ventos nas folhas das árvores e o murmurar sereno das águas dos rios. Após o almoço, deitam preguiçosos em suas redes, contemplando a natureza, deixando o tempo passar. À tardinha, largam a preguiça de lado, voltam ao rio ou às matas, em busca do jantar. Quando a noite chega, com as crianças já dormindo, procuram suas mulheres na rede, e extraindo forças não se sabe de onde, com seus corpos cansados e suados, à luz de uma velha lamparina, fazem seus filhos... filhos do suor. Logo após, ainda deitados no balanço da rede, pela janela mais próxima, olham para o céu, agradecem pelo peixe e pela farinha, abençoam seus filhos, para finalmente sob um céu estrelado ou sob a luz do luar, repetirem a si mesmos e como se fosse prece: – Deus é bom! E amanhã? Amanhã será outro dia!
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á era noite quando o Sereia do Solimões chegou ao porto de Orotoco. No cais, era visível o entusiasmo dos homens famintos de amor; os fogos de artifício iluminavam a noite, enriquecendo o luar. A caravana de mulheres de Madame Lyly foi recebida pelo prefeito WMB, que num gesto simbólico, entregou-lhe a chave da cidade, deixando o vereador Jurandir totalmente indignado. Logo a seguir, prostitutas tristes, alegres ou deprimidas, com ou sem histórias para contar, começaram a deixar o barco, e entre elas, cantoras, coristas, músicos e dançarinas, dançarinas de cancan. Chegaram todas: Catarina, Fifi, Lígia, Leilinha, Verinha, Jussara, Mariza, Elisa, Leninha e Teresa. Esta última vinda de Bordeaux, na França. Só não veio a Iara, porque, esta, o poeta não deixou. Precisava dela para alimentar a sua saudade e os seus sonhos de escritor. A festa continuava no porto; a Banda Marcial do município entoava a marcha Cidade Maravilhosa, do carnaval carioca, que homenageava a cidade do Rio de Janeiro. Homens casados, solteiros e até os viúvos manifestavam seus delírios. Só não estavam presentes suas mulheres, porque naquele instante, oravam na igreja, assustadas com o futuro incerto dos seus maridos; temiam perdê-los para aquelas mulheres perfumadas. A vida já lhes oferecia tão pouco, imaginavam se ainda assim, lhes faltasse o amor.
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bordel funcionaria num prédio antigo da prefeitura, de esquina, com dois andares e vista para o rio. No pavimento térreo, o salão de festas, o palco e o bar, e no superior, os quartos destinados ao prazer. Unindo os dois níveis, uma escada suntuosa de madeira de lei enriquecia o espaço, emprestando ares de nobreza ao ambiente. Sua linguagem arquitetônica lembrava a dos grandes casarões coloniais das cidades mineiras, com suas portas altas e janelões diretamente voltados para as ruas. Suas alvenarias externas, na cor amarelo colonial, e as esquadrias de madeira, pintadas a óleo, na cor azul marinho. Cimalhas e sancas, de branco, adornavam e coloriam ainda mais as suas fachadas, já valorizadas pelas platibandas que escondiam os beirais do telhado. Todos os serviços de reforma e adequação do prédio ficariam sob a orientação de Madame Lyly com WMB ao seu lado, que já não resistia aos seus encantos. Fazia da sua autoridade um instrumento da sua conquista; nunca vira mulher mais charmosa e mais bonita, e isto não se cansava de repetir. Quem cuidava de tanta beleza era Bibiano, mulato magro e baixo, de jeito afeminado, que Madame Lyly trouxe da Bahia. No bordel, Bibiano faria de tudo; arrumaria os quartos e as roupas, bem como, os cabelos da chefe e das meninas, daria palpites na cozinha e ainda indicaria os homens mais bonitos e mais endinheirados. Gozava da simpatia e da confiança de todos da caravana, e quando algumas das meninas brigavam entre si, se socorriam sempre da ação conciliadora de Bibiano.
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“... Quando a noite chega, com as crianças já dormindo, CAPÍTULO procuram suas mulheres na rede, e extraindo forças não se sabe de onde, com seus corpos cansados e suados, barbearia Navalha de Ouro era o recinto onde os homens à luz dedeuma lamparina, de Orotoco mais gostavam ficar. velha Era o canto do fuxico; lá se sabia de todas as novidades aldeia; quem chegava e quem fazemdaseus filhos... saía, quem nascia e quem morria, inclusive, foi na barbearia que Filhos do suor.”
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se soube, pela primeira vez, da instalação de um bordel na cidade. Seu Manoel era o barbeiro e o dono. Descendente de portugueses, era um homem alto, muito magro e calvo, e ostentava no rosto um generoso bigode, que usava em homenagem a Bienvenido Granda, famoso cantor mexicano, intérprete de boleros, seu cantor predileto. Seu Manoel tinha uma vocação nata para a fofoca; falava mal de todo mundo, principalmente das mulheres. Talvez por isso ou por castigo fosse conhecido como o maior corno da cidade. Morava no andar de cima da barbearia com sua mulher Abigail; mulher infiel, que trepava com “Deus e o mundo”, só não trepava com ele, porque segundo ela, Seu Manoel fedia mais do que mucura. Diferente do Dr. Márcio Tucano, homem cheiroso e forte, com quem se deitava todos os finais de semana. Seu Manoel era torcedor ferrenho do Vasco da Gama; sua barbearia, enfeitada com faixas, flâmulas e escudo nas paredes, revelavam a sua paixão. Quando seu time perdia, não abria a barbearia; fugia da gozação, de tudo e de todos, ameaçava até se suicidar. ISBN: 978-85-906493-59 Puxa-saco por natureza, não cansava de elogiar o prefeito, principalmente quando este passava à sua porta, cortava o seu cabelo, ou ia se barbear.
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