Lucas de Melo Bonez
Nos versos de uma greve geraL
Lucas de Melo Bonez
Nos versos de uma greve geral Porto Alegre, 2017.
Texto escrito e revisado por
Lucas de Melo Bonez Imagens da capa foram extraídas de http://ordemlivre.org/system/posts/10856/imag es/normal/lc.jpg?1409331409 e https://fopspr.files.wordpress.com/2011/11/luta. jpg Todos os direitos deste texto são exclusivos do autor.
Apresentação Protestar é um inalienável direito do ser humano. Todos nós temos o direito de expor nosso ponto de vista pelo motivo que julgarmos correto, desde que isso não interfira na liberdade do próximo. As manifestações deste 28 de abril de 2017 pelo Brasil tomaram as mais diversas proporções. Interrupções de trânsito; muitas pessoas nas ruas com cartazes, com meras curiosidades; transporte público interrompido; economia direta e indiretamente afetada pelos atos alheios, seja por evitar comprar, por não haver circulação de público ou mesmo pelos vândalos presentes. Fato é que todos tiveram a oportunidade de ir às ruas e para mostrar o que pensam e o que são. Há os que não concordem com a data, com a motivação, com o critério de combate – mas nada disso retira o direito do próximo de buscar aquilo que lhe é justo, assim como os próprios críticos o farão nos seus momentos adequados.
Aqui, no entanto, quem ganha voz é a Literatura. Personagens pensados para um momento como o de hoje, a fim de pensar um pouco quem somos nós frente às dificuldades que se avizinham para os trabalhadores. Quem somos nós no princípio e no fim dos atos de quem participa dos eventos. Quem somos nós nesse sistema que insiste em perverter a lógica e a conquista dos trabalhadores do país. Que haja desfrute nestas cinquenta e poucas páginas de poesia narrada e refletida nas doze horas que a formaram. Afinal, cada um manifesta do jeito que pode. Lucas de Melo Bonez
I
As despedidas foram rápidas como um tempo que urge sem descanso. Foram entregas breves, passadas rápidas em meio ao movimento de uma noite intensa. Eram altas horas e os ônibus se enchiam rápidos e minúsculos recebiam as pessoas das despedidas desesperadas que não afagam os dias quentes. Mas a noite era fria. Fria de tensos movimentos rápidos inequívocos de uma dança que começaria em movimentos de oito em oito, desregulando ao passo do vento que insistia em esfriar os corações das despedidas. Os sorrisos deram espaço aos desalinhos que cruzavam as faces daquele motorista que perdido em olhares dos seus caminhos encontrava no frio a sua nova despedida. Mas o coração era quente.
Até que a noite amornou. Era hora do silêncio das despedidas do ônibus, da locomoção que agora era todo silêncio útil. As portas da empresa fechavam devagar, ao léu, Para silenciar qualquer atividade desse dia.
Então ele saiu, no meio da noite, e caminhou. Caminhou em desalinhos e novas despedidas Pelos alimentos e pelas pessoas da locomoção Que agora seriam uma só naquele dia.
II
A professora chega em casa na noite fria, sendo recebida aos afagos pelo cão solitário que ficou à espera daquele rosto caloroso para dele tirar também a sua diária lasca. Ela ligou o rádio e deixou os sons entrarem. Entre silêncios maravilhosos e falas pífias, as regalias de uma geração putrefata e vil Chegaram e ronronaram, prontas ao golpe. “É certo que nenhum de nós merece isso”, pensava ela, ingênua, na sala com abajur, enquanto sua amiga enviava uma mensagem, dizendo que já estava em casa naquela noite. Ligou o rádio mais alto, apenas para ouvir as façanhas de um novo tempo avizinhado, mas perdido na lomba daqueles desonestos que insistem em observar a sua redoma.
“Não há mais ônibus nesta madrugada”, era noticiado aos quatro ventos da cidade. “Agora parou o trem e não há locomoção”, avisaram-na uma vez mais pelas ondas. A professora tirou a sandália e pôs os pés - aqueles tão cansados da fadiga natural E pôs um sorriso de leve, bem no canto, de uma boca que há anos não via o fato. Lembrou de muitos anos antes, muito atrás, de quando o cão nem geração anterior tinha, de quando a amiga sequer em sonho existia e que chegava em casa para ver as crianças. “Fora, presidente! Abaixo a casa da dinda!” Expressões constantes de quem viu mundos tão distantes – um confronto entre novo céu e nova terra, com nova gente vibrando tanto!
E o que aconteceu? Tudo mudou outra vez. O tempo da saudade chegou tomando corpo E deixou todos fatos e todas ações perdidas. Seria hoje o dia de ver tudo tão delinquente?
