Ministério da Cultura e Vale
Ciclo de Exposições Memorial Minas Gerais Vale 2013 / 2014
LUÍSA HORTA & RICARDO BURGARELLI
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EM TORNO DA MEMÓRIA
Alguns fatos, vestígios da história, fragmentos de memória e indícios de acontecimentos ganham centralidade nas exposições “América, Sacco e Vanzetti” de Ricardo Burgarelli e “Guerra dos perdidos” de Ricardo Burgarelli e Luísa Horta que dão prosseguimento as mostras selecionadas pelo edital para jovens artistas mineiros do Ciclo de Exposições do Memorial Minas Gerais Vale 2013-2014. Começamos com “Entre” de Carolina Cordeiro, em exposição de 29 de maio a 31 de agosto de 2013, que nos mostrou obras formadas em torno de acontecimentos inesperados e de gestos mínimos da vida cotidiana elaborando assim novas temporalidades. Já Burgarelli e Horta nos convocam a pensar sobre o modo como os fragmentos de lembranças e acontecimentos acentuam as tensões entre memória e história. Revelando novas formas de criação, articulação e fruição entre os saberes vindos da história e aqueles que fabulamos em nossas formas de subjetivação, as duas exposições se estruturam dando visibilidade a lembranças paradoxalmente lacunares e precisas, inteiras e fragmentadas. Assim como nas reflexões de Freud1 em torno das arqueologias de Roma e Pompéia que sinalizam os diversos aspectos da memória em seus distintos modos de acumular vestígios e possibilitar rememorações, Ricardo e Luísa tomam a memória como matéria prima para a criação. Freud, em sua reflexão tomando as metáforas arqueológicas, nos diz que Roma tinha seus vestígios de distintas épocas espalhados em diversos lugares, tudo fragmentado, enquanto Pompéia formava um bloco inteiro, gerando uma memória mais coesa. As obras de Burgarelli e Horta acentuam a tensão entre esses dois pólos criando uma multiplicidade. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
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De um lado, sabemos que a história nos coloca as evidências dos fatos e acontecimentos em suas dimensões mais gerais e amplas. De outro, que todo e qualquer fato histórico reverbera na memória mais individual dando repertório para visões subjetivas e percepções pessoais. Tudo se tensiona entre o individual e o coletivo. Diante de fatos históricos importantes, como a dimensão subjetiva reverbera na percepção e na construção da memória? Como esses fatos históricos constróem nosso imaginário? Perguntas que não permitem uma resposta precisa, mas que nos encaminham a um emaranhado de possibilidades que fazem da memória um campo instigante para sabermos de nós e do nosso entorno. Por isso, entre as duas exposições cria-se um sedutor jogo entre as evidências da história, as potências do falso e as possibilidades da memória. Tudo isso traduz-se nas construções de um imaginário contemporâneo como o lugar de repensar as estratégias do poder, as atuais formas de visibilidade e sobretudo o estatuto da memória hoje em dia. Apesar das estratégias distintas, as duas exposições se tangenciam, criando um potente diálogo, ao abordarem essas questões da memória e da história. Burgarelli nos mostra em sua exposição um conjunto de reproduções de capas de jornais nacionais e internacionais sobre a execução dos italianos Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti nos Estados Unidos, no fim da década de 1920, fato que mobilizou todo o mundo. Repleta de controvérsias e despertando manifestações de repúdio em diversos países, inclusive no Brasil, o caso Sacco e Vanzetti, como ficou conhecido, foi uma forma de penalizar o sapateiro e o peixeiro, respectivamente, por suas atuações nos movimentos sociais. Mesmo com a confissão do terceiro condenado, o português Celestino Medeiros, afirmando que os italianos não haviam participado do crime de roubo e assassinato, assim como diversas outras evidências e testemunhas, Sacco e Vanzetti foram executados, para assim amedrontar e acuar outros revolucionários. Ao retomar essa história no contexto atual – trazendo as reproduções