JOANICE VICENTE CASEMIRO PROCÓPIO
A EDUCAÇÃO METODISTA E O POTENCIAL FORMATIVO DO CANTO COR
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vermelho m e tá s e do. O que i formata Piracicaba, 2014 fo o ã n a aind o o miolo d n s e u q ta os des ritos), Também os e neg c li á it ( to tex detalhes, . s o tr u o e entr tados am forma r fo o ã n ainda
JOANICE VICENTE CASEMIRO PROCÓPIO
A E D U C A Ç Ã O M E TO D I S TA E O P O T E N C I A L F O R M AT I V O D O C A N TO C O R A L D A U N I M E P
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unimep, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação. Campo do conhecimento: Educação: Relações Interpessoais Orientadora: Profa. Dra Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto
PIRACICABA, 2014
Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UNIMEP Bibliotecária: Luciene Cristina Correa Ferreira CRB-8/ 8235 Procópio, Joanice Vicente Casemiro. P963e A educação metodista e o potencial formativo do canto coral da Unimep./ Joanice Vicente Casemiro Procópio. – Piracicaba, SP: [s.n.], 2014. 160 f. ; il. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Ciências Humanas / Programa de Pós-Graduação em Educação - Universidade Metodista de Piracicaba. 2014. Orientador: Dra Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto. Inclui Bibliografia 1. Educação Metodista. 2. Canto Coral. 3. Formação Humana. 4. Relação de Gênero. 5. Perspectiva Histórico-Cultural. I. Ometto, Cláudia Beatriz de Castro Nascimento A.. II. Universidade Metodista de Piracicaba. III Título. CDU 37:287
D E D I C AT Ó R I A
Dedico este trabalho aos meus amados avós, Aparecida (in memoriam) e Américo (in memoriam), pelo exemplo de amor, honestidade, inteligência e sabedoria e por terem despertado em mim a paixão pela música.
“O canto, o canto e ainda o canto. O canto é de uma vez por todas a linguagem pela qual o homem se comunica aos outros musicalmente [...]. O órgão musical mais antigo, o mais verdadeiro, o mais belo, é a voz humana; e é só a este órgão que a música deve a sua existência.” Edgar Willems
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A G R A D E C I M E N TO S
Talvez esta parte do meu trabalho seja a mais importante: agradecer àqueles que fizeram parte da minha trajetória no mestrado. Importante porque reconheço que é por meio do outro que posso ter condições para caminhar, embora seja consciente do meu esforço pessoal, as noites sem dormir, as leituras intermináveis, a ausência da minha presença no convívio familiar, etc. Professor Clóvis Pinto de Castro, a quem aproveito o espaço para agradecer, em seu artigo intitulado “Dívida de gratidão” afirma que “para se sentir grato, precisamos tomar consciência daquilo que nos acontece e do que temos. Somente alguém com a ciência para notar – e contar – o seu crescimento emocional, material e espiritual é capaz de enxergar e sentir um profundo senso de respeito e satisfação diante do mundo”. Portanto, compactuando com Castro, reconheço que “Não há no mundo exagero mais belo que a gratidão” (Jean de La Bruyere). Por isso, deixo neste espaço externalizada a minha consciência de ser grata. Foi importante dedicar-me ao mestrado durante esses últimos dois anos, não somente pelos novos e preciosos conhecimentos adquiridos, mas, de maneira especial, pelas pessoas que, de alguma forma, estiveram presentes em minha vida. 9
Assim primeiramente, faço agradecimentos especiais àqueles que foram muito importantes para mim, mas que hoje estão nos braços do Senhor. Aos meus queridos avós, Cida e Merco, por terem me dado o privilégio da convivência e por sempre terem mantido o olhar que expressava: “confiamos em você”. Ao Prof. Dr. Elias Boaventura, por nunca ter deixado de acreditar que as possibilidades para a realização deste trabalho eram possíveis. Ao Prof. Dr. Nabor Nunes Filho, pelas conversas intermináveis e pelo apoio público. Na sequência, direciono meus agradecimentos àqueles que tiveram participação especial nesta minha jornada acadêmica. Aos meus pais, Eunice e João, por terem me desejado e amado e pela possibilidade da viabilidade dos meus estudos, de forma especial a música. Ao meu marido e ao meu enteado, Li e Jhony, presenças sempre indispensáveis na alegria e na tristeza. À Juliana, pela amizade, companheirismo e por ter, em muitos momentos, emprestado seus braços e pernas quando não foi possível usar os meus, bem como pelo incansável apoio nas reflexões. À Mariana, pelo convívio e pelo apoio de sempre. Aos meus irmãos, Joana, João Vicente e Maria Luiza, pelas diferenças e afinidades. À Profa. Dra. Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto, por ter me acolhido na ausência do professor Elias e pela coragem de me deixar mostrar a paixão pela música. Aos professores da banca examinadora: Profa. Dra. Luzia Batista de Oliveira Silva e Prof. Dr. Luiz Carlos Ramos,
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pelo olhar cuidadoso com questões que, embora práticas, sejam essenciais a este estudo e à minha formação. À Helen Luce, por ter confiado no meu trabalho e pela amizade. À Luciene, responsável pela biblioteca Unimep campus Taquaral, pela confiança e disponibilidade. À Profa. Dra. Maria Guiomar Carneiro Tomazello, pelo privilégio do convívio e pelas dicas sempre preciosas. À Profa. Dra. Anna Maria Lunardi Padilha por ter me instigado e desafiado nos caminhos da academia. Ao Prof. Dr. Almir de Souza Maia, por ter ajudado a descobrir caminhos não somente para a construção deste trabalho, mas para a minha vida. À Profa. Dra. Rosa Gitana Krob Meneghetti, pela amizade, pelas conversas sempre elucidativas e, principalmente, pela identificação. À coordenação do Núcleo Universitário de Cultura (NUC), pelo apoio e flexibilidade, especialmente à Profa. Ma. Joceli Cerqueira Lazier. À pastora Ione da Silva, pela assistência e apoio em todos os momentos, de forma especial nos mais difíceis. Ao maestro Umberto Cantoni, por ser personagem principal de grande importância na viabilização da cultura na Unimep. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unimep (PPGE), pelos ensinamentos ao longo do caminho. À secretaria do PPGE, em especial, à Angelise, pela paciência, prontidão e por sempre querer colaborar. Aos colegas do PPGE, que foram de extrema importância para as reflexões em sala de aula, de forma especial à minha amiga Deuza dos Santos Camargo. 11
Aos alunos cantores do coral Unimep, pela disponibilidade em participar desta pesquisa e pelo privilégio do convívio. À Profa. Dra. Sonia Dechen, por ser referência de comprometimento e dedicação. Ao coro Reverendo James Willian Koger, por ter me disponibilizado o espaço para o aprimoramento da minha formação. A todos que direta ou indiretamente colaboraram para a elaboração e sucesso deste trabalho.
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RESUMO
Este trabalho toma como objeto de estudo a educação metodista e, de forma mais específica, tem como objetivo apreender indícios acerca da formação da subjetividade pela experiência do canto coral na Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Esta pesquisa justifica-se por acreditar que a arte é potencialmente forte como processo educativo e, por isso mesmo, constitutiva de subjetividades. Nesse sentido, buscou-se indícios da contribuição do coro Unimep para a busca da identidade metodista brasileira, de forma especial na cidade de Piracicaba, Estado de São Paulo. Para demostrar a hipótese, apresentou-se o nascedouro do movimento metodista, apontou-se sua passagem pelos Estados Unidos e a chegada do metodismo em terras brasileiras. Ademais, buscou-se compreender o contexto da criação da referida Universidade, bem como algumas considerações sobre a criação do coro Unimep. Adotou-se, como referencial teórico, a perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano de Vigotski, a qual postula a natureza social e histórica do desenvolvimento humano como um processo cultural e semiótico. Metodologicamente, optou-se pela produção dos dados por meio de questionários enviados e recebidos via e-mail. Procurou-se trabalhar com a possibilidade (ou não) de que 13
os respondentes pudessem estabelecer alguma relação de que a prática do canto coral, como atividade artística, possibilitaria, pela relação estabelecida com o(s) outro(s) e com produtos culturais artísticos, uma fértil fonte de sentidos e significados, contribuindo assim para a formação do(s) sujeito(s). De acordo com os resultados obtidos, observou-se as evidências dos enunciados sobre a motivação para ingresso e permanência no coro Unimep. Verificou-se também a possível relação entre memória e memória afetiva, ou seja, aquela vivenciada a partir da experiência estética. Outro ponto de destaque foi à apresentação da seleção de alguns relatos evidenciando as conexões estabelecidas pelos respondentes sobre a experiência vivenciada no referido coro e sua relação com outros aspectos da vida. As análises permitiram identificar a contribuição do canto coral para a constituição da subjetividade. Diante do exposto, assumiu-se a música como uma forma de linguagem, bem como uma concepção enunciativo-discursiva da linguagem. Palavras-chave: Educação metodista. Canto coral. Formação humana. Perspectiva histórico-cultural.
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ABSTRACT
This work has as objective to study the Methodist education and, more specifically, aims at to apprehend grasp traces about the subjectivity formation through the choral singing experience in the Methodist University of Piracicaba (Unimep). This research is justified by the understanding that art is potentially strong as educational process and, therefore, constitutive of subjectivities. It is also believed that the choir Unimep contributed to the pursuit of the Brazilian Methodist identity, especially in Piracicaba city, State of Sao Paulo. Moreover it presents the birthplace of the Methodist movement, it is points its passage by the United States and the arrival of Methodism in Brazilian lands. Furthermore, we seek to understand the context of the creation of this University, as well as some considerations about the creation of the choir Unimep. It was adopted as a theoretical framework, the Vygotsky historical and cultural perspective of human development, which postulates the social and historical nature of human development as a cultural and semiotic process. Methodologically, we chose the production data through questionnaires sent and received through email. We tried to work with or without the possibility that respondents could establish some relation to the practice of choral singing as artistic activity, would allow by the relationship    15
established with the other (s) peoples and with artistic and cultural products, fertile source of senses and meanings, thus contributing to the formation of subject (s). According to the results, there was evidence of statements about the motivation to enter and remain in the choir Unimep. There was also a possible relationship between memory and affective memory, that is, that experienced from the aesthetic experience. Another highlight was the presentation of the selection of some reports evidencing the connections established by the respondents about the lived experience in that choir and its relation to other aspects of life. The analysis allows identifying the contribution of choral singing for the constitution of subjectivity. Given the above, took up music as a form of language, as well as declarative-discursive language conception. Keywords: Methodist Education. Choral singing. Human formation. Cultural-historical perspective.
