N
o final de 2012, Day Porto nos pediu para utilizar uma sala no espaço que ocupávamos à época para ensaiar com um grupo de jovens atrizes que estavam se formando na Escola Célia Helena e que a haviam chamado para que orientá-las em um projeto de pesquisa. Assim, os primeiros passos desse trabalho foram dados dentro do espaço da Companhia Razões Inversas e tive, na época, a oportunidade de oferecer uma oficina de teatro narrativo da qual elas puderam participar, começando dessa forma nossa parceria. Já em 2013, ela me pediu que colaborasse com o trabalho acompanhando alguns ensaios enquanto ela se ausentava em uma turnê. Estudando o texto que havia sido criado durante o processo junto com as atrizes, me surpreendi com o material produzido. O texto revelava, além de alta qualidade poética, uma grande potência abordando um universo temático complexo, alcançando camadas profundas que propiciam a criação de um grande teatro. Além disso, o texto criado por Maria Claudia Mesquita era praticamente todo de natureza narrativa, exatamente o foco de minha pesquisa nos últimos dez anos. Continuei acompanhando o processo, cada vez mais encantado, até que em 2014, recebi de Day Porto o convite para dirigir o trabalho, uma vez que ela passaria a integrá-lo como atriz e acreditava que eu poderia colaborar com o processo em função da minha pesquisa de teatro narrativo desenvolvido na Companhia Razões Inversas. A essa altura, já estava apaixonado pelo trabalho e aceitei o
convite como a um presente que recebia. Assim, o Grupo Instante nasceu sob a égide da Companhia Razões Inversas, oferecendo, além da oportunidade de desenvolvimento da pesquisa de teatro narrativo, a possibilidade de tratar temas com profundidade e poesia únicas, temas que ainda incitam preconceito e grande resistência nas mais variadas camadas da nossa sociedade. E o teatro possibilita que esses temas sejam tratados poeticamente da forma sensível relativa à sua própria natureza, com potência que ultrapassa as possibilidades que o conhecimento puramente racional propicia. E se conseguirmos que ao menos um espectador seja tocado por esse universo, já teremos conseguido um grande feito.
Paulo Marcello
Palavras do Diretor.
O O ESPAÇO ESPAÇO DA DA CRIAÇÃO CRIAÇÃO ÉÉ O O VAZIO VAZIO
Q
uando aquelas meninas me procuraram com o desejo de montar um espetáculo inspirado no livro “A Casa de Bernarda Alba” , de Federico Garcia Lorca, no mesmo instante respondi: Ok! Mas... não me interessa montarmos uma peça sobre a realidade daquelas mulheres. Gostaria que partíssemos daquelas mulheres para encontrá-las em nós hoje. Se temos entre nós uma escritora, porquê não falamos das angústias, que surgirem a partir da leitura e ela escrever uma obra nova? Elas toparam na hora. Naquele instante surgiu minha parceria com Maria Claudia Mesquita. Surgiu o Grupo Instante. Em outubro de 2012. Não tínhamos onde ensaiar nem grana. Naquela época a Razões Inversas estava com uma sede na Lapa. Pedi ao Paulo Marcello se poderia nos acolher em um horário que a Razões não utilizasse o espaço e a Razões nos aconchegou em seu seio! Nasceu assim a nossa parceria com a Razões Inversas. Porquê Instante? Pensamos muito...Várias foram as palavras ... Permanecia o desejo do lugar do efêmero. Da Mudança. E nenhuma palavra sintetizou melhor aquele desejo que a palavra Instante. Concretizou-se assim o nosso lugar de passagem. Do experimento. Do tempo como processo para a vida. Do tempo como processo para o Teatro. Mal sabíamos nós que justamente ele, O Tempo, seria nosso oleiro a nos moldar para esse trabalho. E assim veio o nome do espetáculo: “A Espera DelA”. ESPERA. Ficamos durante três anos... Na espera. No trabalho. Esperar é um ato solitário e coletivo. Não é o lugar da imobilidade mas da preparação. Nós mulheres sabemos bem disso. Tivemos nossas esperas particulares e nossas esperas em grupo. Tivemos perdas.