ampliadas das capas dos jornais e nelas construindo rigorosas intervenções geométricas abstratas – Burgarelli acaba por gerar uma nova camada de sentido ao aproximar o gesto estético de apropriação e intervenção das questões políticas que motivaram a execução de Sacco e Vanzetti. A história dos italianos já foi contada no romance “Sacco e Vanzetti” (1948) de Howard Fast, escritor fortemente ligado a militância política e que posteriormente gerou o filme homônimo dirigido por Giuliano Montaldo em 1971. Burgarelli avança no mesmo trajeto, mas para retomar o caso busca uma memória sedimentada e documentada na capa dos jornais para ali intervir e dar novas possibilidades de sentido. Não apenas para o caso em si, mas para as imagens, textos e intervenções iluminados, certamente, pelo atual contexto geopolítico mundial. A operação acaba por dar novos relevos ao caso dos italianos colocando-o numa trama temporal que se articula na reprodução dos jornais da época, nas intervenções atuais e na potente referencia ao poema “América” (1956) de Allen Ginsberg que dá nome a exposição e ainda hoje é uma das críticas contundentes em relação a ação política daquele país. Já em “Guerra dos Perdidos” Luísa Horta e Ricardo Burgarelli acionam as questões da memória em outra direção. A obra traz imagens, textos e fragmentos de objetos que recontam uma suposta guerra criando uma narrativa que oscila entre história e fabulação. Sabemos que diversas guerras ocorreram no Brasil em distintas intensidades, mas não marcaram de modo mais forte a história, deixando apenas para alguns poucos, muito interessados no tema, as evidências de suas ocorrências. Na obra de Horta e Burgarelli a dúvida torna-se um potente acionador de significações que nos coloca entre a certeza da atribuição de alguns objetos e as novas narrativas pelas quais esses mesmos objetos e imagens agora se reportam. Visitamos o repositório de fragmentos, imagens e objetos de uma guerra que não houve, mas será mesmo? Longe de qualquer certeza ou mesmo de uma afirmativa final, a fruição da obra de Horta e Burgarelli se constrói na força dos nossos imaginários e na expressiva fisicalidade de uma memória que se trama entre lacunas, dúvidas e novas fabulações.
LUÍSA HORTA |
BELO HORIZONTE, 1984
Graduanda em Artes Gráficas e Fotografia pela Escola de Belas Artes da UFMG. Principais exposições: “Arquivo de Obras em Acabamento” - Centro Cultural da UFMG (Belo Horizonte, 2012) “Bienal Universitária de Arte – Bienal 1” - Galeria do Sesc Palladium (Belo Horizonte, 2012). “Situações” - Museu Nacional de Brasília (2012) “Corpo Coletivo” - Centro Cultural da UFMG (Belo Horizonte, 2011) “Bienal Zero” - Galeria da Escola Guignard (Belo Horizonte, 2010) “AteliêAberto #02” - Casa Tomada (São Paulo, 2010) Colaboradora convidada da instalação interativa “Lugaralgum” com o coletivo Marginália Project (Belo Horizonte, 2011). Premiações: Prêmio aquisição pelo Museu Nacional do Cojunto Cultural da República no salão “Situações Brasília: Prêmio de Arte Contemporânea do Distrito Federal” com o trabalho “Arquivo de obras em acabamento” (2012) LUÍSA HORTA (BELO HORIZONTE, 1984)
Arquivo de Obras em Acabamento Ricardo Burgarelli e Luísa Horta, 2012
LUÍSA HORTA
Alguns de seus trabalhos dialogam com a performance, como as fotografias “Fronteiras”(2010) ou na instalação “Lugaralgum”(2011). Gostaria que você comentasse esses trabalhos e posicionasse suas pesquisas nesse lugar entre o registro da imagem e o gesto performático. O corpo se torna presente no meu trabalho enquanto ressonância de minha trajetória – da passagem intensa pelo circo, mas também pela dança, pelo teatro e pelo cinema. Na fotografia, ele aparece “no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento”, nas palavras de Bergson2 . Ele é parte de um todo, que é o quadro, onde atua enquanto cor, como forma. Em “Lugaralgum”, através do vídeo, essa relação se amplifica; ele se torna também o condutor de uma ação que desenha este quadro, seja na relação com os objetos ou pela sua disposição na paisagem.