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L I S TA D E G R Á F I C O S
Gráfico 1 – Distribuição percentual dos respondentes de acordo com a faixa etária 104 Gráfico 2 – Distribuição percentual dos respondentes segundo o gênero 104 Gráfico 3 – Distribuição percentual dos respondentes segundo a área de formação 105 Gráfico 4 – Distribuição percentual dos respondentes segundo a área de atuação profissional 105 Gráfico 5 – Distribuição percentual dos entrevistados segundo o ramo de atividade em que atuam 106 Gráfico 6 – Distribuição percentual dos entrevistados de acordo com contato com a música antes do ingresso no coral Unimep 107 Gráfico 7 – Distribuição percentual dos respondentes que tiveram contato com a música antes do ingresso na Unimep segundo o tipo de atividade musica 107 Gráfico 8 – Distribuição percentual dos respondentes de acordo com o estilo de música que se recordam 108 Gráfico 9 – Distribuição percentual dos respondentes segundo o tempo de permanência no coral durante a década de 1980 109 Gráfico 10 – Distribuição percentual dos respondentes segundo o tempo de permanência no coral durante a década de 1990 109 Gráfico 11 – Distribuição percentual dos respondentes segundo o tempo de permanência no coral durante a década de 2000 110 Gráfico 12 – Distribuição percentual dos respondentes segundo o tempo de permanência no coral durante o período de 2011 a 2013 110 Gráfico 13 – Distribuição percentual dos respondentes segundo a motivação para o ingresso no coral 111
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Gráfico 14 – Distribuição percentual dos respondentes de acordo com a motivação para a permanência no coral 112 Gráfico 15 – Distribuição percentual dos respondentes segundo a relação de proximidade que mantêm ou não com a música após a saída do coral 112 Gráfico 16 – Distribuição percentual dos respondentes segundo os aspectos da vida profissional, acadêmica e pessoal influenciados pela prática do canto no coral 114
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L I S TA D E Q U A D R O S
Quadro 1 – Questões do questionário enviado
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L I S TA D E TA B E L A S
Tabela 1 –Trabalhos consultados no site da Capes conforme palavras-chave 40 Tabela 2 – Periódicos da área de educação consultados no site do Scielo Brasil 42 Tabela 3 – Revistas consultadas na biblioteca do campus Taquaral da Unimep 44 Tabela 4 – Processo de pesquisa voltado aos ex-coralistas Tabela 5 – Processo de pesquisa voltado aos atuais coralistas
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99 100
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L I S TA D E S I G L A S E A B R E V I AT U R A S
ABEM
Associação Brasileira de Educação Musical
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Cepeme Centro de Estudos e Pesquisas sobre Metodismo e Educação DEIM
Diretrizes para a Educação da Igreja Metodista
EUA
Estados Unidos da América do Norte
IEP
Instituto Educacional Piracicabano
MPB
Música Popular Brasileira
NUC
Núcleo Universitário de Cultura
PVM
Plano para a Vida e a Missão da Igreja Metodista
Umesp Universidade Metodista de São Paulo Unimep Universidade Metodista de Piracicaba Univali Universidade do Vale do Itajaí
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SUMÁRIO
À GUISA DE INTRODUÇÃO: COMO CHEGUEI À PESQUISA E AOS SEUS OBJETIVOS
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Do diálogo com estudos já realizados sobre a temática
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CAPÍTULO I O UNIVERSO CONCEITUAL DO OBJETO DE REFLEXÃO
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CAPÍTULO II A MÚSICA E A RELAÇÃO COM A EDUCAÇÃO METODISTA NA UNIMEP
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2.1 Da Teologia de John e Charles Wesley: uma perspectiva do compromisso social e de sua produção 62 2.2 Da Importância da Música na Proposta de Educação Metodista na Inglaterra 71 2.3 Chegada aos EUA do Movimento Metodista: Novos Rumos
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2.4cDa Busca da Identidade Metodista Brasileira pelo Trabalho Educacional 75 CAPÍTULO II DO METODISMO AO CANTO CORAL DA UNIMEP
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3.1 O Coro da Unimep como Expressão da Identidade Musical Metodista 86 CAPÍTULO IV DA PRODUÇÃO DOS DADOS AO PROCESSO DE ANÁLISE: O PERCURSO TRILHADO
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4.1 A Escolha do Caminho
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4.2 A Produção dos Dados
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4.3 Apresentação dos Dados Compilados
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4.4 Um Olhar mais Acurado para os Dados: a Busca da Compreensão do Potencial Educativo do Coral 114
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4.4.1 Ingresso e permanência no coral
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4.4.2 Importância do repertório para a memória musical
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4.4.3 Potencial formativo da música e sua relação com a vida dos participantes do coral
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS 148 WEBGRAFIA 158
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À GUISA DE INTRODUÇÃO: COMO CHEGUEI À PESQUISA E AOS SEUS OBJETIVOS
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esde muito cedo, por volta
de três anos de idade, fui apresentada à música pelos meus avós maternos, embora inicialmente a presença da avó tenha se destacado nessa relação. A eles, dedico eterna gratidão. Nos atuais estudos acerca do letramento, tem-se destacado a importância da leitura noturna para crianças. Sobre isso, pesquisas de Mary Aizaw Kato (1994, 1986), Angela B. Kleiman (2009, 2005), Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias (2010), Maria do Rosário Longo Mortatti (2004, 2000) e Marta Kohl de Oliveira (2003) revelam a potencialidade dessas leituras no desenvolvimento dos sujeitos e na constituição da subjetividade, a qual, segundo Kátia Maheirie (2003, p. 153), “[...] é a dimensão que dialetiza a opacidade, fazendo com que o sujeito se relacione com a objetividade produzindo sentidos”. Minha avó, que não havia estudado sobre essas questões, era sábia, pois tinha um hábito oriundo de sua criação protestante: ler para ela um trecho aleatório da Bíblia toda noite, quando ainda não estava alfabetizada. Na sequência, após as orações, ela me deixava escolher uma 27
fita cassete entre as várias que possuía guardadas em um belo bauzinho de madeira clara, e, assim, ficavam um bom tempo ouvindo músicas deitadas, prontas para dormir. Recordo-me que, muitas vezes, retornava a uma fita específica e ficava aguardando quietinha, em silêncio, já deitada, com as luzes apagadas, a última música dessa fita. E depois da admiração pela emoção que aqueles sons provocavam, perguntava-me: “Como será que se faz isso...? Um dia, gostaria muito de aprender como é que se faz algo tão belo assim!” Diante dessa comunhão entre as experiências vividas no contexto com meus avós e a música, bem como buscando compreender as reflexões trazidas neste trabalho, adotei a perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano. Em consonância com essa perspectiva, Lavínia Lopes de Oliveira Mangiolino (2004, p. 60) considera que [...] as emoções humanas participam [da] organização interfuncional do psiquismo, dos processos mentais superiores, afetando-os e constituindo-os. Neste processo, as emoções vão se tornando mais complexas, vão se distanciando do plano dos instintos, e só podem ser compreendidas no plano das interações sociais, marcadas, portanto, pela mediação semiótica, pelas formas de linguagem, constitutivas dos seres humanos.
Valho-me desta citação para ressaltar a ideia que partilho acerca da organização interfuncional do psiquismo, bem como dos processos mentais superiores, a qual se refere à importância das emoções humanas para a constituição da subjetividade, assunto que discorrerei no momento oportuno. Voltando à fita específica citada anteriormente, a última música da sequência era Aleluia de Händel, composição 28
que é o 41º movimento dos 51º movimentos do oratório Messias1, cuja autoria é do compositor alemão naturalizado britânico Georg Friedrich Händel2. Muito provavelmente essa obra do período barroco3 é a mais famosa criação do compositor e está entre as mais populares obras corais da literatura ocidental. Na época do convívio com minha avó eu não sabia que, nessa peça, o compositor narra a vida de Jesus Cristo desde sua anunciação profética, seu nascimento e vida e expressa também a alegria pela vitória do Messias sobre a morte e o pecado, bem como a realização de todas as profecias e a ascensão ao céu. Nesse sentido, é possível afirmar que a música é uma linguagem portadora de sentidos, uma vez que traz mar-
1 “O oratório é uma obra escrita para orquestra, coro e solista e adota como enredo histórias narrada na Bíblia. Em sua performance, não trabalha com cenários, ações ou costumes especiais, sendo este um ponto que o diferencia da ópera.” (SILVA, 2013, p. 33, on-line). 2 “Händel nasceu em Halle, Alemanha, em 1685. Quando criança, era considerado um ‘menino prodígio’. Sua formação musical foi também adquirida ao longo de suas viagens pela Europa como violinista e cravista, o que resultou no enriquecimento de sua obra com um cosmopolitismo impensável em outros compositores barrocos. Com o sucesso de suas óperas, Händel compreendeu que o melhor local para aprender esse gênero era a Itália, onde passou a viver durante três anos. Em 1710, estabeleceu-se em Londres e alguns meses depois estreou sua ópera ‘Rinaldo’, gênero que continuaria compondo, obtendo igualmente êxitos e fracassos. Em 1720, foi nomeado diretor da Royal Academy of Music, casa de ópera fundada por alguns nobres ingleses para revitalizar o gênero na Inglaterra. Händel passou, então, a viajar por toda a Europa em busca de artistas e compositores para futuras produções. Apesar do êxito obtido com Giulio Cesare (1724) e Rosalinda (1725), parte do público inglês não se sentia satisfeito com o modelo italiano, considerado por eles já esgotado. Desapontamentos, fadiga, a ferrenha oposição e vaidade de seus rivais, sobre os quais no final ele triunfou, tudo isso fez com que o compositor se voltasse para os oratórios, gênero que já havia cultivado no passado. O seu Messiah (1742) é considerado sua obra-prima por excelência.” (VIANA, 2013, p. 80, on-line). 3 “O espírito do período barroco na música, na pintura e na arquitetura caracterizou-se pela teatralidade, pelo trágico, pelo luto, pela morte, pela grandiosidade e pelos efeitos de brilho. O barroco nasceu na Itália como consequência da Contra-Reforma, com o objetivo de reconquistar, por meio do impacto cultural, a influência da Igreja Católica. Seus ideais estéticos se espalham por toda a Europa, em todas as artes.” (MEDAGLIA, 2008, p. 323).
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cas de tempos e espaços específicos que se materializam, embora seja importante ressaltar que a ideia de música como linguagem não é consenso. A educadora musical Maura Penna (2008, p. 65) corrobora com meu pensamento quando afirma que [...] a noção de arte como linguagem tem sido útil, direcionando uma perspectiva de atuação pedagógica, na medida em que permite combater o mito do dom e colocar questões como as condições de familiarização com as linguagens artísticas e o acesso socialmente diferenciado à arte.
Segundo Júlio Medaglia (2008), a música de Händel é uma mistura dos estilos nacionais, alemão e inglês, e revela características do estilo barroco mais maduro: maior rigor formal, estruturas definidas, ornamentação melódica, fraseados padronizados, ritmos regulares e certa motricidade no fraseado, contrastes de tempo4, de timbres5 e de formação diversa de intérpretes. Händel compunha músicas predominantemente homofônicas e gostava de acentuar os finais com efeitos especiais, grandes pausas que precediam o grand finale e frases bem cadenciadas e solenes ao término da obra. Conforme Moisés Rotth Cantos (2001), a externalização do que Händel pensava e sentia, bem como o contexto social no qual estava inserido, certamente estão presentes em toda a sua obra, permitindo-nos, assim, vivenciar um pouco o retrato do que ocorria interna e externamente naquela época. De fato, uma peça musical reflete as emoções do compositor e as circunstâncias pelas quais ele está passando, 4 “Velocidade em que uma música deve ser executada, indicada pelos termos italianos andante, alegro, moderato, largo etc.” (MEDAGLIA, 2008, p. 323). 5 “Cor sonora.” (MEDAGLIA, 2008, p. 323).
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tal como nos propõe Lev Semenovitch Vygotskyi6 (1984), ou seja, ao olhar para o movimento do sujeito, há de se situá-lo historicamente. Händel não foge à regra. Antônio Gramsci (1966, p. 13-14) afirma que, Se for verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção de mundo e de uma cultura, será igualmente verdade, que, a partir da linguagem de cada um, é possível julgar da maior ou menor complexidade de sua compreensão do mundo.
Portanto, produzida por sujeitos em condições culturais singulares, a música pode ser compreendida como atividade de interação especificamente humana e portadora de conhecimentos históricos e situados. Assim, cada compositor deixa suas marcas em suas músicas, da mesma forma como foi marcado pelo seu tempo. Em Grande Sertão: Veredas, João Guimaraes Rosa (1994) nos ensina que uma das coisas mais belas no mundo é que o homem nunca está acabado, nunca está terminado, seu processo de constituição só finda no encerramento da vida. E essa concepção pode ser nossa maior alegria, uma vez que podemos mudar e alterar o curso de nossas vidas pelas práticas culturais. Dada à beleza da construção de linguagem do autor, faço a opção por trazer para este texto suas palavras: O senhor... mire, veja! o mais importante e bonito, do mundo, é isto! que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. E o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão (ROSA, 1994, p. 18). 6 Estudiosos grafam o nome do autor Vigotski de várias maneiras (Vygotsky, Vigotski ou Vigotsky) devido às diferentes traduções das obras do autor. Neste trabalho, faço a opção pela grafia Vigotski; no entanto, nos momentos em que realizar citação direta, preservarei as grafias utilizadas pelos autores das obras por mim consultadas.
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O compositor, como autor da obra, projeta seus ouvintes supostos e, nesse sentido, estes se inscreverão na própria organização musical, orientando as escolhas rítmicas e melódicas do autor, que se materializará na grafia da partitura e, posteriormente, no som produzido pelo seu intérprete. Entendo aqui intérprete por aquele sujeito que, mais do que lê as notas e com excelente habilidade técnica, executa a partitura e interpreta a música do compositor envolvido na essência da própria música. Dessa maneira, provoca naquele que ouve a sensação de agradável ou não, como experiência que abrange o belo e o não belo. Maria Flávia Silveira Barbosa (2001) estabelece uma relação entre a leitura da partitura e a leitura de um texto. Tomando como referência João Wanderley Geraldi, a autora explicita que, entre as concepções de texto explanadas pelo autor, compactua com uma concepção na qual os sujeitos são ativos interlocutores, e não apenas decodificadores. Segundo Barbosa (2001, p. 3), A partitura é o texto musical escrito, e, de modo geral, contém a maioria das informações necessárias à sua execução: as alturas7 (sons), as durações, os silêncios, os ritmos, as variações de intensidade (forte ou fraco), os instrumentos envolvidos, as variações de andamento (velocidades) etc. Contudo, uma leitura (execução) satisfatória deste texto não deve resumir-se a mera decodificação, assim como a compreensão de um texto (sequencia verbal escrita) é mais que a emissão correta de palavras.
7 Altura é, segundo o Dicionário Oxford de Música, a “localização de um som na escala tonal, dependendo da velocidade, da vibração, da fonte de produção sonora. As vibrações rápidas produzem os sons agudos, e as lentas os sons graves.” (KENNEDY, 1994, p. 29).
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Em sua tese de doutorado, Barbosa (2009, p. 2) retoma essa questão afirmando que não é exatamente o fato de tocar de modo correto as notas e os ritmos que distingue uma boa execução de uma execução medíocre. No tocante a essa questão, Vigotski (1991, p. 119) é enfático ao afirmar que decodificar apenas e desenvolver a habilidade técnica não basta: [...] o desenvolvimento de uma habilidade técnica, como, por exemplo, o tocar piano: o aluno desenvolve a destreza de seus dedos e aprende quais teclas deve tocar ao mesmo tempo que lê a partitura; no entanto, ele não está, de forma nenhuma, envolvido na essência da própria música.
Ou seja, tal como na leitura de um texto, não basta que o sujeito tenha a técnica e a habilidade de decodificar as letras, o importante é que haja a compreensão, o sujeito precisa estar envolvido com o texto, compreendendo, inclusive, o contexto de produção do próprio texto. Há, também, o ouvinte real, que, ao se deparar com o som produzido, significa-o ativamente, uma vez que a arte se mantém nas possibilidades de sua apreciação, que poderão ser agradáveis ou não. No meu caso, apreciava Aleluia marcada por uma condição específica oriunda da relação que tinha com a avó. Tal relação era portadora de sentidos que por sua vez mediavam, a partir das músicas que ouvia, novos sentidos. No entanto, naquela época eu ainda não me dava conta de toda essa dimensão que a vida e a obra comportam. Parece que minha vivência musical aconteceu paralela e concomitantemente ao universo da leitura, mediada pelo contexto religioso. Se letramento pode ser um conceito entendido como prática social de uso da leitura e da escrita, ouso fazer uma analogia dizendo que vivi um processo de 33
“letramento” musical, uma vez que não só ouvia as fitas da avó, mas, com o passar do tempo, além de ouvir, passei a cantar, tocar e reger. Analisando agora essa vivência a partir da perspectiva histórico-cultural e considerando os estudos realizados no mestrado, é possível afirmar a ação do sujeito sobre o objeto de conhecimento. Para mim, a música é mediada socialmente pelo outro e pelo signo. Nesse sentido, aponta-nos Roseli Fontana e Nazaré Cruz (1991, p. 7): [...] é no curso das relações sociais (atividade inter-pessoal) que os sujeitos produzem, se apropriam (de) e transformam as diferentes atividades práticas e simbólicas em circulação na sociedade em que vivem, e as internalizam como modo de ação/elaboração ‘próprios’ (atividade intra-pessoal), constituindo-se como sujeitos.