Mas também ganhos. E tudo isso nos tornou quem somos hoje. Pelas perdas eu tive que sair do papel de diretora para entrar na história e vivê-la como atriz . Foi preciso perdermos para ganharmos entre nós o ator e diretor Paulo Marcello. O convidei para assumir a direção e ele se apaixonou de tal maneira, que sua paixão nos impulsionou a ter mais fôlego e suportar mais um pouco, o tempo da Espera. Uma nova energia. Uma energia masculina entre nós mulheres. Elas juntas criaram um novo tempo. E assim se criou um novo espaço no nosso tempo. Com o Paulo a Espera teve seu tempo de acabar. Por termos uma pesquisa de linguagem semelhante ao da Cia Razões Inversas, ele nos convidou para integrarmos o projeto de comemoração de 25 anos da Companhia. E assim o espetáculo “A Espera DelA” nasceu no dia 15 de julho de 2015. A você Paulo Marcello, Marcio Aurelio e a Cia Razões Inversas nosso mais profundo amor e gratidão. Agora aqui estamos. Mais fortes. Juntos! O lugar da criação é o vazio. Vivemos na experiência. O sonho moveu a nossa história. Não se pode criar nada novo se não se jogar no abismo. Nos lançamos no vazio em outubro de 2012 e assim seguiremos. A voar pelo abismo do nada, a enfrentar todos o medos, a colocar nosso coração na ponta da lança! Muito obrigada minhas parceiras! Muito obrigada meu parceiro! Naveguemos juntos nessa aventura sem fim...pela vida! No teatro! Para o teatro! Pelo teatro! Com todo meu afeto!
Dayane Porto.
O O INICIO INICIO DE DE TUDO TUDO U
m dia, um grupo de quatro jovens que estudavam teatro resolveram transformar um sonho em realidade. Falo da Indy Tavares, Juliana Lourenção, Maria Seckler e Thalita Souza. Tinham um projeto que iniciou no Teatro Escola Célia Helena e que partiu da pesquisa da saudosa Profa Mirella Altavista. As meninas queriam sair dos muros da escola e ganhar o espaço nos palcos. A Juliana e a Maria estudavam canto com a Day Porto e a convidaram para dirigir. Eu, que também estudava canto com a Day, entrei nos ensaios como observadora. O Paulo abriu as portas da Razões Inversas. As meninas experimentaram muitas coisas, separaram textos, contavam diversas histórias e partindo deste material, comecei a escrever. Mostrei meus escritos sem imaginar onde tudo iria chegar. Os textos foram aproveitados. Eu não sabia muito bem, mas o trabalho de observação que fazia ao lado da Day estava se transformando em dramaturgia. O projeto inicial se transformou completamente. Ganhamos palavra e corpo. Demorou muito mais do que imaginamos inicialmente, sofremos perdas, frustramos diversas expectativas.
Não sabíamos em qual terreno estávamos pisando, a dramaturgia feita de colagens de textos consagrados misturados aos nossos, demoraram a dar a dimensão que procurávamos. Daquilo que somos. Durante todo o processo me questionei sobre o que estávamos falando. Nos questionamos. Passamos por mudanças em nossas vidas pessoais. Tudo refletiu no processo. Seria muito difícil que em três anos continuássemos todos juntos e da mesma forma.
Hoj e, q u e m s o m o s : Day Porto e sua fé que abraçou e batizou A Espera Dela, agora está na cena. Indy Tavares, nossa inspiração e resistência. Ana Carolina Godoy que chegou mais tarde, mas que acreditou e abraçou toda a pesquisa com muito carinho. Paulo Marcello, incentivador e diretor, que abriu janelas e portas para todo projeto. O texto foi consequência de cada perfume deixado em nossa espera.
Maria Cláudia Mesquita
A A espera espera dentro dentro dA dA Espera Espera Dela Dela “
Quando eu entro em cena é sempre como se fosse a última vez, é só isso que me move ainda hoje.” Com essa frase de Marilena Ansaldi busco a mesma inspiração para o trabalho, porém seria como se fosse a primeira vez. Será que é a mesma sensação? E se a primeira vez também fosse a última. Deus me livre! Se fosse a única vez, acho que a sensação seria ainda mais incrível. A sensação de um único Instante. Quase três anos de espera. Falamos muito deste trabalho como um filho, passamos do tempo da gestação. Mas deve ser assim os nove meses de gravidez, descobertas, amadurecimento, apego, tempo de preparação para uma nova vida, o tempo necessário para o bebê estar pronto para nascer. “O teatro tem o tempo dele”, tudo na vida tem o seu tempo e a gente só entende depois que o tempo passa. Fazendo um resumo rápido. O Célia Helena nos uniu, os Fragmentos de Lorca no segundo termo, a Mirella que chamou “as bailarinas” para apresentação do seu trabalho de conclusão de pós inspirado em A Casa de Bernarda Alba. O tempo passou e a vontade de estudar sobre o universo feminino permaneceu. Um novo encontro, um novo Instante.