Você atuou no Marginália Project na instalação interativa “Lugaralgum” (2011). Como foi essa experiência e em que medida essas questões vindas da tecnologia repercutiram em sua prática artística? Entendo a tecnologia como uma ferramenta, da qual para tudo (ou quase tudo) que vamos fazer, precisamos de alguma forma lidar – é o tipo de papel, de tinta, de impressão, a versão do software, o corte da madeira. O trabalho com o Marginália foi gerido colaborativamente, em um processo que eu particularmente gosto bastante. Fiquei bem longe dos algoritmos de programação e o desafio foi criar considerando o uso de um dispositivo interativo no percurso final da obra. Não que essa coisa de interatividade seja uma novidade – aliás, é muito mais antigo do que tendemos a imaginar – porém no meu caso este contato serviu para investigar a narrativa fragmentada, a história ao acaso, o comportamento aleatório dos fatos. Pensando assim, percebo que tem muito a ver com o modo como construímos hoje nossos arquivos – despedaçados, multifacetados, onde cada peça traz em si a aura da coleção ao mesmo tempo em que possui um valor e uma história autônomas. BERGSON, Henry. ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes,1999.
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Você esteve no Ateliê Aberto da Casa Tomada (São Paulo). Como essa experiência de uma residência artística repercutiu no desenvolvimento de seu trabalho? Acho que toda residência em artes visuais é uma boa desculpa para vivenciarmos um processo de produção assim como gostaríamos que fosse cotidianamente. É uma forma de fazer o trabalho respirar, colocando-o em contextos que deflagrem constantemente questionamentos e pensamentos sobre ele. Acredito que é no movimento que se reconhece o desejo, seja pelas coisas novas ou velhas, e é dele que parte a produção. Neste sentido, estar em trânsito, convivendo com outras pessoas, traz ao meu processo uma intensidade que acaba sendo imantada naquilo que faço.
Em “Guerra dos perdidos” existe um nítido desejo de tocar nas questões da memória. Você e Ricardo Burgarelli trabalharam em outra obra com arquivos de cine-jornais. Como você posiciona a memória no trabalho de vocês e qual sua ligação com as questões da memória? Trazer esta exposição para dentro do museu é uma das maneiras que encontramos de tensionar essa noção. Partilhamos, de certa forma, deste mesmo lugar de memória com que o museu lida, por enxergála através de uma matéria inventiva, feita de apropriações e de fragmentos. A diferença reside talvez em apresentarmos, em confronto com uma memória parcial, restrita e direcionada, elementos que revolvam uma acepção não tão clara, tão direta desses acontecimentos. Os objetos e as imagens que trazemos à exposição se monumentalizam enquanto arquivos, funcionam como estruturas simbólicas do passado na articulação de tempos e eventos justapostos na associação dos campos do real e do imaginário.
