Capela da serra 20140928 memorial rubemalves

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Celebração da Saudade — Memorial Rubem Alves — Capela da Serra, 28 de setembro de 2014

"A saudade é a nossa alma dizendo pra onde ela quer voltar" [Rubem Alves] LITURGIA DA PALAVRA Abertura: [*] Intróito: Pão da Vida [Herzlich Tut Mich Verlangen; Mel.: Hans Leo Hassler (1564-1612); Harm.: Johann Sebastian Bach (1685-1750); Trad.: Rev. Ricardo Holden (1828-1886) — HE 190]

Isaías 35.1-7; 2.4; 9.5-6: [*]

Ah! É preciso não esquecer a saudade. É ela que faz toda a diferença. Deus mora na saudade, ali onde o amor e a ausência se assentam. Ó Cristo! Pão da vida, Descido lá do céu O pão de nossas almas, Que o Pai de amor nos deu! Em ti nos alegramos, Gozando mesmo aqui Do alento e da doçura, Que achamos sempre em ti.

Da eterna e santa vida Da qual tu és o Autor, Sustento e fortaleza És tu também, Senhor. Sem ti não nos assistem Nem forças nem poder; De ti, nosso Alimento, Queremos nós viver.

“Que o deserto e a terra sedenta se alegrem, que as caatingas e os cerrados se regozijem e se transformem em flores! Que se cubram de lírios! Que se regozijem e gritem de prazer! Fortalecei os braços fracos, fortificai os joelhos bambos! Dizei aos ansiosos: Sede fortes, não há razão para medo. Vede, vosso Deus vem... E então... Se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos ouvirão, a língua dos mudos gritará. E nos desertos explodirão fontes de águas, e torrentes cortarão as terras secas. As miragens virarão lagoas, e na terra seca surgirão fontes borbulhantes. E eles transformarão suas espadas em arados e suas lanças em podadeiras. E as botas dos que pelejam com ruído serão queimadas ao fogo.”

♫ Per crucem: [Jean Berthier (Comunidade de Taizé)]

Per crucem et pacionem tuam, Libera nos Domine, Domine. Per sanctam resurrectionem tuam, Libera nos Domine, Domine.

[Por tua cruz e paixão] [Liberta-nos, Senhor] [Por tua santa ressurreição] [Liberta-nos, Senhor]


2 Mateus 5.3-10: [*]

♫ Hágios hò Theós: [Cântico litúrgico da tradição Ortodoxa] Palavras e transubstanciações: “Os Ipês estão Floridos" [Rubem Alves (alocução: Luiz C. Ramos)]