A relação interpessoal que se deu no contexto das relações com minha avó e com a experiência da fé mediou minhas apropriações que foram sendo internalizadas, passando para o plano intrapessoal e se constituindo como atividade voluntária. Continua Fontana e Cruz (1991, p. 8) expondo que, Neste processo de individuação pelo outro, o sujeito re-constrói internamente os modos de ação externos compartilhados. Essa reconstrução tem como base a mediação semiótica (particularmente a linguagem), e envolve as ações do sujeito, as estratégias e conhecimentos por ele já dominados, as ações, estratégias e conhecimentos do(s) outro(s) e as condições sociais reais de produção da(s) interação(ões). Ao serem internalizados, os modos de ação, papéis e funções sociais (na interação) passam para o controle do sujeito, possibilitando-lhe dirigir o próprio comportamento. Essa possibilidade de controle e direção do próprio comportamento – a autonomia do sujeito – é um dos aspectos essenciais do desenvolvimento, uma vez que redimensiona e re-organiza a atividade mental. As funções psicológicas elementares (con-
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ceito utilizado por Vigotsky para referir-se às funções psicológicas que vêm do capital genético da espécie, da maturação biológica) vão sendo transformadas em funções mediadas, conscientes, deliberadas.
A nossa história, o nosso passado, os afetos que recebemos certamente nos constituem. E comigo não foi diferente. Esta experiência afetiva/musical/religiosa certamente me constituiu e me possibilitou a produção de diversos outros sentidos da e sobre a vivência musical, a qual, por sua vez, mediou minha relação com o mundo e no mundo. Hugo Assmann (1993, p. 101, grifos do autor) define que Somos história e não apenas natureza. Somos duplamente tempo: tempo cronológico, que se mede no relógio (chronos) e tempo único, intenso, existencial (‘duração’, durée; kairós, ‘hora da graça’). Não somos pedras, não somos máquinas, não somos estátuas. Somos energia desatada em movimentos.
Desde muito antes das lembranças que guardo na memória, já existia a vontade de tocar piano na igreja, nos cultos aos domingos. Esse desejo foi alimentado em mim por meus familiares e por aquelas músicas noturnas que ouvíamos juntos. No início da adolescência, já bastante avançada nos estudos de piano, comecei a incomodar-me com o estudo solitário desse instrumento; pois me faltava interação com outras pessoas. Hoje, reconheço que foi no processo interativo, no vivido intersubjetivamente, que pude internalizar modos, costumes, preferências, ou seja, nossa subjetividade se constitui na internalização dos modos próprios da cultura. Foi nesta época, já estudando música, que minha então professora de piano, com sua sensibilidade, sugeriu 35
-me que começasse a acompanhar corais, o que aconteceu prontamente. O coral abriu-me outras possibilidades de olhar para o humano e senti-lo. Ensina-nos Ferreira Gullar (2007) que a arte existe porque a vida não basta (KASSAB; GOMES, 2007, p. 6, on-line). Embora seja poética a frase, e muito provavelmente com o intuito de dar valor à arte, ela não externaliza o que a penso sobre a arte, pois a interpreto em todas as pessoas; ademais, a arte se materializa na própria vida. Segundo a perspectiva histórico-cultural, referencial teórico que assumo nesta dissertação, Vigotski8 (1896 -1934), psicólogo russo e principal colaborador dessa perspectiva, traz à luz o fato de que a natureza das funções psicológicas superiores é social. Assim, a partir dessa perspectiva, formula sua lei geral para o desenvolvimento psicológico: [...] cualquier función en el dessarollo cultural del ninõ aparece ensena 2 veces, en 2 planos: primeiro como algo social, después como algo psicológico; primeiro entre la gente, como una categoria interpsiquica, después dentro del ninõ, como uma categoria intrapsíquica (VIGOTSKI, 1987, p. 161).
Portanto, significa dizer que as funções psicológicas superiores acontecem primeiramente como algo social. Como se daria essas relações entre funções psicológicas superiores como sendo algo social? No manuscrito de 1929, em 8 “Vigotski, professor, psicólogo, trabalhava em várias áreas do conhecimento, como a psicologia, a filosofia, a medicina, a arte e a literatura, sobretudo a educação. Formulou uma teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano fundamentada na tese da constituição cultural do homem, nos princípios da significação, sendo a linguagem um dos principais núcleos de suas elaborações, opondo-se veementemente às teorias reflexológicas em pauta na época. Assumindo uma concepção materialista da história, profundamente inspirada pelas ideias e concepções marxistas, dedicou-se à superação das dicotomias que marcaram sua época, partindo das ideias de filósofos de Spinosa, nas quais, aliás, fundamenta grande parte de suas reflexões acerca das emoções humanas; procurava articular elementos teóricos e práticos das áreas da psicologia e da educação.” (MANGIOLINO, 2010, p. 10).
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suas anotações acerca da natureza social das funções psíquicas superiores, Vigotski diz que sendo ela “[...] função primeira constrói-se no coletivo em forma de relação entre as crianças, depois se constitui como função psicológica da personalidade” (VIGOTSKI, 2000, p. 29). É interessante observar que Vigostki (1996, p. 113), em um primeiro momento, afirma que as funções superiores constituem-se em um “processo psicológico mútuo”. Antes de as funções psicológicas superiores se interiorizarem, as funções psicológicas se constituem entre duas pessoas como em um diálogo. Dessa forma, o que acontece no indivíduo funde-se com o que antes acontecia coletivamente de maneira partilhada com outra(s) pessoa(s). Desse modo, sendo o coral uma atividade social, uma vez que somente se realiza com a presença de uma estrutura mínima de participantes9, entendo que o coral é um “recorte” das experiências vividas em sociedade. No entanto, para além da reprodução, como atividade artística, cada coro cria sua própria singularidade, em termos sonoros, de significados e sentidos. Angel Pino (1993), baseando-se na distinção que faz Vigotski entre sentido e significado, coloca essa questão nos termos de uma “oposição”: o significado socialmente estabelecido versus o sentido pessoal. O indivíduo se constitui na intersecção destes dois campos. Segundo Karel Kosik (2011, p. 128), “toda obra de arte apresenta um duplo caráter em indissolúvel unidade: é expressão da realidade, mas ao mesmo tempo cria realidade,
9 Embora não seja unânime, tem-se, por convenção, que entre 10 a 20 cantores denomina-se coro de câmara, madrigal ou pequeno coro. Superior a esse número, poderíamos chamar o grupo de coro (CAEF, 2010, on-line).
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uma realidade que não existe fora da obra, ou antes, da obra, mais precisamente apenas na obra”. Por si só, nem o mais sincero sentimento é capaz de criar arte. Para tanto, não lhe falta apenas técnica ou maestria, porque nem o sentimento expresso em técnica jamais consegue produzir uma obra lírica ou uma sinfonia; para ambas as coisas, se faz necessário ainda, o ato criador de superação desse sentimento, da sua solução, da vitória sobre ele, e só então esse ato aparece, só então a arte se realiza. (VIGOTSKI, 1970, 1998, p. 314).
Posto isso, entendo que a música – sendo uma linguagem [assunto que será tratado mais adiante] – (re)produz obra de arte por meio de seu repertório, uma vez que traz em si representações do vivido. Significa dizer, então, que a música é composta por signo. A conexão dos conceitos arte e vida é indissociável, pois, embora a arte acompanhe o sujeito até sua morte [acredito no belo inclusive na morte], não parece que ela possa existir sem a presença do humano. As condições em que a produzimos e sentimos é o que classifica o cunho artístico ou não. Entende Kosik (2011, p. 130) que a arte, no sentido próprio da palavra, é ao mesmo tempo desmistificadora e revolucionária, pois conduz o homem desde as representações e os preconceitos sobre a realidade, até à própria realidade e à sua verdade. Na arte autêntica e na autêntica filosofia, revela-se a verdade da história: aqui a humanidade se defronta com a sua própria realidade.
Nesse sentido, a música parece penetrar no humano pela experiência estética10, e não pela razão. A estesia – 10 “Estética = aisthetikós (do grego) deriva de aisthanesthai = perceber ou sentir. A estética é a ciência da arte e do belo; é um ramo do conhecimento humano cuja investigação se fundamenta naquilo que sentimos e percebe-
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a sensação –, como experiência que abrange o belo e o não belo, o agradável e o não agradável, só nos abandona quando deixamos de existir. Poder-se-ia dizer que a base da reação estética são as emoções que, suscitadas pela arte, são vivenciadas pelos sujeitos com toda realidade e força. Nesse sentido, Vigotski (1999, p. 272 apud OLIVEIRA, 2012, p. 14, on-line), afirma que as emoções [...] encontram sua descarga naquela atividade da fantasia que sempre requer de nós a percepção da arte. Graças a esta descarga central, retém-se e realça-se extraordinariamente o aspecto motor externo da emoção, e começa a parecer que experimentamos apenas sentimentos ilusórios. É nessa unidade de sentimento e fantasia que se baseia qualquer arte. Sua peculiaridade imediata consiste em que, ao nos suscitar emoções voltadas para sentidos opostos, só pelo princípio da antítese retém a expressão motora das emoções e, ao pôr em choque impulsos contrários, destrói as emoções do conteúdo, as emoções da forma, acarretando a explosão e a descarga da energia nervosa.
Foi vivendo a música entre diversas experiências significativas e importantes que descobri, aos poucos, não só a possibilidade de estar com outras pessoas, mas também de tornar-me regente de corais. Foi quando reconheci a potência educativa da prática do canto coral em mim e que, pouco a pouco fui percebendo também sua importância para as outras pessoas. mos, de forma subjetiva ou emocional, a respeito da natureza e do mundo; a estética é o estudo das relações sensoriais, aquela que investiga as estruturas lógico-formais e lógico-subjetivas que permitem ao homem fazer escolhas.” (ABBAGNANO, 2000, p. 367 apud SILVA, 2013, p. 13, on-line). Para Ferreira (1985, p. 581 apud SILVA, 2013, p. 13, on-line), a estética é o “estudo das condições e dos efeitos da criação artística”. Tradicionalmente, também se diz que é o “estudo racional do belo, quer quanto à possibilidade da sua conceituação, quer quanto à diversidade de emoções e sentimentos que ele suscita no homem”.
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Partilho da concepção de que todas as relações humanas são formativas, portanto constitutivas da subjetividade humana, independentemente de qual seja o seu propósito. No entanto, para a perspectiva histórico-cultural, não se pode perder de vista que a imaginação e a criatividade são funções humanas que têm por base vivências anteriores, podem ligar-se naturalmente à fantasia, mas mesmo esta última fundamenta-se nas experiências concretas de vida. Segundo Kosik (2011, p. 127), “a essência do homem é a unidade da objetividade e da subjetividade”. No caso do canto coral, há troca de sons pelas vozes que dialogam e se complementam. Ao desenvolver este trabalho, parti da concepção de que o canto coral, assim como o letramento, torna-se prática social produtora de novos significados e sentidos. Pode-se dizer então que os sons durante o processo de aprendizagem, agora lidos também pela subjetividade do sujeito que está aprendendo, ou seja, pelos sentidos próprios do sujeito, por meio da interação num futuro bem próximo, apropriar-se-ão do vivido e sentido de forma autônoma. Apropriar-se-ão não somente pela singularidade, mas pela coletividade, mediados pelos significados sociais. Partindo da perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento, há uma (re)significação dos valores trazidos pelo regente e pelos coralistas, que se traduz pelo som que o coro produz, bem como pela dinâmica de troca nos ensaios. Nesse sentido, por ser também uma atividade constitutiva, ocorre à apropriação dos novos sons que são a “materialização” por intermédio da voz, de novos significados e sentidos. 40
Como linguagem, os significados atribuídos pela música são primeiro do regente. Subentende-se que, para o exercício de tal função, ele traga não somente a bagagem de vida, mas seu aprimoramento técnico, para ler e interpretar a música. Barbosa (2009, p. 69) aponta que uma das qualidades que mais verdadeiramente diferencia um ouvido de um profissional de música do daqueles que não os são: a possibilidade de acionar uma imaginação auditiva fundamentada em um conhecimento que se adquiriu, a fim de elaborar uma ideia musical e realizá-la através de técnicas instrumentais ou vocais. O que melhor diferencia do músico do não músico e do mau músico, no que toca às suas habilidades auditivas não é a destreza em identificar e classificar elementos.
Assim como o exemplo dado por Karl Marx (2000) sobre as teias tecidas pela aranha, que poderiam causar inveja a muitos arquitetos: o que diferencia a aranha do arquiteto é que este, antes de materializar, idealiza. Por sua vez, assim como o arquiteto, na dinâmica do canto coral, cabe a idealização do som pelo regente. Por ser a voz produção cultural humana, o som produzido pelo coral (primeiro som ou som sem interpretação) analogicamente está para o regente assim como o choro (som) do bebê está para a mãe. Significa dizer que a mãe, ao escutar o choro do bebê, atribui a essa manifestação sentido que, posteriormente, torna-se da própria criança por meio da apropriação. Ao debruçar-se sobe a concepção do desenvolvimento humano dentro da corrente histórico-cultural da psicologia, Pino (1993) ressalta que o bebê humano nasce incompleto de certa forma. Para ele, a condição dessa criança ao nascer traz características genéticas específicas e a possibilidade de adquirir a condição de humanidade. Por essa 41
razão, a inserção do filhote humano no meio cultural é que possibilitará a apropriação do “humano” ao longo de sua história11. A partir da perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, compreendo que a linguagem é um signo que possibilita ao homem a apropriação dos elementos culturais. Através da mediação por instrumentos simbólicos ou psicológicos – mediação semiótica – o homem altera não somente o rumo de seu desenvolvimento, mas a própria natureza desse processo, caracterizando-o como cultural e histórico. Na concepção de Alexei Nikolaevich Leontiev (1978, p. 155, grifo nosso), a tese de que o principal mecanismo do desenvolvimento psíquico do homem é o mecanismo da apropriação das diferentes espécies e formas sociais de atividade, historicamente constituídas, uma vez que a atividade só pode efetuar-se na sua expressão exterior, admitiu-se que os processos apropriados sob sua forma exterior se transformam posteriormente em processos internos, intelectuais.
