QUARENTA E OITO

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q u a r enta e oi to



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expediente

REITOR: IR. JOAQUIM CLOTET VICE-REITOR: IR. EVILÁZIO TEIXEIRA PRÓ-REITORIA ACADÊMICA: MÁGDA RODRIGUES DA CUNHA DIRETOR DA FAMECOS: JOÃO GUILHERME BARONE REIS E SILVA COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: FÁBIAN CHELKANOFF THIER DISCIPLINA: PROJETO EXPERIMENTAL IV - JORNAL/LIVRE PROFESSORES RESPONSÁVEIS: ALEXANDRE ELMI E VITOR NECCHI REPÓRTERES: ALEXANDRE BRASIL, BRUNA GASSEN, BRUNA GOULART, BRUNA VIESSERI, CLÁUDIA DOS ANJOS, DIEGO AMARAL, DOUGLAS GOULART, DOUGLAS HINTERHOLZ CAUDURO, EDUARDA SCHIFINO, GONÇALO CIRNE LIMA, GUILHERME LOEBLEIN FLORES, JÉSSICA CALDAS, JULIAN R. GOULARTE, JULIANA CLAUS PRATO, LUCAS DE OLIVEIRA, MARCOS WESTERMANN, MARIANA MELLEU, MATHEUS BELING D’AVILA, OHANA CONSTANTE, PAMELA FLORIANO, PRISCILA ARAÚJO, RODRIGO MELLO, TIAGO PACHECO E VÍVIAN SALVA FOTÓGRAFOS: ALEXANDRE A. KUPAC, ARIEL GIL, CAROLINE FERRAZ, JANAINA MARQUES E STEPHANIE GOMES PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: BETHÂNIA HELDER, BRUNA RANZAN, CAROLINE FRANTZ E TIAGO BIANCHI EDITORES: BETHÂNIA HELDER, CAROLINE FRANTZ E TIAGO BIANCHI REVISÃO GRÁFICA: BRUNO IBALDO


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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL (PUCRS) FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL (FAMECOS) AVENIDA IPIRANGA, 6.681, PRÉDIO 7 - PORTO ALEGRE (RS), BRASIL WWW.PUCRS.BR/FAMECOS

JULHO 2015


DIREITOS HUMANOS

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EDITORIAL

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À EXPRESSÃO

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À IDENTIDADE E À ORIENTAÇÃO SEXUAL

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AO GÊNERO

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À CRENÇA

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À RAÇA


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À MORADIA

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À LOCOMOÇÃO E À RESIDÊNCIA

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À SAÚDE

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À EDUCAÇÃO

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AO TRABALHO

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AO VOTO


CONSIDERAMOS 8

Consideramos que o reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos e seus direitos, manifestados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, já deveria constituir aquilo que clamamos como justiça, paz e liberdade plena no mundo. Consideramos que os Estados membros das Nações Unidas que se comprometeram ao assinar o documento, três anos após a S egunda Guerra Mundial, deveriam promover o respeito universal aos homens e mulheres, como forem reconhecidos, e suas liberdades fundamentais. Consideramos. Precedida em importância e inspirada por outros textos, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 178 9 , as definições humanitárias estabelecidas a partir da 1ª Convenção de Genebra, realizada em 18 6 4 , e a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, escrita meses antes, a carta foi publicada em Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 19 4 8 . Escrito por Eleanor Roosevelt, viúva do presidente dos Estados Unidos, Frank lin Delano Roosevelt, e então presidente da Nova Comissão de Direitos Humanos e das Nações Unidas, é um documento muito traduzido pelo mundo, exaltado pela autora como “a Carta Magna internacional da humanidade”. Com oito abstenções e duas ausências, os outros 4 8 países integrantes do bloco, entre eles o Brasil, aprovaram o documento na mesma data. Consideramos? Este livro não é apenas o reflexo daquilo que enxergamos na Cartilha, mas sim uma interposição entre as visões de quem pô de usufruir destes direitos, considerados como essenciais a todos os seres humanos, e aqueles que não os tiveram. Nós, alunos de jornalismo da Famecos, oferecemos nossa percepção do impacto que a Declaração teve e como isso media aquilo que,


para o mundo, é tido como ideal em aspectos de humanidade, pelo trabalho da reportagem, da fotografia, da diagramação e decisões editoriais. Com o Q u a r e n t a e Oi t o apuramos e apresentamos duas histórias para cada um dos artigos selecionados do documento. Quem teve e quem não teve. Aqueles que não precisaram lidar com a negação ou a pobreza de suas “humanidades”. Aqueles que não tiveram porque lhes foram negados ou tirados. Pessoas contam suas histórias para falar da vida vista com e sem dignidade. Novamente, investigamos o impacto que a presença ou a ausência destes direitos no Brasil causa na população. O ferecemos ao leitor um panorama para significar a importância destas garantias, não apenas para as histórias que contamos, mas para você, para todos, aos que podem e aos que não podem. Para que, além de sabermos por que precisamos deles, saibamos ter empatia. Este livro serve de lembrete para nós, como sociedade, que negamos a parcelas da população o que lhes é mais básico, por negligência, ódio ou ignorância. No alvorecer diário do que poderia ser uma nova era, ainda vivemos, por tantos lugares, tempos de retrocesso, de opressão, de morte. Porque os Direitos Humanos existem em papéis como esse, mas não são sequer palpáveis na vida de alguns.

Julho, 2015

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a E X PRES S A O Texto Gonรงalo Cirne Lima e Marcos Westermann Fotos Alexandre A. Kupac


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Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão. esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

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R au l

Raul Ellw anger tem 6 7 anos. É músico e compositor. Um dos principais articuladores da Frente Gaúcha da Música Popular, de 19 6 7 a 19 6 9 . Abdicou da carreira no final dos anos 1960, quando se mudou para São Paulo, e depois exilou-se em países da América do Sul.


R af a Rafael Diogo Santos tem 26 anos. Um dos fundadores do Rafuagi, principal grupo de rap gaúcho. Só em 2015, deve participar de festivais em mais de 20 países. O conjunto já gravou músicas com os mais emblemáticos rappers brasileiros, como Emicida e MV Bill.


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LIBERDADE É UMA PALAVRA Q UASE TEÓ RICA Na minha vida, com a ditadura, tudo se esculhamba porque eu, sendo músico promissor, a violência de Estado em cima de mim foi totalizante. Corri risco de vida, sofri torturas psicológicas graves, minha família também. Então, toda resposta minha, tudo que eu falar, fica subordinado a esse panorama geral. Fui quase advogado, quase compositor. Tudo ficou no quase. uase terminei a faculdade, quase joguei futebol no Cruzeiro. Fiquei no quase durante nove ou dez anos. A falta de liberdade de expressão in uenciou numa maneira absoluta a minha vida, por uma situação de estado opressivo, aniquilante, no Brasil. Eu participava de um grupo proibido, que era o Var-Palmares. No início, em 1964, houve um golpe, que foi violento, machucou, e matou já no primeiro dia. Mas, mesmo assim, seguiu tentando manter uma certa carinha legal. Até aí, havia h ab eas corpus. Em 19 6 8 , tudo isso terminou num segundo golpe, que foi o Ato Institucional 5. Ali, entramos em ditadura seca, sem conversa. Os caras sequestravam, desapareciam e faziam o que queriam. Se tu pedias uma informação sobre alguém, as autoridades policiais diziam que não, que não constava detenção de ninguém. Enquanto isso, o pau ia comendo. Para tu teres uma ideia, entrei na faculdade em 19 6 6 e participei do meu primeiro sho . Sempre fui meio músico, mas nesse dia foi num auditório pra para mais gente. E o movimento estudantil de contestação começava a crescer. Começamos a nos reunir no Clube de Cultura a mostrar músicos, compositores daquela época. Tinha gente da UFRGS, da Medicina, muita gente da Arquitetura. Nesse momento, se criou o Arquisamba, depois o Arquivolante e, finalmen-

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te, o Festival Nacional, onde vieram compositores, jovens e gente de todo o país. Eu era um jovem compositor e me inspirava muito nos nossos idolos: Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Dorival Ca mmi, Baden Pow ell. E, claro, nessa época, os eventos musicais eram grandes momentos de participação juvenil e também de contestação. E foram ficando mais importantes porque cada vez era mais difícil de juntar gente. Eram nesses festivais que podíamos gritar ‘abaixo a ditadura!’. Os ambientes musicais coletivos eram grandes espaços de contestação. Eu estava participando disso. E a gente fazia manifestação, passeata, pichação. A partir de 1968, vira tudo objeto de agressão por parte do sistema repressivo. No fim, gradualmente tu vais te organizando de uma maneira mais discreta, não encontra os amigos, bota nome falso, não dorme mais em casa. um caminho, não natural, mas espont neo. Aí, depois de tantas ameaças, tu tens que decidir: ou ficas quieto e vão te levar, ou tu somes mesmo. Eu resolvi sumir. O Raul Ell anger não existia mais. uem existia era o Alberto Silva. Meu documento era um troço verde, muito falso. Se alguém me pergunta como senti a censura, posso dizer que não senti. Eu me autocensurei naturalmente. Fui deixando, deixando, deixando de cantar e deixei. Fui tratar de sobreviver por aí, nas quebradas da vida. Fui para São Paulo, depois Chile, depois Argentina. Só na Argentina, anos depois, exilado, voltei a ter contato com a música. Acredito que fui absolutamente, totalmente, prejudicado pela falta de liberdade de expressão. Em Porto Alegre, tinha um grande movimento. No Brasil, havia muito interesse nas linguagens regionais. Eu vinha me destacando. Estava sempre bem colocado nos concursos. Isso é exemplificado pelo seguinte: chegar a participar do Festival da TV Record era como jogar um Gre-Nal no Maracanã. Fui classificado e não pude ir. Já era 1969. Eu tenho telegramas da produção pedindo o arranjo, exigindo que eu enviasse. E tenho também a minha resposta, dizendo que não poderia ir. Era como ser convocado pra Copa do Mundo e não poder jogar. Se eu fosse e eles pudessem colocar a mão em mim, eles me pegavam.


Depois que eu voltei, em 1977, até fiz uma carreira razoável, na condição de músico provinciano. Só que eu comecei e já tinha 30 anos, já tinha filho, vinha do exílio. Então é diferente. Perdi 10 anos. E ainda em 1978, 1979, 1980, tem a carteirinha da censura. Pra tocar, tinha que estar liberado, para gravar, tinha que estar liberado. Era uma censura formal. Liberdade é só uma palavra, quase teórica, mas que tu sentes na pele no teu dia-a-dia.

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EU ME SINTO LIVRE PRA F ALAR O Q UE Q UISER

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A liberdade de expressão, na minha vida, parte do início da minha questão como cidadão desse mundo. uando eu tinha três anos, tive a liberdade de fazer um desenho na minha creche em que minha professora disse: ‘Cada um faz um desenho livre’. O meu era todo preto. Preto, preto, preto, preto, marrom, preto. A professora chegou e falou: ‘Bah, Rafael, esse desenho aí tá feio. Preto é feio’. Associei isso à minha pele. Cheguei em casa e contei pra minha mãe. Tenho ashes desse dia na cabeça, mas minha mãe que me recorda sempre, porque foi um lance foda na minha vida. A gente foi na escola, e minha mãe deu no meio da professora, de uma maneira elegante. Porque tem toda uma questão histórica na minha família, já que minha mãe é militante da causa negra aqui no Estado. Foi uma coisa que, ali, naquele momento, vi que liberdade de expressão fazia parte da minha vida e eu tinha de fato a liberdade de fazer o que queria. Vi que a minha cor era uma cor bonita, que eu podia falar o que eu queria. A partir disso, me descobri na música. Percebi que a liberdade de expressão no rap permitia tudo. Podia cuspir marimbondos que tinha encravado dentro de mim, de várias maneiras. E isso tá totalmente ligado àquela vez, quando tinha três anos, que vi que podia fazer o que eu quisesse, da maneira que quisesse, a hora em que quisesse. Foi o que me deu condição de fazer do meu rap algo que não se limita a conceitos antigos. Meu rap fala da vida, dos meus amores, da minha roda de amigos. O rap é a liberdade de expressão, não em pessoa, mas em estilo, música e cultura. Com certeza, se não tivesse liberdade pra expressar o que penso, eu não estaria onde estou agora. O rap parte de um início de protestos e contradições do mundo atual e do mundo que era atual na década de 1990. Só que hoje em dia tá muito fácil, hoje em dia tu podes falar qual-


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quer coisa. Vários estilos de música até se perdem na questão da liberdade e acabam fazendo apologia ao crime, drogas, sexo. Vi que não era isso que eu queria. Minha família é de resistência social, e eu quis defender essa bandeira através da minha liberdade. Vi que poderia potencializar. Eu me sinto livre pra falar o que quiser, mas cada ação tem uma reação. Posso mandar o cara se fuder, mas tenho que arcar com as consequências disso. Por isso, tenho buscado embasamentos, argumentos. uero falar coisas para contribuir com a comunidade em que vivo, com o Estado, com o país. Criei meus espaços. Nunca tive oportunidade de nada. Criei todas. E, das oportunidades que eu criei, consegui fazer uma virar duas ou três. uero continuar escrevendo coisas que vêm ao encontro da vida. Coisas que sejam massivas, que possam se encaixar no cotidiano de qualquer um. Uma mensagem universal. O rap já conseguiu chegar a vários públicos. As parcerias que a gente tem feito nos dão suporte de chegar. Sempre tive a música na minha vida, na minha família. Sobre a liberdade de expressão, já tive um pouco de medo, sabe? Nos protestos de 2013, por exemplo, me assustei. A gente vinha de uma luta que dava resultado, e aquela galera foi pra rua de um jeito estranho. Surgiram boatos de que vai voltar a ditadura. E, por mais que a gente seja politizado, a gente ficou perdido. No Brasil, acho que o país rachou, mas, de certa forma, todo mundo quer algo melhor pro país. Há uma minoria que não condiz com a realidade, nem com as necessidades do país. Se preciso for, no rap, a gente vai voltar a ser Chico Buarque, Caetano Veloso, ilson Simonal, pra bater de frente com quem tiver no poder, porque o rap, sem liberdade de expressão, não existe. O rap parte disso. O hip hop parte dessa questão, de botar pra fora um sentimento. E a gente ganhou respeito durante esse tempo por causa dessas coisas. E o respeito vem da rua, das atitudes. Do caráter, da humildade, de não pensar só na gente. Da galera nos usar como espelho. Nunca pensei só no meu umbigo. Sempre quis ajudar aos outros, independentemente das outras pessoas.


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Percebi que a liberdade de expressão no rap permitia tudo.


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‘Cada um faz um desenho livre’. O meu era todo preto. Preto, preto, preto, preto, marrom, preto. A professora chegou e falou: ‘Bah, Rafael, esse desenho aí tá feio. Preto é feio’. Eu associei isso à minha pele. O rap é a liberdade de expressão, não em pessoa, mas em estilo, música e cultura.


PARA Q UE TODOS TENHAM VOZ A liberdade de expressão foi um dos direitos mais contestados ao longo dos anos. Mesmo em regimes democráticos, sempre houve ameaças a essa prerrogativa de liberdade. Atualmente, todos opinam, informam e têm o caminho livre para se expressar. No Brasil, esse direito foi encerrado no período entre 1º de abril de 1964 e 15 de março de 1985, quando a ditadura militar vigorou no país. A censura foi reforçada, e diversas áreas afetadas, explica o historiador Tiago Maciel. Segundo ele, a censura se manifesta de várias formas em regimes autoritários, seja por via oficial ou pela autocensura. Maciel lembra que o meio artístico, assim como outros, sofreu muito durante o regime militar. Alguns artistas e compositores não tinham espaço para dar sequência às suas carreiras, pois não havia autorização para divulgarem suas composições e obras. Há alguns exemplos de proibição notória, tanto no teatro, quanto na música. O cartunista Edgar Vasques foi afetado diretamente pela censura. Ele lembra o AI-5 como o momento de maior intensidade da repressão: “De maneira geral, a intensificação da censura se deu após a edição do Ato Institucional Nº 5, que codificou o cerceamento das liberdades civis, tornando mais pesada a ditadura, a partir de 19 6 8 ”. Vasques conta que o trabalho da imprensa era fiscalizado diariamente por funcionários da polícia que ditavam o que podia ou não podia ser divulgado em jornais e revistas. Havia censura prévia também em livros, no teatro e no cinema. Todo o material era enviado aos censores antes de ir a público, para retirarem as partes indesejáveis. Esses atos faziam parte da criação intencional de um clima de repressão, vigil ncia e medo, que acabou gerando outro fenômeno, chamado autocensura. Os próprios autores passaram a evitar termos que pu-

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dessem ser censurados, tudo isso para evitar proibição. Dentro desse contexto de censura, o meio artístico sofreu bastante. Muitas canções foram barradas, mas, ao mesmo tempo, os compositores não se acomodaram e, por meio da música, tentaram combater o regime militar. Chico Buarque, Caetano Veloso e Geraldo Vandré, por exemplo, usaram do próprio talento para atingir os militares. O uso de metáforas era constante nas letras compostas. Uma das canções mais famosas é C á lice, de Chico Buarque, que cria uma situação metafórica com “cale-se”. Para Maciel, no entanto, foi restrito o impacto dessas composições, que atingiram mais os formadores de opinião. A própria censura tornou o efeito das composições mais tímido. Como cartunista e artista gráfico, Vasques sempre esteve inserido no meio artístico. Ele chegou a ser chamado na sede da Polícia Federal de Porto Alegre por causa de uma de suas charges. Esse foi seu primeiro contato direto com a censura. A charge relatava um acidente natural, em que a geada queimou cafezais no Paraná, prejudicando as exportações brasileiras. Para mostrar a importância do fato, ele desenhou o brasão de armas da República com o ramo de café queimado. Vasques, na época da publicação, estava no jornal Rebelde, que era visado. Seu desenho serviu de pretexto para os censores o enquadrarem em uma contravenção: desrespeito a um símbolo nacional. Ele foi obrigado a comparecer à sede da polícia e recebeu uma multa. Não pagou, recorreu e, três anos depois, a Justiça lhe deu razão. Entre 1977 e 1979, quando nomes importantes da música voltaram do exílio, a censura já não era tão forte. O regime militar estava um pouco enfraquecido “O cenário era de luta aberta contra a ditadura. Em 1979, foi assinada a Lei de Anistia, e os que eram considerados criminosos ou ameaça pelo regime puderam voltar”, disse Maciel. A censura no Brasil foi encerrada no ano de 1988, a partir do 5º artigo da Constituição Brasileira. Ali está dito que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.


Mesmo que não exista mais a repressão, como na época da ditadura, há um assunto que gera polêmica e põe em discussão o direito de liberdade. Desde o início de 2013, um grupo de importantes nomes da música popular brasileira – integrado por Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Roberto Carlos e Djavan, entre outros passou a defender a proibição de biografias não autorizadas pelos biografados ou por suas famílias, em caso de morte. Os artistas tentaram se basear no direito à privacidade e afirmaram que os autores dessas obras ganham fortunas. Em contrapartida, os biógrafos argumentavam que a necessidade de autorização era censura prévia e feria a liberdade de expressão. A questão se tornou alvo de ação no Supremo Tribunal Federal e, por unanimidade, os ministros derrubaram no dia 10 de junho de 2015 a obrigação de liberação prévia de uma pessoa biografada para a publicação de obras sobre sua vida. Ainda dentro desse cenário de contestação da liberdade de expressão, nos últimos cinco anos, centenas de ações judiciais foram movidas contra jornalistas no Brasil por políticos, empresários e funcionários públicos. Eles alegam que os profissionais de imprensa têm prejudicado sua reputação ou invadido sua privacidade. Esses processos são identificados como censura judicial pelos defensores da liberdade de imprensa. A punição aos repórteres vai além de ações na Justiça. Em 2013, pelo menos quatro profissionais foram assassinados, sendo três em represália direta por seu trabalho. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) divulgou um relatório da violência contra membros da imprensa: “Jornalistas ameaçados ou amedrontados, sem condições dignas de trabalho, ficam limitados na sua missão profissional de informar a sociedade para dar a ela um importante instrumento de constituição e exercício da cidadania. As variadas formas de violência são violações do direito humano à comunicação, às liberdades de expressão e de imprensa”, define o documento.

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A liberdade de expressão existe no Brasil, é constitucional. Porém, alguns acontecimentos a colocam em discussão como, por exemplo, a publicação das biografias. sempre importante manter atenção em relação a esse direito, para que ele não seja perdido e, sequer, colocado em discussão novamente.

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1985 é o ano em que termina a ditadura militar, período no qual as pessoas perderam o direito à liberdade de expressão no Brasil.


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A identidade E a orientacao sexual Texto Clรกudia dos Anjos e Juliana Prato Fotos Stephanie Gomes


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Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.

art.

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G l o r ia Glória Crystal é uma travesti de 4 9 anos. Começou sua transformação como drag q ueen nos anos 19 8 0 e acabou transgênero no século 21. O ptou por não trocar o nome. Usa o de nascimento como forma de militância.


I S ab el I sabel K lein, 24 anos, é formada em Engenharia Elétrica pela UFRGS , onde foi uma das propositoras da utilização do nome social para transexuais e travestis. Atualmente, leciona no I FS ul, em Pelotas.