Guerra dos Perdidos Ricardo Burgarelli e Luísa Horta, 2013
Essa é a segunda experiência de você e Ricardo em torno da fabulação. Vocês apresentaram “Arquivo de Obras em Acabamento” no Centro Cultural da UFMG (Belo Horizonte, 2012) e no Museu Nacional (Brasília, 2012). Como essa noção opera na elaboração das obras e especialmente na que vemos exposta aqui no Memorial Minas Gerais Vale. Ao lidar com a história partindo da estreita dimensão revelada pelos rastros que asseguram sua legitimidade, acabamos por acordar na expropriação de imagens e objetos pertencentes a certos dutos narrativos para inserí-los em campos mais espessos. Atravessamos a narrativa do acontecimento, seja ele histórico ou doméstico, considerando as muitas camadas que o comportam. O que fazemos é trabalhar com a profundidade e a sobreposição dessas camadas, de certo modo balançando os significados desses pedaços que são estremecidos quando colocados em contato. Posso dizer que situamos nosso olhar na trincheira; trabalhamos com o acontecimento pelas pistas que o constituem, mas nem sempre através delas conseguimos alcançar aquilo que percebemos. E é neste vácuo, onde não encontramos aquilo que enxergamos, que acabamos por inventá-lo à nossa maneira. A fábula é intrínseca aos contornos dissolutos da verdade contida nestas pistas e são eles que nos permitem perfurá-los com nosso desejo.
Fronteiras Luísa Horta, 2010
RICARDO BURGARELLI |
DIAMANTINA, 1990
Graduado em Gravura (2013) e Desenho (2012) pela Escola de Belas Artes da UFMG. Principais exposições: Projeto “Cine-jornais”. Espaço TIM UFMG do Conhecimento (Belo Horizonte, 2013). “Arquivo de Obras em Acabamento” - Galeria principal do Centro Cultural da UFMG (Belo Horizonte, 2012) “Bienal Universitária de Arte – Bienal 1” - Galeria do Sesc Palladium (Belo Horizonte, 2012). “Situações” Museu Nacional de Brasília (2012) “Táticas Heterogênas/ Aproximações Entrópicas”. Centro de convenções da FAOP. Festival de Inverno de Ouro Preto (Ouro Preto, 2012) “Nó” - Espaço 104 (Belo Horizonte, 2012). “Jornal da Imagem | Imagem do Jornal” - Galeria de Arte do Espaço Cultural da CEMIG (Belo Horizonte, 2012). “Quis tudo, o que me dilacera, o que me contém, o que era meu” - Ateliê Casa Camelo (Belo Horizonte, 2012). “Elo” - Centro Cultural da UFMG (Belo Horizonte, 2012). Exposição de professores e alunos. Galeria da Escola de Belas Artes – Mezanino da Reitoria da UFMG (Belo Horizonte, 2011). MOSTRA! Exposição anual dos alunos de Artes Visuais da Escola de Belas Artes - Centro Cultural da UFMG (Belo Horizonte, 2011). Exposição final do IncomoDA 2010. Escola de Belas Artes. Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, 2010). Premiações: Prêmio aquisição pelo Museu Nacional do Cojunto Cultural da República no salão “Situações Brasília: Prêmio de Arte Contemporânea do Distrito Federal” com o trabalho “Arquivo de obras em acabamento” (2012) Artista premiado na MOSTRA! Exposição anual dos alunos de Artes Visuais da EBA com o trabalho “Um lugar ao Sol” (2011)
Correio de Uberlândia, 07 de agosto de 1945 Ricardo Burgarelli.
RICARDO BURGARELLI
Como começou seu interesse pelo tema de sua exposição, o caso Sacco e Vanzetti? Por influência do meu irmão mais velho, aos 11 anos me declarei anarquista. Dessa época me lembro de ver em casa um pequeno livro antigo ou uma cartilha chamado “Sacco e Vanzetti – O protesto brasileiro” e de ficar impressionado com a ocorrência de greves gerais no Brasil em prol dos dois anarquistas. Recentemente, já tendo desenvolvido trabalhos a partir de pesquisas em hemerotecas e acervos de jornais, decidi construir algo a partir desse caso tendo como mote a comoção mundial em protestos, greves, doações e atos de depredação em defesa da liberdade dos italianos.