“Bem-aventurados os que têm saudade de Deus; o Reino dos Céus lhes pertence. Bem-aventurados os tristes; consolo lhes será dado. Bem-aventurados os de espírito manso; a terra lhes será dada por posse. Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede de justiça; eles serão satisfeitos. Bem aventurados aqueles que mostram misericórdia; porque eles receberão misericórdia. Bem-aventurados aqueles cujos corações são puros; eles verão a Deus. Bem-aventurados os que lutam pela paz; Deus os chamará de filhos. Bem-aventurados aqueles que têm sofrido perseguição por causa da justiça; o Reino dos Céus lhes pertence.” Hágios hò Theós. [Santo Deus] Hágios ischirós. [Santo e poderoso] Hágios athanatós. [Santo e imortal] Eléison hymás. [Tem piedade de nós.] “Conheci os ipês na minha infância, em Minas, os pastos queimados pela geada, a poeira subindo das estradas secas e, no meio dos campos, os ipês solitários, colorindo o inverno de alegria. O tempo era diferente, moroso como as vacas que voltam em fim de tarde. As coisas andavam ao ritmo da própria vida, nos seus giros naturais. Mas agora, de repente, esta árvore de outros espaços irrompe no meio do asfalto, interrompe o tempo urbano de semáforos, buzinas e ultrapassagens, e eu tenho de parar ante esta aparição do outro mundo. Como aconteceu com Moisés, que pastoreava os rebanhos do sogro, e viu um arbusto pegando fogo, sem se consumir. Ao se aproximar para ver melhor, ouviu uma voz que dizia: “Tira as sandálias dos teus pés, pois a terra em que pisas é santa”. Acho que não foi sarça ardente. Deve ter sido um ipê florido. De fato, algo arde, sem queimar, não na árvore, mas na alma. E concluo que o escritor sagrado estava certo. Também eu acho sacrilégio chegar perto e pisar as milhares de flores caídas, tão lindas, agonizantes, tendo já cumprido sua vocação de amor. “Mas sei que o espaço urbano pensa diferente. O que é milagre para alguns é canseira para a vassoura de outros. Melhor o cimento limpo que a copa colorida. Lembro-me de um pé de ipê, indefeso, com sua casca cortada a toda volta. Meses depois, estava morto, seco. Mas não importa. O ritual de amor no inverno espalhará sementes pela terra e a vida triunfará sobre a morte, o verde arrebentará o asfalto. A despeito de toda a nossa loucura, os ipês continuam fiéis à sua vocação de beleza, e nos esperarão tranquilos. Ainda haverá de vir um tempo em que os homens e a natureza conviverão em harmonia. “Agora são os ipês rosa. Depois virão os amarelos. Por fim, os brancos. “Cada um dizendo uma coisa diferente. Três partes de uma brincadeira musical, que certamente teria sido composta por Vivaldi ou Mozart, se tivessem vivido aqui. “Primeiro movimento, “Ipê Rosa”, andante tranquilo, como o coral de Bach que descreve as ovelhas pastando. Ouve-se o som rural do órgão. “Segundo movimento, “Ipê Amarelo”, rondo vivace, em que os metais, cores parecidas com as do ipê, fazem soar a exuberância da vida. “Terceiro movimento, “Ipê Branco”, moderato, em que os violoncelos falam de paz e esperança. Penso que os ipês são uma metáfora do que poderíamos ser. Seria bom se pudéssemos nos abrir para o amor no inverno…”

Afirmação de fé:

♫ Aleluia Cristo é Vivo: [Letra: Katharina Amalia Dorothea von Schlegel (1752); Trad.: Isaac Nicolau Salum (1940) e Jane Laurie Borthwick (1855); Música: Johan Julius Christian Sibelius (18651957)]

“Creio na ressurreição do corpo...” Corpo para sempre; face do Espírito. Corpo com sede, corpo doente, corpo migrante, corpo com fome, corpo na prisão... Corpo: santuário, altar, hóstia. Santo dos santos... Corpo de Deus, Cristo. Nós. Eu. Descansa, ó alma, eis o Senhor ao lado; Paciente leva, e sem queixar-te, a cruz. Deixa o Senhor tomar de ti cuidado: Ele não muda, o teu fiel Jesus! Prossegue, ó alma: o Amigo celestial Protegerá teus passos no espinhal!

Prossegue, ó alma: O trilho é estreito e escuro Mas no passado Deus guiou-te assim! Confia agora a Deus o teu futuro, Que esse mistério há de aclarar-se enfim. Confia, ó alma: a sua mansa voz Ainda acalma o vento e o mar feroz!

Confia, ó alma: a hora vem chegando, Irás com Cristo, o teu Senhor, morar. Sem dor nem mágoas gozarás, cantando, As alegrias do celeste lar; Descansa, ó alma; agora há pranto e há dor, Depois o gozo, a paz, o céu de amor!


3 LITURGIA DO PÃO Ofertório Mistério da fé/saudade: [*]

[Em silêncio...] Deus, para falar de si, tornou-se homem... A palavra se fez carne.... É mistério. Deus, invisível como Deus, se torna visível como desejo, e vai virando coisa, gente, gesto: as mãos dadas, a criança brincando na bica d’água, o pobre que come o seu pão, o sozinho que tem com quem falar, o fraco que não precisa mais se encolher, as plantas que nascem, cercas que são desmontadas, as prisões são abertas, [...], os desertos se transformam em jardins, os velhos, sem medo da velhice, e os instrumentos de dor e de morte, invenções da maldade, são transformados em fogueira... a ressurreição do corpo, os sorrisos de prazer, a liberdade, os campos cobertos de trigo e o feijão, balançando, sob a brisa, e as vinhas carregadas de uvas, a expulsão final do medo, a vida eterna...