POR F AVOR, RESPEITEM MEUS ANOS DE BATOM

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Desde que me conheço por gente sempre fui gay. Costumo dizer, a gente não escolhe ser gay, a gente nasce. Venho de uma família tradicional de Bagé. Com meu pai extremamente preconceituoso até hoje. Então, sempre foi muito complicado pra mim. Desde os oito anos, sempre escutava meu pai comentar com minha mãe: se ele brincar com meninos estaria transando com meninos, se brincasse com meninas seria ‘fresquinho’. E se ficar em casa, sozinho, seria bobo, débil mental. E era o que eu gostava, de ficar em casa sozinho. Porque não estaria inserido em mundo nenhum. ‘Meu Deus, onde é que eu fico, aqui ou acolá?’. E, ao largo deste discurso, passei a entender, perceber a minha sexualidade. E que sempre gostei de meninos, sempre achei os meninos lindos, divinos, maravilhosos! Cresci nesse meio complicado e sempre fui uma criança muito fechada. A Gloria surgiu em uma época de repressão. E nem se falava em drag q ueen. Comecei como ator transformista nos anos 19 8 0, de dia era menino e me vestia de mulher à noite. Dublava Diana Ross, Grace Jones, Aretha Frank lin, essas cantoras negras americanas, que faziam sucesso na época. A onda drag surgiu nos anos 19 9 0 e fui a primeira em Porto Alegre. As primeiras festas drag foram ali no O cidente. E comecei a fazer trabalhos fora do gueto, em festas heterossexuais. S ó que me incomodava chegar aos lugares, sem produção, e não ser reconhecida. Devido a isso, em 19 9 9 comecei a me hormonizar. Só que fiquei mais pra travesti do que pra drag. E hoje, com ou sem produção, as pessoas me reconhecem. Quando as pessoas falam em opção sexual é a coisa mais errada que existe. Ninguém chegou em determinado momento da minha vida e disse: ‘Gloria, tu quer ser hetero ou tu quer ga ?’. óbvio que eu escolheria ser hetero, porque travestis, somos mais vulneráveis,


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sim. Não é opção sexual é orientação sexual, tu nasces assim. Meu pai e minha mãe não me orientaram pra que eu fosse gay. Aos 11 anos, comecei a ver que seria veado. Entrava no banheiro, botava uma toalha na cabeça, pegava o batom da minha mãe e começava a dublar Bianca, vocês nem sabem quem é. Achava maravilhoso! Quando contei pra minha família meu pai me cagou a pau. E não adiantou nada, nada, não mudou nada. Então, aos 16 anos, saí de casa. Trabalhei em loja, trabalhei em padaria. Com 18 anos, comecei a fazer show em Porto Alegre. Passei 30 anos cantando na noite e ainda o faço, às vezes. Também apresento a Parada L ivre de Porto Alegre. Descobri essa vontade de ser militante ao ingressar no Movimento I gualdade – movimento social que cuida da política para as travestis/ transexuais do Estado. Em 2010, participei das eleições para deputada estadual e, sem dinheiro nenhum, acabei fazendo 5 mil votos – o que é uma maravilha! Em 2012, concorri para vereadora e fiquei como suplente. Foi quando recebi o convite para trabalhar na S ecretaria Municipal de Direitos Humanos, sendo nomeada secretária-adjunta da Livre Orientação Sexual. Essa secretaria só existe em Porto Alegre, em mais nenhum outro município do Brasil. Normalmente, a política L GBT é tratada por outra secretaria – da S egurança Pública, da S aúde ou da Educação. Aqui essa secretaria existe e sou a primeira travesti secretária do Brasil. São muitos os desafios. Mas é tranquilo. Me sinto muito feliz em fazer parte deste processo precursor. Da população LGBT, somos as mais vulneráveis. As travestis são apontadas assim que entram nos lugares. Acho um absurdo. Nossa, a gente parece um E.T! E temos o direito igual a qualquer outro. Esses direitos precisam ser garantidos. Voltei a estudar há pouco tempo. Na minha época, era muito complicado a escola. Todo início de ano letivo era um processo doloroso, por causa do b ully ng , que chamávamos de baile. Entrar na sala de aula, conhecer os novos colegas. Era sempre o último aluno da sala, bem escondido. E era o primeiro a ser notado porque era veado. Apenas em 2008 consegui terminar o Ensino Médio e atualmente curso faculdade de S erviço S ocial.


Quanto à questão do nome, não troquei legalmente. Uso apenas o social, Gloria Crystal. O nome social não serve para abrir contas em bancos, por exemplo. S ei dos meus direitos civis, mas não levo o nome na carteira de identidade porque não optei. Carrego comigo a minha carteira funcional – que tem o meu nome social – até porque não iria desfilar com o meu nome civil, vestida de mulher. O que acontece é bem simples. S e for para uma consulta médica, digo meu nome civil, mas quero ser chamada pelo meu nome social. obrigação respeitar a escolha, aliás, é lei em todo o Estado desde 2012. Claro, tu tens que ter toda aquela paciência. E eu tenho. Tenho uma paciência do cão. Explico tudinho. Mas nem todo mundo entende ou tem essa informação. Venho de uma época em que existia em Porto Alegre uma delegacia chamada Delegacia dos Costumes. Era uma repressão tremenda contra a população LGBT. Há 30 anos, ser travesti em Porto Alegre era muito complicado. Muitas amanheciam jogadas no Guaíba, eram assassinadas e até hoje ninguém sabe porque, nem como aconteceu. Nunca trabalhei como profissional do sexo, mas o meu primeiro contato com travestis foi com essas profissionais. Em Porto Alegre, nos anos 19 70, tinham três zonas de prostituição: na I ndependência, na caixa d’água perto do DMAE [D epartam ento M unicipal de Á g uas e E sg otos] e em toda a extensão da Farrapos. Essas eram as ruas visadas pela polícia da época. Então, quando passava o camburão e avistavam aquelas bichinhas todas juntas, eles nos recolhiam até a delegacia. Lá, tínhamos que fazer cafezinho, limpar a delegacia e fazer sexo com essas pessoas. A repressão era tamanha que até em boate gay não se podia beijar o namorado. Eu já contestava isso na época. Tu podias dançar e pegar na mão, mas se beijasse o segurança te botava pra rua. As boates gays também só funcionavam com liminar na Justiça. Certa vez, na Flow ers, não havia liminar para a festa acontecer. Então, sempre tínhamos um bolo preparado, para quando a polícia chegasse. A gente parava a festa e fingia estar comemorando o aniversário de alguém. E durante muito tempo foi assim. Quando surgiu o vírus da aids, éramos o grupo de risco. Então, não éramos bem-vindas.

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E, como sempre fui fresquinho, as pessoas não chegavam perto de mim por notarem e sentir medo de serem contaminadas pelo vírus. Eu trabalhava em uma padaria e não pude mais trabalhar no balcão, porque era gay e as pessoas não queriam ser atendidas por mim. Isso se passava com toda uma geração que saía do armário naquela época, sem saber o que era sair do armário. O meu armário sempre teve portas e laterais de vidro. Então, sempre deu pra perceber que eu era gay. Enquanto tu não tem voz tu tem que baixar tua cabeça ou reprimir tua sexualidade. S ó que muitas vezes tu não sabes o que é tua sexualidade. A minha adolescência, até a fase adulta, foi a fase mais ridícula. Andava de terno pra não perceberem que eu era gay e, com cara de veado, não tinha como passar despercebido. S ou contra rótulos. Eu sou a Gloria Crystal. Vai ter um dia que vais me ver produzida, outro dia estarei perua, outro de neguinha. A Gloria. Ponto. Enxergo diferente a questão da identidade de gênero. Aquela mulher trans que não aceita o seu corpo, que tem que fazer a cirurgia de adequação para ser mulher no seu total. O u que tem que estar mulher 24h. Não sei. muito complexo. A nossa população L GBT é muito acomodada. Falta se politizar mais. Pois tudo aquilo que passei hoje é tranquilo pra essa nova geração. Mas, ao mesmo tempo, precisamos todo dia nos reinventar. Não me interessa o que as pessoas pensam em relação a mim. Nunca me importei com isso. Não preciso que me aceitem, exijo que me respeitem, como pessoa e ser humano. Nós começamos a ter voz quando começaram a surgir os movimentos sociais. Eu sou militante há, apenas, 18 anos. Hoje em dia me preocupa muito o que vou deixar para essa nova geração. Converso bastante com pessoas a minha volta, com a cabeça maravilhosa e que me escutam muito. uma troca. A gente aprende com essa juventude, assim como ensinamos. S ó que nem sempre os jovens querem aprender. Principalmente a minha população, L GBT. Quando digo a minha é porque me empodero mesmo. Nesse gueto todos me chamam de Mamm . Porque eu já passei horrores. Então, por favor, respeitem meus anos de batom.


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SER MULHER ERA A F ORMA COMO ME SENTIA BEM

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O processo de me assumir como mulher tem uma longa data. Na verdade, é um pouco confuso, porque quando era mais nova não sabia que era possível. S e tu não sabes que tu podes, vira uma fantasia, assim como ser um unicórnio. Quando comecei a descobrir que isso fazia sentido, meu mundo ficou meio louco. Tenho lembranças de referências a isso de quando tinha aproximadamente seis anos, mas na verdade eu não me identificava como uma menina ainda. Nesta época, me importava mais em comer e assistir a desenho animado. As pessoas podem descobrir a sua transexualidade na infância, mas é bem comum também que seja na pré-adolescência ou na adolescência. O meu caso mais claro mesmo foi na pré-adolescência, com 11 ou 12 anos, quando realmente consegui me identificar como mulher. Mexia nas coisas da minha mãe quando estava sozinha em casa, vestia as roupas dela e fantasiava que era mulher. Na época, procurei sobre a transexualidade na internet e encontrei apenas sites sobre pornografia. Então pensei que não era aquilo que queria para mim. I nfelizmente, a prostituição e a marginalidade são a realidade de 9 0% das pessoas como eu. Nesta idade, consegui ter uma identificação com o gênero feminino, mas vi aquilo como algo proibido, que só ocorria quando não havia ninguém em casa. O processo de me aceitar como era e de fazer com que isto não fosse mais proibido foi quando saí da casa dos meus pais para morar sozinha. L ogo, tive certeza de que não era apenas uma fantasia, vi que ser mulher era a forma como me sentia bem. A certeza da minha identidade de gênero aconteceu quando ainda estava cursando Engenharia Elétrica na UFRGS [Universidade Federal do Rio Grande do Sul . Já utilizava a Carteira de Nome S ocial no dia a dia, mas dentro da universidade todos os documentos estavam com o meu nome de registro e eu não me


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identificava mais com o nome masculino pelo qual os professores me chamavam. Por isso, faço a utilização do nome social na UFRGS , inclusive fui a propositora do projeto inicialmente. O nome social serve para documentos internos da universidade, como a chamada, o ordenamento e as provas. O utro grande avanço na resolução do projeto junto ao Conselho Universitário [C onsun] foi a explicitação de que os espaços segregados deveriam ser utilizados também desta forma, ou seja, existe a garantia de que, além do uso do nome social, pessoas trans possam ir ao banheiro e vestiário de acordo com a sua identidade de gênero. De fato, a utilização do nome social na UFRGS foi uma vantagem para as pessoas trans que conseguiram ingressar na universidade, mas infelizmente grande parte das mulheres trans está nas ruas, não tiveram nem a possibilidade de terminar o Ensino Médio, seja por terem sido expulsas de casa ou por não terem encontrado oportunidades. A retificação de registro, que vai além do uso da Carteira de Nome S ocial, é bastante complicada. No Rio Grande do S ul, o processo até avançou um pouco mais, porque o Judiciário aumentou o entendimento sobre o assunto. Atualmente, estou entrando com o meu processo de retificação com o apoio do grupo G8 -Generalizando, que pertence ao S erviço de Assessoria Jurídica Universitária [SAJ U] da UFRGS , e trata dos Direitos S exuais e de Gênero, porque realmente a Carteira de Nome S ocial não é o suficiente para mim, não me representa totalmente e não permite que eu seja quem sou de fato. Quando entrarmos com o processo, demora cerca de quatro meses para conseguir a decisão judicial. A minha meta é até o final do ano estar com isso pronto.



DA PERSEGUIÇÃO AO ATIVISMO

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No momento em que uma criança nasce, ela recebe um nome e uma identidade de gênero primária, sendo menino ou menina, determinação dada a partir de seu sexo biológico (genitália). O que ocorre com uma pessoa transexual é que ela acaba descobrindo que não se identifica com o gênero imposto a ela primariamente. Logo, a transexualidade é uma questão de identidade de gênero e nada tem a ver com orientação sexual. A atribuição para identidade de gênero foi utilizado pela primeira vez na década de 19 6 0 por Robert S toller, médico norte-americano que inseriu no campo científico a ideia de que o sexo biológico não seria o único fator que determinaria a identidade de gênero de uma pessoa. Para S toller, se uma criança nascesse com um pênis, não significaria necessariamente que ela se identificaria com a masculinidade, o que abriu espaço para a construção da identidade sexual dos indivíduos além do conceito biológico. S egundo o historiador Thomas L aqueur em seu livro I nventando o Sexo, a lógica binária de sexo, masculino e feminino, e de gênero, homem e mulher, que permeia a sociedade ocidental até hoje permite que apenas duas possibilidades existenciais sejam aceitas. O s que não se adequam às normas, muitas vezes, acabam marginalizados e expostos a maiores índices de violência, doenças e uso de drogas. A transexualidade compõe um índice de ocorrência baixo no país. S egundo uma pesquisa publicada em 2006 , a partir de dados do Programa de Transtorno de I dentidade de Gênero do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, um em cada 4 0 mil homens e uma em cada 100 mil mulheres é transexual. S uspeita-se que este número possa ser maior, devido ao medo que os transexuais sentem de sofrer preconceito da sociedade, acabando muitas vezes se isolando ou não assumindo a identidade trans. S ob o olhar da proteção dos direitos


humanos e da perspectiva de que qualquer violação atinge a humanidade inteira, o fato da transexualidade contemplar uma pequena parcela da população não diminui a importância ao tema, devido à universalidade e indivisibilidade destes direitos. No Brasil, a violação dos direitos humanos é uma constante na vida de mulheres e homens transexuais e travestis. S egundo a O NG internacional Transgender Europe, o país lidera o número de mortes entre a população L GBT. De janeiro de 2008 a abril de 2013, foram registradas 4 8 6 mortes contra lésbicas, gays, transexuais e travestis, sendo a população destes dois últimos grupos as mais expostas à violência, por muitas vezes se encontrarem marginalizadas. Este número é quatro vezes maior do que no México, que fica em segundo lugar na lista. O relatório é baseado no número de casos que são reportados, o que indica que a quantidade pode ser ainda maior no Brasil e no mundo, já que diversos países, como Sudão e Irã, não oferecem dados disponíveis relacionados a este tipo de crime. Os assassinatos de cunho transfóbicos representam o ápice do medo e da violência que alguns integrantes da população de travestis e transexuais enfrentam. Além disso, pequenas agressões cotidianas acometem a vida destas pessoas. Um dos exemplos de abuso diário pelo qual este grupo passa é o não reconhecimento e a negação do uso do nome da carteira social em espaços públicos e privados, o que causa constrangimentos e abalo do bem-estar, além de reafirmar a exclusão destas pessoas na sociedade. S egundo L uisa S tern, advogada e militante do movimento social de travestis e transexuais pela O NG I gualdade e pelo grupo G-8 Generalizando do S erviço de Assessoria Jurídica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para conseguir a carteira social em Porto Alegre, basta ir ao Instituto de Identificação ou ao Tudo Fácil e declarar-se trans para criá-la. “A carteira social é uma segunda carteira que a pessoa precisa acrescentar junto à identidade comum. Ela serve para tratamento em órgãos públicos e alguns órgãos

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privados, mas isto não garante que a identidade será respeitada. s vezes, mesmo quando a pessoa possui o crachá com o nome social, há uma aceitação parcial. Parece que em algum momento alguém vai querer cutucar e fazer questão de chamar pelo nome de registro”, explica. Entre as causas que a advogada defende, está a retificação dos documentos (mudança do nome de registro em todos os documentos), feita por processo judicial e que altera até a certidão de nascimento. A aprovação de um projeto de lei de identidade de gênero semelhante ao da Argentina é um desejo de Luísa. “Lá as pessoas trans podem retificar o seu registro sem passar por processo judicial, sem depender de avaliação de médico, psicólogo, advogado, nem de juiz. possível, assim, que a cidadania seja exercida de forma direta, retificando o seu registro do jeito que elas desejam direto no cartório”, conclui. S egundo Eric S eger, integrante do Núcleo de Pesquisa em S exualidade e Relações de Gênero (Nupsex) da UFRGS, existe uma proposta de lei no Brasil que segue o modelo da Argentina, a Proposta de Lei João Ner , criada pelos deputados Jean ll s (PSOL-RJ) e rika oka (PT-DF). Ele explica que, entretanto, o contexto político brasileiro exibe entraves relativos à religiosidade, como a in uência da bancada evangélica nessas questões, o que dificulta muito o andamento de diversas políticas relacionadas a direitos L GBT. I sso inclui o direito das pessoas trans. No Brasil, a transexualidade segue sendo patologizada pela psiquiatria e pelas ciências biomédicas: é tratada como uma disforia (transtorno mental) na classificação de doenças da Organização Mundial de Saúde (CID-10) e no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), em tradução livre. Por isso, segundo o professor de Direito Penal da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Urbano Félix Pugliese em seu artigo O D ireito e a P atolog iz aç ã o da Transexualidade, a palavra transexualismo, com o sufixo


ismo, não deve ser utilizada quando o assunto é transexualidade, pois denota uma doença. O professor também afirma que a patologização da transexualidade sustenta-se nas amarras de um conceito equivocado, baseado na biologização dos papéis sociais em relação ao gênero, e que afirmar que transexualidade é sinônimo de doença causa sofrimento e traumas a quem não se encaixa nos padrões binários da sexualidade. “A patologização contribui para a estigmatização das pessoas trans e para o reforço de uma construção limitada sobre o que é ser homem, o que é ser mulher e as possibilidades de vivências corporais das pessoas”, critica Seger. Entretanto, ele afirma que o diagnóstico é utilizado por pessoas trans para acessar alguns recursos de saúde. Devido ao contexto em que esse diagnóstico se sustenta, existe o medo de que, sem ele, haja perda de direitos já conquistados, como o acesso à terapia hormonal e cirurgias relativas à autoidentificação com o gênero. “ preciso modificar a compreensão sobre gênero e sua relação com um corpo sexuado. Uma vez que se compreenda que as pessoas trans são homens e mulheres como quaisquer outros, talvez não faça mais sentido que se pense em um diagnóstico de doença mental, sem que ele seja necessário para que as pessoas trans garantam seu direito de ser quem são”, argumenta. S obre a conquista por direitos da população de transexuais, S eger afirma que já houve muitos avanços relativos ao nome social, que é um importante recurso na área da educação e da saúde. “Diversos órgãos, como o Ministério da Educação (MEC), universidades federais, estaduais e o Sistema nico de Saúde (SUS), já emitiram regulamentos que garantem às pessoas trans o direito ao nome social e o acesso a banheiros e outros espaços segregados por gênero/ sexo”, ilustra. Porém, mesmo que muitos espaços tenham aprovado o uso do nome social, o preconceito ainda existe por parte de quem realiza os cadastros e os atendimentos: “Isso gera dificuldades de acesso à educação, por exemplo, levando a maior parte das pesso-

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as a uma condição marginalizada, não consegue ser protagonista nos espaços de formação. Entretanto, estes avanços mencionados podem colaborar para que as pessoas trans consigam tomar seu espaço na sociedade e modificar o sistema atual de sexo gênero que as oprime”. Para L uisa, a possibilidade de utilizar o nome social nos registros em colégios e universidades ajuda na inclusão. “Ter estudo e formação desde cedo também possibilita que a pessoa tenha mais recursos para procurar uma profissão em que não tenha que viver à margem da sociedade”, explica. S egundo Maria Clara Araújo, mulher trans, ativista e estudante de Pedagogia na Universidade Federal de Pernambuco, a diferença entre mulher trans e travesti está basicamente relacionada a fatores socioeconômicos a partir do olhar de terceiros. “As pessoas insistem em criar castas dentro de uma minoria, onde a travesti é a mais estigmatizada e a identidade transexual se tornou higienizada, pois soa mais médico, mais chique, menos ligado à prostituição”, assegura. Em sua milit ncia, a estudante faz questão de se definir alternadamente como mulher transexual e travesti, como forma de autoreconhecimento e luta: “O termo travesti era utilizado de forma pejorativa, e muitas mulheres trans militantes começaram a utilizá-lo como forma de ativismo”. Maria também afirma que a mudança de nome traz uma nova perspectiva na vida de mulheres trans em relação ao mercado de trabalho. A partir disto, as chances de arranjar um emprego aumentaram muito.


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mortes LGBT’s ocorreram, de janeiro de 2008 a abril de 2013, no Brasil.


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AO G E N E R O exto runa assen e duarda c ifino Fotos J anaĂ­ na M arq ues


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Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

art.


F e r n a n da Os olhos atrás dos óculos confirmam o posicionamento forte, que também se re ete na voz de Maria Fernanda Salaberr , 28 anos. Mãe de uma menina, Fernanda é uma das organizadoras da Marchas das Vadias.


S t ep hanie Stephanie Meneghetti, 23 anos, estuda Publicidade e Propaganda. Milita na luta pelos direitos das mulheres. NĂŁo aceita quando alguĂŠm fala que o homem pode e a mulher nĂŁo, como, por exemplo, ficar sem camisa.


SOMOS TODAS VADIAS

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Um dia minha filha, quando tinha quatro anos, chegou em casa e disse que queria brincar com dinossauros, porque ela gosta muito de dinossauros, mas que ela não podia. uando perguntei o porquê, veio a resposta: um coleguinha dela disse que isso não era coisa de menina. Desde pequena, nos pequenos tratamentos, percebi que nos ensinam como devemos ou não agir do que podemos ou não gostar. A minha filha, com quatro anos, percebeu isso também. Acredito que ela pensou ‘se fosse menino não passaria por isso’. Desde criança, também pensei assim. Sou de uma família de quatro filhos, sendo a única mulher. Era clara a diferença no tratamento que os meus pais davam a mim e aos meus irmãos. Então, desde a adolescência, me engajei nas causas feministas. Acho que nenhuma mulher precisa esperar uma violência grave para se engajar. As pequenas violências acontecem todos os dias. Na primeira Marcha das Vadias, em Porto Alegre, em 2011, que era junto com a Marcha da Maconha e outras marchas, tivemos, ao todo, 400 pessoas. Sou uma das organizadoras porque sempre tive essa coisa de organizar, puxar a frente. O movimento cresceu. Nos últimos anos, tivemos 3, 4 mil pessoas. E é um movimento que, às vezes, se perde, porque as pessoas entendem que é só sobre a mulher poder vestir o que quiser, de autonomia sobre o próprio corpo. Mas não, o feminismo é sobre a exploração que as mulheres sofrem em um mundo machista. Mas entendo que o movimento tem lados bons. Atrai meninas novas, por exemplo, que querem usar a roupa que bem entenderem. o mesmo caso de grupos como as Putinhas Aborteiras. O discurso, às vezes, tem deficiências, mas dialoga com o público jovem. As meninas de 14, 15 anos, percebem que o que cerca elas no cotidiano não é o normal, é o construído pela sociedade machista.


