exP Revista Experiência Famecos PUCRS Dezembro 2015
Margens ameaçadas Um dos mais poluídos do Brasil, o Rio Gravataí sofre com o descaso da população e do governo
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Carta ao leitor
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e agosto a novembro, os alunos da disciplina de Redação e Produção em Revista dedicaram-se a apurar e redigir reportagens especiais. Extensas e aprofundadas, elas demandaram mais tempo de apuração e esforço direcionado à construção de um texto rico em informações e, ainda assim, de boa compreensão. O resultado do trabalho dos jovens jornalistas das turmas da manhã e da noite está distribuído nas páginas seguintes, por diferentes editorias e sob as mais variadas perspectivas. Já no início da revista, você pode encontrar um panorama da educação superior no Brasil, desequilibrada entre o excesso de vagas no setor privado e a saturação no público. Agravado pela crise econômica, o cenário apresenta distintos programas de financiamento como alternativa para que os estudantes não tenham de abrir mão da carreira com a qual sonham. Outro problema da atualidade é a privacidade virtual, tema destrinchado pelo repórter Alexandre A. Kupac. Publicado em uma rede social, o registro de um happy hour com os colegas de trabalho, por exemplo, pode significar, para empresas de tecnologia, negócios milionários baseados em informações pessoais do usuário. Mas nem só de tecnologia vive a sociedade. A comunidade de Minas do Camaquã, em Caçapava do Sul, virou um distrito fantasma após o fim das atividades mineradoras. Entrevistados pelo repórter Guilherme Almeida, os morado-
res descrevem a vida solitária na região, mantida com zelo pelas dezenas de famílias que restaram no lugar. A conexão entre o homem e a natureza que o cerca também é retratada na reportagem de Carla Tesch sobre o Rio Gravataí. Diretamente relacionado à vida da população da região, o rio é considerado o quinto mais poluído do país. Ainda assim, enfrenta a negligência dos moradores e do governo. Em seguida, uma história de superação aponta o prestígio do gaúcho Ricardo Steinmetz Alvez, que já foi considerado duas vezes o melhor do mundo no futebol para cegos. A trajetória do craque, que perdeu a visão ainda criança, é descrita pelo repórter Vitor Rosa. As necessidades especiais também são foco da matéria de Christian Montanha, que aborda a moda inclusiva e os profissionais que produzem peças para deficientes físicos. No cenário atual, que começa a aceitar o conceito plus-size, os estilistas entrevistados são símbolos de inovação. Assim como os pesquisadores e apreciadores, você pode se surpreender com as propriedades medicinais do vinho na reportagem de Laura Schneider. Surgida na Antiguidade, a bebida ainda não teve seus benefícios totalmente desvendados pela ciência. O conteúdo da Revista Experiência está ao seu alcance, caro leitor. Resta a você devorá-lo. Boa leitura!
Dimitria Prochnow
expediente
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
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Faculdade de Comunicação Social (Famecos) Reitor: Joaquim Clotet Vice-reitor: Evilázio Teixeira Pró-reitora Acadêmica: Mágda Rodrigues da Cunha Diretor da Famecos: João Guilherme Barone Reis e Silva Coordenador do curso de Jornalismo: Fábian Chelkanoff Thier
Realização da disciplina de Redação e Produção de Revista Professores responsáveis: Aline Custódio e Luiz Antônio Araujo (texto), Flávia Quadros (fotografia), Luiz Adolfo Lino de Souza (projeto gráfico).
Alunos: Dimitria Prochnow, Guilherme Almeida, Cristina Fragata, Laura Schneider, Luciano Kaminski, Vitor Rosa, Carla Tesch, Carlos Müller Villela, Cristiano Duarte, Julli Massena, Lucas Vidal Domingues, Alexandre A. Kupac, Christiane Luckow, Otávio Daros, Marina Rosa, Renata Pias, Maria Eugênia Bofill, Bethânia Helder, Marcelo Garcia, Deyves Goulart, Julian Rodrigues, Gabriel Bocorny Guidotti, Vanessa Carvalho, Laura Azevedo, Carolina Hickmann, Tiago Decker Medeiros, Christian Montanha e Lucas de Oliveira.
Avenida Ipiranga, 6681, Prédio 7 Porto Alegre, RS. Brasil. www.pucrs.br/famecos
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32 MARGENS AMEAÇADAS Responsável pelo abastecimento de mais de 1 milhão de pessoas, o Rio Gravataí sofre com o descaso da população e do governo
Carla Tesch
Luciano Kaminski
NESTA EDIÇÃO
CAPA
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SUPERAÇÃO NO ESPORTE
TERAPIA ANIMAL
Futebol de cinco, disputado em quadra adaptada para cegos, é levado muito a sério no Brasil. O melhor jogador do mundo é um gaúcho de Osório
A troca de carinho entre humanos e animais cresce como opção de tratamento para pacientes com diferentes necessidades
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O PODER DO VINHO
Cristina Fragata
Tiago Decker Medeiros
Laura Schneider
Descobertas sobre as propriedades da bebida não param de surpreender comunidade científica e interessados no tema
84 COLOCANDO A CARA A TAPA Conhecido como garoto-propaganda da cerveja Polar e vocalista da Video Hits, Diego Medina mostra sua multiplicidade de talentos artísticos
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SOBROU VAGA As mudanças no ensino superior brasileiro resultaram num quadro em que a alta densidade na busca por vagas convive com 2 milhões de matrículas não efetivadas TEXTO E FOTOS: DIMITRIA PROCHNOW
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epois de fazer diferentes vestibulares por três anos consecutivos, Débora Hütten, 23 anos, foi aprovada no curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2014. Embora já tivesse alcançado a pontuação necessária para ingressar em uma universidade particular nos anos anteriores, persistiu até entrar na pública: “Primeiro, pela questão do dinheiro. Depois, pela minha família, que sempre prezou faculdades federais. E, por último, por saber que eu podia vencer o processo seletivo pra cursar o que realmente queria”. A competitividade do vestibular quase mudou o rumo da carreira de Débora e é um exemplo que mostra a saturação do sistema de ensino superior público. De acordo com o Ministério da Educação, em 2013, as instituições federais de ensino superior aceitaram um número de ingressantes maior do que o de vagas ofertadas. Por meio do exame desses dados, uma conclusão possível seria de que, de maneira geral, há maior demanda que oferta de vagas nesse sistema. Registros do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inepe) mostram, porém, que não é bem assim. Um levantamento do Inepe indica que, em 2013, o sistema de ensino superior brasileiro ofereceu mais de 5 milhões de vagas – e recebeu 3 milhões de ingressantes. Ainda que o número de inscrições tenha sido superior a 13 milhões, ou seja, duas vezes maior que a oferta, cerca de 2 milhões de vagas não foram preenchidas. Uma das possíveis explicações para esse dado é a expansão do ensino superior brasileiro, principalmente no setor privado. O mesmo levantamento aponta que, juntas, as instituições particulares ofereceram quase 4,5 milhões de vagas, enquanto as públicas somaram pouco mais de 530 mil. Por um lado, a alta capacidade de admissão das instituições privadas é uma boa notícia: significa um investimento na infraestrutura acadêmica do país, com mais espaços de estudo, mais vagas, mais alunos, mais educação. Por outro, nem todas as novas instituições contam com um nível alto de qualificação. Um dos diretores do Sindicato dos Professores de Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro-RS), o professor Sani Cardon afirma que “muitas instituições têm viés mercantil, estão em busca de alunos pra dar conta dos seus ganhos, mas não se preocupam muito com a qualidade”. Ainda que a competição seja acirrada, o objetivo principal da maioria dos estudantes continua sendo a universidade pública. Embora tenham oferecido menos vagas, as públicas somaram 7 milhões de candida-
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As instituições particulares ofereceram quase 4,5 milhões de vagas, enquanto as públicas somaram mais de 530 mil turas, e as particulares, 6 milhões. A consequência desse índice aparece antes mesmo do ingresso, no vestibular. A densidade para aprovação no curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no ano passado foi de 57 alunos por vaga. A preferência, muitas vezes, é resultado da tradição familiar. Para Natália Mainardi, 20 anos, é importante seguir à risca os passos dos tios. “Meus dois dindos se formaram em Medicina em universidades públicas, e é isso que pretendo fazer”, afirma. “Mesmo com a aprovação em uma particular, vou continuar tentando.” Muitas vezes o reconhecimento no campo profissional e o prestígio das universidades públicas superam as críticas, majoritariamente relacionadas a greves, falhas de infraestrutura e insegurança dos campus. Esses problemas são menos recorrentes em instituições particulares, embora o valor das mensalidades seja inacessível para grande parcela da população. De acordo com os dados, é possível perceber que as universidades públicas, ainda que mais disputadas, concorrem diretamente com as instituições particulares. Em Ijuí, por exemplo, foi aberto um edital para selecionar a universidade responsável pela administração de uma nova faculdade de Medicina. A medida faz parte do Programa Mais Médicos, que autorizou a abertura de mais de 2 mil vagas para alunos de medicina em 10 Estados do país. Cerca de 10% das vagas serão cobertas com bolsas para alunos de baixa renda. A instituição que venceu o edital não foi a Unijuí, pública não-estatal criada há 50 anos no município e que conta com uma estrutura de ensino multicampi na região, e sim a Estácio de Sá, universidade de nível nacional que não tem nenhuma instalação na cidade. A Associação Brasileira de Universidades Comunitárias (Abruc) apresentou uma representação administrativa ao Conselho Nacional de Educação (CNE) contra o edital, com base no argumento de que foi autorizada a participação de ins-
tituições de ensino superior que não têm credenciamento para disputar oferta do curso de medicina. Em nota oficial sobre o caso, a Estácio de Sá afirma: “Estar entre as instituições com possibilidade de realizar a oferta de Medicina em Ijuí nos enche de orgulho e justifica toda uma trajetória dedicada à excelência de ensino. E recompensa os investimentos que sempre fizemos, por exemplo, nas parcerias com hospitais públicos e conveniados para oferta de estágios clínicos em unidades do SUS”. Procurada pela reportagem da Revista Experiência, a assessoria disse que a Unijuí não se manifestará sobre o assunto. Ciente de que o sistema público não tem espaço para todos os candidatos, o governo disponibiliza dois grandes serviços de assistência: o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). “Se não houvesse possibilidade de pagamento completo da mensalidade, com certeza não faria o curso”, afirma Volney Ferraz, 21 anos, aluno do último semestre de Ciências Aeronáuticas na Pontifícia Uuniversidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e bolsista integral do Prouni. De acordo com Ferraz, nenhuma universidade pública no Estado oferece formação acadêmica em Ciências Aeronáuticas: “A única luz que vi para seguir o meu sonho de ser piloto foi essa bolsa. Se não tivesse conseguido, teria ido pra outra área”.
É nacional Em 2013 , a Universidade de São Paulo (USP), disponibilizou cerca de 11 mil vagas, disputadas por quase 160 mil inscritos. O mesmo ocorreu na Universidade Federal do Pará (UFPA), que no ano seguinte ofertou 5,6 mil vagas, às quais concorriam mais de 134 mil estudantes. Sobraram apenas 10 vagas após o processo seletivo, que foram remanejadas internamente e, então, preenchidas. Um dos motivos apontados pela UFPA para o não preenchimento inicial é a criação da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), a partir do desmembramento do campus da UFPA em Marabá. A redução foi de aproximadamente mil vagas entre os anos de 2014 e 2015. DEZEMBRO 2015 EXP 7
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Em instituições públicas de ensino, como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, há competição por vagas em todas as áreas Nem todo mundo consegue a cobertura total dos custos da formação. Para Amanda Lottermann, 25 anos, cursar Odontologia na PUCRS só foi possível com a ajuda do financiamento parcial do Fies. “Todos os meses, há despesas como luvas, toucas e materiais, que são gastos à parte da mensalidade. Sem o Fies não teria condições de pagar tudo”, relata. Ainda que o custo seja alto, Amanda não se arrepende: “A formação é melhor do que eu esperava”. Para concorrer à bolsa do Prouni ou solicitar auxílio do Fies, é necessário que o estudante apresente comprovante de baixa renda ou Ensino Médio cursado integralmente em escola pública. O problema aqui é que há milhões de brasileiros que não se encaixam nos requisitos e não têm recursos para bancar a universidade particular. Esse é o caso de Claudia Rodrigues, 23 anos, estudante de Medicina da PUCRS. Durante três anos, a jovem fez vestibulares para universidades públicas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, e a aprovação não aconteceu. “Vi que, psicologicamente, não ia aguentar um quarto ano de cursinho, e resolvi que encontraria um jeito para pagar a particular”, diz ela. Atualmente, Claudia cursa o sexto semestre com auxílio de um financiamento feito por uma associação particular que oferece serviços previdenciários. A associação arca com o pagamento de metade da men-
“Com a redução do Fies, o financiamento universitário passa a ser algo bem interessante para os bancos.” Romário Davel, consultor financeiro
salidade, e a outra metade quem paga é a avó. A solução dos problemas de Claudia foi possível porque “nesse tipo de financiamento não é necessário comprovante de baixa renda, é um compromisso com o estudante.” O financiamento pode ser a chave para a formação acadêmica, mas exige planejamento, cautela e responsabilidade. Para o consultor financeiro Romário Davel, da Hoper Educação, um dos principais erros dos financiados “é o baixo comprometimento com a dívida estudantil, que é normalmente mais barata que outras linhas, como a de cartão de crédito, por exemplo”. A crise econômica que apertou o orçamento público neste ano atingiu também os programas de auxílio universitário. “Com a redução do Fies, o financiamento universitário passa a ser algo bem interessante para os bancos, volta como uma grande oportunidade de negócio”, afirma Davel.
SP no topo A média nacional em 2013 foi de 98.138 ingressos por Estado. Sob essa perspectiva, o Estado com o pior desempenho foi Roraima, que registrou 8.330 novos estudantes. A primeira posição no ranking foi ocupada por São Paulo, que recebeu 782.791 alunos – quase um terço do total de admissões realizadas no país. Bem abaixo do primeiro lugar, mas acima da média, está o Rio Grande do Sul, que acolheu 161.353 alunos, sendo a grande maioria na rede privada de ensino.
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ENSINO SUPERIOR em números
7.305.977
Alunos matriculados
2.742.950 ingressantes
81%
Rede privada
2.391 instituições
60% dos concluintes foram mulheres
2.090 Rede privada
0,34% dos alunos tinham necessidades especiais
19%
Rede pública
301 Rede pública
1.298 matriculados tinham entre 70 e 79 anos
*Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) relativos ao ano de 2013.
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UM DISTRITO ÀS MOSCAS Depois do fim das atividades mineradoras, grande parte dos moradores da localidade de Minas do Camaquã abandonaram o lugar, que resiste com pequena, mas zelosa população TEXTO E FOTOS: GUILHERME ALMEIDA O que sobrou do progresso do passado aminhar pelas ruas de Minas do Camaquã, distrito de Caçapava do Sul, a 300 quilômetros de Porto Alegre, causa estranheza. Em um vilarejo quase sem moradores desde 1996, quando as atividades das minas locais se encerraram e muitas famílias abandonaram o distrito, há pouco movimento nas ruas, muita poeira do chão batido e algumas vacas soltas. A sensação de solidão é instantânea e inevitável. A igreja está quase sempre trancada. O hospital, abandonado. O Cine Rodeio, antigo cinema de madeira com aparência de velho galpão, foi corroído pelo tempo. As casas estão vazias ou em ruínas. E, mesmo quando se atravessa a avenida central do vilarejo, o cenário não muda ao longo de um quilômetro. Há grandes espaços de
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campo aberto, poucas casas e raríssimas pessoas circulando. No auge da atividade mineradora, Minas do Camaquã teve mais de 6 mil moradores, mas com o fim da exploração de cobre, grande parte dos habitantes abandonou o lugar, que se tornou um vilarejo quase fantasma. Hoje, o pequeno distrito tem menos de 400 moradores e raro comércio. Mas já teve seus dias de glória. Em 1865, o coronel João Dias dos Santos Rosa, dono de boa parte da região, encontrou pedras verdes em suas terras. Ao mostrá-las aos ingleses que garimpavam ouro em Santo Antônio das Lavras (atual Lavras do Sul), constatou-se que eram pedras de cobre. A partir daí, começou a epopeia mineira, dando origem à fundação de Minas do Camaquã.
Cinco anos depois, os ingleses constituíram uma empresa chamada The Rio Grande Gold Mining Company Limited, e no ano seguinte, em 1871, abriram uma galeria na encosta leste do vilarejo, começando a mineração na conhecida Galeria dos Ingleses. Em 1887, os ingleses encerraram as atividades mineradoras. Um ano depois, os alemães abriram uma galeria na face norte da vila, onde exploraram a mineração durante 11 anos. No mesmo ano, investidores belgas fundaram a empresa Societé des Mines de Cruive de Camaquam, com sede em Bruxelas, na Bélgica, e com filial no Brasil, destinada à exploração do cobre na região. Uma galeria foi aberta em 1901 no lado oeste do lugarejo, que ficou conhecida como Galeria dos Belgas.
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da cidade são centenas de casas sem moradores, cinema sem público e até um hospital vazio, num cenário que invoca desalento De 1908, quando os belgas encerraram suas atividades nas minas, até 1942, não houve empreendimentos de exploração em Minas do Camaquã. A lacuna de 34 anos se encerrou em setembro de 1942, quando foi fundada a Companhia Brasileira do Cobre – CBC, empresa criada pelos governos estadual e federal e por Francisco Pignatari, lendário milionário conhecido como Baby. A CBC foi extinta em 1996. Com o aumento da mineração, Baby Pignatari iniciou obras pelo vilarejo. Uma capela, uma escola, um hospital, um cinema e casas para moradia foram construídas para melhorar as condições sociais. Na mesma época, foram abertas duas novas galerias para mineração, a mina a céu aberto e a galeria subterrânea da mina Uruguai.
Além do cinema abandonado, trilhos e vagonetas da mineração são vistos pelas ruas DEZEMBRO 2015 EXP 11
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Hoje apicultor, o ex-minerador Aneci guarda nos pensamentos as histórias dos tempos gloriosos da mineração no velho distrito
“Isso aqui é quase um paraíso. Posso morar afastado, tranquilo, crio e planto boa parte do que preciso para sustento meu e de minha esposa.” Aneci Vargas Pereira, ex-minerador
Natural do vilarejo, Aneci Vargas Pereira, 66 anos, garante não trocar o lugar por outra região. O senhor de riso fácil trabalhou em diferentes funções ao longo da vida: foi agricultor, criador de animais e explorador nas minas de cobre na era CBC. “Entrei na mina pela primeira vez aos 19 anos, e trabalhei lá com a mineração até os 26”, recorda. Aposentado e casado há 38 anos, o velho morador vive no campo, afastado do vilarejo por cerca de 12 quilômetros. Para chegar à casa dele é preciso enfrentar chão batido, esburacado e cheio de pedras. Para o próprio consumo, cria bois e ovelhas, planta frutas, verduras e legumes. E para ampliar a renda se tornou apicultor. “Isso aqui é quase um paraíso. Posso morar afastado, tranquilo, crio e planto boa parte do que preciso para sustento meu e de minha esposa”, explica Aneci. Ele vai a Minas do Camaquã uma vez por mês, para vender mel e comprar mantimentos. “Sou apaixonado por Minas do Camaquã, nunca tive vontade de sair daqui. Moro longe e já trabalhei fazendo de tudo, mas daqui não saio porque é minha paixão”, afirma o ex-minerador.
Criar animais espanta a solidão de Aneci
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Galeria dos Alemães (1888 - 1889)
A mina a céu aberto, explorada pela CBC, funcionou de 1942 até 1996
Galeria dos Belgas (1901 - 1908)
Para incentivar o turismo na região de Minas do Camaquã, foi fundada a Associação dos Moradores da Guarita, em 1999. Ela está localizada a 12 quilômetros do vilarejo, em meio a profundos vales e enormes rochas, conhecidas como guaritas. É nessa região que foi gravada a série Animal, do canal GNT, aproveitando as paisagens locais. O mesmo cenário serviu para o filme Valsa para Bruno Stein. A casa construída para as filmagens foi cedida à associação e pode ser visitada. Esses moradores, que também se identificam como um “grupo de desenvolvimento de turismo”, têm como principal objetivo valorizar a comunidade como ponto turístico. “Tentamos tornar os poucos moradores da região das guaritas mais
unidos e, ao mesmo tempo, conscientizálos sobre a preservação do ambiente”, relata Jorge Luis Dias, 44 anos, responsável pela associação, criador pecuarista e neto do coronel João Dias, fundador de Minas do Camaquã. O grupo fazia caminhadas e trilhas ecológicas pelos vales entre as guaritas mas, por falta de segurança e trabalho especializado, preferiu cancelar os passeios. A Associação oferece hoje atividades gastronômicas para grupos estudantis e turísticos no Galpão Crioulo, localizado no terreno da Associação dos Moradores da Guarita. As refeições contam com comidas típicas da região, incluindo uma especialidade da região, o cordeiro desossado – que é assado inteiro, sem ossos, por três horas.
Galeria Uruguai (1942 - 1996)
Poço do Elevador (1942 - 1996)
No Galpão Crioulo, visitantes podem saborear cordeiro desossado, iguaria da região DEZEMBRO 2015 EXP 13
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A vira-latas Faith é a atração principal das sessões de Pet Terapia na Kinder Centro de Integração para Crianças Especiais
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terapia E Amor INCONDICIONAIS A troca de carinho entre humanos e animais cresce como opção de tratamento para pacientes com diferentes necessidades TEXTO E FOTOS: CRISTINA FRAGATA
uando Karina entra na sala acompanhada por Faith, os olhos distraídos das crianças brilham de alegria. A vira-latas de pelo escuro, enfeitada com um laço rosa, logo conquista a atenção da turma. Alunos com problemas motores se concentram para retribuir os movimentos dela. Outros esforçam-se para chamá-la pelo nome, apesar das dificuldades para articular a fala. A presença de Faith na sala transforma instantaneamente o comportamento das crianças. Assim começa mais uma sessão de Pet Terapia na Kinder Centro de Integração para Crianças Especiais. A história da relação de afeto entre homens e animais é tão antiga quanto a das próprias espécies. Quando conseguiram olhar para o outro e ver mais do que alimento, humanos e bichos formaram um laço que se perpetuaria por gerações. Na Europa do século 19, o potencial desse antigo vínculo começou a ser explorado no tratamento de pessoas com deficiência. Essa é uma das possíveis origens da pet terapia, técnica que busca promover mudanças comportamentais em pacientes com diversos tipos de necessidade, com o auxílio de animais. A cena que se repete toda semana nas
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salas da Kinder e sintetiza o poder dessa relação secular é protagonizada pela psicóloga Karina Schutz, acompanhada, alternadamente, por cães, coelhos e calopsitas. “Algumas crianças são mais dadas ao toque, outras são mais dadas ao cheiro. Cada uma tem a sua particularidade, e o contato com o inusitado faz com que elas percebam que têm autonomia”, explica. Os alunos já elegeram seus terapeutas favoritos. Na primeira posição está Phanton, um imponente e simpático pastor branco. O segundo lugar é de Faith, uma carinhosa cadela sem raça definida. No coração de Karina, todos os pets, considerados como filhos, situam-se na primeira posição. Enquanto os colegas da escola se divertiam com a leitura dos quadrinhos da Turma da Mônica, Karina devorava as edições da revista Cão & Cia. Fascinada pelo comportamento dos amigos de quatro patas, a psicóloga que, na infância, sonhava ser veterinária encontrou na profissão uma maneira de unir duas paixões: ajudar pessoas através do carinho dos bichos. Ainda como estudante de psicologia, passava horas na biblioteca cruzando dados que indicassem os benefícios da inclusão de animais no tratamento de pacientes. DEZEMBRO 2015 EXP 15
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Ao final da sessão, Faith descansa no estacionamento da Kinder, como os funcionários chamam a área coberta onde ficam as cadeiras de rodas dos alunos Formada, Karina dedicou três anos no exterior ao estudo e à observação de técnicas de treinamento. De volta ao Brasil com conhecimento para treinar e sensibilizar animais, escolheu investir seu tempo em trabalhos voluntários de pet terapia. A visibilidade gerada pela iniciativa da psicóloga levou à expansão da atividade, hoje patrocinada por empresas e instituições. Como o cão guia, que enxerga pelo deficiente visual, a Terapia Assistida por Animais (TAA) e as Atividades Assistidas por Animais (AAA) propõem que eles auxiliem pacientes com transtornos psicológicos, atuando como guias emocionais. Confiança, respeito e tranquilidade são algumas das características emprestadas pelos bichos aos que se conectam com eles. As diferentes abordagens exigem treinamentos distintos. Os animais de assistência passam por um adestramento básico, voltado para a socialização com
crianças e idosos. Os de terapia, por um longo período de adestramento – que tem início nos primeiros dias de vida. As raças mais indicadas para a pet terapia são as de temperamento tranquilo e boa capacidade de aprendizagem, como Labrador Retriever, Golden Retriever e Border Collie. O padrão de comportamento desses cães, geralmente versáteis e obedientes, faz deles os favoritos dos treinadores. Profissionais como Karina não acreditam no trabalho com raças específicas. “Comparada à Phanton, selecionado ainda na ninhada, Faith é um cão melhor para as atividades”, afirma. Faith, a vira-latas, encontrou a dona e parceira de trabalho na porta de casa, durante a noite. Aos seis meses, a cadelinha se juntou à família e hoje é companheira indispensável nas sessões administradas pela psicóloga. Mais do que comandos e truques, para usar o colete de
terapeuta o cachorro precisa ter um perfil de carinho, afeição e doação. No consultório de Martina Sbrissa Bertolin, especialista em Terapia CognitivoComportamental (TCP), residem quatro ajudantes: Mayla e Pipa, duas doces labradoras; Alemão, um inteligente Border Collie de olhos azuis; e Will, uma calopsita com carisma à altura dos seus colegas caninos. Todos eles participam da rotina do consultório e ajudam Martina com a difícil tarefa de conquistar a confiança dos pacientes – autistas, na maioria. Segundo Martina, um cão de terapia custa em torno de R$ 35 mil. O treinamento tem início com uma seleção dos filhotes. Os treinadores observam o comportamento de cada um, especificamente o caráter e a capacidade de interação com o restante da ninhada. O cachorro com facilidade de socialização e reação a estímulos é selecionado para o adestramento básico.
“Algumas crianças são mais dadas ao toque, outras são mais dadas ao cheiro. Cada uma tem a sua particularidade, e o contato com o inusitado faz com que elas percebam que têm autonomia.” Karina Schutz, psicóloga
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r$35mil é o custo de um cão treinado para facilitar a rotina de um autista Durante esse período, o cão aprende a responder a comandos e reagir a situações comuns na futura rotina, como conviver com cadeiras de rodas e crises convulsivas. Em seguida, o animal é introduzido no consultório, acompanhado de outros mais experientes. Com a popularização da pet terapia no Brasil, a prática conquistou mais do que adeptos. Alguns se consideram fãs. É o caso de Fabíola Oscar. Ela é mãe de Paula Vitória, aluna da Kinder e portadora de Síndrome de Lennox-Gastaut, condição que provoca crises convulsivas de difícil controle. Paula participa das sessões de pet terapia há um ano e, como resultado, desenvolveu maior carinho e respeito pelos bichos. Para Fabíola, a técnica também estimulou a curiosidade da filha: “Na rua, Paula está mais atenta, buscando o contato com os animais com os quais convive”. Em casa, Paula Vitória pode contar com a ajuda do amigo Aslan. A calopsita da família tem três anos e está habituada à rotina da casa. Além de assumir o papel de despertador de João, filho adolescente de Fabíola, o passarinho, apesar de não ter passado por treinamentos específicos de sensibilização, auxilia a mãe quando as crises convulsivas ocorrem. “Se eu não estou por perto e a Paula entra em crise, o Aslan percebe e me chama”, relata. Antes de completar um ano, Paula teve suas primeiras convulsões. Muitas internações e medicamentos mais tarde, foi diagnosticada com um tipo raro de epilepsia da infância. A dificuldade para identificar a patologia faz com que os dados sobre a incidência da síndrome de Lennox-Gestaut sejam imprecisos. Ao longo da infância, a menina chegou a ter 30 crises por dia. O número elevado de crises fez com que Paula deixasse de frequentar a escola regular. Há um ano, sua vida mudou com uma nova possibilidade de tratamento, o CBD (canabidiol), um dos 60 compostos da Cannabis Sativa. Mesmo derivada da maconha, a substância não causa altera-
Aslan não abandona o ombro de Paula, enquanto ela assiste aos seus programas favoritos
“Calopsitas podem estimular a integração social e a motricidade em crianças e idosos.” Martina Bertolin, psicóloga
ções comportamentais. Para Paula Vitória, foi a chance de uma nova vida. As crises diminuíram para seis a cada semana. Paula começou a frequentar a escola, dessa vez em um lugar preparado para atender às suas necessidades: a Kinder. Aslan tem menos trabalho, mas continua cuidando da dona com carinho. Não deixa o ombro dela desamparado enquanto ela faz o lanche ou assiste a programas infantis. A troca entre humanos e animais, do toque ao olhar, explica o sucesso da pet terapia. Vestir o colete que os identifica como terapeutas não é mera figura de linguagem. O carinho traduzido em palmas e gritos das crianças, diferentemente do que sugere o senso comum, é plenamente compreendido pelos bichos, que respondem com uma delicadeza quase clínica. Observar os resultados da presença deles na vida dos pacientes demonstra que a empatia transgride questões de espécie. DEZEMBRO 2015 EXP 17
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e origem histórica incerta, o vinho
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foi cultuado por civilizações e religiões nos séculos antes de Cristo. Representou o deus Dionísio entre os gregos, as conquistas dos romanos, a riqueza para os egípcios e o próprio sangue de Cristo para os cristãos. Sua utilização, porém, não se limitou a ritos e diversão. Desde a Antiguidade, pensava-se que a bebida — muitas vezes misturada com ervas e outras substâncias — possuía propriedades medicinais. Mesmo com o passar dos anos, a imagem de bebida refinada e terapêutica não se perdeu. O processo de fabricação do vinho foi aprimorado, e seu poder atraiu interesse científico e da população em geral. O consumo foi difundido não apenas à mesa: o vinho virou aliado dos que buscam qualidade de vida, prevenção de doenças e a juventude do corpo.
Descobertas sobre as propriedades da bebida não param de surpreender comunidade científica e amadores TEXTO E FOTOS: LAURA SCHNEIDER e origem histórica incerta, o vinho foi cultuado por civilizações e religiões nos séculos antes de Cristo. Representou o deus Dionísio entre os gregos, as conquistas dos romanos, a riqueza para os egípcios e o próprio sangue de Cristo para os cristãos. Sua utilização, porém, não se limitou a ritos e diversão. Desde a Antiguidade, pensava-se que a bebida — muitas vezes misturada com ervas e outras substâncias — possuía propriedades medicinais. Mesmo com o passar dos anos, a imagem de bebida refinada e terapêutica não se perdeu. O processo de fabricação do vinho foi aprimorado, e seu poder atraiu interesse científico e da população em geral. O consumo foi difundido não apenas à mesa: o vinho virou aliado dos que buscam qualidade de vida, prevenção de doenças e a juventude do corpo.
D Vinhos tintos contêm maior quantidade de taninos, polifenóis importantes para o corpo
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Entre 1980 e 1993, a Organização Mundial da Saúde (OMS) realizou uma pesquisa internacional conhecida como Projeto Monica, destinado ao acompanhamento de enfermidades cardiovasculares. O objetivo era estudar a incidência de doenças coronarianas — associadas às artérias, vasos que levam sangue oxigenado do coração e expostos a problemas cardíacos como o infarto — na população. Curiosamente, levando-se em consideração a dieta rica em alimentos gordurosos e elevado índice de fumantes, dois conhecidos fatores de risco para doenças cardiovasculares, a população da França apresentou apenas um terço da ocorrência dessas doenças em relação aos americanos. Esse fato ficou conhecido como “paradoxo francês”. A expressão ganhou repercussão a partir de novembro de 1991, após a apresentação do programa 60 Minutes, da rede de TV norte-americana CBS. Serge Renaud (1927-2012), cientista francês especializado em doença cardiovascular, afirmou durante o programa que o vinho tinto consumido diariamente pelos franceses era uma das fortes explicações para o baixo índice de doenças coronarianas e aumento da expectativa de vida. A pesquisa de Renaud pode ser encontrada na íntegra no endereço migre.me/s16bt. O impacto dessa informação foi tão grande que coincidiu com o crescimento do mercado consumidor de vinho nos Estados Unidos no ano seguinte.
40%
foi o aumento pela procura da bebida em 1992 nos EUA Mesmo com o sucesso entre o público leigo, o paradoxo não teve unanimidade na comunidade científica. Já no número seguinte do periódico The Lancet, onde havia sido publicada a pesquisa de Renaud, apareceram cinco artigos que criticam o trabalho. Um dos autores argumenta que não se convenceu nem quanto ao efeito benéfico do álcool, nem quanto à diferença de ingestão da bebida entre cidades francesas e de outros países. O texto também levanta a hipótese de que o alto consumo de álcool
seja responsável pela maior — e não menor — incidência de doenças cardíacas. Pesquisas mais recentes também batem de frente com a explicação de Renaud para o paradoxo francês. Como escreveu a nutricionista do InCor de São Paulo Thaís Reis de Leão no blog Fome de quê?, o comportamento alimentar e o estilo de vida dos franceses contribuem significativamente para o fenômeno: “Existe todo o contexto da comida mediterrânea. Eles consomem peixes, ervas, legumes e vegetais frescos, frutas, azeite, mas não abrem mão daquilo que lhes dá prazer, não comem com culpa. Eles comem o que têm vontade, em pequenas quantidades, sem pressa, e param de comer quando estão satisfeitos”, afirma. Outra coisa que diferencia os hábitos de franceses e americanos, conforme a nutricionista é que os primeiros são fisicamente mais ativos: andam mais a pé, locomovem-se de bicicleta, caminham bastante, sobem e descem escadas. “A saúde é resultado de muitos fatores, que vão desde a frequência, tamanho de porções que comemos determinados alimentos até a variedade da alimentação, o nível de atividade física, estilo de vida, fatores genéticos, ambientais e outros”, finaliza Thaís.
vitivinicultura, cresceu tanto em tão pouco tempo como o Brasil. Boa parte dessa produção se deve ao nosso Estado, mas ele fica prejudicado por fazer fronteira com outros países produtores, e que vendem a bebida a baixo custo”,explica. Para Jairo acredita, o país peca no âmbito das pesquisas: “No Brasil, é muito difícil avançarmos em estudos sobre o vinho. Porém, apesar das dificuldades e pouco incentivo, conseguimos produzir pesquisas muito boas”. Os vinicultores seriam os principais beneficiados pelo investimento nessa área, afirma. “Um grande problema para o agricultor é o descarte da casca e da semente, que é o que sobra no processo de elaboração do vinho. O vinicultor até pagaria para as empresas levarem essa matéria embora”, raciocina.