♫ Sanctus: [Cânticos da liturgia eucarística de Liséte Espíndola] Memorial/saudade: [*]

Santo, Santo, Santo, Senhor Deus onipotente, Terra e céus estão cheios da tua glória, Glória a ti Senhor! “Durante a ceia, Jesus tomou o pão, pronunciou as palavras de bendição, quebrou-o, deu-o aos discípulos, juntamente com as palavras: ‘Segurai-o e comei-o; isto é o meu corpo.’ A seguir tomou uma taça e, havendo oferecido a Deus ações de graças, deu-a aos mesmos discípulos, com as palavras: ‘Bebei dela, cada um de vós. Pois isto é o meu sangue... E eu vos digo: Nunca mais beberei do fruto das videiras até aquele dia em que, no Reino de meu Pai, eu dele beber, convosco’...” ♫ Bendito sejas para sempre!

Sacramento: [*]

Coisa bonita esta: que haja coisas que são mais que coisas, coisas que nos fazem lembrar… A flor seca dentro do livro. Às vezes, um perfume que a gente sente, andando na rua. E, lá do fundo, vem a estranha sensação de estarmos ligados, por aquele perfume, a alguém, a algum lugar, longe, no passado. O repicar de um sino que me leva para mundos onde nunca estive. O cantar de um galo, que nos vem de espaços que não mais existem. Ou um brinquedo, uma boneca velha, esquecida. Uma comida, com gosto de saudade. Coisas presentes que nos abrem o mundo das ausências… Saudade não será isto? A saudade nasce quando existe amor e ausência. ♫ Bendito sejas para sempre! Quando as coisas despertam saudades e fazem brotar, no coração, a memória do amor e o desejo da volta, dizemos que são sacramentos. Sacramento é isto: sinal visível de uma ausência, símbolo que nos faz pensar em retorno. Como aconteceu com Jesus que, logo antes da partida, realizou um memorial de saudade e espera. Juntou seus amigos, seguidores, partiu o pão e lhes deu de comer, tomou o vinho e com eles bebeu dizendo que, depois daquilo, viria a separação e a saudade. Eles seriam como uma noiva de quem o noivo é roubado… Tempo de lágrimas, de espera… E, por onde quer que fossem encontrariam os sinais de uma Ausência imensa… E o coração ficaria inquieto, sem descanso… E cada palavra sua se transformaria numa oração, porque oração é a palavra balbuciada com desejo… [e saudade!] ♫ Bendito sejas para sempre!

Comunhão/conspiração: [*]

Ninguém ceia sozinho. Há um partir, um distribuir, mãos que se tocam, olhares que se encontram. E, em tudo isto, sensação como se fosse de uma conspiração. Conspiração, palavra bonita de origens esquecidas. Conspirar, com-inspirar, respirar com alguém, junto. Conspiradores: respiram o mesmo ar. Jesus e os discípulos, comendo o pão e bebendo o vinho, respiravam o mesmo ar: corpos ali, colados uns aos outros; e também o desejo e o amor — principalmente o seu desejo e o seu amor. Come-se a ceia, surge a mágica, os fios invisíveis da saudade e da espera são lançados e, a partir dali, dão-se as mãos os homens e as mulheres que têm, nos olhos, aquela marca triste-alegre da saudade da esperança. Como deve ser com qualquer que ame e esteja longe e nada tenha nas mãos a não ser a flor seca, o poema, as memórias, uma palavra…


4 É assim a comunidade dos cristãos, esta coisa que se chama igreja: juntos, conspirando, mãos dadas, comem o pão, bebem o vinho, e sentem uma saudade/esperança sem fim… ♫ Cântico eucarístico: Porque o Senhor é bom [Letra e Música: Liséte Espíndola]

Ele ampara os pobres e a cada dia sobre a mesa dá o pão Porque o Senhor é bom Oh, aleluia! Oh, aleluia! Oh, alelu, aleluia! Porque o Senhor é bom! E aos que sofrem dores Traz esperança e com ternura dá a paz Porque o Senhor é bom