O começo não foi fácil. Estava passando por um período nada fácil em minha vida. Perdi a mulher mais importante de todas. Não tinha a menor vontade de ir aos encontros, mas me convencia de que seria bom pra mim, bom pra me distrair, bom para a vida continuar e foi exatamente isso que aconteceu, uma nova motivação. O trabalho me chamou pra vida, o tempo passou e eu queria estar lá, o processo ganhou textos inspirados em nossas histórias, começou a ganhar forma, o grupo passou por mudanças, nós passamos por mudanças. Estávamos cada vez mais mergulhadas em histórias de mulheres, mulheres de todos os tipos, como nós, todas em uma só. Entramos em trabalho de parto e falta pouco para Ela nascer. Tivemos que passar por essa espera para assimilarmos as transformações em nossas vidas. Muita coisa mudou, tive que esperar para me tornar o que sou agora. De menina virei mulher, mais uma dessas que estamos falando, elas me ajudaram a me tornar o que sou. Assim como comecei, termino inspirada por Marilena Ansaldi, mais uma dessas mulheres incríveis... “A vida só vale a pena quando você faz aquilo que escolhe, que gosta, que ama, que tem paixão, senão a vida fica muito triste, muito cinza.” Fico feliz em saber que fiz a escolha certa, que acertei em insistir, em continuar, em continuar para ser ela, para ser A Espera Dela.
Indy Tavares
Isso tudo é sobretudo TEATRO E
ntrei nesse processo a convite do Paulo em um momento em que o trabalho estava praticamente todo construído e já se anunciava a promessa do fim de uma longa espera que completava dois anos. Uma das atrizes precisou sair e eu entrei para substituí-la. Em uma mesa de um café, o Paulo me falou do projeto. Disse que a peça era sua “menina dos olhos”, que tinha uma pérola nas mãos. Falou muito da poesia do texto escrito pela Maria Claudia, que assinava sua primeira dramaturgia. Confesso que nas primeiras leituras do texto tive certa dificuldade em penetrar aquele universo, sobretudo as palavras do texto da Maria Claudia, que me soavam um pouco herméticas, como se dirigissem a uma outra camada de compreensão, que parecia fazer todo o sentido, mas que eu não conseguiria descrever de forma racional e objetiva. Mas era inegável a potência das imagens que brotavam daquelas páginas. Ao longo dos ensaios, fui aos poucos sendo surpreendida pela maneira como o Paulo e as atrizes haviam encontrado soluções muito simples, porém muito potentes para revelar as camadas “secretas” do texto. Foi quando em certo momento, depois de passar por toda a fase pragmática de memorização de texto e marcações, eu comecei então a penetrar e ser também penetrada e tocada não só pelas palavras como pela matéria do trabalho. E essa aproximação se deu de maneira muito feminina, fluida, intuitiva, delicada, nem por isso menos voraz. Refletindo agora e me permitindo a uma pequena divagação, o FEMININO nesse trabalho não aparece apenas como tema do
discurso, mas também na maneira como o texto se manifesta e se configura e na forma como se deve tocá-lo e descama-lo. Acredito que o FEMININO, assim como o MASCULINO é uma FORÇA, uma manifestação da natureza. Só que o FEMININO, por sua vez, pertence aquelas coisas do mundo que precisam ser reveladas, desnudadas. Ele é uma força atômica, é o início de tudo, aquele que gera; misterioso, mítico; ligado as matérias do inconsciente, à loucura, ao instinto e, por isso talvez, naturalmente resguardado, pouco acessível, voltado para dentro e tido como frágil. Talvez por isso também, tanta dificuldade em se lidar com ele, em deixa-lo se manifestar; tão combatido, “difamado” e diminuído. Fazer parte desse trabalho tem me possibilitado mergulhar por esse universo pouco conhecido mesmo para mim que sou mulher. São muitas as influências e pressões externas que são impostas e transmitidas geração após geração... do que é ser mulher ou de como devemos ser... O meu corpo de mulher já vem desde o nascimento carregado de muitos deveres e conceitos pré-determinados que tornam nebulosa a minha escolha sobre A MULHER que eu quero ser e como eu quero me manifestar no mundo. Não deixa de ser uma oportunidade para refletir sobre tudo isso... Mas que “A ESPERA DELA” não se limite a ser uma obra apenas para mulheres, mas também para os homens ou para todos aqueles que quiserem se abrir e nos ouvir. Porque para que se fale é preciso que haja quem escute... E que nos ouçam com o corpo inteiro... E reflitam... Sintam... E divirtam-se! Porque isso tudo é sobretudo TEATRO.