III
Havia um rumo incerto naquele coração tão dolorido que hoje jazia impertinente. Havia tanta vontade de beijar naquela boca tão doce que hoje silenciava ao luar. Havia um céu de tão cheias estrelas naquele tempo tão vulgar que hoje não havia qualquer saída. Então era hora de ir para a rua. Era o momento de ver a soma aflorar. A hora de ver o sangue verter versos. Então era hora de sair pela noite e vagar pelos corações insanos daqueles que sonham o novo amanhã.
Então era hora de expor os poemas que calaram rudes os silêncios de quem via o mundo a explorar. Eram tantos os seus desejos que em constantes lampejos via a noite seguir por seu luar. Eram tantas as noites em claro em que se estou o reparo necessário para viver e voar. Eram aqueles os seus anseios que noite adentro nos seios deitou para assim começar a sonhar. A noite era escura, sem cor. Mas o sonho era dourado, fervor. E ele só via a rua transcender...
As sensações eram tão diluídas quanto a escuridão que vinha do olhar daquele homem que queria voar. As sensações eram tamanhas que só de viver ele perderia o ar para então perder-se na noite a voar. Era hora de levantar. De acontecer! Momento único em sua curta vida O momento claro de sua nova ida. Levantou-se, vestiu-se, abotoou-se. Seria tão melhor se ele fosse apenas um peão perdido por aí... Mas não! Seu sentido queria distraído que ele fosse além de um cupido e que gerasse amor por onde fosse.
Era hora de viver – no meio da noite! Hora de encontrar quem quer que fosse para viver uma nova vida – ainda hoje!
IV
Ao chegar em casa, foi ao quarto. Era ela deitada e perdida no sono. Sentiu que a greve que começava Era o início do fim da mocidade. Banhou o corpo em torpes cristais para encontrar na cama seu sonho. Era vívido em meio aos movimentos da noite que recém iniciava lenta. Deitou ao lado da amada uma vez para vê-la contrariada e notívaga, reclamando que não era escassez, mas que não daria para viver assim. E seu rosto banhou-se em tal raiva que em vez de silenciar sua bala, no rosto acertou-lhe uma outra vez. “Era o desejo atormentado”, falava.
Mas hoje não. A mulher não calou. Levantou e saiu, doida de raiva, A dizer que não mais ficaria com ele enquanto não mudasse quem fosse. E ele, revoltado e sem bondade em si, bradou pelo silêncio que tanto ouviu na noite em que, fria, calou o mundo para começar a greve que logo viria. A greve, no entanto, começava ali, dentro de casa, na distância dos corpos, que não poderiam mais de ver juntos, já que a ignorância pairava tão crua. Ele deitou e ela saiu para sei lá onde. O corpo amainou, enquanto na noite a mulher via os fogos e os novos sons de um dia que se movimentava cedo.
E os olhos vis fecharam aos poucos, celebrando o encontro entre dois entes: a noite tão fria no coração tão quente e os sonhos com a mulher agora fugida.
V
“Abaixo o governo! Abaixo as reformas!” Era tudo que se ouvia naquela madrugada. Nem tão cedo, pois era quase hora do sol, mas que seguia com uma novidade intensa e fria, e forte com gente de toda nova parte que seguia em comboio pelas ruas geladas. “Abaixo o teu medo! Abaixo tal reforma!” Era tudo o que se ouvia naquela nova manhã. Nem tão tarde, pois ainda jazia frio orvalho que se mostrou durante a noite tão temeroso de uma nova manhã no céu enquadrado de uma vida que agora seguia em novo rumo. “Abaixo a ditadura! Abaixo o desgoverno!” Era tudo o que se ouvia naquela nova hora. Nem por poucos, nem por muitos, mas todos que vibravam com aquelas ideias de protesto que combatiam sem alarde a corrupção alheia de um governo que não se vê tão praticável.
“Abaixo as tuas panelas! Abaixo tudo agora!” Era tudo o que se ouvia naquele frio momento. nem as cobertas, nem os moletons ou as meias cobriam o frio daquelas palavras tão pesadas, enquanto a noite perdia seu lânguido prazer e se formava uma manhã de novo sol e fogo.
VI
O poeta, para Pessoa, é um fingidor. Mas será que finge tanto que é capaz de espantar seu maior espanto toda vez que o silêncio toma forma? Os versos daquela gente estavam nas ruas nos postes nas placas na alma lavada de quem falava que não queria o que hoje havia. Despontou no horizonte o desejo tão forte e tão nobre de ser aquilo que desejava pra valer.
Assim os poemas surgiram em meio a gritos de ordem de assaltos a nossa desordem que penetra na mente severa da gente que não entende que é preciso muito mais. E criou-se assim uma viagem lírica em meio aos pneus e aos fogaréus que insistem em deixar o frio do dia de lado.
Enquanto o trânsito não anda e o ônibus não sai e o trem fica parado as pessoas reclamam seu dia suas atividades do dia e não lembram dos direitos que vão ficando para trás.
