Caderno A

Page 1

CADERNOA P O L Í T I C O ,

E C O N Ô M I C O

E

S O C I A L VITÓRIA, 25 DE JULHO DE 2013

E D I Ç Ã O D E D I C A D A A O D E S P E R TA R P O L Í T I C O D E U M A G E R A Ç Ã O C O N C E N T R A D O N O C O N J U N T O D E M A N I F E S TA Ç Õ E S P Ú B L I C A S Q U E T O M A R A M A S R U A S D A S P R I N C I PA I S C I D A D E S B R A S I L E I R A S .

O QUE A SÉRIE DE ATOS CIVIS NOS DIZEM SOBRE O PAÍS?

foto ALMIR VARGAS

O

Brasil foi despertado de um certo torpor antipolítico por meio de um conjunto de manifestações públicas que tomaram as ruas das principais cidades brasileiras na última semana. Duramente reprimidas, especialmente na cidade de São Paulo, estas manifestações foram classificadas como desordem ou baderna por um conjunto de políticos e meios de comunicação que nos lembraram o Brasil antes da democracia recente. Nada de surpreendente até ai. No entanto, a questão que se coloca é: qual é o significado destas manifestações?

P or J o ã o D a ma s c e n o

PÁG. 2

O NACIONALISMO DAS MANIFESTAÇÕES.

A ssi m co m o e m t o d o o B r a si l , ma n i fe s ta n te s to m a m a s ru a s d e V i tó ri a .

PÁG. 4

UM PROCESSO LENTO E DOLOROSO.

SÓ NÃO ENTENDE O QUE ESTÁ ACONTECENDO NAS RUAS QUEM NÃO FOI PARA AS RUAS.

PÁG. 6 foto ALMIR VARGAS

foto YAN BOECHAT

foto ALMIR VARGAS

PÁG. 7


CADERNOA

2

POLÍTICAS INCLUSIVAS E PARTICIPATIVAS DO GOVERNO FEDERAL CHEGAM A UM LIMITE.

O QUE A SÉRIE DE ATOS CIVIS NOS DIZEM SOBRE O PAÍS? Por J o ã o D a ma s c e n o

VITÓRIA, 25 DE JULHO DE 2013

POLÍTICO, ECONÔMICO E SOCIAL

O

Brasil foi despertado de um certo torpor antipolítico por meio de um conjunto de manifestações públicas que tomaram as ruas das principais cidades brasileiras na última semana. Duramente reprimidas, especialmente na cidade de São Paulo, estas manifestações foram classificadas como desordem ou baderna por um conjunto de políticos e meios de comunicação que nos lembraram o Brasil antes da democracia recente. Nada de surpreendente até ai. No entanto, a questão que se coloca é: qual é o significado destas manifestações? Ao meu ver elas são um sinal de que as políticas inclusivas e participativas do governo federal chegaram a um limite e é necessário ampliá-las e estendê-las para a área de infraestrutura. O transporte público é apenas uma questão cujo impacto pode ser ou não passageiro. Encontro-me entre os que acreditam existir fortes avanços na inclusão social e na participação no Brasil nos últimos anos. O Bolsa Família e os aumentos do salário mínimo foram importantes na criação de um processo de mobilidade social que não devemos subestimar. O Brasil é um dos países onde a pobreza mais diminuiu e onde o crescimento econômico teve um dos maiores impactos distributivos. Ao mesmo tempo, as conferências nacionais do governo Lula, continuadas pelo atual governo, envolveram quase 6 milhões de pessoas e criaram um canal real de comunicação entre a sociedade civil e o Estado. A inclusão de novos grupos na assim chamada nova classe média estagnou e, com ela, um certo aumento na capacidade de consumo. Ao mesmo tempo, a inclusão de novos grupos sociais gerou fortes problemas na infraestrutura e na oferta de bens públicos criando gargalos que hoje estão sendo enfrentados pelo governo. E aí aparece uma característica do atual governo que é preciso apontar: a pouquíssima disposição para a negociação em questões econômicas e de infraestrutura. É possível afirmar que a previsão de qualquer fenômeno é muito difícil nas ciências sociais. Ainda assim, é possível afirmar que estas manifestações

que varreram o Brasil na última semana foram anunciadas por um conjunto de conflitos que ocorreram no país nos últimos 12 meses, a saber: as manifestações e as ações da sociedade civil contra a construção de Belo Monte; a forma antissocial como as principais obras para a Copa do Mundo estão sendo conduzidas com remoções forçadas e ao arrepio da lei em Belo Horizonte, no Rio de Janeiro entre outras cidades; a repressão de diversas manifestações da juventude nas capitais e o assassinato de indígenas na desocupação de terras pela Polícia Militar no estado do Mato Grosso do Sul. Estes conflitos podem ser considerados o pano de fundo que está por trás destas manifestações: a falta de uma concepção de participação da sociedade civil e dos movimentos sociais na área da infraestrutura. Vale a pena entender melhor por que a sociedade civil brasileira tem tão pouca participação nesta área. A participação da sociedade civil e dos movimentos sociais no Brasil foi forjada durante as lutas pela redemocratização do País. Durante este período, a sociedade civil brasileira reivindicou a participação em diversas políticas públicas entre as quais valeria a pena destacar a saúde e as políticas urbanas. Todas estas áreas se tornaram fortemente participativas como resultado das decisões tomadas durante a Assembleia Nacional Constituinte. Mas aqui caberia a pergunta: por que não houve a reivindicação de participação na área de infraestrutura? A resposta é simples: porque o Brasil viveu um apagão estrutural nesta área nos anos 80 e 90. Apenas nos últimos anos o Brasil voltou a se investir em infraestrutura e esta é a questão que se coloca hoje: ela tem se tornado o centro das políticas tanto do governo federal quanto dos governos municipais. Mas, quando pensamos a concepção de construção de infraestrutura existente hoje no país, ela é completamente antissocial. Alguns exemplos podem ajudar a esclarecer a questão: a construção do canteiro de obras de Belo Monte, por uma conhecida empreiteira, foi feita em padrões que lembram os anos 70 e acabaram gerando greves e manifestações.

A maneira como certas cidades brasileiras, entre as quais vale destacar o Rio de Janeiro e Belo Horizonte, estão construindo a infraestrutura para a Copa do Mundo nega os direitos mínimos da população consagrados pelo Estatuto das Cidades. Ou seja, o Brasil está construindo infraestrutura urbana de forma absolutamente antissocial e este é o pano de fundo das manifestações que varreram as capitais brasileiras nas últimas semanas. Uma vez esclarecidos todos os pressupostos acima, cabe analisar o que é o movimento do passe livre e as suas reivindicações. Na minha opinião, a reivindicação do passe livre é um horizonte normativo desejável, mas impossível de ser efetivado pelas prefeituras neste momento. Mas, uma vez dito isto, cabe apontar que muito há a ser feito na área de transporte público no Brasil. Nosso país adotou um pacote pós-crise de 2008 que tinha como elemento central a redução de impostos para veículos automotores. Esta política não se coordenou com nenhuma política pública na área de transporte público. O número de carros nas cidades brasileiras aumentou enormemente, as condições daqueles que usam o transporte público pioraram e parte do aumento de custos nesta área está ligada ao aumento do número de carros que diminuiu a velocidade do transporte público urbano. Portanto, há sim uma agenda para melhorar as condições e o custo do transporte público e esta agenda deve ser abraçada pelo governo federal e pelas prefeituras dos diferentes partidos. O Brasil mais uma vez encontra-se em uma encruzilhada sobre como ele vai se apresentar ao mundo nos próximos 12 meses nos quais as atenções estarão voltadas para o país: ele pode se apresentar como a nação que entende os seus problemas sociais e o seu pesado legado, mas está tentando resolvê-los, ou como o país que continua marcado por uma política centenária de exclusão cujo fim ainda não se encontra claro. Está nas mãos de Dilma Rousseff, Fernando Hadadd, Sergio Cabral entre outros definir a maneira através da qual o Brasil irá se apresentar ao mundo.


VITÓRIA, 25 DE JULHO DE 2013

MEUS 20 CENTAVOS P or Le lê Te le s

J

abor chamou os manifestantes de burgueses que não valem 20 centavos. A Globo os chamou de vândalos. A Folha pediu em editorial que a polícia descesse o cacete na moçada. Agora, Arnaldo Jabor, que serve ao Instituto Millenium, uma organização que conspira contra os governos progressistas no Brasil e na América Latina, pede desculpas por ter sido mal educado com a juventude; veja você. Você acha que isso saiu espontaneamente da boca do humilde colunista ou de dentro de uma reunião com os patrões dele? As revistonas, que antes criminalizavam os “vândalos” rebeldes sem causa, agora colocam os garotos nas capas, como se fossem os revisionistas de maio de 68. E, veja você, a imagem símbolo do manifesto não é um trabalhador espremido em pé dentro de um ônibus, ou um jovem da periferia sendo agredido por um policial (algo banal); a imagem síntese, para a Rede Globo, é a da repórter da Folha, Giuliana Vallore, que foi lá cobrir a violência que o seu jornal incitou pra vender uma capa bonita. Meu medo é que os manifestantes virem, sem querer, atores a serviço da mídia velha.

CADERNOA

3

POLÍTICO, ECONÔMICO E SOCIAL foto BENTO ALCÂNTARA

A GLOBO RELANÇA A MODA CARA PINTADA E EU FICO DE CARA COM ESSA PINTURA.

R e p ó r t e r d e j o r n a l q u e p re g o u re p re s s ã o a g o ra é m u s a d o s g l o b a i s.


4

CADERNOA

VITÓRIA, 25 DE JULHO DE 2013

POLÍTICO, ECONÔMICO E SOCIAL

foto ALMIR VARGAS

B a n d e ira e hino nacion al tomam conta das manifestant e s p e l a s r u a s d e V i t ó r i a .


CADERNOA

VITÓRIA, 25 DE JULHO DE 2013

5

POLÍTICO, ECONÔMICO E SOCIAL

O NACIONALISMO DAS MANIFESTAÇÕES

A

quelas manifestações de junho cresceram e se nacionalizaram. Havia gente que protestava contra a condição de vida nas cidades, como transportes baratos e eficientes, acesso a serviços públicos de saúde e à educação de qualidade. Havia milhares de grupos de um só indivíduo: reivindicavam o fim dos impostos, a volta dos militares, Lula na cadeia, fim do Bolsa Família etc. Havia também aqueles grupos minoritários que se organizaram com pauta objetiva e que identificavam exatamente os responsáveis pela situação de dificuldades que vivem. Havia os agrupamentos de esquerda: gritavam pela democratização

A MARCA FOI O INDIVIDUALISMO. O “NACIONALISMO” SE VOLTOU CONTRA POLÍTICOS, PARTIDOS, CASAS LEGISLATIVAS E O EXECUTIVO. Por João Si cs ú

dos meios de comunicação, por mais verbas para a educação etc. Havia também grupos fascistas: atacavam partidos políticos e estavam dispostos a depredar as cidades. Havia ainda aqueles que representavam a essência da mídia conservadora: contra a PEC 37 e contra Dilma, Lula e o PT. E, ao escurecer, o lumpesinato e vândalos aproveitavam para saquear e promover quebra-quebra. Uma grande parcela também era composta por jovens que querem abraçar a política como instrumento de mudança. Mas, a maior parcela dos manifestantes, compunha grupos de um só membro. A marca das manifestações foi o individualismo da reivin-

dicação. Havia algo ainda mais amplo que o individualismo. Parcela majoritária dos manifestantes concluíram que sua reivindicação somente não se realiza porque existe corrupção praticada pelos políticos que ocupam cargos no legislativo e no executivo. Assim, políticos, seus partidos e a corrupção foram eleitos os inimigos comuns, “os inimigos do Brasil”. As bandeiras brasileiras e o hino nacional não representavam sentimentos contra as multinacionais, mas sim contra a corrupção e seus agentes no setor público. O setor privado não foi questionado, corruptores não foram mencionados.

A experiência internacional já mostrou que o nacionalismo voltado contra agentes internos resultou em atrocidades históricas. Um único elemento externo presente nas manifestações foi a Fifa, que foi somente de forma tangencial confrontada com os interesses nacionais. O questionamento à Fifa e à Copa foi basicamente sobre o tema da alocação de recursos público. A Fifa e as multinacionais poderiam ter sido o foco nacionalista das manifestações, mas, infelizmente, o nacionalismo se voltou contra os políticos, seus partidos, as casas legislativas e o Executivo. É desse nacionalismo que precisamos?

fotos ALMIR VARGAS

M a n i festantes às ruas. Muito se pede e pouco se sabe.


CADERNOA

6

VITÓRIA, 25 DE JULHO DE 2013

POLÍTICO, ECONÔMICO E SOCIAL

SÓ NÃO ENTENDE O QUE ESTÁ ACONTECENDO NAS RUAS QUEM NÃO FOI PARA AS RUAS.

foto Pedro Damasceno

Manife st a n t e s sã o r e p r e e n d i d o s p o r p o l i ci a i s m i l i t a r e s n a cú p u l a d o C o n g re s s o N a c i o n a l .

Por Ya n B o e c h a t

O

ntem, em São Paulo, os pobres, os miseráveis, os excluídos tomaram as ruas para protestar com as únicas armas de coerção que conhecem, a violência. Não foi uma “minoria” de vândalos que atacou a prefeitura. Nem os punks ou os integrantes do Black Bloc. Eles estavam lá e participaram, é verdade, mas não foram eles que por pouco não colocaram a baixo o símbolo do poder municipal, assim como não foram eles que destruíram o portão do Palácio dos Bandeirantes. Quem atacou a prefeitura, desde o começo, foi o povo. Foi gente que está ali no centro todo dia trabalhando, gente que mora nas ruas, gente, muita gente, que veio das periferias participar dos protestos. Uma senhora, senhorinha mesmo, foi simbólica nesse ponto, para mim. Ela chegou bem perto da porta da prefeitura, onde o caos imperava após a saída da GCM, e passou a atirar pedras contra o que restava de vidros. Algumas pessoas tentaram contê-la. “Tia, sai daqui, a senhora vai morrer”, diziam. E ela: “Me deixa, eu tô com raiva, eu tô com muita raiva”. Após uma negociação entre ela e seus contentores,

chegou-se a uma conclusão: “Eu saio, mas me deixa jogar mais duas, eu to com muita raiva”. E mais duas pedras portuguesas voaram em direção às vidraças. Toda a sorte de violência que essa parcela da população sofre veio à tona ontem, por mais que os representantes da classe média tenham feito o máximo de esforço para conte-los. No meio do caos, estabeleceu-se, quase, uma luta de classes e raças para definir qual a melhor estratégia de luta. De um lado, jovens brancos e educados, em sua maioria, tentavam argumentar que esse não era o caminho, que isso era o que a “mídia burguesa” queria, que não havia “estofo ideológico” para isso. Do outro, jovens pardos, negros, filhos de nordestinos, apenas ameaçavam. “Eu vou quebrar, sai da minha frente, playboy, senão vai sobrar pra você”. Foi assim na porta lateral da prefeitura, onde os manifestantes - sim, eles também são manifestantes - tentaram arrombar a porta fazendo dos tubos metálicos de sinalização de trânsito uma aríete. Um rapaz, loirinho, de cabelos cacheados, vestido de super-homem, tentava convencer

um bando de rapazes da periferia paulistana a não invadir a prefeitura. “Pessoal, tem gente la dentro, alguém vai se machucar, para com isso”. Um rapaz, moreno, apenas com os olhos a mostra, explicou em detalhes, o que lhe aconteceria: super-homem, sai daqui senão tu vai virar a mulher maravilha”. O super-homem, ciente estar diante da Kriptonita, partiu. A polícia, que abandonou a cidade, só apareceu quando as lojas começaram a ser saqueadas. Quando eram apenas as agências bancárias, donas de cofres impenetráveis por um bando de “arruaceiros”, não houve problema. Mas quando as lojas Marisa ou as Americanas passaram a ser o alvo, um grupo de policiais surgiu. Prendeu algumas pessoas, mas foi posto para correr pela multidão. A cidade, como diziam, era deles. Dos pobres, dos miseráveis, dos nóia, dos meninos de rua, dos jovens da periferia. Pela primeira vez, em muito tempo, entraram nas Lojas Americanas sem serem perseguidos pelos olhares dos seguranças. E muita gente só entrou para destruir. E muita gente realizou o sonho de ter uma TV bacana ou um notebook.

Simplesmente criminalizar o que houve ontem no centro de São Paulo é aumentar o fogo sob a panela de pressão da incrível desigualdade social centenária deste país. E principalmente de São Paulo, a verdadeira cidade partida. Não é possível que continuese a acreditar que os bandidos pardos, negros e periféricos são bandidos porque este é seu DNA, porque não gostam de trabalhar, porque, enfim, são assim. Ontem, no centro de São Paulo, essa massa mostrou que está cansada de ficar à margem. Muito cansada. E não serão R$ 0,20, de fato, que aplacarão a raiva. O urubu bateu asa e a classe e a jovem média paulistana, que o alimentou pensando em se tratar de um vistoso sabiá, está assustada. Afinal de contas, os clamores de “Sem Vandalismo” que entoaram durante as passeatas não fazem sentido para a massa daqueles que realmente sofrem com o trânsito massacrante da cidade, com a polícia assustadoramente violenta. Por não terem a raiva a lhes alimentar a alma, os jovens que foram às ruas com cartazes dizendo “Saímos do Facebook”, não entenderam o poder da raiva. E com a raiva não se brinca.


VITÓRIA, 25 DE JULHO DE 2013

CADERNOA

7

POLÍTICO, ECONÔMICO E SOCIAL

UM PROCESSO LENTO E DOLOROSO Por Au r é lio M u n h o z

É

necessário dizer aos incautos que não se constroem verdadeiras democracias sobre os escombros de rupturas drásticas, pontuais e indolores. Nem unicamente por meio do voto ou da verborragia desenfreada e contundente. A cidadania é possível apenas como resultado de uma longa e complexa trajetória histórica, muitas vezes permeada de medo e violência, na qual uma densa rede de fatores interage para produzir as mudanças que a sociedade deseja. Possivelmente não há frase que traduza melhor o Brasil do recente protesto contra a tarifa do transporte coletivo em São Paulo ou das vexatórias vaias à presidenta Dilma Rousseff na abertura da Copa das Confederações. Não faltou quem tenha enxergado conexões inexistentes entre as duas manifestações, contrapondo-se aos bordões que identificam a indolência política da Nação, como “O Brasil é um gigante adormecido” ou “O povo não sabe a força que tem”. Meu texto serve não para desqualificar as citadas manifestações, mas para nos mostrar o quanto nosso entusiasmo com certas iniciativas espontâneas da massa pode levar a avaliações precipitadas sobre a realidade. A primeira é que, na verdade, o “gigante” já acordou e o está fazendo há décadas, bem antes da ocorrência do protesto sonoro contra o governo Dilma ou da manifestação reprimida pela bestialidade imposta pela PM de São Paulo. Ele já dava o ar da sua graça nos anos 60, quando o Brasil que pensava reagiu - porém, tardiamente e sem sucesso - à entronização dos ho-

mens da caserna no poder, em março de 1964. E prosseguiu assim na década seguinte, apoiado pelos sonhos e as atitudes da moçada que curtia liberdade, mas também rock, Tropicália e uma boa dose de rebeldia, embalados pela célebre máxima “é proibido proibir”. O mesmo ocorreu nos anos 80, quando milhões de brasileiros pediram (e conseguiram) transformar as Diretas Já no início da abertura política brasileira. E ainda nos anos 90, quando, sob a pressão dos caras-pintadas, o Congresso Nacional mandou o ex-presidente Fernando Collor de Mello de volta o belo estado de Alagoas. O corajoso movimento que pede tarifas de ônibus mais baratas país afora merece respeito, aplausos, admiração e apoio, especialmente os inocentes que foram agredidos pela Polícia Militar paulista. Assim como merecem respeito os torcedores que emprestaram suas vozes ao coro de vaias à presidenta Dilma Rousseff . Mas, com o devido pedido de perdão aos milhões de otimistas e revolucionários virtuais do Facebook, as manifestações de São Paulo e de Brasília estão longe de ser um divisor de águas na cidadania brasileira, uma conjugação única e inédita de fatores histórico-sociais que resultará em uma drástica e urgente ruptura da exploração existente no carcomido modelo político-econômico nacional brasileiro. É preciso muito mais que um conjunto de manifestações contra o transporte coletivo ou os excessos nas obras da Copa. É preciso que decorra um longo (e, como sempre, sofrido) processo histórico de construção da nossa consciência política e da cidadania para que a exploração seja banida da vida nacional. As manifestações que ocorrem nas ruas do Brasil são muito mais a indicação de um desejo que todos nós acalentamos no nosso imaginário de libertários (o da revolução nas ruas, pelas mãos do povo) do que a tangibilização de um incipiente e irreversível movimento social de caráter nacional destinado a questionar a fundo as mazelas da sociedade brasileira. Por enquanto, o que as pessoas fazem é protestar com veemência. Mas ainda sem a aspiração de derrubar go-

vernos ou prender empresários. E não todo o povo. Nem em todos os cantos. Nem por todas as causas, aliás. A manifestação de São Paulo foi tão sublime, em seu escopo, quanto o gesto dos milhões de manifestantes que pediram o impeachment do presidente do Senado, Renan Calheiros, em fevereiro deste ano. Mas não pode ser classificada de estopim de uma generalizada e vigorosa rebelião das massas, até porque não ocorreram protestos similares em situações recentes da vida nacional que justificariam uma revoada de indignações país afora. Por exemplo, os assaltos chancelados pela economia de mercado praticados por muitos supermercados nos recentes aumentos de preços dos alimentos, que são provavelmente os principais responsáveis pela volta da inflação. Não custa dizer o óbvio: que, tanto quanto as tarifas do transporte coletivo, alimentos são produtos essenciais às vidas de todos nós. A despeito disso, porém, não se viu grupos organizados ocupando as ruas em protesto contra os grandes atacadistas de alimentos. O mesmo ocorreu em relação a outros problemas mais óbvios, graves e contundentes da vida nacional.

ESTE MOVIMENTO SÓ ATINGIRÁ SEUS OBJETIVOS SE ADQUIRIR UM NÍVEL DE MATURIDADE POLÍTICA ELEVADO.

Quando ao coro anti-Dilma, tem razão esta gente barulhenta de reclamar do desperdício. A construção de um novo estádio Mané Garrincha jamais poderia mesmo custar 1 bilhão de reais. O problema é que, ainda que corretos no mote do seu protesto, os autores das vaias perderam a oportunidade única de também satanizar gente que tem tanta responsabilidade pelas excrescências pré-Copa do Mundo quanto Dilma. É de se perguntar ainda por que os autores das vaias, quando frequentam

os estádios dos seus times do coração, não dedicam o mesmo tratamento aos quadrilheiros que conduzem muitos dos clubes nacionais - uma gente que tem muito a esconder do Judiciário e que não hesita em perpetrar maracutaias fora dos gramados para manter seus clubes. Se Dilma errou na condução dos preparativos para a Copa, está longe de ser a única. É desejo de todos nós que as manifestações contra os abusos nas tarifas do transporte coletivo e nas obras da Copa do Mundo não só continuem, mas se expandam, e o façam sem a repressão de trogloditas fardados. É preciso, porém, que o foco da revolta popular seja ampliado e direcionado não só a governos, mas também a todos os empresários facínoras - e seus prepostos - que se apropriam do aparato estatal para encher as burras de dinheiro, em todos os campos da atividade econômica, inclusive no esporte. Acima de tudo, contudo, é preciso compreender que a rebelião popular que alavancará as mudanças que o Brasil deseja não é exatamente um fato novo. Ainda é muito cedo para se dizer se estas manifestações serão suficientes para alavancar mudanças mais significativas, mas o que parece é que - se prosseguir - este movimento só atingirá seus objetivos a longo prazo e, assim mesmo, apenas se adquirir um nível de maturidade política elevado, além de uma amplitude bem maior, envolvendo um conjunto significativo de cidadãos e de instituições representativas da sociedade civil organizada. Ainda não é o que ocorre na sociedade brasileira de junho de 2013. Não há sinais de engajamento popular realmente massivo e rebelde em escala nacional. Em boa parte, os cidadãos permanecem inertes diante destes problemas e se contentam apenas em acompanhar as notícias pela grande mídia, junto com o lixo cultural despejado por boa parte das rádios, TVs e veículos impressos nacionais. Os heroicos manifestantes de São Paulo e os barulhentos autores das vaias em Brasília ganharam visibilidade, o que é ótimo, mas ainda não são milhões - e, como se viu, são frágeis. A revolução da cidadania que queremos tarda a aparecer no horizonte.


CADERNOA

8

O ESPAÇO HÍBRIDO ENTRE AS REDES SOCIAIS E AS RUAS Por Tia g o Pime n t e l e Sérg io A . Silv e ir a

VITÓRIA, 25 DE JULHO DE 2013

POLÍTICO, ECONÔMICO E SOCIAL

J

unho de 2013 foi marcado por uma série de manifestações e mobilizações sociais em todo o Brasil. Originalmente convocadas pelo Movimeto Passe Livre de São Paulo, os atos contra o aumento das tarifas de transporte público ganharam corpo e adesões em massa ao mesmo tempo em que as manifestações adquiriram outras cores e outras pautas. O curso dos eventos culminou em um ponto de inflexão na história das mobilizações sociais brasileiras. A mobilização de cidadãs e cidadãos nas ruas, levada a cabo por meios eletrônicos de comunicação social, particularmente as redes sociais, influenciaram enormemente a agenda política dos governos em todas as suas instâncias: federal, estaduais e municipais. E o fizeram de maneira tão instantânea quanto as mobilizações ganharam adesão massiva e em escala nacional.

Espaço híbrido: Entre as redes e as ruas A mobilização cidadã nas ruas a partir das redes sociais criou um espaço híbrido entre as redes e as ruas. Havia quem estivesse nas ruas relatando, pelas redes, o calor da mobilização social. Havia quem estivesse nas redes, interagindo, compartilhando e se posicionando, aumentando a mobilização e amplificando o engajamento social, para muito além das ruas.

Evolução dos eventos Neste espaço híbrido entre redes e ruas foram os agenciamentos em torno das redes sociais que ganharam papel de destaque. Todos os grandes atos nas ruas derivaram de “eventos” agendados a partir do Facebook. Foi a partir deles que os eventos se difundiram pelas redes e, na proporção direta em que aumentava a indignação social, as manifestações ganhavam adesão massiva, potencializando o efeito viral do engajamento social. As páginas dos eventos, que funcionaram ao mesmo tempo como canal privilegiado de articulação dos ativistas e dos movimentos, foram expressão da composição heterogênea e da construção capilarizada das diversas narrativas que tiveram voz nas manifestações das ruas e das redes.

PARTICIPANTES CONFIRMADOS EM EVENTOS DO FACEBOOK RELATIVOS AOS ATOS PÚBLICOS: 1º ATO 6 DE JUNHO 2º ATO 7 DE JUNHO 3º ATO 11 DE JUNHO 4º ATO 13 DE JUNHO 5º ATO 17 DE JUNHO

20.556 6.169 12.782 28.228 287.457

1º ATO 6 DE JUNHO 2º ATO 7 DE JUNHO 3º ATO 11 DE JUNHO 4º ATO 13 DE JUNHO 5º ATO 17 DE JUNHO


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.