A apropriação, portanto, implica em duas das principais hipóteses vigotskianas. Uma delas diz respeito às funções psíquicas do homem só acontecerem via mediação, pois é estruturalmente diferente da dos outros animais. Sendo assim, a apropriação é mediada pelo signo, em especial a palavra e pelo outro, no caso deste estudo, pela música coral. A outra hipótese trata-se de que o interpsicológico precede e fundamenta o intrapsicológico. Os sistemas de signo, especialmente os citados (a palavra e o outro), são interiorizados por meio da apropriação. 11 Barbosa (2001, p. 10) corrobora esse entendimento ao afirmar que “o bebê ou a criança só podem adquirir a condição humana no convívio com os outros e pela apropriação/incorporação dos bens culturais da humanidade”.
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Considerando os limites e objetivos desta pesquisa na tentativa de buscar uma melhor compreensão acerca da internalização mediada por signos, trago à memória o exemplo característico do gesto12 de “apontar”. Conforme Barbosa (2001), inicialmente trata-se do movimento fracassado de agarrar que o bebê dirige a um objeto que está longe dele. Quando outra pessoa (comumente a mãe) interpreta esse movimento, como indicativo em relação ao objeto desejado por atribuir-lhe essa significação, transforma o movimento em gesto de indicar. O bebê, captando a significação atribuída pelo outro ao seu movimento, passa a usá-lo diferentemente, dirigindo-o agora para a mãe que poderá suprir sua demanda em relação ao objeto. Então, primeiramente, há um simples movimento da criança – que, entretanto, já traz em sua manifestação externa a possibilidade de tornar-se signo; em seguida, esse movimento é interpretado por alguém que lhe atribui significação; finalmente, a criança toma para si essa significação. Assim, segundo esse ponto de vista, o que foi internalizado não foi o movimento em si, mas a significação da ação dada pelo(s) outros(s). (BARBOSA, 2001, p. 12).
Nesse sentido, a partir do momento que conduz o coral na busca do seu som, o regente está atribuindo nuances ao som que anteriormente era sem intencionalidade. Desse modo, o regente, assim como a mãe, possibilita que os cantores se apropriem do significado do som produzido por meio dos ensaios, ensinando, por exemplo, impostação vocal, a pronúncia da letra, em que trecho a peça requer interpretação de tristeza ou alegria, da dinâmica do forte
12 De acordo com Pino (1993, p. 72 apud BARBOSA, 2006 p. 185), “o gesto foi a primeira forma de expressão simbólica constituída pelo homem, anterior à linguagem oral. Pela necessidade de transmitir e perpetuar a cultura, no percurso de sua história, o homem fixa essas duas formas de expressão através de estruturas gráficas simbólicas”.
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e do fraco, do crescendo e diminuendo, etc. Cabe a ele, também, contextualizar a realidade histórica e cultural da peça que está sendo proposta. Segundo Samuel Kerr (2006, p. 123), O cantor compreende a orientação, na medida em que o gesto que você usa, ele também o tem e o reconhece. Lembrar-se sempre de que o cantor não tem o discurso musical inteiro, no processo do ensaio; ele depende de você para compreender o texto musical e realizá-lo por inteiro. O ajuste final é do regente, mas, até lá, a orientação foi dada em função das possibilidades do cantor.
Vale ressaltar, no entanto, que o regente também se reelabora durante o processo de aprendizagem. Ele (re)significa o som anteriormente planejado a partir do som que o coro está aprendendo a produzir. Assim, não somente o coro é afetado pelo regente, mas o regente também é afetado pelo coro. Considerando a música como linguagem13, entendo, tal como expõe Vigotski (1970), que ela é constitutiva da subjetividade. Nesse sentido, pode-se considerar que a música é uma linguagem conduzida pela emoção e que afeta pelo “coração”. Compartilho do entendimento de Maheirie (2003), para o qual emoção também é uma produção cultural. Para ela, a emoção se constitui como uma forma de apreender o mundo. Em sua visão, a emoção vivida na arte não pode ser confundida com outras emoções, nem a gramatical nem a intelectual, já que a emoção da arte acontece primeiramente na forma. 13 Compreende-se linguagem como forma de comunicação com o outro e ressalta-se a diferença que há entre linguagem e palavra. Esta é da ordem da fala e aquela é da ordem da comunicação. Por essa razão, ressalva-se que não somente a fala é capaz de comunicar, mas também gestos, expressões, etc., inclusive a música, concebida como linguagem.
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[...] Especificamente, no objeto acústico, a ‘musicalidade’, propriamente dita, está na forma e não no conteúdo das letras, indicando que a arte musical reside, em primeiro lugar, no modo como a música me toca. Para Vigotski, a emoção da arte possibilita emoções opostas, do tipo dor-prazer, depressão-excitação. Sendo assim, para ele a arte implica numa dualidade de emoções e que a contraposição dos sentimentos seria própria da impressão estética, a qual operaria ‘pelo princípio da antítese’. Para ele, toda obra de arte encerra forçosamente uma contradição emocional, suscita séries de sentimentos opostos entre si e provoca seu curto-circuito e destruição. A isto podemos chamar o verdadeiro efeito da obra de arte, e com isso nos aproximamos em cheio do conceito de catarse, que Aristóteles tomou com base da explicação da tragédia e mencionou reiteradamente a respeito de outras artes. (VIGOTSKI 1970/1998 apud MAHEIRIE, 2003, p. 269).
Para Mangiolino (2004), enfocando as emoções a partir da perspectiva histórico-cultural, elas se tornam complexas, porque há uma relação dialética entre consciência, linguagem e significação; não são apenas emoções, mas emoções humanas. Considero relevante observar que emoção, bem como a forma de senti-la, também podem ser sentidas como produto da cultura. Para Barbosa (2009), da mesma forma que a língua, também a música é um objeto social, cultural e histórico que se produz em (ou, a partir da) interação não só com os outros objetos culturais da mesma natureza, mas com o todo da vida nas sociedades humanas. A constituição do sujeito cultural, tanto no que diz respeito à sua constituição musical (BARBOSA, 2009) quanto no que diz respeito às questões relacionadas à afetividade e emoção (MANGIOLINO, 2004), ocorre por meio dos signos, que mediados, no caso, pelos signos culturais, aprimoram as funções psicológicas superiores, próprias do humano. 45
Desse modo, retomando o foco de atenção deste trabalho, eu diria que os novos modos, costumes e valores circulantes no coral passam a ser apropriados especialmente pelos cantores, permitindo (re)significação de si e do mundo. Tal dimensão permite que novos valores sejam alcançados de uma maneira única, pois, embora a emoção seja coletiva, o significado é singular. A forma como sentimos é resultado das experiências coletivas e singulares vividas pelo sujeito. Observa-se, então, que essa percepção da formação de sentidos ultrapassa os limites internos da dinâmica dessa prática, de modo a transpor esses valores para outras áreas da vida. Em diversas oportunidades, já como regente, pude reafirmar em mim e para mim a potência educativa do canto coral não apenas pela própria experiência, mas pela vivência de outros que me diziam: “A partir do momento que comecei a cantar no coral, melhorei minhas notas na faculdade” ou “A partir desta experiência do coral, a sensação que tenho na minha vida hoje é que sou capaz de ter forças para enfrentar qualquer problema”. Carlos Alberto Figueiredo (2006, p. 4) faz a seguinte reflexão: Cantar em coro deveria ser uma experiência de desenvolvimento e crescimento, individual e coletivo: o desenvolvimento da musicalidade e da capacidade de expressar através de sua voz; a possibilidade de vir a executar obras que tocam tanto no cognitivo quanto no coração, ensejando o crescimento intelectual e afetivo do cantor e de outros agentes envolvidos; o desenvolvimento da sociabilidade e da capacidade de exercer uma atividade em conjunto, onde existem os momentos certos para se projetar e recolher, para dar e receber.
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Se a educação for entendida como um processo de autotransformação que se opera nas relações sociais, como uma transformação no sentido subjetivo, o canto coral, parece ser um espaço profícuo para que os sujeitos se modifiquem, modifiquem suas relações em termos de desenvolvimento, em termos de relacionamento, em termos de se colocarem e serem colocados no mundo, em termos de significarem a si próprios e ao mundo. Segundo Joanice Vicente Casemiro e Deuza dos Santos Camargo (2012), considerar a visão dos sujeitos que participaram e participam do coral parece ser relevante, uma vez que, de acordo com o próprio Vigotski (1984), os processos são prioritários em relação aos resultados, visto que os resultados em si mesmos nada ou pouco dizem das condições em que foram produzidos e dos efeitos das mediações recíprocas no curso de sua configuração. Pelo fato de ser também maestrina, esta pesquisa ajudou-me a compreender a importância dos processos em movimento. Portanto, o estudo durante a pesquisa afetou meus modos de condução das atividades de regência ao priorizar os ensaios, pois considero que é no processo que se estabelece a riqueza e a importância para a formação do sujeito, sem, no entanto, diminuir a importância do fim em si, que é a apresentação. Levando-se em consideração que o processo refere-se aos ensaios e o resultado é entendido como o “produto final”, ou seja, a apresentação, pude depreender que o processo torna-se prioritário ao resultado quando busquei compreender a gênese, o impacto da arte para formação, nesse caso, o canto coral.
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Não obstante, considerando uma leitura dialógica/ dialética, afirmo que a apresentação também se torna processo e o ensaio, resultado. Aponta-nos Kerr (2006, p. 122): O próprio ensaio pode ser a razão de existir de um coro e penso que encontraremos para ele um caminho quando não houver mais a preocupação de preparar espetáculos para os outros assistirem (palco/platéia), mas a de conquistar mais cantores, ampliar a convivência e o volume da canção. É preciso recuperar a capacidade de as pessoas fazerem música, independentemente do fato de saberem ou não cantar. A convivência coral é sempre terapêutica e capaz de provocar a eclosão de qualidades e vibrações sonoras que definem o repertório escondido dentro de cada pessoa.
Por compreender essa dimensão constitutiva do processo vivido, fui lapidando o desejo de olhar para os processos de ensaio. Olhar para os processos de ensaio foi importante, pois me ajudou a compreender os coralistas por meio da evolução técnica dos sons produzidos. No entanto, para o trabalho de pesquisa, procurei apreender os efeitos de sentidos da vivência no coral, pelos sujeitos que dele participam e participaram, nas suas constituições pessoais. Para Vigotski (apud BARBOSA, 2001, p. 62), é preciso “estudar o problema sob o ponto de vista do desenvolvimento”. Nessa mesma perspectiva, Barbosa (2001, p. 62) enfatiza que “é preciso estudar o processo, partindo de suas origens e buscando explicar suas relações dinâmico-causais”. Nesse sentido, compreendo que educar pelos afetos que geram emoções é mais eficiente, pois também os significamos. Assim, nas relações das quais participamos, afetamos e somos afetados.
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Não nascemos em um mundo “natural”, mas em um mundo humano, portanto, cultural. Na concepção de Leontiev (apud FONTANA; CRUZ, 2002, p. 58), “podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser homem”. A música é uma linguagem que tem como principal viés comunicar pelas emoções. As marcas emocionais que nos ficam são da dimensão orgânica e da dimensão simbólica, uma vez que a linguagem musical14 também constitui as mulheres e os homens, o funcionamento psíquico e o próprio modo de pensar e sentir. Mangiolino (2004, p. 88) afirma que tais pressupostos nos permitem, por exemplo, abordar a emoção na sua dimensão orgânica e na sua dimensão simbólica – quer dizer, social –, sem reduzi-la a uma pura expressão ou manifestação corporal, mas tomando-a como algo inescapavelmente partilhado e interpretado, socialmente produzido, significado, produto e produção histórica e cultural. Nesse sentido, não é subjetiva, apenas é uma característica orgânica, profundamente marcada e produzida pelos processos sociais historicamente constituídos e legitimados. O que nos leva a considerar as condições de produção das emoções humanas e, especialmente, nos leva a romper com a visão da emoção como uma “entidade” singular, pessoal, subjetiva, espiritual ou como um mecanismo instintivo, biológico apenas.
A ideia de que o processo educacional se dá em todas as relações e é muito mais eficiente quando o “educador” consegue inspirar no outro a sensação de ser único permite-me entender o canto coral como uma prática rica para essa possibilidade, pois somente se consegue realizar a
14 Os elementos constitutivos da linguagem musical são: notas, intervalos, acordes, cadências, casos particulares da rítmica, etc.
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música quando “emprestamos” para ela os nossos sentimentos. [...] não é a obra de arte que desperta no público os sentimentos, assim como as teclas do piano, produzem o som, mas o público que projeta nos objetos artísticos seus sentimentos e emoções, empatizando, sofrendo com o herói, participando de seu drama. [...] (MANGIOLINO, 2010, p. 83).