Os versos que eram escritos e que hoje eram entoados não tiveram momento de serem calados por ninguém. O poeta era o centro de tudo e tudo era o centro de ninguém.
A boca que tanto falava vertia textos indizíveis para gerações posteriores. Mas a necessidade de dizer era tão forte quanto o lazer que desejava pelo dia viver. Diziam de um lado para outro que o momento era de trabalhar que as manifestações eram ruins que pacífica era a cama alheia que nada deveria parar pois deveria trabalhar.
Mas a voz e o intento fluíam como as águas que às margens desciam das rodovias com seu pleno prazer. E o desejo de melhoras constantes partia pelos novos ouvidos errantes para chegar à mente daquele viver.
O poeta retornou orgulhoso pois seu filho famoso – o verso orgulhoso – era de todo entoado por aí. Que felicidade ululante! Que maravilha vibrante! Pode descer a rua de chão batido e encontrar aturdido a polícia que em comboio vinha para acabar com a ladainha dos que pariam seus termos para quietos viver o que temos.
VII
Acorda num céu de brigadeiro intenso que reverbera os sons dos tambores – e dos fervores que vêm das ruas – para um novo momento de trabalhos. É hora de ver a comida, um café simples: pão, café, queijo, margarina com sal. Liga o rádio para escutar as notícias e se senta só, numa redoma de chatices. “Não há ônibus na cidade! Nem trem!” Noticiam de minuto a minuto, cansados. “Qual ônibus o quê! Quero só é comer!” E assim foi, passando a tal margarina. “Movimento intenso no Centro agora!” Enquanto mastiga os primeiros pedaços e sorve o café como quem bebe água e vê sua mulher partindo para longe.
“Barricadas na BR impede o trânsito!” E a mulher corre solta pelo sonho, ao sol, num corre-corre irrequieto de desejos que não mais envolvem o pobre motorista. “Não sabemos a situação dos ônibus...” “Que não sabem! Tô aqui, pronto pra ti, mas não me dão um direito merecido!” E sentia seus olhos lacrimejarem de leve. “Confusão na BR! Motorista avança em dois!” E os olhos marejados ganham tom de raiva – que é duradoura, dói no peito, indecente – e gera um teor análogo àquela raiva anterior. “O que tu achas disso, Fulano? Posição?” “Que a ditadura era um momento de vigor!” E vigor era o que ele queria, para achá-la, e buscar de volta a mulher daqueles sonhos.
Terminou o café, mastigou pouco mais o pão, em meio aos sons de estouros que vinham por aquelas ondas do rádio que era desligado Para sair de casa e encontrar a rua mascarada.
VIII
Após um bom almoço em sua residência, era hora de com o cachorro caminhar. O que inspirava era diferente daquele ar de que as coisas não teriam diferença. Ela sentia no fundo da alma um segredo que era dito ao pé do ouvido, devagar. Dizia que ninguém hoje deveria ter medo, pois o mundo nos convidaria para voar. Encontrou na praça a amiga, tão retorcida, em meio a uma bandeira que livre lhe fazia; encontrou a cachorra da rua cheia de vida, até com o pelo escovado pela rua ela ia. De um novo momento eram os sorrisos mais intensos do que todos os teus risos que relevam a audácia contra a rudez de um povo inerte em frente à nudez.
O dia parecia caminhar para o bom fim, pois nenhuma situação parecia tão afim de mostrar a cara das pessoas pela rua, como se saber tudo fosse propriedade tua.
IX
Na rua, na chuva, no vento, no caminho de quem come pó, chegar em casa nunca foi tão bom. Era o momento de transmitir tudo o que lhe fazia sorrir em meio aos movimentos da manhã. Sem parar para pensar, volta-se à tela do computador, para, maravilhado, falar dos feitos que estão além dos confeitos de uma vida de luta brava – uma poesia de pura intensidade. Chegou a hora de falar que o povo está para lutar contra tudo e contra todos que se oponham aos direitos – aos confeitos do tempo – para serem mais que o agora.
E os versos fluem de tal maneira – orgulhosos de sua estadia feita – para despontarem em meio ao sol que ilumina uma tarde tão fria e verterem alegrias constantes – lindo pano de fundo aos amantes! Dedilha teclas e mais teclas que substituem as canetas irrequietas de um tempo em que a voz era tudo. Agora o caminho era outro: promover a palavra, torcer curtidas, que realmente fossem intensas para si. Enquanto isso, o sol aos poucos se punha – um minuto breve de pura amargura – por um dia que logo testemunharia a descida do astro maior pelos morros, pondo-se no Guaíba resplandecente ainda com os sons que vinham do povo.