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Acredito que de uns 40 anos para cá tivemos pioras e melhoras em vários setores. A violência doméstica piorou. Ainda somos muito débeis na política. Conquistamos direitos na sociedade e no trabalho, mas ainda falta muito. Entendo esses movimentos feministas mais radicais como o ereca Sat nica [em um a f esta ‘ X ereca Satâ nik ’ , realiz ada em m aio de 2 0 14 na Universidade Federal Flum inense, um a artista deitada de pernas ab ertas sob re um a m esa, teve a vag ina costurada por duas coleg as , é uma proposta diferente, é um outro movimento sobre feminismo que faz a sociedade discutir. Sou a favor de movimentos mais radicais, como boicotes a bares por exemplo. A internet ajuda nisso. Mais pessoas com pensamentos legais podem discutir ideias legais. O problema é que, por outro lado, gente com ideia escrota também tem espaço pra discutir ideia escrota e inclusive levar isso pra ação efetiva. Acho que o homem não tem espaço no feminismo, é só ficar no canto deles e não falar merda. Não fazer merda. que o homem está acostumado a poder participar de tudo que ele quiser. A mulher não. O feminismo é o nosso espaço, a nossa discussão. a mesma coisa que eu participando do movimento negro. Não é comigo. Não sou eu que sofro esse preconceito na pele todos os dias. Posso ser solidária, mas não tenho que me envolver se eles não me chamarem. Posso falar: ‘ó, tô aqui, me chamem se precisarem alguma ajuda’. Mas não posso me meter. A amiga que divide apartamento comigo é negra. uando vamos numa festa uns 20 caras tentam agarrar ela. Colocar a mão nos peitos. Acham que podem, que ela não vai reclamar. Se sentem no direito. Ela sofre com isso muito mais do que eu, que sou mulher e branca. Ela é mulher e negra. A dor dela não é a mesma que a minha.



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ELES PODEM E EU NÃO POSSO? uando tinha 13 anos, um cara na rua estava drogado, bêbado, me agarrou por trás e tentou passar a mão em mim, falou que queria um beijo e acabei me desvencilhando, bati nele e chamei a polícia. Um motobo me ajudou, fiz um B.O. e o cara foi detido. Não sei que fim deu. Teve outra vez, ano passado no Rio de Janeiro, que eu estava num bar e um cara mexeu comigo uma vez, mexeu comigo duas vezes e na terceira eu falei: ‘E ai, qualé que é? ue que tu estás pensando? Olha só, não estou te dando bola, não é à toa. Sai daqui.’ Ele me respondeu: ‘Ah você é uma vagabunda.’ Acabei batendo nele, ele era lutador de jiu-jitsu e me espancou. uando era menor, ia na geral do Grêmio. Ali era um lugar que dependendo da roupa que tu usasses, tu era assediada. E eu sempre ia de moletom, com roupas largas. Me privava de ir de shorts, por exemplo, para não me incomodar e não incomodar meu namorado. Não por ciúmes, mas muito mais por uma situação de risco. Isso é foda. Desde pequena a gente convive com esse assedio na rua. Acho que todas as mulheres acham que é normal, algumas só não entendem isso como machismo. Mas desde pequena convivi com isso. uando converso com amigas minhas elas sofreram muito isso no colégio, não lembro de sofrer no colégio, lembro mais de sofrer na rua. Ando de cara fechada na rua, sempre que alguém mexe comigo, respondo: ‘meu e se fosse tua filha? Tu fala isso pra tua filha? Tu gostaria que falassem isso pra tua filha?’ Eu sempre tento combater, hoje de uma forma mais pacífica. Nunca deixei de fazer nada por ser mulher. Eu sempre fiz igual,

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mesmo sofrendo preconceito. que cresci num grupo de guris. Na minha inf ncia não tive amigas mulheres, só tive amigos guris, que eram os do meu prédio. E desde pequena sofri preconceito por ser mulher naquele grupo. Me vestia como eles, tentava me portar como eles e fazer coisas como eles. E depois, mais velha, sempre me impus bastante. Nunca deixei me dominar por uma situação na qual ser mulher seria uma coisa não tão positiva. Sempre quis ser homem, desde pequena. Sempre quis ser o filho do pai, andar de skate com ele, sempre fui mega parceira dele. Eu pensava: ‘ai, que raiva, porque que nasci mulher.’ Andava de skate sem camisa no gasômetro. E um dia a minha mãe começou a falar: ‘Teté, tu não pode mais andar sem camisa, tá ficando mocinha, tá ficando mocinha.’ Aquilo ali para mim doeu muito, como se fosse uma agressão. ‘Como assim eles podem e eu não posso?’ Muito mais esse sentimento de impotência. Eles podem e eu não posso. Sinceramente, acho que não tem um papel para o homem no movimento em si. Acho que o papel dele é respeitar a mulher. Não falar merda, não mexer com a mulher na rua, não ter pensamentos machistas. Eu tive um chefe que era muito machista e ele falava que era brincadeira, que ele era machista de brincadeira. Ele estava sempre me agredindo de brincadeira. Mas tu acabas disseminando aquela ideia podre, machista, mesmo que de brincadeira. Então acho que o papel do homem no movimento feminista é não reproduzir o machismo, não ser machista.


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UMA EM CADA CINCO MULHERES J Á ABORTOU

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No último ano, o Brasil caiu nove posições em um ranking de igualdade de gênero divulgado pelo Fórum Econômico Mundial o país aparece agora na 71 colocação na lista. Em 2013, ocupava a 62 posição. A organização avaliou as diferenças entre homens e mulheres em saúde, educação, economia e indicadores políticos em 142 países. Apesar de ter mantido a igualdade entre homens e mulheres nas áreas de saúde e educação, o Brasil perdeu posições nos índices que medem a participação feminina na economia e na política. A maior queda ocorreu na avaliação que considera salários, participação e liderança feminina no mercado de trabalho. A socióloga e militante feminista desde a década de 1970 Licia Peres destaca que mesmo com todas as diferenças que as mulheres ainda enfrentam, principalmente no mercado de trabalho, um espaço já foi conquistado no último século. “Em relação à história da humanidade, 100 anos não é nada. Mas para nós, mulheres, é muito. Há 100 anos, éramos trancadas em hospícios ou conventos. Mulheres mais independentes eram tidas como loucas, tomavam choque, íam para banho frio”, considera. ndices do Instituto Avante Brasil (IAB), a partir de dados do DataSUS, do Ministério da Saúde, revelam que a cada duas horas uma mulher é vítima de homicídio no país. Número que representa 372 mulheres mortas por mês. Embora muitos avanços tenham sido alcançados com a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340 2006), ainda assim, hoje, são 4,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres, número que coloca o Brasil no 7º lugar no ranking de países nesse tipo de crime. Pensando nessas discrep ncias entre homens e mulheres, um grupo de meninas da capital gaúcha criou o coletivo Se Essa Rua Fosse Nossa. Laura rebs, uma das idealizadoras, explica que o coletivo surgiu da vontade de um grupo de amigas de questionar a relação da mulher com a rua, já que várias são estudantes de Arquitetura e


Urbanismo, de falar sobre situações ruins que acontecem na cidade. “Decidimos fazer isso através da denúncia, de uma forma em que pudéssemos fazer com que as pessoas pensassem no assunto sem impor verdades, para gerar re exão e, a partir disso, mudança”, explica. As ideias e os depoimentos compartilhados pelo grupo estão disponíveis em forma de texto, imagens e vídeos em uma página na rede social Facebook. Em diversas postagens, participantes do grupo questionam a interferência do Estado e da polícia na vida da mulher. Esse também é um dos questionamentos feitos pela socióloga Licia Peres. Para ela um dos principais estrangulamentos da sociedade é a questão do aborto, que trata como questão de Estado uma questão pessoal. “As mulheres continuam morrendo, um milhão de abortos por ano e aí dizem que é em defesa da vida. ue vida? A vida de quem? Das mulheres não é”, pondera. O dado de 1 milhão de abortos realizados clandestinamente no país, citado por Licia, é real. O texto do projeto de lei, de março de 2015, que pretende legalizar o aborto no Brasil, confirma o número. O documento mostra também um estudo da Universidade de Brasília (UnB) que aponta que a maioria das interrupções de gravidez são feitas por mulheres de 18 e 39 anos casadas, com filhos e religião: uma em cada sete já abortou. Na faixa etária de 35 a 39 anos, a proporção é ainda maior: uma em cada cinco mulheres já interrompeu a gestação. Apesar do número assustador, Laura vê com otimismo o avanço em relação ao tema nas últimas décadas. “Já tivemos a conquista do aborto legal em casos de estupro”, considera. No início, o coletivo publicou um depoimento de uma menina que foi estuprada no Parque da Redenção, ao meio-dia. “Um deles estava por trás de mim e outro pela frente. As mãos rápidas e vorazes passeavam por todo meu corpo. E para quem ficou com dúvidas, todo mesmo: bunda, peitos, vagina. A essa hora eu já gritava muito e meus gritos se ouviam de longe, porém todos que passavam, e também outros que estavam ali, pareciam ver uma cena cotidiana. Ninguém se solidarizou ou sequer parecia ver aquilo com espanto”, diz um dos trechos do depoimento, da jovem que prefere não ser identificada. O

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caso foi denunciado pelo coletivo na Comissão de Direitos Humanos na C mara dos Vereadores. “Agora vamos acompanhar os desdobramentos do caso no Executivo”, explica. Apesar dos problemas relacionados ao estupro, Laura entende que o avanço dentro e fora de casa foi grande em termos de empoderamento, por meio de leis criadas para diversas situações. “Foram criadas leis que protegem a mulher em relação não só ao aborto, mas também à violência doméstica e ao divórcio”, explica. Entretanto, a jovem entende que a violência doméstica não terminou. “Mães solteiras ainda sofrem, o aborto ilegal segue matando, distúrbios alimentares em função de estética são reais, relacionamentos abusivos são comuns. O machismo existe e resiste. Mas hoje é bem mais evidenciado, exposto e questionado. Acho que a grande diferença é essa mas é uma consequência, é construção. O feminismo, hoje, é muito mais popular por sua necessidade de ser compreendida”, explica. Nos últimos anos, padrões de beleza, a magreza excessiva, a indústria da moda começaram a ser questionadas as agências reguladoras de publicidade retiraram das passarelas e das revistas modelos muito magras. As mulheres perceberam que o mundo em que cresceram não é, necessariamente, o mundo que querem deixar para suas filhas. O coletivo pretende continuar colaborando em prol desse novo mundo.


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HORAS

ĂŠ o intervalo de tempo que demora para uma mulher ser assassinada no Brasil.


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a CRENcA Texto Jéssica Caldas e Priscila Araújo Fotos Caroline Ferraz


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Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

art.

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A n t o n io Pai Antô nio Carlos de X angô , negro, sete décadas, praticante da religião africana há 6 5 anos. Abriu sua própria casa de santo, em Viamão há 35 anos. Faz parte da segunda geração umbandista do Rio Grande do S ul.


AN D R e iA Mãe Andréia de Y emanjá do I lê O lomi de O xum, branca, 4 4 anos, pratica a religião africana há 20. Abriu sua casa de santo localizada no Bairro L omba do Pinheiro, em Porto Alegre, há uma década.


TUDO ERA PROIBIDO

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A dificuldade foi muito grande com o povo africano. Tudo era proibido. Para fazer as obrigações que são as atividades do ritual religioso, tinha que ser tudo escondido. Para sacrificar um animal, também era uma dificuldade. Pegávamos os animais e guardávamos nos fundos, numa cocheira, e deixávamos todos presos. noite, pegávamos os animais, fechávamos a boca deles e sacrificávamos para os nossos orixás. No passado, a gente tinha que ir na delegacia de costumes tirar um alvará para fazer as obrigações. As casas de religião têm muito movimento, então, naquela época, ficava cada filho em uma esquina, porque a polícia invadia os terreiros, entrava a cavalo, pisoteava tudo e acabava com as obrigações. Hoje não tem preocupação com a polícia entre aspas. No fundo, nunca deixou de haver perseguição. Se um vizinho der parte e não tiver licença, a polícia bate e faz parar. Em muitos lugares, tem horário para tocar tambor. Antigamente, em Porto Alegre, os terreiros eram em bairros como Mont S errat e Petrópolis, áreas mais nobres de Porto Alegre. Com o passar do tempo, os terreiros foram sendo empurrados para outras regiões. Muita gente foi para [os b airros] Partenon e Azenha, [os m unicí pios de Gravataí, Viamão. Eles eram de chão batido, onde se criavam galinhas, cabritos e se plantava ervas. Tudo o que se precisava para os rituais tinha no próprio terreno. As carnes dos animais mortos eram distribuídas para o povo. Muita gente que não tinha o que comer em casa, até hoje acontece isso, mas a polícia entrava, falava que estávamos fazendo batuque, macumba. Eles nos levavam presos, batiam em nós. O que mudou hoje, dentro da nossa religião, foi, em primeiro lugar, o poder aquisitivo. O positivo é que oferecemos as coisas melho-


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res e mais bonitas aos orixás. O negativo é que encareceu muito para comprar um galo, por exemplo. O preço é diferente para o culto religioso, pois não pode ter uma asa quebrada, não pode ter um dedo quebrado, então se torna caríssimo. Antes, a nossa religião era mais pé no chão. Nós não tínhamos esse piso para pisar, era chão batido. A gente molhava o piso e varria para poder fazer a obrigação de noite. As oferendas continuam a mesma coisa, segue o preconceito. Preconceito vai existir sempre. Já ouvi coisas por estar em esquinas, mas não tiro a razão das pessoas. No meu tempo, não tinha matança, corte. Hoje tem corte, roupas lindas, salto alto, eles vão para cruzeiro, matam as aves, deixando sujeira na rua. Considero uma agressão à natureza, sem necessidade. S e tem que dar o sangue do animal para a entidade, as carnes não precisam ficar ao ar livre. Se precisa cortar um cabrito em um cruzeiro, pode cortá-lo, mas traga para casa a carne, limpe e doe para instituições. Nós, pais de santos mais antigos, estamos nos mobilizando para mudar isso. O pai tem que ser um pouco psicólogo, porque muitas vezes chegam pessoas a ponto de se matar, nós temos que analisar a pessoa. Muitas vezes, a gente, com uma conversa e uma palavra amiga, consegue levantar a moral da pessoa. O pai de santo tem que ter esse preparo. Para um pai de santo abrir uma casa, ele abdica de várias coisas na vida. Aquele negócio de sair para a noite, beber, tudo isso elimina. A vida de um pai ou uma mãe de santo é controlada, vigiada pelo próprio povo religioso. A pessoa não pode ter vícios, tem que servir de exemplo. Desde aquela época, houve travestis na nossa religião, mas eles se vestiam com bombacha, uma espécie de calça usada pelos homens. Nós sabíamos que eles eram assim, mas eles eram discretos, pois, se não fossem, eram reprendidos. Hoje, se vestem como mulher. Antigamente, na minha casa, não aceitava travestis com roupas femininas, hoje deixo a pessoa escolher como quer vir, não dou bola, ela vem como se sente à vontade. O orixá sabe da intenção de cada um. Há religiosos negros e brancos, mas a gente sabe que a origem da


religião vem do sangue negro. Existem pai e mãe de santo brancos que têm amor pela religião, procuram aprender, mas o sangue mesmo está aqui [m ostra a veia no b raç o]. A única religião que não tem preconceito é a de matriz africana. uma coisa linda de se ver. Antigamente, eles colocavam crianças na religião. Hoje não aceito mais, porque a criança cresce e não sabe se vai querer, se vai gostar ou não. Depois sofre porque forçaram ela a fazer parte disso. Para mim, a idade mínima é depois dos 18 anos, quando a pessoa sabe o que quer

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HOJ E NÃO HÁ PREOCUPAÇÃO Hoje não existem mais os terreiros, os espaços são urbanos. As casas de religião são residências comuns, como esta minha, em um terreno 10m x 30m onde não consigo criar galinhas. Além disso, hoje, tudo é terceirizado. Nós precisamos comprar os animais para fazer os sacrifícios e não conseguimos criá-los em nossas casas. Essa é uma das coisas que faz com que a gente entre no mercado. A nossa religião é muito primitiva, a gente ainda mantém esses fundamentos, como a sacralização dos animais. Porque é uma carne sagrada, a gente não come uma carne em vão, como uma carne simples vendida no mercado. Toda carne que se comia era sagrada. Durante o período de obrigação, a carne que se consome dentro do terreiro é sagrada. Para sacralizar, tenho que comprar o animal vivo. Em Porto Alegre, por exemplo, não tem como criar um carneiro. A média de preço de um carneiro é entre R 400 e R 700. uem vende sabe que preciso oferecer o bicho a angô, preciso fortalecer um filho de angô, então junto as moedas e vou pagar o preço que eles pedem. O s estilistas fazem Axós [roupas relig iosas] lindíssimos, mas tudo isso tem custo. Na minha casa, fiz camisetas alusivas à mãe Iemanjá. O principal da roupa de religião é ser limpa, bem cuidada e passada, não pode estar rasgada. Uma roupa rasgada remete à miséria, e queremos prosperidade, coisas boas. L uxo e beleza fazem parte, mas a pureza da religião é a simplicidade e a prosperidade. Antigamente era muito simples. Para a festa de religião, a casa era enfeitada com balões ou faixas de seda. S ão oferecidas comidas, carnes sacralizadas, galinha enfarofada, canja, amalá de X angô , que é a carne do carneiro desfiada, o cabrito assado com farofa e doce.

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Ainda tem gente que olha torto. Eu, mulher, se preciso fazer um despacho em uma encruzilhada, mando meus filhos de santos homens para fazer o agrado ao Bará. Quanto às roupas, existe uma regra: homens de calça e mulheres de saia. Se é travesti, é calça, não importa a orientação sexual. Não existe preconceito, mas tem que manter essa tradição. Existe uma questão de aceitação e preconceito, porque a nossa religião é tão discriminada e tachada. Aqui dentro da nossa casa, queremos que seja o melhor lugar do mundo para os filhos de santo. O grupo religioso é muito fechado, muito resistente, é uma família que precisa ser conquistada, então, para fazer parte dessa união, precisa mostrar que realmente tem muita fé e acredita na crença. Para fazer as festas, hoje em dia não me preocupo. Vamos na Brigada Militar, falamos que estamos fazendo um culto religioso, pedimos para a viatura passar algumas vezes. A casa tem vários rituais durante o ano de obrigações religiosas, de filhos, mas em algumas datas específicas a festa é grande, que são os aniversários dos Orixás das casas, quando a gente convida os nossos amigos das outras casas para virem aqui. Essas festas começam por volta das oito horas da noite, com tambor rufando, tocando, sineta a milhão, e termina por volta de umas sete, oito horas da manhã. Entramos na lei do silêncio, e em várias situações poderíamos nos incomodar com nossos vizinhos, mas a gente faz um ofício, leva na Brigada Militar, comunica que vai ter essa obrigação religiosa e solicita o reforço do policiamento. Fazemos uma quantidade muito grande de doces e comidas, depois distribuímos o que sobra para os vizinhos, fazemos para sobrar mesmo. Não tem nada pré-estipulado que os rituais tenham que acontecer pela noite. Hoje, fazemos porque todo mundo trabalha durante o dia. Antigamente era em função das perseguições. Atualmente fazemos a política da boa vizinhança, tratamos bem dos vizinhos, não criamos polêmica. Para ser pai ou mãe de santo, deve se levar um bom tempo de amadurecimento. A religião não é aprendida em curso ou livro, ela é


vivenciada, aprendida no dia a dia. E ela tem os passos dos rituais. Começa como filho de santo, passa por várias aprovações e depois precisa ter o assentamento de todos os santos. Depois se ganha os Axés de facas e búzios, o jogo adivinhatório. Tenho que ter aqueles santos para os santos me responderem. Eu me aprontei com quatro anos de religião, ganhei meus búzios com seis anos e abri a minha casa com sete anos. Tenho casa aberta há dez anos, 16 anos de aprontamento e 20 anos de religião. Tem gente que entra em um ano e faz tudo, mas tem a questão econômica envolvida. Hoje me dedico só a religião, não dá para fazer outra coisa. Ainda não consegui me encaixar em outra atividade só para mim. Já tentei outra atividade econômica, mas parece que os pais não querem que a gente tenha outra função, mesmo ligada à religião. Já tentamos ter um aviário, mas não deu certo. O máximo que conseguimos foi dividir o atendimento ao público em geral dos compromissos religiosos com os nossos filhos de santos. Conseguimos estipular um horário mais ou menos comercial, atendemos no centro da cidade, e aqui, na nossa residência, atendemos pela noite. Aqui fazemos religião, lá a gente joga. É tudo muito caro, não temos como não cobrar um trabalho ou uma consulta. Não tem tabela de preço, é o que a pessoa pode oferecer e o O rixá te permite ou não. É aquela questão: quanto custa a tua felicidade? E isso vai da índole de cada um. Conheço pai de santo que recebeu o valor de uma casa por um trabalho. Tem gente envergonhada, que não quer ser vinculada à religião de matriz africana. O preconceito existe até mesmo dentro da nossa própria religião. Por que nós não temos nenhum representante político? Batuqueiro não vota em batuqueiro. Eu tenho uma amiga mãe de santo que tem 60 anos e me conta muitas coisas daquela época. Até mesmo das crianças, que não deixavam elas verem, era mais velado, mais segredo. Até os próprios pais de santo não passavam os segredos dos fundamentos. Era muito mais reservado. E tem o preconceito também, por ser a religião que abraçava muito os ga s, mais aberta, por ser a religião de negros

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e pobres, porque é a religião de pobre. Então aceitavam mais aqueles deixados de lado pela sociedade, e ainda vejo muito isso. Antigamente, o pai de santo era preto, velho, analfabeto, pobre e morava na periferia. Sou formada em Pedagogia, tenho 44 anos. Ainda existe preconceito velado. A falta de informação e a ignor ncia colocam barreiras. Aqui em casa, tem muitas famílias. Em seguida, chega alguém novo, a namorada de alguém, e aos poucos vai fazendo parte da casa e da família. S empre digo que o tambor não deixa ninguém parado, o tambor mexe com qualquer um, não adianta. A energia é muito forte, não passa despercebido

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ADEPTOS DE RELIGIÕ ES AF RICANAS SOF RIAM

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No Brasil, no início do século 19 , quando as religiões afro-brasileiras expandiram-se, os adeptos não podiam se manifestar livremente, devido às perseguições do Estado e da Igreja. O preconceito associava a imagem do negro africano, do escravo e das práticas religiosas a uma condição negativa, como se fosse uma espécie de bruxaria. Mais de 3 milhões de escravos foram trazidos da frica para o Brasil entre os séculos 16 e 19 . O s africanos que chegaram ao país disseminaram as religiões de matrizes africanas, conhecidas popularmente como afro-brasileiras. O Brasil é o maior país católico do mundo. Práticas religiosas diferentes desta foram censuradas e consideradas culto aos demô nios. As perseguições aos seguidores das religiões de matrizes africanas, incentivadas pela Igreja Católica, foram movidas pela discriminação aos africanos. O preconceito existia até mesmo em relação às práticas de saúde adotadas, como benzedeiros e curandeiros, que usavam métodos contrários ao que a medicina acreditava ter poder de cura. Esses eram vistos como farsas da medicina. Religiosos chegaram a alertar católicos do perigo que as doutrinas como o Espiritismo e a Umbanda apresentavam. Inclusive, chegaram a proclamar excomunhão a quem se aproximasse das doutrinas afro-brasileiras. No início da década de 19 5 0, para serem realizadas as cerimô nias religiosas, os terreiros deviam pedir autorização e requerer um alvará de funcionamento na Delegacia de Jogos e Costumes ao preço de taxas impostas para expedição do documento. Apesar de a documentação ser expedida, o antropólogo Norton Figueiredo Corrêa, professor do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e autor do livro O Batuq ue do Rio Grande do Sul, afirma que o Estado foi cenário de maus tratos e repúdio aos cultos africanos. “Para o Rio Grande do S ul, desceram os negros da Costa da Guiné ou Nigéria, com suas nações:


Jeje, Ijexá, O ó e Nagô. Como a escolha de ficar juntos não pertencia aos negros, eles eram misturados nos navios, havendo assim uma união de nações, destacando-se suas peculiaridades. Nascendo assim outras nações: Jeje-Ijexá, Jeje-O ó, Jeje-Nagô e assim por diante”, explica. Não há como definir uma data certa para o nascimento da primeira casa de nação no Rio Grande do Sul, mas segundo Corrêa, existem várias suposições que remetem a mais ou menos 15 0 anos atrás, quando os documentos da época mostram que, na região da cidade de Rio Grande (entrada oficial de negros no Estado), existia uma grande concentração de negros livres. Nesse período, não havia segurança, e os terreiros eram invadidos de forma violenta. Os adeptos do candomblé sofriam com tamanha violência e chegavam a ser obrigados a carregar seus atabaques na cabeça até a delegacia. Porém, em meados do século 20, as expressões culturais afro-brasileiras começaram a ser mais aceitas e admiradas pelas elites brasileiras como expressões artísticas genuinamente nacionais. Para o doutor em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) Ricardo Mariano, a definição e interpretação por parte dos agentes sociais em geral e dos poderes públicos dos atos que caracterizam ou configuram a intoler ncia religiosa variam muito de um contexto histórico para outro. S egundo ele, o fato é que dirigentes de cultos afro-brasileiros e seus defensores identificam muitos atos de indivíduos e grupos pentecostais como agressão, discriminação e intoler ncia religiosa. O Código Penal Brasileiro define como “crimes contra o sentimento religioso” o “ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo”. O Art. 208 do Código dispõe: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. O governo da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas desenvolveu políticas de incentivo do nacionalismo nas quais a cultura e as religiões afro-brasileiras foram aceitas. Na ocasião, a Mãe S implícia, em 24 de junho de 1952, durante sua conversa com o presidente, denunciou os horrores que o povo de religião afro-descendente enfrentava e reivindi-

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cou os direitos de liberação dos cultos, conforme decreto sancionado por ele. Depois deste fato, ela se tornou referência na luta pelas religiões afros e pela liberação dos cultos. A partir disso, as perseguições às religiões afro-brasileiras diminuíram, e a Umbanda passou a ser seguida até mesmo por parte da classe média carioca. Na década seguinte, as religiões de matrizes africanas passaram a ser admirada pela elite branca. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), promulgada em 2003, exigiu que as escolas brasileiras de Ensino Fundamental e Médio incluam no currículo conteúdos relativos à cultura afro-brasileira. Ao passo que os pentecostais crescem aceleradamente e ultrapassam a cifra dos 20 milhões de adeptos, os cultos afro-brasileiros declinaram, passando de 0,6 % , em 19 8 0, para 0,3% da população, em 2000, em parte, pela evangelização pentecostal, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente, umbanda e candomblé, juntos, não atingem 600 mil fiéis no Brasil. O con ito ocorre, portanto, entre grupos religiosos com poderes e tamanhos muito distintos. A desigualdade constitui um dos maiores obstáculos dos cultos afro-brasileiros para se defender dos ataques e reagir, eficazmente, à altura. O imenso contraste entre os poderes religioso, demográfico, empresarial, midiático e político destes grupos religiosos impossibilita falar em igualitarismo. No ano de 2015 , o Rio Grande do S ul foi palco nacional de um polêmico projeto de lei proposto pela deputada estadual Regina Beck er Fortunati (PDT), que previa a proibição dos sacrifícios a animais em cultos religiosos. No dia 2 de junho, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou o parecer contrário da Comissão de Constituição e Justiça ao projeto, com 27 votos favoráveis e 14 contrários, resultando o arquivamento do mesmo.


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0,3% da população brasileira é adapta à religião africana.


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A ra c a Texto Guilh erm e Flores e Rodrig o M ello Fotos J anaĂ­ na M arq ues


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1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

art.


C l e it o n

Cleiton Freitas, 5 9 anos, é advogado. Eleito vereador em 2012 pelo PDT com 6 .5 5 2 votos. É um atuante exdelegado de polícia. Foi professor de Direitos Humanos na Academia de Polícia Civil.


Ant o n io

Antô nio Carlos Cô rtes, 5 6 anos, é um dos fundadores do Grupo Palmares. Criminalista, radialista e apresentador, comandou as transmissões do Carnaval de Porto Alegre.


NÃO Q UEREM OS NEGROS AQ UI

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Na década de 19 70, eu ainda era um rato de biblioteca, estudante de Direito. Descobri dentro da Biblioteca Pública do Estado um livro do Édson Carneiro chamado Q uilom b o de P alm ares. Nós [Grupo P alm ares] nos reuníamos aqui na Rua da Praia, onde íamos ao cinema sábado à noite, voltávamos das casas das namoradas, para tratar da cultura negra. Na época tínhamos 19 , 20 anos. Aí comentei com o pessoal sobre esse livro que descobri na biblioteca. O O liveira S ilveira, que era o mais velho de nós e professor, se interessou e sistematizou os tópicos do livro. Tínhamos também o I lo S ilva, que era estudante de Economia e colocava esse olhar da exploração do negro na economia brasileira nas nossas reuniões. Também participava o Gilmar Nunes, que era funcionário público federal. Então fundamos o Grupo Palmares, pois entendíamos de dizer não ao 13 de maio da redentora Princesa I sabel e sim ao 20 de novembro de Z umbi dos Palmares, que era um líder, um mártir das Américas porque lutou lá em 16 9 5 pela liberdade dos negros. Ali nasceu o Grupo Palmares, fundado em maio de 19 6 1. Algumas das reuniões eram marcadas para casa dos meus pais, na Rua da Praia. Meu pai e minha mãe abriam a casa para nós num período de ditadura, para um grupo de jovens meio malucos com ideias subversivas que não poderiam sair para as ruas. Embora eles não participassem ativamente, abriam a casa para que pudéssemos ter as reuniões, pois sabiam que aqueles encontros tinham um propósito com o qual eles concordavam. S ou o único remanescente daquele grupo. Morrendo hoje, fico satisfeito porque em mais de mil cidades existe a data para re exão da participação do negro no país [o Grupo P alm ares f oi responsá vel por idealiz ar a data de de novembro como um dia de re exão sobre a cultura negra instituí da com o f eriado em vá rias cidades do paí s]. Um dos objetivos do grupo era buscar personagens da história que


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não eram reconhecidos. L uís Gama, poeta, abolicionista e advogado, José do Patrocínio, André Rebouças, além de Z umbi [dos P alm ares] que pesquisávamos e discutíamos nas reuniões. Queríamos repercutir e ampliar a obra dessas pessoas importantes para a cultura negra, que a historiografia oficial não registrava ou pouco valorizava. Fomos chamados a depor na Polícia Federal para explicar o que era o Grupo Palmares. Fizeram uma ligação do nosso grupo com o VAR-Palmares, que atuava no Tocantins em combate de guerrilha. Colocamos para eles que nosso trabalho era cultural, mas não era verdade. Nosso trabalho era subversivo mesmo. Queríamos o levante dos negros, lutávamos contra a desigualdade social, apoiados em dados e exibidos ao público. Quando as coisas são claras, não é preciso interpretação, basta olhar. O s líderes negros na política brasileira, senador Paulo Paim, o Alceu Collares e o deputado Carlos S antos, chegaram lá por suas origens nas classes sociais. Carlos S antos era um líder sindical na área da metalurgia. Passou a ser deputado classista em 19 35 . Alceu Collares era funcionário dos Correios e Telégrafos. O s colegas carteiros abraçaram sua campanha. I magina os carteiros entregando santinhos. Aquele galo era bom de briga quando se elegeu vereador. O êxito foi tanto que se elegeu deputado federal direto. É um baluarte da cultura negra, tanto que virou governador do Rio Grande do S ul. S enador Paim era líder sindical também. O s avanços ainda são no lado individual. Coletivamente, não houve avanços. Quando se tem políticas afirmativas que possam abranger o coletivo, os resultados são um pouco melhores. A política de cotas sempre foi motivo de meu aplauso, porque é uma forma de tentar diminuir a desigualdade social para ocupar todos esses espaços. O sociólogo Clóvis Moura dizia que se o negro construiu esse país na economia e era um excelente escravo, passou a ser um mal cidadão depois na visão de alguns? Não pode! Falta uma coerência. Precisa-se ter uma pequena valorização que não tem. Em relação ao passado, houve um pequeno avanço em função das cotas. Nós não sabemos ainda o significado de cidadania. Somos meros consumidores. Cidadania é o que a Europa e os americanos alcançaram. O s americanos mesmo, com toda a segregação racial ostensiva e eles sendo apenas 15 % da população, mesmo percentual no Rio Grande do S ul, conquistaram seus direitos. S ó que se imagina que os


negros lá são muito mais, mas não, é porque eles fazem mais barulho que os negros daqui e conseguiram eleger um presidente negro. Mais que isso, conseguiram reelegê-lo, enquanto aqui não tem sequer a possibilidade de ter candidato. Não vamos encontrar reitores, ministros negros, tanto que tem um ministério da Desigualdade Racial. Na década de 19 5 0, teve a lei Afonso Arinos [prom ulg ada por etúlio argas proibia a desigualdade racial], uma leizinha vazia, pois ficava elencada em nível das contravenções penais, que na época eram porte ilegal de arma e jogo do bicho. Não existia apoio da lei na prática. Um negro que disser que nunca sofreu discriminação vive em outro país. Acontece em todas as áreas, em todos os momentos, e não era diferente na época [dé cadas de 1960 e 197 0 ]. No período em que estudava, uma agência de publicidade precisava de redator e botou um anúncio no jornal. Aí mandávamos uma correspondência nos candidatando e por ali eles avaliavam se chamavam a pessoa ou não. Me chamaram. Cheguei lá tinhas umas 50 pessoas, todos juntos fizeram uma prova. Na conversa com os demais, vi que me saí muito bem. No outro domingo saía o mesmo anúncio no jornal que dizia o seguinte: ‘favor enviar fotografia’. Era o único candidato negro. Uma empresa de TV precisava de apresentador e me inscrevi. Fiz o teste, o piloto e aí o comitê da emissora havia me selecionado. Porém, o diretor disse que meu cabelo era muito grande, usava black , e me cortaram ali. Só fiquei sabendo 20 anos depois com um cara que estava naquele comitê. Era só me perguntar se eu queria cortar o cabelo. Racismo é sobrepor uma raça a outra, quando o que existe é uma raça humana. Preconceito é estabelecer uma visão antecipada de algo, e segregação é a separação de uma comunidade. O s três conceitos estão sempre presentes na sociedade aqui. E era mais forte, intenso na minha época. Pegaram os negros no Carnaval da Borges de Medeiros, na Perimetral, na João Alfredo, no Centro, pegaram todos e jogaram lá no Porto S eco. Como agora, que querem tirar o Carnaval da Cidade Baixa e jogar para a orla do Guaíba, se possível para o meio dele, para ver se morre tudo. Não querem os negros aqui.

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NÃO Q UEREMOS SER OS COITADOS Este é meu primeiro mandato. Andando pelos corredores da Câmara, durante meus intervalos, gosto de observar todos os detalhes da casa. Então, percebo que, de 36 vereadores que trabalham aqui, apenas dois são negros. Fiz a faculdade de Direito há 30 anos e me formei em 19 8 9 . L embro-me de ter poucos colegas afrodescendentes. Tenho dois filhos que também fazem Direito. Minha filha entrou com 16 anos na faculdade e, até pela idade dela, muito jovem, fiz questão de ir ao campus para acompanhá-la. S urpreendeu-me ter um número ainda menor de negros na sala de aula em relação à minha época. As pessoas não questionam isso. O porquê de termos poucos negros em sala de aula, em programas de televisão, em comerciais, em cargos de chefia, de liderança. I sso nos leva a alguns questionamentos: seria falta de interesse dos negros, falta de conhecimento, falta de vontade de cursar uma faculdade? Apesar de tudo, tivemos um governador negro [Alceu C ollares], um desembargador negro, temos dois procuradores de estado, dois promotores, e alguns delegados de polícia. Mas num número de mil delegados, negros não chegam a 10% . Ainda são muito poucos. Mulheres negras delegadas então... conheço apenas duas. Essas perguntas que precisamos fazer para lutar por maior igualdade nas diversas ocupações, principalmente nos cargos mais importantes. Muito dessa desigualdade deve-se à forma de abolição da escravatura no Brasil, a qual questiono muito. Após trazerem os negros escravos acorrentados em porões de navio para cá, os libertaram sem as mínimas condições de sobrevivência. O s deixaram livres, mas sem dinheiro, moradia e documentos. Eu e minha equipe de gabinete temos vários projetos para a população negra, a maioria baseado em

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educação, segurança pública e direitos humanos. Elaboramos projetos de cotas no serviço público municipal para negros, por exemplo. Já existe uma lei que fala sobre a obrigatoriedade de as escolas promoverem discussão sobre a Á frica e a cultura negra. O que na verdade vemos nos eventos escolares é a cultura negra invisível. Fala-se do samba, do futebol, e o resto é esquecido. Não contam as trajetórias dos heróis como Z umbi [dos P alm ares], João Cândido, que lutaram pelos nossos direitos e fizeram história. Essa lei existe há bastante tempo, mas só no papel. O s investimentos nessa norma não têm sido feitos pelos governos e são raríssimos os casos de professores que se especializam no assunto. Não queremos ser os coitados. As pessoas levantam a questão da auto piedade, que os negros vivem eternamente chorando as mágoas. Bom, a questão está relacionada às nossas origens. O europeu chegou aqui pobre, com dificuldades e subiu na vida. O colono tinha um sonho, queria investir e tinha condições para isso, ao contrário dos negros, que vieram obrigados e sem as mínimas condições, além de passarem por uma falsa libertação. S ão histórias diferentes. S e eles não fossem fortes, guerreiros, não resistiriam, seria um grande extermínio, morreriam de fome, sua cultura morreria. O s senhorios queimaram documentos de seus escravos, por isso muitos negros não sabem a origem de seus nomes, suas raízes, de onde vieram. O povo negro ficou meio perdido ao longo do tempo, mas sobreviveu pela sua força de luta. I nfelizmente, estamos em 2015 e presenciamos muitos casos de discriminação. Em estádios de futebol vemos atos racistas dissimulados e só quem sofre consegue ver e sentir. É de chatear porque não costumo ver diferença entre raças distintas. Queremos que se crie uma situação de oportunidade para todos, para o negro, o índio, o japonês. Algumas vezes já sofri racismo, mas sou bem resolvido. Uma vez entrei na sala de um juiz e de um promotor pra reforçar um pedido de busca e apreensão e entrei com um menino que era meu policial e chefe de investigação que eu havia nomeado. E ele era loiro de olhos claros. Quando entramos, eles foram direto nele para abraçá-


-lo e ‘parabeniza-lo pelo brilhante trabalho’. uando o menino disse que o delegado era eu, eles ficaram num vermelhão. Simplesmente travaram e não tive nenhum sentimento de raiva. Acabou que só me deram o mandado depois que saí da sala. Com 20 minutos pra encerrar o prazo, enviaram um oficial de Justiça para cumprir a busca e apreensão que não deveria ter cumprido. A Câmara Municipal teve 4 5 presidentes, comecei a contar nos quadrinhos do saguão aqui da casa. S ó três mulheres e nenhum negro, até porque poucos vereadores foram negros. A gente vê isso e queremos uma explicação. O uvi de um secretário de S egurança que estranhou que não via comandantes negros, mas sim muitos soldados. Será que eles não se vêem identificados? Porque as pessoas não encontram nenhum negro no cargo e acham que não lhe querem naquele ambiente. Temos que fazer esse exercício de se ver em lugares em que somos minoria, em que não nos aceitam. Esse projeto [ eriado municipal no ia da onsci ncia egra de novem b ro], criado pelo grupo Palmares na capital, existe em 1.04 7 municípios do Brasil e aqui, onde poderíamos ser os protagonistas da história, não existe. O s comerciantes foram contra, e como o comércio tem uma força muito grande no Poder Judiciário, que na sua maioria infelizmente possui poucos juízes negros, julgou inconstitucional. I nicialmente tínhamos 22 votos que poderiam apoiar com o voto, precisávamos de no mínimo 19 . Porém, alguns sofreram certa pressão de comerciantes e nem compareceram. S ó não sai por vontade política, porque depende apenas disso, mas como um feriado afeta as vendas no comércio, a pressão aumenta sobre os políticos. Quando vejo pessoas que se colocam na frente de uma luta, não só Nelson Mandela, o próprio Cô rtes [ver depoim ento na pá g ina 92 ], briga por questões de igualdade, alguns até como anô nimos, tenho uma comoção por esses lutadores de direitos humanos, respeito às mulheres, negros, homossexuais. Todos que levantarem bandeiras em favor de minorias têm o meu carinho, meu respeito. Tenho essas pessoas como ídolos.

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IGUALDADE ENVOLTA EM POLÊ MICA

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Em pleno 2015 , a discussão racial ainda é um tema a ser debatido. Em um país onde mais da metade da população (5 0,7% ) se autodeclara parda ou preta, segundo dados do Censo Demográfico de 2010, isso pode parecer um absurdo. Mas não é. A cada ano, deparamos com novos episódios que trazem o assunto à tona e, seja no estádio de futebol ou no âmbito acadêmico, a igualdade entre raças é um tema que sempre surge com contornos de polêmica. De acordo com o Censo de 2010, 21 estados brasileiros tiveram percentual acima da média nacional de população negra. Um deles foi o Rio Grande do S ul. Com mais de 17% da população se autodeclarando parda ou preta, surpreende que um dos episódios mais marcantes de racismo nos últimos tempos, as ofensas da torcida do Grêmio ao goleiro Aranha (do S antos), tenha acontecido em solo gaúcho. Alguns pontos revelam a diferença que ainda existe entre as raças. Em um grupo de pessoas de 15 a 24 anos, mais de 31% dos brancos encontrava-se no Ensino S uperior. Na mesma faixa etária, somente 12,8 % dos pretos e 13,4 % dos pardos estavam matriculados em algum curso. Em 2010, 91 milhões de pessoas (47,7%) classificaram-se como brancas, enquanto 9 7 milhões se declararam pardas ou pretas. Porém, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo I BGE em 2012, trouxe um comparativo interessante. Em 2001, somente 10,2% dos negros frequentavam o Ensino S uperior. Já em 2011, este percentual havia saltado para 35 ,8 % . No mesmo período, o percentual de jovens brancos nas universidades saltou de 39 ,6 % para 6 5 ,7% . O número de negros no Ensino S uperior chama a atenção por um motivo: no mesmo período em que o número de brancos nas faculdades nem duplicou, o índice de pretos ou pardos mais que triplicou. A situação re ete o uso de políticas para equilibrar o número entre pessoas negras e brancas no ambiente universitário. A polêmica política de cotas, frequentemente debatida, é um dos incentivadores deste crescimento. Para o advogado e defensor dos direitos huma-


nos, Mathias Boni, tais medidas são uma maneira de corrigir uma injustiça histórica. “Há uma enorme desigualdade econô mica no nosso país, e esta diferença se manifesta muito claramente no Ensino S uperior, principalmente se analisarmos o período pré-cotas nas universidades federais. uando foi oficialmente abolida a escravidão no Brasil, em 18 8 8 , não houve nenhum projeto de inserção e integração dos negros libertos à sociedade. O s ex-escravos, se não mais dentro da lei, continuaram perseguidos, vítimas de preconceito, e assim lhes era muito difícil arranjar emprego e sustento, sendo cada vez mais marginalizados. O negro, assim como a mulher, passou a votar apenas em 19 34 , por exemplo. S eus direitos básicos de cidadão foram e são até hoje negligenciados pelo poder público”, comenta. Além da dificuldade histórica, Boni ainda destaca outro ponto que dificulta o acesso das pessoas de raça negra ao Ensino Superior. “O que ocorria no Brasil até o início do século 20 e que de certa maneira acontece ainda hoje é que as universidades federais, que devem ser públicas, na prática não são. Claro, todos aptos academicamente podem se candidatar para as vagas. Mas a competição é justa? Como um aluno pobre – e, por causa da herança da escravidão, a maioria esmagadora das pessoas em dificuldades financeiras é negra que estudou a vida inteira em um colégio público, que muitas vezes tem que também trabalhar, ou vive em um ambiente violento, que por vezes passa fome, pode competir pela mesma vaga com um aluno que teve toda sua formação em colégio particular, curso de língua estrangeira particular, intercâmbio, e que ainda por cima quando não passa no vestibular paga mais alguns anos de estudo em um curso particular preparatório específico para a prova de ingresso à Universidade? Esse processo é a mercantilização indireta do Ensino S uperior. Já pensou que ousadia era para um estudante sem condições de pagar os melhores cursos preparatórios pensar em cursar Medicina, por exemplo?”. Na política, a situação não é diferente. Mesmo com a maioria populacional, os negros têm uma representatividade menor no cenário político. S egundo levantamento da Transparência Brasil realizado em 2013, somente 9 ,8 % dos deputados e senadores se declaravam pretos ou pardos. No S enado, o percentual era ainda menor, com somente 3,7% – 3 de um total de 8 1 senadores. Já no Congresso Nacional, 4 3 dos 5 13 deputados federais eram negros. Nas eleições de

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2014 , segundo dados do Tribunal S uperior Eleitoral (TS E), somente 10,7% (119 ) dos postulantes aos cargos de governador, vice-governador, senador e deputados federais e distritais se intitulavam negros. Se os avanços em alguns campos já são significativos, outros ainda penam para obter índices expressivos. Enquanto no Ensino S uperior o número de estudantes negros triplica em 10 anos, na política ainda há poucos representantes negros. Um deles é o Delegado Cleiton Freitas, vereador de Porto Alegre, que fala sobre a atual situação do país neste capítulo. O utro entrevistado é Antô nio Carlos Cortês, um dos fundadores do Grupo Palmares, representante de um tempo em que as conquistas que hoje são realidade não passavam de um sonho idealizado.

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10,2%

dos negros frequentavam o Ensino Superior em 2010.