No entanto, para isso é preciso acessar esses sentimentos, e é nesse processo de acessá-los, na relação de confiança com o regente, que por meio do som produzido conjuntamente cada pessoa vai se sentindo parte do todo e, ao mesmo tempo, únicos e singulares. Nas palavras de Mangiolino (2004, p. 89), Há uma determinada dinâmica de produção, socialmente elaborada em meio a diversos, inúmeros sentidos, já consolidados e que estão por se, ou podem vir a se consolidar. Há um conjunto de signos e valores que perpassam e constituem as relações, práticas sociais, e os homens. Nessa trama, na história das relações e das práticas sociais em que emergem, algumas formas de manifestação de emoções acabam por se consolidar e se impor, tornando-se proeminentes, mas ao mesmo tempo trazem o que há de mais singular em cada pessoa.
É importante ressaltar que a inspiração para desenvolver esta pesquisa não se deu somente pela relação da pesquisadora como regente, mas também como ex-coralista do coral da Universidade Metodista (Unimep). Iniciada a pesquisa e ante as poucas informações formalizadas sobre o coral, estabeleci contato com o seu criador, maestro Umberto Cantoni15. Tal contato permitiu-me aprofundar a
Vale observar que embora se tenha debruçado à questão histórica para compreensão do sentido e significado do coral, o enfoque do trabalho desenvolvido não tem caráter histórico.
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pesquisa, pois por meio dos relatos do maestro ficou evidenciada a necessidade da buscar subsídio de cunho bibliográfico acerca da história do metodismo em Piracicaba, como forma de tentar estabelecer a relação entre canto coral e educação metodista. Posto isso, defini, como objeto de pesquisa, o coral da Unimep, hoje vinculado ao Núcleo Universitário de Cultura (NUC)16 e destaquei, como objetivo geral, compreender o potencial educativo do coral na vida dos participantes que por ele passaram em diferentes épocas. À vista disso, debrucei-me a garimpar materiais referentes ao coral Unimep vislumbrando a possibilidade de localizar relatos dos integrantes que por ali passaram. Tendo em vista a extensão temporal que esta pesquisa propõe (1980-2012), houve dificuldade para captar informações, pois não existiam meios eletrônicos de comunicação em boa parte do período pesquisado. Por essa razão, vale ressaltar que somente foram localizadas fichas cadastrais nessa busca, não havendo registro de comentários feitos pelos alunos sobre como percebiam essa atividade. Percebendo a ausência de registros e com o objetivo de estabelecer comunicação com os integrantes dos grupos, desde quando assumi a regência dos corais Unimep em 2008, adotei, como prática, propor a participação dos in“Umberto Cantoni nasceu em Franca, Estado de São Paulo, em 1929. Estudou música no Conservatório de São Paulo, voltando-se especialmente ao canto coral, piano e órgão. Quando surgiu a Teologia da Libertação no Brasil, foi um dos que mais buscaram divulgar a sua música, especialmente com o Coral Evangélico de São Paulo do qual era regente. Transferiu-se para Piracicaba em 1979, foi coordenador do Núcleo Universitário de Cultura da Unimep e regente coral dessa Instituição até 2005.” (ELIAS, 2008, p. 134). 16 “O NUC é um setor da Unimep que por meio de suas atividades culturais, visa ser instrumento de contribuição para a realização do compromisso de oferecer à sociedade brasileira profissionais conscientes de sua responsabilidade social.” (PEREIRA, 2008, p. 107).
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tegrantes, de forma voluntária, a uma reflexão por escrito acerca do trabalho desenvolvido no final de cada semestre. Ao ler as reflexões dos integrantes, chamou-me a atenção o fato de que era recorrentemente enfatizada pelos cantores a importância do coral para suas vidas, havendo especialmente o reconhecimento da diferença de postura frente à vida após o seu ingresso. Para tal, a pesquisa pretende responder a seguinte questão de investigação: qual o potencial educativo do canto coral da Unimep a partir da experiência dos sujeitos que dele participaram? Na tentativa de responder a essa questão, realizei uma pesquisa de cunho qualitativo, a qual tem o ambiente natural como fonte direta de dados e o pesquisador como instrumento fundamental. De acordo com Arilda Schimdit Godoy (1995, p. 62), os estudos denominados qualitativos têm como preocupação fundamental o estudo e a análise do mundo empírico em seu ambiente natural. Nessa abordagem, valoriza-se o contato direito e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo estudada.
Roberto Sidnei Macedo, Dante Galeffi e Álamo Pimentel (2009, p. 44), em obra intitulada Um rigor outro: sobre a questão da qualidade na pesquisa qualitativa, fazem a seguinte observação: “O rigor, a rigor, é um comportamento atitudinal de quem faz qualquer coisa com arte. O rigor é o ethos de toda produção artística. Por que a ciência teria que ser diferente em relação ao ethos artístico?” Esse excerto nos indicia que o critério qualitativo é primordial para a produção do conhecimento, pois nele podemos introduzir o “sujeito” e os “processos de subjetivação” no interior da construção epistemológica complexa (MACEDO; GALEFFI; PIMENTEL, 2009, p. 45). 52
Menga Lüdke e Marli André (1986, p. 99), ao explanarem sobre as abordagens qualitativas na pesquisa em educação, tomam como referência as observações de Bogdan e Biklen (1982) sobre pesquisa qualitativa e apresentam algumas das características que configuram este estudo, a saber: a pesquisa qualitativa tem o pesquisador como seu principal instrumento, pois o “pesquisador está em contato direto com o ambiente e a situação que está sendo investigada”. Nesse sentido, há a indução do pesquisador acerca do tema pesquisado. Os autores chamam a atenção para o fato de que os dados coletados devem ser ricos em descrição, bem como as citações devem aclarar e reforçar as ideias dos autores, há de se priorizar muito mais o processo ao resultado e, nas análises, não se deve deixar de atribuir valor às perspectivas dos participantes. Quanto aos procedimentos metodológicos, optei pelo envio de questionário por e-mail, pois entendi que, dessa forma, atingir-se-ia o maior número de participantes e ex-participantes. Como forma de demonstrar o contexto dos estudos atinentes à questão da investigação para desenvolver este estudo, a estrutura da dissertação é apresentada a seguir. Nesta seção, cujo texto intitula-se À guisa de introdução: como cheguei à pesquisa e aos seus objetivos, explicitarei ao leitor os dados do levantamento bibliográfico realizado quando da definição da questão da investigação. Esse levantamento evidenciou a escassez de material nacional pertinente à temática sobre canto coral, bem como apontou que não há trabalho realizado sobre o canto coral dentro da perspectiva metodista. Na sequência, apresentarei o primeiro capítulo: O universo conceitual do objeto de reflexão, referencial teórico 53
no qual se ancorou para a produção e análise dos dados. Nessa seção, o objetivo será situar o leitor acerca da relevância do canto coral para a educação metodista, bem como, à luz da perspectiva histórico-cultural, salientando a importância dessa arte para a educação metodista. Ademais, parece ser fundamental situar o leitor a respeito dos três grandes princípios educativos do metodismo: fé, educação e música, o que é feito no segundo capítulo, intitulado A música e a relação com a educação metodista na Unimep. Cabe destacar que, ainda nesse capítulo, meu objetivo foi discutir as questões teológica, social e musical dos irmãos Wesley. Abordei também o nascedouro da educação metodista na Inglaterra e sua passagem por terras estadunidenses. Ao final do capítulo, o leitor terá se aproximado do desenvolvimento histórico quanto aos caminhos trilhados desde o movimento metodista na Inglaterra até a consolidação deste como religião nos Estados Unidos da América do Norte (EUA). Dada à ênfase deste trabalho, apresentarei o terceiro capítulo: Do metodismo ao canto coral da Unimep, no qual o objetivo será compreender o coral da UNIMEP como uma possibilidade de representação da identidade metodista Piracicabana. A partir daí vai sendo construída a identidade metodista piracicabana desde a chegada de Martha Hite Watts ao Brasil. Nessa chegada, a sociedade de Piracicaba foi influenciada primeiramente por um metodismo estadunidense, mas, ao longo do processo histórico, foi se modificando. Não obstante, pretendo abordar o coral da Unimep como possibilidade de expressão do metodismo em Piracicaba, bem como sua contribuição e materialização para a busca de uma identidade brasileira. Posto isso, observei que a criação do coral da Unimep pode ter sido 54
uma possibilidade de representação da busca por um metodismo brasileiro. Já o quarto capítulo, Da produção dos dados ao processo de análise: o percurso trilhado, terá o objetivo de apresentar o percurso metodológico da construção dos dados e a construção das análises. Ressalto que os dados evidenciam acerca do motivo e permanência no Coro Unimep, a relação entre repertório e a memória afetiva, bem como indícios de que os alunos reconhecem o estabelecimento da prática do coro da Unimep com outros aspectos de suas vidas. Nas Considerações finais, tecerei comentários sobre o estudo realizado, seus resultados e outras observações. Do diálogo com estudos já realizados sobre a temática
Nesta introdução, sem a pretensão de realizar um estudo sobre o estado da arte que relacione fé, educação e música, tratarei mais especificamente sobre o canto coral. Para tanto, busquei realizar um levantamento de cunho bibliográfico, cujo objetivo foi situar-me sobre temas que circundam esta pesquisa. Nele apresentarei um panorama acerca dos estudos convergentes sobre a temática, contextualizando o presente estudo aos trabalhos já produzidos. Tal levantamento permitiu-me constatar que, de acordo com a pesquisa realizada, não foi encontrado material que tratasse a correlação entre fé, educação e música, canto coral mais especificamente. Para a realização de parte da pesquisa, de natureza bibliográfica e de campo, o primeiro passo foi a delimitação do período e do universo de materiais a serem pesquisados. Defini que a investigação compreenderia um período
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de dez anos, ou seja, de 2001 a 201117. O procedimento metodológico aplicado na pesquisa foi realizado posteriormente à aplicação de questionários para cantores e ex-cantores. A consulta ao Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no início do trabalho de pesquisa, exigiu análise cuidadosa em relação às palavras-chave empregadas e delimitação dos objetivos da pesquisa. Usei as seguintes combinações de palavras-chave: musicoterapia; música para bebês; música na recuperação de bebês na UTI; educar através da arte; arte e processo educacional; educação e música; constituição do sujeito; contribuição da arte no processo educacional; contribuições da música na educação; canto coral religioso e canto coral educacional; música e formação do sujeito; canto coral. O levantamento no site da Capes foi muito cuidadoso por causa da quantidade de dados: foram 1.014 consultas realizadas em dissertações e teses sobre a temática do estudo. Todos os trabalhos pesquisados constavam de resumo. No levantamento, encontrei, entre dissertações de mestrado e teses de doutorado, um número significativo de trabalhos dentro da temática “musicoterapia”. Dos 63 resumos, apenas dez se aproximaram da temática deste estudo. Com relação à palavra-chave “música para bebês”, foram encontrados cinco trabalhos, sendo que apenas dois se aproximaram do que eu procurava. Em relação a “edu-
17 Apenas como critério de delimitação temporal à pesquisa, limitou-se a estudar as produções científicas entre 2001 e 2011.
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car através da arte”, foram encontrados 79 trabalhos, sendo que apenas dois se aproximaram deste estudo. No que tange à “arte e processo educacional”, constatei um total de 51 trabalhos; no entanto, apenas dois mostraram-se oportunos para este estudo. A busca pela palavra-chave “Educação e música” revelou 195 trabalhos, dos quais foram separados seis com afinidade ao tema. Ao pesquisar a palavra-chave “constituição do sujeito”, encontrei 532 trabalhos, dos quais quatro resumos se aproximaram da temática deste estudo. Já para “canto coral”, foram encontrados 83 trabalhos, dos quais oito resumos se aproximaram da temática desta dissertação. Para todas as demais palavras-chave (“contribuição da arte no processo educacional”, “contribuição da música na educação”, “música e formação do sujeito”, “música na recuperação de bebês” e “canto coral religioso e canto coral educacional”), não foram encontrados materiais para o tema pesquisado. Ao final, 1.014 consultas foram feitas de acordo com os critérios de palavras-chave acima propostos, sendo que 44 trabalhos aproximaram-se da temática desta dissertação. Nessas consultas, todas as teses e dissertações que possuíam resumo foram lidas; porém, para aprofundamento de análise (leitura completa), somente 22 trabalhos foram selecionados, A Tabela 1 apresenta um resumo das consultas com as palavras-chave utilizadas.
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Tabela 1 – Trabalhos consultados no site da Capes conforme palavras-chave Palavras-chave
Total de trabalhos consultados
N° de trabalhos próximos à temática
Musicoterapia
63
10
4
Música para bebês
5
2
2
Não localizados trabalhos
0
0
Educar através da arte
79
2
4
Arte e processo educacional
51
4
2
Educação e música
195
7
4
Constituição do sujeito
532
11
4
Contribuição da arte no processo educacional
dois trabalhos sem aproximação da temática
0
0
Contribuições da música na educação
um trabalho sem aproximação da temática
0
0
Coral religioso e coral educacional
Não localizados trabalhos
0
0
Música e formação do sujeito
três trabalhos sem aproximação da temática
0
0
83
8
2
Música na recuperação de bebês na UTI
Canto Coral
N° de trabalhos selecionados para leitura
Fonte: Elaborada pela autora.
Consultei no site do Scielo Brasil (http://www.scielo. com.br/) um conjunto de periódicos da área de Educação que reúne uma amostra significativa da produção nacional, a saber: Psicologia: Reflexão e Crítica; Psicologia USP; Psicologia em Estudo; Psicologia e Educação Escolar; Psicologia e Sociedade; Psicologia: Teoria e Pesquisa; Factral de Psicologia; Educar em Revista; Caderno de Pesquisa; CEDES; Revista brasileira de Educação; Educação & Sociedade.
