Juiz de Fora e a arquitetura: um presente a caminho de um futuro incerto

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J U I Z D E FORA

JUIZ DE FORA E A ARQUITETURA: UM PRESENTE A CAMINHO DE UM FUTURO INCERTO

Textos, desenhos e fotos: Luiz Alberto

do Prado Passaglia *


tornou no seu herdeiro direto, repartindo em glebas parte desta propriedade para que ali surgisse a povoação vislumbrada. A ereçâb da capela de Santo Antônio, santo este transportado da antiga capela existente no trecho de estrada desativada com a retificaçáo, se constituiu a primeira açâb efetiva de elevar aquele sítio ao interesse do coletivo. Da capela náo surgiu a tradicional praça e terras a serem cedidas àqueles que nâo tivessem posses, permitindo assim o concentrar de pessoas e profissões que pudessem enriquecer uma vida urbana. O próprio lugar onde se localizou a sede do governo municipal, que ainda é o mesmo até os nossos dias, e mais o Largo do Conselho, as terras foram adquiridas de Halfeld.

Uma das particularidades que distingue Juiz de Fora das demais cidades brasileiras sao: pertencer ao restrito "club" das cidades consideradas como sendo de "porte médio" e, o fato de estar a meio caminho da antiga sede da monarquia e da república - a cidade do Rio de Janeiro - e de Belo Horizonte, a capital planejada e construída durante o final do século passado, situada em uma região na qual se desenvolvera e expandira a raiz do ser nacional, tâo bem expressos pela arte e no movimento político da Inconfidência. O processo de transformação do vale e da bacia de sedimentação do rio Paraibuna em área rural, rural-urbana e eminentemente urbana em nossos dias, tem no seu cerne, como um de seus paradigmas, o compromisso de abrigar diversos fluxos de influências - os de dependência e de independência cultural. A arquitetura, que é o objeto do presente artigo, também faz parte desta dinâmica. A cidade nasceu justamente por época em que se iniciava a consolidação da influência académica francesa sobre a nacional, que tivera o seu cadinho na região das "minas gerais". Neste sentido nâb poderíamos deixar de lembrar o pedido feito por Manuel da Costa Ataíde (1762/1830), datado de 1818, no sentido dele ministrar aulas de "Arte de Pintura e Arquitetura" na cidade de Mariana. Esta iniciativa pode ser considerada como integrante da proto-história do ensino da arquitetura no Brasil, desvinculada da tradi* L u i z Alberto do PradoPassaglia, natural da cidade de São Paulo, Arquiteto pela FAU-USP, com cursos de especialização em Planejamento Regional e Preservação do Patrimônio Cultural, fez parte da equipe inicial do Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria

Todo espaço público de seu núcleo histórico, teve a sua origem vinculada a fatos eminentemente económicos, e nâb aqualquer coisa que se aproximasse ao comunitário e urbanístico. As praças da Catedral e Halfeld, talvez sejam as duas únicas excessões, na medida em que elas atenderam çâo das aulas de artilharia e arquitetura às necessidades religiosas e de instalação militar, sendo contemporânea à vinda da do poder público local. Missão Artística Francesa, expressão do Este pragmatismo de certa forma sempre modelo das Academias. foi contraposto porações individualizadas, Ataíde como professor de arquitetura e que agiram acima dos estreitos limites de a- sua influência na formação de novos uma visâb especulativa, abrindo brechas profissionais, nada sei. Talvez nâb tenha para a arte e a arquitetura: Mariano Prosido menos ou mais significativo de que o cópio Ferreira Lage (1821/1872) com ensino feito por Grand-jean de Montgny a construção da estrada Uniâb e Indús(1776/1850) na Academia no Rio de tria, responsável pela introdução do Janeiro, isto porque fatos irredutíveis imigrante alemão na região e, Bernarvieram a se sobrepujar a qualquer açâo de do Mascarenhas (1847/1899) que de natureza individualizada e académica - a uma forma tupiniquim, introduziu a prodecadência da mineração e a alteraçâb dução de energia elétrica em escala, possiétnica da composição da população brabilitando a localização da indústriaconsileira pela imigração a partir da segunda centrada no setor urbano. metade do século XIX. Profissionais diO rompimento gradativo com os padrões versos, tais como mestres-de-obras, èngee segmentos tradicionais agrários, nâo nheiros-arquitetos, oficiais e operários, fochegou a se efetivar, apesar do alento inram incorporados à vida produtiva do dustrial que caracterizou a sua história país através da imigração, em uma prorecente, e de sua função de entreposto porção maior do que a nossa capacidade comercial de uma vasta área definida pela de formação local de mâb-de-obra esperegião da Mata Mineira, nâb foramsuficializada. cientes para alterar a sua condição margiJuiz de Fora tem como rfiarco de sua exisnal dentro do processo de desenvolvimentência a época da retificaçáo do antigo to económico e cultural que se concen"caminho novo", feita por HenriqueGuitrou no eixo Rio-Sâb Paulo, principallherme Fernando Halfeld (1797/1873) mente a partir da década de 1950. em 1836, um ex-engenheiro militar prusSe olharmos esta dinâmica através da arsiano que fora integrante da Guarda Naquitetura local, observamos a presença de cional. características que podem ser agrupadas A participação de Halfeld na história local em dois períodos: um que iria de 1850 à nâb terminou com este fato, mas apenas década de 1930, cujos parâmetros corresaí teve o seu início. Casando-se com ele- pondem à introdução do imigrante alementos da terra, proprietários da entâb mão até o Estado Novo, quando ocorreu denominada Fazenda do Juiz de Fora, se as alterações mais significativas do quadro político e económico brasileiro, e, o subsequente que abrange o período de 1940 Municipal de Cultura de São Paulo, desde e 1981, em Juiz de Fora, MinasGerais, foi um à década de 1970. dos responsáveis pela implantação de semePresenciamos, em termos culturais, o seu lhante serviço para a Prefeitura local;profesrompimento com o mundo serra acima, a sor na Escola de Arquitetura daUFMG e artisda Mantiqueira, perdendo o elo com o ta plástico.


nacional das "gerais", consolidando a sua dependência para com o mar aberto,capitaneada pela cidade maravilhosa do Rio de Janeiro. O ecletismo prepondera, inclusive o arquitetônico, que no caso de Juiz de Fora foi assimilado e recriado no âmbito local, tendo como um de seus exemplos mais significativos o arquiteto Rafael Arcuri (1891/1969), enviado a Itália pelo seu pai, Pantaleone Arcuri (1867/ /1958), para estudar arquitetura nosinúmeros ateliês livres entâb lá existentes. A sua sensibilidade artística e a ausência de um comportamento dogmático para com a profissão, fizeram com que ele vivesse e participasse integralmente de todo um período tumultuado e de profundas transformações após a guerra de 1914. Do neoclássico ao art-deco, ele se adaptou e expressou com inteligência e sensibilidade o problema da ornamentação na arquitetura, mas, nada veio a permitir que asprincipais proposições do movimento moderno da arquitetura viessem aqui encontrar um resguardo ou impulso. Apesar do esforço pessoal de Arthur Arcuri (1913), engenheiro formado no Rio de Janeiro, a estética deste movimento nâo recebeu o apoio necessário, dele ficando apenas o despojamento tâb procurado para o barateamento da construção a caminho da ocupação integral do solo urbano. Mas isto é uma história que tem o seu início durante a década de 1940 para a de 1950, quando as taxas de migração cresceram no sentido do campo para a cidade e da pequena cidade para a de maiores proporções. No caso de Juiz de Fora esta dinâmica teve o seu auge em meados da década de 1960 até a de 1970. Este movimento e alteraçâb da natureza das cidades, foi fruto das mudanças de ordem política e económica do país aonde, por exemplo, a criação do BNH se encontra inserido. Sem deixar margens de dúvida, esta instituição agiu de forma enfática sobre os padrões de ocupação do espaço urbano e de produção do edifício. Ao contrário das- grandes metrópoles, o processo de verticalizaçao e de maximização da ocupação do solo, muito deve a criação de um sistema económico que garantisse um procedimento que não seria tangível pelo capital local, não só emfunção de seu numerário, mas também, pela ausência de tradição de corporação, cons-

trutiva e de mercado para que tal modelo fosse implantado de forma independente. Bancos e Caixas Económicas passaram a aprovar empreendimentos mobiliáriosdentro da lógica económica monetária, cuja eficiência e objetivos, a partir de uma ótica de arquitetura social, deixaramalgumas dúvidas. Na medida em que o sistema económico voltou-se para uma dimensão essencialmente financeira, em nosso caso acelerou ações especulativas do solo e do

edifício, caminhando em direção oposta ao incentivo real da expansão do sistema produtivo e das condições salariais do trabalhador, trazendo assim profundas consequências para a arquitetura e para a funçâb social do arquiteto. A estratificação social, a irrealidade do salário-mínimo; a marginalização do significativo contingente da população brasileira e a nâb difusão de formas alternativas de organização, tais como cooperativas, autogestão da empresa pelo trabalhador, etc, tudo isto a arquitetura expressa. Daí


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a dificuldade de se poder distinguir qual o limite existente entre o que ela é daquilo que pensamos que ela poderia vir a ser. Retomando, aquele quadro que vigorou em Juiz de Fora até o limiar da década de 1940, malogrou. Ele era caracterizado por uma composição social de escala e natureza menos estratificadas; a produção industrial local dos principais componentesaplicados à construção civil; a presença de mestres e operários extremamente habilitados através de um procedimento rígido e ético do ato de construir; a presença do engenheiro-arquiteto ou do arquiteto propriamente d i t o , formado por uma didática académica tão combatida pelo movimento moderno da arquitetura que, no entanto, não apresentou um modelo alternativo que garantisse a instrução e o comportamento sócio-profissional não elitista para com o conjunto da realidade brasileira. Tudo isto ficou perfeitamente claro e perceptível em uma cidade como Juiz de Fora, que não tem o gigantismo das metrópoles que chegam a ofuscar. Não será o fato de não se ter uma escola de arquitetura local ou regional que possibilitará alterar este quadro mas, sim uma abordagem diferente da função do projet o . Na medida em que transpomos eassimilamos padrões com os seus correspondentes objetos culturais já elaborados, fica-nos muito pouco, em termos de criação, de tudo aquilo que consumimos. Daí a insignificância do papel e da função do projeto, e mais do que isto, o seu limitado poder de auto-afirmar uma identidade e de gerar um proceder participativo, só possível com a elaboração de produtos de efetivo interesse social. Uma condutacontrária ao que acabamos de colocar, é aquela em que o arquiteto procura impor um determinado modelo ao seu cliente, com isto, ele não deixa de fazer mais nada do que reproduzir o sistema de imposições exalados pelo sistema educacional, e este, por sua vez, refletir uma orientação política imprimida ao conjunto formado pela educação e cultura no país. A dissociação da arquitetura e do arquitet o das bases populares, máxima incondicional do ''modernismo brasileiro", incon-

dicional devido as próprias condições da organização sócio-econômica e política da nação, vem se constituindo em um dos desafios mais amplos para a classe. Exemplos típicos da fragilidade das proposições teóricas da arquitetura moderna para um contexto não metropolitano, nos são fornecidos pela sua própria prática. Foi o caso do edifício do Club de Juiz de

Fora, projeto de autoria do arquiteto carioca Francisco Bolonha (1923), que utilizou os principais elementos formais caracterizadores do modernismo, além de painéis idealizados por Cândido Portinari (1903/1962). No entanto, não foram suficientes para superar os limites impostos pelo mercado do solo urbano — uma


taxa de ocupação da ordem de 100%. Praticamente é o primeiro edifício que abandonou a antiga tradição local de resolver a esquina em curva, mantido no caso do projeto de Oscar Niemeyer (1907) para o Banco do Brasil, passando a avançar em ângulo reto sobre o alinhamento, jogando toda a sua massa construtiva sobre o logradouro. A arquitetura dos poços de iluminação, de compartimentos precariamente iluminados e ventilados, a diminuição das áreas até o limite dé aturação; as crianças enclausuradas em cubículos, sem o contato com o sol, com a água da chuva, a terra e as plantas; somem os quintais, expressão e reduto da parcela da natureza compartimentada pelo homem, local aonde poderia sentir a sua cor, seu gosto e cheiro. E eis que a contradição surge — enquanto estes elementos ainda permanecem nas periferias das cidades, eles escasseiam nas áreas mais centrais; enquanto na primeira predomina a morada das classes que cada vez mais tendem a ficar marginalizadas pelo sistema produtivo, as da área central, tendem a se alienar não questionando o significado deste sistema. com a roupa encharcada, a alma repleta de chio todo artista tem de ir aonde opovo está se foi assim, sempre será.

(Milton Nascimento, in "Nos Bailes da Vida") A arquitetura de um povo espelha com clareza o nível de sua cultura e, nestesentido, as cidades que não foram palco de uma ação concentrada do oficialismo ou de uma ação mecânica por parte da burguesia para com o modernismo, elastendem refletir com maior nitidez o quanto de fato avançamos na arquitetura. Eis Juiz de Fora ajudando-nos a voltar a pisar o chão, como em um ancoradouro depois de uma viagem que ficou no passado, mas que nos alerta sobre um presente parte de um futuro questionável.


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