Ana Carolina Godoy
T
inha uma nossa senhora que falava bobagens em meus ouvidos. Sussurrava besteiras santas, de uma pureza nude, quase branca. Mas nossa senhora não sabia o que era nude. Nem eu. Não sabia nada de cores moda. Achei graça e quase corri. Ela disse: espera! Não conte nada para sua mãe. Não fiquei confusa, só um tanto. Foi a primeira vez que tive um segredo. Ou a primeira vez que me lembro que sabia um segredo. Ou mais que isso, a primeira vez que nossa senhora me contou 6 pecados. Foi assim que entendi que pecado é segredo.
Vê o brilho? Ela engoliu todas as luas. Passaram por sua garganta sem raspar em seus dentes. Não mastigou, não lambeu. Passou. Agora vaga, ouve uivos e choros em ouvidos internos. De sua boca brotaram histórias sem importância. Passa em desassossego constante. Deixou de sentir frio. Consumida de febres, tem o forno constante dos pés descalços. Não importa o que se vê. Nem a lua lá fora. Quem brilha são suas dores, água, farinha. Pão, pão da lua.
Morreu? Foi suicídio, ninguém nem desconfiou. Quando alguém se mata não morre. Foi o que ouvi dizer na rua. Tinha um feto por dentro, no meio, no escavado espaço que tomou lugar do útero. Por mioma, fibroma, coisa assim. Morreu grávida. O feto ali, sem resolução. Foi assunto no bairro. O pai, não a morta. E o pai do menino do oco? Que Mentira se matou, ninguém sabe ou diz. Queriam notícias do pai do feto que vingou depois das trompas, nas malhas das tripas. Virou bebê ali mesmo. No coreto. O pai? Apareceu? Não na primeira noite. Nem na segunda. Foi levado pra igreja. Confessionário, seu quarto. Mentira foi menina, moça, mulher bonita. Nem assim homem queria. Lavava os pés dos santos da igreja, entregava hóstia na missa.
Por isso o padre cuida do menino. Na igreja, cresceu traços da mãe, banhava os pés dos santos e santas. Mas de quem é o menino? Ninguém conhece. Deve ser homem discreto, um anjo, filho do Invisível. Ou safado, casado... Besteira! Mentira era mulher do padre! Apareceu um homem no confessionário. De joelhos, respiramento descompassado, destampou contar pecados. O menino ouviu tudo no lugar do padre. Setenciou penitência: pai nosso, ave maria, mês de missa na primeira hora do dia. Depois saiu correndo. Atropelou um caminhão! Sempre dentro da igreja, não tinha pai pra mostrar a cor da rua. Morreu? Sangue e tripa.
O
uvi dizer que mulher não nasce, jorra. Jorra em flor de sangue que derrete correndo pernas, perfumando mãos que violentamente explodem em desejo. Jorra e mesmo assim ninguém vê o fogo, a entrega. Fogo limpo. Sangue que toco feito água benta que purifica meus meses.
C
omecei a procurar a ferida. Sem coragem toquei, devagar, devagar. Estava quente, úmida. Tirei rápido o dedo. Lambi o sangue da ponta do dedo. Voltei o dedo na ferida e cutuquei mais fundo. Ardeu, gostei. Voltei a cutucar. Outro dia. Tinha a casca seca. Cutuquei cutuquei até achar a carne viva, quente, molhada. Segunda vez que gostei. Começou a coçar. Queria tocar, não toquei. Criou pus, lavei. Lembrei que ele não usou camisinha, eu não pedi a merda da camisinha. A ferida coçou fundo, onde parece ter fogo, dor e medo. Lá onde o olhar não chega, onde a mão não entra, o calor se insinua. Saí e entrei no banho 3 vezes. Lavei lavei e o chuveirinho quase me fez gozar. Me contive. Tinha pus, eu tinha nojo.
Não tinha pra quem contar. É nessas horas que o pensamento arde.