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A busca, nesse caso, não foi realizada a partir de palavras-chave, mas a partir dos títulos dos artigos apresentados nos sumários das revistas entre os anos de 2001 e 2011. Considerando que a temática sobre canto coral é pouco explorada nessa base de consulta, optei por investigar o tema que foi o aporte teórico da pesquisa, ou seja, que subsidiou o presente estudo: Vigotski e a constituição do sujeito. No conjunto das 12 revistas pesquisadas, verifiquei um total de 5.595 artigos, sendo que 26 artigos foram considerados pertinentes à temática deste trabalho, conforme se apresenta a seguir. Na revista Psicologia: Reflexão e Crítica, foi verificado um total de 642 artigos, sendo selecionados dois. No caderno Psicologia USP, foram encontrados 378 artigos, sendo selecionados também dois artigos. Na revista Psicologia em Estudo, foram localizados 668 artigos e selecionados sete deles. Na revista Psicologia e Educação Escolar, foram localizados 399 artigos e selecionados seis. No caderno Psicologia e Sociedade, dos 160 encontrados, foram selecionados quatro artigos. Na revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, foram localizados 616 artigos, sendo que apenas um agregou informações ao conteúdo da pesquisa. Na revista Fractal de Psicologia, foram localizados 192 artigos e selecionados dois deles. No periódico Educar em Revista, foi localizado um total de 320 artigos e selecionados três deles.
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No periódico Caderno de Pesquisa, foi observado um total de 658 artigos e, desse total, o material selecionado pertinente ao presente trabalho foram três artigos. Nas publicações Cadernos CEDES, foi observado um total de 274 artigos e, desse total, dois que eram pertinentes ao presente estudo foram selecionados. Na Revista Brasileira de Educação, que continha um total 466 artigos, apenas um deles foi selecionado. No Portal Scielo Brasil, a última revista objeto da proposta foi a intitulada Educação & Sociedade, com um total de 822 artigos, dos quais apenas um foi selecionado. Na revista Caderno de Pesquisa, foi observado um total de 658 artigos e, desse total, o material selecionado pertinente ao presente estudo compôs-se de três artigos. Tabela 2 – Periódicos da área de educação consultados no site do Scielo Brasil Periódicos
Total de periódicos pesquisados
N° de artigos próximos à temática
N° de artigos selecionados para leitura
Psicologia reflexão e crítica
642
02
02
Psicologia USP
378
09
02
Psicologia em estudo
668
17
07
Psicologia e educação escolar
399
06
06
Psicologia e sociedade
160
13
04
Psicologia teoria e pesquisa
616
02
01
Factral de psicologia
192
02
02
Educar em revista
320
03
03
Caderno de pesquisa
658
03
03
CEDES
274
02
02
Revista brasileira de educação
466
01
01
Educação e sociedade
822
04
01
Fonte: Elaborada pela autora.
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Buscando maior fidedignidade da base de dados que subsidiou o material reflexivo desta dissertação, recorri a um importante setor de pesquisas sobre a temática metodista, denominado Centro de Estudos e Pesquisas sobre Metodismo e Educação (Cepeme), situado no prédio do Centro Cultural Martha Watts, em Piracicaba, Estado de São Paulo. Nesse setor, foram consultadas quatro caixas de documentos. Na primeira delas, intitulada “diversos”, subtitulada “metodismo nos EUA” e contendo numeração de 1 a 4, não foi localizado material pertinente ao objeto de estudo. Em consulta a outra caixa, intitulada “metodismo internacional”, também não foi encontrado material relevante. Nela, havia apenas folhetos e informes de outras universidades metodistas de âmbito internacional. Já em outra caixa consultada, cuja titulação era “metodismo e identidade”, foram localizados dois importantes materiais de pesquisa: apostila histórica do metodismo no Brasil e metodismo no Brasil, com anotações de aulas do Professor Elias Boaventura. Foram localizadas três caixas cujo título era “educação metodista confessionalidades”, nas quais foram encontrados quatro essenciais documentos para a compreensão da temática fundamental a essa dissertação: a compressão da elaboração e idealização do Plano para a Vida e a Missão da Igreja Metodista. Encerradas as pesquisas no Cepeme, a próxima etapa de quatro dias para análise de materiais se deu no acervo de revistas da biblioteca do campus Taquaral, de acordo com as seguintes temáticas: confessionalidade, educação confessional, cultura, metodismo no Brasil, educação me-
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todista, plano de vida e missão, John Wesley, Charles Wesley, Vigotski e constituição do sujeito. As revistas objetos de análise – Revista de Educação do Cogeime (Instituto Metodista de Temas Educacionais)18, Comunicações, Impulso, Educação & Linguagem, Contrapontos – são de editoração independente, cada uma delas respectivamente institucional: Cogeime, Unimep, Unimep, Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) e Universidade do Vale do Itajaí (Univali), sendo a primeira o periódico oficial da Igreja Metodista voltada à temática da educação. Foram consultados 20 volumes da Revista de Educação, com publicação semestral pelo Cogeime. Lá, foram separados 24 artigos com a temática próxima à do trabalho, sendo 15 selecionados para leitura. Concluída a pesquisa nessa revista, a busca por localização de artigos dentro da temática já aludida se deu, então, na Revista de Educação do Cogeime. Das 36 edições pesquisadas, 33 artigos se aproximaram da temática do trabalho, sendo 10 selecionados para leitura. Quanto à revista Comunicações, publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unimep, dos 32 números de periódicos pesquisados, constatei que nove artigos se aproximavam da temática, sendo seis selecionados para leitura. Concluída a revista acima, dei início ao aprofundamento das pesquisas na revista Educação & Linguagem da Umesp, com publicação semestral pela própria instituição. Dos 22 números de periódicos pesquisados, constatei 18 Mantida a sigla Cogeime, a nomenclatura foi alterada para Conselho Geral das Instituições Metodistas de Educação em 2002 e para Instituto Metodista de Serviços Educacionais em 2006. (ELIAS, 2008, p. 260).
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onze artigos que se aproximavam da pesquisa proposta, não tendo sido selecionado artigo para leitura. Na revista Contrapontos da Univali, de publicação semestral pela própria instituição, dos 14 números de periódicos pesquisados, constatei três artigos que se aproximavam do interesse deste trabalho, sendo um selecionado para leitura. Houve, também, a análise da revista Impulso da Unimep, com publicação semestral pela própria instituição. Foram percorridas 48 revistas, sendo que os artigos que mais tiveram proximidade com o trabalho somaram um total de cinco, sendo um selecionado para leitura. Assim, foram pesquisadas na biblioteca da Unimep, campus Taquaral, um total de 172 revistas. Desse universo, foram separados 85 artigos que se relacionam com a temática deste trabalho e para a leitura, 33 artigos. Tabela 3 – Revistas consultadas na biblioteca do campus Taquaral da Unimep Periódicos
Revista do Cogeime
Total de periódicos pesquisados 36
N° de artigos próximos à temática 33
N° de artigos selecionados para leitura 10
Comunicações
32
09
06
Revista Impulso
48
05
01
Educação e Linguagem
22
11
0
Contrapontos
14
03
01
Revista de Educação
20
24
15
Fonte: Elaborada pela autora.
No site da Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM), encontrei uma lista de teses e dissertações, das quais apenas uma foi selecionada dentre um total de 383 trabalhos.
63
Sobre as temáticas Charles Wesley, John Wesley, metodismo e canto coral, recorri ao site da Umesp, especificamente ao banco de dissertações de mestrado e teses de doutorado no período de 2001 a 2011, nos seguintes Programas de Pós-Graduação: Educação, Psicologia, Comunicação e Ciências da Religião. Foi localizado um total de 169 trabalhos em Educação, 122 em Psicologia, 242 em Comunicação e 302 em Ciências da Religião. Na Pós-Graduação em Educação, Psicologia e Comunicação, não foi localizada a existência de trabalhos nas temáticas propostas – Charles Wesley, John Wesley, metodismo e canto coral. Entretanto, chegando ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, dos 302 trabalhos encontrados, quatro se relacionavam diretamente à temática John Wesley, três estavam ligados à temática metodismo e dois referentes ao canto coral; estes foram compreendidos como pertinentes ao estudo. Porém, no programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, não foram encontrados trabalhos sobre a temática Charles Wesley. Neste universo, foi separado um total de nove trabalhos pertinentes à temática deste estudo. Uma vez concluída a pesquisa de natureza bibliográfica, foi de extrema relevância traçar um panorama dos estudos já realizados, bem como identificar a escassez de material nacional quanto à temática do canto coral. Diante desse panorama, detectei que não há trabalho realizado sobre o canto coral e sua relação com a perspectiva da educação metodista, motivo que reforçou a fundamental importância da produção desta dissertação.
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Busquei abordar, ao explorar esta seção, não somente a questão numérica, mas subsidiar teoricamente os materiais atinentes à temática que foram produzidos até 2011. Entre o material pesquisado e buscando maior detalhamento e subsídio para confecção deste trabalho, destaquei algumas produções que foram de suma importância para esta dissertação. No que tange aos aspectos do canto coral brasileiro, posso destacar, dentro da bibliografia levantada, os que considero os maiores nomes atuais da literatura coral brasileira. Nelson Mathias (1986), Oscar Zander (2003), Emanuel Martinez (2000) e Figueiredo (2006) foram os quatro autores encontrados que abordam a gestual de regência, bem como modos de aplicação ao coro em diferentes situações. Entre essas diferentes situações, eles tecem importantes orientações quanto às circunstâncias interpretativas, saúde e treinamento vocal, estilo, interpretação e interações pessoais no grupo. Enfatizei, de forma especial, o trabalho do maestro Kerr (2006) que, em parceria com importantes regentes brasileiros, compilou, em forma de ensaios, reflexões próprias e de outros regentes garimpadas ao longo das suas carreiras. No que tange à literatura acadêmica sobre a práxis, destaquei Lúcia Helena Pereira Teixeira (2005) e Eduardo Morelenbaum (1999), que se debruçaram a refletir sobre a realidade dos coros brasileiros em empresas. Já para Cláudia Ribeiro Bellochio (1994) e Vilson Gavaldão de Oliveira (1996), o enfoque deu-se via coro de crianças e adolescentes. Para a questão da evolução da linguagem coral traçando semelhanças e diferenças, Irene Zágari Tupinambá (1993) reflete sobre o momento histórico do canto coral na época 65
de Villa Lobos, bem como o movimento da contracultura de 1980. Por sua vez, em relação ao coro cênico, atividade essa que ganhou força no Brasil a partir de 1980, encontrei dois importantes trabalhos: Sergio Alberto Oliveira (1999), que traz características do coro cênico, e Joana Christina Brito de Azevedo (2003), que, por sua vez, enfoca as vantagens educacionais. Quanto aos aspectos interpretativos, destaquei Ana Maria Souza Santos (2001), que discorre sobre a importância do ritmo musical como ferramenta para construção da interpretação, bem como aborda aspectos sobre a expansão da arte coral brasileira. No tocante ao coro como ferramenta para a musicalização, Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo (1990) e Regina Célia Lopes Campelo (1999) destacam a importância da atividade coral como possibilidade de desenvolvimento da musicalização dos participantes. Destaquei Maria Alice da Silva Ramos Sena (2002), por desenvolver diálogo acerca do canto coral, bem como seus aspectos ligados à educação, destacando a importância da teoria de Vigotski como possiblidade de discussão dentro do coro escolar. João Luís Komosinski (2009), por sua vez, enfatizou a relação entre a memória e seu desenvolvimento a partir dos repertórios desenvolvidos por corais amadores. No entanto, diferentemente da proposta desta dissertação, tais autores não discutem sobre a influência da prática do canto coral a partir da subjetividade humana. Ressaltei também Barbosa (2001, 2009), que, embora não tenha tratado especificamente da prática do canto coral, seus trabalhos abordam processos de significação da 66
escrita rítmica pela criança e a percepção musical como compreensão da obra musical. Ambos os trabalhos trouxeram subsídios importantes para a discussão e o desenvolvimento desta dissertação, especialmente em razão de sua abordagem histórico-cultural. Nesse sentido, saliento, ainda, o trabalho de Lavínia Lopes Salomão Mangiolino (2004) que, ao tratar sobre as emoções também a partir da perspectiva histórico-cultural, possibilitou que eu trilhasse concepções, comparações e indagações acerca da temática do presente trabalho. Outra temática importante para o desenvolvimento desta dissertação é a educação metodista no Brasil. Para isso, recorri a vários autores de expressão nacional e internacional, entre eles, ressalto Richard Heitzenrater (1996) e Luiz Carlos Ramos (2010). No entanto, tendo optado por olhar a educação metodista a partir da chegada e Martha Watts em Piracicaba, e de maneira mais incisiva sobre a educação metodista na Unimep, busquei eleger autores que fossem ou tivessem tido ligação com a Unimep, ou seja, que trabalham ou trabalharam na instituição e tiveram (ou ainda têm) compromisso com a Instituição e com a referida educação. Por esta razão, ao me inclinar sobre a temática educação metodista, elegi os seguintes autores: Ely Eser Barreto César (2003; 2006), Zuleika de Castro Coimbra Mesquita (1992), Rosa Gitana Krob Meneghetti (1994; 2002), Elias Boaventura (2005), Darlene Barbosa Schützer (2000; 2005), Ismael Forte Valentin (2008), Clóvis Pinto de Castro (2005) e Helen Luce Campos Pereira (2008).
67
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CAPÍTULO I O UNIVERSO CONCEITUAL DO OBJETO DE REFLEXÃO
N
a introdução, apresentei um panorama
sobre os caminhos trilhados para a pesquisa de cunho bibliográfico. Neste capítulo, objetivei fazer uma apresentação crítica acerca de alguns valores expressos pelo capitalismo, como a primazia do individualismo na contraposição de uma experiência formativa coletiva/comunitária. Segundo César (2006), o projeto dominante de nossa sociedade, que é voltado para a dinâmica do “desenvolvimento”, funda-se na santificação do capital acumulado e nas trocas que ele enseja, gerando-se a realidade do “mercado”. Desse modo, retomei autores que valorizam a experiência coletiva e cultural na constituição da subjetividade, bem como se aborda parte da história do metodismo brasileiro e a relevância do coral como processo educativo e como marca identitária do metodismo nacional. A filosofia, muito antes do movimento metodista, tem a música como objeto de investigação. Ao longo da história, foi considerado, como expressão que acessava o divino, o espiritual, o metafísico. Levando-se em conta a perspectiva histórico-cultural, pude imaginar que a formação, a vivência e as experiên 69
cias anteriores dos irmãos metodistas Wesley, que tinham como formação também as artes, os constituiu. Não obstante, os sermões que John (1703-1791) pregava, Charles (1707-1788) os compunha em forma de versos, o que evidencia a importante ligação entre a fé e a música. Ambos compreendiam que a educação formal, ou seja, a escolar, não era uma opção oferecida como uma dádiva, mas possibilidade de tratar com cidadãos a informação, sem, no entanto, desconsiderar os aprendizados que eles tiveram durante sua vida. Nessa senda, Claudia Lombardo (2006, p. 16) faz a seguinte afirmação: [...] Si bien entendiemos que la educación es um aspecto fundamental para poder estabelecer uma sociedade mejor, más justa y equitativa, sabermos que no puede por si sola generar estos câmbios. Es decir que debemos analizar nuestras propuestas atendiendo a estas doble condición y atender las limitaciones estructurales que tiene todo sistema educativo y la vez, a las enormes possibilidades que la educación genera para el dessarollo de las personas y de las socidades.
Assim, entendo que o conceito de confessionalidade é estritamente ligado ao conceito de cidadania. Entende César (2006) que educação para a cidadania a favor da vida tem a mesma natureza fundamental da missão19 da Igreja. Tal valor fez parte de projetos das escolas metodistas de muitos modos. No entanto, o autor afirma que, para muitos educadores metodistas, ainda não está claro que o conceito de educação para a cidadania, no seu
19 “Missão é o processo que visa oferecer à pessoa e comunidade, uma compreensão da vida e da sociedade, comprometida com uma prática libertadora, recriando a vida e a sociedade, segundo modelo de Jesus Cristo, e questionando os modelos de dominação e morte à luz do Reino de Deus.” (CASTRO, 2005, p. 75, grifo do autor).
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sentido mais radical, é a expressão da sinalização do Reino de Deus. César (2006) conta-nos, ainda, que o conceito de educação para a cidadania está na lógica do projeto missionário da Igreja. Isso significa dizer a mudança da sociedade a favor da vida, de justas relações humanas como expressão do Reino de Deus. Segundo Meneghetti (2002, p. 27), [...] John Wesley olha o mundo com o olhar de professor, isto é, com uma perspectiva educativo-pedagógica, e isto faz do movimento metodista, desde seu início, um movimento voltado para compreensão de que educar é fundamental para a conversão das pessoas.
Diante do exposto acima, compreendo que não poderia causar indignação ou estranheza o fato de metodismo e educação, especialmente a formal, caminhasse lado a lado como possibilidade de iniciativa evangelística. Adriana Menelli de Oliveira e Edgar Zanini Timm (2004) definem, em poucas palavras, a relação entre Igreja e escola: John Wesley via na educação a possibilidade de um viver com fé esclarecida e, por isso, desde o início, o metodismo teve, por sua ênfase no binômio Igreja-escola, seu reconhecimento social. Os autores enfatizam que [...] a Igreja Metodista tem como missão o paradigma de iluminar a caminhada, e afirmam que não é outro senão o Reino de Deus, segundo modelo de Jesus [...] isso implica, como ensina Deleuze20, perceber a ‘indignidade de falar pelos outros’ e entender que, na sua conversão teórica a ação educativa iluminada por um nova teorização deverá permitir que as pessoas a quem ela
20 Informação contida na nota de rodapé do artigo referido. Na obra Microfísica do Poder, de Michel Foucault (2003), quando Deleuze e Foucault dialogam no texto “Os intelectuais e o poder”.
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concerne falem por si próprias [...] (OLIVEIRA; TIMM, 2004, p. 92).
O movimento metodista e a Igreja metodista, ao longo de sua história, estabeleceram íntima ligação entre Igreja e educação. Conforme já aludido, tanto o referido movimento quanto a citada Igreja trabalharam, especialmente os irmãos Wesley, no sentido de que um cidadão, engajado de suas questões sociais, bem como um espírito crítico para contextualizá-las somado à clareza da fé, poderia formar cidadãos independentes. Vale ressaltar, portanto, que conversão, evangelização e salvação são sinônimos de educação. A Igreja tornou-se parceira na compreensão da obra metodista. Pelo movimento metodista, ficou-me evidenciado que todas as pessoas deveriam ser incluídas, que o diferente deveria ser aceito. Wesley tinha a seguinte expressão, “se teu coração é como meu coração, se amas a Deus e a toda a humanidade, não peço mais: dá-me a tua mão”21. Nessa perspectiva, pude compreender que educar para a cidadania não deveria ser convergente para a manutenção do status que vige, mas deveria caminhar como uma possibilidade radicalmente diferente, bem para a superação da mediocridade e do senso comum. De acordo com Meneghetti (2002, p. 29), “[...] a escola será tão mais cristã quanto mais for capaz de não se impor teoricamente na sua ‘cristandade’ [...] a visão cristã de
21 Tradução: Duncan Alexander Reily. (Transcrita de “Metodismo Brasileiro e Wesleyano”, São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1981, p.123132).
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mundo e que, portanto, considerando as liberdades individuais, devem ser respeitados na sua diferença”22. Meneghetti (2002) também nos ajuda a aclarar que a compreensão de cidadania na modernidade perpassa pelo direito à construção coletivizada. Com isso, permite e possibilita uma vida de hábitos saudáveis e digna para todos os seres humanos e para o planeta, questão essa que deveria ser alvo de uma releitura permanente. Portanto, compreendendo as amplitudes do conceito educacional metodista, não pude deixar de considerar que a música teve papel de destaque no movimento metodista e na Igreja metodista. Fazia parte da missão da Igreja a visão educacional não somente como propagadora da fé cristã, haja vista que ocupou o mesmo lugar que outras matérias contidas nos currículos escolares da época também a tinham. Se estudos já comprovam a força da literatura na constituição da subjetividade, ouso pensar que a Bíblia seja o grande livro de literatura da mulher e do homem cristãos, e minha avó não deixou escapar essa compreensão da vida. No entanto, para além da literatura, a avó a ensinou a amar a música, um dos pilares da educação metodista. Hoje, sei que, se a literatura constitui nossa subjetividade, a música também tem essa mesma força na educação daquele sujeito, metodista ou não, que se envolve com ela. Desde cedo, fui despertada pelo desejo de aprofundar-me nos estudos de canto e regência e, em 2000, realizei esse desejo ao assumir, como regente, o meu primeiro coral. Esse trabalho coletivo resgatou em mim, e acreditando 22 Compactuamos da afirmação do Prof. Luiz Carlos Ramos que “essa opinião, infelizmente, já não é corrente nas instituições metodistas”.
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que também nos participantes, valores e comportamentos que se vinculam. Nas palavras de Komosinski (2009, p. 21), “uma outra lógica e que atende a uma outra necessidade na vida de quem as pratica”. A atividade do coro tem como característica a execução de mais de um cantor para cada parte vocal. Trata-se de um grupo de cantores que estudam conjuntamente nas situações de ensaio e que buscam apresentar-se também conjuntamente. No entanto, essa prática veio se alterando ao longo da história quanto à forma e ao modo de realizar a música conjunta. Para que se possa compreender melhor a característica dessa atividade, é necessário recorrer à etimologia da palavra coro. Interessante observar que na língua inglesa, a palavra choir tem distinção da palavra chorus. Nesse sentido, o Dicionário Grove de Música de Stanley Sadie (1994) aclara-nos dizendo que a primeira é usada para os grupos de cantores eclesiásticos ou os grupos menores de profissionais, enquanto que a segunda é usada especialmente para os grupos grandes e seculares. Na língua alemã, todos os coros são chor, exceto o eclesiástico, que é kirchenchor, coro de igreja em português (SADIE, 1994). Já no português, de acordo com o dicionário citado, o significado da palavra “coro” é o mesmo para o substantivo “coral”, sem, portanto, na prática haver distinção entre as duas terminologias. No entanto, compreendo que, na língua portuguesa (Brasil), a palavra coro é substantivo e coral é o adjetivo, ou seja, o coro (corpo) executa a música coral (tipo de música). Ao longo da história, o coro foi sendo utilizado com várias configurações. Um coro masculino desempenhava pa 74
pel essencial dentro do contexto do drama grego da Antiguidade. Já nos tempos bíblicos, os coros eram usados no culto judaico. No entanto, a tradição coral ocidental começa nos séculos II e III com o cristianismo antigo, cujos escritores faziam referência ao canto de antífona23 e responsórios24. Com o advento da polifonia, os coros sacros habitualmente começaram a executar de forma coral em quatro partes vocais básicas. Conforme o dicionário Grove de Música (SADIE, 1994), a distribuição (soprano, alto, tenor, baixo), assemelha-se à distribuição (soprano, contralto, tenor e baixo) SATB. Durante o final do século XIII e início do XIX, desenvolveu-se uma tradição de apresentações em maior escala, particularmente nos países protestantes. [...] O crescente movimento dos festivais incrementou este desenvolvimento, bem como o de novas tecnologias para a impressão mais barata das músicas e dos novos sistemas para se ensinar a ler música. (SADIE, 1994. p. 226).
A música desenvolvida na Igreja do século XIX veio modificando-se de maneira geral, pois, com o advento da polifonia conforme mencionado, o movimento coral, espe23 “Antífona são frases musicais cantadas por dois coros, um respondendo ao outro; é entoada pelo celebrante antes e depois do salmo.” (MEDAGLIA, 2008, p. 300). 24 “Responso: Nas liturgias cristãs, o texto curto cantado ou declamado pelo coro ou congregação, em resposta ao versículo. Responsório: uma categoria de cântico ocidental que serve como poslúdio musical à leitura de lições. Grandes responsórios ocupam posição de destaque nas matinas e nas vésperas monásticas. A fonte mais antiga remonta ao século XI. Envolvem o canto de um salmo alternadamente entre um solista, que canta um versículo, e um coro, que canta um refrão ou responso. As seções solistas são musicadas polifonicamente no repertório de Notre Dame. No século XVI, os textos eram geralmente musicados na forma de motetos elaborados. Grupos de responsórios continuaram a ser compostos durante o século XVIII. Responsórios curtos são cantados após as breves leituras das horas menores e de completas, no ofício secular, e nas laudes e vésperas, no ofício monástico.” (SADIE, 1994, p. 778).
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cialmente nos países protestantes, foi influenciado e influenciou a música religiosa católica. Nesse sentido, [...] a busca de aprimoramentos na música de igreja pode ser igualmente vista na obra do movimento ceciliano25 nos países católicos romanos da Europa e nas crescentes tradições populares corálicas dos movimentos metodistas e outros movimentos evangélicos nos países protestantes (SADIE, 1994, p. 226).
Portanto, o canto coral, ao mesmo tempo que se reconfigurou artística e politicamente ao longo da história, configura-se também, na sociedade atual, como uma possibilidade de resistência ao modelo social vigente. Segundo Komosinski (2009, p. 21), “as ações coletivas na atual sociedade em que vivemos estão cedendo lugar a uma dimensão individual e egoísta”. Para o autor, essa dinâmica social é fruto de um mundo globalizado surgido nas últimas décadas, resultante de uma “estratégia de dominação perversa que reduz, simplifica e empobrece as experiências de vida dos indivíduos, corrompendo sua subjetividade e privando-os de uma existência rica em significados” (KOMOSINSKI, 2009, p. 21). No tocante à atividade do canto coral, o autor faz a seguinte observação: Assim, ao mesmo tempo em que a atividade do canto coral faz parte desse atual contexto psicossocial, ela pode, potencialmente, atuar como dispositivo (na acepção de Baremblitt, 2002) produtor de uma transformação social que permita aos indivíduos simbolizarem, significarem, ressignificarem [...] Enfim, que lhes permita resgatarem valores e resgatarem sua subjetividade (KOMOSINSKI, 2009, p. 21, grifo do autor). 25 “Movimento pela reforma da música da Igreja Católica, no século XIX, centrado nos países de língua germânica e na França. Pregava o desenvolvimento de um estilo sóbrio de canto coral sem acompanhamentos (incluindo a polifonia renascentista) a recriação de uma tradição ‘autêntica’ de canto gregoriano e a integração da música ao serviço.” (SADIE, 1994, p. 778).
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Ao refletir sobre a prática do canto coral no que se refere ao olhar dos sujeitos nas relações com outros sujeitos e consigo próprio, Raymond Murray Schafer (1991) explana no sentido de que a experiência educativa do canto coral busca também o desenvolvimento da musicalidade dos indivíduos, o que, em se tratando da prática coletiva, só acontece do coletivo para o individual. De acordo com as palavras de Kerr (2006, p. 131): “[...] Considero a linguagem coral como uma linguagem/espetáculo: um encontro entre diversas linguagens centradas pela dinâmica dos sons”. Reconhecer os efeitos que a música provoca em nós não nos limita a compreendê-la como uma atividade reflexa do ser humano, mas como uma produção cultural. Assim, podemos compreender que as diferentes culturas têm significados de escutas diversas para essa produção. Posto isso, a partir da perspectiva histórico-cultural, considero que os processos psicológico-humanos são também mediados pela música, se a entendermos cultural e historicamente desenvolvida e resultante da atividade de produção de diferentes grupos humanos. Como produção cultural e histórica de diferentes grupos humanos, o desenvolvimento da musicalidade não acontece desconectado do desenvolvimento da subjetividade das mulheres e dos homens; eles se (co)relacionam e dialogam sistematicamente. No processo de aprender música, vivenciamos o que Vigotski (1984) chama de internalização, sendo esta não somente dos elementos sonoros já passados pelo processo de mediação na relação com outras pessoas, afinal, foram compostos por alguém, mas também da construção do processo de interação com outros seres humanos. 77
No processo de fixação das músicas aprendidas, essas “construções” vão passando de pessoa a pessoa, de geração a geração. Para Sheila Christine Freire de Matos Hussar (2012, p. 38), Dos primórdios da humanidade à contemporaneidade, o som integra as práticas socioculturais humanas, sendo estas determinadas pelo contexto concreto de produção dos meios de vida de diversos grupos sociais e determinantes ou constitutivas das funções psicológicas superiores do gênero humano – tais como atentar, pensar, sentir, falar, memorizar, cantar, tocar – ao longo da sua história. Percebendo os sons e os silêncios, interpretando-os, recriando-os, selecionando-os, significando-os, representando-os, o ser humano os transforma em música.