Você em seus trabalhos anteriores já havia trabalhado com o suporte jornal, o que te atrai é a questão documental ou a natureza mesmo do suporte? O desejo é retomar o “universalismo fraco” típico das vanguardas defendido por Boris Groys? A questão documental me atrai sim, mais claramente o valor testemunhal intrínseco ao jornal, mas também interessa aquilo que ele não documenta. Isso transparece em outros trabalhos como “Correio de Uberlândia, 07 de agosto de 1945”, no qual de forma seriada imagens do “cogumelo atômico” que atingiu Hiroshima no dia 06 de agosto do mesmo ano são impressas em jornais do interior de Minas Gerais que não documentaram o ocorrido. No caso da natureza do suporte é interessante as particularidades dos meios de impressão do jornal, o estatuto da imagem, o grande formato, o modo de organização das informações etc. Jornal é montagem e trabalhar com jornal é tratar de montagem, talvez seja esse o meu maior interesse. Para Boris Groys, o universalismo fraco3 é a tentativa vanguardista de democratização da arte ao escolher lidar com imagens cotidianas, contexto no qual se insere a incorporação do jornal na arte moderna. Não que isso necessariamente seja uma preocupação central no que faço, mas de alguma forma ela existe, é algo que soma ao trabalho. Sou fascinado com as vanguardas históricas, a utopia da transformação da sociedade a partir da reinserção da categoria arte na práxis vital. As utopias e, consequentemente, a esperança são indispensáveis no que faço. Pode-se julgar isso como ingênuo e não é um problema, pois não acredito que possa ser artista sem um certo grau de ingenuidade. Burgarelli faz menção ao texto “Weak Universalism” de Boris Groys publicado na edição 04/2010 do e-flux journal, disponível em: http://www.e-flux.com/journal/the-weak-universalism. No Brasil o texto foi publicado na edição 09 da revista Serrote (IMS), novembro de 2011. 3
Em seu trabalho de conclusão de curso, você trabalhou com diversos autores que tensionam as noções mais tradicionais de história como Benjamin e Didi-Huberman, entre outros. Como essas noções de história povoam seu trabalho em “América Sacco e Vanzetti” e “Guerra dos perdidos”? Trabalho conscientemente a discussão sobre o conceito de história nos trabalhos que realizo, tanto individualmente como com a Luísa, tendo como referência central o materialismo histórico benjaminiano, que acredita na força revolucionária adquirida na relação com os oprimidos do passado. Benjamin se opõe tanto às concepções históricas liberais e/ou positivistas pautadas pela noção de progresso quanto ao materialismo histórico ortodoxo, pautada pela automatização da história, a glorificação do trabalho e por uma relação instrumentalista com o passado. Os modos que utilizamos para tensionar as noções tradicionais de história no trabalho são, entre outros, a ficcionalização do arquivo, na qual a leitura atual do material documental se realiza na sua desconstrução e no seu incessante trabalho de reconfiguração; o estabelecimento de relações diversas com esse material a partir de uma dialética do fragmento (conjunção de vestígios, signos, ruínas) e a potencialização dos anacronismos da história a partir da montagem, forjando assim construções hipotéticas sobre o passado e o presente. Os próprios meios nos quais o trabalho é construído se inserem nesse questionamento, seja pela utilização da filmadora super-8, arquivos materializados em gravuras, o jornal, os objetostestemunhas e etc.
Em “Guerra dos perdidos” existe um nítido desejo de tocar nas questões da memória. Você e Luíza Horta trabalharam em outra obra com apropriações de arquivos de cine-jornais intercalados com intervenções. Como você posiciona a memória nas obras e qual sua ligação com as questões da memória? Apropriamo-nos de fragmentos de memórias e construímos vestígios a partir daquilo que nos interessa enquanto técnica, imagem, narrativa, objeto e porque não dizer, ideologia. Nos nossos trabalhos lidamos com esses fragmentos mnêmicos a partir da potencialização da dimensão imaginária inerente à constituição da memória, acreditando ser na prática artística possível não apenas exercitar a rememoração, mas trabalhar adentrando na própria potência ativa das centelhas do passado. Em “Guerra dos Perdidos” são curiosas as relações com a memória estabelecidas a partir dos objetos expostos. Esses possuem um valor histórico e são utilizados quando já abandonados pela ideologia que os gerou, no entanto não deixam se caracterizar como objetos-testemunha. Testemunharam algo de indefinível mas que de alguma forma se encontra presente de uma maneira pra além do consciente, estabelecendo relações com à categoria estética caracterizada por Freud como o sinistro ou o estranho. Talvez essa seja das razões para esse tipo de material ter sido encarado como fascinante pelos surrealistas, em suas buscas pela energia revolucionária que transpareceria no antiquado.