Fui a médica. Ela colocou o alargador na ferida. Usou luva, colocou o dedo num espaço tão fundo que só o medo sabe onde fica. Eu contraia todo o corpo e ela dizia com voz imperativa, solta! Vou apertar só mais um pouco! Apertou. Depois cheirou a luva. Não gostou. Eu contraí o rosto e jogava com o o ar tentando relaxar. Com palito tirou parte do pus, jogou iodo. Disse que ia arder. Ardeu. Uma lágrima escapou tímida. Tirou o alargador e senti todos os meus pelos contorcendo. Alívio e medo. No fim da consulta, olhou nos meus olhos fundos, disse que o que eu tenho não é coisa de mocinha de família. Voltei pra casa, fui até a cozinha. Chocolate, leite condensado, panela... Entendi o que é mocinha de família. Ela come brigadeiro ainda quente na panela, queima a língua e não sente culpa na ferida.
Bebo aos goles enquanto a morte a dor o brinde o corte o gole de saliva seca e seca na Ăşltima gota do sangue que mesmo apĂłs a morte ainda vive atĂŠ secar de sede e cede dobra-me . . . .
Hoje matei meus filhos no meio da rua. Foi durante a tempestade, entre as árvores caídas. Usei uma poça d’água e os afoguei. Alguém gritou: assassina! Que absurdo. Foi suicídio. Não sabem da minha dor. Mulher que mata os filhos morre, mas continua na vida.
Ela se apaixonou por alguém que não existe. Não. Existe. Mais. Isso aconteceu depois da ligação? Ligou para o celular dele. Alô? Oi. Tudo bem? Não sei como te contar. Conta! Ele morreu Ele estava doente Do que foi que ele morreu? Eu estou doente? Pode estar... Doente do que chegou. A perda. Da pele. Desligou, removeu o número de seus contatos. Removeram seus ossos. Eu não tive culpa. Tiraram dedinho por dedinho, vértebra por vértebra... jogaram a pele no saco de doações. Agora. Inexiste. Para sempre. O porquê é aquilo que veio. Veio no lugar errado. Fora de hora. Era sol que cega. Chuva pro amor? Tormenta. Inundação. Gota. Gota. Gota. Gota. Dor. Ela ali. Caixa de doações. Roupa fora de moda.
Pensei que ele poderia querer. Não de costas, de batom ou unhas vermelhas. Achei que ele podia querer apesar das minhas estrias. Querer no chuveiro, enquanto me lavo, querer de costas, água quente, sabonete nas partes. Ele queria. De cara ele quis. Foi assim que achei que era pra toda vida. No começo ele me ensaboava gostoso. Depois de um tempo o sabão corria de outra forma. Mandava eu me lavar sozinha, voltava tarde pra casa, trazia cachaça no bafo. Tinha dias que por sorte ele dormia. Por vários outros era a mão do próprio capeta calando minha boca, trancando minha garganta, trançando meu corpo. Estômago frouxo, nó na espinha, pernas frias. Mas eu aguentava, quase firme. Ele, mole, chorava. Eu também chorava, de pena. Escondia todos os hematomas. Era feio sair na rua e mostrar o quanto sofria de amor. Não que eu goste de apanhar, não gosto não, mas meu homem estava doente de vício, não tinha consciência. Queria cuidar. Eu pensava que ele poderia querer depois do jantar. Fiquei à espera. A comida sobre a mesa, 2 velas, músicas que falam coisas bonitas. Voltou depois de 3 dias. Disse que era para buscar as tralhas.
Achei que ele podia querer apesar dos hematomas. Ele quis. Achei que agora era pra valer. Papel passado, aliança, a menina dentro das minhas curvas. Sim, ele parou de me bater. Estava à espera dela, ele já pensava em sumir de novo. Foi no dia que salguei demais a comida. Achava que ele não me machucaria mais. Que agora o sangue só jorraria se fosse do meio das pernas. Que medo seria apenas parte do jogo de amar, descobrir prazer. Que palavras brutas serviriam só para as lutas na cama. Não achei que seria a mesa, ao servir pratos com sal. Já esquecia sal e temperos, cheiros de festa e fluídos. Proibidos? Cheiros. Amor? Ele não queria mais, sumiu de vez. Eu estava à espera dela. Nasceu e ele nem viu. Ela espera por ele, eu sei que espera. Nela acho seu sossego, dela o seu amor. Amor, espera?
Você já perdeu sangue? Minha mãe perdia sangue e não conseguia levantar da cama. Um corpo entregue à ferida aberta. Eu achava que era um tipo de preguiça. Quando fiquei mocinha eu ganhei um Modess. Era dia de Nossa Senhora e recebi a graça da Virgem. Me abri para o sangue e abençoei o primeiro ciclo: nascer-amadurecer-apodrecer-morrer. Todo mês um pedaço se vai. O corpo aponta inchaço, sangue... preguiça? Mulher perde todos os meses. Recolhimento e dor. Irritação e medo. Perda. Você já perdeu? Sangue? Você já perdeu? Um filho? O sangue escorre pelas pernas e você já sabe... apodreceu. O que sobra é deixar o útero escamar, lavar a dor com sangue. Depois te colocam deitada, uma tristeza... Espécie de preguiça?