Prece: [*]

Ó Deus: Assim como os discípulos ouviram as palavras de promessa de Cristo, e passaram a comer o pão e a beber o vinho na dor de uma saudade e na alegria de uma esperança, concede que ouçamos tuas palavras, pronunciadas junto a cada coisa do nosso dia a dia. O café, à nossa mesa, pela manhã; o gesto simples de abrir a porta para sair, livre; os gritos das crianças, nas praças; uma canção conhecida, cantarolada por um rosto desconhecido; uma árvore amiga, que ainda não foi cortada... Que as coisas simples nos falem da tua misericórdia e nos digam que a vida pode ser boa. Que estas dádivas sacramentais nos façam lembrar daqueles que não as recebem, que têm sua vida cortada, cada dia, no pão ausente da mesa; na porta de prisão, de hospital, de asilo, que não se abre; na criança triste, pés sem sapatos, olhos sem esperança; nos hinos de guerra que glorificam a morte; nos desertos onde outrora houve vida... Também Cristo foi sacrificado. E que aprendamos que participamos do sacrifício salvador de Cristo participando do sofrimento dos seus pequeninos. Amém.

♫ Pai Nosso: [Texto litúrgico. adapt. de Mt 6.9-13 por Luiz Carlos Ramos; Música: Roy Oliveira]

Pai nosso que estás no céu, / o teu nome seja santo; Tua vontade seja feita, / assim na terra como no céu. A cada dia dá-nos pão / p’ras nossas dívidas, perdão. Livra-nos do mal / e de toda tentação, Pois teu é o reino, / o poder e a glória, p’ra sempre, p’ra sempre. / Amém.

A essência e a sustância: [*]

“O essencial é invisível aos olhos”, dizia a raposa para o principezinho. [...] E são as palavras que fazem a diferença. Por isto Jesus não deu só o pão e o vinho. Não bastava comer. Era preciso ver, com olhos novos. Comer para ver melhor. E foi por isto que ele realizou a mágica, misturando, no alimento, as palavras de amor e promessa, para curar nossa cegueira. E diz então que o alimento era outra coisa daquilo que parecia ser. Pão e vinho, corpo e sangue, aperitivos de um retorno... Este é o nosso sacramento: pão e vinho. Sentimos saudades juntos. Isto nos torna irmãos.

♫ Bênção: [Texto: Luiz Carlos Ramos; Música: Liséte Espíndola]

Que o amor de Deus te guarde P’ra sempre e sempre, amém! Com a sua graça infinda, amém! E proteja teu caminho, Tua casa e teu irmão [tua irmã], Hoje e sempre, amém!

“Celebração da Saudade: Memorial Rubem Alves, Capela da Serra, Jundiaí, 28 de setembro de 2014”, foi preparada por Luiz Carlos Ramos e é licenciada sob uma Licença Creative Commons Atribuição-­‐ NãoComercial-­‐CompartilhaIgual 3.0 Não Adaptada. Permissões além do escopo dessa licença podem estar disponíveis em http://www.luizcarlosramos.net. Celebrantes: Rev. Luiz Carlos Ramos, Rev. Luciano José de Lima e Pe. Paulo Roberto Rodrigues; Pianista: Liséte Espíndola; Regente: Neusa Cezar e Elenise Ramos; Ambientação: Vastí Ferrari Marques; Fotografia: Carlos Nagumo e Walfrido dos Santos; Diagramação: Luiz Carlos Ramos; Arte do convite: Juliana Mesquita. * Fonte: ALVES, Rubem. Creio na ressurreição do corpo: meditações. 2. ed. Rio de Janeiro: Cedi/Sagarana, 1984. 74 p. il. Responsos eucarísticos de Liséte Espíndola sobre textos litúrgicos tradicionais.

__________________________________________________________________________________________________________________ Para ter acesso a outras liturgias da Capela da Serra e para ver fotos das celebrações anteriores, acesse: http://www.luizcarlosramos.net


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