OS BENEFÍCIOS DO USO REGULAR DO VINHO NA ALIMENTAÇÃO Vivendo no Vale dos Vinhedos há 24 anos, o cardiologista Jairo Monson de Souza Filho se mostra um apaixonado. Mais que médico, ele é um dos grandes estudiosos do vinho no Rio Grande do Sul, tendo inclusive escrito o livro Vinho é Saúde!, que ganhou o prêmio de melhor do mundo na categoria Best Drinks & Health Book pelo Gourmand Awards 2014/2015. O interesse pela bebida e suas vantagens para a saúde está intimamente ligado à convivência diária com as famílias produtoras: “Praticamente todos os meus pacientes têm a ver com a cadeia produtiva. Ao longo dos anos, pude ver e sentir as dificuldades que eles passam. Eles não são grandes proprietários de terra, mas trabalham arduamente e seus vinhos nada deixam a desejar em relação aos vinhos internacionais”, relata o médico. Mesmo o Estado sendo um grande líder na produção vitivinícola, Jairo considera haver uma concorrência desleal entre a comercialização dos vinhos de pequenos produtores da Serra gaúcha e dos vinhos da Argentina e Uruguai dentro do Brasil. “Nenhum país, ao longo da história da
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Mesmo com tantos benefícios, o cardiologista alerta que vinho não é remédio. Monson diz que é muito importante, para aqueles que pretendem iniciar a ingestão diária da bebida, procurar um médico e analisar se não há nenhum impedimento clínico para o consumo. “Os benefícios só virão se a ingestão da bebida for regular e moderada. O vinho não é remédio, mas também não é veneno; não é para tratar doenças, mas para dar prazer. Ele nos permite um estilo de vida saudável”, finaliza. A AÇÃO DO RESVERATROL NOS NÍVEIS DE LIPÍDIOS
Entre julho e agosto é realizada poda das videiras, essencial para renovação da planta Muitos produtores utilizam resíduos vinícolas (cascas, sementes, e mosto) como adubo e ração animal. Apesar de uma parte desse bagaço ser destilada para a produção de grappa — espécie de aguardente —, a sobra de resíduos ainda é muito volumosa, e seu uso excessivo pode trazer prejuízos ambientais. Esse pode ser o grande segredo do vinho: cascas e sementes da uva são ricas em uma substância chamada polifenol. Polifenóis e flavonoides foram apontados como as moléculas do vinho responsáveis pelos benefícios à saúde. Por serem antioxidantes, os polifenóis combatem os radicais livres. Jairo explica que, por isso, produtos derivados da uva têm grande utilidade farmacológica. Os polifenóis presentes nas sobras da uva estimulam a produção de sirtuína 1 e 2, enzimas diretamente ligadas à longevidade das células e, por consequência, à preservação dos tecidos do corpo. “É como se a sirtruína desse uma carga a mais no tempo de vida de uma célula. Por exemplo, se uma célula vive por 100 dias, a sirtuína é capaz de prolongar para 140 dias. Testes feitos em drosófilas, um tipo de mosca que vive cerca de 30 dias, mostram que, com a estimulação de sirtuína, elas chegam a viver 40 dias, ou 30% mais”, afirma Monson. Além do retardo do envelhecimento, o cardiologista relata que mais de 80 situações clínicas são causadas pela ação de radicais livres, incluindo o câncer. Com a ingestão moderada e regular da bebida, há a chance de se diminuir em 20% o desen-
volvimento de qualquer tipo da doença. O médico lembra que, entre todas as substâncias presentes no vinho, apenas o álcool oferece danos orgânicos. Como forma de causar menos lesões ao organismo e melhor absorver as substâncias benignas para o corpo, Jairo indica o consumo do vinho após a alimentação: “A presença de alimento no estômago retarda a absorção do álcool, e aumenta a absorção dos polifenóis. O ideal antes de beber não só o vinho, mas outras bebidas alcoólicas, é ingerir alimentos ricos em gordura. É por esse motivos que aperitivos são gordurosos”.
Desde 1997, o professor de Química da PUCRS André Arigony Souto estuda o polifenol trans-resveratrol. Já ficou provado que o resveratrol é responsável pela redução dos níveis de colesterol nos aficionados pelo vinho, reafirmando o paradoxo francês. “O resveratrol pode ser encontrado na casca da uva. Sua produção depende de condições climáticas, ataque de fungos e incidência solar. Como proteção, a uva vai produzir polifenóis, e um deles é o resveratrol”, explica o químico. Essa também é a razão para vinhos tintos terem maior concentração de polifenóis que os vinhos brancos: as variedades de uva escuras, como Merlot e Cabernet Sauvignon, são mais atacadas por fungos e absorvem mais luz. Outro aspecto importante é que, na elaboração do vinho branco, a casca é descartada, enquanto no vinho tinto é fermentada juntamente com a fruta.
Em busca de fontes de resveratrol Foi por falta de incentivos a sua pesquisa, principalmente por parte das vinícolas, que o professor de Química da PUCRS André Arigony Souto parou de analisar o vinho e se dedicou à busca do resveratrol em plantas, a fim de utilizar a substância na indústria de medicamentos. Dessa forma, encontrou a azeda, que concentra cem vezes mais resveratrol que um cacho de uvas. Com as descobertas de Souto, a PUCRS vendeu duas patentes para a Eurofarma, com o intuito de desenvolver um remédio à base de resveratrol contra doenças relativas ao envelhecimento.
“Infelizmente, a empresa desfez o contrato e criou um genérico”, resume o professor. O químico, que brinca com o fato de ser conhecido como “monotemático”, se diz frustrado: “O objetivo da minha pesquisa é colocar o produto final no mercado. Acredito na ideia, e acredito que a pesquisa deve ser contínua. Atualmente, é testado o efeito do resveratrol contra o Alzheimer. Minha maior frustração é que eu poderia estar ali. Em suma, esse é o grande problema do nosso país: todos estão interessados em ganhar dinheiro”.
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O professor também explica que a concentração de resveratrol em sucos de uva é menor porque em seu processo de produção não ocorre a fermentação, necessária para a fabricação de etanol: “É o álcool que extrai as substâncias da casca e sementes da uva, por isso o resveratrol fica mais concentrado no vinho do que no suco”. Em 1999, uma pesquisa realizada pela equipe de Souto quantificou amostras de vinho em relação ao resveratrol. A média mundial foi de 1,5 mg/L, enquanto a dos vinhos gaúchos foi de 2,5 mg/L. O doutor em Química compara os vinhos da Serra gaúcha aos vinhos franceses: “Nossos vinhos são até melhores. Chove muito na Serra e, por causa da umidade, os fungos se propagam melhor pelas videiras”. Cientistas acreditam que o resveratrol diminui os níveis de gordura no sangue e ajuda a remover o colesterol LDL (ruim) da circulação, prevenindo assim a obstrução de artérias. Além dos benefícios cardiovasculares, estão sendo realizados testes para provar as propriedades anticancerígenas da molécula e também sua relação com a longevidade. Souto avalia, porém, que há uma construção romântica e comercial ao redor do vinho, e que os pesquisadores ignoraram o restante da dieta dos franceses, como o uso de azeite de oliva, que também possui propriedades benéficas, ao construir o paradoxo francês. O próximo passo de Souto pode ser o investimento no ramo dos cosméticos.
Provou-se que o resveratrol é eficaz em produtos à base de uva. cremes antirruga. Por serem ricos em polifenóis, esses “Um creme que hoje é vendido no mer- produtos previnem, principalmente, o envelhecimento. Além disso, são utilizados cado por R$ 450, tem para mim o preço de custo de R$ 3. Tenho ensaios in vitro, e ele para nutrição e tonificação da pele e revitalização de cabelos. Atualmente, a vinoteé muito poderoso”, revela. rapia também é aliada na redução de medidas, através de massagens modeladoras. As moléculas que trazem benefícios à saúde pela ingestão do vinho são as mesmas utilizadas por empresas na fabricação de artigos corporais. A farmacêutica e biotecnóloga Morgane Pasini Franzoni explica por que os polifenóis são utilizados na indústria de cosméticos: ”Para a pele, são compostos capazes de neutralizar os radicais livres gerados no dia-a-dia, através da radiação solar, estresse, cigarro. Estes radicais livres são os causadores do enveO pesquisador também faz duras crítilhecimento precoce, das manchas e até do cas às empresas que utilizam matéria-pricâncer de pele”. ma importada na fabricação de cremes e Há quem imagine que os tratamentos à outros produtos à base de vinho: “Eles não base de uva são caros e, em vez de procurar incentivam os produtores da Serra. Pegam profissionais da estética e fisioterapeutas pronto porque vai ter mercado e lucro, mas habilitados a realizar esses serviços, prenão sabem que a qualidade dos insumos daqui seria melhor. Poderiam produzir fira usar os produtos em casa. Um desafio algo inédito e beneficiar toda uma cadeia”. à indústria de cosméticos é fornecer bons Vinoterapia é o nome dado ao tratamen- produtos a baixo custo para atingir uma to corporal realizado com cremes, géis ou maior parte da população. O resveratrol, estudado por Souto, líquidos que têm como base os polifenóis extraídos das cascas e sementes de uva. A também é um polifenol comum para a prática é muito antiga, tendo existido, in- fabricação dos cremes. De acordo com o clusive, casas de tratamento, denominadas cardiologista Jairo Monson, a maioria das uvários, que mais tarde tornaram-se os indústrias brasileiras utiliza resíduos proconhecidos spas. Além dos cremes, é pos- venientes de outros países, e isso encarece sível tomar banhos ou fazer imersão com o produto.
A ingestão moderada e regular do vinho reduz em 20% o risco de câncer
Fernanda Pierdoná, 21 anos, demonstra a vinoterapia facial com máscara da Vinotage que ajuda a rejuvenescer e tonificar a pele DEZEMBRO 2015 EXP 21
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Vanessa Kuhn, auxiliar de laboratório da Vinotage Cosméticos, explica que escalda-pés de espumante relaxa e estimula circulação “O resveratrol, assim como outros polifenóis, é muito reativo. As indústrias daqui estão procurando uma substância para conseguir estabilizar essa molécula, coisa que os estrangeiros já conseguiram e nos vendem pronto. Se não estiver estável, o resveratrol pode rançar o creme e não tem o efeito esperado na pele”, explica. Segundo Morgane, proprietária da empresa de cosméticos Vinotage, o motivo é outro: “Além da estabilização dos ativos, a extração dos resíduos de vinificação já é feita há muito tempo em países como Espanha e França, e por isso adquirimos insumos deles. Agora estamos iniciando a parceria com uma renomada vinícola da região. Em breve teremos nossos próprios extratos e nossos próprios vinhedos”, comemora. A pesquisadora também explica que não considera os produtos caros se eles tiverem a qualidade esperada: “Um hidratante facial, com a tecnologia que temos, a um custo de R$ 65, não é um produto caro, visto que rende três meses. Em razão da concentração de ativos, necessita de pouca quantidade para fazer efeito. São cosméticos com qualidade de produtos internacionais, mas com preços de produtos nacionais”. A Essência di Fiori, que está no mercado desde 2006, faz uso de extratos nacionais e internacionais. Marilene Knispel, enóloga e diretora técnica da empresa, explica que algumas vinícolas regionais enviam seus insumos a indústrias de São Paulo. Lá, as sementes são moídas e viram um esfoliante de partículas muito pequenas, que serão melhor absorvidas pela pele. O óleo é extraído e pode ser utilizado na produção de cosméticos. “Depois de encapsulado, o óleo é misturado com creme de composições que fa-
vorecem sua disponibilidade. Assim, produzimos cremes e sabonetes para a pele e shampoos e condicionadores que previnem o envelhecimento capilar”, revela. A ação dos produtos de beleza, porém, depende do tipo de tratamento e da preparação da pele: uma limpeza adequada, seguida de esfoliação e hidratação potencializam o resultado.
Produtos derivados do vinho podem ter efeito benéfico até sobre a circulação sanguínea Fernanda foi presenteada com massagem “Eles são utilizados para obter benefícios a longo prazo. Cada produto tem uma ação específica: para a questão da renovação da pele e anti-idade, em torno de quatro semanas. Já uma pele oleosa percebe o resultado dos produtos adstringentes nos primeiro cinco dias. Temos relatos de peles que sofreram queimaduras e em questão de 24 horas estavam se renovando de forma surpreendente”, relata Morgane. Se para os antigos o vinho era usado para diversão e tratamento de doenças, nos tempos atuais foi agregado a ele o sinônimo de beleza e qualidade de vida. Morgane diz que alguns de seus produtos melhoram até mesmo a circulação. Já Marilene, da Essência di Fiori, acredita que a ação dos cosméticos à base de uva pode ser sutil, mas vai além do esperado: “Trabalhando a parte estética da pessoa, melhora a autoestima e indiretamente a saúde”.
Morgane Franzoni, da empresa Vinotage
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la vie en ROSE CARLOS MÜLLER VILLELA
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e estivesse viva, Édith Piaf completaria cem anos em dezembro de 2015. A vida da cantora francesa foi marcada por mágoas e sonhos perdidos, mas ainda assim ela deixou uma mensagem para o mundo através de seu maior sucesso, a música La Vie en Rose. De forma visceral, La Môme (A Cotovia) cantou como um singelo abraço e breves palavras de seu amado faziam com que ela visse sua tão sofrida vida em cor-de-rosa – e aí brotava em seu coração a esperança de que tudo ficaria melhor. Acontece que o rosa sofre. Tem gente que passa longe dele a vida inteira. As crianças aprendem cedo que “é cor de menina”, e a publicidade obviamente fomenta isso colorindo vestidinhos, sapatinhos e fogõezinhos de brinquedo com essa cor segregada por uma sociedade cheia de normas. Quando o gênero, a sexualidade ou até mesmo os objetivos de vida de uma pessoa não são iguais aos de quem dita as regras, o rosa lhe é atribuído como se fosse uma marcação a ferro quente, para deixar claro que alguns valem menos do que outros nesse mundo. Mas, mesmo com os
“O rosa tem um destino maior do que estar presente apenas em catálogos da Pantone e em coleções de batons para a primavera.”
ataques dos chefes dessa sociedade de “machos dominantes”, as vozes dissonantes gritam cada vez mais alto – e elas gritam por um mundo cor-de-rosa. Gritam por um mundo no qual a diversidade deve ser apreciada. Essas vozes entendem que o rosa-choque, rosa-chá, magenta, salmão, cereja, coral, fúcsia e muitos outros tons têm um destino maior do que estarem presentes apenas em catálogos da Pantone e em coleções de batons para a primavera. Infelizmente, para Piaf, o rosa acabou desaparecendo. Aos 47 anos, ela morreu, doente, deprimida e, o pior de tudo, descolorida. Mas sua voz, entonando uma singela e intimista busca pela felicidade, ecoa nos corações das pessoas, até aquelas que não entendem francês. Em cada carícia, em cada beijo, em cada ato de amor ao próximo, brilha uma aura em tons de framboesa. Claro, é lógico que nossa vida precisa de todas as cores do espectro. O vermelho do sangue, o azul do céu, o verde das folhas, o marrom do mar de Tramandaí. O rosa, contudo, é subjetivo. É a cor que nasce dentro da gente, e só ultrapassa a barreira dos nossos corpos quando entendemos a importância de irradiá-la. Tomara que mais pessoas possam ter a oportunidade de ver la vie en rose. É esse o único caminho para um mundo mais justo, mais bonito, mais brilhante. É esse o único caminho para le monde en rose.
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CRAQUES EM
superação Futebol de cinco é disputado em quadra adaptada para cegos e é levado muito a sério no Brasil. O melhor jogador do mundo é um gaúcho de Osório TEXTO: VITOR ROSA FOTOS: LUCIANO KAMINSKI
uas vezes considerado o melhor jogador do mundo no futebol para cegos, o gaúcho Ricardo Steinmetz Alvez, 27 anos, deu um drible nas dificuldades para seguir no esporte pelo qual é apaixonado desde a infância. Aos oito anos de idade, ele quase abandonou o sonho de ser um atleta profissional ao perder a visão, depois de dois anos lutando intensamente contra um descolamento de retina. Nascido em Osório, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, Ricardinho, como hoje é conhecido, mudou-se para Porto Alegre para estudar no Instituto Santa Luzia, tradicional escola de ensino do método braile. E foi na instituição que, aos dez anos, ele descobriu o futebol de cinco. Guiado por um professor, o atleta deu os primeiros passos no esporte e voltou a alimentar o
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desejo de tornar-se jogador. O próprio atleta reconhece que o começo foi muito complicado. Ao contrário do futebol comum, o de cinco não pode ser treinado em qualquer lugar. É preciso um espaço adaptado para que o deficiente visual possa desenvolver fundamentos e praticar o esporte. “Se você largar uma bola em uma festa de aniversário, cheia de cadeiras, as crianças que enxergam vão sair jogando sem problema algum. O deficiente visual fica muito limitado, pois precisa de um ambiente seguro para poder praticar, e isso foi uma das coisas que dificultou bastante”, conta o atleta. O começo da carreira foi aos 15 anos, no clube da Associação dos Cegos do Rio Grande do Sul (Acergs), com sede na Capital. O atleta relembra as dificuldades
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enfrentadas, como treinadores despreparados e a desconfiança de atletas e familiares. Mas o otimismo, marca registrada de Ricardinho, o ajudou a persistir no esporte. “Treinava dribles e chutes no quintal de casa e, com humildade, aprendi que, acreditando em mim e com personalidade, conseguiria o que queria. Sem o apoio da minha família e, principalmente, de Deus eu não teria conseguido nada”. A primeira convocação para a Seleção Brasileira veio aos 16 anos, como ala. Um ano depois, foi escolhido o melhor jogador do mundo de futebol de cinco. Em uma década, acumulou dois títulos mundiais, duas paralimpíadas e três parapans. Hoje, Ricardinho treina seis vezes por semana, sempre em dois turnos. A vontade de superar a própria condição física o tornou referência mundial no esporte paralímpico. Nos últimos anos, o atleta tem sido chamado para palestras e entrevistas em todo o mundo. Em 2015, a rede de televisão Nippon Hõsõ Kyõkai (NHK) levou o jogador e a família ao Japão para a produção de um documentário especial sobre a vida do craque. Seus movimentos dentro do campo viraram objeto de estudo da Universidade de Tsukuba, também com sede no país nipônico. “Só eu, Neymar e Messi fomos convidados. Por mais que no Brasil o nosso trabalho não seja muito reconhecido, é gratifi-
“Só eu, Neymar e Messi fomos convidados para um experimento no Japão. Fora do Brasi, sou realmente reconhecido.” Ricardinho Alves, gaúcho e melhor do mundo no futebol para cegos
cante saber que fora daqui, na Europa e na Ásia, somos valorizados como verdadeiros exemplos de superação no esporte”, desabafa o jogador. Mesmo multicampeão, o atleta garante que não falta motivação para seguir nos campos. Segundo ele, a busca para superar o próprio limite é incessante. “Quero
ganhar de novo tudo o que já conquistei. É difícil ganhar um grande título? Sim. Mais difícil ainda é ganhar duas, três, quatro vezes. Se já ganhamos tudo, vamos deixar a peteca cair e relaxar? Não, vamos tentar ganhar de novo”, afirma. Ricardinho utiliza-se da memória visual da infância para fazer os movimentos que o transformam em craque. Jogador da Associação Gaúcha de Futsal para Cegos (Agafuc), treina com a equipe duas vezes por semana, às quintas-feiras e aos sábados. O time, hoje, disputa o Campeonato Brasileiro da Série A de futebol de cinco. Em 2014, a equipe do ala fez grande campanha e foi vice-campeã do torneio. Com apenas cinco anos de existência, a Agafuc, de Canoas, já é uma das principais equipes de futebol de cinco no Brasil. Atual time de Ricardinho, a Associação forma atletas de pontas e coleciona títulos nacionais e internacionais. Invicta, a equipe da Região Metropolitana foi campeã em 2015 do principal torneio brasileiro da modalidade, ganhando oito partidas. Por meio de uma parceria com a Prefeitura de Canoas, a equipe possui a única quadra adaptada para deficientes visuais do Estado. Atualmente, a Agafuc tem nove atletas de linha e quatro goleiros. Além disso, em período de grandes competições, o time busca mais jogadores junto a outros clubes brasileiros e do Exterior.
Ricardo Alves, o Ricardinho, é referência para todos os colegas, que se orgulham de treinar ao lado do melhor jogador do mundo DEZEMBRO 2015 EXP 25
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O jogador argentino Coki Padilla prepara-se para cobrar um penâlti. No futebol de cegos são essenciais o tato e a audição Quase toda a verba utilizada pela equipe é arrecadada através do projeto Amigos da Agafuc, iniciativa criada junto ao comércio local e familiares dos jogadores para manter as atividades e o equilíbrio financeiro do clube. O governo do Estado, por meio de uma fundação, também ajuda o grupo, ainda que o valor seja baixo. Mais que títulos, a Agafuc busca, em competições nacionais, garantir a verba que o governo federal dá aos três primeiros colocados. O dinheiro é utilizado para a compra de fardamentos, investimentos em viagens e organização de torneios locais. Além disso, a boa colocação assegura R$ 925 por mês para cada jogador. A grife de ter o melhor do mundo em terras gaúchas e a estrutura oferecida pela Agafuc atrai jogadores de outros Estados e até países. Este é o caso de Froilán Durval Padilla, pivô da Seleção Argentina e da equipe de Canoas. “El
“Vim da Angola para o Brasil fugindo da guerra no país. Aqui, encontrei um belo lugar para morar e uma paixão: o futebol de cinco.” Maurício “Dumbo”, destaque no campeonato da modalidade em 2015
Coki Mudo”, como é conhecido em seu país, é presença confirmada nos grandes torneios. Na Seleção Argentina desde 2009, ‘El Coki Mudo’ conquistou o Mundial de Futebol de Cinco no Japão, em 2014. A conquista veio após uma vitória emocionante sobre o Brasil, de Ricardinho. “Jogar um mundial é algo muito marcante para a carreira de um jogador. A final com o Brasil foi muito difícil, mas felizmente conseguimos vencer e realizei o sonho de me tornar campeão do mundo”, recorda. Já o angolano Maurício Tchope, 25 anos, conhecido como Dumbo, veio ao Brasil fugindo da guerra civil. Morador de Belo Horizonte, em Minas Gerais, ele buscou no Brasil um refúgio para a insegurança, mas também encontrou a oportunidade que almejava de crescer no esporte. “Conheci algumas pessoas que praticavam o futebol de cinco. Me interessei, comecei a treinar e nunca mais larguei”, conta.
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No início, Dumbo teve medo de jogar futebol no Sul do Brasil, por pensar que seria terra de preconceituosos, como lhe foi dito em Angola. Mas ter a oportunidade de jogar ao lado do melhor do mundo foi determinante para ele. O angolano é tido como grande promessa do esporte. Convidado para atuar pela Seleção Brasileira, ele deu entrada na documentação para se naturalizar. Na Copa Caixa de Futebol de Cinco de 2015, o principal torneio da modalidade, foi escolhido o melhor jogador da competição, sendo um dos goleadores. No país, a modalidade é administrada pela Confederação Brasileira de Desportos de Deficientes Visuais (CBDV). Há dois grandes campeonatos em nível nacional: o Campeonato Brasileiro Série A e B. A equipe do Instituto de Cegos da Bahia (ICB) perdeu para a Agafuc em 2015 a hegemonia na competição, onde era hexacampeã do torneio. O título veio após um 1X0. As regionais classificatórias para a Série B movimentam o calendário da modalidade. Ao todo, 12 equipes disputam. O futebol de cinco é exclusivo para cegos ou deficientes visuais. As partidas, normalmente, são disputadas em uma quadra de futsal adaptada. Entretanto, desde os Jogos Paralímpicos de Atenas, também têm sido praticadas em campos
de grama sintética. O goleiro não é cego, mas fica restrito a uma área limitada de atuação. Junto às linhas laterais são colocadas bandas que impedem que a bola saia do campo. Cada time é formado por cinco jogadores – um goleiro e quatro na linha. As partidas de futebol de cinco são silenciosas e disputadas em locais sem eco. A bola tem guizos internos para que os atletas consigam localizá-la. A torcida pode se manifestar apenas em comemorações de gols. Os jogadores utilizam uma venda nos olhos para garantir que nenhum deles possa enxergar algum vulto e que todos os atletas estarão na mesma condição de visão. Com cinco infrações, o jogador é expulso de campo, mas ainda pode ser substituído por outro. A partir da quarta falta, será cobrado tiro livre direto, na distância de oito metros para o gol. Há, ainda, um guia, conhecido como chamador. Ele fica atrás do gol para orientar os atletas, instruindo posicionamento e dizendo para onde devem chutar. No entanto, o chamador só pode orientar seus jogadores na área de ataque/defesa. No meio de campo, quem orienta é o treinador de cada uma das equipes. O jogo tem dois tempos de 25 minutos, com intervalo de 10 minutos. O atleta que for marcar precisa falar “voy”,
Batidas nas traves avisam limites do gol
ou “fui”, para avisar.
Cobrança de faltas é em dois toques
Família Astrada Trabalhando voluntariamente por amor ao esporte paralímpico, o treinador Rafael Astrada (foto), 33 anos, apaixonou-se pelo futebol de cinco na faculdade. Graduado em Educação Física, fez o TCC sobre a modalidade. Quando observava a equipe da Acergs, Astrada foi convidado para treinar o time. De lá para cá, garante que formou muito mais do que atletas profissionais. A família do professor também foi obrigada a se adaptar. “Os jogadores são minha família, por isso dedico grande parte do meu tempo a eles. Vou dando um jeito no tempo que sobra para as demais funções e minha família de sangue”, brinca. DEZEMBRO 2015 EXP 27
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Tuca na ‘chefia’: morador de um clube naturista de Taquara, ele encontrou refúgio para uma vida conturbada e a oportunidade de recomeçar
NUS DE PRECONCEITO Conheça a rotina de quem abriu mão de morar na cidade para buscar o autoconhecimento e uma vida muito tranquila no campo TEXTO: LUCIANO KAMINSKI FOTOS: VITOR ROSA
a busca por conforto para os próprios sentimentos, cada vez mais pessoas procuram refúgio em estilos alternativos de vida, como conviver em comunidades distantes dos padrões considerados tradicionais. No Estado, são pelo menos seis grupos que decidiram deixar as áreas urbanizadas das grandes cidades para compartilhar espaços e pensamentos com outras pessoas que têm o mesmo objetivo. Em 1991, um grupo de amigos adquiriu uma área de 41 hectares na região de Cantagalo, limite entre Porto Alegre e Viamão. Ali, construíram a estrutura para abrigar famílias e viver à parte da correria da capital gaúcha. Na comunidade Osho Rachana, buscam o autoconhecimento e o crescimento coletivo. Valorizando principalmente o contato com a natureza, os moradores procuram uma vida saudável e o trabalho do lado emocional, incentivado pelas terapias corporais e pelo sexo. Com intenção parecida, um técnico co-
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btábil comprou, em 1995, em Taquara, no Vale do Paranhana, um terreno de 60 hectares com o sonho de fundar a primeira comunidade naturista do Rio Grande do Sul. Contrários aos padrões culturais e estéticos que “obrigam” as pessoas a utilizarem roupas, os naturistas acreditam que viver nu é sinônimo de liberdade. Além de visitantes de diversos municípios do país e do mundo, o Colina do Sol abriga 50 moradores, divididos entre as mais de cem cabanas do clube. No Clube Naturista Colina do Sol convivem pessoas de todas as idades. As cabanas são particulares, de cada família. Nas áreas comuns é obrigatório estar sem roupas. Jogando futebol, vôlei, caminhando ou banhando-se no lago, o nudismo é indispensável e pode-se aplicar multa caso alguém descumpra a regra. Fora da comunidade, os moradores atuam em diferentes profissões: advogados, médicos, militares e astrólogos, entre outras. Embora passem boa parte do tempo
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juntos, cada morador é responsável por sua refeição. O conselho diretor criado pela comunidade define tarefas para cada membro do grupo. Alguns deles possuem concessão para o comércio e outros para hospedagem. Com restaurante, horta comunitária, hotel, camping, aluguel de cabanas, loja de artesanatos e até um mini mercado, não faltam ocupações para os naturistas. O clube conta com sauna, piscina térmica, quadras poliesportivas, biblioteca, sala de jogos, área destinada para a pesca e salão de festas. A estrutura faz do Colina do Sol a maior reserva naturista da América do Sul. RIGOR NO INGRESSO Para ingressar no clube, o interessado passa por seis meses de avaliação, feita pelos moradores. Além da concessão do terreno, que varia entre R$ 20 mil e R$ 200 mil, cada família paga uma taxa mensal referente aos gastos comunitários. O nudismo é absolutamente normal para eles. Um casal de idosos caminha ao redor da quadra esportiva enquanto dois meninos e uma menina brincam de pega-pega. “Eu costumo dizer que os naturistas são pessoas que procuram a integração e o contato direto com a natureza, buscando o exercício da liberdade. Queremos nos despir do que a roupa representa, que é um tipo de escravidão”, explica Vicente Calduro, 66 anos, militar da reserva. Ao lado da esposa, Vera Lúcia Santana, 55 anos, e do labrador, Aron, Calduro mudou-se para o Colina do Sol no começo do ano passado, buscando uma vida mais tranquila. Natural de Farroupilha, na Serra Gaúcha, ele dedica seu tempo ao jardim, a entusiasmadas conversas com vizinhos e ao animal de estimação. A mulher, à cozinha e aos esportes. O casal, unido há 25 anos, garante que o ar puro da comunidade e a calmaria do local, aliados à frequente atividade sexual, lhes deixou mais jovens. “Nunca viveríamos com esta qualidade de vida na cidade”, acredita Vera. Assim como Calduro e Vera, grande parte dos moradores do Colina do Sol buscou, no clube, uma forma de viver em paz e afastar os problemas. Após sofrer de depressão em Santa Catarina, sua terra natal, Adolar Menestrina, 54 anos, mudou-se para Taquara. Na comunidade, recuperou-se emocionalmente e vive tranquilo ao lado dos cães Rebeca e Lola, seus melhores amigos. “Aqui dentro, o teu relógio é o teu corpo. A roupa é um mero acessório. Aqui durmo quando quero e acordo quando bem entender”, compara o ex-gerente administrativo.
“Naturistas são pessoas que procuram a integração e o contato direto com a natureza, buscando a liberdade.” Vicente Calduro, militar da reserva
POLÊMICA REFORÇA PRECONCEITO O gaúcho João Ubiratan dos Santos, o Tuca, 67 anos, encontrou refúgio no naturismo. Responsável por organizar o camping do clube, é um dos mais respeitados entre os adeptos. Dos 30 anos em que pratica o naturismo, 15 deles são dedicados a esta atividade. Depois de uma vida conturbada, que envolveu até o cumprimento de uma condenação de seis anos de prisão por envolvimento num sequestro, Tuca recomeçou a vida no naturismo. “Aqui me sinto seguro, absoluto e tranquilo. Me apaixonei pelo clube e nunca mais saí”. Embora todos aprovem a rotina no Colina do Sol, muitos proprietários de cabanas escondem que fazem parte do clube. Segundo um delegado e uma juíza do município de Taquara, que preferem não se identificar, o principal motivo é o preconceito de familiares, amigos e colegas de trabalho. “O pessoal acha que a gente vem aqui para fazer suruba, o que não é nem um pouco verdade”, afirma a juíza.
O preconceito é reforçado por um capítulo que manchou a história da comunidade. Em 2007, a notícia de que um casal de norte-americanos e um de brasileiros, residentes do local, estariam criando uma rede internacional de pedofilia a partir do Colina do Sol ganhou repercussão mundial. Segundo a acusação, eles fundaram uma ONG com o pretexto de ajudar moradores de uma vila próxima ao clube. O quarteto levava crianças para confraternizações na comunidade, onde elas seriam obrigadas a ingerir bebidas alcoólicas. A denúncia de abuso sexual, pornografia infantil e tráfico internacional de menores levou os quatro acusados à prisão preventiva. Eles passaram 13 meses na cadeia, mas jamais foram condenados. Outro americano, que de acordo com os moradores também estaria envolvido no suposto crime, foi encontrado morto dentro da comunidade ainda antes da abertura do inquérito. Os motivos, no entanto, permanecem sendo um mistério.
Jornalista Kátia Marko mudou-se para a comunidade Osho Hachana no final de 2008 DEZEMBRO 2015 EXP 29
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Nos livros, moradores da Osho Hachana buscam dicas e inspiração para terapias corporais e espirituais
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são as comunidades alternativas registradas no Estado No imaginário popular dos moradores de Taquara, o clube é um recanto de maníacos por sexo e pervertidos. No entanto, segundo o fundador da comunidade, Celso Rossi, é justamente o contrário o que ocorre no Clube Colina do Sol: “Nós queremos desvincular a nudez do sexo. O que buscamos é diferente, é a liberdade”. Algo que ainda incomoda o fundador da comunidade é que ela não é autossustentável. Mas os projetos da diretoria são ambiciosos. “Nosso sonho é conseguir formar uma comunidade autônoma em questões energéticas e alimentícias. Queremos criar uma cooperativa, desenvolvendo um clube onde as pessoas possam trabalhar em troca de moradia e comida, ou até mesmo oferecê-la de graça”, conta Rossi.
Estas ambições incluem a criação de uma moeda comunitária, paralela ao Real. Os Nats, como seriam chamados, teriam circulação interna e os moradores poderiam comprar serviços de outros membros da comunidade ou alimentos produzidos por eles. Além disso, está pronto um projeto de instalação de placas para captação de energia solar, que deve ser concretizado nos próximos anos. A instalação de poços artesianos também está sendo estudada pela diretoria do clube naturista. TERAPIA E SEXO Diferentemente do Colina do Sol, a Osho Rachana busca na terapia espiritual, corporal e sexual uma nova proposta de vida. Seguidores de Osho, os 60 moradores do local procuram a liberdade na meditação. Divididos em pequenos grupos, delegam tarefas para as áreas da alimentação, manutenção e limpeza do sítio. Com amplos espaços para lazer e eventos, recebem dezenas de visitantes nos feriados e finais de semanas. No local, há campo de futebol, sauna, ofurô, sala de jogos, atelier, salão de festas, piscina, estúdio musical, biblioteca, espaço para meditações e, até mesmo, um castelo de madeira construído para a diversão das crianças.
Para viverem no local, as famílias precisam pagar uma taxa mensal de R$1 mil por adulto, garantindo moradia, água, luz, alimentação e até roupa lavada. Desde que a comunidade foi fundada, grupos de terapia e campos de meditação trazem pessoas e recursos para o sítio sobreviver e crescer. Em busca da coletividade, a Osho surgiu como ponto de encontro entre famílias e amigos. Com o passar do tempo, os moradores amadureceram a ideia de criar uma comunidade alternativa. Paralelo a isso, surgia no Bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, o Namastê, centro de terapia bioenergética e meditação. A Osho Rachana tem capacidade para acomodar mais de cem pessoas, em nove casas pequenas, uma grande e um dormitório coletivo. Em 2016, os moradores pretendem concluir a construção de uma nova residência, que será destinada aos adolescentes. “Esta nova casa está sendo construída para eles viverem a fase da sexualidade, que só pode ser conhecida através da experimentação”, conta a jornalista Kátia Marko, 45 anos, moradora do local desde 2008. O dinheiro para a construção da nova casa foi adquirido através de um leilão de quadros produzidos pelos moradores no fim do ano passado.
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“A construção da casa é para que os adolescentes possam viver a fase da sexualidade por meio da experimentação.” Kátia Marko, jornalista e moradora da comunidade Osho Hachana
Kátia buscou na Osho a superação para um divórcio delicado, que veio junto ao nascimento da filha. Para passar por uma fase difícil e retomar a felicidade, optou por um novo estilo de viver. “Minha vida mudou completamente. Aqui encontrei amor, paz e descobri quem eu era”. Uma das regras da comunidade é que os casais não podem viver na mesma casa. Eles acreditam que moradores que possuem um relacionamento fechado acabam se isolando e não compartilhando o amor com os demais membros do grupo. “O relacionamento se torna a única fonte de prazer e os casais não compartilham sentimentos com os outros moradores. Por isso os quartos são individuais”, diz Kátia. Para manter a comunidade financeiramente saudável, são produzidos e comercializados produtos como queijo, leite, pães, cerveja artesanal e produtos de higiene, limpeza e beleza, além da organização de eventos e venda de quadros produzidos no atelier. Cada morador tem uma cota mensal de vendas. O dinheiro arrecadado por eles é convertido em melhorias na infraestrutura do sítio. Os moradores fazem todas as refeições em conjunto, em um espaço comunitário destinado apenas para a alimentação. A comida é variada, embora prefiram produtos orgânicos e descartem o consumo de refrigerantes e sucos industrializados. “Já tivemos momentos em que aderimos ao vegetarianismo, mas agora não temos muitas restrições”, comenta Lisiane Passuelo, residente do local.
O consumo de drogas na Osho Hachana é estritamente proibido. Segundos os moradores do local, a maconha, por exemplo, anestesia os sentimentos e vai na linha oposta do que o grupo busca: a consciência emocional e espiritual. O transporte dos moradores até Porto Alegre também é organizado. Com auxílio de uma planilha, eles organizam um sistema de caronas diário para facilitar este deslocamento. O grupo ainda tem dois veículos próprios, adquiridos exclusivamente para o serviço. Ao ingressar na comunidade, cada morador recebe obrigatoriamente um nome espiritual, ligado à cultura da Osho. No caso de Kátia, o nome ‘Amrita’ foi escolhido para reforçar a sua forte ligação com o corpo humano e, principalmente, com o sexo. “Anjita significa mulher prenha, o néctar do amor”, revela a jornalista. Para Lisiane foi determinado o nome ‘Indali’, que significa amor poderoso. Os 60 moradores da Osho Hachana vêm de diversos lugares do Brasil e do mundo. Com pessoas do Rio de Janeiro, Belém do Pará, Espanha, Portugal, Alemanha, entre outros, a comunidade atrai novos membros, principalmente, por indicação do Namastê. O centro de terapia bioenergética e meditação na capital gaúcha busca trabalhar o desenvolvimento do corpo e da mente humana em sessões intensas de terapias, meditações e cursos apelidados de maratonas de fim de semana. Estes eventos são realizados no sítio da Osho, o que acaba atraindo mais moradores e visitantes para o local.
O QUE DIZ O ESPECIALISTA O movimento de saída das grandes cidades em busca de comunidades alternativas não acontece apenas no Rio Grande do Sul. Conforme o doutor em sociologia e professor da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Cesar Goes, o fenômeno vem acontecendo em todo o mundo. O principal motivo para isto, segundo ele, é que muitas pessoas não encontram na forma de vida tradicional conforto para os seus sentimentos, anseios e preocupações “Eu percebo que nestes grupos alternativos há desde pessoas que buscam este estilo de vida em decorrência de não concordar com uma série de padrões culturais, há pessoas que querem maior contato com a natureza, ou até se encontrar com o divino e a religião. É um movimento interessante, e que vem acontecendo no mundo todo”. Segundo o especialista, por vezes, o movimento é feito de forma abrupta, pois muitas pessoas rompem laços familiares e de trabalho quando buscam uma nova maneira de viver. Na maioria dos casos, de acordo com Goes, são aqueles que já possuem estabilidade financeira, como os aposentados, e que resolvem seguir um sonho antigo. “Estas pessoas, em geral, são plenamente felizes por serem capazes de dizer não para algo que não acreditam, como a rotina contemporânea, na qual já não possuíam perspectivas de vida. Me parece que o grande objetivo delas ao buscar estas novas comunidades é encontrar um projeto pessoal, de descobrir quem realmente são e atingir a felicidade”.
Horta da comunidade serve de sustento para os 60 moradores do Oscho Hachana DEZEMBRO 2015 EXP 31
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Reportagem de capa
um rio ameaçado Considerado o quinto mais poluído do Brasil, o Gravataí é também responsável pelo abastecimento de mais de 1,5 milhão de pessoas. As águas dele sofrem com o descaso da população e do governo TEXTO E FOTOS: CARLA TESCH
Castigadas pelas enchentes do Rio Gravataí, mais de 114 famílias ribeirinhas da Vila Olaria, em Cachoeirinha, são removidas s margens do Rio Gravataí são a primeira imagem que Osnildo, o Cataúcho, vê todas as manhãs ao acordar. Sentindo-se privilegiado, ele é um dos poucos moradores do município de Gravataí que tem a casa banhada pelas águas. Morador da Vila Morada Gaúcha, o homem simples de 51 anos enxergou no terreno uma possibilidade de ganhar a vida e aproximar a população do rio. Há cinco anos, criou o Camping do Cataúcho, onde é possível pescar, praticar ski, jogar
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bocha e vôlei, entre outras opções de lazer. Osnildo tem a história de vida marcada pela Bacia do Gravataí. Assim como ele, outras 1,5 milhão de pessoas são abastecidas diariamente pelo rio — que cruza por nove municípios do Estado. Apesar de ser um importante curso d’água na região, o Gravataí vive hoje um dos piores momentos: as águas dele estão ameaçadas pela crescente poluição. A extensão da gravidade o tornou o segundo do Estado e o quin-
to mais poluído do Brasil, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010. Para o diretor técnico da Fundação Municipal do Meio Ambiente, Jackson Muller, entre os maiores problemas do Rio Gravataí estão o esgoto sem tratamento, a contaminação química pelo uso de agrotóxicos, o acúmulo de lixo e a ocupação habitacional irregular de suas margens. A extensão dos problemas já fez com que metade das águas dele fossem perdidas.
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As águas escuras evidenciam a falta de tratamento de esgoto como a maior dificuldade que o Rio Gravataí enfrenta hoje. Segundo o geólogo e presidente da Associação de Preservação da Natureza — Vale do Gravataí (APN-VG) e do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí, Sérgio Cardoso, a qualidade do manancial é prejudicada pela falta de investimento público: “São cerca de 50 toneladas de esgoto sendo jogados ainda de forma bruta diariamente no Rio Gravataí”. Aproximadamente 90% de todo o resíduo coletado pelos nove municípios que formam a Bacia do Gravataí (Santo Antônio da Patrulha, Taquara, Glorinha, Gravataí, Cachoeirinha, Alvorada, Viamão, Canoas e Porto Alegre) é despejado sem qualquer tratamento no rio. Análises realizadas em 2014 pela Corsan identificaram colifomes fecais, bactérias e metais pesados como chumbo e zinco em quantidades excessivas. Essas medições o colocam na classe 4, a pior de acordo com as normas de controle do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Apesar dos investimentos de quase R$ 221 milhões em obras de saneamento básico, o programa Pró-Guaíba, criado pelo governo do Estado, ainda se mostra insuficiente para a demanda da população. Após 20 anos, apenas 24% de todo esgoto da Região Metropolitana recebem tratamento. AGRICULTORES X AMBIENTALISTAS Uma das maiores atividades econômicas do Estado é também a mais poluente sob o olhar dos ambientalistas. Sendo o único meio de sobrevivência de muitos agricultores, as lavouras de arroz irrigado e hortifrutigranjeiros junto à Bacia do Rio Gravataí já somam aproximadamente 12 mil hectares. A maior parte delas está dentro da Área de Preservação Ambiental (APA) Banhado Grande. Para o diretor técnico da FMMA, Jackson Muller, a exploração acaba afetando a qualidade do rio: “Cortam a mata ciliar,
lançam agrotóxicos e ainda retiram água para as lavouras num volume muito maior do que a capacidade de suporte do rio”. O uso de fertilizantes químicos não permitidos é alvo de discussão entre ambientalistas e produtores. Análises do FMMA comprovaram a destruição de uma área de 600 metros de vegetação nas margens do rio pelo uso desses produtos no final do ano passado. PELAS MARGENS DO RIO A responsabilidade pela fiscalização é da Fundação Estadual e Proteção Ambiental (Fepam). Porém, para Muller, os depósitos não são fiscalizados. A dificuldade em autuar os produtores é ampliada por questões burocráticas, já que muitos se encontram fora dos limites do município. Também não há pessoal suficiente para uma correta fiscalização das águas.
Mesmo com a casa elevada, Vanessa Córdova, 27 anos, via a água alcançar a porta. Ribeirinha da Vila Olaria, em Cachoeirinha, comunidade extinta em 2015, Vanessa recorda que viver às margens do Rio Gravataí não era agradável: “Fui expulsa pelo rio da minha casa várias vezes, por causa das cheias. Minha família ficava sempre no ginásio até a água baixar, mas não dava para ficar longe. Da última vez, roubaram tudo da minha casa”. Vanessa e outros 400 moradores da ocupação irregular da Vila Olaria preocuparam durante décadas as entidades de proteção da Bacia do Gravataí. O uso da área para moradia causava o assoreamento e a poluição das águas com todos os tipos de resíduos. Para Muller, a presença dessas famílias foi um importante fator de degradação: “O lixo gerado pelos ribeirinhos agredia o solo, a vegetação e a água”.
Arroio Barnabé, um importante afluente do Rio Gravataí, sofre com a poluição
“Há a necessidade de se implantar outro modelo de gestão, com a cobrança do uso da água, pelo lançamento de poluentes e uso das
águas subterrâneas. Esse modelo já foi previsto na legislação gaúcha, mas não há interesse em efetivá-lo.”
Jackson Müller, diretor técnico da Fundação Municipal do Meio Ambiente DEZEMBRO 2015 EXP 33
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Ex-morador da Vila Olaria, José Côrrea, de 66 anos, ajuda os vizinhos com a remoção para o Loteamento Chico Mendes A desocupação da Vila Olaria, em Cachoeirinha, tomou forma entre setembro e novembro de 2015. Na ânsia de possuir um novo lar longe das intempéries, os próprios moradores realizaram mutirões para erguer o Loteamento Chico Mendes, distante dez quilômetros da antiga comunidade. O objetivo é servir de nova morada a 114 famílias da Vila Olaria e outras 186 da Vila Navegantes. A expectativa da FMMA é que os desequilíbrios gerados por esse tipo de ocupação devam ser amenizados com a desocupação das áreas. QUAL O FUTURO DO RIO GRAVATAÍ? As crianças atendidas pela Legião da Boa Vontade (LBV) em Glorinha não esperavam, mas o dia lhes reservava um Seminário de Educação Ambiental, com teatro, músicas infantis e ainda um passeio as margens do Rio. A iniciativa faz parte do projeto Rio Limpo, da Associação de Preservação do Meio Ambiente de Gravataí (APN-VG), que tenta disseminar práticas de uso racional dos recursos naturais. Apesar de alguns avanços sociais e estruturais realizados pelo Estado, ambientalistas e ONGs, o Rio Gravataí ainda sofre com a exploração e a degradação de sua vegetação. A falta de controle sobre seus mananciais, considerados Áreas de Prote-
ção Ambiental (APA), ameaça a biodiversidade da região. É o caso de Banhado Grande, que já teve seu território reduzido em 40 mil hectares. Para evitar que problemas como esse fossem prolongados, há 17 anos foi estabelecida a necessidade da elaboração de um Plano de Manejo, onde seriam regulados a ocupação e o uso dos recursos naturais. Mas foi apenas em 2014, após intervenção do Ministério Público Estadual e da Fepam, que foi definida a produção dos planos de manejo para as áreas de preservação de Banhado Grande e Refúgio da Vida Silvestre Banhado dos Pachecos. A conclusão dos planos está prevista apenas para fevereiro de 2017, podendo ser revogada, já que suas finalizações dependem de recursos financeiros ainda não liberados pelo governo do Estado. Muller acredita que o plano não causa efeitos práticos na melhoria do rio: “Há a necessidade de se implantar outro modelo de gestão, com a cobrança pelo uso da água, pelo lançamento de poluentes e uso das águas subterrâneas. Esse modelo já foi previsto na legislação gaúcha, mas não há interesse em efetivá-lo”. Já para o presidente da APN-VG e do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí, Sérgio Cardoso, o Plano de Manejo
criará um controle mais efetivo e rigoroso sobre o uso do solo. Ele alerta sobre a importância do plano para a região de Banhado Grande: “Todo o suprimento de água dos seres vivos que são abastecidos pelo Rio Gravataí depende desta região. Proteger esse ecossistema é um dos objetivos fundamentais do plano”. Outra luta dos ambientalistas é pela construção de barragens como meio de reduzir o impacto da intervenção humana e aumentar a quantidade de reserva de água para a população. Porém, Muller alerta que a construção da barragem não pode ser vista como a única opção para preservar o manancial, sendo necessário antes proteger o ambiente e investir em novas tecnologias que reduzam as perdas. Entretanto, a vida do Rio Gravataí não depende somente de ações isoladas do governo, empresas privadas ou mesmo ambientalistas. O cenário não mudará sem uma organização coletiva na luta por um consumo consciente. Sérgio Cardoso, que também coordenada o projeto Rio Limpo, acredita que é preciso mudar a mentalidade da população: “Temos que investir fortemente na cultura das pessoas, formar a educação ambiental. O projeto Rio Limpo vai ajudar a mudar a cultura que a população tem sobre o Rio Gravataí”.
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HÁ UM CERTO PRAZER NA DECADÊNCIA BETHÂNIA HELDER
A pós-modernidade trouxe consigo traços de igualdade que percebemos nas pequenas revoluções cotidianas das minorias. Esta pluralidade de iguais, porém, está trazendo para a sociedade contemporânea uma onda politicamente correta que ecoa pelas redes sociais e também entre as cada vez mais raras rodas presenciais de amigos. Coca Zero, como diria Zeca Baleiro, já é coisa do passado, hoje a onda é suco detox. Tudo devidamente no lugar: organizado, arredondado, polido, perfeito, simétrico, clean, o fit, vegano. De maneira alguma devemos ser omissos às mazelas do mundo, indiferentes aos que sofrem com bullyng ou preconceitos. Porém, a magia do humor negro, o prazer da decadência, a honra do erro e a liberdade de simplesmente ignorar estão virando crimes. Em um mundo onde o preto
“Menos plástico, menos politicamente correto, menos gourmet. Mais decadência, autenticidade, mais bife frito.”
é afrodescendente, o gay é homossexual, a cantada na rua é assédio, abrir a porta do carro é machismo e até a gorda virou plus size, a linha entre o humor e o esporro se torna cada vez mais tênue. De forma alguma, faço aqui apologia ao preconceito. É inegável o surgimento de uma nova consciência de mundo, de uma luta por mais igualdade, mas aquela sujeirinha no caráter de cada um que, de quando em vez, se manifesta, está sumindo e pior: está com uma cara feia, cara de coisa errada. As rugas, as espinhas, os culotes, os joanetes, a unha comprida do pé, quando não julgados, viram simbolismos de um feminismo exacerbado, assim como qualquer atitude corriqueira pode virar um ato heroico ou premissa para um linchamento. Não há espontaneidade retocada com botox ou photoshop. Menos plástico, politicamente correto, menos gourmet. Mais decadência, autenticidade, mais bife frito na chapa suja. Vamos nos permitir, ao menos em algum momento, a voltar a ser criança para poder extravasar, parecer burro e incoerente.
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Mumuni Kamarudem deixou Gana para trabalhar no Brasil e envia metade do salário para a família em Accra todos os meses
DE GANA PARA O CAÍ
Dezenas de imigrantes vindos da África e do Caribe em busca de trabalho mudam o cotidiano de um município na região de colonização alemã TEXTO E FOTOS: CARLOS MÜLLER VILLELA cotidiano de Mumuni Kamarudem, 25 anos, não é muito intenso. Ele acorda antes do dia clarear, faz suas preces, trabalha até às 16h. Depois, volta para casa, onde ouve música, conversa com a família pelo WhatsApp e joga futebol com os amigos. Essa rotina é semelhante a de muitos trabalhadores no Brasil, tirando o fato de que Mumuni ainda não domina a língua portuguesa, e deixou a mãe e as irmãs em Gana, país da África, para atravessar o Atlântico e tentar a sorte no Rio Grande do Sul. Ele é apenas um dentre os 110 imigrantes ganeses, senegaleses, togoleses e haitianos que vivem e trabalham em São Sebastião do Caí, município com
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21.000 habitantes, localizado a 60km de Porto Alegre. Mumuni percorreu um longo caminho antes de chegar ao interior do Estado: ele viajou de Accra, capital de Gana, até Istambul, e de lá trocou de avião para São Paulo. Quando chegou ao Brasil, passou quatro dias sem um teto e com dificuldades para conseguir alimentação – período o qual Mumuni diz ter sido “humilhante demais” para relembrar. Auxiliado por um brasileiro, foi encaminhado à casa de outros africanos que moravam na capital paulista. A partir da recomendação deles, seguiu para São Sebastião do Caí em busca de emprego. Ele relembra a tensão que sentiu no ônibus durante a viagem de 1.130km até
Porto Alegre, porque não conhecia o país e outros ganeses. “Não parava de pensar ‘nossa, eu estou indo muito, muito longe’”, diz. Quando desembarcou na rodoviária da Capital, comprou a passagem para São Sebastião do Caí. A distância, bem menor do que as que Mumuni havia percorrido até então, não fez com que ele pudesse ficar mais calmo. “Quando chegamos, fui o último a descer do ônibus. Esperei todo mundo sair, para ter certeza de que eu estava no destino final”. Após uma tentativa infrutífera de conversa com o motorista do ônibus, Mumuni tirou do bolso um papel no qual estava escrito o local que deveria ir: Oderich company. O motorista conhecia
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a empresa, a maior da cidade, e indicou — por meio de mímica — o caminho que ele deveria seguir. Depois de quatro quadras, ele estava em frente ao portão da empresa, onde teve a ajuda de outro imigrante ganês que trabalhava no local. “Eu fiquei muito feliz porque era do meu país, era um irmão. Ele me deu confiança de que eu não estava mais com problemas, e me senti salvo”, conta. O funcionário, seu “irmão” de pátria, pediu permissão ao supervisor para levá-lo até a casa que dividia com outros ganeses, e assegurou ao recém-chegado que encaminharia o encontro com o departamento de recursos humanos da empresa. Uma semana depois, Mumuni entrou para a equipe de operadores de máquina da Oderich – “máquina operador”, diz ele, que ainda não aprendeu as peculiaridades da língua portuguesa. A chefe do RH da empresa, Letícia Oderich Moreira, foi a responsável pela contratação dos 94 imigrantes que trabalham na empresa desde janeiro de 2015, quando foi a Caxias do Sul para acertar a vinda deles para o Caí. Ela também assegurou que os novos contratados tivessem moradia e alimentação, subsidiadas pela empresa por um período de seis meses. “Estávamos com falta de mão de obra, e eles vieram em busca de uma oportunidade, de uma vida melhor. Se a gente pode ajudar, a gente deve ajudar”, justifica Letícia. E, para os imigrantes da cidade, ela é praticamente a salvadora deles no Brasil. “Gostamos
A empresa de conservas Oderich tem 94 funcionários africanos e caribenhos
muito da Letícia. É como uma irmã para a gente, e uma mãe para alguns de nós”, diz Mumuni. O carinho que ele nutre por Letícia é significativo, pois em uma cidade na qual a população negra não chega a 3% do total, de acordo com o Censo do IBGE/2010, e o número de estrangeiros não chega a três dígitos, os imigrantes se sentem deslocados e com necessidade de estabelecer laços de amizade com os caienses. Por conta disso, surgiu na cidade o Movimento de Solidariedade ao Imigrante em São Sebastião do Caí, idealizado pelo publicitário Paulo Schumacher Teixeira e posto em prática por meio de associações de moradores e professores voluntários dispostos a ensinar português para quem tivesse interesse em aprender. De acordo com Teixeira, porém, as aulas não têm como único objetivo o aprendizado. “O fato dos imigrantes estarem em uma sala de aula com um professor caiense que promove a conversação, tanto na nossa língua quanto na deles, faz com que eles se sintam parte de algo maior, sintam-se bem-vindos. E isso obviamente faz um bem enorme para todos os envolvidos”. Para Mumuni e seus irmãos, essa proposta de integração é benéfica. Eles se sentem acolhidos e respeitados na cidade, e esperam que isso aumente quando dominarem o português. Entretanto, Letícia diz que percebe uma inocência nos imigrantes, pois eles não enxergam o preconceito velado de parte da população. “Como aqui não há agressividade explícita, eles estão em paz. Mas nós, que escutamos os que as pessoas falam, nos sensibilizamos por eles”, diz ela. “Tem gente que não quer dividir o banco do ônibus com eles. ‘Nego sujo’, já vieram me dizer. Eu tive que ir até o ônibus para resolver isso e conversar com alguns dos funcionários e o motorista”. Contudo, mesmo fazendo o possível para combater o preconceito enraizado na sociedade caiense, Letícia afirma que as diferenças culturais acabam tornando-se um problema, especialmente com os imigrantes africanos, que são em grande maioria muçulmanos. Ela afirma ser a única mulher na empresa que eles respeitam o suficiente para seguir ordens, por exemplo. Além disso, foi preciso contornar os empecilhos que a crença deles causava em períodos sagrados para o islamismo, como o Ramadã. “Eles não consomem porco, e se recusavam a colocar as latas de salsicha dentro das caixas. A gente tentava explicar que eles não estão tocando na carne de porco, e sim na lata, mas mesmo assim é muito complicado. Alguns tentam me convencer que deveríamos parar a produção
“Eu quero ter dinheiro para ir visitar minha família e passar as férias em Gana, e depois voltar. Agora, a minha vida é aqui.” Mumuni Kamarudem, operador de máquinas desses alimentos, e isso é impossível”, relembra Letícia. Apesar disso, ela acredita ser uma questão de tempo para que eles se adaptem à cidade. “Não vamos impedir que eles sigam suas crenças, mas já vimos que eles estão assimilando como é a vida aqui. Eles sempre serão estrangeiros, mas vão acabar se ‘abrasileirando’ com o tempo”. E, na realidade, se tornar brasileiro de forma definitiva não está nos planos dos imigrantes. Para eles, o Brasil se tornou uma segunda casa, e aqui querem construir uma vida melhor sem perder o contato com suas terras natais. Mumuni, por exemplo, já traçou seus planos a longo prazo. “Eu quero ter dinheiro para ir visitar minha família e passar as férias em Gana, e depois voltar. Agora, a minha vida é aqui”.
“Tem gente que não quer dividir o banco do ônibus com eles. ‘Nego sujo’, já vieram me dizer. Eu tive que ir até o ônibus pra resolver isso.” Letícia Oderich Moreira, chefe do departamento de recursos humanos da Oderich DEZEMBRO 2015 EXP 37
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ELMAR BONES por todos os lados Idealista e sem preço, um dos veteranos do jornalismo brasileiro resiste na percepção de que a reportagem é uma porta aberta para a realidade TEXTO E FOTOS: CRISTIANO DUARTE
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om o olhar atento na produção de conteúdo dos repórteres no Jornal Já, Elmar Bones franze as sobrancelhas ao dar dicas aos colegas de como fazer apuração em política. Ao falar, costuma olhar para cima e para esquerda, como quem constrói visualmente o que se diz. As mãos gesticulam para o alto, o raciocínio é rápido e a fala pausada, carregada com um sotaque de R’s prolongados, natural de Cacequi, cidade a Oeste do Rio Grande do Sul. Ele não usa gravatas, apenas camisa e terno. Os cabelos são brancos e bem penteados, a barba sempre aparada. Elmar Bones é um galã dos velhos tempos. — É preciso estar atento. Saber o quê e como perguntar. O jornalismo não pode ser usado para político fazer politicagem — explica Bones. Uma mistura de aroma de livros, mofo, páginas de jornais e cigarros são característicos na redação do jornal Já. A luz fraca reflete-se nas paredes bege do antigo escritório, localizado na escadaria do Viaduto Otávio Rocha, incrustada na Avenida Borges de Medeiros, centro de Porto Alegre. Aos altivos e libertários 71 anos, Elmar Bones é repórter, editor, escritor e empreendedor. Papéis, dossiês, documentos e investigações lotam a mesa de Elmar. Seu escritório é circundado por sua biblioteca. Trabalha-se no Já com a porta aberta, a rua é priorizada em relação a telefonemas ou e-mails. Algumas das melhores reportagens do Já foram debatidas em mesas de bar. Sempre é hora de falar sobre jornalismo e prosear sobre os rumos do Rio Grande. Boêmio de primeira, Elmar Bones toca samba no violão, desenha no seu bloco de notas ou pinta quadros em momentos de insônia. Cultiva muitos amigos, mas desafetos também tem, por dois motivos principais: reportagens bem feitas e salários que deixou de pagar. Casos e acasos fizeram de Elmar Bones um dos jornalistas mais reconhecidos do Rio Grande do Sul. O acaso começou em 1961, aos 17 anos, quando começou a trabalhar no balcão de anúncios do jornal A Platéia, em Santana do Livramento. Seus olhos corriam pelo jornal buscando histórias e informação, mas tudo parecia repetitivo e sem graça. Onde deveria ter conteúdo, perdia-se as vistas em classificados, anúncios sociais, aniversários e obituários. Logo começou a reescrever os textos, ao seu modo e, assim, a direção do diário reconheceu o talento de Bones em narrativas. Foi promovido a revisor.
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— Morávamos no mesmo bairro em Santana do Livramento. Digo que Elmar Bones é meu melhor amigo com todo prazer. São 50 anos de amizade. Iniciamos trabalhando juntos no jornal A Plateia e assistimos juntos o golpe militar em 1964. Fora da redação, percorríamos a cidade fazendo pixações de “Cuba sim, Iankes não!” — comenta Kenny Braga, jornalista. A subversão ao sistema e a participação ativa no movimento estudantil marcaram Elmar e Kenny aos olhares conservadores de Santana do Livramento. Logo após o golpe militar, vieram prestar o vestibular em Jornalismo na UFRGS, em Porto Alegre. Mal sabiam que já estavam sendo vigiados e investigados pelos militares. A suspeita era de que os promissores jornalistas tinham vindo à capital para unir forças no recrutamento de Jefferson Cardim de Alencar Osório, corono do Exército e brizolista que passou anos no exílio e criou o Movimento 26 de Março (M-26), um grupo de ação armada contra o governo militar, que se iniciou na mesma cidade dos, então, jovens. A dúvida dos militares custou 20 dias de prisão a Bones e Kenny.
Desde que virou repórter, ele só queria estar no jornal – ou em bares, falando do jornal. Entre idas e vindas a Santana do Livramento, onde ainda atuava como revisor, e a Faculdade de Jornalismo, em Porto Alegre, Bones exercia três trabalhos simultaneamente: estagiário do Jornal do Brasil, Folha da tarde e ainda fazia o boletim do Instituto dos Arquitetos. Em meio à crise jornalística com a repressão e censura da ditadura militar, logo as redações foram enxugadas por demissões e crises internas. Bones resistia. O potencial jornalístico e o faro para a apuração dos fatos lhe renderam o cargo de repórter na Folha da Tarde. A partir disto, ele só queria estar no jornal - ou pelos bares, falando do jornal. Faltava apenas a cadeira de Português para Bones se formar em jornalismo quando abandonou o curso de Jornalismo. Um pequeno atraso, e seu professor não permitiu que fizesse a última prova. O que, de fato, não fez falta para quem já era notoriamente reconhecido pelo tex-
to e pelo gosto por leitura. Ele não tinha tempo a perder. A ditadura militar avançava, e a liberdade de expressão começava a ser severamente censurada. Era preciso resistir: — A mídia adquiriu um novo papel após o golpe. Aparelho político sempre foi, mas após o golpe existe uma mudança de natureza. Antes todos tinham uma postura comum, ideológica, capitalista, mas eles tinham as divergências partidárias entre si. O golpe uniu-os em interesses, fazendo um bloco de acordo, onde foram privilegiados e ganharam e ainda ganham seus devidos benefícios. Em 1968, foi para São Paulo, quando a cidade era o foco da repressão. Jornalistas engajados contra a ditadura se uniam para lutar pela liberdade de imprensa e por democracia. Elmar foi aprovado na seleção de jornalistas que integraram a equipe que, mais tarde, lançaria as primeiras edições da revista Veja. Morando em São Paulo, enfrentava uma rotina exaustiva. Editou mais de nove edições de número zero da Veja antes que ela finalmente fosse às bancas. Amante das artes, atuou na editoria de Artes e Espetáculos cobrindo os bastidores da televisão. — Era um período em que os intelectuais tinham preconceito com a televisão e as culturas de massa — explica Bones. Ao retornar para a capital gaúcha, em 1972, Elmar foi desafiado a tirar o jornal Folha da Manhã de uma crise que enfrentava em suas vendas e também na identidade do veículo. Com a nova orientação editorial de Bones, a Folhinha transformou-se em uma publicação mais crítica em relação ao regime, o que repercutiu bem nas vendas, porém causava um estranho desconforto na empresa. — Este trabalho que o Elmar fez com a Folha da Manhã foi uma fonte inspiradora para muita gente, inclusive eu, enquanto repórter em Alegrete, no início dos anos 1970. Bones, como editor-chefe, comandou uma turma de grandes jornalistas, onde surgiu Caco Barcellos, entre outros — lembra Moisés Mendes, colunista em Zero Hora. Em 1974, Bones começou a articular o Coojornal, mensário da Cooperativa dos Jornalistas que integrou parte de um movimento chamada imprensa alternativa ou imprensa nanica. A ideia de montar o jornal, entre outros fatores, veio da vontade de jornalistas da Folha da Manhã em continuar fazendo um jornal de crítica, sem a interferência das grandes empresas de comunicação. DEZEMBRO 2015 EXP 39
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Além disso, ele percebeu o interesse de parte da população na abordagem de temas e assuntos que ampliassem a pauta e o debate democrático. Estava convencido de que a mídia tradicional nunca teria a solução ideal para os jornalistas, pois sempre foi atrelada aos interesses próprios e não ao interesse da população. — Todos os veículos de comunicação simulam que defendem o interesse público, assim como a ditadura simulava ser democracia. O caminho bom para eles é o que resulta em negócios, principalmente quando o Estado oportuniza isto — defende Bones. A dificuldade financeira nas primeiras publicações do Coojornal fizeram com que Bones se associasse a Jorge Polydoro, que na época era o único amigo que poderia investir capital no projeto, fundando a Verbo, editora que atuou com jornais e revistas para empresas. Assim, os jovens jornalistas inquietos conseguiram verba para a publicação das primeiras edições do Coojornal. Por tratar-se de uma cooperativa, cada integrante era um voto nas decisões do coletivo. — Começamos editando um caderno especial do Sport Club Internacional, chegamos a ganhar o Prêmio ARI de Esportes. O Elmar é um cara muito lúcido, sem ranço. Os velhos jornalistas costumam ser rançosos. Isto é algo que admiro nele. O Bones é um cara que não se leva muito a sério. Mesmo sendo muito inteligente e reconhecido, não se acha nenhum gênio. A CooJornal não tinha o intuito de ser revolucionária. Apenas queria fazer jornalismo. Queria falar o que não deixavam falar — relembra Ricardo Chaves, o Kadão, colunista do Almanaque Gaúcho. Com o CooJornal instituído, em 1974, os negócios começaram a crescer. A Cooperativa chegou a produzir 35 publicações para terceiros, entre os anos 1970 e 1980, e empregou mais de cem jornalistas, que recebiam salários de mercado. De início, o CooJornal funcionava como um boletim que informava o que acontecia nas redações, nas agências de publicidade, no mercado de comunicação e na área acadêmica. A tiragem do jornal começou a crescer e quando chegou a 5 mil exemplares, os jornalistas reuniram-se para tornar o CooJornal em um jornal para ser colocado nas bancas. Afinal, a ideia de de ter um jornal estava na raíz da Cooperativa. A primeira edição que chegou às bancas, em 1975, tinha 28 páginas e 8 mil exemplares. — Começaram a nos mandar materiais de redação que não puderam ser aproveitados nos veículos tradicionais. Afinal,
Há 30 anos, Elmar Bones lidera a edição do Jornal JÁ. A redação funciona numa sala
anistia, torturas e cassações, por exemplo, eram temas que não podiam ser abordados. O Coojornal começou a tocar nestes temas. Em vez de falar do movimento pela anistia, a gente fazia matéria sobre a história da anistia no Brasil O Brasil já teve mais de 50 anistias. Sempre houve uma anistia de reconciliação em momentos de conflitos históricos — explica Bones. Quando Elmar Bones dividia suas tarefas entre o Coojornal e a Gazeta Mercantil, em 1983, os militares perseguiram Bones para questionar a reportagem de um especial do Coojornal que revelava em sua publicação alguns documentos secretos do Exército, onde abordavam ações de repressão a movimentos guerrilheiros tomadas pelo Exército Brasileiro, em 1969. O documento foi entregue por um militar, que também lutava contra o regime ditatorial. — O Elmar foi preso dentro da redação da Gazeta Mercantil. Dividimos a prisão por 5 dias. Na primeira noite, ele ficou preso com um cara que assassinou um rapaz com golpes de karatê, no entorno do Parcão, em Porto Alegre. Bones sempre lembra com muito humor que o seu colega de cela, apesar do histórico, foi muito gentil com ele na noite em que ficaram presos juntos — conta o jornalista e escritor Rafael Guimaraens, da editora Libretos. Com o início da abertura da ditadura militar e o começo da Diretas Já, Elmar Bones, Osmar Trindade, Rosvita Saueressig e Rafael Guimaraens foram orientados pelo advogado Marco Tulio de Rose, a impetrar
um habeas corpus, conseguindo, assim, a liberação da prisão. Porém, a história do CooJornal ia chegando ao fim. Os militares passaram a visitar os anunciantes do periódico, a queda na publicidade foi gigantesca. A severa repressão militar fez com que o jornal fechasse em 1984. “AUTOCENSURA É A PIOR” Há 30 anos, Bones lidera a edição de um jornal independente que sobrevive e luta de forma veemente pela liberdade de imprensa. A missão: noticiar tudo o que a grande mídia se omite em informar, seja por interesses políticos ou econômicos. O JÁ, como é conhecido, é uma empresa propositalmente pequena, feita para distribuição e disseminação de informação local, mais especificamente a região central da Capital, nos entornos do Bom Fim e nos devaneios das ruas da Cidade Baixa. — É como se ele visse o JÁ como uma fogueira tímida, no meio da cidade, onde todo mundo que quiser pode chegar pra ouvir histórias e saber o que anda acontecendo e, principalmente, COMO anda acontecendo — explica Tiago Lobo, jornalista freelancer que trabalhou ao longo de uma década com Bones. O modo pasteurizado de produção de conteúdo dos grandes veículos de comunicação nunca lhe agradou. Nunca conheceu a tal liberdade de imprensa por onde passou. De um lado, a censura militar da ditadura, de outro a censura das empresas de comunicação dotadas de poder e inte-
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de extremo interesse público: a maior fraude no Estado. Na instância cível, a coisa mudou. Bones perdeu a ação e teria de pagar R$ 100 mil para a família Rigotto por dano moral. Sem acordos e sem pagamento, o jornal Já teve suas contas bloqueadas, Bones persistiu e abriu uma outra editora para o Já, que teve suas contas bloqueadas. O processo se arrastou por 10 anos. — Eu não conheço o Elmar Bones — explica, de forma breve, Germano Rigotto, ex-governador do Rio Grande do Sul. Bones segue firme e forte com as publicações no Jornal Já, não pretende se aposentar, inclusive jogou fora sua carteira de trabalho e acha que já descansa demais, apesar de ter a a mania de querer fazer mais coisas do que consegue, marcar muitos compromissos e não conseguir cumprir todos. Faz o que pode, e o que pode sempre deu certo. no prédio da Associação Riograndense de Imprensa (ARI)
resse. Mais do que um praticante, Bones é um pensador do jornalismo: — A autocensura é a pior das censuras. A informação que circula pela grande mídia é limitada. Por vezes, é domesticada por uma série de interesses e razões . Hoje temos uma censura mais insidiosa e nociva do que a censura da ditadura. É velada e se presta a um certo mascaramento da situação. A liberdade de imprensa é pra quem pensa de um determinado jeito. E por contar o que acontece e como acontece, por isto, e só por isto, o Já sofreu o mais persistente e inclemente processo judicial contra a liberdade de imprensa, que perdurou por mais de 10 anos. O Caso Rigotto, conhecido por alguns, ou o Caso do Jornal Já, conhecido por outros. — A gente chama de Caso do Jornal Já porque, após a publicação do Caso Rigotto, em 2001, o Já tornou-se réu de um processo de dano moral que estrangulou o desenvolvimento do jornal a ponto de quase fechar — conta Patrícia Marini, jornalista e mulher de Elmar Bones. O CASO DO JORNAL JÁ A reportagem publicada em maio de 2001, de autoria de Elmar Bones, contava a história de Lindomar Rigotto, conhecido como Teti, irmão do ex-governador Germano Rigotto (PMDB). Teti foi investigado no âmbito de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) da Assembleia
Legislativa que apurou fraudes em licitações de geradores para a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). Tudo começou em 1987, quando Germano, então deputado estadual, indicou o irmão como “assistente da diretoria financeira”, na CEEE. Já empossado no cargo, Lindomar conseguiu livrar em apenas oito dias dois consórcios de uma burocracia que, ao certo, se arrastaria por meses. Uma investigação da área técnica da CEEE percebeu que havia problemas na papelada — documentos adulterados, folhas numeradas a lápis e licitação sem laudo técnico provando a necessidade da obra. O jornal Já foi o único veículo de comunicação do Estado a contar a história do início ao fim, culminando na misteriosa morte de Lindomar Rigotto, em 1999, encontrado morto com um tiro no olho dentro de seu carro. A reportagem de quatro páginas deu ao Já os principais prêmios do jornalismo, incluindo o prestigiado Esso. Mas nem todo mundo gostou da publicação da história. A família Rigotto abriu dois processos na Justiça: um por calúnia e difamação e outro pedindo indenização por dano moral. A denúncia foi feita pela matriarca, dona Julieta Rigotto, hoje com 94 anos. — Nós não gastamos tinta com nomes. A causa aqui é o interesse público — explica Patricia Marini. Na instância penal, Elmar Bones recebeu honrarias dos juristas, elogiando sua reportagem que abordava um tema
BONES POR BONES O trabalho no jornal Já é em tempo integral, quando está na Capital. Hoje, Bones divide-se entre Porto Alegre e Florianópolis. Em Santa Catarina, vive com a esposa Patríca, a filha Ivone, estudante de artes cênicas, 27 anos, os netos Iago, seis anos e Iasmin, quatro, e os cães. O filho, Mariano, jornalista de 30 anos, mora na Alemanha. A busca de descanso na ilha foi em meio ao Caso Rigotto, quando Bones se viu sem perspectivas de trabalho em Porto Alegre. Neste período, escreveu livros, publicados graças às leis de incetivo à cultura. Entre os livros publicados estão A Paz dos Farrapos, Pioneiros da Ecologia e Histórias da Santa Casa, todos grandes reportagens, que Bones vê como uma possibilidade para que todos tenham acesso à informações e leitura, sem devaneios românticos ou acadêmicos. Em Floripa, o jornalista atualmente escreve dois livros ao mesmo tempo. Mas em meio à produção nos dois Estados, na ilha o jornalista aproveita para relaxar e fazer tudo que não tem tempo de fazer na capital gaúcha. Caminhar na praia, ler, tocar violão e pintar. Alguns dos textos escritos por Bones são composições de samba e MPB. Violeiro desde os tempos de guri, desistiu da música quando percebeu que não seria o melhor dos músicos. Como bom intelectual, gosta de linguagens diferentes: seja na arte ou nas reportagens. A arte ajuda-o a explorar outras visões e interpretações, que acabam por agregar no seu impeto jornalístico. Para Bones, tudo é jornalismo. DEZEMBRO 2015 EXP 41
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TRANSFORMAÇÃO Atriz, produtora e diretora, Deborah Finocchiaro fala sobre os 30 anos de carreira no teatro TEXTO E FOTO: JULLI MASSENA pequeno escritório é repleto de fotografias com entes queridos e mensagens positivas escritas à mão. As portas do armário de madeira são decoradas com adesivos de algumas das peças que realizou em 30 anos de carreira. Uma prateleira bem organizada comporta títulos que vão de Saramago a Osho, mostrando as inspirações de uma artista completa. Deborah Finocchiaro, 49 anos – atriz, diretora e produtora de teatro, acredita que todas as formas de arte carregam em si o objetivo de transformar. Nascida em Porto Alegre, no dia 16 de junho de 1966, atuou, cantou e dirigiu peças em todo o país. Multipremiada, também é apresentadora, roteirista e locutora, com trabalhos em cinema, rádio e televisão. A paixão pela arte é uma velha companheira: Deborah toca violão desde a infância. Mas foi na adolescência, aos 18 anos, que teve o primeiro contato com o universo cênico, quando realizou um teste a convite de uma amiga. Depois de algumas audições, chegou à oficina de teatro do realizador Luciano Alabarse – com quem mantém forte relação profissional até hoje, considerando-o seu padrinho, onde foi escolhida para contracenar com ele na montagem de Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues, durante a primeira edição do festival internacional de teatro Porto Alegre em Cena. A segunda montagem em que atuou, uma adaptação de Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu, foi o bastante para confirmar que seguiria na carreira de atriz. “Na época, ainda morava com a minha mãe. Então foi possível me estruturar dentro dessa profissão, começar a ganhar dinheiro e até conseguir me sustentar com isso”, conta Deborah. A estreia no cinema se deu de forma
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A atriz em seu escritório, onde guarda fotografias e lembranças das peças realizadas parecida, a partir de uma descoberta ainda na adolescência. Ela se recorda de ter feito um papel pequeno em um filme aos 15 anos. Mas foi em 1986, logo após sua entrada no teatro, que despontou também no audiovisual. A primeira personagem veio com o filme O Gato, de Saturnino Rocha. O média-metragem rodado em São José do Norte levou quase duas décadas para ser finalizado e estreado. No cinema, Deborah ainda teve participações nos filmes A Matadeira, de Jorge Furtado, Nossa Senhora do Caravaggio, de Fábio Barreto e, por último, Gildíssima, de Alexandre Derlan, em 2013. Seu último trabalho no audiovisual foi a série Animal, de Paulo Nascimento, exibida pelo GNT em 2014. “Em relação ao teatro, em números, não é nada. Tenho vontade de fazer muito mais, eu adoro”, revela. Foi no Instituto de Artes da UFRGS, onde graduou-se em 1985 com habilita-
ção em Interpretação Teatral, que a artista teve acesso a grande parte das técnicas de atuação que conhece e aplica até hoje em seu trabalho. Mas foi lá, também, que conheceu as primeiras decepções da carreira. Deparou-se com um ambiente que, muitas vezes, engessava a criação artística e dava espaço a relações verticais entre mestres e aprendizes. Dos bons momentos, recorda-se da participação em uma pesquisa científica orientada pelos professores Irion Nolasco e Maria Lúcia Raimundo. “Eram pessoas incríveis – ela faleceu e ele ainda é vivo. Lá a gente treinava muito e foi onde eu adquiri e tive acesso a um treinamento e a um conhecimento específico e técnico bem importante”, recorda. As técnicas aprendidas permitiram que aliasse o conhecimento musical com as artes cênicas. “Interpretar, para mim, é totalmente musical. É feito de silêncios, de pau-
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PELA ARTE Foto: Arquivo Pessoal/Vilmar Carvalho
No espetáculo Histórias de um Canto do Mundo
sas, de dinâmicas. O princípio da atuação é o mesmo da música: respiração, silêncio, pausa, volume, intensidade, as notas, os gestos. A harmonia, a melodia, a forma como se fala é musical, então a base é a mesma. Tendo a musicalidade dentro de mim, eu vejo que só faz enriquecer o meu trabalho”, relata a atriz, que enxerga a música como a forma de expressão artística que consegue transmitir suas mensagens da maneira mais direta e efetiva. “Não estudo música, não fico me exercitando – seria ótimo se fizesse isso. Quando vou fazer um espetáculo, tenho que treinar, e isso é ótimo. Mas tocar me faz muito feliz, tocar de brincadeira também. Acho que a música é muito feliz, é um elemento para o mundo”, completa. Sem intenções de retornar ao mundo acadêmico, seja para lecionar ou para obter novos graus, Deborah é gestora da própria carreira. “Não posso me queixar em
nada. É bastante trabalho, mas é uma escolha mesmo. Acredito que é uma escolha de vida. Abro mão de ter um salário fixo em nome da minha liberdade”, explica. A carreira independente demanda organização e disciplina – atributos que nela ficam claros ao se observar as pastas organizadas do computador, com diversas fotografias das últimas peças estreadas. “Um salário fixo não garante nada, é uma ilusão achar que se tem uma garantia. A gente vê as pessoas vivendo suas vidas esperando a aposentadoria para fazer o que gostam. Mas quando chegam lá, às vezes não têm energia nem saúde para isso”, completa. Em 2006, deu início a Companhia de Solos & Bem Acompanhados, da qual fazem parte todas as peças em que atuou e dirigiu desde então. Para ela, a companhia foi um instrumento importante para garantir a independência em suas escolhas de trabalho. “Decidi criar uma companhia para fa-
zer as peças que eu queria, falar dos temas que acho importantes de serem falados. O teatro que faço hoje é a busca dessa afirmação, dessa crença de que através da arte é possível transformar, contribuir para um mundo mais digno, mais humano, mais igual”, afirma. Os elencos com quem atua são sempre pequenos – em geral, espetáculos solo com um convidado – e devem estar alinhados aos valores que procura transmitir. Uma equipe pequena também garante maior liberdade para estrear as peças em outros estados do Brasil. “Gosto de estar na estrada mesmo”, confirma. “GAZA É AQUI” Mulheres de burca distribuem pequenas fichas ao público que chega para o espetáculo no hall do Centro Histórico-Cultural da Santa Casa. São questões objetivas a serem respondidas pelo público ao final da apresentação, para fins de avaliação e DEZEMBRO 2015 EXP 43
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aprimoramento do trabalho da Companhia de Solos & Bem Acompanhados. A técnica é posta em prática em todas as peças da companhia, desde o começo. A noite é de GPS Gaza, peça com direção de Camila Bauer. No elenco, uma dupla em sintonia completa, usando figurinos simples em um cenário quase vazio, traça um paralelo que liga o conflito entre e Israel e Palestina aos problemas do Ocidente, mais particularmente do Brasil. “O tema que quero falar é sempre o mesmo: injustiça social, valores. A guerra é muito absurda, matam-se milhões de pessoas e isso não é considerado crime, sendo um bandido vira-se herói”, explica Deborah. No palco, a personagem sem nome da atriz Sandra Dani, enfrenta a realidade de um front de guerra. No grande projetor de vídeo atrás da cena, porto-alegrenses respondem: o que é Gaza? A peça, fruto de extensa pesquisa e criação conjunta de Deborah e Camila Bauer durante dois anos, estreou em setembro de 2014, na 21º edição do Porto Alegre em Cena. Em cartaz todo ano, ainda passará por mudanças nas mãos de suas criadoras. “O roteiro tem várias coisas que podem ser melhoradas ainda. O teatro tem essa propriedade: tu podes ir sempre mudando, podes aprimorar, transformar. Isso é o bacana desta linguagem”, comenta Deborah. Sandra Dani, atriz e professora aposentada do Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS é parceira de trabalho de longa data e participou do processo de criação da peça junto a Deborah e Camila. “Sandra é uma atriz incrível, aprendo muito vendo ela atuar. É um privilégio ter ela em cena. Foi um processo que nos ensinou muito”, conta. HUMOR QUE DESARMA Uma das peças mais importantes da carreira de Deborah, Pois É, Vizinha está em cartaz no teatro gaúcho há 22 anos, tendo se tornado um clássico. O trabalho, que trata de questões como a violência contra a mulher, gênero e justiça, se mantém atual desde a estreia em 1993. Adaptada e dirigida por Deborah, Pois É conta a história de Maria, mulher confinada em casa pelo marido machista. Com bom humor, faz a plateia rir do começo ao final, até perceber que se trata de uma tragédia. O texto original é Una Sola Donna, do dramaturgo italiano Dario Fo, Nobel de Literatura em 1997, e sua esposa, a atriz Franca Rame. “Ele é um dos dramaturgos mais importantes e tem esta característica, da comédia para falar de questões totalmente trágicas e dramáticas”, conta. Ela
“Acredito que é uma escolha de vida. Abro mão de ter um salário fixo em nome da minha liberdade.” Deborah Finocchiaro, atriz, diretora e produtora de teatro
defende, também, que o humor possa ser usado nas formas de expressões artísticas como uma forma de abordar os tabus e preconceitos. “Se através da comédia não se puder fazer isso, imagina onde vamos poder falar?”, questiona. Transitando com naturalidade entre as diferentes funções que desempenha nas peças realizadas pela Companhia de Solos & Bem Acompanhados, Deborah diz se sentir a vontade e aprender sempre mais com cada uma. “Eu atuo mais do que dirijo mas adoro dirigir também. Gosto de dirigir ator mais do que dirigir espetáculo, mas também adoro concepção”, afirma. As inspirações para conceber os textos vêm de diferentes maneiras. “A criatividade é livre e se dá de diferentes formas: às vezes é um som, uma imagem, uma palavra, um tema. Nos trabalhos que escolho fazer na minha Companhia, é sempre o tema que me leva e aí a linguagem vem a partir dele”. Em 2014, Deborah foi a artista homenageada na 21º edição do Porto Alegre em Cena, ganhando uma biografia escrita pelo jornalista cultural Luiz Gonzaga Lopes. Para ela, o convite do Coordenador Geral do Festival, Luciano Alabarse, foi uma surpresa. Com o título A Arte Transformadora, o livro é o quinto da série Gaúchos em Cena, que conta todo ano as histórias de atores, atrizes e diretores importantes para o festival. A atriz participou ativamente da elaboração da obra, encarando o processo de criação como um balanço dos obstáculos e realizações da carreira até então. Foto: Arquivo Pessoal/Daniel Sasso
A atriz e professora Sandra Dani divide o palco com Deborah na peça GPS Gaza
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A NOVA GERAÇÃO DO
CINEMA GAÚCHO Cineastas que surgem entre os melhores do Rio Grande do Sul falam sobre a sétima arte TEXTO E FOTOS: LUCAS VIDAL DOMINGUES
rês jovens cineastas com ideias bem particulares sobre a sétima arte dão novos ares ao cinema gaúcho. Felipe Iesbick, Emiliano Cunha e Fernando Bassani fazem parte da geração que está dando vida e projeção nacional aos filmes feitos no Rio Grande do Sul. Inspirados pelo passado glorioso construído na década de 1980 por nomes como Nelson Nadotti, Giba Assis Brasil e Carlos Gerbase e, na década de 1990, por Gustavo Spolidoro, eles reconhecem a importância dos seus antecessores. Eduardo Wannmacher, professor de cine-
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ma na PUC-RS e também cineasta, explica que esses jovens conseguiram fazer cinema mais rapidamente e em maior quantidade por conta das novas tecnologias, que baixaram consideravelmente o custo da produção. Ele lembra que, em outras épocas, os diretores conseguiam realizar os seus primeiros longas quando já beiravam os 40 anos. “Agora, todo o processo está mais fácil e mais barato”, resume. O professor comenta que outro fator que diferencia a nova safra de cineastas das antigas é o fato de eles serem oriundos da academia, enquanto os outros eram autodidatas. Na década de 1980, foi realizado o que Wannmacher chama de “cinema urbano”, pois Nadotti, Gerbase e Assis Brasil trouxeram temáticas que interessavam à juventude, como a solidão e as angústias daquele período. “Cunha, Bassani e Iesbick fazem parte da terceira geração urbana”, contextualiza Wannmacher. Iesbick, Bassani e Cunha já receberam reconhecimento por seus filmes. Cunha ganhou o prêmio de melhor curta universitário por Fonemas, no Festival do Minuto. O cão participou de festivais nacionais e in-
ternacionais (incluindo Festival de Paulínia, Interfilm Berlin e Festival de Cine de Huesca), e ganhou melhor filme no Festival de Cinema Universitário de Alagoas, além de melhor roteiro e desenho de som no Festival Primeiro Plano, entre outros. Lobos, outro curta-metragem de Cunha, ganhou o Prêmio Assembleia Legislativa de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Gramado. Tomou café e arrebatou o Kikito de Melhor Desenho de Som no Festival de Gramado e Menção Honrosa do Júri no Festival de Cine de Huesca, além de melhor ator e direção no 2˚ Cineserra. O jovem cineasta também ganhou prêmios de melhor montagem por outros trabalhos. Na Mostra Gaúcha do 41º Festival de Cinema de Gramado, em 2013, Eisbeck venceu, com O Matador de Bagé, os prêmios de melhor filme, melhor ator (João França), e melhor música, para Frank Jorge. Por Onde Anda o Rock and Roll levou o prêmio Histórias Curtas, em 2015, nas categorias de melhor ator coadjuvante (Rogério Beretta) e melhor música e melhor ator, novamente para Frank Jorge e João França. O documentário Gutierres, que retrata a
Acima, cena de O Cão. Filmes de Emiliano Cunha, que se diz um entusiasta do plano-sequência já foram premiados em muitos festivais DEZEMBRO 2015 EXP 45
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Felipe Iesbick, que já venceu o Festival de Gramado com “O Matador de Bagé” (ao centro), gosta de filmar os rostos dos atores .
vida do artista plástico e músico Pedro Gutierres, dirigido por Bassani, foi selecionado para a 25ª edição do Curta Cinema 2015, realizado no Rio de Janeiro, e para o Encontro Nacional de Cinema e Vídeo dos Sertões, no Piauí. Bassani também venceu o II Festival Movemundo de Cinema e Vídeo, em Betim, Minas Gerais, por Alice na Cama, curta-metragem que também circulou por festivais em todo o Brasil, realizado por Bassani ainda nos tempos de faculdade. Iesbick afirma que, no futuro, gostaria de poder olhar pra trás e notar que deixou sua marca. “Tem muito de mim nos filmes. Algumas vezes, até bem escondido, mas tem. Alguns medos, algumas obsessões e uma falta de enrolação que eu acho fundamental na vida. Sempre tento fazer com que os personagens sejam mais diretos”, aponta. Cunha define-se como “um devoto do filme”. Ele acredita que a própria obra tem poder para ditar as suas vontades e necessidades, independente de resultados ou concessões. “Tendo a pensar cada novo projeto meu como único e último para que ele me ‘diga’ o que deseja ser”, explica. Ele demonstra preocupação com a durabilidade dos seus filmes, deseja que eles não estejam fadados ao esquecimento. Bassani espera ter conseguido deixar a sua marca nos dois curtas-metragens que dirigiu e roteirizou até então, Alice na Cama e Gutierres. “Esses dois trabalhos que eu fiz foram bem pessoais”, resume. Ele está com um novo projeto em mente e explica que, mais uma vez, o roteiro será inspirado em experiências particulares. “A ideia surgiu a partir de um relacionamento que não vingou”, confessa. “Qualquer roteirista ou diretor estaria mentindo se não assumisse o uso de experiências pessoais nos filmes”, opina Cunha. Segundo ele, a utilização de fatos da vida pessoal serve como terapia para o artista do cinema. Cunha explica que é possível incluir, na fala de um personagem, algo que tenha ficado mal resolvido na própria vida.
Nesse processo, de acordo com ele, é inevitável que alguns personagens, situações ou locais reverberem memórias, sentimentos e ideias do próprio cineasta ou de alguém com quem ele convive. “É preciso sempre aproximar ao máximo o objeto fílmico de si. É lindo”, comenta. Iesbick diz que é bastante apegado ao passado e que, consequentemente, os personagens dos seus curtas são nostálgicos. A dificuldade que ele admite ter em assimilar as mudanças da vida, que ocorrem independentemente de querermos ou não, se reflete nos seus roteiros. Ele também faz pequenas homenagens a pessoas próximas, colocando-as nos filmes, seja com o nome de um personagem ou convidando-as para participarem como figurantes. Ele cita que há fotos da sua família pelo cenário e que um personagem de Por Onde Anda o Rock and Roll tem o nome da sua mãe. Bassani considera difícil medir o quanto os gostos pessoais influenciam, de fato, na obra de um diretor, principalmente no caso dele, que está começando. “Acho que, muito mais que os filmes, músicas e outras práticas culturais, a maior referência acaba sendo as nossas próprias experiências”, resume. Para ele, o diretor Bernardo Bertolucci é a maior referência, especialmente Último Tanto em Paris: “pela maneira como retrata o amor, o sexo e o medo da solidão. Acho um filme bem visceral. Não tem nada
‘sobrando’.” O filme preferido de Iesbick, que ele ressalta ser um gosto “totalmente pessoal”, pois “gostaria de tê-lo feito”, é Os Infiltrados (The Departed), de Martin Scorsese. “A direção é uma coisa espetacular, a montagem, o jeito que move a câmera, as cores, as trilhas. Sensacional. Ele tem uma abordagem que me agrada muito, se movimenta com a cena, sua câmera passeia. Usa todos os tipos de técnica de movimento, mas também sabe a hora de ficar estático”, elogia. Iesbick empolga-se ao falar do ritmo de Os Infiltrados. Ele comenta que aprendeu com esse filme várias técnicas de montagem e de uso do som como forma de elipse, que usa desde então. “Foi instantâneo. Vi o filme no cinema, em 2006, vi mais quatro vezes ainda na telona, comprei o DVD, depois o Blu-ray. Adoro a sensação de ladeira abaixo que ele passa. Tudo dá errado e o final é tão pessimista e cínico que sempre vibro e dou risada. Quem viu sabe ao que me refiro. É impossível desgrudar da tela”, relata. Recusando-se a citar um único diretor favorito, Cunha afirma que, hoje, suas mais relevantes influências são Michael Haneke, Yorgos Lanthimos e Lars von Trier. O que o agrada é o “lado humano” desses realizadores. Segundo Cunha, eles falam do que há de mais cruel e verdadeiro no homem: “Gosto de me sentir provocado e, principalmente, desconfortável durante e após a sessão. É um cinema que remói e corrói por dentro, uma sensação que perdura. A indiferença, diante de uma obra, é, para mim, o pior dos sentimentos. E os filmes destes cineastas, de uma maneira geral, não te permitem esse tipo de sentimento”. Cunha vibra ao lembrar da cena da “despedida” em Amor (Amour), de Michael Haneke. Registrada em apenas um plano, ele diz que foi “conduzida em um ritmo impecável, captura a essência do filme”, que e´, segundo ele, o amor, na sua forma mais dura, cruel, mas verdadeira. “É perversa, mas de uma beleza e profundidade espeta-
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Fernando Bassani, recém-formado, diz que filma de forma “apaixonada”. Acima, a atriz Joana Vieira em uma cena de “Alice na Cama” culares. É pungente, sublime e reúne diversas características do diretor como o ‘não-ver’, a sugestão, a aspereza do olhar sobre o mundo, a intimidade das personagens e nossa com eles, o silêncio no lugar de uma trilha sonora marcante”, elogia. Ingmar Bergman, Gaspar Noé, François Truffaut e Bela Tarr também capturam o humano da forma que encanta Cunha. De maneiras bem diferentes, ora mais simples, ora mais rebuscadas, esses realizadores buscam o que Cunha chama de “carne exposta”, a entrega crua e total das personagens: “São filmes que te golpeiam, te arrebatam, fazem com que acessemos outros caminhos (corporais) para a formação de sentido. Isso é o que desejo na minha obra. Infelizmente ou felizmente, não há fórmulas para tanto”. Para marcar o estilo de um diretor, a forma de filmar e os planos que ele usa fazem toda a diferença. Cunha diz que é preciso evitar a repetição, pois o cinema é “fenômeno, partilha de subjetividades”. Como Jean-Luc Godard disse, “o cinema não é arte, nem técnica, mas um mistério”. Diante dessa concepção mágica, quase divina, da sétima arte, Iesbick defende o plano como o que faz o espectador gostar ou não do filme. “O plano é força capaz de fazer brotar uma ‘história’”, defende Cunha. “Diretores bons, que sabem o que estão fazendo, contam uma enorme quantidade de coisas apenas com um ou dois enquadramentos”, justifica Iesbick. O plano também tem poder de síntese que, depende muito do autor, mas que também tem o poder de aproximar ou afastar a história de forma intencional. “A posição da câmera pode determinar uma grande variação de sentimentos, como ameaça, imponência, impotência, vazio, clausura”, explica ele. Professor de Cunha na faculdade de cinema da PUC-RS, Wannmacher relembra: “Ele sempre gostou muito de estudar, gostava de pensar a direção do filme. O Cão, por exemplo, foi uma aposta narrativa dele, quando ainda estava no quarto semestre, e tem um conceito específico de curta-metragem, que
acho muito importante.” Cada diretor tem seu plano preferido, conhecido, na linguagem do meio cinematográfico, como o “plano fetiche” do cineasta. Cunha é um entusiasta do plano-sequência: “é encontrar o tempo e ritmo ideais para a cena ser capturada em um plano apenas. Porém, nem sempre é possível”, lamenta. Bassani garante não ter um plano preferido. Ele ressalta que, independentemente das escolhas feitas no momento da decupagem darem certo ou não, todas elas são feitas de maneira apaixonada. “Gosto muito de usar travelling in nos rostos dos personagens, como uma forma de ressaltar um momento de decisão ou de estouro do indivíduo. A câmera vai rapidamente no rosto do personagem e tu sente que é agora ou danou-se”, comenta Iesbick. Ele conta que gosta de colocar os personagens olhando diretamente para a câmera, algo que, segundo ele, se bem feito, tem o objetivo de promover uma aproximação entre plateia e obra. Wanmacher acredita que, para obter sucesso no cinema e fazer bons filmes, a academia é um grande auxílio, porém, ressalta que a maioria dos grandes cineastas não veio desse meio de estudo formal. Ele incentiva os novos estudantes de cinema a serem cinéfilos, a irem às salas, a assistirem uns aos filmes dos outros. “No começo da carreira é importante ter um curta para
deslanchar, para dar o estalo”, aponta. Eles não param de trabalhar. “Projeto é o que não falta”, comemora Iesbick, que está com dois roteiros de longas (um já no segundo tratamento e concorrendo a um edital e outro, ainda finalizando), e um de curta que será filmado em breve. “Esse curta novo tem uma escala maior de personagens e aposto um pouco no drama também, que é algo que de uma forma ou de outra sempre acaba aparecendo nos projetos e que mascaro com comédia”, explica. Cunha também irá estrear em longa-metragens, com Raia 4, que já participou de laboratórios de roteiro. Ele também está finalizando o curta-metragem Sob águas claras e inocentes. “Esse está sendo uma grata surpresa para mim, pois envolve uma série de procedimentos com os quais ainda não havia trabalhado, como, por exemplo, animação.” Bassani, logo após finalizar o documentário Gutierres, conta: “estou passando para o papel uma ideia que vem dando voltas na minha cabeça já faz dois anos, talvez esse seja o próximo projeto”. Bassani também foi aluno de Wannmacher, que elogia o processo de pré-produção de Alice na Cama: “foi um filme muito pensado antes de filmar, o roteiro estava todo muito definido e eles seguiram à risca na filmagem. A execução e a montagem foram em cima desse planejamento. É um filme matemático, no bom sentido, típico filme de universidade.” Seja com os planos fechados nos rostos dos atores de Felipe Iesbick, nos planos-sequência de Emiliano Cunha ou no cinema apaixonado de Fernando Bassani, a nova geração do cinema gaúcho está representada por esses três cineastas, entre tantos outros. Premiados e lutando para manter o bom gosto e a qualidade do cinema gaúcho, cada um à sua maneira, eles transformam as próprias realidades em arte. Bassani incentiva o público a assistir aos filmes daqui: “Estão surgindo coisas bem legais, é legal as pessoas conferirem quando estiver passando no cinema”. DEZEMBRO 2015 EXP 47
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linhas capitais O asfalto e o jardim. O velho e o novo. A correria e a vida. O contraste e o degradê. Momentos cotidianos ofuscados pela desatenção causada pela falta de tempo. As linhas tênues entre a geometria e a moldura em uma Porto Alegre que você não costuma observar TEXTO: VÍTOR ROSA FOTOS: GUILHERME ALMEIDA
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O petróleo DA INTERNET Empresas de tecnologia utilizam informações pessoais de usuários, como preferência política e sexual, para gerar milhões de dólares e expõem um dilema do século 21: a privacidade online TEXTO: ALEXANDRE A. KUPAC ILUSTRAÇÃO: ALEXANDRE A. KUPAC E CAMILA A. KUPAC ma simples postagem nas redes sociais pode gerar muito mais desdobramentos do que se imagina. A publicação da foto de um happy hour na saída do trabalho, por exemplo, expõe o horário do fim de expediente de um usuário, as preferências gastronômicas, a localização, o círculo de amizades, entre outras informações. Coletar esses dados e vendê-los organizadamente a terceiros é a principal atividade comercial das grandes empresas de tecnologia. Poucos usuários sabem o que acontece depois do clique de envio, e que o lucro milionário dessas corporações está relacionado a isso. Por meio de mecanismos embutidos em sites, aplicativos e aparelhos, empresas costumam vigiar e registrar hábitos dos clientes. “Os navegadores da web sabem tudo sobre nós. Se você acessa páginas de sex shop, por exemplo, ele saberá qual a sua exata preferência sexual. Assim, acabam descobrindo segredos que não contamos nem aos melhores amigos”, explica o professor universitário especializado no tema e delegado de polícia, Emerson Wendt. Em geral, são empresas de publicidade que compram os pacotes com os rastros do mundo online. Basta fazer uma pesquisa de endereço com o GPS do smartphone ligado para que os servidores da Apple e da Google,
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por exemplo, descubram as coordenadas geográficas de um usuário. Com o cruzamento das características e informações geradas pela utilização rotineira de serviços digitais, cria-se uma “personalidade digital”, conceito utilizado por Wendt. Apesar de a maioria das pessoas não saber, a vigilância das empresas sobre o comportamento diário dos seus clientes é autorizada por eles mesmos. Para o advogado especializado em direito digital Leonardo Zanatta, é socialmente aceito que a privacidade seja relativizada na internet. Ele acredita, porém, que se está indo longe demais. “Faz parte do novo contrato social abrir mão da sua própria privacidade. Não sei quem já parou para ler os termos de uso do Facebook, mas ali só não se entrega a alma por detalhe”, afirma. O doutor em antropologia Rafael Evangelista define com uma analogia a importância do produto dos rastros da vida social online: “Esses dias vi um debate em que disseram que os dados pessoais são o petróleo da internet. Ele precisa ser minerado e pode servir para fazer várias mercadorias”. Segundo a revista Forbes, a Google, dona do maior buscador da internet, tem valor de mercado estimado em R$ 1,4 tri-
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lhão, sem cobrar em dinheiro por quase todos os seus produtos. A sua forma de obter lucro, assim como de outras organizações com essas características, é baseada em compilar os dados dos seus clientes de diferentes maneiras, sem identificar pessoalmente, e vender em pacotes. Os compradores normalmente estão interessados nos dados para produzir publicidade personalizada, mas não se sabe ao certo quem são os clientes da Google. Além disso, a empresa oferece anúncios nas buscas, espaços em blogs e outros sites para publicidade. Todos utilizam dados do usuário para mostrar conteúdo coerente com o que foi coletado. “São fornecidas ferramentas teoricamente gratuitas, mas o custo delas é a privacidade”, explica o professor universitário integrante da ONG Actantes, de defesa da liberdade de comunicação na internet, Rodolfo Avelino. O crescimento dessas corporações provocou uma polarização no tráfego na internet. É difícil para a maioria dos internautas imaginar fazer uma pesquisa fora do Google, apesar de haver outros serviços disponíveis. E, raramente, quem está conectado deixa de acessar suas contas nas redes sociais. “O Facebook é como se fosse uma segunda camada por cima da web. Afunilou várias comunicações que eram descentralizadas e que eram mais seguras”, comenta Evangelista. A arquitetura original da internet proporcionava uma maior segurança, por não reunir todo o volume de informações nos mesmos canais. Hoje, contudo, a maioria dos serviços digitais estão hospedados nos Estados Unidos. Inclusive os computadores que guardam os domínios “.br”. Rodolfo Avelino acrescenta, ainda, que há implicações sociais nessa mudança: “Eu vejo posts de menos de 10% da minha rede. Facebook e Google, com esses mecanismos de rastreamento, criam bolhas, onde você está inserido”. Com isso, os usuários tendem a encontrar na tela notícias relacionadas, em geral, a assuntos já conhecidos e que despertam algum tipo de
interação. Isso aumenta o tráfego e, por consequência, a cotação desses dados. Rafael Evangelista, que também é membro da Rede Latino-americana de Pesquisadores sobre Vigilância, levanta outro ponto: “Há uma exploração do trabalho coletivo. É a atividade social das pessoas, que produzem a massa de dados, que gera valor”. Além disso, ele ressalta as consequências dessa cultura: “As empresas de tecnologia da informação costumam se defender dizendo que os dados que comercializam são anonimizados. Mas, muitas vezes, é possível fazer uma série de cruzamentos para descobrir a identidade, por exclusão”. “A Google é uma grande Big Brother. Não sei se vai existir Facebook ou Microsoft daqui a alguns anos, mas a Google vai”, diz Avelino. A organização, que comprou recentemente uma empresa de inteligência artificial, possui o maior site de buscas, o maior sistema operacional de celulares, uma das mais desenvolvidas ferramentas de localização geográfica, entre outros. O debate sobre os direitos humanos na internet ditará os rumos de uma sociedade que interage cada vez mais pela rede. Os conceitos e as regras resultantes do atual momento histórico serão as bases de um processo tecnológico que ainda tem muito a evoluir. Com a “internet das coisas”, que é a interconexão de objetos habituais, como eletrodomésticos, roupas e outras inovações, a tendência é o conflito se intensificar. “Tem a questão da manipulação do sentimento das pessoas. Eles têm condições de entender porque uma pessoa deu uma curtida numa notícia, por que ele tentou e desistiu de responder um comentário, além de perceber que você segue uma certa linha política ou social”, conta Avelino. Há, também, implicações individuais na lógica da vigilância. “As empresas de seguros, por exemplo, trabalham com a probabilidade de que algo vá acontecer para fazer o cálculo de valor e utilizam o produto das empresas de tecnologia para isso”, revela Evangelista. O delegado Emerson Wendt, acrescenta, ainda, que “detetives particulares podem usar vários mecanismos de espionagem”.
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Para Rodolfo Avelino, os termos de uso dos serviços digitais são abusivos. “O usuário não necessariamente está munido de todos os poderes para escolher usar os produtos. Se eu preciso estar no mundo do trabalho hoje, preciso ter um e-mail, um perfil em rede social para me relacionar, me comunicar”, explica. E completa: “Por isso é importante sair da chave das soluções individuais. Elas têm que ser coletivas”. Os especialistas consultados entram em consenso neste ponto. Segundo eles, é necessário criar uma cultura de domínio sobre a tecnologia. Aprender a instalar e desinstalar programas, entender como as suas configurações afetam a vida diária etc. são apontados como os melhores meios de tornar a vida conectada menos exposta. “A ideia é as pessoas se apropriarem dessa tecnologia num contexto de soberania”, completa Avelino. Há, porém, atitudes que qualquer usuário pode tomar na sua rotina para se proteger. Instalar um antivírus não basta. Uma delas é preferir sempre software livre, cuja programação é aberta para verificação, e que foge do modelo de negócios das gigantes da internet. “Se você usa o Firefox, que tem o código aberto, já está praticando um ato político”, afirma Avelino. O navegador do Mozilla permite, também, a instalação de extensões que, por exemplo, descobrem os dispositivos de rastreamento instalados em sites para bloqueá-los. Compreender que o uso de aplicações digitais é registrado por terceiros é essencial para fazer escolhas de softwares e serviços online, e configurá-los de acordo com os limites que o usuário exigir. Diversos sites e aplicativos possuem algum nível de controle de privacidade, apesar destes não serem muito divulgados. Por isso, é importante navegar pelas configurações e desativar comportamentos não desejados – como, por exemplo, compartilhar a posição geográfica em uma conversa. “Os dispositivos que recebem comandos de voz só conseguem fazer isso porque estão o tempo inteiro capturando o áudio ambiente”, lembra Rafael Evangelista. Em 2015, três pesquisadores da Google
apresentaram uma pesquisa, chamada “... No one can hack my mind”, que comparou práticas de segurança tomadas por 231 especialistas e 294 não-especialistas no assunto. O resultado mostra que as abordagens dadas pelos grupos ao tema são muito diferentes. Enquanto especialistas se preocupam com as atualizações de software, o usuário comum vê como primeira necessidade a instalação de antivírus. A codificação da troca de informações é outra boa solução, chamada de criptografia. Trata-se de transformar os dados trocados em uma série ilegível de caracteres, que só poderão ser decodificados por quem tiver uma chave virtual para tal. Este é um recurso mais avançado em termos de conhecimento, mas que está se tornando cada vez mais presente na vida do usuário comum. Já existem programas alternativos que utilizam as redes de sites como Facebook para criptografar a comunicação de forma automática. “Mas a via mais efetiva é a política. Constituir e lutar pelos nossos direitos. Do ponto de vista das liberdades, é preciso mais envolvimento popular para que a agenda seja favorável à população, e não só às associações de defesa. É o momento que essas leis estão sendo criadas”, conclui Rafael Evangelista. A segurança de informações na internet é um tema ainda pouco debatido nas rodas de conversa, mas ganha cada vez mais importância. Em 2013, o ex-funcionário da NSA, agência estadunidense de inteligência, Edward Snowden, revelou que o governo daquele país mantinha um programa de monitoramento das comunicações na rede. Naquele momento, comprovou-se que era possível às autoridades, com poucos cliques, acessarem informações sobre perfis de qualquer pessoa em redes sociais. Desde o anúncio de Snowden, proteção de dados virou assunto relevante nos projetos nacionais. Recentemente, o Congresso brasileiro aprovou o Marco Civil da internet, documento histórico que dita as diretrizes para o tratamento de situações do mundo virtual. Discute-se também a criação de outros dispositivos que regulam a vida conectada.
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A vigilância na internet é motivo de preocupação para governos. Os documentos do ex-funcionário da NSA geraram uma crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos por mostrar a espionagem americana à presidente Dilma Rousseff e à Petrobrás. E esta questão também afeta o usuário comum. Para as organizações que fazem esse tipo de atividade atingirem seus objetivos é necessário examinar toda a rede. A maior parte desse tipo de atividade governamental está nos Estados Unidos, que concentra os servidores dos serviços mais acessados do mundo. No Brasil, porém, essa política também está presente. Em julho de 2015, o Wikileaks divulgou 1 milhão de e-mails que mostram negociações de órgãos estatais para a compra de um software de monitoramento italiano, cuja operação teria iniciado em maio do mesmo ano. O acompanhamento das comunicações virtuais serve tanto para questões de segurança nacional, quanto para assuntos domésticos. “É burro o governo que não usa a tecnologia para fins estratégicos e para se antecipar a situações. Informações sempre foram usadas por governos para se proteger”, afirma o delegado Wendt. Ele lida diariamente com investigações relacionadas a tráfico de drogas, em que a polícia também utiliza informações digitais para coibir esse tipo de crime. “Dentro de um contexto de investigação, as polícias sempre vão se qualificar para atender às necessidades de investigação. Hoje, os criminosos organizados utilizam essas ferramentas”, acrescenta Wendt. Leonardo Zanatta concorda: “A burocracia é enorme. Se o delegado puder pedir sem autorização judicial, não se está queimando etapas, se está evitando que um rastro de pólvora se alastre”. No entanto, a utilização estatal dessas ferramentas também tem outra face. “Existe o apoderamento do estado para utilizar essas ferramentas com o argu-
mento antiterrorismo”, afirma Avelino. “Mas se percebe que muitas vezes são perseguições a movimentos sociais”, explica. Rafael Evangelista completa: “A população só é monitorada pelo estado porque já estão sob vigilância privada”, diz. Legalmente, o estado brasileiro tem condições de levantar dados cadastrais, como da Receita Federal e da Justiça Eleitoral, que contém, por exemplo, nome completo e endereço. “Existe acompanhamento de manifestações políticas, analisando o que é possível sem autorização
“Existe o argumento antiterrorismo, mas se percebe que muitas vezes são perseguições a movimentos sociais.” Rodolfo Avelino, integrante da ONG Actantes
da Justiça. Ou seja, aquilo que as pessoas publicam. Isso já é uma informação bem importante do ponto de vista governamental”, afirma Wendt. Porém, tecnicamente também é possível obter acesso a dados pessoais, como
4.236 pessoas tiveram a sua conta do Facebook acessada pelo governo brasileiro em 2014
conversas, locais de acesso e qualquer outro tipo de dado que um dispositivo digital registrar. Não há lei que regule esta questão específica, por isso é usada a lei de interceptações telefônicas por analogia. “Pela lei, é preciso pedir autorização a um juiz para começar a escutar uma linha. Em alguns casos, sabe-se que se começa antes e, se tem algum problema, pede-se ordem judicial. A internet é muito mais complexa que isso”, afirma o advogado especialista em direito digital e membro da Comissão de Direito da Tecnologia da Informação da OAB/RS, Filipe Mallmann. Com ordem judicial para investigação, a autoridade policial faz uma solicitação a empresas para que forneçam o que têm salvo. As maiores organizações, como Google, Facebook e Dropbox, possuem uma página dedicada a governos para esse tipo de situação. A gigante das buscas informa em seu site pedidos sobre 14.504 usuários desde 2011; a rede social divulga pedidos a partir de 2013, que contabilizam mais de 6.000 contas abertas. Os especialistas concordam que o que está se construindo agora é decisivo para o futuro. “A internet foi construída para ser livre. E agora o movimento é para algemar a sua estrutura. O presente é crucial não só para o futuro da internet, mas para toda a vida em comunidade. O momento para discussão sobre rede e privacidade da população é agora”, acrescenta Mallmann.
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O SOM QUE VEM DOS PAMPAS À beira da Lagoa dos Quadros, o artesão, músico e arte-educador Giancarlo Borba é o primeiro na América Latina a recriar um instrumento suíço, aqui chamado de pampeano
TEXTO E FOTOS: BETHÂNIA HELDER
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ubmerso na natureza, à beira da Lagoa dos Quadros, na localidade de Cornélius, em Terra de Areia, Litoral Norte do Rio Grande do Sul, Giancarlo Borba, 35 anos, levanta pela manhã, prepara o mate e liga um Alfredo Zitarrosa no rádio. Depois, seu dia divide-se entre a robustez das marteladas no aço e a delicadeza de dedilhar as cordas do violão. A paisagem tranquila e o barulho d’água são ingredientes fundamentais para a criação diária – seja ela de músicas, instrumentos ou projetos. Está formado o cenário para mais um dia típico de trabalho do músico e artesão que fabrica manualmente discos voadores sonoros, os pampeanos. O instrumento é resultado de uma pesquisa do artesão, pioneiro no Brasil e na América Latina na produção do pampeano. Giancarlo vive com as duas filhas, Amanda e Helena, e a companheira, Cristiane Soster, que também é artesã e responsável pela confecção dos estojos do pampeano. A casa onde moram tem poucas divisórias internas. Ela representa o estilo de vida da família, baseado em liberdade, respeito e união. Repleta de instrumentos musicais que ele mesmo construiu, a sala da casa também guarda os presentes dos amigos. São violas, violões, flautas, chocalhos, e até mesmo uma harpa que veio da Índia. Há, também, potes de cerâmica, que à primeira vista parecem compor a decoração. Em seguida, porém, Giancarlo consegue tirar deles algum tipo de som, assim como faz com chaves e outras peças de metal. A complexidade da construção dos instrumentos faz com que não seja possível determinar um tempo exato para a confecção. O objeto original, chamado de Hang, teve origem na Suíça nos anos 2000. É um instrumento musical, também utilizado para fins terapêuticos, pelo som agradável Giancarlo Borba em sua casa tocando harpa indiana
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e relaxante que emite, cujas afinações levam nomes de animais e plantas do Rio Grande do Sul. Totalmente feito à mão, é formado por duas conchas de aço que demoram até quatro horas de marteladas pra ficarem prontas e 12 horas de tratamento térmico na indústria. Depois, são necessários mais quatro ou cinco dias de afinação, outros cinco de cura da cola e dois dias de ajustes finos e acabamentos. “Em outras ocasiões chego a levar três dias em volta de uma única nota. E olha que são oito ou nove por instrumento!”, destaca. De acordo com Gian, todas as notas combinam, facilitando a criação de melodias por músicos e também por leigos. O pampeano é chamado assim em homenagem ao Pampa gaúcho. “Todos os nossos instrumentos são feitos um a um, recebem tratamento térmico e produtos específicos que endurecem o aço e o tornam mais resistente e sonoro e também evita a ferrugem. “Cada pampeano é único”, lembra. A fabricação do instrumento completou um ano com atividades oficiais e está na segunda geração. Segundo Gian, toda a produção de 2015 foi vendida. Quem pretende adquirir um, entrará na fila para receber o instrumento a partir do segundo semestre de 2016. O MÚSICO Graduado em música pela Universidade Federal de Pelotas, Giancarlo também é reconhecido pelo trabalho como músico e compositor. Ele produziu um álbum, com músicas próprias e letras compostas pelo professor e poeta Osmar Hences. O “Milongador” foi lançado em 2013, e tem no repertório ritmos regionais do Sul, com uma roupagem moderna e arranjos com referências na música erudita, no folclore gaúcho, uruguaio, argentino e na música popular brasileira, mesclados com sons de vários objetos e instrumentos alternativos. Na capa do disco, uma foto feita pelo próprio artista: os pés de uma índia calçando chinelos. De acordo com Gian, a foto faz alusão ao trabalho de Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro admirado por ele. O tema das canções visa as coisas simples da vida no Rio Grande do Sul, como o gaúcho a pé, que vive à margem da sociedade, do lado de fora das cercas dos latifúndios. O artista faz parte também do Dandô, projeto musical itinerante composto por artistas de oito estados brasileiros, que tem alcance em mais de 70 cidades. Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Paraíba e Distrito Federal integram o projeto que tem o objetivo de disseminar a música autoral
Antiga construção em Cornélius que Gian planeja transformar em centro cultural
O pampeano é utilizado também para fins terapêuticos pelo som agradável que emite de cada canto do país e “mostrar que ainda se faz boa música no Brasil”. O Dandô foi idealizado pela cantora, compositora e pesquisadora de raízes musicais Kátya Teixeira e busca o intercâmbio entre artistas para mostrar as diversas sonoridades regionais e gerar também novas plateias. “O Dandô circulava Brasil afora, contando sempre com o auxílio das prefeituras para suas apresentações. Mas, como o projeto já está mais conhecido nestas cidades, principalmente do interior, teremos condições de seguirmos autônomos”, destaca o músico. Gian lembra ainda do lema do projeto: “tirar o Brasil da gaveta para mostrá-lo a si mesmo”. A ARTE PARA TRANSFORMAR Paralelamente às atividades de artesão e músico, Giancarlo também atua como arteducador popular, integrando a Rede Brasileira de Arteducadores (ABRA). Ministra cursos de criatividade e de transformação por meio das artes e de oficinas de instrumentos feitos com sucata. Gian demonstra criatividade e paixão pela criação de instrumentos desde os tempos de faculdade. Na época, construiu um violão com uma caixa de descarga que encontrou num lixão. O instrumento ainda está no laboratório na Faculdade de Música da UFPEL. Sobre a vida de múltiplas atividades, ele fala que a trajetória é árdua, como em outros ofícios, mas encara a carreira com disciplina e cuidado: “Como em qualquer profissão, demora até acharmos o caminho. Hoje, se vão quase duas décadas de carreira e estrada, abrimos muitos caminhos neste tempo de andanças. É uma peleia sempre viver de arte!”, comenta. Em 1996, o artesão começou a compor em parceria com Osmar Hences, que é a grande referência dele. “Hoje, só sou o que
sou graças ao professor Osmar que, além de meu professor, virou meu parceiro de composições e me ajudou a escolher meus caminhos, sempre de forma provocativa, fazendo com que eu pensasse. Ele é o grande responsável pelo artista e pelo cidadão que sou hoje”, afirma. “SEJA A MUDANÇA QUE VOCÊ QUER NO MUNDO” Na mochila, além de instrumentos musicais, Gian carrega também muitos projetos. No momento, está produzindo seu novo disco, com composições próprias que abrangem temáticas sociais mais amplas, da realidade atual no campo e também na cidade, ao povo que é quase invisível perante à sociedade. “A produção está concluída, só falta gravar”, completa. Giancarlo é multimídia: constrói os instrumentos, compõe as letras e as melodias, toca os instrumentos e faz a arte da capa. No próximo ano, planeja se aprofundar na viola caipira, que chegou ao Rio Grande do Sul com os tropeiros que atravessavam o Sertão. Pretende visitar todos os violeiros da região onde reside e gravar suas trovas e poemas, todos em décima – compostas de estrofes com dez versos. Ele é um ativista nato: luta por aquilo que acredita, como artista e como cidadão. Gian tem o sonho de restaurar uma antiga construção em Cornélius. O vilarejo se formou em torno do rio Cornélius, porto no qual, em 1800, exportava-se abacaxi e banana em larga escala para outras cidades, nos tempos em que a malha rodoviária ainda era incipiente. Giancarlo quer que esta antiga edificação seja um centro cultural do lugarejo, para abrigar peças artísticas e eventos culturais, sempre na tentativa de transformar os caminhos por onde passa. DEZEMBRO 2015 EXP 55
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APRENDER COM A
MÃO NA MASSA Procura por oficinas de gastronomia aumenta. Vídeos no YouTube também são opção para aprender receitas TEXTO E FOTOS: OTÁVIO DAROS
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etade dos brasileiros prefere fazer refeições na tranquilidade do lar do que comer na rua, segundo dados da consultoria GFK. Fundada na Alemanha, a empresa fornece pesquisas desde 2002 para o mercado brasileiro. O levantamento foi realizado em 12 capitais e ouviu mil pessoas em cada cidade. A estudante e dona de casa Elisabete Motta é um exemplo do tipo de consumidor revelado pela pesquisa. Além de almoçar e jantar no lar, ela busca aulas de culinária para ampliar as habilidades no fogão. De acordo com dados da Feira Internacional da Panificação (Fipan), a procura por cursos relacionados à gastronomia cresceu 15% em relação a 2014. Professora aposentada da rede municipal de Porto Alegre, Elisabete voltou à sala de aula para frequentar um curso de tecnólogo em nutrição, no qual recebe dicas de alimentação, cocção e temperos. “Estou estudando para benefício meu, pois quero ganhar qualidade de vida com o aprendizado do curso. Mas penso em usar o meu futuro conhecimento em nutrição para voltar para o mercado de trabalho”, conta. Elisabete lembra dos tempos em que dava aula e precisava almoçar fora todos os dias. Hoje, a situação é diferente: “Como na rua, no máximo, uma vez por semana. Almoçar em casa é melhor, seja pela higiene ou pela comida caseira”. Além disso, ela garante que uma refeição para a família toda sai mais em conta se feita em casa.
Ana Mello e o namorado, João Frare, participam de oficina no Centro de Porto Alegre
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Apaixonada por culinária, a estudante Ana Mello se aventura na cozinha desde os 10 anos. Desde que ingressou na Faculdade de Biotecnologia da UFRGS, ela tenta manter esse hábito: “Almoço em casa três vezes por semana. Nos dois dias em que não tenho como almoçar em casa, tento levar alguma comida, para esquentar no microondas do campus. Nos finais de semana, almoço quase sempre em casa. Sou muito caseira para comidas”. Para aprender a preparar novas receitas, a estudante aproveita o tempo livre para frequentar oficinas gastronômicas: “Foi uma ótima experiência, pois aprendi muitas coisas que sempre quis saber e coisas que eu achava que eram impossíveis de fazer em casa, que precisavam de instrumentos profissionais”. Desde 2014, o chef Giovanni Cristofoli realiza oficinas para ensinar técnicas de fermentação natural. A iniciativa deu tão certo que ele precisou deixar o emprego em uma padaria para se dedicar ao novo negócio. “As oficinas têm uma ou duas edições mensais, uma em dia de semana e outra aos sábados. A duração é de três horas, e as aulas misturam teoria e prática. Na parte teórica, há uma apresentação dos conceitos que estarão envolvidos na oficina. Que conceitos? Químicos, físicos, sociais, ambientais. Tudo que acharmos relevante para diferenciar a produção industrial em massa e o produto artesanal com qualidade. Na parte prática, é quando colocamos a mão na massa, ensinando os detalhes, dando dicas e mostrando que não é difícil cozinhar com qualidade”. Outra alternativa é aprender receitas por meio de tutoriais na internet, de modo gratuito. Segundo dados do Google, vídeos de culinária são uma grande tendência mundial. No Brasil, o segmento é ainda mais próspero. Só no país, o aumento foi de 296% entre 2012 e 2014. No último ano, 87 milhões das visualizações no YouTube da América Latina foram sobre gastronomia e harmonização de vinhos. Quem mais consome vídeos gastronômicos são pessoas na faixa de 18 a 34 anos. Ainda segundo o portal de pesquisa, a parcela mais jovem de internautas abocanha, em média, 30% de vídeos gastronômicos a mais. Interessado em gastronomia, Matheus Rivero explica como os tutoriais on-line o aprimoram suas habilidades na cozinha: “Sempre que procuro alguma receita, gosto de dar preferência às que têm vídeos. Com eles, posso ter uma melhor noção de que textura uma cobertura deve ter, ou como devo utilizar um utensílio corretamente durante a receita”.
“Ensino detalhes, dando dicas e mostrando que não é difícil cozinhar com qualidade.” Giovanni Cristofoli, chef do Bistrô da Vó Mercedes Cristofoli organiza oficinas há um ano No terceiro ano do Ensino Médio, Matheus relata que saber cozinhar permite fazer economia e ganhar algum dinheiro no final do mês. “Às vezes, vejo que algum alimento está próximo de estragar, então procuro alguma receita que o utilize, para evitar o desperdício. Ganhei um bom di-
nheiro ao vender bolos no colégio para professores e colegas”, conta o estudante. Para Ana Mello, cozinhar é mais do que economizar, é uma forma de “se divertir colocando a mão na massa e sem sair de casa”. Ou seja, a estudante encontra na cozinha uma forma de lazer.
Cheia de orgulho, Elisabete Motta mostra o resultado da receita das minicucas DEZEMBRO 2015 EXP 57
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AS HEROÍNAS DOS JOGOS Com aumento considerável do público gamer feminino, a personificação das mulheres nos jogos levanta debates e discussões em torno do assunto, e atenta a indústria do entretenimento para um novo cenário TEXTO E FOTOS: CHRISTIANE LUCKOW
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s fábulas e as histórias antigas de cavaleiros em armaduras brilhantes resgatando donzelas em apuros sempre serviram como inspiração para a produção da indústria dos jogos. E o público ao qual eram destinados os games, formado por uma maioria masculina, influenciava na maneira como esses personagens eram construídos. Mas uma nova onda de heroínas aparece no mundo virtual. E o reforço para esta mudança surge na representação feminina dentro do universo dos jogos, que vem crescendo desde a década de 1990. Nos Estados Unidos, as jogadoras já são 50% de todo o público de jogos digitais do país, segundo a Superdata Research. O jogo Tomb Raider, lançado em 1996, quebrou paradigmas com a colocação de uma protagonista e heroína mulher conhecida como Lara Croft. Nikki Douglas, jornalista americana especializada na área de jogos, disse, há 16 anos, em um de seus textos publicados: “Não há dúvidas que Tomb Raider marcou uma mudança significativa no papel das mulheres dentro de jogos. Apesar de inúmeros games de luta oferecerem a opção de personagens mulheres, o herói é tradicionalmente um homem, com mulheres atuando majoritariamente em papéis coadjuvantes”. Desde então, outros jogos também se destacaram. Em 2015, por exemplo, na maior feira de jogos digitais do mundo, a Eletronic Entertainment Expo (E3), em Los Angeles, uma das produções que cha-
mou a atenção é a da empresa Guerrila Games. Criadora da famosa franquia Killzone, anunciou durante o evento o seu novo título: o Horizon Zero Dawn. O personagem principal é a caçadora Aloy, que mostra a força das mulheres no cenário atual e a tendência crescente de reconhecimento do empoderamento feminino, assim como o seu poder de compra. Ainda que esse mercado venha valorizando mais o sexo feminino, há quem defenda que as personagens femininas não são representadas da maneira ideal nos jogos. Quem compartilha essa visão é a pesquisadora de mercado Valentina Rosa, jogadora há mais de 10 anos. Segundo ela, as mulheres acabam colocadas em segundo plano, são mais fracas do que os homens (nos jogos de guerrilha ou luta) ou hiperssexualizadas, com a utilização de roupas curtas. “Acredito que todos os corpos são hiperssexualizados, independente do gêne-
ro. Mas as mulheres são objetificadas e transformadas, muitas vezes, em lutadoras semi nuas”, critica. “Vejo um pequeno progresso em relação à forma como os personagens femininos são retratados, por exemplo, a Riot (produtora de jogos) criou para o jogo League of Legends, a Jinx. Uma personagem completamente sem seios, quebrando algumas tendências do corpo da mulher retratado nos jogos”, fala. Para o psicólogo Rafael Rojas Braga, que desenvolveu uma pesquisa em torno dessa temática e também é gamer, as mulheres não são personificadas de maneira pejorativa. “Em jogos de RPG, por exemplo, as habilidades dos personagens femininos são exatamente iguais. Já nos jogos de arena, como o League of Legends, todos os personagens, sendo homem ou mulher, bicho ou fantasma, têm características diferentes, mas nada que faça com que as mulheres sejam mais fracas”, afirma Braga. Os estereótipos criados para as perso-
O psicólogo Rafael Rojas Braga joga desde a infância, e aproveitou o hobbie para analisar os comportamentos das pessoas nos jogos 58 EXP DEZEMBRO 2015
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O robô que aparece na capa do jogo Metroid é a armadura que representa a protagonista mulher chamada Samus
nagens, porém, não se mantêm apenas no mundo virtual. Muitas vezes eles acabam se tornando uma realidade e obrigam as usuárias mulheres a optarem pela criação de personagens masculinos. “Quando jogava Tíbia [jogo online de RPG], se você não fizesse parte de uma Guilda ficavam assediando, falando besteiras, ameaçando matar o personagem ou querendo pedir namoro. Era mais fácil estar no gênero masculino”, diz Jaqueline Oliveira, graduada em história e que muitas vezes apropria-se de personagens do sexo oposto ao seu. Os casos de inversão de gênero no mundo virtual para jogar também podem ser encontrados de maneira contrária: quando homens escolhem criar personagens femininos para representá-los. O motivo? Apoiar as mulheres e mostrar o quão forte elas podem ser. “Quando crio uma personagem feminina, tento interpretar uma pessoa forte que ganha de homens em batalhas nos jogos. Isso intimida os joga-
“Quando crio uma personagem feminina tento interpretar uma pessoa forte que ganha de homens em batalhas nos jogos.” Diego Estrázulas, administrador e intérprete de personagens femininas em jogos
dores machistas e para mim é ainda mais desafiador”, conta Diego Estrázulas, administrador, que já interpretou duas mulheres em Dungeons & Dragons (D&D). Independentemente de quem está representando esses personagens, o mundo dos games é visto como uma realidade paralela, onde as pessoas se sentem livres para tornarem-se o que não podem ser no mundo real. E, por isso, tanto homens quanto mulheres, conseguem perceber as “fraquezas” dos outros usuários. Em alguns casos essas demonstrações são feitas de formas negativas, como os assédios relatados por Jaqueline. Para o psicólogo, Rafael, isso faz total sentido, visto que o mundo virtual é como um refúgio. “Enquanto jogo, consigo ver reflexos de personalidades. Isso pode ser observado via chat ou pelas formas que os personagens se comportam nos jogos. Geralmente isso vem acompanhado de algum transtorno de humor, como a depressão e ansiedade”, complementa Braga. DEZEMBRO 2015 EXP 59
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chicote NUNCA MAIS
A ONG atua desde 2008 no município de Gravataí recolhendo equinos explorados em carroças na Região Metropolitana e no Litoral Gaúcho TEXTO E FOTOS: MARINA ROSA ais de 10 mil carroceiros circulam, diariamente, em Porto Alegre. Entre idas e vindas, atravessam a ponte móvel que conecta as ilhas à Capital em direção ao Centro - geralmente, na busca de qualquer material que possa ser revertido em renda. Boa parte dos motoristas já se acostumou a desviar mais de carroças do que de carros, a frear e acelerar, a dirigir com a mão perto da buzina e a ceder espaço ao carroceiro que faz do braço um pisca-alerta. Os cavalos, no entanto, personagens primordiais nas andanças, tornaram-se invisíveis para grande parte da população. Carroceiros apressados causam grandes transtornos no trânsito, mas os animais escolhidos para conduzí-los enfrentam situações que fogem aos olhos dos gaúchos. O som do chicote que estala em seu lombo é comumente abafado pelo ruído dos automóveis. É proibido parar ou diminuir o ritmo. O peso da carga quase sempre é maior do que o animal pode aguentar. Os cascos, muitas vezes, não recebem ferraduras e acabam feridos pela temperatura do asfalto, que chega a 40°C. Pausas para água e pasto são pouco vistas. Em abril de 2008, porém, uma cena de horror ocorrida na Avenida Assis Brasil, na Zona Norte da Capital, não passou despercebida por uma porto-alegrense. Fair Soares, professora e nutricionista aposentada de 67 anos, presenciou a morte de uma égua que tivera uma vida inteira de trabalho nas carroças. Caída no asfalto, foi insistentemente chicoteada pelo tutor. Naquele instante, a mulher que nunca teve contato com cavalos jurou para si mesma que a morte daquele animal não seria em vão e que cenas como aquela não se repetiriam sem a devida punição. Fair entrou em contato com o 10º Batalhão da Polícia Militar, que caracterizou como morte natural o caso que presenciara. Inquieta, dirigiu-se ao Ministério Público, exigindo que fosse feito um inquérito policial. Pouco tempo depois, ficou sabendo
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por intermédio de uma amiga veterinária que 30 cavalos da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) iriam a leilão no final de agosto daquele mesmo ano. “Eu fiquei revoltada. Procurei uma promotora de Justiça e perguntei que história era aquela; se a EPTC leiloaria os cavalos como coisa ou como animal. De qualquer forma seria errado. Se leiloassem como coisa, estariam infringindo o código de defesa do consumidor. Leiloando como bicho, cai na lei dos crimes ambientais”, relembra Fair. “Me foi perguntado se eu era da área do Direito, e respondi que não. Em seguida, se eu pertencia a alguma instituição. Respondi que sim, da ONG Chicote Nunca Mais. Imagina só. Naquela época eu tinha até medo de cavalo. Mas na hora, com a imagem da égua da Assis Brasil, e mais o caso dos cavalos da EPTC, minha loucura foi perdoada. O nome Chicote Nunca Mais “brotou” na cabeça e eu falei. E ainda disse que estava ali representando cem pessoas.”
Animais recebem nova oportunidade com Fair
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Cometa chegou na ONG em 2011 após ser encontrado nas ruas de Porto Alegre, vítima de abuso e maus tratos em carroças DEZEMBRO 2015 EXP 61
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Guerreiro foi um dos primeiros a chegar na ONG. A pata ferida pelo antigo tutor, hoje, irrecuperável, já faz parte de seu trotar No final do mês, Fair tinha reunido o que precisava para dar início à nova causa que abraçara. Com o auxílio do Conselho de Medicina Veterinária, advogados e pessoas que a ajudaram a providenciar a papelada necessária para o acolhimento dos animais, Fair conseguiu a “guarda” dos 30 cavalos da EPTC e encaminhou os animais para uma hotelaria de Gravataí – tendo em vista que não dispunha de um sítio ou abrigo. De 2008 a 2010, os animais ficaram hospedados no local. O maior problema enfrentado no período de hotelaria ainda traz lágrimas aos olhos de Fair. Ela relata que seus cavalos, por serem mais velhos, magros e dependentes de maior atenção do que os demais, acabaram por sofrer maus tratos. Além da renda própria que investia para manter os animais na hotelaria, recebia ajuda financeira de amigos e familiares. Enviava sacos de 40 quilos de ração e não percebia engorde ou melhora nas visitas que fazia. Fair só descobriu o descaso com seus animais no dia em que o neto do dono do local lhe contou que seus cavalos não recebiam comida – os mantimentos enviados eram destinados aos cavalos jovens e sadios. Até chegar à sede atual, no município de Gravataí, Fair passou por situações difíceis. Após o incidente na hotelaria, foi contatada por uma pessoa que havia adotado dois dos cavalos da EPTC. Por vários meses, Fair trabalhou ao lado de protetores independentes em um sítio emprestado para os cavalos recolhidos. Mas, quando o número de animais abrigados chegou a 47, viu-se sozinha. Para lidar no dia a dia, contou novamente com o auxílio dos amigos mais próximos e transformou velhos
pangarés em animais de porte e pelagem brilhosa. “Os protetores que haviam iniciado comigo acabaram abandonando a causa. Abriram ONGs para animais de pequeno porte e engataram no comércio de animais; vendendo, cobrando preços altos pelos cães e gatos que acolhiam. Eu não concordo com isso! Agradeço a ajuda que me deram, mas não compactuo com este tipo de atitude. Animal é feito pra ser livre. A gente não pode cobrar por uma vida”, afirma a aposentada. Fair relata que a atual sede da organização fora encontrada pelo amigo e médico veterinário Francisco do Amaral. O sítio fica localizado em uma zona retirada de Gravataí – não divulgada para a segurança dos animais. Na época, a ONG Bicho de Rua, de Porto Alegre, realizou uma campanha para arrecadar dinheiro em prol da Chicote Nunca Mais. A partir da campanha, Fair pode construir o galpão das baias. “Muita gente diz: ‘O trabalho de vocês é lindo!’, eu não sei dizer se ele é bonito. Às vezes, é desesperador. Todos os nossos cavalos chegam aqui com, no mínimo, problema nos pulmões devido à aspiração da fumaça dos carros”, relata. Mais de 200 cavalos já passaram pela ONG. Em sua grande maioria, são animais idosos e com problemas de saúde. Orgulhosa, Fair conta que há cinco anos não perde cavalos. “Desde o início, cerca de 58 cavalos faleceram. Destes, apenas quinze nós não conseguimos salvar. Os outros acabaram morrendo de velhice”, conta. Atualmente, Fair trabalha em parceria com a Brigada Militar e possui um contrato de cooperação com a EPTC. Apesar da
vontade de acolher mais animais, a presidente da ONG age com a razão. “Já estão faltando baias. Enquanto estes cavalos não forem tutelados, eu não tenho condição de abrigar mais. Cada cavalo consome cerca de cinco quilos de ração por dia. Não vou virar uma acumuladora. É preciso conhecer o seu próprio limite”, afirma. DOAÇÕES E VISITAÇÕES A Chicote Nunca Mais mantém seu trabalho a partir de doações. É possível apadrinhar um cavalo com R$ 120 ao mês ou colaborar com a ONG com uma doação fixa mensal (de R$ 10 a R$ 100) ou avulsa. Fair ressalta que seus cavalos não são adotados, e sim tutelados. A começar que a escolha do cavalo é feita por ela. “A pessoa me diz que quer um cavalo. Eu vou visitar o local e ver onde ele vai ficar e o que vai fazer. Se, eventualmente, eu achar que a pessoa não tem condição ou que o meu cavalo vai voltar pra carroça, não cedo. Eu escolho o cavalo a ser tutelado de acordo com o espaço e função que ele vai ter dentro daquela nova família. Já aconteceu de eu buscar eles de volta. Estes animais já sofreram demais. Merecem alguém que os ame de verdade”, explica. Fair, autointitulada “Mãe dos Cavalos” ressalta que a ONG é aberta para visitações. O valor da entrada é uma doação em cenouras e maçãs, que podem ser entregues aos animais pelas mãos do visitante. Para fazer doações ou conhecer um pouco mais sobre a Chicote Nunca Mais, acesse o site chicotenuncamais.org e descubra como apadrinhar ou colaborar com a organização.
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Tamanho não é sinônimo de resistência “No cavalo, as dores e sofrimentos são banalizados pelo fato de ser um animal de grande porte. Mas tamanho não é sinônimo de resistência. Cavalos são chicoteados nas ruas, nos hipódromos, nas domas, nos esportes e essa perversidade é aceita e até esperada. Há um inconsciente coletivo de que cavalo não sente dor. Ninguém contesta! Ninguém defende! Cavalos são animais muito sensíveis: se uma mosca pousar em qualquer parte do seu corpo, ele treme a musculatura para espantá-la. Ele obedece a seu sórdido condutor e segue em frente até cair extenuado ou morrer. Estranhamente, nesse momento, surge sempre uma força tarefa para recolocá-lo novamente em pé e prosseguir na cruel jornada. O Poder Executivo, que se beneficia com o trabalho gratuito destes animais no recolhimento dos materiais recicláveis, é o mesmo que tem a atribuição de protegê-los. Nessa atividade - paga pelo contribuinte no imposto do lixo -, os animais perdem a saúde com longas jornadas diárias, carregando cargas acima de sua capacidade, com o nariz junto dos escapes dos carros, consequentemente aspirando dióxido de carbono, etc. Os cavalos não recebem absolutamente nada, na maioria das vezes nem alimentação. Quando caem por doença e exaustão, ficam ali jogados como se não tivessem auxiliado os gestores públicos. Afinal, não fará diferença. No outro dia terá outro cavalo fazendo o mesmo trabalho gratuitamente.” Fonte: Chicote Nunca Mais
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A equipe finaliza os últimos detalhes da edição semanal que é impressa em outra cidade, a quase 400km de distância
133 anos de história Jornal que circula há mais tempo no Rio Grande do Sul enfrenta desafios típicos de uma publicação que tenta sobreviver no interior TEXTO E FOTOS: RENATA PIAS prédio que abriga desde 1978 o mais antigo jornal em circulação do Rio Grande do Sul tem marcas da história por todos os lados. Nas paredes revestidas por centenas de edições da Gazeta de Alegrete estão, em destaque, retratos de décadas anteriores. Fotos do fundador, Luiz de Freitas Valle, o Barão do Ibirocay, repousam ao lado de outros nomes importantes que passaram por lá, como o do poeta alegretense Mário Quintana, que teve seus primeiros escritos publicados pela Gazeta na década de 1950. No segundo andar do número 55 da Rua Gaspar Martins, no calçadão de Alegrete, antigas máquinas de escrever e de
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cortar papel fazem parte da decoração da sede do jornal. Nos dois computadores que ocupam a pequena sala da redação, os últimos detalhes da edição da semana do 133º aniversário da publicação são corrigidos. O editor-chefe, que é também repórter e, às vezes, diagramador, divide o espaço com os dois jovens funcionários que organizam os anúncios, as colunas e as notícias que devem ser enviadas até o início da tarde de sexta-feira para a gráfica em Cruz Alta, a quase 400 km de distância. Na sala da diretoria, um curioso contraste: uma mesa de desenho arquitetônico disputa a atenção da proprietária do jornal, Lilia Ricciardi dos Santos, 58 anos,
com a edição mais recente da Gazeta - ainda sendo revisada por ela. Lilia ocupa a cadeira que foi de seu pai, Hélio Ricciardi, falecido em fevereiro de 2015. Diretora administrativa da Gazeta há 15 anos, a arquiteta teve o sonho de estudar Jornalismo interrompido por um conselho de Hélio: “Se fores jornalista será para sempre empregada da Gazeta”. O destino, porém, tratou de manter a herdeira de Ricciardi por perto, e cada vez mais envolvida com a publicação. Um dos três filhos de Lília, Bruno, estudante de Direito, 27 anos, é um dos diagramadores, mas levar adiante o negócio da família não está nos planos dele.
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Alegrete tem tradição no jornalismo e, principalmente, na literatura. Berço de grandes nomes da comunicação, o primeiro jornal alegretense data de setembro de 1842. O Americano deixou de circular apenas meio ano depois, em março de 1843, quando foi substituído pelo Estrella do Sul, que publicou apenas três exemplares. A cidade só veio a ter outro jornal em 1858, quando surgiu O Alegretense. A partir da década de 1870, foram editados, entre outros com menor tempo de circulação, A Justiça, Echo e Jornal do Comércio. Nas máquinas e oficinas deste último é que surgiu em 1882 a Gazeta de Alegrete. Luiz de Freitas Valle fundou a Gazeta com a intenção de promover a imediata abolição da escravatura. Com o lema “Combater e derrubar a nefanda escravatura”, Freitas Valle adquiriu as oficinas e materiais gráficos do Jornal do Comércio. Em 1º de outubro de 1882, circulou o primeiro número da publicação que passaria a ter destaque em todo o País, devido à forte ligação que os poucos jornais da época mantinham para fins de troca de informações. Eram divulgadas, principalmente, notícias internacionais, nacionais (incluindo vários estados), estaduais e locais, além de informações mercantis, pecuária e assuntos de interesse dos estanceiros. Os anúncios circulavam em torno de hotéis, tecidos, xaropes, medicações para doenças da época, advocacia e outros pequenos comércios. Conforme registros do próprio jornal, o primeiro editor e responsável pela Gazeta, em 1882, foi o engenheiro, militar e jornalista Jesuino Melchiades de Souza. Em 1883, assumiu a função de editor responsável Ignácio Bicca de Freitas. Dois anos depois, Armando Brunet passou a comandar o periódico, até que José Celestino Prunes assumiu em 1888. A família Prunes administrou e manteve viva a Gazeta de Alegrete até 1944. OS PRUNES Prunes trabalhava como gráfico na Gazeta quando assumiu o cargo de editor. Na época, o Barão de Ibirocay mudou-se para o Rio de Janeiro e não mais retornou. Prunes permaneceu no comando por 15 anos, quando foi substituído pelo filho, José Fredolino, o principal responsável pela manutenção da Gazeta de
Os atuais proprietários desconhecem parte da história da Gazeta, como os momentos retratados nas imagens acima. Na primeira, a chegada das máquinas da gráfica Coqueiros. Na segunda, jornaleiros na década de 1970 Alegrete. O jornal deve a ele sua longevidade. No período de Celestino Prunes, a Gazeta ficou seis anos circulando com outro nome: O Til, referência ao sobrenome da esposa de Celestino e mãe de Fredolino Prunes. Os Prunes descendiam de espanhóis, originários da Argentina. Celestino migrou para Alegrete, onde teve os seis filhos. Celestino e Fredolino Prunes foram os responsáveis pela criação da gráfica Coqueiros, onde, a partir de 1905, também passou a funcionar a sede da Gazeta de Alegrete. A família deixou a administração da Gazeta depois de 56 anos, passando a função ao advogado, político e jornalista Heitor Galant.
O INCÊNDIO Em outubro de 1959, um incêndio destruiu as dependências da Gazeta de Alegrete, acabando com o arquivo histórico e todo o material de trabalho do jornal e da gráfica Coqueiros. Sabe-se, a partir de registro do próprio jornal, que o incêndio foi criminoso. Um laudo pericial feito na época constatou tentativa de roubo do cofre, e o fogo teria começado com faíscas de vela ou toco de cigarro. Uma campanha feita pelos funcionários, em parceria com a população, conseguiu recompor grande parte do acervo e comprar os materiais necessários para retomar a produção do DEZEMBRO 2015 EXP 65
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jornal. A Gazeta voltou a circular quatro meses depois, em 1º de fevereiro de 1960. Segundo a professora da PUCRS, Beatriz Dornelles, que está digitalizando o arquivo histórico da Gazeta de Alegrete com recursos da instituição, a partir da aprovação do Projeto de Preservação do Acervo Histórico desse jornal, consta na edição de relançamento o nome das 90 pessoas que contribuíram com recursos financeiros, por meio da compra de ações da empresa, para reerguê-la. Heitor Galant deixou a administração da Gazeta em 1969, quando assumiram Hélio Ricciardi dos Santos e Samuel Marques da Silva. Os sócios fundaram em 1979 a Rádio Gazeta AM, que divide o mesmo prédio com a Gazeta de Alegrete e uma imobiliária pertencente à família Ricciardi. Com a morte de Samuel Marques, em 2011, e a de Ricciardi, no início de 2015, um acordo judicial estabeleceu que os herdeiros de ambos deveriam dividir a empresa. Dessa forma, o filho de Samuel Marques herdou a rádio e Lília, o jornal. BAIXOS ORÇAMENTOS Sobreviver no interior não é tarefa fácil para nenhuma publicação. Faltam incentivos, anunciantes e, até mesmo, funcionários. Entre os colaboradores que passaram pela Gazeta, está o cronista de Zero Hora Moisés Mendes, natural de Rosário do Sul e criado em Alegrete. Ele chegou ao jornal como porteiro. Com o passar dos anos, foi repórter e redator. Até que, em 1972, aos 18 anos, tornou-se editor-chefe. Hoje, ao relembrar os cerca de dois anos trabalhados no jornal de Alegrete, Mendes garante que o período foi crucial para a carreira dele como jornalista. Afinal, na época, ele não tinha diploma universitário. Foi atuando no interior que conheceu o ofício exercido até hoje. “Eu aprendi a ser repórter na Gazeta”, afirma. Outro que também passou pelo prédio da Rua Gaspar Martins foi o escritor alegretense Sérgio Faraco. Nas visitas que fazia à cidade natal, na década de 1960, produzia textos para ajudar a publicação. “Eu era um auxiliar ocasional, um voluntário, e era esse o meu papel. O velho João (João de Deus Barros Peres, redator na época) era vizinho da casa de meus pais. Às vezes, ele me via sair da casa e pedia que eu passasse no jornal para escrever uma nota, digamos, sobre a falta de luz na cidade. Eu escrevia e ia embora”.
A sala do arquivo do jornal mais antigo do RS tem cerca de um metro quadrado FUTURO Está nas mãos do editor-chefe, Paulo Antonio Berquó Farias, que pretende se tornar sócio da empresa, manter o jornal ativo. O jornalista, envolvido com a Gazeta desde 2003, é um dos principais responsáveis pelo jornal ainda estar no mercado em tempos de discussão sobre a validade dos jornais impressos. Uma das metas é criar um portal na Internet com o nome do jornal. Segundo Berquó, a necessidade de migrar para o meio digital deve-se não só à modernização das mídias, mas também para suprir a demanda de informações que recebe todos os dias e não consegue organizar nas 20 páginas do periódico.
Outra novidade é a digitalização do acervo da Gazeta, trabalho que vem sendo realizado desde abril de 2015 pela bolsista Kellem Cenci Anzolin e pela coordenadora do Grupo de Pesquisa História da Imprensa Gaúcha, Beatriz Dornelles. Os registros mais antigos datam de 1885. A finalização do projeto ocorrerá no final de 2016, quando estará disponível no site do Núcleo de Pesquisa em Ciência da Comunicação (NUPECC), da Faculdade de Comunicação Social, da PUCRS: e em breve poderão ser consultados pela população no meio digital através do site www.pucrs.br/famecos/nupecc. Os arquivos originais deverão, futuramente, fazer parte de um memorial na cidade.
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O casal Vitor e Rosiane trabalha com a curiosidade de saber o que está acontecendo nos gramados do Beira-Rio
TÃO PERTO, Tão longe
Os pequenos detalhes que impedem profissionais de desfrutarem algo que aparentemente está próximo e, ao mesmo tempo, distante TEXTO E FOTOS: MARIA EUGENIA BOFILL ssistir a uma partida de futebol, viajar de avião, hospedar-se em um hotel de luxo ou tietar celebridades seriam atividades comuns ou, pelo menos, possíveis para qualquer pessoa. Mas há quem esteja impedido de desfrutá-las por falta de oportunidade, profissionalismo ou questões éticas. A angústia de desejar algo aparentemente próximo, porém inalcançável, pode se revelar nos momentos mais inesperados, como no próprio trabalho. Há, ainda, aqueles impedidos de desfrutar das tentações com as quais convivem todos os dias. Apesar de sempre atuarem dentro do estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, nos dias das partidas de futebol, as irmãs colo-
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radas Rosiane e Lisiane Reis, 37 e 39 anos, respectivamente, jamais acompanham o que ocorre dentro das quatro linhas do gramado. As duas são responsáveis por vender as pipocas em frente ao portão sete. “Quando os campeonatos são grandes, temos muita vontade de assistir aos jogos. Principalmente, quando ouvimos a torcida cantar”, conta Lisiane. Pela 22ª rodada do Campeonato Brasileiro, em 9 de setembro de 2015, por exemplo, as irmãs apenas ouviram seis vezes a comemoração da torcida nos gols do Internacional contra o Vasco da Gama. As duas reconhecem os gols ao escutarem a vibração e a locutora anunciando o autor da façanha. É o sinal para as coloradas
pegarem seus pompons e pularem atrás do balcão. O que acontece na partida é imaginado pelo som transmitido pela torcida, ou também pelos questionamentos rápidos aos torcedores que descem para comprar a pipoca. Não há um rádio para as irmãs escutarem ao jogo. A televisão, que fica entre elas e os vendedores de pizza, transmite apenas vídeos institucionais do time. Quando os milhos da pipoca demoram a estourar, a fila de torcedores aumenta, e a impaciência por perderem alguns minutos de jogo, também. A torcida se anima, “foi gol?”, questiona um torcedor que está na fila, “Não, esse não é o grito de gol”, responde Rosiane. Vitor Hugo é o terceiro integrante da DEZEMBRO 2015 EXP 67
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turma da pipoca. Marido de Rosiane, eletrabalhava como segurança no Beira-Rio antes da modernização. Hugo esteve presente no Bicampeonato da Libertadores em 2010, no Bicampeonato da Recopa no ano seguinte, e nas finais dos Gauchões de 2011, 2012 e 2015. Mas não assistiu a nenhum dos jogos mais importantes da história do Internacional. “Talvez chegue o momento em que a gente não preste mais serviço e possa assistir ao jogo, só torcer e se divertir”, espera. Os clássicos do futebol ou os jogos de decisões são os que mais despertam a vontade. Quando os bumbos da banda da torcida organizada batem com mais intensidade, ou quando as vozes dos torcedores se exaltam, os três sabem que o jogo está em um momento mais intenso. “A gente ouve a torcida e se arrepia toda”, conta Rosiane. Às vezes, o marido dela não resiste às espiadas, “mas conta que na semana passada tu fugiu e ainda conseguiu assistir aos gols”, revela Lisiane. O trio não está sozinho na vontade de ver um jogo do Internacional. Com a reforma dos estádios para a Copa do Mundo e a proximidade das torcidas do campo, surgiu a função árdua de segurança de torcida, denominada steward. A posição deles é privilegiada, dentro do campo e perto dos jogadores. Porém, eles permanecem de costas e são impedidos de assistirem aos jogos. Vestindo um uniforme laranja, cuja cor que pode ser identificada a metros de distância, Erick Morgenstern é um dos que nunca mais assistiu a uma partida do Colorado em casa desde a reforma do estádio. Os 90 minutos parecem uma eternidade. Erick está bem ali, dentro do campo. O que o separa de assistir aos jogos do time do coração é apenas uma olhada para trás. Mas está nas regras: não pode vibrar, não pode cantar, quiçá virar para o campo. O que resta é torcer calado.Mesmo depois de um ano e oito meses, ele ainda não acostumou-se à função. “É angustiante. A gente se baseia pela torcida, ela é o nosso reflexo”, ressalta. Quando os torcedores se animam, batem palmas, xingam e até calam, é inevitável a espiada pelo telão. As unhas são roídas, as mãos se unem e fazem movimentos para cima e para baixo, estica-se as pernas e depois volta-se a encolhê-las, entre uma bocejada e outra. Uma espiada pelo telão é o máximo que consegue fazer. “Tu sabe que tudo está acontecendo atrás de ti. E tu não pode ver, nem olhar para trás. Se o torcedor sente uma emoção assistindo ao jogo, imagina de costas, que tu ainda precisa imaginar
Erick está no campo em todos os jogos do Inter. Porém, não assiste a nenhum deles o que está acontecendo dentro de campo”. Mesmo distante dos colorados do Beira-Rio, Andréia Pulz, 44 anos, vive a mesma angústia. Todos os dias, entre 5h30min e 11h30min, passam por ela pilotos de avião, aeromoças e passageiros rumo às aeronaves dispostas na pista do Aeroporto Internacional Salgado Filho. Mas o mais próximo que Andréia chegou de um avião foi no Raio-X de passageiros, que antecede o embarque, onde trabalha. “As borboletas começam a voar aqui dentro quando penso na possibilidade de eu voar”, ela brinca. A falta de oportunidades e as questões financeiras a impedem de ser a próxima a fazer um check in, despachar as malas, passar bolsas e objetos pelo equipamento de Raio-X. “A gente fica bem curioso. É tudo tão pertinho, mas não é pra ti”, lamenta. “Acho que deve ser estranho aquela coisa, daquele tamanho, voar tão alto e se tornar tão pequenininho depois”, imagina Andréia. Usando calça e blazer preto, camisa azul clara e crachá de identificação, a agente faz questão de chamar a todos pelo nome, desejar um bom trabalho ou boa viagem. Uma das histórias de viagem que mais a empolgou foi a do comandante que presenteou os passageiros contornando a lua cheia. “Imagina um presente desses. Fiquei sonhando como seria ver a lua cheia bem de pertinho na janela. Imagina como é ver o sol nascer ali de dentro?”, suspira. De suspiros também vive o funcionário de um hotel cinco estrelas da Capital, Vanderlei Santos, 40. “O sonho de todo mundo é a suíte presidencial. Quem sabe um dia”, brinca ele sobre dormir no quarto com a diária mais cara do estabelecimento. No hotel, Santos é o homem que fica próximo das celebridades. Supervisor da segurança há um ano e meio, ele já fez escoltas das cantoras Ivete Sangalo e Madonna, do rei Roberto Carlos, por exemplo.
Apesar de admirá-los, não pode pedir uma selfie com os ídolos. A empresa não permite tietagem. “Tornou-se corriqueiro, para mim, são pessoas normais como qualquer outra”, conta, tentando esconder uma ponta de vontade de estar mais próximo dos famosos. Tão perto e ainda assim tão longe são os poucos degraus que impedem os trabalhadores colorados do Beira-Rio de assistirem aos jogos, o telão que Erick espia a partida, a imaginação de Andréia, que a deixa tão mais próxima de voar até Salvador (BA), e o desejo de Santos de hospedar-se na suíte presidencial ou apenas tirar uma selfie com quem admira. Para eles, o inalcançável está bem ao lado.
Andreia trabalha no Raio-X do Aeroporto, mas nunca entrou num avião
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AMOR PARA A VIDA TODA Há o ditado que diz que toda mãe é igual. Pois nossos filhos também podem ser, depende apenas da maneira como o mundo irá tratá-los TEXTO E FOTOS: MARCELO GARCIA
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omeça com um bom dia silencioso. Murilo, quatro anos, acorda por volta das 8h, e permanece mudo na cama. Seus olhos percorrem todos os cantos do quarto, como se precisasse de um tempo para se situar. Entre um movimento e outro, espreguiça-se para esticar os braços e as pernas que passaram encolhidos durante toda a noite. O silêncio, porém, não dura muito tempo. Quando sente que está sozinho, Murilo chora. Seu neuropediatra, Antônio Diniz, explica os motivos. “Essa é uma das características da lesão dos bebês que possuem microcefalia. Eles têm uma limitação importante, que é a de não saberem se distrair sozinhos. Não são como as demais crianças que, por exemplo, levantam e procuram pelos pais. A percepção do Murilo é diferente, e por ainda ter limitações motoras, ele não tem a consciência de que pode sair da cama. Por isso, ele chora. É a maneira que tem de se comunicar, de chamar a atenção e avisar que já acordou.” É nesse momento que a mãe de Murilo, Daniele Goularte, 23 anos, sabe que está na hora de levantar, mesmo que o seu corpo peça por um pouco mais de cama. “Eu acordo quando ele acorda, nem um segundo a mais”, conta. E essa é uma rotina que permanece ao longo de todo o dia. “O Murilo não pode ficar sozinho. São raras as vezes em que ele até fica alguns minutos quietinho, mas na maioria do tempo ele chora. Ele precisa estar sempre no colo, ou então no sofá ou na cama, mas com alguém distraindo ele, brincando, mexendo nele. Só conversar também tem vezes que não funciona, é preciso contato físico mesmo”. Quando está sozinha em casa e precisa fazer alguma tarefa importante, Daniele deixa o filho deitado de bruços na cama,
Bastam algumas palavras de Daniele para que Murilo se divirta e caia na gargalhada DEZEMBRO 2015 EXP 69
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apoiado em uma pilha de travesseiros, para que possa ficar um pouco ereto, e liga vídeos infantis no aparelho celular, para distraí-lo. “O Murilo é sempre uma incógnita, porque a gente não sabe qual vai ser a reação dele. Tem vezes que ele está tranquilo, outras ele não fica sozinho por nada. As atividades cerebrais dele são assim, oito ou 80”, afirma. A posição em que é colocado na cama também não é por acaso. De bruços é melhor por permitir que ele erga a cabeça e olhe em volta, inclusive para o próprio celular. Serve de exercício para melhorar a sua percepção sensorial e os movimentos. Diniz explica que apesar de ter quatro anos de “corpo físico”, não é possível afirmar com precisão a idade mental e comportamental de Murilo. “Suas ondas cerebrais sofrem picos de alta e baixa atividade, com maior frequência e mais intensidade do que em pessoas comuns. Não há uma organização constante”. E isso é visível em uma série de comportamentos diários, principalmente nos momentos em que fica sozinho e chora. “Pego ele no colo de novo e ele continua de olhos bem fechados, fazendo escândalo como se ainda estivesse sozinho, demora para perceber que não está mais. Eu converso para acalmar e até assopro de leve o rostinho dele, pedindo para que ele se organize e pare de fazer cena”, brinca Daniele. POR UMA ESCOLA Mãe solteira, Daniel não tem com quem deixar o filho quando sai para o trabalho ainda pela manhã. É por isso que Murilo passa boa parte do dia na Escola Piu Piu. O menino frequenta a escola desde os dois
anos de idade. Xodó das professoras, faz a festa da equipe quando chega. “Aqui ele costuma ser o centro das atenções”, afirma Drieli Girboni, professora e dona da escolinha. Hoje, Daniele tem facilidade para deixar o filho com pessoas de confiança, mas nem sempre foi assim. “Tive dificuldades de encontrar uma escola que aceitasse o Murilo”, afirma. Foi uma busca intensa, passando por quase dez escolas especializadas em educação e cuidados infantis. Ela procura deixar claro que não houve nenhuma recusa imediata ou uma espécie de preconceito explícito. “Todas me atenderam com atenção e disseram que conversariam com os respectivos donos, e independente da decisão, entrariam em contato comigo”. Porém, nunca houve um retorno.
Devido aos picos inconstantes de humor, não é possível prever as reações de Murilo “Eu não acredito em discriminação. Compreendo como um despreparo mesmo, pois querendo ou não, o Murilo precisa de um cuidado um pouco diferente. Só que esse é o problema. As pessoas acham que o tratamento deve ser muito diferenciado, minucioso e de extremo cuidado, que a alimentação dele seja complicada, que seja difícil integrá-lo com as demais crianças, que ele é um coitadinho. Não é
Passeios ao ar livre são bons aliados para melhorar a percepção sensorial de Murilo
assim. Então, essas escolas acabam não querendo se comprometer”. Os profissionais da Piu Piu são o apoio que faltava à mãe de Murilo. O que no começo foi a aceitação de um desafio, hoje se tornou um imenso prazer, como afirma a professora Drieli. “Quando recebemos a Daniele aqui, fomos sinceros com ela. Nunca havíamos trabalhado com uma criança especial, mas sabíamos que seria um desafio e um aprendizado para todos. Tivemos que passar por alguns obstáculos, mas hoje o Murilo está muito bem adaptado e integrado”. É importante que Murilo frequente a escola desde cedo para que se mantenha em desenvolvimento. “Esse contato com crianças ajuda muito o Murilo. Ele acaba expandindo a percepção dele de que existem outras pessoas, cria laços novos com quem não é diretamente da sua família. Estar cercado por um ambiente lúdico e de aprendizado é importante para qualquer criança, com ele não seria diferente”, afirma o neuropediatra. DESENVOLVIMENTO A microcefalia é caracterizada por um crânio de menor perímetro que o normal para um recém-nascido. Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil registra, por ano, de 100 a 120 casos. É devido a esta anomalia que ocorre a lesão cerebral, variando de criança para criança. “No caso do Murilo, foram afetados somente o desenvolvimento motor e a fala”, explica Antônio. “Ele se alimenta como qualquer criança da idade dele, come de tudo, não tem problemas de respiração, fígado, rim, nada. Tudo funciona normalmente”, completa Daniele. Para trabalhar no desenvolvimento das próprias limitações, Murilo faz fisioterapia duas vezes por semana. O foco da fisioterapia é justamente estabelecer o controle dos movimentos corporais. Geovana Reolon, fisioterapeuta neuroinfantil, explica que o corpo funciona em blocos. “Para ele sentar, é preciso ter o controle dos movimentos da cabeça. Para andar, precisa da cabeça e do engatinhar”. A evolução, conquistada pouco a pouco ao longo de dois anos, possibilitou a Murilo ter um controle maior da cabeça. Ele aprendeu a levantá-la e mantê-la erguida por um tempo, girar para os lados em resposta a estímulos visuais ou sonoros ao seu redor, sem que ela perca a firmeza. “Com o controle da cabeça, os braços se soltaram e ele está aprendendo a usá-los para tocar nas coisas e também para manter o equilíbrio do corpo”, completa Geovana.
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Trata-se de um processo demorado de aprendizado, baseado na repetição e na insistência. Nem mesmo a medicina é capaz de dizer com exatidão até onde Murilo pode evoluir, o que torna importante os exercícios serem sempre constantes, até mesmo em casa. “A Geovana nos passou uma série de exercícios que nós mesmos podemos fazer para ajudar. Isso também me faz sentir parte do processo, pois estou contribuindo diretamente com o desenvolvimento dele”, afirma Daniele. Diniz explica que a microcefalia não é uma doença com cura, mas sim uma condição neurológica com tratamento. “Não é como uma gripe onde sabemos o que vai acontecer. O paciente vai produzir mucosa, sofrerá dores no corpo, talvez febre, e tomará uma variação de remédios para ajudar o corpo a se livrar do vírus. Na microcefalia, não. Nós não conseguimos prever os danos e quais déficits o bebê terá ao nascer. E depois disso, não sabemos até que ponto ele pode ou não evoluir”. Não há tratamentos específicos devido às variações das lesões. No caso de Murilo, faz-se necessário fisioterapia para o ganho de movimentos mais firmes e fonoaudiologia para desenvolver a sua fala. “Não há fórmula mágica nos tratamentos. Há todo um processo de evolução. Se um exercício físico não obtém sucesso, a gente muda conforme a necessidade do paciente. Tem-se uma gama variada de exercícios para tentar. Nesses casos de microcefalia, principalmente, são os tratamentos que se adequam ao paciente, e não o contrário”, comenta Geovana. Para pais que tenham um bebê nas mesmas condições, os profissionais são taxativos: estímulos. Seja visual, auditivo ou físico, bebês com microcefalia têm as mesmas necessidades do que outros bebês para se desenvolverem. É um processo mais lento e sem a certeza dos resultados que serão obtidos, mas é de extrema importância que haja a manutenção de tratamentos. Os valores variam, mas costumam ser elevados. No entanto, há meios de passar por obstáculos financeiros. É por falta de tempo que Daniele não consegue dar ainda mais suporte ao filho. Mediante à comprovação de renda, crianças especiais têm direito a um benefício social do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), no valor de um salário mínimo. Isso complementaria a renda e ajudaria nos custos de novos tratamentos, como a própria fonoaudiologia, muito importante para o seu caso. Outra opção que está nos planos é buscar uma vaga na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), em Porto Alegre. “Tenho parentes próximo a Porto Alegre que poderiam me auxiliar com a estadia. Seria
Em festa à fantasia de Halloween, Drieli cuida de Murilo na Escolinha Piu Piu um lugar muito bom para o Murilo, pois lá ele faria trabalhos mais intensos, específicos e em tempo integral. Ajudaria muito na evolução dele, sem dúvida”, diz Daniele. NÃO ESTÃO SÓS Ciente de que há muitas famílias com histórias semelhantes, Daniele faz questão de dividir suas experiências e de também absorver outras novas. Para tanto, faz parte de algumas comunidades no Facebook que buscam essa troca entre os pais. Ela considera ser uma boa opção para buscar incentivo e aprender sobre o assunto. “É muito bom porque tu pode conhecer outras histórias, pode ver mães relatando os avanços dos seus filhos, as conquistas diárias. Além de ser bonito, serve de estímulo e esperança para o meu próprio filho. É um lugar de encontro muito bonito, onde há muito respeito e ajuda”, relata Daniele. Além desse tipo de apoio, surgem também diversas doações de materiais já usados e que determinado bebê ou criança não precisará mais. “Alguns pais doam andadores, por exemplo, quando a criança já está grande para usá-lo. Também vendem a preços bem mais acessíveis, mas pelo próprio espírito solidário que as famílias criam ao terem um filho especial, acabam optando pela doação do material mesmo. É literalmente uma comunidade, entende? As pessoas se engajam e ajudam”, conclui. APENAS UMA CRIANÇA NORMAL A mãe é categórica quando fala dos sonhos que tem para o filho. Ciente das incógnitas que cercam Murilo, ela carrega sempre no peito a esperança de vê-lo dar os primeiros passos sozinho e de falar as primeiras palavras. “Ele já aprendeu a dizer ‘bo’ e ‘bó’ para chamar os avós”, brinca Daniele. E o seu
desejo vai além do que tratamentos médicos podem dar. Tem relação direta com quem enxerga a sua situação de fora. “Não quero que tenham pena de mim e do meu filho”, afirma. Foi por querer que as pessoas conhecessem parte da sua história que Daniele aceitou contá-la. Um simples pegar no colo às vezes é difícil. Murilo se deleita na presença da mãe e da avó, dona Liliane Goularte. No entanto, tem por costume estranhar pessoas que não conhece. “Ele se estica todo, como se estivesse em posição de defesa. E isso faz as pessoas desistirem logo de cara”, comenta a avó. Assim como nos exercícios, para conquistar Murilo também é preciso paciência e insistência. “Vou ficar feliz se lerem sobre nós e não ficarem surpresos, como se dissessem que o Murilo não é o único no mundo nessa situação, ou que eu não seja uma mãe heroica, pois muitas passam o mesmo ou até pior. É justamente isso o que eu quero, que nos vejam como uma família normal. Para mim ele é perfeitamente normal. O Murilo não é diferente de nenhuma outra criança da escolinha. Ele só tem o tempo dele, e tenho fé de que com os tratamentos e muito amor, ele vai chegar lá”, Daniele conclui, enquanto Murilo se agita ao ouvir a voz da mãe.
Murilo segura firme ao toque das mãos DEZEMBRO 2015 EXP 71
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Samuel Evens mostra seu passaporte. Português é a principal dificuldade dos imigrantes na luta por melhores condições de vida
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O APRENDIZADO Imigrantes no Brasil sofrem com idioma e falta de qualificação profissional. Barreira da língua é a principal na busca de melhores oportunidades
TEXTO E FOTOS: DEYVES GOULART
grande dificuldade dos haitianos que migram para o Brasil é a língua. No Haiti, a maior parte da população fala crioulo haitiano e francês, seu idioma local. Sem falar e entender o português, eles não conseguem vagas para trabalhar em grandes empresas, onde precisam se enquadrar em normas de segurança do trabalho. Por isso, uma parte dos imigrantes haitianos que se estabeleceram em Porto Alegre hoje trabalha na informalidade como pintores, pedreiros, técnicos em edificações e mecânicos, entre outras profissões. Samuel Evens, 31 anos, chegou ao Brasil há cerca de 8 meses e já pretende voltar para o Haiti. Deixou para trás uma profissão
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de eletricista em busca de melhores condições, mas a realidade em solo brasileiro não atingiu suas expectativas. Seu discurso é praticamente o mesmo de outros imigrantes: ele afirma que, mesmo estando com a situação regular no país, as oportunidades de emprego passam muito pelo modo com que os imigrantes conseguem se comunicar com os brasileiros. “Primeiro viemos ao Brasil em busca de melhores salários, mas como somos imigrantes e não apresentamos nenhuma garantia a eles, tudo se torna mais complicado. A língua é bastante difícil, o que aprendemos é apenas o que escutamos todos os dias, mas isso não nos garante muita
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coisa”, afirma Samuel. O alto custo de aluguéis, alimentação e transporte faz com que o planejamento de enviar dinheiro às famílias no Haiti seja dificultado. Grande parte dos imigrantes residentes em Porto Alegre vive na Zona Norte, ou mais precisamente no Bairro Rubem Berta, onde mora Samuel. ONG OFERECE CURSO Localizada no centro de Porto Alegre, a Cibai Migrações é responsável por atender centenas de imigrantes que necessitam de alguma ajuda. Desde informações, carteira de trabalho, passaportes, orientações pessoais e cursos de português, são oferecidos gratuitamente para haitianos, senegaleses e até nigerianos. Eliane Severo, uma das coordenadoras e orientadoras da Cibai, conta que todos os dias recebe imigrantes que necessitam de alguma ajuda: “Eles aparecem aqui todos os dias, sozinhos, em duplas ou em grandes grupos. Como a frequência é constante, já conhecemos a grande parte e suas histórias. Ajudamos muitas vezes com doações, pois não são todos que conseguem se sustentar sozinhos aqui, são raras as exceções”. Além de realizar todo esse serviço, a ONG ainda conta com aulas de português para os imigrantes. Eliane garante que os haitianos são a maioria entre os alunos. O curso de português oferecido pela Cibai Migrações é realizado às quintas-feiras e aos sábados pela manhã, o que muitas vezes dificulta a presença dos alunos pelo horário e pela distância de suas residências, já que muitos moram na Zona Norte. “Nossa proposta era que a turma tivesse um número expressivo, mas a procura dos imigrantes varia a cada semana. Alguns aparecem apenas quando não chove, outros que estão matriculados comparecem apenas para pegar as doações. O serviço está aqui, mas não podemos obrigá-los a participar”, afirma Eliane. VOLUNTARIADO GARANTE ENSINO AOS IMIGRANTES A oportunidade de Rosely Soares ser voluntária como professora de português surgiu inesperadamente após o contato com a Cibai Migrações. Formada em Letras e com uma forte preocupação social em relação a pessoas necessitadas, ela relata como surgiu a vontade de lecionar português para imigrantes haitianos: “Com a chegada expressiva de imigrantes haitianos ao país, a língua portuguesa tornou-se imprescindível para esses imigrantes terem acesso ao mercado de trabalho brasileiro. Sem ter experiência pedagógica, fica mais comple-
“A língua portuguesa tornou-se imprescindível para esses imigrantes terem acesso ao mercado de trabalho brasileiro.” Rosely Soares, professora voluntária
xo. Mas vendo a vontade de aprender de diversos alunos, a minha vontade redobra a cada aula”. As aulas são frequentadas por alunos de níveis de escolaridade muito distintos. Alguns possuem ensino superior, e outros, ensino médio incompleto. O avanço no aprendizado da língua também é dificulta-
do pela ausência dos alunos nas aulas, que muitas vezes se dá pela busca de emprego, cada dia mais difícil na atual situação de crise do Brasil. O desemprego e as dificuldades financeiras aumentam suas carências. Porém, a vontade de aprender e tentar se habituar à nova realidade fez com que Victor Rondeau não deixasse de frequentar uma só aula oferecida pela ONG. Nascido na cidade de Gonaives e morando no Brasil há um ano e meio, ele afirma que a necessidade de se comunicar era grande e que, na Cibai, teve a oportunidade de aprender o português dentro de uma sala de aula: “A língua é muito difícil. Consigo me comunicar apenas com o que escuto e falo no dia-a-dia, mas sei que isso pode me limitar em muitas outras ocasiões”. Victor está desempregado. Desde que chegou ao país trabalhou como assistente na churrascaria Na Brasa e auxiliou em uma loja de eletrônicos no camelódromo de Porto Alegre. A pronúncia e o entendimento dificultaram a permanência nesses empregos. Por enquanto, não pensa em regressar ao Haiti. Diz que a precariedade ainda é muito grande por lá e que quer mesmo ficar em solo brasileiro, mesmo tendo problemas na comunicação: “Não sinto vontade de voltar, sei que diversos imigrantes estão regressando para o Haiti, mas a realidade é que lá nada está fácil. Acredito que ainda posso realizar o sonho de juntar dinheiro e ter uma vida melhor aqui e claro, aprender a falar o português com fluência”.
Acompanhados pelas professoras, imigrantes realizam exercícios de gramática DEZEMBRO 2015 EXP 73
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o camarim do
Castanha após o ensaio de Até o Fim, peça onde divide experiências com uma enfermeira, interpretada pela atriz Rose Canal
Há mais de três décadas na arte do humor, o ator João Carlos Castanha se divide entre os mais diversos palcos, telas e casas noturnas TEXTO E FOTOS: JULIAN RODRIGUES
o município de Camargo, interior do Rio Grande do Sul, nasceu um menino atrevido. Seus pais, Francisco Jairo Rodrigues da Silva e Celina Castanha da Silva, batizaram-no João Carlos Castanha. O nome era sisudo. Seu portador trilharia o caminho inverso. Já na infância, a paixão pela atuação foi despertada nos primeiros tempos de encenações artísticas na Igreja Nossa Senhora do Brasil, no bairro Partenon, em Porto Alegre. Era o ano de 1975. A professora segurou as pequenas mãos de João Carlos e sussurrou em seu ouvido: — João Carlos você irá fazer um papel muito importante na peça da Rapunzel que vamos encenar aqui na escola. — Eu serei o príncipe? — perguntou João Carlos, já se imaginando com a princesa nos braços. — Não, você será o guarda da torre — disse a professora. — Mas não existe um guarda na torre! — exclamou João Carlos, indignado.
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— Faremos um — disse a professora. Pela primeira vez João Carlos percebeu que, na vida de ator, também há obstáculos. Tornou-se profissional, em 1979. Na época, o jovem engraçado trabalhava em uma loja de tecidos e viu um anúncio publicado pelo grupo teatral Ói Nóis Aqui Traveiz no jornal Correio do Povo. Era a seleção de pessoas sem experiência para um teste de elenco. Entre tecidos, João Carlos, passava as horas imaginando como seria o teste e se seria aprovado. Dois dias depois, estava entre os 15 selecionados para a peça A Divina Proporção – A Felicidade Não Esperneia, Patati, Patatá, do autor Júlio Zanotta Vieira. Mesmo não sendo um católico fervoroso, acabou rezando e agradecendo a Nossa Senhora do Brasil. Lembrava-se de ter ouvido algo sobre ela nos tempos do colégio. Assim, teve início a carreira do ator Castanha. Entre os momentos adversos na profissão, teve uma divergência com uma
importante diretora de atores do cenário gaúcho, em 1985. O artista recebeu um questionário com 50 folhas sobre o perfil do personagem, como o lugar em que ele iria aos domingos, o dia do parquinho de diversão, o local mais apropriado para brincar. Com a ficha técnica do personagem, disse que não iria responder, a diretora indagou-lhe: – Por quê? — Quem precisa saber é o público e não você — respondeu, de maneira enfática. Fiel ao seu público e ao seu estilo cênico, Castanha tem como um dos seus grandes méritos arrancar risos de todos. Essa característica se confunde com a personalidade do próprio ator. Não é à toa que Castanha é saudado pelo ator e diretor Zé Adão Barbosa com a expressão “Ave Castanha, Grande Palhaço”! A atuação no humor também foi marcada por alguns fatos pitorescos. Como o dia que, por equívoco de horário, teve de se apresentar com amigos despidos para uma plateia de jovens estudantes que acreditavam assistir uma peça infantil. — Minha irmã grávida, quase perdeu o filho quando viu. Foi um desespero e só. A Assembleia toda lotada, e os professores correndo com os alunos. Foi engraçado, mas também bizarro — sorri Castanha. A repercussão do fato propiciou amadurecimento ao ator: – Fizemos o nosso trabalho, mesmo que tenha sido em horário equivo-
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grande palhaço
Castanha Massafera é uma sátira de Larissa Ramos, personagem vivida pela atriz Grazi Massafera na série Verdades Secretas cado. O fato abriu a minha mente. Ele vive desenvolvendo personagens para suas peças teatrais. Suas criaturas nascem nas madrugadas, em seu escritório. São frutos de idas ao banco, supermercados e praças durante a semana. O cotidiano é um terreno fértil que sempre insere em seus espetáculos, juntamente com experiências sexuais e fatos marcantes da década de 1980. Em casa assiste televisão, se interessa por política. Perde-se no meio digital diante tantas fotos e mensagens, mas encontra-se em obras de autores nacionais e internacionais via Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). É admirador do cineasta italiano Vittorio de Sica e do filme Ladrões de Bicicletas (1948), que retrata a luta familiar para sobreviver em meio a uma Itália devastada pela guerra. Em meio a esse turbilhão de cenas, folheia a beleza retratada na obra A Morte em Veneza de Thomas Mann. O pequeno guri João Carlos hoje é o grande ator Castanha, com três décadas de carreira, e seus mais de cem personagens, uma referência nas artes cênicas do Rio Grande do Sul. Como não lembrar a personagem principal da peça A Mãe? Ou ainda quando colocava para dançar o público da peça Rei do Rádio? — Vamo dançá, vamo dançá! — exclamava o radialista interpretado por Castanha, no monólogo.
Castanha tem planos na cachola. O ator quer remontar uma peça de Júlio Zanotta Vieira, sobre a travesti Luísa Felpuda, personagem típica de Porto Alegre assassinada pelo namorado durante o regime militar. Além dos corpos carbonizados, foi encontrado o “caderninho” com os nomes dos clientes da casa junto ao corpo da vítima. E, como a vida não é só teatro, há os projetos de cinema, como os filmes Maria Helena– A Mulher de Todos, de Cristiano Sousa, Banzo, de Pedro Gosler, e Inatingível, de Rodolfo de Castilho Franco. Há também a produção de seu primeiro curta-metragem, Eu queria Nascer Kazuo Ohno. Castanha só tem medo de uma coisa– o politicamente correto. “Hoje em dia está mais complicado, não se pode falar em política que os rótulos chegam, ou és coxinha ou esquerdopata. É proibido falar de raça, religião e comportamento. Antigamente, não era tão forte o Politicamente Correto. Assisti esses dias com meu amigo A Buzina do Chacrinha, que falava coisas como: “Olha a mandioca, olha o sapatão da Maria Bethânia– afirma o ator. Ele cresceu, rompeu barreiras e, caracterizado de Maria Helena Castanha, uma personagem drag, recebeu o prêmio de melhor ator na 10ª edição do Prêmio Braskem em Cena, entregue durante o 22º Festival Porto Alegre em Cena, pelo conjunto de sua obra cênica e teatral.
“Não haveria escola melhor do que iniciar no Oi Nóis Aqui Traveiz.” João Carlos Castanha, ator do espetáculo “Até o Fim”
Castanha interage com atores no camarim da casa Vitraux Clube DEZEMBRO 2015 EXP 75
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esconderijo de
O piano colorido faz parte do projeto Piano Livre. Os outros, estocados, serão vendidos em eventos no sítio de Viamão
Sítio em Viamão guardou, durante anos, um estoque de pianos. Em 2014, os instrumentos renasceram por meio do projeto Piano Livre TEXTO: GABRIEL GUIDOTTI. FOTOS: GABRIEL GUIDOTTI E DAIANA BERTO s portões da propriedade da família de Person Antonio Fontes se abrem lentamente, como se fossem cortinas de um teatro cujo espetáculo está para começar. No interior do sítio, o advogado Daniel Fontes exibe com emoção e carinho os galpões onde funcionou a oficina de restauração de pianos de seu pai. Unidades novas e usadas foram estocadas no local, esperando destinação e conserto. Em 2013, quando Person se aposentou, cerca de 130 instrumentos ainda davam o tom melancólico dessa espécie de ‘lixão cultural’. Dos cinco filhos de Person – três mulheres e dois homens – , apenas os dois irmãos seguiram a paixão do pai. Daniel in-
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tercala seu gosto pelo Direito nos períodos de trabalho com sua dedicação aos pianos nas horas vagas, promovendo saraus, rodas de músicas e aulas para o povo viamonense. O outro filho é Person Fontes, que seguiu carreira profissionalmente. Ele tem a própria empresa de restauração, a Person Pianos, que atua em diversos Estados. De uma forma ou de outra, todos na família têm uma ligação com o instrumento. O sítio, comprado há 40 anos, foi palco de inúmeros encontros regados a música. O patriarca começou o negócio em 1982, estabelecendo a oficina em Viamão e uma loja em Porto Alegre. No início, só comercializava pianos novos, provenientes de São Paulo e Curitiba. Com o tempo, a em-
presa passou a restaurar também pianos usados vindos de diferentes regiões. Daniel relata que a origem dos instrumentos é variada. “Meu pai pegou muitos pianos dos quais as pessoas queriam se livrar. Outros permaneceram pela desistência da família em relação ao restauro”, relata. Falta de espaço e custo do trabalho, entre outros fatores, também foram lembrados pelo advogado. Histórias coloriam o estoque na propriedade. No acervo, algumas relíquias construídas na Alemanha, França e Inglaterra. AMIZADE GENUÍNA COM TEIXEIRINHA Person Antonio Fontes é um homem que não pode se arrepender de sua trajetória de vida. Além do rentável negócio com os pianos, ele foi publicitário, durante anos, de um dos maiores compositores gaúchos: Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha. Person abriu uma empresa de publicidade com a única finalidade de auxiliar o amigo na divulgação de seu talento.
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pianos perdidos Elizabeth Teixeira, a Beta Teixeira, a quinta dos nove filhos de Teixeirinha, recorda a relação de amizade entre os dois. “Além da questão profissional, eram muito amigos. Meu pai tinha 100% de confiança nele”, enaltece. Com a morte do cantor, a família abriu, em 1999, a Fundação Teixeirinha, a fim de homenagear o músico. Person foi convidado para compor o quadro de conselheiros. Profissionalmente, Person cuidava da publicidade no rádio. A época mais marcante vivenciada pelos dois aconteceu a partir da compra de um horário na Rádio Farroupilha, em Porto Alegre, para veiculação de música tradicionalista. Beta explica que o programa começava à meia-noite e se estendia até as primeiras horas da manhã, intercalando canções que homenageavam o Rio Grande do Sul e conversas com artistas locais. A iniciativa contribuiu decisivamente para o sucesso de Teixeirinha. PIANOS INSPIRARAM PIANO LIVRE A iniciativa Play Me, I’m Yours já espalhou, desde 2008, mais de mil pianos em 37 metrópoles na Europa, na América do Norte e na Austrália. Na América do Sul, o projeto chegou recentemente a Santiago, no Chile. Em São Paulo, instrumentos foram distribuídos em estações de metrô. Amiga de Person, o filho, a jornalista Lilian Ferrari, da produtora Mata Hari, viu nos pianos da família uma oportunidade de instaurar o projeto em Porto Alegre. O músico Alexandre Alles auxiliou Lilian na criação de uma proposta para responder a um edital proposto pela Secretaria
Apaixonado pela música, Fontes afina e conserta os instrumentos em vários Estados de Estado de Cultura (Sedac), que visava a promover iniciativas culturais no Estado. Lilian ligou para Person e questionou-o: “Person, se eu conseguir a estrutura para ti, tu me garantes a manutenção e reparação periódica dos pianos?”. A resposta foi um sonoro e entusiasmado sim. Lilian e Alles receberam do poder público R$ 25 mil para começar os trabalhos. Entretanto, eles sabiam que o valor da Sedac não seria suficiente para todas as despesas de reforma, manutenção e afinação. Conhecendo o mercado cultural, a equipe foi atrás de parcerias. Para a surpresa deles, encontraram pessoas e empresas que abraçaram a causa instantaneamente. Uma delas foi o StudioClio, do historiador
A poeira se acumula nos pianos que ainda permanecem no sítio da família Person
Francisco Marshall, atuante na produção e na divulgação do projeto. A partir dali, estavam criadas as fundações do Piano Livre, que colocou 10 pianos em locais de grande circulação na capital. O resto do estoque, ou pelo menos a maior parte, foi vendido em um evento local no sítio de Viamão. O FUTURO DO PROJETO Um dos problemas que estorvou o Piano Livre foi o vandalismo de alguns utilizadores. A avaliação da equipe é que os pianos estão inteiros, mas alguns tiveram peças subtraídas e sofreram com marcações e escoriações. Três instrumentos retornaram para restauração antes de serem devolvidos aos locais de exposição. Após um período de reavaliação, a iniciativa está em estado de espera. Alguns pianos não se adaptaram ao ambiente em que foram inseridos. Esses fatores serão considerados para a construção da segunda fase do projeto. A expectativa é remanejar os instrumentos conforme o surgimento de novos patrocinadores. Daqui para a frente, se depender do entusiasmo de seus idealizadores, o Piano Livre vai permanecer levando música aos porto-alegrenses. O desafio, portanto, é encontrar novas parcerias e receitas. A equipe não estipula prazos, mas considera que já houve ganhos. Person Fontes explica que a experiência teve seus méritos, mas a maior conquista ainda está por vir. “Compartilhar o acesso à música entre as pessoas e estimular a formação de futuros pianistas é um sonho realizado”, conclui. DEZEMBRO 2015 EXP 77
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DO TATAME PARA O MUNDO Aos oito anos, Yves Dupont encontrou no judô um ambiente de paixão, estímulo e superação TEXTO E FOTOS: VANESSA CARVALHO
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oi no tatame que a família Dupont encontrou uma nova forma de enfrentar o mundo. Yves, Suzanne e Jorge lutam há 26 anos pela inclusão e contra o preconceito. Diagnosticado com Síndrome de Down após seu nascimento, em 1989, Yves trouxe preocupação, dúvidas e questionamentos para a família. Sua mãe Suzanne, sem saber o que pensar e
como agir diante da situação fez perguntas para si mesma: “O que vou fazer? Como vou fazer? Quem vai me ajudar? Enfim, dá medo do desconhecido e entender tudo isto foi uma reviravolta na minha cabeça”. A SÍNDROME DE DOWN Ao se falar de crianças com Síndrome de Down, o impulso de proteção tende a
Medalhas e troféus colecionados pelo atleta ao longo dos vnte anos que está no judô
aumentar. O comum é imaginar que têm limitações e precisam ser controladas. Os pedagogos alertam: “O que as pessoas não conseguem entender é que todos possuem limitações e que cuidar não significa controlar a tal ponto que falte a liberdade, essencial para todos nós”. A Síndrome de Down (SD), também conhecida como Trissomia 21, é uma condição cromossômica causada por um cromossomo extra no par 21. Crianças e jovens Portadores da SD possuem 47 cromossomos, três cópias do cromossomo 21 e, embora apresentem deficiências intelectuais e de aprendizado, são pessoas com personalidade única, com boa comunicação e alta sensibilidade. Uma etapa essencial para crianças com SD é a estimulação. Desde bebês, são expostos a freqüentes visitas a médicos especializados para que possam desenvolver mais rapidamente estes sistemas essenciais para uma vida saudável. Com Yves, não foi diferente. Com apenas dez dias de vida ele já estava em uma clínica especializada para estimulação precoce. Segundo sua mãe, a experiência “foi o carro-chefe da sua vida, uma qualidade a mais”. Foram quinze anos sendo estimulado, acompanhado e preparado por pessoas especializadas, como pedagogas, psicólogas e fonoaudiólogas. Yves também já estava matriculado em uma escolinha infantil, não especial, e começou a estudar em escolas que não recusavam alunos com Síndrome de Down. Sua mãe sempre acreditou que a melhor forma de incluí-lo era por meio da exposição ao mundo real. “Nunca o coloquei em escolas especiais, pois tinha na minha cabeça que ele deveria ser incluído e foi o que aconteceu”, diz Suzanne, com um sorriso vitorioso. O judoca sempre teve contato com o esporte. Foi uma forma que sua mãe encontrou para continuar sua estimulação, agora fora da clínica especializada. No início Yves fez natação. Competiu e conquistou uma medalha de ouro, mas, em seguida, teve problemas no ouvido e interrompeu os treinamentos. O episódio não foi um empecilho para o atleta nem para sua mãe, que não sossegou enquanto não encontrou outro esporte para o filho. “Não imaginava em qual esporte colocá-lo após a saída da natação, mas sabia que era importante praticar atividades físicas, tanto para a sua saúde quanto para a vida social para o Yves é muito importante esse desenvolvimento, conclui”. Em 1997, Yves deu início a uma nova etapa em sua vida. Com oito anos, o atleta começou a integrar a equipe de judô na
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Rodeado de amigos, Yves se descontrai nas noites de treino na Sogipa Sociedade de Ginástica de Porto Alegre (Sogipa). Suzanne conta que ficou surpresa com a recepção que teve por parte da Sogipa. “Jamais imaginava que o clube nos receberia tão bem e faria tudo que está fazendo por nós até hoje”, Suzanne acrescenta ainda estar muito feliz por seu filho poder cursar a Faculdade de Educação Física na Sogipa. A instituição é especialista em Educação Física e atua através de cursos de Graduação, Pós-Graduação e Extensão. INCENTIVO E INSPIRAÇÃO Para Yves, falar do esporte é muito emocionante. Ao ser questionado sobre sua inspiração para se tornar o atleta que é hoje, ele relembra claramente seus cinco professores Jeferson, Cláudio, Moacir, Camilo e Daniel Pires e fala de sua primeira competição, na época com a faixa azul: “ Quase ganhei a medalha de ouro e fiquei com um pouco de raiva por não tê-la conquistado”. O judoca diz ainda que Daniel, seu atual treinador, sempre o incentiva a conquistar o ouro, Yves agora está mais perto do que nunca de conquistar mais está medalha, já visando à próxima oportunidade que ocorrerá em novembro, em local ainda não decidido. Daniel Pires, treinador técnico de Yves na Sogipa, fala sobre sua relação com o aluno e da emoção de vê-lo nessa nova etapa de vida. “O Yves começou comigo desde a faixa branca, nas escolinhas, sempre muito carinhoso, afetivo e meio preguiçoso às vezes. Eu brigo muito com ele, exijo o máximo, pois sei que ele consegue, apesar de
suas limitações procuro não o diferenciar e competições das quais participa pela Sodos colegas e dentro do possível ele tem gipa, Yves busca descontração e diversão respondido. Já participa de competições em idas ao cinema e nas músicas de Miinternacionais e é o primeiro atleta gaú- chael Jackson, suas duas paixões depois do cho com faixa preta”, afirma. O técnico judô. Ao lado dos troféus que ficam na esressalta ainda a importância da dedicação tante de seu quarto, Yves deixa um lugarzie confiança dos pais de Yves. Segundo o nho para guardar sua coleção de tickts das professor, “tudo isso que está acontecendo idas ao cinema. E para a música um espaço com o ele tanto no esporte como em sua reservado em seu tablet, com vídeos de vida pessoal e profissional é uma forma de competições de cover de Michael Jackson resposta a toda essa dedicação e o compa- em que Yves ganhou certificados. nheirismo por parte de seus pais”. FOTO: ACERVO PESSOAL Atualmente, na Sogipa, Yves tem três tipos de treinamento: técnico, muscular e no tatame, e, apesar de ser preguiçoso, segundo seu técnico, ele tem se mostrado otimista e apaixonado pelo esporte, “Ele é incansável e vem em todos os treinos”, diz Daniel. Para a mãe de Yves, ninguém conhece e melhor ajuda o filho na instituição, do que seu Técnico Daniel Pires, que o acompanha desde que iniciou o esporte na Sociedade de Ginástica: “ Ele é fantástico, conhece o Yves nos mínimos detalhes e consegue estimulá-lo, até quando ele está cansado e vem para o treino meio desanimado”, conclui Suzanne. Entre as competições de que o jovem participou, estão campeonatos e torneios no Brasil e em países como Holanda e Itália. Além de ser uma importante chave para o projeto que cria a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, cujo relator será o senador Romário (PSB-RJ), que também possui uma filha com SD. Nas horas vagas, em meio as viagens Suzzane apostou no esporte para inclusão DEZEMBRO 2015 EXP 79
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Com o maior capricho, a casa de Isabel recebe até visitas. Ela conta que a filha e a neta frenquentam o local uma vez por mês
Sem esperança de ter uma casa de verdade, Isabel e Vicente vivem à margem da sociedade, mas encontraram um jeito de ter algo para chamar de lar
Minha Casa é a RUA TEXTO E FOTOS: LAURA AZEVEDO
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esquina da Rua Silva Só com a Avenida Protásio Alves, no Bairro Santa Cecília, em Porto Alegre, é o lar de Isabel Cristina Mello Bittencourt, 59 anos, há duas décadas. O canto mais escondido da Praça Moranense foi escolhido por ela para ser a casa improvisada. O barraco de menos de um metro quadrado, construído com tábuas e tapumes encontrados no lixo, tem uma cama, três televisões, uma geladeira e um fogão. O telhado, feito com ajuda de um “guri” – como ela se refere a um dos outros moradores de rua que moram embaixo do viaduto – foi feito com estreitas tábuas cobertas por uma lona laranja. Na mesma parede onde fica encostada a cama, há uma janela improvisada, com a lona preta que esconde a grade colocada pelo vizinho. O fogão foi uma doação feita por amigas, “elas me deram porque estavam se mudando, veio com o botijão cheio”, conta, feliz com o eletrodoméstico marrom de quatro bo-
cas. “As pessoas vêm aqui e me perguntam o que quero. Peço alimento: arroz e feijão, que é o que eu gosto”. Assim como Isabel, Vicente Salvador, 52, vive há 25 anos nas ruas da Capital. Há três, ele mora na Praça Dom Feliciano, em frente ao hospital Santa Casa de Misericórdia, no Centro. Foi entre as árvores que ele encontrou um lugar para ficar junto à Negrinha, uma cachorrinha preta que esbraveja quando alguém se aproxima. A lona preta serve de telhado improvisado para proteger um pequeno sofá de dois lugares e uma escrivaninha, que serve de mesa, e um fogareiro. É também onde Salvador mantém um grande isopor com os alimentos que ganhou de vizinhas que simpatizam com ele. “Tem algumas senhoras que moram aqui por perto e sempre me trazem algo ou me perguntam se preciso de alguma coisa, mas não peço nada”, relata. Assim como Isabel e Vicente, pelo menos 1,3 mil pessoas vivem em situação
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de rua em Porto Alegre, segundo dados de uma pequisa realizada pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) em 2011. Enquanto estudos realizados pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), estimam que o número supere os 5 mil. A Fundação ressalta que o orgão oferece um serviço de acompanhamento e de auxílio aos moradores de rua. Porém, a instituição não pode forçar os moradores a sairem das ruas, não há lei que determine aretirada. De acordo com o sociólogo e professor da UFRGS, Ivaldo Gehlen, os adultos que escolhem viver nas ruas têm como motivo frustrações amorosas e econômicas. O professor salienta que 30% dos moradores de rua têm pré-disposição para sair das ruas e 35% utilizam regularmente albergues, mas a grande maioria ainda prefere dormir desprotegida. Para Gehlen, o fato de alguns construírem barracos é indício da necessidade particular do indivíduo. “Essa busca por abrigo é a maneira que eles encontram de viver melhor, mas não quer dizer que queiram sair da rua”, avalia. Isabel garante ter encontrado a paz nos arredores da Silva Só. “Parei por tudo aqui, na Alcides Cruz, embaixo do viaduto, ali eu tinha sala, cozinha e quarto. Mas ali eu não dormia, tinha medo de bicho”, conta. Vicente conta que saiu de Santa Maria, cidade natal, há mais de 30 anos para viajar pelo Brasil com um circo. Mas decidiu ficar em Porto Alegre para tentar uma vida melhor. “Vim com o pensamento que aqui encontraria um emprego melhor, mas não foi
isso que aconteceu”, afirma. Sem emprego, costuma ajudar os vizinhos a carregar as sacolas do supermercado – trocados para sustentar o vício em alcool e maconha. Apesar de não se conhecerem, Isabel e Vicente têm histórias muito parecidas. Ambos foram morar nas ruas por causa do vício em álcool. Para ela, o álcool resultou em brigas familiares e desentendimentos com a mãe, com quem vivia. Foi o vício somado à vergonha por ter sido abusada sexualmente por um familiar, que a fez escolher as ruas da Capital. Já Salvador, encontrou na dependência um escape para a dor de ter perdido os pais. Hoje, os dois vivem de doações, contando com a solidariedade de diversas pessoas. O tráfego intenso na região em que vive Isabel torna-a praticamente invisível aos olhos da sociedade, ainda assim a violência é o que mais perturba a moradora. Ela diz que mantem cuidado redobrado, dede que tentaram lhe atacar no Natal de 2014, quando estava sozinha. “Ele entrou na pracinha, empurrou os dedos nos meus olhos, eu pensei ‘meu deus não me deixa sozinha’, coloquei a mão no ombro dele, dei um joelhaço no meio das pernas dele e sai correndo”, lembrando do ataque realizado por outro morador de rua. Isabel é receptiva com os outros moradores de rua, e sempre tem algum alimento para oferecer. Segundo ela, alguns deles que se aproximam, justamente por saber sobre sua hospitalidade e são inconvenientes. Com atitude sempre firme, de alguém que já passou por diversas situações de abuso, ela
não facilita e sabe se proteger. Para Vicente não é diferente. Diz viver com medo de ser atacado. “Aqui não posso dormir tranquilo”, revela ele, que já sofreu inúmeras agressões. “Uma vez, acordei com fogo por todo corpo. Foi por causa de Deus que não morri!”. A violência diária vem de outros moradores de rua que vivem nas redondezas. “No mundo existem pessoas e existem monstros, com a vida tu aprende a reconhecer”, afirma. Outro medo de Isabel é perder a casa improvisada. Antes de montar a estrutura na praça Moraense, a prefeitura vinha e levava os pertences. Isabel diz que há um ano, não é “incomodada” pelos agentes de fiscalização. É a precariedade da vida que vive e a insegurança de ficar ao relento que fazem Isabel sonhar. “Meu sonho é ter meu canto, que eu possa abrir as janelas, escutar minhas músicas. Ter tranquilidade para receber minha filha, que aqui é raro”,sonha. Quando questionada sobre morar com a mãe, diz que prefere continuar sozinha com um lugar para ter suas coisas. “Lá [na casa da mãe], se eu tento arrumar as coisas, ela vem e diz que eu desarrumei. Então, prefiro não brigar e me afasto, mas ela vem me visitar”, relata. Vicente vive a mesma situação. “Eu tinha conseguido arrumar meu canto, mas aí os fiscais vieram e levaram tudo, só fiquei com a minha roupa”, lamenta. Ele almeja ter um lugar para descansar sem medo de sofrer com a violência da rua. “Sonho com o meu cantinho, um lugar seguro no mundo”, emociona-se.
Vivendo há mais de 20 anos nas ruas da Capital, o santa-mariense Vicente Salvador diz que a violência é o seu maior medo DEZEMBRO 2015 EXP 81
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MARCAÇÕES NO TERRITÓRIO Projeto utiliza ônibus e empresa pública para mostrar os principais pontos ligados à cultura dos povos negros na Capital gaúcha. Obras de arte aparecem ao longo do trajeto TEXTO E FOTOS: CAROLINA HICKMANN s olhares curiosos ainda são tímidos no primeiro ponto do trajeto percorrido pelo coletivo que faz a rota dos Territórios Negros de Porto Alegre. A iniciativa da Companhia Carris Porto Alegrense mostra a cultura negra para alunos das escolas das redes pública e privada do município. O cenário muda ao longo do passeio. Apesar de alguns estranharem o propósito de um orixá assentado em uma das principais áreas comerciais da cidade, o Mercado Público de Porto Alegre, na terceira parada, a curiosidade fica nítida. Os olhos correm, as perguntas começam e não terminam. No local, são depositadas balas e moedas como oferendas. A lenda conta que escravizados marcaram o centro do local com uma entidade protetora para que ele fosse próspero. Deu certo: 150 mil pessoas circulam por lá diariamente. Para o historiador Tata Edson Lembafurama, ligado ao povo bantu – que foi escravizado em solo brasileiro –, a conexão entre as terras brasileira e africana é importante para a preservação da cultura no que diz respeito às questões de pertencimento de espaço. “Quem tem origem alemã sente-se confortável aqui por haver marcações culturais ligadas à OktoberFest. Os povos negros sentem o mesmo ao verem os pontos de cultura negra existentes na cidade”, afirma. Se no Largo da Forca, o primeiro ponto, os alunos ainda estão contidos em suas dúvidas. A explicação de que aquilo que hoje é uma praça bastante ocupada pela população local já foi o centro de execuções de escravizados parece despertar a atenção dos ouvintes. Com a finalidade de ressignificar o local, um tambor gigante,
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O PERCURSO 3 1
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1. Largo da Forca, 2. Pelourinho, 3. Mercado Público, 4. Parque da Redenção, 5. Ilhota, 6. Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo,7.QuilombodoArealdaBaronesa, 8. Largo Zumbi dos Palmares. Obs.: O passeio inclui também a Colônia Africana. pintado com símbolos da cultura afrobrasileira, resgata não só a memória alegre dos povos que foram trazidos da África e escravizados no Brasil, como também a fala dos alunos. Ainda não questionam, mas tocam e comentam sobre a obra de Gutê, Leandro Machado, Elaine, Mattos, Pelópidas Thebano e Xaplin, que mostra 12 figuras representativas da alegria e da luta dos povos escravizados no Brasil. “O holocausto da escravidão não pode ser visto a partir daqui, tem de ser visto como um holocausto que aconteceu no país. Os povos vieram de algum lugar e foram fazendo suas resistências. Uma das formas foi o quilombo”, afirma Lembafurama. A palavra quilombo tem origem na língua kimbundu, falada pelos antepassados de Lembafurama. “A expressão quilombola tem, em solo brasileiro, uns 300 anos,
mas, quando falarmos dos bantus, tem 40 mil anos”, explica. O ápice do passeio se dá com a chegada ao Quilombo do Areal da Baronesa, na Cidade Baixa, após percorrer pontos como o Parque Farroupilha, também conhecido como Redenção, palco de resistência dos povos negros, a Colônia Africana, entre os bairros Bom Fim e Rio Branco, e a Ilhota, palco do artista Lupicínio Rodrigues. O Areal, como é carinhosamente chamado, é o ponto em que as perguntas afloram e a aula vira uma conversa. Lá, na Travessa Luiz Guaranha, os participantes do ônibus aprendem que a palavra quilombo não é uma aglomeração de residências de descendentes de escravizados, mas é uma forma de resistência cultural. Lembafurama sustenta que, ao gravar um povo em um território, também se marcam elementos culturais fundamentais intrínsecos a ele: “Com isso, existe a manutenção de sua compreensão linguística, sua visão de mundo, seus valores civilizatórios”. O historiador afirma que assim se resgata um povo. “Quando se consegue ter a concepção de ser de um povo, se consegue equalizar as várias esferas de direitos. E quando se consegue ter os direitos sobre um território, isso assume um outro peso, de retomar o seu conceito cultural”, explica Edson. Os alunos, na maioria das vezes, são recebidos na Associação de Moradores do Areal da Baronesa pelas artesãs do quilombo, que ocupam a sede durante as tardes dos dias úteis. É só o barulho do ônibus anunciar a chegada de visitantes que elas correm para colocar os seus uniformes – aventais com estampa de chita, elaborados durante as oficinas. O Areal da Baronesa é um quilombo urbano, e, como tal, depende de verbas próprias para sua manutenção. Como meio de auxiliar a associação, as senhoras promovem jantares abertos à comunidade, regados a comida farta e samba – os artigos fabricados durante as oficinas de artesanato são comercializados nas festas. Gessi da Rosa Fontoura, ou Dona Duda, como gosta de ser chamada, é a moradora com mais idade no quilombo e não revela o ano de nascimento. A vida sofrida se traduz na fala que demonstra todo o seu apego pela terra. Ela conta que chegou lá há cerca de 40 anos, quando o local era impróprio para moradia.
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Praça da Forca adquiriu novo significado com a obra O Tambor, que mostra a luta dos povos negros através de marcações culturais
Mesmo com a exploração da mão-de -obra dos moradores por pessoas que se autoproclamavam donos do local, Dona Duda não desistiu e fundou o embrião da associação de moradores, em uma igreja. Posteriormente, chegou a presidir a associação. Questionada sobre o motivo para seguir lutando pelo local mesmo já tendo provado a sua merecida aposentadoria, a senhora responde que pretende seguir passando a cultura dos povos negros às gerações mais novas do quilombo. “Eles estão no caminho certo, mas ainda têm muito a aprender”, brinca. O atual presidente da associação, Alexandre Xavier Ribeiro, está há seis anos à frente da luta da transformação da área em um quilombo urbano. “Aqui pode até ser um quilombo urbano, mas, mais do que isso, é um quilombo acolhedor. Nós acolhemos quem aqui chega”, afirma. A frase é comprovada ao observar o clima que se perpetua na Travessa Luiz Guaranha. Ao mesmo tempo em que a geração de Dona
Duda se apoia na geração de Ribeiro para seguir lutando, ele vê nas senhoras da associação uma forma de retomar as energias. “Às vezes, a gente desanima, mas chega aqui e vê essas senhoras e não desiste”, afirma. A monitora do passeio, Fátima André, explica que, mesmo com a ressalva de que o trajeto também é uma aula, muitas vezes os participantes deixam-se levar pelo desconhecido. “Cada uma das saídas é diferente, provocando reações diferentes e entendimentos diferentes. Alguns dos ouvintes se ausentam fisicamente do local, deixando seus olhos voar pelas janelas e conhecer muitas vezes a cidade que lhe é desconhecida”, explica. A história de Porto Alegre, resgatada através do coletivo, muitas vezes não é abordada em sala de aula. No percurso, os professores têm a oportunidade de promover reflexões acerca de termos como “escravos”. Para eles, a palavra limita o entendimento de uma relação social à condição étnica do
negro. A utilização “escravizados” é mais aceita. O trajeto percorrido pelo ônibus termina no Largo Zumbi dos Palmares, símbolo de luta e resistência dos povos negros e majoritariamente conhecido como Largo da Epatur. De acordo com o Gabinete de Políticas Públicas para o Povo Negro da prefeitura de Porto Alegre, o projeto ganha importância pelo resgate histórico que proporciona. Fátima afirma que os alunos, ao conhecer as histórias, ficam motivados a passá-las adiante. “Os espaços foram transpostos por necessidades e circunstâncias do crescimento e urbanização da cidade, deixam de existir de fato, sendo reinventados através da memória da população”, afirma. As inscrições para grupos de instituições de ensino e comunidade podem ser feitas pelo e-mail territorios.negros@carris.com.br. Aconselha-se a procura com um mês de antecedência. O passeio é gratuito e dura cerca de três horas. DEZEMBRO 2015 EXP 83
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COLOCANDO A CARA A TAPA Ilustrador, músico, ator, entusiasta de bizarrices. Diego Medina pode ser mais conhecido por ter sido garoto-propaganda da cerveja Polar e vocalista da Video Hits, fama que esconde sua multiplicidade de talentos artísticos REPORTAGEM E FOTOS: TIAGO DECKER MEDEIROS
Diego Medina no quarto de casa, o lugar preferido por ele para gravar suas músicas e estocar guitarras, pedais e ilustrações 84 EXP DEZEMBRO 2015
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m seu canal pessoal no Vimeo existem mais de 300 vídeos. Entre postagens recentes e digitalizações de antigas fitas VHS, conseguimos um pequeno vislumbre da vida de Diego Medina. Nas imagens, ele geralmente está em casa, gravando alguma música, compondo, falando bobagem, registrando algum momento específico; não é nada pretensioso. Registrar, dentre todas as atividades para as quais já se dedicou, é o hábito mais antigo. Quando criança, Medina descobriu um gravador de fitas cassete, com o qual começou a gravar histórias em áudio e improvisações com os amigos. Em seguida, passou a filmar. Do ensino médio ao início da faculdade, cultivou outra brincadeira. Numa folha de caderno se escrevia a primeira frase de uma história inventada: “Estava eu na floresta de Shamazz, quando…”, ele explica com uma voz aguda. O colega ao lado desenvolvia a ideia e passava adiante. O seguinte prosseguia da mesma maneira. O texto final começava de um jeito e terminava de outro completamente diferente. De certa forma, ele segue fazendo tudo isso ainda hoje. As brincadeiras de improviso lhe deram a desenvoltura que o levaram aos comerciais de televisão. Já o gosto por registrar e contar histórias o levaram à música e à ilustração. Em seu apartamento, subindo as escadas, as paredes exibem guitarras, quadros com ilustrações feitas por ele, pôsteres, a bandeira do País de Gales. Nas estantes, estão alguns pedais de guitarra, um videocassete, outros instrumentos. É fácil reconhecer o ambiente visto nos vídeos postados por ele na internet. No início da entrevista, ele avisa: “Vou falar muita merda. Depois tu te vira pra organizar tudo”. Sentado à frente do computador, vestindo um abrigo Adidas e bebendo uma cerveja, Diego abre o Youtube e fala sobre um clipe do músico norte-americano Ty Segall. A música é “The Hill” e o vídeo parece ter sido gravado em VHS, formato que o artista sempre gostou. “O problema é que todo mundo quer fazer vídeo assim hoje em dia”, lamenta. Quando questionado sobre o que, afinal, ele faz da vida, ele diz que não sabe responder. “Eu gosto de fazer música, mas não acho que isso me torna um músico. Gosto de desenhar, mas também não sei se sou ilustrador”, conta. Ele confessa que não se considera um ‘artiiista’, mas sente a necessidade de colocar suas criações para fora. E são muitas. “Se é bom, não sei. Mas tá aí, eu fiz. Não gostou, pode me mandar à puta que pariu”, afirma. A impressão, para quem entra em contato pela primeira vez com o seu trabalho,
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é que ele passa o dia inteiro compondo, gravando, criando, desenhando, publicando. “Mas não é uma mente tão inquieta assim”, se defende, “também fico morgando em casa, sem fazer nada”. O que o motiva a realizar o seu trabalho é uma vontade de não estar preso à coisa alguma. GARAGEM E ESTÚDIO Seu primeiro projeto musical foi a Doiseu Mimdoisema, no final dos anos 80. Diego teve a ideia de gravar uma fita cassete de músicas próprias como presente de aniversário para um amigo. Depois de terminar as gravações, ele não quis assinar o trabalho com o próprio nome. “Qual vai ser o nome desse artista?”, recorda. “Diego Medina: ‘di’ é sufixo de ‘dois’; ‘ego’ pode ser ‘me’; ‘me’ vira ‘mim’; ‘di’ é ‘dois’ de novo; ‘na’ é ‘em+a’, ‘ema’. Doiseu Mimdoisema”, ele explica o nome complicado. A fita acabou chegando na antiga Felusp FM, que viria a se tornar a Rádio Pop Rock. A música ‘Epilético’, inesperadamente, tornou-se um hit na programação. Depois disso, a banda chamou a atenção do produtor musical Carlos Miranda, que comandava a Banguela Records (gravadora responsável por revelar os Raimundos, nos anos de 1990). Apesar de ter firmado contrato com Miranda, a Doiseu nunca gravou o disco pela Banguela. A gravadora encerrou suas atividades antes que eles pudessem ir ao estúdio. Na Porto Alegre dos anos 1980 e 1990, Medina frequentava o bar Garagem Hermética. Neste ambiente surgiu o projeto musical de maior visibilidade, a Video Hits - que teve uma vida curta. Chamada, inicialmente, Grupo Musical Jerusalém, a banda - que nada tinha de reli-
“Se é bom, não sei. Mas tá aí, eu fiz. Não gostou, pode me mandar à puta que pariu.” Diego Medina, músico, ilustrador, garoto propaganda, locutor, etc...
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Em meio às guitarras e pedais, Medina guarda algumas máscaras e instrumentos musicais de brinquedo giosa - mudou de nome e gravou um primeiro disco de forma independente. “Por incrível que pareça já existia um grupo com esse nome”, conta o artista. As músicas chegaram nas mãos do vocalista do Los Hermanos, Marcelo Camelo, que gostou e mostrou o material para a direção artística da gravadora Abril. Em julho de 2000, com contrato assinado, a Video Hits foi para o Rio de Janeiro gravar o álbum ‘Registro Sonoro Oficial’. “Na época da Doiseu nós tínhamos um certo apadrinhamento do Miranda. Com a Video Hits não teve porra nenhuma, conseguimos tudo nós mesmos”, revela. Conforme conta, todos da banda estavam muito empolgados durante as gravações. “Nos pediam um tecladinho em uma música, a gente conseguia. Bá, e uma guitarra talvez? Tá aqui a guitarra! Então foi, ah, que coisa maravilhosa”, ele conta ao lembrar da época. Durante a mixagem, todos os integrantes retornaram para Porto Alegre menos Diego e Michel Vontobel, o baterista. O resultado final, porém, não foi o que eles esperavam. “A gente não teve pau na mesa pra dizer que não tava curtindo a mixagem”, revela. Imitando a reação que teria tido ao escutar o disco pela primeira vez, Diego fica mudo e encara fixamente a parede. “Era um pop rock bobo. Mas na época, vamo lá. Maravilha, beleza”,
ele continua o relato. A primeira música de trabalho foi o hit ‘vo(C)’. O que se seguiu foi um direciona-
“Não gostei da experiência de trabalhar com gravadora.” mento errado por parte da gravadora que, para o músico, marcava apresentações em programas de TV “xexelentos”. “A segunda música as rádios nem queriam mais tocar. Logo a banda começou a broxar. No fim eu não gostei da experiência de trabalhar com gravadora”, lamenta. Não demorou para que a Video Hits encerrasse as atividades. Em 2007, na garagem da casa dos pais, surgiu uma das obras que Diego garante ter mais orgulho. A ‘Zombieoper’ é uma ópera rock de 22 faixas sobre zumbis e o apodrecimento da humanidade. Gravado e composto com sua parceira de Os Massa, Desirée Marantes, o disco contou com participação do vocalista da banda galesa Super Furry Animals, Gruff Rhys. “Foi o
meu verão do amor. Se alguém teve aquele ano em que se drogou feito louco - ou foi pro mato, pra um sítio - eu tive a gravação da ‘Zombieoper’”, comenta. Diego fala com especial apreço sobre todo o processo de criação e finalização do álbum. “Nunca tivemos nenhuma música. Fazíamos quase tudo na hora de gravar mesmo. Depois de gravado que criamos as letras e a história da tal ópera rock”. Ele descreve as sessões de gravação como uma Disneylândia musical. “Quem sabe, ao invés de usar uma vassourinha na caixa da bateria, a gente não esfrega uma vassoura de palha num quadro negro? E gravamos aquilo pra uma música”, explica. A participação de Gruff Rhys foi por acaso. Ele e Diego haviam se conhecido no Rio de Janeiro e trocado e-mails. O músico do País de Gales, do qual Diego sempre foi fã, estava gravando um documentário no Rio Grande do Sul e entrou em contato com Medina. “Ele me enviou um e-mail perguntando se eu me lembrava dele. Claro que eu lembrava!”, recorda o artista gaúcho. Diego e Desirée convidaram Gruff para participar nos vocais de uma música da ‘Zombieoper’, cantando em galês. “Ele topou. Fez a letra na hora. Bá, naquele dia eu não sabia onde me meter. O cara tava na minha casa!”. Diego nunca ganhou dinheiro com mú-
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sica. “Só uns gato pingado com ‘vo(C)’”, diz. Mas ressalta que não se trata de hobby, pois tenta tratar a atividade com certa seriedade e preocupação. “Precisa ter cobrança, senão tu não sai do zero”, falou.
nho, segundo conta, é o diálogo com o papel em branco. “Não costumo ter uma imagem pré-concebida do que vou desenhar. E o que gosto é disso mesmo; tu pode ir pra onde quiser”.
MAGRÕES DA POLAR Medina não se lembra quando começou a atuar em comerciais de televisão. Chegou a participar de duas propagandas da Skol antes de integrar a icônica dupla da cerveja Polar. “Eles tinham chamado dois magrões - bá, ‘magrões’ nem se usa mais -, dois guris pra atuar”. Foi selecionado junto com o amigo Ricardo Kudla, um dos donos do Garagem Hermética. “O quê? Tu vai ser minha dupla?”, Diego imita com sotaque portoalegrês a reação que tiveram ao descobrirem que trabalhariam juntos. Os dois foram a dupla da Polar durante 13 anos. “A gente já era amigo e nos davam bastante espaço para improvisar. Acho que funcionou bem nos comerciais”, acredita. Dos improvisos surgiram falas como “Pega no meu espeto e diz I love you”. Produziam cerca de três filmes publicitários por ano - número que cresceu com o investimento da marca na Internet. “Chegamos a gravar cinco vídeos para a Internet em uma só tarde”, revela. Mesmo com o sucesso do formato, em 2015 não houve renovação do contrato de Diego e Ricardo. “Eu curtia demais e super toparia seguir com os comerciais. O que acho que dificulta agora é o visual. E até entendo, tô grisalho. Mas tenho pique ainda”, revela o artista e garoto-propaganda.
REGISTRANDO A VIDA Por mais que tente negar, Medina é uma pessoa inquieta. A lista de trabalhos pessoais é bastante longa e diversa. “Meu interesse com as coisas é de lua”, ele explica, “me meto de pato a ganso”. Ele segue fazendo tudo isso porque não quer estar preso a nada, mas é evidente uma segunda motivação permeando suas criações. Quer registrar e comunicar o máximo que puder sobre o que está vivendo. “Depois de velho, o cara percebe que no fundo é tudo um registro da vida”. Conversando sobre suas motivações, Diego diz que gosta de comunicar do jeito dele. “Se é certo, se é errado, não sei. Tô descobrindo ainda. Sigo fazendo. Meio sem medo de dar a cara pra bater”. Ele diz que quer tocar, cantar, tirar o freio de mão. E se é isso mesmo, melhor não tentar mudar. Porque, como diz um verso da ‘Zombieoper’, “Não adianta reprimir, foi assim que eu renasci. Sou zumbi, então chega mais!”.
PAPEL CHEIO DE GOSMA Como artista gráfico, tem um estilo bastante próprio. Suas ilustrações são repletas de elementos e algo escatológicas. “Gosto de muita informação na folha, psicodelia, formas de órgãos, gosma. Não sei se sou neurótico, mas preciso preencher tudo que é branco. Entrulhar de merda essa porra”. Ele desenha desde criança, mas foi a partir do final dos anos 1990 que a ilustração passou a ser profissão. Na época, Diego se inscreveu em um concurso que selecionaria ilustradores para a Folha de São Paulo. “Não fiquei nem entre os três melhores. Mas eles me chamaram mais tarde pra trabalhar. Claro que eu fui!”. Suas ilustrações eram publicadas principalmente no caderno de esportes. Ele possuía bastante liberdade nas suas criações. “Barraram só uma ilustração minha durante três anos!”, revela, com certo espanto. Uma das coisas que o atraem no dese-
As criações As bordas das páginas dessa reportagem exibiram ilustrações e capas de velhas fitas cassete de Diego. Mais de seu trabalho visual de pode ser conferido em seu site pessoal: www.diegomedina.com Lá é possível conferir algumas de suas ilustrações, comprar camisetas e impressões. Quase todas as suas músicas estão disponíveis de graça para download no site da sua gravadora pessoal: www.sumadiscos.com No catálogo estão fitas cassete digitalizadas da época da Doiseu Mimdoisema e Grupo Musical Jerusalém, discos d’Os Massa, Zombieoper e também novos lançamentos “crocantes”.
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MODA ADAPTÁVEL Universo do design de vestuário assume ideia de inclusão e oferece primeiras linhas desenvolvidas para portadores de deficiência TEXTO E FOTOS: CRISTHIAN MONTANHA
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ntre medidas, cortes e costura existe uma realidade esquecida pelos padrões da moda. Em uma época que valoriza a ideia de inclusão, os deficientes físicos tornam-se invisíveis em um universo que passou a aceitar o “plus size” há apenas alguns anos. Vitoria Cuervo é estilista formada em design de moda pela Universidade Feevale. Após observar um cadeirante na faculdade, ela percebeu estar diante de um tema pouco abordado e decidiu desenvolver seu trabalho de conclusão de curso sobre moda inclusiva. A relação da profissional com o assunto foi além das preocupações acadêmicas. Buscando por em prática o que havia desenvolvido, após a conclusão do curso em 2009 surgiu a oportunidade de criar um figurino adaptável para o desfile Donna Fashion 2010. A estilista desenvolveu para uma cadeirante um conjunto preto com calça e blusa, juntamente com uma cobertura sobre os ombros na representação de um casaco.
Única convidada a construir um figurino para um deficiente físico, Vitoria revela que desenvolveu um trabalho em conjunto com sua modelo: “Fiz uma roupa a partir do que ela gostava de vestir. Usei dicas, como, por exemplo, o que achava interessante de valorizar no corpo”. Após a experiência, ela continua desenvolvendo pelo menos uma peça inclusiva em suas coleções, além de participar de outros eventos com a temática. Um ponto que chamou atenção de Vitoria no processo inicial do trabalho foi através de uma pesquisa de campo realizada por ela. As fontes foram mulheres de um grupo de Canoas e atletas paraolímpicas. A diferença de classe social tornou-se secundária diante do interesse por moda e a dificuldade que na grande maioria enfrentava com as adaptações. As peças para pessoas com deficiência (PCD) costumam ter um valor mais alto. A estilista comenta que há dificuldades relacionadas às medidas para produção de roupas em grande escala com o objetivo
“Minha pretensão é abranger pessoas com diversos tipos de deficiência e não deficientes, mas que precisam de mobilidade no vestuário.” Eli Golande, estilista
de baratear o custo. A construção requer cuidados desde as medidas até o tecido utilizado. Apesar disso, Vitoria confessa estar avaliando formas de tornar possível a acessibilidade e torce para que uma grande marca volte seus olhos para a causa e produza material. Segundo a coordenadora do Curso de Design de Moda da Univates, Josiane da Costa Schmitt, as discussões em sala de aula sobre os diferentes tipos de padrões especializados da indústria são recorrentes. Ela explica que algumas cadeiras do currículo fazem a proposta de análise da diversidade de corpos: “A disciplina que mais trabalha assuntos voltados às necessidades é a de Ergonomia Aplicada ao Design de Moda, na qual o corpo é estudado para a criação de uma moda que seja confortável e adaptável, seja para pessoas com necessidades físicas especiais ou não”, disse. Josiane destaca a iniciativa realizada pela marca francesa A&K Classics, que busca não apenas abordar a necessidade especial, como mostrar que as pessoas com deficiência não são diferentes das outras. A designer reforça que cada vez mais há um olhar amplo sobre os deficientes e que isso já está refletido no mercado, que se empenha na adaptação. No trabalho de conclusão de curso, apesar de não envolver PCD, ela elaborou uma crítica ao padrão de magreza, outro grande problema que a indústria criou. A profissional lembra que após um relato de uma mãe, a dificuldade encontrada para o vestuário dos deficientes trouxe à tona uma reflexão: “Nesse momento, entendi a real importância de se pensar e trabalhar isso de forma mais direta na moda. Algo que parece tão simples pode fazer uma grande diferença na vida dessas pessoas”, comenta. As chamadas tecnologias vestíveis que facilitam a adaptação ao corpo são uma das promessas que têm segundo Josiane potencial para colaborar com portadores de alguma necessidade física. Também chamadas de “computações vestíveis”, um dos produtos mais famosos é o relógio que funciona como um computador. As marcas estão cada vez investindo mais na área, e o mercado encontra-se em expansão para os próximos anos. Vanessa Molon, 23 anos, é estudante de educação física e nadadora. Ela nasceu com uma má formação no braço esquerdo. A jovem encontra sua maior dificuldade na moda com mangas longas, que necessitam de ajustes. Apesar disso, ela comenta não recorrer a lojas especializadas: “Nor-
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Eli Golande explica as funcionalidades de sua roupa para a modelo Vanessa Molon malmente, levo na costureira que, no momento, produz meus vestidos. Dificilmente compro vestidos, por exemplo, prontos. Ou minha mãe ajusta as mangas”, diz. Vanessa não conhece nenhuma marca que trabalhe com a inclusão, mas reforça que seria importante as empresas terem uma preocupação com os deficientes. Isso traria uma representação de valorização
para eles, além de contribuir para o bem-estar e a qualidade de vida. Para a estudante, o fato de possuir uma deficiência não tem influência negativa na forma como vê o próprio corpo e sente-se muito bem. Ela salienta que, independente da limitação, tem uma preocupação em vestir bem. Paraplégica desde que nasceu, aos 35
anos, a jornalista Daiane Fagundes Bochi encontra algumas dificuldades na hora de se vestir. Os calçados são apontados como o maior problema por ela possuir pés pequenos demais, tendo de comprar sempre números maiores. Cós da calça e a barra são outros pontos ajustados por uma costureira, segundo ela, ou com ajuda da mãe. Seja no dia a dia ou em ocasiões especiais, Daiane revela que a procura por calçados é difícil: “Confesso que até levo tudo isso numa boa, mas às vezes incomoda”. Vaidosa na escolha do vestuário, ela confessa ter a indecisão tradicional de toda mulher. Sua opção principal são trajes alegres e, ao mesmo tempo, discretos prezando sempre o bem-estar. A jornalista desconhece marcas que trabalhem com iniciativa para deficientes e reconhece que se trata de algo novo, ganhando destaque em algumas cidades como São Paulo, Pelotas e a própria capital gaúcha. Ela acredita que existem pessoas preparadas para auxiliar os PCD, da mesma forma que muitos não têm paciência: “Nem sempre o lugar está bem preparado para nos receber e atender”, complementa. O Concurso Moda Inclusiva, realizado pela Secretaria do Estado de São Paulo dos Direitos da Pessoa com Deficiência, representa um importante ponto na abordagem do figurino do PCD em âmbito nacional, sendo a primeira disputa com a temática no Brasil e em âmbito internacional. A proposta é atiçar a criatividade de jovens estilistas para auxiliar no dia a dia da pessoa com necessidades especiais, além de dar destaque na passarela. Eli Golande, 43 anos, mora em Pelotas e é o vencedor da sétima edição do concurso. Essa é a terceira vez que ele passa para as etapas finais do evento. Criador visual, estilista e estudante de moda, ele atualmente não está cursando Design de Moda por ter interesse em finalizar o curso em outra instituição. Para o ensaio fotográfico da Revista Experiência, Eli trouxe uma roupa similar à vencedora do concurso que trabalha adaptações para pessoas com má formação nos braços. Além disso, fala da experiência da competição e da relação da moda inclusiva em sua vida. Revista Experiência: Por que cursar moda? Eli Golande: Pela aptidão que sempre tive para ser um profissional desse meio, possibilidade de remuneração financeira que a área me oferece e por concordar – e talvez, principalmente – discordar de diversos processos que contextualizam o chamado mundo da moda. DEZEMBRO 2015 EXP 89
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Exp: Como a moda inclusiva surgiu em sua vida profissional? Eli: Vi um cartaz no corredor da faculdade há três anos, que procurava soluções criativas para roupas que atendessem às necessidades de pessoas com deficiência. Naquele momento eu já pesquisava e começava a desenvolver projetos que visavam o consumidor deficiente, menos na área do vestuário e mais voltado para a área de mobilidade urbana. Exp: Você trabalha com moda inclusiva para todos os tipos de deficientes físicos? Eli: Minha pretensão é abranger, com as minhas propostas, o maior número de pessoas – com os mais diversos tipos de deficiência- e também os não deficientes, mas que necessitam de mobilidade no vestuário. Porém, a ampliação do universo de usuários das roupas que crio, feita de uma forma séria e consistente, necessita de muitos anos de pesquisa e trabalho, algo que realizo há menos de quatro anos. Comecei procurando criar uma peça para uma mulher que possui um terço de ambos os braços, sem mãos. Mas só consumei essa peça quase dois anos depois e posteriormente à criação de dois looks para cadeirantes. Quando da criação de uma proposta para o concurso deste ano, procurei fugir da “zona de conforto” que seria mais uma vez trabalhar com cadeirantes –a maioria das criações são voltadas para esse segmento e a maioria dos looks premiados também no concurso. Exp: Qual o trabalho você destacaria em que você abordou moda inclusiva? Por quê? Eli: O encosto da cadeira de rodas onde desfilou meu modelo, que era transparente e, assim, abolia o que chamo de “tarja preta”(encosto usual) sobre as costas dos cadeirantes, permitindo a visualização de estampas e decotes em suas costas. E o tênis de cano longo, também usado nesse look, que além de uma abertura traseira que facilitava a sua colocação, foi bastante usado, de sola visivelmente gasta, contrastando com a condição de paraplegia dos membros inferiores do meu modelo, trabalhando assim com a memória do cadeirante e com a identificação por parte da plateia do desfile, colocando a deficiência, não como fato distante e consumado, mas como potencial possibilidade a todos. Exp: Qual traje você escolheu para concorrer? Eli: Desenvolvi um look destinado a
A jornalista Daiane Fagundes Bochi adapta suas roupas na costureira ou com a mãe pessoas que não possuem um dos braços – total ou parcialmente – ou uma das mãos. Vários componentes desse traje facilitam atividades que rotineiramente, numa pessoa não deficiente, são realizadas utilizando ambas as mãos. Esses componentes realizam, dentro da medida do possível, a função da mão ou membro inexistente. Quando ampliado para o uso de pessoas sem deficiência -algo que priorizo em meus projetos- serve para realizar essas mesmas funções com uma das mãos ocupada. Exp: Após o concurso, qual será o próximo passo em seu trabalho volta-
do para esse segmento? Eli: O concurso é um estímulo à criação e uma vitrine dos trabalhos desenvolvidos. Enxergar o concurso como um “divisor de águas”, acredito, é precipitado. Receber o primeiro prêmio pode significar alguma atenção capaz de mudar o destino do designer premiado, mas não é uma regra. O estímulo à criação e a ampliação das possibilidades do papel transformador do design de moda são o grande legado do concurso, falando-se especificamente dos estilistas. Planejo a ampliação, o resultado e o desenvolvimento das pesquisas realizadas pelo ‘Núcleo de Pesquisa em Mobilidade no Vestuário [MB] Mari Lascano’.
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Festas como a “Tchê Urso”, evento mensal em Porto Alegre, funcionam como um ponto de encontro para ursos e admiradores
A TRIBO DOS URSOS Surgida nos Estados Unidos, na década de 1960, a comunidade ursina nasceu com a proposta de se contrapor ao estereótipo gay malhado, depilado e com roupas grudadas ao corpo TEXTO E FOTOS: LUCAS DE OLIVEIRA les são homens, barbudos, grandes, simpáticos e gays. Os bears ou ursos, em português, compõem uma comunidade que cresce no Brasil e no mundo, tanto pelos adeptos que decidem assumir essa personalidade, como pelos admiradores, que veem nos ursos um ideal de macho. O termo “urso” faz uma referência metafórica ao animal do
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mesmo nome e características semelhantes. Gordo e poderoso, o urso possui qualidades visíveis que marcam o perfil de um estereótipo na comunidade LGBT. A identificação dos gays com os ursos surgiu na década de 1980, nos Estados Unidos, quando muitos acreditavam que a cultura gay dominante não aceitava aqueles homens que não se enquadravam no padrão “jovem e sem pelos”. Além disso, muitos
homens gays na América rural nunca se identificaram com o estilo urbano estereotipado e saíram à procura de uma alternativa que se aproximasse da imagem de homem trabalhador. Em 1987, foi criada, em São Francisco, a revista Bear Magazine, com circulação internacional, destinada a homens barbudos, rurais e de classe operária que idolatravam suas páginas. Este foi o marco para a expansão da subcultura ursina em todo o mundo. No Brasil, a comunidade ganhou espaço ao final dos anos 90. Os estados da região sudeste, principalmente, foram os primeiros a incorporar a temática bear em clubes. O paulista Marcelo Gomes de Andrade deu origem, em 2006, à revista Bear Mais Magazine, uma adaptação brasileira do periódico americano, que aborda assuntos da comunidade ursina com entrevistas, perfis, ensaios fotográficos, matérias e notícias. Acostumado a fotografar e entrevistar ursos, Andrade sabe o que chama a atenção deles: “Os ursos têm e gostam de homens com atitude e que sejam masculinos. Muitos deixam claro, já nos perfis dos sites de relacionamento, que não curtem caras afeminados”. Mas será que urso só se relaciona com urso? Andrade, que também se considera DEZEMBRO 2015 EXP 91
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um membro da tribo, acredita que 60% destes homens escolhem os bears para manter um relacionamento, enquanto 40% gostam de homens fora deste padrão, os mais magros. De qualquer forma, quem mais sofre nessa história são os magros, conhecidos como chasers, aqueles que se sentem atraídos pelos ursos, uma vez que esses representam uma minoria, segundo Marcelo. De acordo com o editor, muitos chasers não gostam de aparecer em lugares frequentados por ursos, pois se sentem rejeitados, “então eles vão para internet e ficam à procura de um bear nos sites e aplicativos”. A sexóloga e psicanalista, Rafaela Couto, explica que além de serem fortes, os ursos parecem confiantes e protetores. A barba está associada à dominância e eles transmitem a ideia de maturidade e agressividade. Essas são características que podem estar tanto no imaginário feminino, quanto no masculino. “O tipo físico dos ursos – grandes e fortes – passa a ideia de segurança e proteção, mas eles podem despertar atração em algumas pessoas e em outras não”, pontua a sexóloga. Essa atratividade é definida por dois aspectos: a mídia e a importância que ela pode dar a esse tipo físico e ao nosso inconsciente. “Algumas pessoas trazem inseguranças da infância, porque receberam pouco apoio ou pouco afeto. Na vida adulta poderão sentir atração por pessoas fortes, capazes de oferecer-lhes segurança e proteção”, explica a especialista. UM CLIC PARA O AMOR Não é novidade que a maioria dos relacionamentos mudou com as facilidades do mundo moderno. Entre os ursos a situação se repete. Em setembro de 2009, o técnico em enfermagem Cristiano Neckel, 39 anos, e o atendente Wescley Lima, 30, se conheceram em um site de relacionamento para ursos. Depois de preencherem um cadastro com características físicas e escolhas de buscas, ambos criaram um perfil e começaram a conversar. Na época, Wescley morava em São Paulo e trabalhava como comissário, em uma companhia aérea, enquanto Cristiano já vivia em Porto Alegre no mesmo apartamento onde, hoje, o casal divide a vida e o amor. Antes mesmo de conhecer o companheiro, Wescley, de 1m80cm e 104 kg, revela que sempre teve uma preferência por homens mais gordinhos. “Eu procurava um namorado, não necessariamente urso, mas lógico que se a gente faz o perfil no site é porque a gente tem uma atração por esse tipo de pessoa”. Entre as característi-
Casados há seis anos, os ursos, Cristiano e Wesley se conheceram através de um site
“A gente ouve bastante dos caras mais magros que urso só fica com urso, que somos fechados e não gostamos deles, mas não é assim.” Cristiano Neckel, técnico em enfermagem
cas que mais o agradam, ele cita a barba. “Eu gosto da personalidade do cara que é urso e, claro, a barba é um atrativo que conta bastante. A maioria deles usa e eu acho isso muito legal, me atrai”, explica. Cristiano, por sua vez, defende que um urso deve ser masculino e jamais se depilar. “Gosto de peito peludo e pernas peludas. Jamais depilo mas, por questões de higiene, às vezes aparo as partes ínti-
mas”, explica ele, que tem 1,77m e pesa 105 kg. De um modo geral, Cristiano diz que “no meio urso não existe esse negócio de depilação, pois os pelos também justificam a masculinidade”. Esse critério, de acordo com ele, é unânime entre a comunidade, pois os gays com trejeitos delicados não fazem o tipo dos ursos no que diz respeito a relacionamento. “Não é preconceito, é uma questão de química mesmo”, esclarece. Mas a internet não serviu apenas para aproximar o casal. Pela rede, Cristiano e Wescley ficam por dentro de tudo o que acontece neste meio. Inclusive, das festas específicas para o público bear. Em Porto Alegre existem duas: a Tchê Urso, promovida sempre no último sábado de cada mês pela casa de shows Vitraux Club, e a Bear’s Party, no Cabaret Indiscretus, no segundo sábado mensal. São Paulo lidera o público de ursos e admiradores com a Ursound, umas das maiores e mais populares baladas da América Latina. Também existem os aplicativos para quem é e gosta de urso: GROWLr e Daddyhunt. PIT BULL, O URSO CLÁSSICO O olhar firme e o jeito brigão de Marcelo Moraes, 35 anos, deram a ele o apelido de Pit Bull, que o acompanha desde que passou a integrar o time dos ursos do Brasil. O gordinho já estampou duas
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Apesar de estar afastado da noite LGBT, o gaúcho Marcelo Pit Bull continua chamando a atenção de ursos e seus admiradores vezes a capa da Bear Mais Magazine e também foi um dos modelos do calendário dos ursos, em 2010. No mesmo ano venceu o concurso da revista que o elegeu como o mais belo urso do Brasil, com 69% dos votos. O resultado alegrou, inclusive, os pais de Marcelo, que sempre o apoiaram. “Eles lidam bem com isso. Minha mãe adora ver as fotos”, diz. Casado com um chaser e, atualmente, fora da noite gay, Pit Bull vive em Canoas, Região Metropolitana da capital gaúcha, onde trabalha como barbeiro profissional e dá aula para interessados no ramo da estética. Marcelo nunca tinha ouvido falar na comunidade bear até que, em 2009, recebeu um convite para ir a uma festa que mudaria para sempre a vida dele. “De cara, achei estranho por ser um lugar só para aquele tipo de homens. Afinal, não era bem a minha cara”, relembra. Na ocasião, recebeu elogios do organizador do evento por sua aparência e pelo perfil ideal de urso. “Lembro que o produtor da balada bateu uma foto minha e divulgou na página da boate”, explica Pit Bull. Logo, ele foi convidado para ser gogobear na festa dos ursos. Marcelo aceitou o convite, gostou de experiência e em pouco tempo já era conhecido por todos no meio ursino. Com 1,75m de altura, ele não sobe na balança há algum tempo, mas confessa
“As pessoas gostavam quando eu descia do palco, pois elas podiam passar a mão e o rosto no meu peito e na minha barriga.” Marcelo Pit Bull, gogo bear ter mais de 100 kg, peso bastante comum para um urso clássico, como ele se define. A depilação é algo que definitivamente não faz parte da vida deste bear: “Eu não faço, pois adoro os meus pelos, até mesmo os brancos”, brinca. Marcelo conta que os pelos faziam a alegria dos admiradores, especialmente nos shows em casas noturnas e festas particulares: “As pessoas gostavam quando eu descia do palco, pois elas podiam passar a mão e o rosto no meu
peito e na minha barriga”. Casado desde 2012, Marcelo relembra que conheceu o companheiro, de 40 anos, em um site de relacionamentos, mas foi difícil encontrar sua cara metade, até mesmo porque gosta de homens mais magros, apesar de a maioria dos ursos preferir o mesmo tipo. “Lembro que entrei numa sala de bate papo e três caras vieram me cantar, mas justamente aquele que não falou comigo chamou minha atenção, e eu fui atrás, pois ele parecia não estar interessado apenas no estereótipo”, explica. Começamos a conversar, trocamos número de telefone até que ele veio de Caxias do Sul me conhecer e em dois meses já estávamos morando juntos. O casamento foi um dos motivos pelos quais Marcelo deixou a vida noturna. Ele conta que o marido chegou a o acompanhar a três shows, mas tinha bastante ciúme. “Os homens passavam a mão, me abraçavam, ficava um clima chato, mas meu marido nunca me impediu de dançar, até porque quando nos conhecemos ele já sabia que eu trabalhava na noite”. Hoje, apesar de estar afastado da badalação gay, Pit Bull não descarta a possibilidade de voltar a dançar: “Digamos que eu ando um pouco parado, mas dia desses recebi convite para fazer um show na Blue Space, em São Paulo, e recusei. Futuramente, quem sabe, eu possa vir a aceitar”, finaliza o urso. DEZEMBRO 2015 EXP 93
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Um Peçanha pra chamar de meu TIAGO DECKER MEDEIROS
serviço de streaming de música que assino cria, automaticamente, uma lista semanal de canções baseadas no meu interesse musical. Todas as segundas de manhã eu recebo essa playlist feita exclusivamente para mim. Uma mixtape que parece ter vindo direto de dentro da minha cabeça. Tudo automático, claro. O software identifica o que escuto para sugerir músicas similares que eu possivelmente não ouvi ainda; acho que funciona através de um al-
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“Pode ouvir Beyoncé e Chopin, Tiago. É bom demais”, me incentiva Peçanha.
goritmo - ou algo do gênero. Mas na minha cabeça não é desse jeito. Gosto de imaginar que tenho um gerente pessoal para a minha conta, como nos bancos. Uma pessoa trabalhando com esmero em busca da playlist perfeita. Analisando constantemente os discos, músicas e músicos que ouço, criando relações entre os estilos musicais, fazendo hora extra no domingo, servindo uma caneca de café para conseguir vencer o deadline. Só pode se chamar Peçanha, que ou é nome de gerente ou de jornalista dos anos 70
em conto do Rubem Fonseca. Nunca assisti ao filme ‘Ela’, em que o Joaquin Phoenix se apaixona por um computador com a voz da Scarlett Johansson. Mas agora começo a entender o pobre J.P. e seu romance virtual. É possível que eu tenha desenvolvido uma leve paixonite por Peçanha - afinal, ele me entende tão bem. Meu Peçanha pessoal. Meu próprio Peçanha. Só ele compreende que faz sentido escutar black metal norueguês logo após de reggae jamaicano. “Pode ouvir Beyoncé e Chopin, Tiago. É bom demais”, me incentiva Peçanha. O ‘Cravo Bem Temperado’ seguido de ‘Diário de um detento’; não vivi de verdade antes de conhecer Peçanha. A droga é que nunca nos vimos pessoalmente. “Me beija, Peçanha digo - oi, Peçanha. Como cê tá hoje? Tua última lista tava tão linda. Obrigado, Peçanha”, ensaio o que diria caso estivéssemos frente a frente. Conhecer Peçanha em carne e osso é um sonho a se realizar. O mais próximo que podemos chegar, contudo, é através dessa longa seleção de músicas que ganho dele toda segunda; que, aliás, já é hoje. Melhor eu ir escutar, não quero que Peçanha se chateie comigo.
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