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A m o r a d ia Texto D oug las C auduro e D oug las Goulart Fotos Ariel Gil


O direito à moradia encontrase consagrado no Texto Constitucional, artigo 6º, caput. O referido direito foi introduzido na Nossa Lei Maior por força do disposto na Emenda Constitucional de nº 26, de 14 de fevereiro de 2000.


D io g o Após um período de andanças, o baiano Diogo Faria Pacheco, 29 anos, se mudou para Porto Alegre. Começou a usar drogas e se tornou morador de rua. Vive em uma ocupação na O svaldo Aranha.


M AR I A Maria de Nazaré Casses Barbosa, 5 1 anos, viveu por muito tempo em favela. Pobre e com estudo até a 7ª série, em 2014 , a vida dela mudou: foi contemplada pelo Minha Casa, Minha Vida.


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É UM DESEPERO Há dez anos, fiz a primeira visita a Porto Alegre. Nessa visita, acabei me interessando pela cidade. Passei um ano trabalhando dentro de alguns estúdios de tatuagem, mas retornei para a Bahia. Depois de um período de idas e vindas, vim para cá em definitivo. Voltei a frequentar um estúdio de tatuagem com um conhecido. Era o local em que podia ficar. Mas houve desavenças. Ele cobrava 60% do meu trabalho. Recebi uma proposta para ser chefe de caixa em uma boate e me aventurei. Tinha um emprego, mas não era fixo. Na noite, eles te dão cargos formais, mas não assinam a tua carteira. Houve o período do fechamento das boates, e a nossa foi uma delas. Não me planejei, desfrutei de uma vida de excessos, podia passar uma semana tranquila com o salário pago. S aí de lá. Não havia criado experiência com a carteira assinada. Era inverno, não havia empregos em abundância como no verão. Conheci pessoas erradas e acabei seguindo o caminho das drogas. Passei um período traficando. Fui preso. Não fiquei na cadeia, mas em uma situação de rua. Ia e voltava sem saber o que fazer. Não sei de onde, mas uma amiga minha surgiu. Aconteceu um relacionamento e fui morar com ela no bairro Agronomia, em Porto Alegre. Comecei a trabalhar com o pai dela. Funcionou durante um ano e meio o nosso caso. S aí da casa dela e fui passar um tempo com um amigo, que também tem filho e esposa. Era um ambiente com um ritmo familiar. Não é que mais uma pessoa não caiba, coube por uma semana, que não foi suficiente para conseguir retomar um emprego, devido à falta de experiência comprovada em carteira. Saí da casa deles e disse que ia para a casa de alguém. Passei três dias na rua. Realmente é assustador! Acho que qualquer noite de uma grande metrópole não é muito convidativa. Dormi na Praça da Matriz, onde tem um conjunto de pessoas. Mas, como não conhecia o pessoal, não conseguia me integrar. Talvez não tenha feito um esforço para isso, não quis reconhecer de imediato uma situação de rua.

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Passava o dia pensando no que fazer, almoçando na residência de um amigo, catando alguma oportunidade de serviço. Pediam uma ajuda para retirar alguns entulhos de uma obra e recebia uns R$ 30 ou R$ 4 0. Sentava na calçada por horas e me questionava: por onde começo? E tu não sabes por onde começar. um desespero, você não quer passar outra noite na rua. Quando ela caía, não tinha jeito, não havia como escapar. Foi aí que soube da una Libertaria, quando vim com um amigo para deixar alguns equipamentos de tatuagem. O pessoal nos convidou para passar a noite e vivenciamos o dia seguinte aqui. Eles falaram: ‘Fica aí de novo, meu, que é bom acordar com a galera’. O perfil da ocupação é cultural, mas é como se fosse um ambiente familiar. Pouco antes de vir para cá, recebemos visitas de advogados tentando fazer uma espécie de mediação. Foi comunicado que existia uma ação de demolição. Então eu disse que só sairíamos com ordem judicial, pois o espaço estava há três anos e meio ocioso. Aqui era o Tablado Andaluz [escola de dança e bar amenco]. Foi criado o processo, mas o juiz indeferiu porque alguma parte não se pronunciou. Então, foi arquivado. Também tivemos problemas com um dos vizinhos, pois é um lugar que assusta para quem não sabe o que é. A energia elétrica sempre foi gato. Recentemente, implantamos um sistema de bateria estacionaria, que é carregada em outros lugares. A água é buscada na Redenção com baldes e galões, e o nosso amigo pipoqueiro, que tem um ponto para ter uma mangueira, repassa. O banho é feito com a bacia embaixo para poder reciclar a água e jogar no vaso. A alimentação também é reciclada: o pessoal vai às feiras e pede o que não será mais usado. Em alguns casos, recebemos cestas básicas e, com o dinheiro do trabalho na rua, é possível fazer as compras. Temos custos com alguns alimentos que são comprados com a grana do trabalho na rua. O pessoal se reúne e não sente frio. No calor, nem precisa cobertor. As nossas roupas são lavadas em um local aqui perto. Conhecemos alguns amigos, então fica fácil. Não penso em voltar para a Bahia. Para o futuro, gostaria de ter um espaço que se molde à minha realidade atual, mas que seja adequado para receber o meu filho de quatro anos.



ESSE MEU APARTAMENTO É MIAMI BEACH

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S ou Maria de Nazaré Casses Barbosa, tenho 5 1 anos, estava na luta há muito tempo para conseguir a minha moradia. Fiz minha inscrição em 2009 e, seis anos depois, consegui o financiamento pelo programa Minha Casa, Minha Vida. Estou realizada. A conquista da casa própria é o sonho de todo mundo. Como é bom ter um canto nosso, ter um teto próprio. S ou pobre, com estudo até a 7ª série, ganho um salário mínimo. Sobreviver é uma luta diária. Depois que saí de casa no Interior e vim para a Capital, fui morar na favela, porque pobre não tem outro lugar, ele vai para a favela. Vivi minha vida toda na vila. Casei, tive minha filha e agora consegui minha casa própria, que pagarei em 10 anos. Morei na Maria da Conceição. Vivi naquele lugar por pura necessidade. Estou há sete meses no meu apartamento e nunca mais quero colocar os meus pés lá. Favela tem muito lixo, sujeira, diversos problemas. Minha conduta era sempre de baixar a cabeça, sair de casa para trabalhar e dar bom dia e boa noite, nada mais que isso. Na favela tem água e luz, mas ninguém paga. Então muitas pessoas não se adaptam com esse tipo de vida de sair da vila e morar em um lugar que tenha que pagar água, luz, condomínio, prestação, pois estão acostumados com a comodidade de não precisar gastar. O dinheiro que se consegue é para comer, não há preocupação em pagar os itens básicos. uando fui morar no morro, era esgoto a céu aberto, tinha que levar a minha filha para a escola e não tinha por onde passar. Na favela, tínhamos um problema muito sério com o lixo. Todos colocavam os seus dejetos na rua e aquilo ficava ali apodrecendo uns dois, três dias. Então fui representante de área do meu beco e começamos a nos organizar. O Departamento Municipal de Limpeza Urbana [D M L U] foi até lá, e conseguimos com que eles fizessem o recolhimento dentro


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da vila. Perto do que morava antes, esse meu apartamento é Miami Beach. Tentei de tudo para melhorar de vida, voltei a estudar, mas, infelizmente, não tive tempo para continuar. O nde vivo hoje é muito mais tranquilo. Aqui temos reuniões com os condôminos e, se alguém estiver fumando maconha, é chamado o síndico, o guarda, quem for. Não impedimos ninguém de fazer o que quer, mas não onde moramos, não queremos mau exemplo para ninguém. Isso aqui não pode virar uma favela, e estamos lutando para isso. Nós queremos que o nosso condomínio seja um exemplo. A minha vida hoje é aqui. s vezes, deito, olho para as paredes e digo a Deus que me esqueci de agradecer. Tem muita gente boa dentro do condomínio. Minha vizinha do andar de cima é uma ótima pessoa. Tenho liberdade para levar o meu neto na pracinha. Tudo em paz. uando se mora em vila, o tráfico in uencia. A minha filha foi usuária de drogas. Caiu no último estágio da pedra [crack ] . Mas lutei muito e ela conseguiu sair dessa vida. Na Maria da Conceição, morava com a minha filha e com o meu genro. Não havia privacidade para ninguém. Mesmo que não conseguisse o financiamento, teria que arrumar um lugar só para mim. A minha filha está inscrita também, desde 2009, mas ainda não foi selecionada. Gostaria que ela fosse embora da favela o mais rápido possível, porque não quero que essa situação se repita com o meu neto. Sobre o financiamento, eles não exigem que a pessoa tenha nome limpo na praça, apesar de que sempre tive. Aprovaram meu cadastro. Recebi o subsídio de R$ 17 mil de entrada dado pelo governo e o resto é financiado. Acho que o governo já deveria ter proporcionado esse programa. Todo mundo tem o direito de morar decentemente. Quando vim para o condomínio, estava ciente de que teria os custos. Por isso, procuro economizar. A água é social, pago R$ 20, mas a luz é bem cara. Pude escolher o apartamento em que estou, na planta, e ainda fiz a revisão quando ele estava quase pronto. Os móveis foram comprados com o Cartão Minha Casa Melhor. As prestações são em 4 8 vezes de R 116. Deixei o cupim todo na favela. Comprei tudo novo. Casa nova, vida nova.


Às vezes, deito, olho para as paredes e digo a Deus que me esqueci de agradecer. Tem muita gente boa dentro do condomínio. Minha vizinha do andar de cima é uma ótima pessoa. Tenho liberdade para levar o meu neto na pracinha. Tudo em paz.

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DÉ F ICIT DE MORADIAS PERSISTE

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A falta de moradia é um problema que continua afetando a vida de milhões de brasileiros. De acordo com os dados do I nstituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Fundação João Pinheiro, lançados em maio de 2014, o déficit habitacional no Brasil oscilou entre 5,2 milhões e 6,9 milhões de unidades em 2012. Em Porto Alegre, no mesmo período, o déficit atingiu 86 mil moradias. Reconhecido desde 19 4 8 como uma das garantias fundamentais à vida das pessoas, o direito à moradia não se configura somente por um teto e quatro paredes. Conforme o Diagnóstico do Setor Habitacional de Porto Alegre, lançado pelo Departamento Municipal de Habitação (Dehmab), a moradia e seu entorno devem estar em perfeitas condições de segurança e amparo. Segundo a arquiteta e urbanista Camila Fujita, professora da PUCRS, o direito à moradia ultrapassa a edificação em si. Ela afirma que, além da qualidade do projeto de execução da habitação, deve-se discutir a importância do direito para a cidade. “A moradia deve se inserir no contexto da cidade, possuir espaços qualificados de convivência, ser atendida por infraestruturas básicas, como transporte e sistema viário, equipamentos e serviços públicos como água, energia, esgoto e coleta de resíduos. preciso prover condições para que o cidadão possua qualidade de vida e consiga acessar maneiras de melhorar a sua condição, inclusive de geração de renda para si e sua família”, revela. Em relação ao déficit de moradias em Porto Alegre (86 mil), ela avalia que, embora não seja um dos maiores no país, o problema ainda está longe de ser solucionado. Acredita que as políticas públicas urbanas implementadas têm conseguido colocar o debate em pauta e oferecer aparato normativo que busca o exercício da função social da cidade e da propriedade. “Há um longo caminho pela frente, pois boa parte desses instrumentos ainda não conseguiram ser implementados em todo seu potencial. Existem muitos entraves, como


interesses imobiliários e a dificuldade do poder público em executar planos integradores”, explica. Representante do Fórum das Ocupações Urbanas e um dos fundadores da ocupação São Luiz (terreno de 12 hectares situado na ona Norte de Porto Alegre), Juliano Fripp reafirma a necessidade de luta para garantir que as pessoas tenham acesso ao direito fundamental da moradia que está previsto na Constituição. “A falta de responsabilidade de governos com os mais necessitados fez e faz com que cada vez mais pessoas fiquem sem moradias. Não existe uma política habitacional séria em Porto Alegre, por isso esse déficit absurdo. O nosso movimento é independente, mas que oferece e busca apoio. Temos parceiros políticos e não políticos, que fazem a política que defendemos”, ressalta. O Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), criado em julho de 1990, também tem a proposta de acabar com o déficit habitacional, por meio do debate da reforma urbana. O movimento apresenta uma estrutura organizativa em 19 Estados e no Distrito Federal. Segundo o coordenador nacional do MNLM, Beto Aguiar, o Brasil demorou para ter um projeto do governo que atendesse a demanda por moradias. “Após quatro décadas sem política habitacional para o povo mais necessitado, hoje vemos de forma clara um investimento, através do Minha Casa, Minha Vida”, declara. Com o objetivo de construir um programa habitacional para o atendimento às famílias de baixa renda, o governo federal anunciou, em 2009 , o Minha Casa, Minha Vida. Coube ao Demhab receber as inscrições de pessoas com renda de até três salários mínimos. Essas inscrições estiveram abertas de 17 de abril de 2009 a 8 de maio de 2009 . Na Capital, se inscreveram cerca de 5 4 mil pessoas nessa faixa salarial. Até o momento, foram entregues 1.768 unidades habitacionais para esse grupo. Segundo dados do governo federal, mais de 2.040.706 habitações (R 136,87 bilhões) foram construídas desde 2009 e tem como meta a construção de mais 3 milhões de residências até 2018 . O objetivo do programa é ampliar o acesso à moradia, junto com ações de regularização fundiária para diminuir o déficit habitacional. Camila aponta que o Minha Casa, Minha Vida trouxe um avanço

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ao colocar em pauta a questão urbana como uma possibilidade de integração de políticas públicas sociais. No entanto, de acordo com a arquiteta e urbanista, há problemas na qualidade dos projetos executados. “S ão reproduzidos modelos prontos, independente das relações sociais, culturais e ambientais do lugar, o que pouco contribui para a qualificação do espaço da cidade”, coloca.


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86 mil

moradias, é o número que representa o déficit habitacional em Porto Alegre.


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a L OC OM O C A O E a R E S ID E N C IA Texto O h ana C onstante e Tiag o P ach eco Fotos Steph anie Gom es ( Flá vio) e C aroline Ferraz ( L etí cia)


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1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a esse regressar.

art.


F l A v io Flávio Tavares, nascido em L ajeado, é jornalista e escritor, ex-militante de esquerda durante a ditadura militar. Foi um dos presos políticos trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick em 19 6 9 .


L e t I c ia

L etícia Moreira da S ilva tem 21 anos, é líder estudantil e presidente da União Gaúcha dos Estudantes (UGES ). Começou sua militância em 2009 e se tornou líder em atividades na cidade em defesa dos estudantes.


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NO URUGUAI NÃO F UI PRESO, F UI SEQ UESTRADO Em 19 5 3, entro no curso de Direito da PUCRS e de Biologia na UFRGS . Nesse ano, já me meto com política universitária, passo a ser secretário geral da União Estadual de Estudantes [ UE E ] e, no ano seguinte, sou eleito o presidente da entidade. Após me formar em Direito pela PUCRS e trancar o curso de Biologia, passei a exercer a profissão de jornalista. Como colunista político, da rede Ú ltima Hora, em Brasília, no ano de 19 6 4 , fui preso pela primeira vez. Fiquei preso durante cinco meses, até o fim do ano, e em dezembro o S upremo Tribunal Federal me deu um habeas corpus por unanimidade. Solto novamente, não tinha mais condições de ficar no Ú ltima Hora de Brasília, então vou para o Rio de Janeiro, ser chefe de reportagem do jornal de lá. Até que vem o Ato I nstitucional nº 5 [AI -5], em dezembro de 19 6 8 . Com o ato, aí sim foi a introdução da ditadura, que é decretada oficialmente. Depois desse dia, me atirei de vez na luta já em 19 6 9 . Nunca mais voltei ao jornal, até porque não tinha condições, pois respondia a um I nquérito Policial Militar devido à prisão de 19 6 7. A partir daí, me atirei de corpo e alma na resistência democrática, na luta armada. Todas as minhas ligações eram daqui do Rio Grande do S ul, minha família, minha mulher na época também, mas participei da luta sempre no Rio de Janeiro ou em S ão Paulo, que eram os centros do país na época e são até hoje. S ou preso novamente no dia 4 de agosto de 19 6 9 . Vai ser a minha terceira prisão, e desta vez foi uma prisão diferente, porque, até então, eu não havia sido torturado e nem molestado. Me colocam no banco de trás do carro, eu com a camisa aberta, e um sujeito fumando apaga o cigarro no meu peito, como se fosse um cinzeiro. Ainda possuía as marcas até pouco tempo. Dali entrei direto para o choque elétrico,

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era uma fila de recrutas e cada um devia me dar um pontapé, e o que não me desse era repreendido. Foi aí que eu conheci as condições desumanas, que até então não sabia que existiam. Fiquei 30 dias apenas porque houve o sequestro do embaixador norte-americano, Charles Elbrick , no Rio de Janeiro, e fui um dos presos políticos envolvidos na troca. O sequestro ocorreu no dia 4 de setembro de 19 6 9 , e no dia 6 embarquei com os outros 15 presos políticos, algemados e amarrados, em um avião da Força Aérea Brasileira [FAB]. Fomos levados para o México. No exílio, foram dez anos. As condições eram duras, mas nós fomos libertados já no aeroporto. O comandante do avião, era um avião militar, tinha ordens para nos entregar para a embaixada brasileira algemados, e o governo mexicano exigiu que fossem retiradas, pois não existia esta territorialidade, quem manda no México somos nós, eles diziam. Então tiraram as algemas no avião, pois no México não se usava algemas, era proibido pela constituição, e nós lá ficamos em liberdade. Nesse período, aí entra no direito de ir e vir, fiquei sem documento. Nós chegamos no México sem documento nenhum, somente com as roupas do corpo. O resto do pessoal foi para Cuba, alguns depois foram para a Europa e eu quis ficar no México. A minha primeira ideia era tentar voltar para o Brasil e continuar a luta pela resistência democrática, mas começou a morrer gente, e não podíamos arriscar nossas vidas. Nós fomos banidos do país, ou seja, desterrados. muito duro. uando nasce o meu filho no México, quem teve que registrar ele foi a minha mulher, que era brasileira, de S ão Paulo. Ela o levou ao consulado brasileiro, e eles aceitaram, é um direito de todos. Na Argentina, em 19 74 , entra novamente a questão do direito de ir e vir, pois eu continuava sem documentação, e isso é terrível, pois tu não és ninguém sem os teus documentos. A minha identidade mexicana tive que deixar no México quando saí, então o governo do Perón nos deu uma série de facilidades, e eu tive radicação permanente na Argentina, ou seja, um estrangeiro vivendo como se fosse um imigrante. Passei a ter uma carteira de livre acesso na Argentina, que tenho até hoje, e com essa carteirinha podia viajar ao Uruguai,


que era o mesmo documento necessário, e ao Chile, mas lá não iria, pois era uma ditadura. Com isso, fui várias vezes ao Uruguai, até em missão jornalística. Comecei a trabalhar também para O Estado de S.Paulo como correspondente, só que utilizando um nome fictício, eu assinava como Júlio Delgado. Em uma dessas minhas idas ao Uruguai, fui para libertar da prisão um f reelancer de um colaborador do jornal do México, do Excélsior, que tinha sido preso, pois escreveu umas bobagens. L á eu contrato um advogado, ele é solto da prisão e me leva até o aeroporto. Quando estava embarcando no avião, me sequestram. No Uruguai não fui preso, fui sequestrado. No que estava entrando na aeronave, eles fazem eu voltar, me bateram no ombro e disseram que estava com problemas no documento. Nesse momento, quando voltei, eles me vendaram os olhos, me algemaram, me botaram num carro e desse momento em diante fiquei durante 26 dias com os olhos vendados e algemado. Comia e fazia as minhas necessidades de algemas. Teve uma noite em que me fuzilaram três vezes, duas vezes, na verdade, na terceira eu vi que era para me assustar. Eles mandavam eu caminhar e atiravam para os lados, mas fui saber só depois. Foi uma história muito dura no Uruguai, me deixaram pendurado também, foi horrível. Eles me processam por espionagem, pois tinham que me enquadrar juridicamente em alguma coisa. Nesse momento já começava a haver uma gritaria aqui no Brasil, uma abertura. Havia sido assassinado, em S ão Paulo, o jornalista Vladimir Herzog, e depois daquilo a imprensa passou a ter uma certa liberdade. O s jornais publicaram o meu caso, todos eles me apoiaram, saiu manchete n’O Estado de S .Paulo e no jornal do México também. O México tinha muito prestígio nessa época, porque era um dos únicos países a não ter ditadura, junto com a Venezuela. Então, eles tiveram que dar alguma explicação e me processaram por espionagem, mas nunca revelaram o que é que eu espionava, senão eles teriam que mostrar a documentação que encontraram comigo. O meu caso na época saiu em todos os jornais do mundo. A Anistia I nternacional, com sede em L ondres, me declarou um dos presos

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políticos do ano. Era eu e uma americana, a Angela Davis, que era uma negra muito forte no movimento pelos direitos humanos, na luta pela igualdade racial. Depois de toda a repercussão, sou expulso do Uruguai, por pressão da opinião pública brasileira, que forçou o Ernesto Geisel, presidente da República na época, a ir até Montevidéu. Com isso eles me expulsam. Agora me expulsar para onde? Eu não tinha documento nenhum, apenas a carteirinha que ganhei na Argentina, que não era passaporte. Aí Portugal, que já havia sido democratizado, através do primeiro ministro Mário S oares, me dá asilo político. Viajo com salvo conduto da embaixada de Portugal, com a minha fotografia eles substituem a do passaporte. Viajo para Lisboa no dia 28 janeiro de 19 78 , e havia sido sequestrado em Montevidéu em 14 de julho de 19 77, mesmo dia da queda da Bastilha. De Portugal, volto para o Brasil no final do ano seguinte, em dezembro 1979, já com a L ei da Anistia aqui. Foram então dez anos e dois meses em exílio. A ditadura é a abolição de todos os direitos, só que nem se nota. Porque não é uma lei que diga, ficam abolidos os direitos. Não, simplesmente se implanta o poder na base do terror. A Declaração era apenas um papel no qual a imprensa nem falava. S e eu não transmitir para vocês, estarei sendo desonesto com todos e com a história. Tenho até hoje as sequelas, e elas ficaram para a história, para a geração futura, mas tudo se supera, o ser humano tem a capacidade de superar a dor. Na mesma situação, faria tudo novamente, claro, sem cometer os mesmos erros novamente, mas é impossível repetir a história. Ela não se repete, as condições são outras e o contexto não é o mesmo da época.


O meu caso na época saiu em todos os jornais do mundo. A Anistia Internacional, com sede em Londres, me declarou um dos presos políticos do ano. No Uruguai fiquei durante 26 dias com os olhos vendados e algemado. Comia e fazia as minhas necessidades de algemas.