Essa é a sua segunda experiência junto com Luísa Horta em torno da fabulação. Em 2012 vocês apresentaram “Arquivo de Obras em Acabamento” no Centro Cultural da UFMG (Belo Horizonte) e no Museu Nacional (Brasília). Como essa noção opera na elaboração das obras, especialmente na que vemos exposta aqui no Memorial Minas Gerais Vale? Primordialmente, a ficção é a prática dos meios de arte para desenvolver sistemas, ações e processos. Nos trabalhos expostos no Memorial, a fabulação opera conjuntamente com a montagem, essa em sentido amplo, ou seja, não apenas relativa ao sentido técnico, mas como um dos principais conceitos para a construção de outro modo de olhar para a imagem e para a história, ora restringindo e ora alargando sua capacidade de expressão. Trabalhamos a ficção a partir do contato com arquivos, documentos, e assim, nos confrontamos diretamente com o conceito de dispositivo e de propriedade. Nesse sentido a fabulação e a montagem atuam como um despertar-crítico ao desatar as articulações ali estabelecidas e propor novas junções, e como agentes de inoperatividade ao utilizar da própria linguagem do documento para torná-lo inoperante enquanto tal. Como isso pode ser observado no trabalhos expostos? Prefiro que as pessoas que tiverem contato com as exposições desenvolvam suas próprias relações, também desatando articulações e propondo novas junções a partir do que está apresentado.
América, Sacco e Vanzetti Ricardo Burgarelli, 2013
O Memorial Minas Gerais Vale, mais do que um espaço dedicado as tradições, origens e construções da cultura mineira é um lugar de trânsito, tensionamento e cruzamento entre a potência destas manifestações fundantes e as pulsações mais contemporâneas e atuais da arte e da cultura. Longe de dar visibilidade apenas a um recorte histórico, o Memorial coloca em contato direto presente e passado promovendo, com esse gesto, outras formas de aproximação do público com as questões que atravessam nosso tempo. Toda essa dinâmica visa gerar processos de fruição – sejam eles vindos da história ou das produções contemporâneas – mais intensos, renovadores e criativos estabelecendo novas modos de pensar identidade e memória. Na série de mostras que compõem o Programa de Exposições 2013 / 2014 do Memorial Minas Gerais Vale, vamos trazer ao público um panorama complexo e instigante da produção de seis jovens artistas e coletivos mineiros. A ideia central do programa é dar visibilidade à diversidade de discursos e estratégias da arte contemporânea produzida por aqui garantindo aos jovens artistas boas condições de exposição e acesso. O gesto, mais uma vez, é aproximar passado e presente como forma de nos inserirmos no mundo e revelarmos assim nossas singularidades diante dele.
www.memorialvale.com.br
FICHA TÉCNICA Realização: MEMORIAL MINAS GERAIS VALE / Gestor: Wagner Tameirão Montagem: Guilherme Machado Design Gráfico: Voltz Design Assessoria de Imprensa: Pessoa Comunicação Produção: Mercado Moderno Seleção das exposições: Eduardo de Jesus, Francisca Caporalli, Júlia Rebouças e Wagner Tameirão Coordenação geral e textos: Eduardo de Jesus
Iniciativa: