A Anunciação

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A Anunciação (Lc I, 26-38) Luís Miguel Figueiredo Rodrigues [Pick the date]

Também ao longo da história é possível ver a devoção mariana: os templos grandiosos, as obras de arte, a toponímia e a onomástica são exemplos disso mesmo. Vemos, então, que Maria está presente, de modo indelével, nos crentes.


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ÍNDICE INTRODUÇÃO ............................................................................................. 3 1. PROBLEMA LITERÁRIO ........................................................................ 4 1.1 O género literário.............................................................................................4 1.1.1 Anúncio do nascimento? ...........................................................................5 1.1.2. Anúncio de vocação? ................................................................................6 1.1.3 Eine Mischform .........................................................................................7 1.2 Estrutura literária ............................................................................................8 2. ANÁLISE DO TEXTO ............................................................................ 11 2.1 Introdução......................................................................................................11 2.2 Saudação ........................................................................................................12 2.2.1 .......................................................................................................12 2.2.2 ........................................................................................13 2.2.3 .................................................................................15 2.3 O Primeiro Anúncio ......................................................................................17 2.4 O Segundo Anúncio ......................................................................................19 2.4.1 A acção do Espírito Santo .......................................................................19 2.4.2. Filho do Altíssimo ..................................................................................20 2.4.3 O Sinal .....................................................................................................22 2.5 Faça-se ...........................................................................................................22 CONCLUSÃO ............................................................................................ 24 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................... 26


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INTRODUÇÃO No nosso meio, a piedade mariana, possui um grande relevo. Não há paróquia que não tenha o seu “monumento” a Maria: desde o nome dado à igreja paroquial, até às imagens dos caminhos, passando pelas capelas e ermidas. Os lares cristãos - apesar do declínio da oração mariana em família - continuam a ter imagens da Virgem Maria, como símbolo da protecção que é pedida à Mãe de Deus. Também ao longo da história é possível ver a devoção mariana: os templos grandiosos, as obras de arte, a toponímia e a onomástica são exemplos disso mesmo. Vemos, então, que Maria está presente, de modo indelével, nos crentes. Infelizmente tem sido objecto de meras superstições, mas Maria não precisa das nossas piedosas mentiras. O tratamento sério e rigoroso da figura de Maria torná-la-á muito mais consistente e credível. Ao longo do nosso estudo, que dividirei em duas partes, vou-me debruçar sobre o relato da Anunciação de S. Lucas. Na primeira parte, começarei por estudar o texto no seu todo, fazendo uma análise literária, a fim de determinar a que género pertence; a seguir tentarei esboçar uma estrutura do texto. É a partir desta estrutura que eu desenvolverei a segunda parte. Aí, pretendo analisar o texto propriamente dito, procurando saber o que é que S. Lucas nos quer de facto dizer. Pretendo estudar este texto não isoladamente, mas relacionando-o com outras passagens da Sagrada Escritura, pois só assim é que poderei apurar o seu verdadeiro significado. Passemos então ao trabalho que não vai ser fácil, mas há-de ser, por certo, aliciante.


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1. PROBLEMA LITERÁRIO O texto da Anunciação de S. Lucas1 pode ser analisado objectivamente com todos os seus problemas filológicos, estruturais, literários e históricos2, pois é um texto muito rico. O método da exegese moderna pode-se resumir nesta frase: pela filologia à teologia, ou ainda: da palavra ao espírito3. Já que não se pode fazer uma abordagem apoiada apenas na mística, sem uma base sólida, na qual se possa apoiar os pés, correndose o risco da reflexão degenerar em fantasias muito piedosas. Mas também não nos podemos deixar prender pela filologia, ficando apenas na discussão do significado de um verbo ou de uma estrutura literária. Esta é necessária, mas não basta... A verdadeira exegese comporta dois momentos: “analisar o texto enquanto „texto‟, com toda a precisão possível, para que se possa chegar até à sua alma, para o compreendermos e chegarmos ao „espírito‟, à vivacidade profunda, na luz da fé”4.

1.1 O género literário Para se começar a estudar um texto é preciso, antes de mais, conhecer o género literário a que pertence. No caso do texto em estudo há opiniões diferentes entre os vários autores. Das diversas interpretações do texto, há autores que concluem tratar-se do anúncio do nascimento de Jesus Cristo, outros dizem que estamos perante a narração da vocação de Maria e há também quem afirme que estamos perante um esquema de aliança5. Todos os autores vêem no estudo comparativo com o Antigo Testamento a confirmação da sua própria teoria. Com esta variedade podemos ver a originalidade e a riqueza do texto de Lucas.

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Lc I, 26-38. Durante este estudo terei presente o texto grego apresentado por Erwein NESTLE, Novum Testamentum Graece et Latine, Stuttgart 1928. Por uma questão de uniformidade utilizarei a Bíblia de Jerusalém, ed. Paulinas, São Paulo 1980, exepto quando se justificar outra tradução, que devidamente assinalarei. 2 Cf Ignace de la POTTERIE, Marie dans le Mystere de la Nouvelle Alliance, “Jesus et Jesus-Christ” 34, ed. Desclée, Paris 1988, 41. 3 Cf Ibidem. 4 Ibidem. 5 Cf Miguel Ponce CUÉLLAR, Maria, Madre del Redentor y Madre de la Iglesia, ed. Autor, Bandajoz 1995, 67.


5 De seguida tentarei dar uma resposta à questão do género literário6.

1.1.1 Anúncio do nascimento? Tradicionalmente, esta passagem é chamada Anunciação, entendida como o anúncio feito a Maria de que ela seria a Mãe do Messias. Já no Antigo Testamento se faz referência a este género literário, quando se anuncia o nascimento de uma criança. Há muitos casos em que o mensageiro celeste anuncia a uma mulher avançada na idade ou estéril que vai ser mãe, por uma intervenção especial de Deus e contrariando as leis da natureza. Os texto mais ilustrativos são: o anúncio de que Sara iria dar à luz Isaac7; o anúncio de que a mulher de Manué, estéril, iria dar à luz Sansão8; no Novo Testamento é o anúncio a Zacarias de que Isabel, estéril, dará à luz João Baptista. Este último caso é importante porque vai ser apresentado à Virgem como um sinal. O esquema clássico, que habitualmente se repete, é constituído por cinco momentos: 1- Aparição do anjo; 2- A reacção da pessoa a quem o anjo se dirige; 3- A parte central: o anúncio propriamente dito; 4- A objecção por parte do destinatário, nomeadamente devido à impossibilidade natural para que possa haver um nascimento (velhice e esterilidade). Aqui Maria tem uma atitude muito peculiar...; 5- Para concluir o anjo dá um sinal para que a pessoa dê credibilidade ao que o anjo diz9. Será que o texto da Anunciação pertence a este género literário? Muitos dos seus elementos concordam com o esquema típico, mas há algumas diferenças, que eu passarei a enumerar. Assim, por duas vezes, o nome de Maria é substituído por um título. Na saudação o anjo não se dirige a Maria chamando-a pelo seu nome, mas pelo título cheia de graça10. No 6

Seguirei de perto Potterie, pois parece-me ser o autor que melhor aborda esta questão. Gn XVIII, 9-15. 8 Jz XIII, 2-7. 9 Cf AA.VV., Evangelhos Sinópticos e Atos dos Apóstolos, ed. Paulinas, São Paulo 19862, 37; Bruno FORTE, Na Memória do Salvador, “Espiritualidade” 40, ed. São Paulo, Lisboa 1994, 106. 7


6 final, quando Maria dá o seu consentimento, ela própria se chama serva do Senhor11. Estes dois títulos entrelaçam-se entre si e é à sua volta que se desenrolam todos os eventos. Mas sobretudo, e isto é que é verdadeiramente peculiar, é o modo da concepção e do nascimento da criança12. A virgindade cristã teve aqui o seu começo13. Pela primeira vez ela não é uma maldição, mas sim uma bênção. Podemos concluir que a narração de Lucas corresponde, no geral, ao esquema bíblico clássico da anunciação de um nascimento maravilhoso. Mas, por outro lado, há aspectos muito peculiares que não encaixam no esquema típico.

1.1.2. Anúncio de vocação? O exegeta alemão Klemens Stock propôs outro género literário14. Ele crê que Lc I, 26-38 é um anúncio de vocação. Maria é chamada, de uma maneira única, a colaborar na realização do plano divino de salvação pela encarnação do seu Filho. É certo que do ponto de vista literário, o texto veterotestamentário que mais se assemelha com este de Lucas é o da vocação de Gedeão15; que é sem dúvida um anúncio de vocação. Comparemos os textos: Jz VI, 11-24

1. A

B

Saudação do anjo

16

Lc I, 26-38 Saudação do anjo

Iahweh esteja contigo, valente guerreiro!

Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!

Dúvida de Gedeão

Perturbação de Maria

Ai, meu Senhor! Se Iahweh está connosco, donde Ela ficou intrigada com essa palavra e ficou a nos vem tudo quanto tem acontecido?

pensar e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação.

2. A’

Primeira mensagem do anjo

Primeira mensagem do anjo

Vai com a força que te anima, e salvarás a Israel Encontraste graça junto de Deus. Eis que das mãos de Madiã. Não sou eu quem te envia?

conceberás no teu seio e darás à luz um Filho, e tu

  12 Cf Ignace de la POTTERIE, o.c., 43. 13 Cf Ibidem. 14 Ibidem. 15 Jz VI, 11-24. 16 Este relato parece não distinguir Iahweh do “Anjo de Iahweh”. Isso é frquente nos textos mais antigos. Lá, o Anjo de Iahweh (Cf Gn XXII, 11; Ex III, 2; Jz II, 1) ou o Anjo de Deus (Cf Gn XXI, 17; XXXI, 11; Ex XIV, 9) não é um anjo criado distinto de Deus ( Cf Ex XXIII, 20); é o próprio Deus na forma visível em que aparece aos homens. Senão compara-se Gn XVI, 7 com XVI, II, e Ex III, 2 com III, 4. 10 11


7 o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo... B’

Dificuldade de Gedeão

Dificuldade de Maria

Como posso salvar Israel? O meu clã é o mais Como é que vai ser isso, se eu não conheço pobre em Manassés, e eu sou o último na casa de homem algum? meu pai. 3. A’’

Segunda mensagem do anjo

Segunda mensagem do anjo

Eu estarei contigo e tu vencerás Madiã como se O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do ele fosse um só homem.

Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus. (Sinal)

(Sinal)

Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na

Se encontrei graça aos teus olhos, dá-me um sinal velhice, e é este o sexto mês para aquela que de que és tu quem me fala.

chamavam de estéril.

... (o sinal é realizado) B’’

Consentimento de Gedeão

Consentimento de Maria

Gedeão ergueu ali um altar a Iahweh e o chamou: Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim Iahweh é Paz.

segundo a tua palavra!

No que diz respeito à estrutura literária, estas duas narrações possuem uma correspondência surpreendente. Mas no que diz respeito ao conteúdo há algumas diferenças assinaláveis. Nota-se que ao longo do desenvolvimento do sinal, na narração de Gedeão, há um certo recurso ao uso da magia. Isto em oposição com a referência concisa feita por Lucas ao sinal da esterilidade de Isabel, que concebeu um filho na velhice. Quanto ao consentimento, o de Maria é explicitamente mencionado na narração de Lucas: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!”17. Com o de Gedeão é praticamente impossível comparar, porque este não fala nada.

1.1.3 Eine Mischform Com o que até aqui vimos, podemos concluir que não é possível inserir o relato de Lc I, 26-38, sem mais, apenas numa ou noutra forma que acima abordamos. É o que os

17

Lc I, 38.


8 “alemães chamam „eine Mischform‟; uma forma mista”18. Fundamentalmente é um relato de anúncio de uma vocação: no aspecto literário tem muita afinidade com o modelo que encontramos no livro dos Juizes, o relato da vocação de Gedeão. Mas é também incontestável que este trecho possui elementos característicos do relato do anúncio de um nascimento maravilhoso. Podemos concluir, portanto, que “temos aqui uma síntese original de dois géneros literários (anúncio de nascimento e de vocação), ainda que se acentue mais a vocação de Maria, em virtude da qual é convidada a tomar parte na realização do plano de salvação querido por Deus. O relato da Anunciação orienta a nossa atenção para o papel de Maria na Encarnação do Filho de Deus”19. A narração do Anúncio do anjo à Virgem representa um momento cimeiro em direcção do qual caminha todo o Antigo Testamento. “Não é estranho, então, encontrar ressonâncias dos seus maiores temas, porque certamente se trata de um texto entrelaçado com alusões veterotestamentárias, cuja finalidade cristológica não esconde a riqueza mariana, mas realça-a”20.

1.2 Estrutura literária Embora já tenha apresentado um esquema21 vou, seguindo Potterie, apresentar um esquema mais detalhado.

E SQUEMA DA ANUNCIAÇÃO MARIANA (Lc I, 26,38) 26-27

Introdução A Saudação

I 28-29 B Perturbação A’ Anúncio (1º)

18

Ignace de la POTTERIE, o.c., 45. Ibidem. 20 Miguel Ponce CUÉLLAR, o.c., 67. 21 Cf supra 1.1.2. 19

Missão do anjo Gabriel ANJO (a) (b) MARIA ANJO (a‟)

Alegra-te CHEIA DE GRAÇA o Senhor está CONTIGO. Ela ficou intrigada com essa palavra Encontraste GRAÇA junto de Deus. EIS QUE TU conceberás e darás à luz um filho,


9 e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado FILHO DO ALTÍSSIMO

II 30-34

B’ Dificuldade

MARIA

A’’ Anúncio (2º)

ANJO (b‟)

III 35-38b (Sinal)

B’’ Consentimento

38c

MARIA

Conclusão

Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum? 22 Pois eu sou VIRGEM? O Espírito Santo virá SOBRE TI e o poder do ALTÍSSIMO vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado FILHO DE DEUS. EIS QUE também Isabel, tua parenta, concebeu um filho, aquela que chamavam ESTÉRIL. EIS aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!

E o anjo a deixou.

Como se pode ver pelo esquema, a Anunciação compõe-se de três partes. Começa com uma breve introdução, onde as personagens são apresentadas e nos é dado um esboço da situação. De seguida vem o diálogo propriamente dito, entre o anjo e Maria, no qual se pode distinguir três momentos; I, II e III. Em cada secção há sempre a alternância entre as palavras do anjo e a reacção de Maria; A-B; A‟-B‟; A‟‟-B‟‟. O encontro acaba com uma pequena frase: “E o anjo a deixou”. Assim como no relato da vocação de Gedeão, também Lucas indica na saudação o tema que vai ser desenvolvido ao longo do texto: (a) - Alegra-te, cheia de graça; (b) - o Senhor está contigo! Como se pode verificar na esquematização do texto, o título cheia de graça (a) é retomado e prolongado no primeiro anúncio do anjo (a‟): “Encontraste graça junto de Deus”. A segunda parte da saudação, o Senhor está contigo (b), desenvolve-se no segundo anúncio: “O Espírito Santo virá sobre ti” (b‟). Estes dois anúncios estão também ligados de outra maneira, pois contêm aspectos complementares. O primeiro anúncio (A‟, vv. 30-33) é o da maternidade divina de Maria: “Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho (...) será chamado Filho do 22

Tradução Ecuménica da Bíblia. Novo Testamento, ed. Loyola, São Paulo 1987.


10 Altíssimo”. Contudo, a maneira como isto se cumprirá só é revelado no segundo anúncio (v. 35): “O Espírito Santo virá sobre ti”. Maria vai ser mãe, não por intervenção humana, mas sim pelo poder do Altíssimo. O segundo anúncio (A‟‟, v. 35) traz outra informação: trata-se de uma maternidade virginal. Os dois anúncios correspondem-se perfeitamente: a maternidade divina e virginal de Maria, aquela que é a cheia de graça, é o fruto da graça de Deus. Não somente no momento do anúncio, mas desde há muito tempo; Maria foi preparada pela graça, como o dá a entender a saudação inicial do anjo: “Alegra-te, cheia de graça”. É também de assinalar o paralelismo entre os versículos 34 e 36. No v. 36, no fim do segundo anúncio (A‟‟), é dado um sinal. Perante a dificuldade colocada por Maria, depois do primeiro anúncio (A‟, v. 34), o anjo dá-lhe o sinal de Isabel: “ela concebeu um filho (...) aquela que chamavam estéril (...) Para Deus, com efeito, nada é impossível”(v. 36-S). A esterilidade de Isabel é colocada em paralelo com a virgindade de Maria; quer para uma dificuldade, quer para a outra aplicam-se as palavras do anjo: Para Deus, com efeito, nada é impossível. Para concluir, farei uma referência ao Eis23, que aparece três vezes, como um refrão para introduzir e ligar as diversas partes do diálogo entre si. Este texto, de tão rico que é, permite muitas conexões, mostrando assim o seu significado mais profundo, a sua verdadeira riqueza. Se a estrutura literária é importante, o vocabulário não o é menos. Será sobre este que me debruçarei a seguir.

23




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2. ANÁLISE DO TEXTO Neste capítulo, farei a análise dos texto, seguindo as divisões que propus no esquema da Anunciação24.

2.1 Introdução O texto em estudo começa com a apresentação dos protagonistas e a sua localização no tempo e no espaço25. O envio do anjo Gabriel sugere a dupla origem de Jesus: divina e da casa de David26. O mencionar a aparição externa de um anjo não exclui a possibilidade de este ser um procedimento literário para expressar uma experiência mística interior de Maria27. Ao levantar a questão de aqui se tratar ou não de uma aparição externa de um anjo não quero pôr em dúvida a existência dos anjos, tanto mais que pertence à nossa fé católica28.Quanto ao nome concreto do anjo, Gabriel, usado por Lucas talvez seja influência de Dn IX, 21, devido ao paralelismo que existe entre a passagem profética de Daniel e a Anunciação. Em todo o caso, “é necessário distinguir o que está seguramente afirmado pela Escritura, isto é, que Deus se manifestou a Maria, e o modo desta manifestação”29. O pessoa a quem o anjo se dirige é uma virgem30; afirma-se expressamente a virgindade de Maria no momento da anunciação31. E sendo Jesus filho de uma virgem, como é possível que seja da descendência de David? Esta questão esclarece-se ao nos inserirmos na mentalidade da época, para a qual a descendência física era muito

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Cf Supra, 1.2. “No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria”(Lc I, 26-s). 26 J. G. Garcia PAREDES, Mariologia, “Sapientia Fidei” 10, ed. BAC, Madrid 1995, 79. 27 Cf Candido POZO, Maria en la Obra de la Salvacion, ed. BAC, Madrid 1974, 207; veja a nota nº 16. 28 Cf Catecismo da Igreja Católica, ed. Gráfica de Coimbra, Coimbra 1993, nºs 328-336; Pablo ARCE. Ricardo SADA, Curso de Teologia Dogmática, ed. Rei dos Livros, Lisboa 1992, 100-102. 29 Candido POZO,o.c., 208. 30  31 Candido POZO, o.c., 209. Esta virgem está (v27); a voz passiva do verbo pode significar desposarse ou casar-se e, no nosso caso, o seu particípio perfeito passivo pode indicar que Maria estava desposada ou casada. Apenas por esta narração não é possível optar por uma ou por outra tradução; o caso esclarece-se com Mt I 18. 20. 24, o que permite optra a favor do desposamento, anterior à boda estritamente dita. 25


12 secundária. A lei do levirato32 supunha que o filho de homem com a sua cunhada viúva era posteridade do seu irmão morto e não do pai carnal. Uma mulher estéril podia obter descendência entregando ao seu marido uma das escravas33. A importância “de uma descendência jurídica e moral era muito superior à que pode ter na mentalidade dos nossos dias”34. Assim, e atendendo à filiação jurídica, Jesus é da descendência de David, por parte de S. José. Maria, apesar de não ter nenhum título social, nem pertencer a nenhum grupo importante, é objecto de um respeito muito importante. Isto está bem patente na saudação de Gabriel, o anjo apocalíptico que anuncia as decisões de Deus em relação ao futuro da história. É sobre a saudação e o seu significado que nos debruçaremos a seguir.

2.2 Saudação 2.2.1  Ao contrário de Zacarias, a quem Gabriel disse, logo no início, “não temas”, Maria é saudada35. Entre os judeus era mal vista a saudação a uma mulher; outro aspecto curioso é o facto de Lucas usar uma expressão grega, sabendo-se que o mais normal seria usar um termo hebreu: shalom. Esta mudança leva a crer na existência de um significado mais profundo. A fórmula , nos LXX, é apresentada num contexto em que Sião é convidada à alegria messiânica36. No anúncio mariano, o anjo utiliza a fórmula que os profetas usam para convidar à alegria a Filha de Sião37. SOFONIAS 14

17

Alegra-te

Alegra-te 

Iahweh, o teu Deus, está no meio de

O senhor está contigo

Cf Dt XXV, 5-s. Cf Gn XVI, 1-s. 34 Candido POZO, o.c., 211. 35 J. G. Garcia PAREDES,o.c., 80. 36 Cf Jl II, 21-23; So III, 14; Za IX, 9. 37 Cf Ignace de la POTTERIE, o.c., 49. 33

28

Filha de Sião

ti

32

LUCAS


13 16b

Não temas Sião!

30

Não temas, Maria

17

Iahweh, o teu Deus, está

31

Eis que tu conceberás

no meio de ti(no teu seio)

no teu seio

17b

um herói que salva

Jesus (= Salvador)

15b

Iahweh, rei de Israel

Ele reinará

A semelhança entre os dois textos “corresponde ao uso comum do midrash utilizado por S. Lucas - chamado o evangelista dos tempos messiânicos38 - que contempla a anunciação como a aurora da salvação profetizada. A apresentação desta passagem com termos tomados de Sofonias implica uma dupla identificação: a Virgem Maria com a Filha de Sião e a de Jesus com Iahweh, Rei Salvador”39. A filha de Sião, personificação abstracta do povo israelita, é actualizada na pessoa de Maria, que acolhe e realiza as promessas messiânicas, isto é, na morada divina da filha de Sião - neste caso, no seio da Serva do Senhor - o próprio Deus se tornará presente. Maria é apresentada como o tabernáculo escatológico da presença de Deus entre os homens40. O termo  não é uma saudação banal, como vimos, pois coloca a “anunciação, desde a primeira palavra, num contexto messiânico”41.

2.2.2  Encontro-me perante uma palavra verdadeiramente explosiva; tão cheia de significado que deu origem à proclamação do dogma da Imaculada Conceição42. O anjo dirige-se a Maria chamando-lhe  e não Maria. Este vocativo teve, ao longo dos tempos, várias interpretações, que passarei a expor43: Lucas usa uma palavra derivada de um verbo que só aparece uma vez no Novo Testamento44, o que torna difícil precisar o seu significado. 38

Cf Lc I, 14-28. 41-44. 58; II, 20; X, 17-23; XV, 6. 9. 22. 23.... Miguel Ponce CUÉLLAR, o.c., 68-69. 40 Ignace de la POTTERIE, o.c., 49; Contudo, “Maria é filha de Adão, quanto à sucessão dos tempos, mas élhe anterior no plano divino” (VIGOUROUX, Dictionnaire de la Bíble, IV, ed. Letouzey et ané, Paris 1899, 782). 41 Candido POZO, o.c., 214. 42 Cf PIO IX, Ineffabilis Deus, in Hilario MORÍN(preparação), Doctrina Pontificia. Documentos marianos, IV, ed. BAC, Madrid 1954. 43 Seguirei de perto Miguel Ponce CUÉLLAR, o.c., 69-72. 44 Cf Ef I, 6. 39


14 Esta palavra foi traduzida de várias formas: graciosa, cheia de graça(anterior à Vulgata e a mais tradicional), privilegiada, agraciada(acentua a acção de Deus ao oferecer a Maria um privilégio), e outros. Contudo, podemos “afirmar que as diversas traduções deste vocábulo expõe uma dupla perspectiva: a primeira, funcional, resultando a graça da missão que Deus concede à Virgem e é usada sobretudo pelos protestantes; a segunda, ontológica, interpreta  a partir da graça santificante como „favor divino instaurado na alma a título de qualidade permanente‟”45. Num segundo momento, o anjo diz: encontraste graça() junto de Deus(v. 30). Esta expressão é aplicada só a Moisés no Antigo Testamento46. Lucas dá a entender que Maria é o novo Moisés; de Moisés nasceu o povo de Deus, ao qual Deus concedeu uma assistência especial47; de Maria nasce o novo e definitivo povo de Deus, ao qual é concedida uma “assistência muito especial. A assistência de Deus articula-se em termos de graça”48. É de notar o facto de agraciada e achar graça não são sinónimos e fazem parte de uma estrutura ternária49: - cheia de graça; - encontraste graça; - eis que conceberás. Estes três momentos aparecem como sucessivos na realização de um único projecto divino de graça. Se Maria “encontrou graça junto de Deus deve-se a uma acção prévia de Deus que a agraciou, e por isso é a cheia de graça. Mas o projecto de agraciamento ainda tem um futuro: conceberás! No dizer de Potterie50 o termo  não descreve apenas a santidade de Maria, mas também o desejo profundo de virgindade, um desejo de ser para Deus, que a inspira pela graça, a fim de a preparar para a maternidade divina. O papa João Paulo II resume assim o conteúdo desta expressão: “A saudação e o nome „cheia de graça‟ (...) no contexto do anúncio do anjo, refere-se em primeiro lugar à eleição de Maria como Mãe do Filho de Deus. A plenitude da graça indica ao mesmo 45

Miguel Ponce CUÉLLAR, o.c., 70. Cf Ex XXXIII, 17. 47 Cf Ex XXXIII, 12-17. 48 J. G. Garcia PAREDES, o.c., 82. 49 Cf Ibidem. 50 Ignace de la POTTERIE,  en Lc 1, 28. Étude philologique, in “Biblica”, 69 (1987) 506507. 46


15 tempo toda a prefusão de dons sobrenaturais com que Maria é favorecida em virtude de ter sido escolhida e destinada para a Mãe de Cristo. Se esta eleição é fundamental para a realização dos desígnios salvíficos de Deus, a respeito da humanidade se a escolha eterna em Cristo e o destino para a dignidade de filhos adoptivos se referem a todos os homens, então a eleição de Maria é absolutamente excepcional e única. Daqui deriva também a singularidade e unicidade do seu lugar no mistério de Cristo”51. Afirmei, no início desta alínea, que o facto de ser chamada cheia de graça deu origem à proclamação do dogma da Imaculada Conceição. Mas será esta palavra suficiente? Antes de mais, o uso do particípio perfeito passivo dá a entender que Maria foi transformada pela graça já antes da Anunciação. Com isto resulta que Maria foi preservada de todo o pecado e também das suas sequelas. Assim Deus preparou-a para a grande missão que a esperava, ser Mãe do Redentor52. Pio IX, na bula Ineffabilis Deus, proclama o dogma e afirma que “Lc I, 28 „Avé cheia de graça‟, lido na tradição, é o texto bíblico que fornece o fundamento mais sólido (não a prova) a favor da Imaculada Conceição de Maria”53.

2.2.3 Na segunda parte da saudação, o anjo ao dizer o Senhor esta contigo, usa uma expressão já do Antigo Testamento, sendo esta uma expressão não ordinária: era usada nos anúncios dos mandatos difíceis de cumprir, aqueles que ultrapassam a simples força humana54. Veja-se o exemplo de Moisés quando é informado de que deverá fazer sair o seu povo do Egipto55; ou quando incumbe Josué de atravessar o Jordão com os israelitas56; outro caso é o anúncio a Gedeão de que este deveria livrar o seu povo das mãos dos medianitas57.

51

JOÃO PAULO II, Redemptoris Mater, “Documentos Pontifícios” 30, ed. AO , Braga 19874, nº 9. 52 Cf LG 56, in CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II, Constituições - Decretos - Declarações e Documentos Pontifícios, "Documentos Conciliares"1, ed. Apostolado da Oração, Braga 1987 10; Catecismo 490. 53 Ignace de la POTTERIE, o.c., 54. 54 Cf Ibidem, 55. 55 Cf Ex III, 12. 56 Cf Js I, 9. 57 Cf Jz VI, 12; Cf também Gn XXVI, 24; XXVIII, 13-15; 2Sm VII, 9.


16 Esta expressão tem “o sentido da presença dinâmica de Deus no apoio do homem, explicitamente em circunstâncias difíceis ou para levar a cabo acções que requerem necessariamente a ajuda de Deus”58. Será este o sentido da saudação do anjo? Será a maternidade uma coisa tão difícil que precise da ajuda especial de Deus? É que este nascimento é especial, está para além das possibilidades de uma mulher: dar à luz um filho sem intervenção de um homem, virginalmente. Isto ultrapassa as possibilidades naturais. Com a ajuda do esquema da Anunciação59 podemos esclarecer o sentido destas palavras. Do mesmo modo que as primeiras palavras do anjo (a) preparam o primeiro anúncio (a‟), também a segunda parte da saudação (b), o Senhor está contigo, introduz o segundo anúncio (b‟), o Espírito Santo virá sobre ti. Com efeito, o poder do Altíssimo, deverá vir sobre Maria, para que ela possa conceber e dar à luz aquele que será chamado Filho de Deus. Por isso é absolutamente indispensável que o Senhor esteja com ela. Zacarias ficou perturbado ao vero anjo60, mas Maria, pelo contrário, reage às palavras, não à visão, e fica intrigada. Perante o mistério de Deus na vida de Maria, o narrador apresenta-a a dialogar consigo mesma, à procura de uma compreensão mais profunda para aquilo que estava a acontecer61: pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. A saudação do anjo contém, como que em embrião, os dois anúncios que se seguem e que eu tratarei a seguir.

58

Miguel Ponce CUÉLLAR, o.c., 72. Cf Supra, 1.2. 60 Cf Lc I, 12. 61 cf Ignace de la POTTERIE, o.c., 84. 59


17 2.3 O Primeiro Anúncio O anúncio62 começa com as palavras “não temas”, esta fórmula já é usada no Antigo Testamento63, no início de uma teofania, e no Novo Testamento, nas aparições do Senhor64. O anjo anuncia então que Maria dará à luz um filho, a quem porá o nome Jesus. Diz que ele será Filho do Altíssimo(atributo do rei) e ser-lhe-á dado o trono da David(Messias): o evangelho de Lucas apresenta uma cristologia de revelação progressiva, gradual, aqui Jesus é apresentado como Filho de Deus não por adopção, mas em sentido real e transcendente65. Esta mensagem é interrompida por uma pergunta de Maria: Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem? A objecção de Maria lembra a de Zacarias. Ambos usam o verbo conhecer66. Mas Zacarias usa-o no futuro67, Maria interroga negativamente no presente do indicativo68. O primeiro quer conhecer e procura um meio de o conseguir. Maria apenas diz que desconhece. Não consistiu o pecado original dos primeiros pais no desejo de conhecer para além da vontade de Deus69? A tradição javista diz que a origem da infidelidade do homem é fruto da desobediência deste a Deus. O Homem pretendeu tomar o lugar de Deus, ser senhor das coisas e norma moral do seu agir: não aceitou a sua liberdade relativa, própria do ser criatura. Quis fazer-se deus... Maria “não se propõe para procurar um pai para o futuro filho. Permanece no seu estado virgem, mas interroga-se pelo pai do futuro filho”70. O facto de Maria afirmar que não conhece homem algum levanta sérios problemas, para os quais se tentaram dar muitas respostas. Depois de S. Gregório de Nissa, no Oriente, e Santo Agostinho, no Ocidente, a explicação tradicional é que Maria tomou a resolução de

62

Cf Lc I, 30-34. Cf Tb XII, 12. 64 Cf Mt XXVIII, 5; Mc XVI, 6; Lc XXIV, 38. 65 Cf J. G. Garcia PAREDES, o.c., 86. 66 fut.  aor. 2 perf.  67 Lc I, 18). 68 está é uma forma koiné do verbo (Cf V. MAGNIEN, M . LACROIX, Dictionnaire GrecFrançais, ed. Librairie Berlin, Paris 1969, 344. No versículo 27 já se afirma, por duas vezes, a virgindade de Maria, agora é a terceira vez. 69 Cf Gn III, 5. 22. 70 J. G. Garcia PAREDES, o.c., 86. 63


18 permanecer virgem71. Actualmente há quem faça outro tipo de leituras72, posto que este versículo seria posterior à Anunciação, e fruto de profundas reflexões73. Falar de virgindade74, para nós cristãos, tem um significado muito diferente daquele que tinha no tempo da juventude de Maria, pois a virgindade é um valor tipicamente cristão. Até aí, o mundo judeu via a virgindade como um castigo, ou mesmo como uma maldição, pelo que a livre opção pela virgindade era uma coisa impensável75. Com as descobertas de Qumran76, esta posição foi atenuada, pois descobriu-se a existência de monges - masculinos e femininos - que viviam uma opção pela virgindade. Haviam também casais que viviam em abstinência sexual mais ou menos prolongada. Mas a verdade é que “nenhum destes casos explica cabalmente o caso de Maria e José”77, até porque estes casais faziam essa opção por razões rituais, absolutamente estranhas ao sentido cristão da virgindade78. Maria, pelo que sabemos, teve uma vida social normal, sem nenhum comportamento de tipo monástico ou ascético79. Surge, então, o problema: como é que Maria foi Mãe, permanecendo Virgem? O casamento hebraico não se desenrolava do modo que nós estamos habituados a ver, tinha dois momentos: o primeiro era a contracção do casamento propriamente dito, mas os recém-casados não iam logo viver juntos, ia cada um para a casa do respectivo pai, durante um certo tempo, conforme o costume da região; no segundo momento, o jovem ia à casa dos seus sogros buscar a sua esposa para a introduzir na sua própria casa. O primeiro momento constitui já um verdadeiro casamento, do ponto de vista jurídico80. O anjo apareceu a Maria no intervalo entre estes dois momentos: já se tinha verificado o casamento jurídico, mas ainda não viviam maritalmente. Maria viveu inserida no seu tempo e na sua cultura, mas vive também uma inclinação profunda para a opção pela virgindade, embora isso ainda não lhe fosse muito 71

Cf Ignace de la POTTERIE,o.c., 57; Candido POZO, o.c., 218. cf Candido POZO, o.c., 219-225. Com esta abordagem não pretendo pôr em dúvida, nem sequer duvidar, da virgindade de Maria. 73 Cf Ibidem, 219. 74 Cf Piersandro VANZAN, A mulher na Igreja: indicações bíblicas e interpretações feministas, in “Revista de Cultura Bíblica” 15, 53/54 (1990), 50. Artigo 49-61... 75 cf Ignace de la POTTERIE, o.c., 57. 76 Cf Florentiano García MARTINEZ, Qui étaient les Esséniens? Un secte dans le judaïsme de l’époque, in “Le Monde de la Bible” 86, 24-28. 77 Candido POZO, o.c., 214. 78 cf Ignace de la POTTERIE, o.c., 57. 79 cf Ibidem, 58. 80 cf Ibidem, 58-59. 72


19 claro. Possui “um secreto desejo de ser virgem, sentido e existencialmente vivido por Maria, mas que não pode colocar em forma de resolução, porque era impensável no meio social em que vivia”81. Ela era casada porque seguiu os costumes do seu tempo. Mas a “aspiração da sua alma orienta-a noutro sentido. Este paradoxo interior em que ela se encontra recebe uma solução maravilhosa no momento em que o anjo lhe anuncia que é de uma maneira virginal que ela deverá ser mãe do Messias, o Filho de Deus. Pela acção do Espírito Santo, virgindade e maternidade em Maria irão a par, de uma forma todavia misteriosa”82. Se olharmos de novo para a saudação do anjo: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo”, tudo se torna mais claro e harmonioso. Maria viveu desde sempre animada pela graça especial que Deus lhe concedeu. Pela graça de Deus, pela „graça da virgindade‟ (S. Bernardo), Maria foi de uma forma extraordinária preparada para o facto de que ia ser a mãe do Messias, o Filho de Deus, mas virginalmente. É pois a „graça‟ que nos entrega a chave de tudo; ela permite-nos explicar todo o conteúdo do anúncio evangélico a Maria; o seu desejo virginal, a sua preservação do pecado da concupiscência, mas também a graça da sua maternidade divina”83. De realçar que em todo este processo há o consentimento livre e generoso de Maria na obra da Redenção84.

2.4 O Segundo Anúncio Se no primeiro anúncio o anjo revelou o que iria acontecer, agora85 vai revelar o como.

2.4.1 A acção do Espírito Santo Na primeira parte do versículo é revelada a Maria a maneira como será concebida a criança: O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Nas primeiras palavras podemos encontrar uma alusão ao Antigo Testamento86, onde o 81

Ibidem, 61. Ibidem, 62. 83 Ibidem, 63. 84 Cf Maurílio GOUVEIA, Redescobrir Jesus Cristo e a Igreja, “Magistério” 20, ed. São Paulo, Lisboa 1995, 61. 85 Lc I, 35-37. 86 Cf Gn I,2. 82


20 vento de Deus pairava sobre as águas. Faz-se referência ao tema da criação: se Deus criou tudo do nada também pode fazer com que Maria conceba sem o contributo de um homem87: estamos perante a resposta do anjo à objecção de Maria. Quando se diz que o poder do Altíssimo vai cobrir Maria com a sua sombra88, faz alusão à nuvem como símbolo de Deus89. A nuvem que cobre com a sua sombra o tabernáculo é sinal do Deus que se faz presente90. Maria será o novo tabernáculo de Deus, a nova Arca da Aliança. A nuvem que “a cobrirá indica que no seu interior vai fazer-se presente a glória (kabôd) de Iahweh”91. A intenção de Lucas é mostrar que Jesus é o Filho de Deus desde o momento da sua concepção92.

2.4.2. Filho do Altíssimo A segunda parte do versículo, porque tem uma estrutura difícil, deu lugar a diversas interpretações93. Um assunto discutido entre os estudiosos - e que hoje está esclarecido graças às conclusões deduzidas da análise das duas primeiras partes deste texto - prende-se com o valor de  (por isso). Do ponto de vista filológico tem claramente um sentido causal. Não obstante, como é que é possível concluir das duas frases anteriores a filiação divina de Cristo? Depois de se levar a cabo o estudo comparativo entre o Antigo e o Novo testamento vê-se que não há nenhum inconveniente em aceitar  como tendo um sentido causal94, “uma vez que a especial presença de Deus em Maria em ordem à sua maternidade está expressa, segundo o procedimento mideráshico, nas frases anteriores ao versículo”95. Isto não significa que a concepção virginal traga consigo necessariamente a filiação divina, expressa nas palavras Filho de Deus mas já antes, “na acção criadora do Espírito e na presença de Deus em Maria como arca da aliança, e expressa de maneira simbólica a especial maternidade de Maria”96.

87

Cf Candido POZO, o.c., 226. A palavra usada é  e tem antecedentes no Antigo Testamento. 89 Cf Ex XL, 34. 90 Cf Ignace de la POTTERIE,o.c., 64. 91 Candido POZO, o.c., 227; Inácio LARRAÑAGA, O Silêncio de Maria, ed. Paulistas, Lisboa 19855, 33. 92 cf Miguel Ponce CUÉLLAR, o.c. 80. 93 Cf Ibidem, 81. 94 cf Ibidem, 81-82. 95 Ibidem, 82. 96 Ibidem. 88


21 A palavra santo informa-nos do modo como a criança há-de nascer: de uma forma „santa‟97, no sentido da tradição levítica. “É o nascimento de Jesus que será „santo‟, sem mancha, intacto, ou seja „puro‟ no sentido ritual da palavra”98. Ao vermos o texto desta maneira, encontramos um argumento bíblico a favor da virgindade de Maria no parto. Pois, a mensagem do anjo versa não só sobre o anúncio da concepção virginal, mas também sobre o nascimento virginal de Jesus99. O santo que nascer será chamado Filho de Deus, e isto porque Deus está realmente presente no seio de Maria, o que há-se sair do seu seio é o próprio Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o Verbo100. S. João para dizer que o Verbo habitou entre nós usa o verbo 101, que tem a sua origem no substantivo  tenda, que por sua vez tem muitas semelhanças com a palavra hebraica sekinah, as consoantes são iguais. Lembra o tempo em que Iahweh estava presente na Arca da Aliança no Santo dos Santos102, e quando Israel vivia nas tendas. Ora quem acampa vem de algum lado, neste caso do Céu, e não é para ficar. Jesus também não ficou para sempre fisicamente entre nós. Ao encontrarmos “o mesmo tema da sekinah em Lucas temos que concluir que há nele (...) muita mais afirmação da preexistência do filho do que se poderia supor. Acrescentamos que ao afirmar a preexistência „do que nascerá‟ (de Maria), Lucas está a proclamar a essência mais íntima do dogma da maternidade divina de Maria”103. Quer a concepção virginal, quer o nascimento virginal serão considerados mais tarde como sinais da filiação divina de Jesus, pelo que Lc I, 35 é de suma importância para a mariologia e para a cristologia: “podemos dizer que o nascimento virginal é um „sinal‟ exterior necessário para que os homens aceitem a filiação divina de Jesus”104.

97

cf Ignace de la POTTERIE, o.c., 65. Ignace de la POTTERIE, o.c., 65. Maria foi preservada de toda a mancha de pecado (dogma da Imaculada Conceição), para que aquele que iria nascer nunca estivesse sujeito ao pecado. 99 Cf S. Cirilo de Jerusalém, Catecheses, 13, 32 (PG 33, 765 A). 100 Cf Candido POZO, o.c., 228; Jo I, 14. 101 Cf W. MICHAELIS, , in G. KITTEL - G. FRIEDRICH, Grande Lessico del Nuovo Testamento, 12, Paideia, Brescia 1979, 497. (449-522. Artigo todo). 102 Cf Bruce VAWTER, Evangelho Segun San Juan, in AA.VV., Comentario biblico “San Jeronimo”, IV, ed. Cristandad, Madrid 1972, 422. 103 Candido POZO, o.c., 228. 104 Ignace de la POTTERIE,o.c., 66. 98


22 2.4.3 O Sinal Por fim, o anjo dá um sinal a Maria: Isabel, apesar de idosa e estéril, dará à luz. À esterilidade de Isabel corresponde a virgindade de Maria, mas ambas irão dar à luz. A maternidade prodigiosa de Isabel converte-se em sinal da maternidade, ainda mais prodigiosa, de Maria105. Maria , com a sua virgindade, insere-se no role das mulheres estéreis que deram à luz: Sara106, Rebeca107, Raquel108, a mãe de Sansão109, Ana, mãe de Samuel110 e Isabel111. Todas as crianças que nasceram, fruto destas bênçãos especiais de Deus, vieram a desempenhar um papel significativo para a história da salvação112. E a maternidade virginal de Maria é preparada ao longo de toda a história da salvação. O versículo 37 diz que para Deus, com efeito, nada é impossível; porque só Deus pode permitir que uma mulher dê à luz e permaneça virgem. Assim “a última fala do anjo reenvia para a saudação do princípio da narração: o Senhor está contigo. É necessário uma assistência muito particular de Deus para unir desta maneira a virgindade e a maternidade em Maria, a mulher que virá a ser a mãe do Messias”113.

2.5 Faça-se Ao longo do relato da anunciação, a atitude de Maria vai evoluindo: começa com o silêncio reflexivo, no segundo momento interroga o anjo e a terceira reacção é o SIM, o seu pleno consentimento. O verbo114 grego que expressa o fiat de Maria115 está no optativo. Ora este modo, inexistente em português, indica o desejo de, pelo que Maria não se limitou simplesmente a aceitar ou a resignar-se. Pelo contrário, sentiu um alegre desejo de colaborar com Deus,

105

cf J. G. Garcia PAREDES, o.c., 89. Cf Gn XVIII, 9-15. 107 Cf Gn XXV, 21-22. 108 Cf Gn XXIX, 31; XXX, 22-24. 109 Cf Jz XIII, 2. 7. 110 Cf 1Sm I, 11. 19-20. 111 Cf Lc I, 13 112 Cf Ignace de la POTTERIE, o.c., 67. 113 Ibidem, 68. 114 , fut. , aor. perf.  fazer-se. 115 Ao contrário do Pai Nosso(Mt VI, 10), que está no imperativo passivo. 106


23 sentiu o desejo de se abandonar totalmente a Ele116. A alegria final de Maria corresponde ao convite que o anjo lhe fez no início: Alegra-te, cheia de graça. Uma possível tradução poderia ser: Eis aqui a serva do Senhor; oxalá se realize em mim o que anuncias. Maria autoafirma-se como serva do Senhor117, entra na obra da salvação com disponibilidade total118. Há autores que vêm nesta resposta uma forte consciência de Maria na sua dignidade dentro do conjunto da história da salvação119. Vejamos as personagens do Antigo Testamento a quem se aplica a expressão: a Moisés120, a Josué121, a David122, a Salomão123, a Israel124 e a Jacob125. Maria insere-se, assim, no grupo dos „grandes chamados‟ do Senhor126, realçando o aspecto da vocação de Maria. O redactor sagrado conclui com uma pequena frase: E o anjo a deixou.

116

Cf Ignace de la POTTERIE, o.c., 68. Tal como fizera Ana (1Sm I, 18). 118 Cf Candido POZO, o.c., 228. 119 Cf J. G. Garcia PAREDES, o.c., 89. 120 Cf Js XIV, 7. 121 Cf Js XXIV, 29; Jz II, 8. 122 Cf 1Rs VIII, 26. 123 Cf 1Rs VIII, 28. 124 Cf Ne I, 6. 125 Cf Ez XXXVII, 25. 126 Cf J. G. Garcia PAREDES, o.c., 90. 117


24

CONCLUSÃO No final deste estudo é possível concluir que o texto da Anunciação não se enquadra unicamente num único género literário. É uma combinação entre o anúncio do nascimento de Jesus Cristo e o anúncio da vocação de Maria, em virtude da qual da qual é convidada a tomar parte no plano da história da salvação. O relato da Anunciação encaminha a nossa atenção para o papel de Maria na Encarnação do Filho de Deus. Maria, apesar de não ter nenhum título social, nem pertencer a nenhum grupo importante, é objecto de grande respeito. Isto está bem patente na saudação do anjo. Esta saudação é especial e coloca o relato da Anunciação, desde o início, num contexto messiânico. Mas a realidade expressa pelo título cheia de graça é fundamental para a realização dos desígnios salvíficos de Deus. Realidade essa que coloca Maria numa situação absolutamente excepcional e única para colaborar no plano de Deus, pois prepara-a de uma forma sublime para conceber e dar à luz o Filho do Altíssimo. Daqui deriva também a singularidade e unicidade do seu lugar no mistério de Cristo. Perante este mistério, comunicado por Gabriel, ela dialoga consigo mesma: medita naquilo que lhe estava a acontecer. E assim Maria não duvida, mas entrega-se à vontade de Deus a seu respeito. E Deus continua a obra que nela começou; dará à luz o Filho de Deus, não por acção humana, mas por obra do Espírito, porque esse filho vai ser chamado Filho do Altíssimo. Sinal disso mesmo é o seu nascimento, também ele virginal, para que os homens vejam que Ele é de facto o Filho de Deus. Este texto introduz-nos no grande mistério da Encarnação: mostra que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que veio para resgatar o homem caído. Assim como por uma mulher entrou o pecado no mundo, também por uma mulher veio o Salvador. Maria dá o seu consentimento, afirmando-se como a serva do Senhor, alguém que se entrega totalmente a Deus. Maria, perante o mistério de Deus na sua vida, tomou uma atitude de escuta e entrega total, tornando-se uma grande discípula do Filho e modelo para todos os crentes. Mas a sua colaboração com Deus não a envaideceu, antes se entregou ao


25 serviço dos seus semelhantes. Estamos perante uma fé que traz implicações para a vida concreta; logo que sabe da gravidez da sua parente Isabel vai em seu auxílio. E assim chegamos ao fim do trabalho. Da minha parte ficou a satisfação de o ter concluído. Tenho consciência que a Virgem Maria podia ser mais bem estudada se eu tivesse a disciplina de mariologia. Mas infelismente ainda não a tive e se a tiver vai ser como opcional. É pena... A mim resta-me estudar esta questão quando ela vier a propósito, como foi o caso, para suprimir essa lacuna. Ficou também a alegria de ter ocupado os meus tempos livres de uma forma que me é agradável e ao mesmo tempo enriquecedora. Se por mais não fosse já valia a pena ter feito este trabalho.


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