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Na minha terceira prisão, me colocam no carro, e um sujeito apaga o cigarro no meu peito.


TENHO ORGULHO DOS Q UE LÁ ATRÁ S LUTARAM

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No Brasil, um líder ativista teria sua vida por um fio durante todas as etapas de barbárie vividas na ditadura. S into que vivíamos em uma selva. Aqueles que buscavam direitos, deveres e a simples liberdade de expressão eram literalmente caçados. Atualmente, percebo isso como algo absolutamente surreal. S into que a liberdade que existe hoje, de expressarmos nossos direitos, de irmos para a rua e reivindicar melhores condições de vida ou de apenas exigir transparência, foi conquistada a duras penas. Na ditadura, não existia organizar ou debater. S eriamos presos. É triste. Tenho sorte, ao menos, de ter passado por aquilo e apesar de, ainda, não ter meus direitos violados, sei que o Brasil precisa evoluir muito politicamente. Temos uma rica cultura física, matéria prima e pessoas inteligentes. S ó falta conscientização. Precisamos mobilizar a juventude para ter um futuro melhor, é isso que busco. Tenho orgulho daqueles que lá atrás lutaram, sofreram e conseguiram conquistar esse presente para nós. Um presente de liberdade, um presente de muita luta pela frente, mas só de saber que posso ir às ruas manifestar é uma grande vitória. A juventude tomou para si a responsabilidade de estar à frente das decisões do país, isso foi um grande passo para o Brasil. Nada melhor que a força da juventude à frente das mobilizações. O país vive em um momento no qual o povo precisa unir-se cada vez mais. Temos que combater retrocessos e buscar sempre evoluir como cidadãos. Esse é um dos momentos mais importantes do país. O momento que o povo se soma e toma para si a responsabilidade de se defender. Apesar de ser nova e estar desenvolvendo meu intelecto para questões que não são da minha ‘época’, tenho consciência de que a questão dos direitos humanos no Brasil só parece ser atual. Percebo


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que quanto mais as instituições democráticas se aprimoram, ou pelo menos tentam, o usufruto dos direitos é por vezes mascarado. A pobreza cada vez mais evidente no país é um exemplo da discrepância dessa desigualdade. Mas sei que esse é só um dos problemas nesse país tão grande. S ão priorizadas algumas áreas e outras são esquecidas. Educação, moradia, qualificação, emprego, acessibilidade, segurança, enfim. O Brasil está longe de ser perfeito. Repito, tive a sorte de ainda não ter tido meu direito de ir e vir violados. Mas sei também que minha vida de ativista só está começando. Percebo que nossas leis são deficientes. Ter direito não te dá o direito a outros direitos. L embro de uma vez sair algemada da escola em que estudava. Foi a única vez que tentaram me inibir com terror. A direção não aceitava que existisse Grêmio Estudantil. Eu e um colega insistimos, e ela chamou a polícia. Na época, era menor de idade, foi um erro terem nos levado para a delegacia sem ter chamado nossos pais antes. Pensamentos e atitudes arcaicas atrapalham a democracia. Ainda existem pessoas de órgãos que tentam atrapalhar os direitos da juventude. Mas não nos calarão! O direito à democracia política conquistado na ditadura não resolveu os problemas mais urgentes do país, como a desigualdade e o desemprego. I sso é risível. Houve um agravamento na segurança individual, nos sentimos acoados quase que o tempo todo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi uma grande vitória. A partir dela começamos a criar uma cultura de luta pelos direitos em diversos países. I sso é o mais importante a se ressaltar. Mas, infelizmente, ainda não é levada à risca por muitos deles. O princípio de tudo é a educação. Repito, temos que nos conscientizar. S ó iremos conseguir avançar em relação aos direitos humanos quando existir debates em escolas, faculdades, sindicatos, cidade e em qualquer lugar que tiver uma sociedade organizada. S ó assim é possível começar a integrar a sociedade e a educar o povo sobre os direitos humanos.


IR E VIR AINDA NÃO É UM BEM DE TODOS

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Existem pessoas distintas em todos os lugares; no serviço, na escola, vindos de outras cidades, outros Estados, outros países. Pessoas de qualquer idade, sexo ou cor perambulam pelo país em busca de melhores condições de vida. O direito humano de ir e vir pode decorrer de funções sociais e econô micas, da relativa melhoria das condições de vida, da fuga de situações de opressão ou de catástrofes ecológicas. Por novas oportunidades abertas e enriquecimento cultural vindo do encontro entre diferentes povos, culturas e religiões. Estes direitos, por mais civilizatórios que possam ser, no século 21, mesmo que consagrados em tratados e convenções internacionais, ainda não são respeitados como direitos de todos. O s motivos são inúmeros, mas, em sua maior parte, têm algum cunho político/ econô mico. Em 2014 , segundo levantamento realizado pela Anistia I nternacional, ao menos em 18 países foram cometidos crimes de guerra, e calcula-se que mais de 3,4 mil pessoas morreram afogadas no Mar Mediterrâneo tentando chegar à Europa, e 4 milhões de refugiados fugiram do con ito na Síria, 95% deles se alojaram nos países vizinhos. Assim mesmo, muitas vezes as fronteiras são fechadas, e essas levas de gente enxotadas até a morte. Em 2011, o número de pedidos de refúgio no Brasil, feito junto à Polícia Federal, foi de 3.5 01. Em 2013, chegaram a 17.9 27. Já em 2014 , somente até o final de julho, as solicitações de abrigo no país estavam em 17.9 03. Até agosto de 2014 , as estimativas eram de que cerca de dez mil novos imigrantes – caribenhos e africanos – estavam vivendo no Rio Grande do S ul. O s haitianos estariam em torno de 7 mil. Depois, a segunda maior comunidade era a do S enegal. Estes povos, em sua maioria, não têm assegurados os direitos de ir e vir pelo simples fato de que isso não pode fazer parte de suas


mais básicas aspirações, uma vez que sequer tem direito de morar, de comer, de ter saúde, de estudar, de trabalhar. No Brasil, os motivos para ainda existirem muitas destas desigualdades, segundo o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do S ul, Jair K rischk e, começam pelo não cumprimento do Pacto I nternacional sobre Direitos, Econô micos, S ociais e Culturais, do qual o país também é signatário de acordo com o Decreto nº 5 9 1, de 6 de julho de 19 9 2. “O Brasil é um dos países signatários da Convenção sobre Refugiados, mas ainda não dá plena vigência a mesma. No âmbito do Ministério da Justiça, funciona com muitas dificuldades, o Conare Conselho Nacional para os Refugiados. O maior problema não é somente a educação, pesa muito nossa cultura escravagista. O país promove a imigração europeia, num processo de substituição da mão de obra escrava, mas também visando o branqueamento da população. Em relação ao Rio Grande do S ul, são mais escancaradas as evidências. Atualmente, o mais emblemático da situação é a chegada dos haitianos e africanos ao Estado”, destacou K rischk e. O utro aspecto importante da história do Brasil foi durante a ditadura militar, quando inúmeras pessoas desapareceram e houve muitos casos de torturas e militantes que foram expulsos do país sem justificativa alguma. O jornalista Cid Benjamin fez parte do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8 ) e foi exilado do país durante dez anos no período da ditadura. Ele relatou o sentimento de impotência. “Minha vida no exílio foi muito diferente, dependendo do momento e do país em que estava. Houve situações de maior dificuldade material e outras, em que tive condições razoáveis. De qualquer forma, a vida de um exilado é muito dura, porque sua cabeça está sempre voltada para a perspectiva de um retorno, o que acaba dificultando a integração no país em que se está. Cada um ficou marcado de uma forma pelo que passou na militância ou na prisão. Evidentemente, teria tido uma vida mais confortável caso não tivesse optado pela militância política na juventude. S e o tempo voltasse atrás, não teria

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assumido todas as posições políticas que assumi, mas não me arrependo do engajamento na política, como opção que norteou a minha vida. Nesse sentido, faria tudo de novo. Tudo o que se relacione com a defesa dos direitos humanos é da maior importância”, revelou Benjamin. As violações dos direitos mais básicos são uma constante em todas as ditaduras de direita ou de esquerda. A restrição da locomoção é estratégia para impedir a uidez de informações, a formação de redes e a capacitação de apoios. Por isso, até hoje são comuns desaparecimentos, execuções extrajudiciais e prisões sem nenhum motivo em muitos países. Vivendo em um mundo de aproximadamente 1 bilhão de famintos, como pensar em direito à locomoção e à residência, se grande parte da população vive na miséria e não tem condições de escolher o lugar da residência ou até mesmo ter onde ficar? Muitos não têm dinheiro para a passagem diária. Então como este direito pode ser estabelecido? As limitações impostas pela pobreza tornaram-se tão banalizadas que alguns direitos fundamentais, dos quais não se fala, acabam parecendo-se com ridículas e líricas abstrações. No entanto, não se pode pensar assim. Não existe uma hierarquização de direitos e todos devem ser respeitados e almejados da mesma forma. A liberdade deve haver sempre. O que não pode se esquecer é a ligação direta entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais. Deve-se continuar denunciando, pressionando os governos, indignando-se e excitando positivamente o planeta com essa indignação. É necessário levar em conta o conjunto de elementos orientadores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e a partir deles combater os problemas da humanidade. O s direitos humanos, inclusive os de livre locomoção, só podem ser assegurados pela geração de uma cultura universal de cidadania. Essa cultura só será possível quando a humanidade souber que tem direitos e, ao mesmo tempo, souber as formas eficazes de luta para alcançá-los e plenamente exercê-los.


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2014 ĂŠ o ano que chegaram mais de 10 mil refugiados no Rio Grande do Sul.


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A S AU D E Texto J ulian Goularte e P am ela Floriano Fotos Ariel Gil ( C ristina) e Steph anie Gom es ( Adelir)


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A maternidade e a infância têm direito à ajuda e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, devem gozar da mesma proteção social.

art.


AD E L I R Adelir Guimarães Lovari é mãe de três filhos. Sofreu violência obstétrica na cidade de Torres (RS), quando, por meio de ordem judicial, teve de realizar uma cesárea contra a vontade.


C R I S TI N A Cristina Bertoni Machado, 37 anos, ĂŠ mĂŁe de Henrique Machado Holz, seis, e de Julia Machado da Rosa, um. O primeiro parto foi normal, e o segundo, humanizado ambos em rede particular.


DE F ATO, NUNCA SABEREI

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Depois da minha segunda cesárea, o médico disse ao meu marido que, caso eu voltasse a engravidar, não deveria realizar outra. Porque na última cirurgia haviam costurado a parede do útero com a barriga. E o risco em abrir novamente era de ocasionar uma hemorragia, o que poderia ser fatal. A terceira gravidez foi surpresa, pois estava tomando pílula. Um dia esqueci e engravidei. Fiquei doida! Estava com dois filhos pequenos e com medo de morrer. Lembrei na hora do que o médico disse e comecei a pesquisar sobre opções de parto. Só tinha escutado falar sobre o humanizado, mas não sabia como era realizado. Por isso, procurei ajuda na internet. Notei que as informações encontradas batiam com as evidências obstétricas que o médico passou para o meu marido. Uma mãe saudável, que tem duas cirurgias, mais de 18 meses de gestação, dá para tentar um parto normal, logo pensei. Fiz o pré-natal normal pelo Sistema nico de Saúde [SUS , no postinho perto de casa. Depois de 30 semanas, eles [m é dicos do postinh o mandaram para o posto central com acompanhamento de obstetra. Nos primeiros acompanhamentos, a doutora e eu tentamos definir o tempo de gestação, mas não tinha certeza do último dia da menstruação, porque estava usando o anticoncepcional contínuo. Então calculamos um dia que seria o da fecundação. Na carteirinha ficou acertada a data, mas não tínhamos certeza se ela estava correta. Depois de oito semanas com o acompanhamento do postão, a médica já queria me mandar para cesárea. Mas eu estava saudável. Indaguei-a, mas tudo era ‘não, não pode’. Alegava que o bebê estava em posição pélvica [q uando os pé s estã o posicionados no canal do ú tero . Avisei-a sobre a orientação do médico da minha última cesárea,


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pedi para procurar o último prontuário. Mas eles nunca procuravam, só sabia que eram cirurgiões. Se eu morresse ali na sala de cirurgia, só seria mais um número. Mas para a minha família ficaria uma marca para sempre. Para eles é assim: se eu morrer vão botar no prontuário ‘morte por hemorragia’ e ninguém vai questionar, vai ser uma coisa normal, pronto, deu! O resultado da ecografia mostrou que o bebê estava pélvico. E a médica continuou insistindo na cesárea. Mas eu estava, teoricamente, com 38 semanas. Argumentei que dava para esperar mais um pouco, que a criança poderia virar, independentemente do tempo de gestação. Declaração reforçada por médicos renomados, que dão palestras no mundo inteiro. ueria chamar aquela médica de burra na cara dela, mas não chamei. Já que não queriam me ouvir, optei em não ir ao pré-natal! Bem, o postinho aqui do bairro entrou em contato comigo para saber o motivo pelo qual parei com o acompanhamento. Expliquei para as enfermeiras que não queria ir, porque só queriam fazer cesárea. E fizemos um acordo, iria ao posto, somente para fazer os exames e para comprovar que estava tudo bem comigo e com o bebê. No dia 31 de março, quando estava marcando 42 semanas, fui novamente até o hospital, dessa vez acompanhada da doula. uando a médica viu que já estava com tanto tempo de gestação, ela me olhou com aquela cara feia. Começou a brigar com a doula e me ameaçou, dizendo que, se eu não fosse para a cirurgia, poderia acontecer alguma coisa e que sofreria uma denúncia na polícia por morte dolosa. Sabia que era o meu direito de grávida esperar pelo trabalho de parto quando o corpo está saudável, mas a médica disse que não era o meu direito. Não estava me negando a fazer cesárea, só queria dar tempo ao meu corpo. Fui levada para a ecografia de urgência, o outro médico olhou o exame e disse que estava tudo normal e ainda deu a nota máxima para o laudo. A plantonista insistiu na cirurgia. Pedi então para ver os documentos, pois queria mostrar a outro profissional, mas ela me negou. Nessa hora já estava com 5 cm de dilatação. Assinei um termo


de responsabilidade e fui para casa. No mesmo dia, uma hora da madrugada, meu marido ouviu barulhos no pátio e viu luzes de carro. uando abriu a porta havia nove policiais posicionados nas saídas da casa, um oficial de Justiça, três enfermeiros e uma ambul ncia. Com uma ordem judicial que me obrigava a ir para o hospital. Meu marido tentou ganhar tempo porque estava com quase 10 cm de dilatação. uando notei que podiam prendê-lo, decidi me ‘entregar’. No caminho para a sala de cirurgia, entreguei a Deus! Pedia que meu marido tivesse sabedoria para cuidar das crianças. Fiz a operação e tudo deu certo. Salvamos pela pequena porcentagem que havia. Devido ao fato de estarmos saudáveis, conseguimos resistir. No dia da alta, recebemos o prontuário sem as imagens do nascimento, o que impossibilita saber se ela nasceu pélvica ou não. Uma enfermeira disse que o primeiro a sair foi o pezinho, enquanto a outra diz que foi a bundinha. De fato, nunca saberei.

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Q UERO UM PARTO NO Q UAL SEJ A PROTAGONISTA Realizei dois partos normais com atendimento pelo plano de saúde. Em 2009, tive meu filho Henrique, por meio de parto normal tradicional, com uso de analgesia, ocitocina e outros procedimentos comuns no Hospital Mãe de Deus, com o acompanhamento da equipe médica e do pai. Em 2014, a Julia nasceu de um parto humanizado, natural, que contou com a presença de doula e do pai, também pelo plano de saúde, no Hospital Divina Providência. Desde sempre, soube que teria meus filhos de parto normal. Nunca pensei em cesariana. Na casa de meus pais, ouviam-se histórias de minha família, da minha mãe, por exemplo, que teve dois partos normais e uma cesariana, quando eu já era grande. Ela teve meu irmão de cesariana quando eu tinha treze anos. Foi uma recuperação tão horrível que ela falava que parto normal doía na hora, mas que, depois que nasceu, é ótimo. Na minha casa nunca se cogitou marcar uma cesariana. No parto normal, procurei um grupo para realizar exercícios voltados a gestantes e acabei optando pela oga. Senti-me em casa, pois era um local onde enfatizavam os benefícios do parto normal. Proporcionou-me sanar questões que ainda possuía. Minha relação com o médico era dada por meio de dois exames de pré-natal e essa interação teve de ser alterada, pois o médico ginecologista me informou, no segundo mês de gestação, que não poderia acompanhar na data provável do parto, pois estaria em viagem e prometeu que iria me indicar outro profissional. Então pedi alguém que fosse a favor do parto normal, que não fosse me levar para cesariana. O doutor substituto não impôs a cesariana, mas incertezas ainda

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O doutor substituto não impôs a cesariana, mas incertezas ainda pairavam em minha cabeça. Não foi algo que chegou a me prejudicar, mas eu tinha certa ansiedade de como seria se passasse das 40 semanas, que ele pudesse me induzir a uma cesárea desnecessária e eu não estaria forte o suficiente para contestar.


pairavam em minha cabeça. Não foi algo que chegou a me prejudicar, mas eu tinha certa ansiedade de como seria, se passasse das 40 semanas, que ele pudesse me induzir a uma cesárea desnecessária e eu não estaria forte o suficiente para contestar. Em minha primeira gestação, tive um pré-natal redondinho e, pelo conhecimento adquirido com o passar dos anos, poderia ter caído em uma cesariana desnecessária. Meu médico era do discurso se der tudo certo, vai ser parto normal’. Enquanto a segunda doutora falava ‘se der alguma coisa errada, aí vai ser cesariana’, não tem porque ser um parto normal. Fiquei muito frustrada no primeiro parto assim, porque também queria um parto mais humanizado, mas achei que a gente ia dar conta e não fosse precisar de doula. Cheguei ao hospital, mandaram que eu ficasse deitada o tempo todo, as dores estavam muito fortes. Pedi analgesia, tive analgesia e dei muita sorte que não me cortaram o períneo e não empurraram minha barriga. Foi sorte, porque com o uso da analgesia tem uma cascata de outras intercorrências, passei o tempo todo deitada, sem poder beber e comer. Depois senti uma certa frustração logo que ele nasceu. Foi lindo, maravilhoso, consegui o meu parto normal e fui lendo e me envolvendo sempre nesse mundo materno. uando me descobri grávida novamente, não quis o parto normal, quero um parto no qual eu seja protagonista, onde eu faça meu filho nascer. Apesar de saber que o plano hoje em dia acaba tendo um volume muito grande de pacientes, e as consultas serem bem rápidas, esses dois foram médicos bem bacanas e me deram acompanhamento legal. Se encontravam sempre disponíveis para tirar as minhas dúvidas, mesmo fora dos horários de consultas.

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LÍDER MUNDIAL EM CESÁ REAS

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O Brasil alcançou, no ano de 2015, o posto de país com o maior número de cesáreas no mundo, segundo dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), sendo o único a ter mais da metade de todos os nascimentos feitos por cirurgia, um procedimento que necessita de anestesia geral. O índice de cesáreas considerado razoável pela OMS é de 15% dos nascimentos, mas no geral 52% dos brasileiros vêm ao mundo por esse método, mais de três vezes o recomendado. São 1,3 milhão de pessoas, o que corresponde quase a cidade de Porto Alegre (1.472.482, conforme o IBGE em 2014). Na rede particular, a porcentagem aumenta: são 80% dos casos envolvendo intervenções cirúrgicas, enquanto que na rede pública não passa dos 30%. Há quatro anos atuando como doula no Grupo Luz da Vida em Gravataí, Ana Luísa Rosa acompanha frequentemente casos de cesáreas e considera preocupante o número elevado do procedimento. “ muito triste ver aonde fomos parar. A cesariana é uma cirurgia altamente invasiva e delicada, que deve ser feita em casos de extrema necessidade, em risco de morte materna ou fetal”, destaca Ana Luísa. Segundo ela, em muitos casos não existe sequer a necessidade de recorrer à cesárea, é uma escolha da gestante que agenda data e horário para o nascimento da criança. Em outros, mães são submetidas a esse tipo de parto sem a sua concord ncia. Mas a preocupação com o excesso de cirurgia desrespeita a saúde da mãe e do bebê. Para o obstetra Ricardo Herbert Jones, referência em parto normal, “o nascimento deve ser o mais humanizado possível, a não ser que uma questão extremamente grave impeça este bebê de nascer pela via natural e fisiológica e uma cesariana se imponha de forma mandatória”. Ele ainda ressalta a situação do país em relação aos nascimentos. “Os abusos de cesariana acabaram banalizando essa cirurgia de forma muito marcante nas últimas décadas. Cesariana deve


ser realizada sempre que os riscos da continuidade de um parto pela via vaginal forem maiores do que os riscos de uma grande cirurgia abdominal, o que acontece em poucas circunst ncias”, afirma Jones. Para Flávia Soares Pinto, obstetra e ginecologista há 25 anos, o parto normal não oferece os riscos inerentes a uma cirurgia. Além de ter uma alta hospitalar mais precoce do que a cesariana. “Um aspecto negativo seriam os riscos inerentes ao parto, o caso de um parto prolongado levando a sofrimento fetal [anó xia ou m á oxig enaç ã o ”, afirma Flávia. O Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aprovaram normas para estimular o parto normal. Uma das principais mudanças se refere ao plano de saúde, que não precisará mais pagar por cesarianas desnecessárias. A partir desse ano, o médico deve apresentar o motivo ou os motivos pelos quais é necessário optar pela cesárea, seja pela saúde da mãe e do bebê ou um caso de parto emergencial. O partograma será o documento no qual o profissional vai reportar todos os motivos da cirurgia, além de conter o boletim médico com informações como contrações e condições do feto. Para Deborah Delage, autora de um capítulo do livro D ireitos H um anos no Brasil 2 0 14: Relató rio da Rede Social de J ustiç a e D ireitos H um anos, como as cesáreas eletivas fora de trabalho de parto, sem indicações precisas, agregam muitos riscos, o partograma pode ser “benéfico”, no sentido de que registrará a ocorrência de trabalho de parto. Entretanto, ela destaca um problema em relação ao partograma: “Os par metros validados até o momento têm sido questionados pela ciência mais recente, pois foram baseados em uma assistência muito intervencionista e necessitam ser revistos”. Caso não haja o documento, o plano pode negar o pagamento. Outra novidade é a Caderneta da Gestante, obrigatória para operadora fornecer todas as informações do pré-natal, que vigora desde o dia 18 de março no Sistema nico de Saúde (SUS).

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52% dos brasileiros vĂŞm ao mundo atravĂŠs de cesareana.


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A E D U C AC AO Texto Alexandre Brasil e M ath eus d’ Avila Fotos Ariel Gil ( Tiag o) e J anaí na M arq ues ( Rosa)


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1. Toda a pessoa tem direito à art. educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito. 2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. 3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos.

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T ia g o Tiago Manfrinio, 28 anos, é casado e tem duas filhas. Vive em Alvorada onde sempre morou e estudou. Cursou os ensinos Básico e Médio em escolas públicas, passando por um colégio municipal e outro estadual.


R o sa

Rosa Cardoso de Oliveira, 73 anos, é casada há 46 e mãe de cinco filhos. Começou a estudar somente aos 59 anos. Hoje sabe ler e escrever e duas de suas filhas se tornaram professoras.


MEU PAI NUNCA ME DEIXOU F ALTAR

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Nasci em Porto Alegre e sempre morei em Alvorada, são 28 anos vivendo no mesmo endereço. Sou filho do segundo casamento do meu pai. uando ele foi casado pela primeira vez, teve seis filhos, e a minha mãe teve dois filhos do primeiro casamento dela. uando nasci, minha mãe tinha 36 anos e meu pai 48. Minha relação com o ele foi meio que de avô. Não fui muito cobrado, ele não era aquele pai que dava porrada, ‘ah tu tens que fazer’. Meu pai era super inteligente. Se eu não me engano, ele tinha até o quinto ano, a mãe acho que foi ao sétimo, oitavo ano. Eles não tiveram estudo, não tiveram oportunidade por causa do trabalho. O que eu tive, eles não tiveram, já tiveram que tocar ficha. Daí já veio o incentivo pelo estudo, do tipo ‘não quero que ele passe o que a gente passou’, acho que é isso entendeu. Como eles já eram de idade avançada, acho que meus irmãos tiveram uma educação mais rígida do que a minha pelo fato de eu ser mais novo. Todos os meus irmãos estudaram, mas nenhum se formou. Não tenho nenhum irmão formado, mas a maioria dos meus irmãos homens tem empresa. Um trabalha como apicultor, vende mel, outro tem empresa de extintor, outro tem construtora, o marido de uma irmã tem uma serralheria. Dois irmãos meus por parte de mãe concluíram o Ensino Médio, e tenho quatro sobrinhos que estão cursando a faculdade, que são da minha idade. Meu pai nunca deixou eu faltar ao colégio. Sempre acordou cedo para me acordar. Podia estar dando temporal, mas tinha que ir para o colégio. Na mente dele, se tivesse um bom estudo, teria uma vida melhor. Desde pequeno ele sempre me puxou, sempre procurou me ensinar antes. uando entrei no colégio, sabia ler, escrever, calcular


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um pouco, claro, o básico para uma criança. Meu pai sempre procurou me incentivar no colégio, nunca deixou faltar nada. O que ele queria de mim era que eu estudasse. Nunca pediu para eu trabalhar. Ele sempre incentivou a estudar porque queria que eu me formasse na faculdade. Estudei no Cecília Meireles [E scola M unicipal de 1º Grau I ncom pleto C ecí lia M eirelles , perto da minha casa. Minha mãe se envolveu muito nos primeiros quatro anos, me colocava em gincanas, ela ia bastante ao colégio. Sempre tirei de letra, assim, nunca foi complicado, sempre passando. Estudei lá do primeiro ano ao quarto, porque os colégios municipais antigamente eram até a quarta série, depois tinha que procurar um colégio estadual para ter da quinta ao Ensino Médio. Tem colégios perto da minha casa que vão só até a oitava, depois teria que trocar para outro, então eles me botaram no centro da cidade, no colégio Castro Alves [E scola E stadual de 1º e 2 º Grau Antonio de C astro Alves , que completava todo colégio. Era no Centro, e eu tinha que ir de ônibus. Uma aventura a mais. uando fui para o outro colégio, tinha uns dez para 11 anos, foi uma liberdade, ia de ônibus sozinho. Mais estruturado que o municipal, era um colégio maior, no centro da cidade. O fato de ir de ônibus me ajudou a não ser muito dependente. Não teve aquilo de minha mãe me levar no colégio ou me trazer. Enquanto estudava, já fazia o que faço. Comecei a trabalhar em marcenaria desde os 13 para 14, estava no Ensino Médio. Nunca tive aquele envolvimento de sair pra baile, sempre me mantive dentro do trabalho e terminando o colégio. Via que, se eu me aperfeiçoasse naquela profissão, ia colher isso mais cedo do que os outros que estavam ali curtindo, saindo. Posso ter errado fazendo isso, mas achei que era o certo. Sempre tive essa mentalidade de correr atrás e querer. Se quero alguma coisa, não descanso, não durmo enquanto não tenho. uando comecei a trabalhar, já sabia o que queria e sabia aonde queria chegar. A minha meta era ser dono de marcenaria. Me pergun-


tavam quando ia abrir a minha, e respondia que não era a hora porque, quando abrisse, não ia fechar mais. Vi que não precisava fazer uma faculdade, porque se tivesse uma, não teria o que tenho hoje. Tem muita gente que fez faculdade e não ganha o que ganho. Escolhi casar cedo porque via que quem casava cedo adquiria mais coisas. Aos 28, tenho minha marcenaria, minha casa, carros. Não tenho um capital de giro alto, vou trabalhando e conquistando. Comecei do zero, não tinha nada, não ganhei herança, não ganhei nenhum dinheiro de prêmio, tudo veio do meu suor, acordar cedo e ficar até tarde trabalhando. Sou casado há dez anos e tenho duas filhas, uma tem 13 e a outra sete. uero que elas se formem, quero encaminhar, formar, uma tem que sair arquiteta e a outra, administradora. Vou direcionar elas de tudo que for jeito pra ser isso. melhor que o teu filho trabalhe pra ti do que pra um estranho, porque ele vai cuidar do que é dele. Elas não fazem nada além de estudar, e vai ser assim até chegar na faculdade. Não posso chegar e dizer ‘tu vai fazer o que eu quero’, não é assim, tu tens que ir contornando, até elas chegarem onde eu quero, porque vai ser um futuro melhor para elas. Não vão precisar concorrer com ninguém na rua por um trabalho, vão ter o trabalho em casa, no que é delas, vai ser delas. Tudo que estou fazendo é pra minha família, como meu pai fez pela dele, possivelmente meu vô deve ter feito e assim... uma coisa meio de berço.

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ME SENTIA CEGA uando não sabia ler, me sentia uma pessoa cega. Fazia tudo, mas não enxergava nada. Só conseguia assinar meu nome. Trabalhei 25 anos costurando em uma empresa, e meu patrão nunca soube que eu não sabia escrever. Depois trabalhei em uma peleteria, costurando roupa de pele por cinco anos. Aí me aposentei e trabalhei por dez anos como voluntária na AACD [Associaç ã o de Assistê ncia a C rianç a eficiente . Foi nessa época que comecei a estudar. Se eu tivesse estudado quando era pequena, talvez recebesse um pouco mais para manter a casa, e meus filhos não precisassem trabalhar tão cedo. Eu botei eles para trabalhar por necessidade, para não aprenderem coisas ruins na rua, e não para me livrar deles. E também porque não podia manter financeiramente. Uma menina de 13 anos já quer o tênis igual o da amiguinha, uma blusinha melhor, e não podia dar, e minhas filhas começaram a pedir. Mas nunca peguei um tostão deles. Nunca. Nem eu, nem meu marido. Eles compravam a roupa que queriam, o sapato, um caderno... Levava eles nas lojas, mas era tudo controlado. Nada para besteira, nada que saísse do orçamento. Eu tinha muita vontade de ser professora, de ensinar aquelas crianças que não tinham como estudar. Se eu desse aula, ia ensinar nos piores locais, para alfabetizar crianças que não tinham condições. Os que mais precisassem, porque tudo depende do ensino. Tenho muita pena dessas crianças. Se eu tivesse mais tempo e dinheiro, ajudaria muita gente. Mas eu não pude estudar, porque minha família era muito pobre. Meus pais trabalhavam na roça, também nunca estudaram. A gente morava no mato, era muito longe da escola. Tinha que caminhar uns 14 quilômetros para ter aula, e a minha mãe e meu pai não podiam nos levar, porque tinham que trabalhar para sustentar a gente.

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uando tinha seis anos, minha mãe ia para roça e deixava eu e minha irmã fazendo renda. uando ela chegasse, quem tivesse acabado podia brincar. Com oito anos, fui trabalhar na casa de uma professora, mas ela nunca me deu oportunidade de estudar. Fiquei dois anos morando nessa casa. Ela era muito má comigo. O inverno era muito frio, e eu só recebia comida. Não recebia roupa, chinelo, nada. Ela tinha uma filha da minha idade, e a gente aprontava quando a dona Ivone [prof essora saía para dar aula, e quando ela voltava, ficava muito braba. Um dia, eu estava lavando roupa em uma cachoeira e escapou um lençol. Fui correndo pegar o lençol. Um senhor que morava perto me viu, pulou na água e me salvou, porque iria morrer afogada. Ele me levou de volta para casa da dona Ivone. Ela me xingou um monte, bateu em mim. No outro dia, encontrei um vizinho da minha mãe e pedi que ele avisasse ela que a dona Ivone estava judiando de mim e que eu queria ir embora. Na manhã seguinte, meu pai me buscou. Fiquei 15 dias em casa e outra professora veio me buscar. Ela era uma pessoa muito boa. Criei quatro filhos dela. Ela era boa para mim, mas nunca me colocou na escola ou me aconselhou que eu tinha que ir para aula. Nessa fiquei 15 anos saí quando ia casar. Foi quando vim para Porto Alegre, em 1969. O meu marido estava trabalhando há um ano em um supermercado aqui. Mas ele começou trabalhando na roça também. Estudou só até a terceira série. uando meus filhos já estavam formados e eu não precisava mais trabalhar, resolvi começar a estudar. Meu marido não queria, dizia que estava louca. Fui por minha conta, fiz minha matrícula e fiquei uns quatro anos no Colégio Mesquita. Precisei parar de estudar por cinco anos porque tive um problema nas cordas vocais. uando trabalhava na AACD e na empresa de couro, trabalhava com muitos produtos químicos, éter, tíner, cola, e tive uma alergia muito forte. Precisei fazer fono na Santa Casa. Faz uns três anos que voltei a estudar. Hoje já sei ler e escrever. Foi bem difícil aprender. Antes de aprender, me sentia muito mal. Hoje me sinto mais confiante, me sinto mais livre.


Sempre fiz questão que os meus filhos estudassem. Todos acabaram o colégio. A mais velha foi fazer vestibular em Santa Catarina, começou a namorar, casou, hoje tem dois filhos. O meu guri também fez o Ensino Médio, daí disse que ia ser caminhoneiro. o que ele gosta. As outras três foram para faculdade. Uma se formou em Educação Física, outra em Pedagogia, a mais nova está fazendo Fisioterapia. Mas eles sempre tiveram que trabalhar para poder estudar. Ver eles se formarem foi a maior emoção da minha vida, porque tinha muito medo de não poder dar educação aos meus filhos. A gente não ganhava nada de ninguém, mas também nunca roubou nada. A gente explicava para os filhos que para viver bem não precisava roubar, só ser honesto. E deu tudo certo. Agora não me preocupo nem com os netos, porque já sei como eles vão ser criados. Talvez errei quando procurei emprego para os meus filhos, mas trabalhava fora e deixava quatro crianças em casa, mais duas filhas da vizinha. Saía de uma empresa onde trabalhavam mais de 150 pessoas, e aí chegava em casa era aquela bagunça. Tu ficas louco. Um dia, fui levar elas na dentista, e a doutora perguntou se eu não queria emprestar a minha filha, só para atender o telefone, mais nada. Eu deixei. Só que estava sempre em cima, controlando, vendo como ela estava. Nunca larguei de mão. A gente era pobre, não deixava faltar comida, mas os meus filhos também tiveram que trabalhar. Agora estou realizando um sonho de criança. Eu queria ter uns 10, 12 anos, para ir até o fim. Hoje já estou com 73 anos. Tenho que cada dia viver o dia que ganho.

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Q UALIDADE PARA POUCOS

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Desde a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “o Brasil teve uma trajetória na educação de avanços significativos”, considera o professor da Faculdade de Educação da PUCRS Afonso Strehl, doutor em Educação. A legislação brasileira em relação à educação foi evoluindo, inicialmente contemplando o acesso e culminando no Ensino Básico atual. De acordo com a legislação brasileira, a educação tem inspiração “nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O primeiro passo para atender ao direito à educação para todos foi a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), projeto encaminhado ao Legislativo Federal em 1948 e publicado apenas em 1961, que previa, entre outras coisas, obrigatoriedade de matrícula nos quatro anos do ensino primário. Em 1971, ocorreu uma reforma importante na LDB, transformando o Ensino Primário, ginásio e secundário em 1º grau e 2º grau. “Em 1971, com a obrigatoriedade de um 1º grau de oito anos, o horizonte da escolarização no Brasil começou a se ampliar”, salienta Strehl. Em 1996, foi sancionada a LDB atual, na qual o país passa a compor a Educação Básica com a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Em 2009, tornou-se obrigatório o ensino dos quatro até os 17 anos de idade. Para Strehl, “em termos de legislação, o Brasil supera a maioria dos países, mesmo os da Europa, que não têm esta obrigatoriedade”. Nos primórdios da colonização, a maioria da população brasileira era analfabeta. No Império, as taxas de alfabetização ficavam em torno de 10%. No final do século 19 chegaram a 18%. Em 1950, a taxa de alfabetização no Brasil era de 49,4%. Hoje, segundo dados do IBGE, mais de 91% da população está alfabetizada. Os últimos dados do censo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), de 2014, mostram que na Educação Infantil há mais de 7,8 milhões de matriculados, número que vem aumentando nos últimos anos. Porém no


Ensino Fundamental, as matrículas estão reduzindo, baixando de mais 30 milhões em 2005, para pouco mais de 28,4 milhões de matriculados. No Ensino Médio, baixou de 9 milhões para 8,3 milhões. A matrícula no Brasil entre crianças e adolescentes, de 7 a 14 anos, está acima de 97%. Na Conferência Mundial de Educação, em Jomtien, Tail ndia, em 1990, foi aprovada a Declaração Mundial sobre Educação Para Todos, da qual o Brasil participou, tendo como principal objetivo o compromisso de os países oferecerem as suas populações acesso universal pelo menos à educação primária. Dez anos depois, em uma nova edição da conferência, em Dakar, no Senegal, foi feita uma avaliação das propostas de 1990, e o relatório mostrou que muitos países ainda estavam longe dos objetivos estipulados. Foram então definidas seis metas a serem alcançadas para o ano de 2015: expandir a educação e os cuidados na primeira inf ncia, especialmente para as crianças mais vulneráveis alcançar a educação primária universal, particularmente para meninas, minorias étnicas e crianças marginalizadas garantir acesso igualitário de jovens e adultos à aprendizagem e a habilidades para a vida alcançar uma redução de 50% nos níveis de analfabetismo de adultos alcançar a paridade e a igualdade de gênero e melhorar a qualidade de educação e garantir resultados mensuráveis de aprendizagem para todos. Os resultados do Relatório de Monitoramento Global (RMG), produzido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), mostram que apenas metade de todos os países atingiu o objetivo que contempla o acesso universal à educação primária. No Brasil, quatro metas não foram atingidas, mas o problema não passa pela LDB. “Em termos de legislação, política e matrícula na educação básica, o Brasil está bem” afirma Strehl. “O que é de se questionar é a qualidade do ensino prestado. Temos universalização em termos de matrícula, mas todos documentos, da ONU, de Dakar, da Tail ndia, falam de qualidade de ensino, não só o acesso.” O professor Enio Manica, coordenador do departamento de Educa-


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ção do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (CPERS), concorda com Strehl e afirma que “a qualidade deixa muito a desejar. No discurso, a educação é prioridade, mas, na prática, não é”. O déficit de qualidade parece ser consenso entre os especialistas e também entre os rankings de avaliação. No ranking mundial da educação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), divulgado em maio de 2015, o Brasil aparece na 60 posição entre 76 países avaliados. Para resolver esse problema, o país vem aumentando os investimentos. Em junho de 2014, foi sancionado o novo Plano Nacional de Educação (PNE), que prevê a utilização de 10% do PIB na educação até 2024. Atualmente, cerca de 6% do PIB é destinado à educação. Para Manica, o investimento é imprescindível: “Para ter uma educação de qualidade, a escola tem que ser bem estruturada, com biblioteca, e todas novas tecnologias que hoje são importantes, e para isso precisa de recursos”. Também é necessária, segundo ele, a valorização do profissional da educação. “O professor tem que trabalhar manhã, tarde e noite. ual o tempo que ele vai ter para se aperfeiçoar, para preparar as aulas, para corrigir os trabalhos?”, questiona Manica. O país vem dando passos importantes no avanço por uma educação melhor, mas ainda tem um longo caminho a percorrer. Para vivermos em uma nação onde os Direitos Humanos sejam plenamente respeitados, o acesso ao ensino de qualidade é fundamental, como lembra o professor Manica. “A educação é essencial para o desenvolvimento do ser humano, inclusive para ele conquistar todos os outros direitos. Um povo consciente, com uma educação de qualidade, crítica e emancipadora, vai lutar muito mais por seus direitos”, conclui.


97% das crianças e adolescentes estão matriculadas no Brasil.


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AO T R A B A L H O Texto Bruna Goulart e L ucas de O liveira Fotos C aroline Ferraz


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Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social.

art.


A n d r e ia Aos 4 3 anos, Andreiá Rodrigues Borges trabalha há dois como empregada doméstica com registro na carteira profissional. A formalização do trabalho permitiu aumento no tempo de contribuição do INSS.


Fe rnan d a Fernanda Rabelo é transexual, tem 26 anos e é natural de Porto Alegre. Há oito anos trabalhando como prostituta, a profissional do sexo revela que encontra dificuldades por não possuir uma renda salarial fixa.


ESTA PROF ISSÃO DEVE SER RECONHECIDA

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Foram 15 anos de trabalho sem a carteira assinada. Se todo esse período fosse registrado, agora teria mais tempo de contribuição no INSS. Hoje, estou com 43 anos e há dois tive minha situação profissional regularizada. Sou empregada doméstica e posso garantir que não é um serviço fácil, nem é todo mundo que sabe fazer bem feito. Sempre gostei de limpeza, chega a ser mania. Minha mãe já dizia: ‘Louça na pia e cama revirada é sinal de casa suja’. Meu primeiro trabalho foi aos 12 anos como babá, em São Gabriel, onde nasci. Ajudava nas despesas da casa e por isso estudei só até a terceira série. Depois trabalhei como auxiliar de cozinha num restaurante até iniciar na profissão de doméstica. Durante esse tempo todo, percebi que ainda tem muita gente que não respeita as empregadas, não cumprem com nossos direitos, agora garantidos por lei. Sinceramente, nem sei se todas estão recebendo os benefícios dessa legislação. No meu caso? Ah, sim! Hoje posso dizer que sou valorizada, mas antigamente não me sentia assim. Quando essa regra [P roposta de E m enda C onstitucional, aprovada em 2 0 13 , q ue prevê a am pliaç ã o dos direitos trab alh istas e a f orm aliz ação da profissão de empregados domésticos foi aprovada, tive minha carteira profissional assinada e passei a ter direito a férias, décimo terceiro salário e horário de intervalo. Posso dizer que estou satisfeita com meu trabalho. Foi uma conquista merecida, pois esta profissão deve ser reconhecida. Antes tinha muita dificuldade para adquirir bens em meu nome, pois não era possível comprovar renda. Meu salário é de R 1,2 mil. Trabalho das 8h às 16h em Porto Alegre, mas como moro em Alvorada. Saio cedo de casa, pois gasto até duas horas com deslocamento. Faz dois anos que estou neste


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emprego. Sou responsável pela limpeza geral do apartamento e, se precisar, até cozinho. Além da minha patroa, que é médica, uma vez por semana faço diária na casa do pai dela, que fica no mesmo condomínio, portanto consigo levar por fora mais R 600. Tive a carteira assinada logo na contratação. Antes disso, trabalhei durante 15 anos em uma casa, mas sem registro, pois era diarista, ia apenas duas vezes durante a semana. Meu sonho sempre foi ter a minha própria casa e consegui realizar. Meu esposo e eu dividimos as despesas. uando recebo visitas, geralmente as pessoas perguntam o motivo de a sala ficar junto da cozinha, pois é aqui que passo a maior parte do tempo quando estou em casa. Neste ano, pretendia viajar para Santa Catarina, mas usei o dinheiro para reformar alguns cômodos e ainda falta: quero fazer uma churrasqueira, rebocar as paredes e, claro, trocar o meu carro. Tenho um filho de 13 anos, o Br an, que está na escola. Ele ainda não sabe o que fará no futuro, mas está louco para arrumar um emprego. Sempre digo a ele que apenas trabalhando é que a gente aprende o valor das coisas. uando recebi o meu primeiro salário, ainda adolescente, comprei um sapato. Nesta época, todo o dinheiro que recebia entregava nas mãos da minha mãe. Hoje em dia, trabalho tanto, tanto, que não tenho vontade de voltar a estudar. Acho que não teria paciência



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AH, F OI UM POUCO TRAUMATIZANTE As pessoas nos veem como alguém vulgar, uma coisa ambulante que não se cuida, sabe? Acho que se a prostituição fosse regularizada, a marginalidade sobre nós ia diminuir. Eu teria uma estabilidade, poderia fazer um financiamento, comprovar renda. Seria um avanço. Já estou há oito anos neste ramo e penso, sim, em parar. Atendo em casa, mas principalmente na rua, e minha renda mensal pode chegar a R 6 mil. uando era cabelereira num shopping, vivia rodeada de preconceitos. Foi bem na época em que decidi aumentar as doses de hormônios e, a cada dia que passava, ficava mais feminina, até que o meu chefe ficou incomodado com a minha nova forma e me demitiu, alegando corte de gastos. Logo soube de uma agência de garotas, através de um anúncio no jornal. A proposta era simples: dos R 40 que ganhasse por programa, a metade ia para a agenciadora e o restante ficava comigo. Mas depois de um tempo, percebi que valia muito mais a pena trabalhar por conta. Aí fui parar na rua. Mas ainda estava infeliz com a minha aparência, pois meu cabelo não era comprido, tinha barba e pesava quase 100 quilos. O primeiro programa? Ah, foi um pouco traumatizante. Estava com roupa de mulher e o cara me levou para um drive- in. Era um homem casado, mais velho e, quando chegamos ao local, ele quis vestir a minha calcinha. Lembro que ele falou: ‘tira a tua calcinha’. Fiquei surpresa, e o programa acabou não rolando. Até então, morava com a minha mãe, de 63 anos, no centro de Porto Alegre. Ela é a única pessoa que me apoia. Não tenho contato com meus irmãos e meu pai jamais me aceitou como sou. uando me estabilizei como prostituta, dei um gás nos procedimentos para mudar ainda mais a minha aparência. Coloquei silicone nos glúteos e nos seios, fiz preen-

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chimento no rosto, lipoaspiração e abdominoplastia [procedim ento cirúrgico para remover o excesso de pele e gordura do abdômen . Daí fiquei como realmente sempre quiser ser: uma mulher. Sinceramente, penso que quem não precisa fazer programa não faz. Tem alguns clientes que são grosseiros. Certa vez tomei uma atitude radical diante de um homem. Ele me tratou muito mal durante todo o programa, ficou jogando na minha cara que precisava me sujeitar, estar ali. Fizemos o sexo, ele me deixou no ponto e, quando desci do carro, rasguei as notas de dinheiro e joguei no para-brisa. ‘Tá aqui o teu dinheiro, porque eu não preciso tanto como você pensa’. Ele não esperava a minha reação e, sinceramente, nem eu. Se a minha profissão fosse regulamentada, não tenho dúvidas de que a minha vida seria muito mais fácil em alguns aspectos. Há vezes em que preciso sair, comprar um móvel ou eletrodoméstico, mas como não possuo renda fixa, fica difícil parcelar. Isso não aconteceria se eu tivesse uma assinatura na minha carteira de trabalho, que por sinal consta aproximadamente uns três anos de registro dos outros empregos que tive. Os riscos da minha profissão são diversos. Certa vez, quando estava fazendo ponto nas imediações da Avenida Farrapos, um homem colocou um revólver na minha cabeça e levou a minha bolsa. Tinha uns R 300, maquiagem, celular e as chaves do meu apartamento. Numa outra ocasião, um homem de moto passou olhando e debochando. Perguntei se tinha cara de palhaça. Daí ele puxou uma pistola e apontou. Mesmo assustada, disse: ‘Olha, pode atirar, mas se tu quiser a gente pode fazer um programa bem gostoso. Ele acabou me deixando em paz’. Meu trabalho é informal e me vejo como autônoma. Tenho Ensino Médio completo e penso em fazer faculdade de Enfermagem. Tive outras profissões como atendente de lanchonete e operadora de telemarketing. Como garota de programa, cheguei a pagar o INSS durante dois anos. Até o final deste ano penso em parar de me prostituir. Já tenho um dinheiro guardado e meu sonho é abrir a minha própria estética.


Estava com roupa de mulher e o cara me levou para um drivein. Era um homem casado, mais velho e, quando chegamos ao local, ele quis vestir a minha calcinha. Lembro que ele falou: ‘tira a tua calcinha’.

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PERIGOS DA INF ORMALIDADE

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O direito ao trabalho está garantido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como sua consolidação sem qualquer discriminação salarial ou outro aspecto. A realidade brasileira, no entanto, mostra que ainda existem profissões distantes da formalidade necessária para o acesso aos direitos estabelecidos por lei. O cenário atual do país contabiliza 68 profissões regulamentadas, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego. Nesta perspectiva, a regulamentação da prostituição pode se tornar realidade. Em julho de 2012, o deputado federal Jean ll s (PSOL-RJ) protocolou o Projeto de Lei (PL) 4211 12, que visa regulamentar a atividade dos profissionais do sexo (considera-se profissional do sexo toda pessoa maior de 18 anos e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração) e combater o crime de exploração sexual contra crianças e adolescentes. Além de desmarginalizar a profissão e garantir direitos trabalhistas, o texto pretende diferenciar prostituição de exploração sexual. Atualmente, os artigos 228 e 231 do Código Penal utilizam a expressão “prostituição ou outra forma de exploração sexual” sem distingui-las, o que torna ambas marginalizadas e não fiscalizadas pelas autoridades competentes. Segundo a coordenadora-geral da bancada do PSOL na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Luciana Genro, a aprovação do projeto fará com que essa profissão seja reconhecida. “Os profissionais do sexo poderão ter os direitos trabalhistas assegurados e não serão explorados por cafetões que praticamente os escravizam diante da falta de proteção que eles têm dos poderes institucionais. Além disso, esse projeto possibilitará que diminua a violência e também a discriminação que eles sofrem na sociedade”, afirma Luciana. Diferentemente do Brasil, a prostituição já é legalizada e regulamentada em oito países europeus: Holanda, Alemanha, ustria, Suíça, Grécia, Turquia, Hungria e Letônia. Embora o projeto do deputado Jean ll s possibilite uma discussão


social sobre o tema da prostituição, o que permite avanços significativos no combate ao preconceito e à discriminação, Luciana acredita que “a proposta está fadada a ter uma longa tramitação, mas ao mesmo tempo é elemento importante para quebrar um tabu e propor um diálogo de forma mais aberta”. Não existe uma mensuração exata quanto ao número de prostitutas no país, pois elas exercem a atividade na informalidade. O mesmo vale para as casas de prostituição, uma vez que a grande maioria atua de forma clandestina. O Código Penal brasileiro considera prostituição e exploração sexual como uma prática sem distinções, o que pode explicar a dificuldade em estabelecer essas estatísticas. Por outro lado, quando o assunto é prostituição, inevitavelmente, é fundamental o reconhecimento da exploração sexual de menores de idade e também o tráfico nacional e internacional de pessoas a Organização Internacional do Trabalho (OIT) também não apresenta um levantamento completo a respeito. Um recente mapeamento da Polícia Rodoviária Federal apontou que o Brasil possui quase 2 mil pontos de prostituição. Esse número é referente apenas às rodovias federais, uma vez que não foram consideradas as rodovias estaduais. O mapeamento começou a ser feito em 2003, e hoje são 1969 pontos. Para o advogado trabalhista Maurício T kalo itz, não há interesse nem dos trabalhadores do sexo e nem das casas de prostituição de que esse projeto seja aprovado. “Nenhum profissional do sexo vai querer assinar carteira porque, por exemplo, quando o lugar onde a prostituta trabalha fizer feriadão, ela vai optar ir para outra casa nesse período, mas não será possível, pois possui um vínculo empregatício com quem assinou sua carteira profissional. Além disso, as casas não querem pagar os impostos PIS, INSS, entre outros”, explica o advogado. O projeto que regulamenta o sexo como profissão existe desde 2012, não tem prazo para ser regularizado e aguarda aprovação do parlamento. Em contrapartida, ainda na pauta dos direitos do homem ao trabalho, uma discussão ganhou destaque em abril de 2013, com a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 66, conhecida como PEC das Domésticas. Trata-se da equiparação dos direitos trabalhistas dos

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empregados domésticos aos dos trabalhadores formais. Integram a categoria dos trabalhadores domésticos: empregado, cozinheiro, governanta, babá, lavadeira, faxineiro, vigia, motorista particular, jardineiro, acompanhante de idosos, caseiro, entre outros. Após dois anos da promulgação da PEC, foram assegurados 16 direitos para a categoria: salário mínimo, proteção ao salário, jornada de 44 horas semanais, hora-extra, normas de higiene, saúde e segurança, recolhimentos dos acordos e convenções coletivas, proibição de discriminação de salário, de função e de critério de admissão, proibição de discriminação à pessoa com deficiência, proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 16 anos, seguro-desemprego, FGTS, salário-família, adicional noturno, seguro contra acidente de trabalho, auxílio-creche e pré-escola e indenização em demissões sem justa causa. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 7,2 milhões de trabalhadores domésticos. No entanto, a Organização Internacional do Trabalho aponta que, mesmo após a promulgação da PEC, apenas 30% dos profissionais deste ramo estão na formalidade. O advogado trabalhista justifica esse dado pela falta de conhecimento dos direitos que possuem e pela falta de fiscalização do Estado. “A Delegacia Regional do Trabalho tem a obrigação de autuar os patrões que não estão cumprindo a lei”, declara T kalo itz. De acordo com o especialista, a aprovação da PEC representa um começo para a igualdade dos direitos trabalhistas dessa classe. “Para os trabalhadores é uma conquista. Já os patrões acreditam que a aprovação foi ruim, pois aumentou em mais de 50% o valor que eles pagavam às domésticas, e por essa razão muitos contratarão diaristas para realizar o serviço doméstico de agora em diante”, afirma.


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30% dos empregados domĂŠsticos trabalham na formalidade no Brasil.


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A O V OT O Texto Bruna Viesseri e Vivian Salva Fotos Alexandre A. Kupac


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art.

1. Todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; essa vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.


Fernanda

Fernanda Melchionna, 31 anos, é uma das cinco vereadoras da Câmara Municipal de Porto Alegre. Após romper com o Partido dos Trabalhadores (PT) em 2003, se filiou ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).


Theresinha Theresinha Figueras Sisson , 89 anos, é dona de casa. Viúva, nasceu em Porto Alegre. Vota desde 1946, quando o voto da mulher se tornou obrigatório, há quase 70 anos.


A GENTE OUVIA E ACEITAVA, NÃO EXISTIA DISCUSSÃO

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Nasci em 1925 e casei com 22 anos, em 1947. Mas o que posso dizer sobre política? Naquela época, a gente era focada em outras coisas. A mulher não se interessava como hoje em dia, quando todo mundo está mais ou menos por dentro das coisas, principalmente desse assunto. Sou filha de estrangeiro, fui a primeira brasileira na família. Quer dizer, o pessoal tinha outras ideias. Vinham de outros países então não participavam muito aqui. E naquele tempo não se tinha tanta conversa com os pais como hoje em dia. A criança não tomava muita participação nas conversas dos adultos. A gente ouvia e aceitava, não existia discussão. Claro, a gente ouvia falar de política, lia jornal e tudo mais, mas não tinha maiores ideias a respeito. Fui acompanhando as coisas como foram acontecendo. Quando o voto da mulher se tornou obrigatório, fiz meu título. Tinha 21 anos e era 1946. Mas não lembro muito do dia em que fui tirar o título, não era algo que parecia fazer muita diferença na minha vida naquele momento. É como eu disse: o pessoal tava em outra. Lembro que assinava o Correio do Povo e saiam notícias sobre o voto da mulher. Bom, dá pra ver como uma conquista? Sim, elas conquistaram, né? Não deixou de ser uma vitória. Mas não fazia muita diferença na vida da época. Hoje não é mais assim. Até pra trabalhar, pra estudar, o pessoal tá por dentro. Hoje isso é meio exigido agora, estar informado. O mulherio cresceu, né? Tá tomando conta de tudo! Pode ser que as coisas melhorem. Mas até agora não melhorou muito, pelo que se vê. Acho que mulheres na política só fazem diferença se forem honestas, se forem corretas. Se forem realmente focadas em alguma coisa que preste, acho que só pode melhorar. Mas vejo como uma conquista



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importante, sim. Porque se a gente faz alguma coisa errada, a gente também paga, né? Então tem que votar também, acho que faz diferença, sim. Da minha família só sobrou eu agora. Faleceu todo mundo. Só eu fiquei, e não sei o que eu tô fazendo aqui ainda. Não repara, sempre fui muito brincalhona. Lá em casa, o meu bisavô era francês, meus pais eram espanhóis, meus irmãos eram uruguaios, eu nasci no Brasil e agora tenho um bisneto norueguês. Quer dizer, cada um nasceu num lugar e ninguém se parece com ninguém. Aí uns anos depois teve a ditadura [1964-1985]. A gente acreditava nos absurdos que diziam e ficava apavorada. Foi um período meio escuro na questão de informação. Depois voltei a votar. Mas até hoje não acertei nenhuma votação. Lembro que naquela época não tinha urna eletrônica, claro, então eles chamavam a gente pra ir votar. Tinha que tirar uma ficha com alguns números. Votava-se primeiro e se assinava depois. Aí se recebia um comprovante e deu. Agora é um pouquinho diferente. Acho que é mais rápido só. Hoje também tem mais candidatas mulheres. Vejo isso mais de uns 15, 20 anos para cá, antes era muito difícil. Mas igualdade entre homem e mulher só vejo quando é pra ser rival um do outro. Pode até ter quando as ideais são iguais, os interesses são os mesmos. Mas quase nunca são, né? Tenho duas netas e elas estão sempre por dentro, até porque isso é mais presente hoje em dia, seja para estudar ou trabalhar. Fala-se mais de política. É bem diferente. Essa juventude de agora se interessa mais por isso. Na nossa época, a gente tinha outros pensamentos, isso não era algo que se conversava, se pensava. Eram decisões que não diziam respeito à realidade que a gente tinha. Não me criei nesse meio, falando disso. Era assunto de adulto. Mas acho muito importante que tenha mudado, é uma evolução. Fiquei meio descrente de tudo, sabe? Mas continuo votando até hoje.



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NÃO BASTA SER MULHER Eu me tornei militante social com 14 anos, mais ou menos naquela época das privatizações no governo Britto [1995 - 1998], quando vivemos uma onda neoliberal das estatais. O pessoal do grêmio estudantil do Colégio Sévigné passou nas salas convidando pra participar de um protesto e, depois disso, fui em várias palestras e leituras que me fizeram ver que a gente deveria lutar dentro dos movimentos contra as injustiças. Muitas meninas participavam dessas manifestações, mas, de um modo geral, existe um hiato na participação política das mulheres. A maior parte dos líderes de associações são mulheres, mas, do ponto de vista social, na concepção machista que temos, a mulher trabalha, cuida da casa, dos filhos e, com essa jornada tripla, não consegue se inserir mais na política. Fui militante do PT quando o PT ainda era petista, há muito tempo. Quando comecei a fazer faculdade na Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRGS], encontrei o movimento estudantil e, nesse meio tempo, já participava da ferramenta política. Em 2002, participei ativamente da eleição do Lula e foi um balde de água fria quando ele resolveu governar com as elites. Depois, a Luciana Genro foi expulsa, compondo o grupo das chamadas ‘radicais do PT’, e eu me senti expulsa também. A Luciana sempre foi uma referência pra mim. Comecei a simpatizar com ela porque acho que a gente tem que ser coerente na política, coerente com a defesa dos direitos humanos, nem que isso signifique, como significou no caso dela, a expulsão do PT. Depois, foi fundado o PSOL, no que as mulheres sempre foram os carros-chefes da organização do partido. O pessoal participou de três eleições, duas foram com candidatas mulheres pra disputar a ideia de que a gente pode mudar as coisas. Vendo pela perspectiva histórica, as mulheres conquistaram muito, embora a gente ainda viva numa sociedade extremamente desi-


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gual. Gente, olha a luta que foi poder tomar pílula anticoncepcional, a ideia de que a gente não servia só para reprodução! Li uma matéria naquele ‘Há 100 anos no Correio do Povo’, tinha a história de uma mulher que foi presa pela terceira vez por defender o voto feminino, tinha ficado não sei quantos dias presa e chamavam-na de histérica, questionando se ela não sabia que os maridos já podiam votar. Vi que vai demorar quatro gerações para as trabalhadoras equipararem o seu salário com o dos homens na mesma função. Oitenta anos? Nós não vamos esperar 80 anos, vamos lutar até lá pra ter os mesmos direitos salariais. A gente é 51% da população e menos de 9% nos parlamentos. Já conquistamos bastante coisa, mas falta muito! Precisamos ter leis para as minorias, que, na verdade, são minorias em relação ao acesso a direitos. Existe a cota para mulheres nos partidos, mas é importante que a gente possa ter uma mudança dentro da estrutura deles para garantir a participação feminina. No PSOL, já aprovamos 50% de cotas pras mulheres na direção partidária. A gente tem muito orgulho de ter uma das nossas principais figuras públicas mulheres como a Luciana Genro, mas, mais do que isso, a gente tem que ir empoderando o conjunto das mulheres militantes pra que a gente possa, de fato, mudar essa lógica. Sempre repito, não basta ser mulher, tem que estar do lado certo. O que tem de mulher conservadora que luta contra os próprios e que luta contra os direitos sociais do povo e dos trabalhadores. Olha a Yeda, primeira governadora do Rio Grande do Sul, mesmo a Dilma, a primeira presidente mulher do Brasil, o que, do ponto de vista da história é interessante, mas, ao mesmo tempo, as verbas de políticas de proteção às mulheres são ínfimas. Sinto preconceito na política, não falo muito, mas sinto. São coisas simbólicas, que muitas vezes passam despercebidas. Comigo, levantou a voz, levanto também, não tem muito assunto. Tem alguns que falam grosso com a gente, mas, quando é com homem, falam fininho, bem pianinho. Nas reuniões sempre tem um: ‘Ah! Como é bonita a vereadora!’ Mas eu não tô aqui pra concurso de beleza, é política, vamos seguir o debate. Chegou ao cúmulo de, em 2009, um


vereador fazer um projeto de lei de como as mulheres tinham que se vestir. Era um projeto pra mim. Ele se incomodava com as minhas roupas, ele queria que as mulheres usassem terno, porque ‘não sabiam lidar com a representação de uma mulher, jovem, de esquerda dentro do plenário’. Então, na minha resposta na Tribuna, vesti uma gravata. Todo mundo foi parando, silêncio total no plenário e ironizei a situação, disse que se ele achava que a solução para os problemas da cidade era uma gravata, eu vestiria uma. Me chamar de histérica, isso aí eu não aceito. Estão falando há 200 anos contra nós, e as nossas atitudes podem enfraquecer essa lógica machista. Tem a ver com o perfil, eu não me intimido.


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MAIORIA NA POPULAÇÃO, POUCA VOZ NA POLÍTICA

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Hoje, passadas mais de oito décadas, as cidadãs brasileiras ainda lutam por mais espaço na política. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), entre as eleições de 2010 e 2014, verificou-se um aumento de 46,5% na candidatura de mulheres no país e, dentre os 25 mil candidatos do ano passado, 30% eram do sexo feminino. Foi em 1932 que o voto feminino começou a valer no Brasil, através do decreto 21.076 do Código Eleitoral Provisório. As mulheres autorizadas a votar deveriam ser casadas, com o consentimento do marido, viúvas ou solteiras com renda própria. Em 1934, as restrições foram eliminadas, mas, ainda assim, o voto era facultativo. Apenas em 1946 o voto foi dado como obrigatório e estendido a todas as brasileiras. Com exceção do Rio Grande do Norte, que foi o primeiro Estado brasileiro a permitir que a população pudesse votar e ser votada sem distinção de sexos, ainda em 1928. Um ano depois, foi lá, também, que foi eleita a primeira prefeita do Brasil, Alzira Soriano, pelo Partido Republicano. Em 2010, em um momento histórico, Dilma Rousseff, do Partido do Trabalhadores (PT), foi a primeira presidenta eleita do Brasil, com 56% dos votos válidos contra 43,95% de José Serra, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Dilma ainda foi reeleita em 2014 com 51,6% dos votos válidos contra 48,36% de Aécio Neves (PSDB). Segundo o cientista político Rodrigo Gonzalez, nem em 2010 ela foi eleita somente pelo apoio do Lula, nem em 2014 ela se elegeu sozinha. “Na primeira eleição, o Lula simbolizava o partido e tinha em mãos o resultado econômico, e Dilma obteve sucesso, também, graças à ação política do partido. Na reeleição, a presidenta apresentou seus próprios resultados, mas, deve-se considerar, que a diferença na porcentagem foi menor”, aponta. Segundo Gonzalez, em 2010, ela tinha o passado do Lula e um futuro a oferecer, em 2014 ela tinha o próprio passado. “Ser mulher interferiu, sim, na imagem dela na


política, como uma pessoa forte, uma mulher guerreira, não é qualquer mulher. Na reeleição, ela não fez uma campanha com bandeira feminista e sim com resultados do Partido dos Trabalhadores e de sua própria capacidade”, explica. A Justiça Eleitoral prevê entre 30% e 70% de candidatos de cada gênero por partido, mas não é o que acontece na prática. As mulheres não chegam a 9% dos cargos parlamentares, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral. Além disso, o Brasil ocupa o 156º lugar, em um total de 188 países, em relação à representação da mulher no Poder Legislativo. Para estimular o crescimento desses números, a Justiça Eleitoral incentiva a causa com a campanha Mulher na Política, lançada em março de 2014. Gonzalez afirma que os partidos preferem reduzir o número de candidatos para ter uma porcentagem menor de candidatas nas eleições, ou, colocam mulheres do seu círculo familiar. Em maio de 2015, a bancada feminina pediu apoio do TSE para ampliar a participação das mulheres na política. Dentre as propostas em tramitação no Congresso Nacional, as escolhidas como prioritárias foram a que transforma os 30% de cotas em candidaturas por cotas em cadeiras ocupadas por mulheres e a que destina 30% dos recursos partidários às candidaturas femininas. Para a jornalista Gabriela Loureiro, que integra o Think Olga, um grupo de pesquisas que propõe debates sobre a situação da mulher no mundo, um dos principais motivos que mostram a importância da presença feminina na política é a representatividade da mulher. “Hoje temos 74 milhões de eleitoras no país que vão eleger um Congresso praticamente 90% masculino, com poucas opções de candidatas em relação a candidatos”, explica. Para Gonzalez, o gênero não é um fator fundamental na escolha do representante. Ele argumenta que, mesmo o Brasil tendo 52% de eleitoras, isso não define o quadro político atual. E questiona: “Uma mulher negra se considera representada por uma mulher branca, ou, considera que um homem negro a represente melhor?” Gabriela ainda aponta que ter mais mulheres no poder não significa necessariamente ter mais propostas voltadas a essa parcela da


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população, mas que há mais chances de pautas femininas ganharem espaço. “O projeto de lei que visa a despenalização do aborto é um exemplo disso. Se a votação pública que está na Internet agora fosse levada em conta, e os brasileiros em geral tivessem o poder de decidir essa questão, já teríamos a resposta. Se as mulheres pudessem decidir sobre seu próprio corpo então, nem se fala”, argumenta. Até agora, os resultados do projeto sobre o aborto mostram 60% de aprovação, sendo a maioria dos votos feitos por mulheres. “Mas nós vivemos em uma democracia representativa, em que 90% desses representantes são homens e muitos deles empresários. E eles não querem largar o osso”, acrescenta. Otimista, Gonzalez complementa: “A perspectiva é de melhora, também na política, visto que as mulheres já são maioria no ensino superior, com a tendência de uma mudança pela competência no mercado de trabalho.” Para a vereadora de Porto Alegre Jussara Cony (PC do B), toda e qualquer conquista feminina na política é fruto da luta das mulheres. Ela lembra das sufragistas, que iniciaram a luta pela participação feminina na política, inclusive como eleitoras, mas ainda não conseguiram a igualdade nas instâncias políticas e de poder. “Hoje a luta é por mais mulheres no poder para transformar a sociedade porque mais mulheres na política, no poder, hoje, significa mais emancipação”, diz Jussara.


9% dos cargos legislativos no Brasil sĂŁo ocupados por mulheres.



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