Três palavras para A Espera Dela Se alguém me perguntar do que se trata A Espera Dela em uma palavra: Útero. Vejo a história que brotou de nossas mães, avós, bisavós, tataravós. Alguma coisa guardada no sangue que brota e jorra meses e meses de nossas vidas. Acredito que no primeiro dia que sonhamos A Espera Dela era lua de todas as mulheres, todas gotejaram sobre cada palavra e em cada poro de nossas peles. Se eu puder escolher uma segunda palavra: Amor. Todo o impossível nos circundou. Tudo que foi feito viveu o tempo e a fé de toda Espera. Acolhemos as angústias, as dificuldades, violências, perdas e impossibilidades, juntamos todas estas tralhas como material de adorno. Depois de tudo a terceira: Poesia. Uma experiência que dói, que tem beleza, que perfuma, que o Instante tenta tocar mas nenhuma palavra explica. Maria Cláudia Mesquita
Nรฃo sei se as histรณrias repousam na mente ou nas fibras mais profundas do corpo. Ou se simplesmente inexiste no espaรงo de todas as coisas que nascem. Sei dos olhos Delas. Por vezes tristes. Olhos profundos de fogo e รกgua. E flor.
U
sando elementos dos teatros narrativo e performático, três atrizes encenam fragmentos de histórias de tantas outras mulheres a espera de ampliação de entendimento e apropriação da figura feminina e do feminino. Passando desde a descoberta do próprio corpo, comportamentos autodestrutivos, violências até o entendimento das perdas. A aproximação com o público se dá no ritmo e poética das cenas, suas costuras e despertar de sensibilidade como graça e força. O Grupo Instante iniciou sua pesquisa partindo de textos clássicos e depoimentos das próprias atrizes e criadoras, gestando uma dramaturgia própria, de recortes e fragmentos, que partiu inicialmente da busca do entendimento íntimo, particular, que gerou o encontro com o feminino universal.
Fi c h a Té c n i c a Direção – Paulo Marcello Concepção – Dayane Porto Texto – Maria Cláudia Mesquita Elenco – Ana Carolina Godoy Dayane Porto Indy Tavares Trilha Sonora – Dayane Porto e Paulo Marcello Figurino – Carol Badra Iluminação – Paulo Marcello Assistente de Iluminação – Silviane Ticher Operador de Luz – André Luiz Lemes Coreografia – Indy Tavares e Juliana Lourenção Maquiagem e Acompanhamento de Processo – Camilla Valadão Assessoria de Imprensa – Ofício das Letras Fotos - João Caldas Programação Visual e Ilustração – Luana Marques Vídeos – Lucas Beda Direção de Produção – Paulo Marcello Produção Executiva – Maria Seckler Realização – Instante e Razões Inversas Marketing Cultural
15 de outubro de 2015 às 00:18h
H
oje tivemos apresentação dA Espera Dela. Não sei quantas apresentações assisti, nem mesmo quantos ensaios acompanhei. Sei que até hoje não tinha reparado no que escrevi. Acho que de tempos um grito por baixo das entranhas me cutucava e eu precisava escrever. Eu mesma sofria calada e nem percebia. Chegava nos nossos encontros de pesquisa contando, aterrorizada, a respeito dos dados estatísticos sobre violência contra a mulher, sofria ao saber das meninas que se privam de comida para conquistarem uma barriga negativa, sobre mulheres que não conseguem ter prazer, sobre a dor muito íntima de uma mulher que perde um filho, e sobre o cansaço de um ciclo de perdas de sangue, que no meu caso, fez com que eu tivesse uma anemia que me impedia de sair da cama quando estava menstruada. É disso que nos propusemos a falar, de cenas cotidianas. Não queria que fosse assim. Não poderíamos chamar tudo isso de cotidiano. Por isso tentamos derramar poesia, pra tentar fazer com que o mundo entenda toda dor e toda força. Hoje doeu mais, acho que estava disposta a cutucar minhas feridas. Mas não tem problema, enquanto uma única mulher na face da terra sofrer algum absurdo desses, eu vou chorar. E vou escrever.
Maria Cláudia Mesquita