Com o rádio ligado, ainda manifestantes corriam pelas cidades, alegres ou batidos, trazendo seus desejos e suas dores claras que agora caíam nos versos do poeta como as lágrimas fecundas dos gritos daqueles que hoje mostraram quem eram. Vai, poeta! Começa com tuas agruras! Em outros lugares há corre-corre, correria de quem foge por buscar seus direitos! Aproveita teu pacifismo e mostra tua ira! É agora que os homens saberão de tua arte, pois falarás muito além de toda sorte.
X
No Centro da cidade sem transporte, o motorista chega à sua bela sorte e encara cada cidadão presente por ali. Há uma mulher que caminha seminua e que se esvai a cada movimento estranho. Encontra seus companheiros de glória que vivenciam seu momento na história e não perdem o desejo de um lugar melhor. Há uma mulher que caminha seminua na mente daquele que hoje é só estranho. Alegres com seus protestos e seus gestos, terminam o dia explorando as mídias que insistem em diferir as suas ações. Há uma mulher que caminha seminua entre tantos sonhos que vagam pela rua.
E ele olha para os lados e vê tanta gente que se alegra pelo confronto coerente com seus ideais orgulhosos pelo ato feito. Há uma mulher que caminha seminua e que contamina toda a fronte tua. Caminha pelo meio do povo atrás dela que faz o sonho desvanecer de tão bela mas que agora não está mais ao seu lado... Há uma mulher que caminha seminua para longe, longe... dele tão distante... Percebe que realmente seu fim é agora, porque perdeu de todo tempo sua hora para poder aproveitar a vida àquele lado. Há uma mulher que caminha seminua Tão longe que não mais se vê a fronte.
XI
A tarde cai nos versos da doce professora Que hoje viu com orgulho a velha defesa. Às vezes, pensava, que não era gentileza sair por aí e defender o que é desta hora. Chega logo em casa e liga o rádio de pilha, que elabora um pouco do ocorrido do dia. Falam em poucas pessoas, quase uma ilha, E que praticamente nada do que há mudaria. “Não importa”, pensou. O que a orgulhava era o movimento nobre de tão boa pessoa que incumbia à vida a palavra que hoje voa para as ondas da comunicação que amava. Trabalhou tanto tempo com a linguagem e hoje passeia com a cachorra pelas ruas que estão cheias de aprendizagens suas – um momento de prazer em sua aragem.
Agora é hora de descansar. Deitar na cama! Sentir no corpo o adormecer dos tempos... Pode lembrar de todos aqueles que ela ama e pensar que a vida pode ter novos alentos. Enquanto lhe dormitam os sonhos primeiros, beija-lhe a face a cachorra carente e feliz que ataca a fronte por sorrisos – por um triz! – e mata todos os desesperos inúteis rasteiros.
XII
Versos postos na internet em desvelos de glória e amor. É a hora do poeta sobrepor aquilo que faz com tanto prazer. Já nas primeiras horas, os primeiros comentários dos sonhos vários que surgiram pelo dia. O frio ainda era intenso, mas temeroso pelas ações de pessoas tão quentes – mais até que nossos entes. Agora poderiam partir as ideias de um mundo tão pífio e ruim para quem trabalha tão afim de encontrar na vida algo melhor.
Agora poderiam partir pesadelos de sempre retomar os modelos de um passado tão enterrado, tão fruto dos problemas da vida. Partiu Drummond, partiu Vinícius, partiu Quintana, partiu Barros... e aqui ficamos nós, seres fictícios, desejando ser mais do que eles foram.
Talvez não cheguemos ao ponto do som da Rosa de Hiroxima, do famoso Operário, mas aqui estaremos trazendo certo tom para encontrar no amor o verso operário. Assim destacaremos na tua fronte o frio, o calor e todo esse desmonte pela noite que se avizinha, devagar para sermos mais e perdermos o ar.
Agora o poeta descansa, tal foi sua luta. Pois pelos versos que avançam à noite o patrão talvez encontre de perto açoite daqueles que não mais aceitam silêncio. Enquanto isso, seguem o sonho adiante e a busca pela mulher tão sonhada, que vagaram em versos – dor retumbante daqueles que vivem toda a luta atada. Somos a soma de amores, de experiências, mas principalmente de ações autônomas. É assim que o mundo muda – pelas sombras dos pensamentos que se mostram atuais.
Lucas de Melo Bonez é professor, escritor e diretor de teatro amador. Trabalha na rede privada de ensino de Porto Alegre (RS) há doze anos. Dirige a Alma Ópera Rock, o maior grupo de teatro musical estudantil com temática heavy metal do sul do país. Como escritor, lançou quatro obras, dentre as quais Confissões (Ideograf, 2015) e O fim de Alice (2.ed., Metamorfose, 2016).
Ela sentia no fundo da alma um segredo que era dito ao pé do ouvido, devagar. Dizia que ninguém hoje deveria ter medo, pois o mundo nos convidaria para voar.