Assim, Ruy Fausto (2002, p. 163) nos coloca que “só a música desperta no homem o sentido musical, a mais bela música não tem nenhum sentido para o ouvido não musical”. Cabe ressaltar que se entende ouvido musical como aquele que está exposto à música e que só é capaz de reconhecê-la se já teve contato com ela. Não se pretende aqui elitizar a música como se houvesse uma espécie de dom ao escolhido, mas enfatizar a música como produto social. Posto isso, sendo o canto coral resultado dos movimentos culturais humanos desenvolvidos ao longo da história, conforme já mencionado, compreendo não somente sua relevância para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, mas também como dinâmica que possibilita um (re)colocar-se para si e para o outro. Nesse sentido, as diferentes vozes, da mesma forma que buscam durante os ensaios e as apresentações o equilíbrio entre si, seja do ponto de vista da dinâmica, do rítmico, do harmônico ou do melódico, passam também a buscar 78
no mundo dos sons a interação com o outro. É como se houvesse uma transposição do mundo musical, que está em constante busca pelo belo e pelo equilíbrio, na busca de que isso pudesse acontecer no mundo das interações e das relações, inclusive da pessoa consigo mesma. Segundo Viviane Rocha e Paulo Sérgio Boggio (2013), a área da neurociência tem se inclinado a estudar as diferentes possibilidades de intervenção da música no desenvolvimento das habilidades humanas. Entre esses estudos, destacamos o artigo intitulado A música por uma óptica neurocientífica (ROCHA; BOGGIO, 2013), bem como o livro A música no seu cérebro26. Na área da neurociência, comprova-se que as percepções realizadas pelos sentidos humanos (visão, audição, olfato, etc.) somente se concretizam de fato em nosso cérebro em áreas específicas e destinadas a isso, conforme aponta John H. Martin (1998). Em outras palavras, Komosinski (2009, p. 36) expõe que [...] cada estímulo físico que classificamos como sendo um som, por exemplo, só é de fato escutado lá em nossa mente e não em nossos ouvidos. Estes últimos são meros receptores de impulsos vibratórios que se transformarão no fenômeno psicológico que denominamos ‘som’ quando/se transformados em sinais elétricos capazes de atingir as áreas do cérebro responsáveis pela audição. É com base neste fundamento anatomo-fisiológico que Baddeley refere-se à existência de uma espécie de ouvido interno quando fala do armazenador auditivo.
Aclara-nos ainda Komosinski (2009, p. 24) o quão complexa é a atividade musical, razão pela qual se pode obser26 O autor do respectivo livro é o neurocientista Daniel Joseph Levitin. Nessa obra, busca-se abordar a história de como o cérebro e a música evoluíram paralelamente: aquilo que a música pode nos ensinar a respeito do cérebro, o que o cérebro pode nos ensinar sobre a música e o que ambos podem dizer a nosso respeito (LEVITIN, 2011).
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var o quanto se faz estreita sua relação com o desenvolvimento das funções mentais tipicamente humanas: Por ser uma atividade humana extremamente complexa, a música oferece uma vasta gama de tópicos passíveis de serem investigados [...]. Dentre esta grande quantidade de elementos [...] investigados – percepção, atenção, coordenação motora, etc. – o funcionamento de nossa memória tem sido um dos mais ricos objetos de estudo dessa relativamente nova área do conhecimento.
As funções mentais psicológicas superiores, tais como a percepção, a atenção, a coordenação motora e o funcionamento de nossa memória, são características tipicamente humanas que não são inatas, genéticas, mas, sim, o resultado de uma interação dialética das mulheres e homens com seu meio sociocultural. As funções culturais, segundo Vigotski (1984), seguem a lei denominada por ele de “lei genética geral do desenvolvimento cultural”, isto é, cada função no desenvolvimento do sujeito aparece em cena duas vezes, primeiramente no plano social e posteriormente no plano individual. Assim, entendo que o coral também pode ser considerado espaço educativo e de relevância para o desenvolvimento humano. Ou seja, o regente tem que compreender que há um processo de internalização ou de passagem das formas sociais das relações entre as pessoas (plano interpsíquico) para as formas individuais da atividade psíquica (plano intrapsíquico). Ele também deve considerar as relações durante os ensaios e as apresentações como um acontecimento intersubjetivo, no qual diferentes saberes se articulam em função da produção de articulações e circulações de um novo conhecimento a ser apropriado pelos sujeitos. 80
Dentro de um sistema social, e, portanto, também no coral, a relação entre os sujeitos adquire um significado próprio por meio da internalização, e ela somente acontece pela mediação. Aponta-nos, nesse sentido, Fontana (1991, p. 7) que: [...] é no curso de suas relações sociais (atividade inter-pessoal) que os sujeitos produzem, se apropriam (de) e transformam as diferentes atividades práticas e simbólicas em circulação na sociedade em que vivem, e as internalizam como modos de ação/elaboração ‘próprios’ (atividade intra-pessoal), constituindo-se como sujeitos.
O regente, ao mediar e ser mediado durante os ensaios e as apresentações, deve ter um olhar e uma escuta contínua e dialógica, o que possibilitará aos cantores se reconhecerem, também, como participantes de um grupo maior – o coro – de forma acolhedora e instigante para novas formas de ver e pensar sobre o mundo e sobre si mesmos. A coletividade do coro faz com que ele seja acessível a várias pessoas, desde as mais leigas musicalmente até aquelas que possuem uma musicalidade mais desenvolvida, além de buscar fazer com que essas diferentes vozes se misturem umas às outras, não se permitindo que elas se individualizem, com exceção dos momentos específicos para os solistas. Nesse sentido, é possível afirmar que o canto coral é mais que uma expressão artística, pois se constitui como um espaço de aprendizado, de socialização e construção cultural. Não é apenas pedagógico ou emocional, mas lúdico e expressão estética. Deste modo, o traço distintivo de emoção estética é precisamente a retenção de sua manifestação externa, enquanto conserva ao mesmo tempo uma força excep-
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cional. Poderíamos demostrar que a arte é uma emoção central, é uma emoção que se resolve predominantemente no córtex cerebral. As emoções da arte são emoções inteligentes. Em vez de se manifestarem de punhos cerrados e tremendo, se resolvem principalmente em imagens e fantasias. (VIGOTSKI, 1999b, p. 267).
Entre essas múltiplas possibilidades nas quais a atividade expõe, considero que todas se inter-relacionam e se interdependem. Todavia, destaco a questão pedagógica, pois compreendo que as emoções, advindas das relações, são organizadores internos. Não é a razão que nos localiza enquanto humano, mas as emoções advindas das experiências é que possibilitam um trabalho pedagógico que vai em direção contrária à pesquisa naturalista. Assim, considero ultrapassado compactuar com a ideia de separação entre razão e emoção27. Ao referir-me ao canto coral no sentido de que “não é somente pedagógico e emocional”, não se está atribuindo valores às expressões citadas, pois não se faz distinção valorativa entre os aspectos pedagógico, lúdico, emotivo e estético. Para tanto, compreendo o coral como um espaço que comporta essas quatro possibilidades. No aspecto pedagógico, por exemplo, entendo o momento da apropriação do som, o ensaio (processo) propriamente dito, como o momento em que o regente apresenta a música e exercita tecnicamente o som.
27 “A psicologia dos séculos XIX e XX constitui-se como ciência tendo um caráter marcadamente naturalista, influenciada pelas ciências da natureza e debate-se sobre as questões filosóficas e suas arraigadas dicotomias. A questão da consciência e do comportamento emerge como objeto de estudo e investigação em diferentes campos e abordagens, colocando em discussão os instrumentos metodológicos para solucionar essas contradições, resolver dicotomias, oposições entre natural e social, autonomia e determinação, interno e externo, corpo e mente, razão e emoção.” (MANGIOLINO, 2010, p. 33).
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No caso dos momentos lúdicos (cuja tônica está no prazer de realizar a arte), – aqueles em que o coral já se apropriou minimamente do som, do texto e do contexto –, a busca é pelo diálogo entre o contexto da peça e os significados que o coral constrói, ou seja, é o momento em que o regente, para dar sentido à música, busca traduzir sua própria emoção (história de vida e técnica), é o momento em que a afinidade coro/regente necessita aflorar para haver diálogo entre a própria emoção (do regente) e a emoção dos sujeitos. No entanto, não se furta também de observar que, mesmo no processo pedagógico, existe o momento lúdico, emotivo e estético que se constituem simultaneamente. O emotivo é o momento em que tudo que já foi acessado deverá aparecer. Nesse momento, os alunos dão sentido, também pelos próprios meios, ao solicitado, é a hora em que a emoção é sentida e realizada, sentida por meio da própria voz, a emoção que é capaz de produzir sentimentos em si e no outro. O sentido estético no coral é o último sentido a ser organizado, pois cada um refletirá em si e no toda a beleza do aprendido e apreendido. São as emoções que remetem a uma outra lógica que não está no cotidiano, é a dimensão de compreender a beleza não pela compreensão, mas, no caso do canto coral, pela vivência, uma vez que este, conforme aludido anteriormente, é uma prática bastante democrática, pois só pode ser desenvolvida coletivamente. Figueiredo (2006, p. 9) faz a seguinte reflexão: “cantar em coro deveria ser sempre uma experiência de desenvolvimento e crescimento, individual e coletivo: o desenvolvimento da musicalidade e da capacidade de se expressar através de sua voz”. 83
Desde o aparecimento das sociedades corais na Europa do século XIX, o canto coletivo vem se tornando uma expressão cada vez mais pluralizada. Nessa perspectiva, o canto coral pode ser pensado também como um corpo social pelo fato de sua prática permitir a (re)significação de hábitos sociais e culturais que atingem não somente o grupo, mas todas as pessoas que estão envolvidas com ele, seja de forma direta ou indireta, por exemplo, aqueles que acompanham o trabalho ou, então, a própria plateia, que se envolve com as apresentações. Héctor Nardi (1979), ao pensar no canto coletivo, compara o coro com uma amostra da sociedade em que está inserido. Em termos de dinâmica, o coral se opõe à sociedade individualista e mercadológica, cuja lógica não prioriza o social. Diante disso, compreendo que o coral resiste à lógica aludida, pois conforme já mencionado, é uma atividade que somente se realiza no/pelo social. É preciso a valoração do individual para que se possa realizar o todo. No entanto, o coral, por estar contido na macroestrutura, reflete a lógica individualista na ausência, cada vez maior, de atividade coral nas próprias igrejas metodistas. Temos dito a princípio que o coro é uma expressão musical de profundo conteúdo social, por extrair sua substância desta mesma vida. Essa característica se põe de manifesto com maior evidência nos coros de aficionados, onde geralmente sua composição humana está formada por pessoas de diversas extrações sociais, que desenvolvem ocupações diferentes na vida diária. (NARDI, 1979, p. 11).
Considerando, então, o canto coral como um corpo social, há de se considerar a existência de alguns atores. Figueiredo (2006) compartilha ainda a analogia de que o canto coral se assemelha à dinâmica de uma tribo por pos 84
suir rituais típicos, tais como ensaios e apresentações, objetos culturais imprescindíveis, por exemplo, a música e a partitura, bem como seus personagens principais, como o regente e os cantores. Dessa forma, cada coro, assim como cada tribo, tem sua própria cultura, pois ele possui uma sonoridade que lhe atribui uma identidade, e cada grupo desenvolve seu próprio repertório, que vai transparecer e diversificar de acordo com sua característica cultural. Entre as possíveis leituras sobre o canto coral, cabe lembrar que se tratar de uma atividade que abrange diversos processos. Percebemos que, por se tratar de um espaço pluralizado, espaço constituído por diferentes relações interpessoais, há nessa dinâmica a intencionalidade de promoção da integração e da inclusão social, bem como de relações de ensino e aprendizagem. Para os sujeitos envolvidos em tal prática, o canto coral torna-se espaço profícuo para o aprimoramento e desenvolvimento da musicalidade, uma vez que a música nos atinge especialmente de maneira espontânea. Esse estado nos permite ouvir e fazer música, tocar e ser tocado por uma forma afetiva, ou seja, conforme os dizeres de Mathias (1986, p. 15): Na dimensão psicológica serão percebidas a emoção, a vontade e a razão. A emoção é o resultado da captação dos fenômenos que atingiram a sensibilidade, favorecendo maior abandono do grupo ao sabor do som. A vontade, que não é voluntarismo, é a força interior que levará o grupo a vencer os obstáculos para se conseguir seus objetivos. E a razão envolve a análise e a seleção de combinações mais adequadas para se atingir à harmonia e a unidade que farão fluir a força interior. [...] A dimensão política nascerá da necessidade de se organizar o grupo. As funções de cada elemento, a sua manutenção, o meio para aperfeiçoá-lo. [...] É a preo-
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cupação com o bem comum. A dimensão mística [...] favorece também a percepção de uma outra realidade da pessoa humana. A vivência da unidade, harmonia, beleza, imanentes ao mais profundo de cada um de nós conduzirá naturalmente à vivência da Unidade, Harmonia, Beleza que transcendem o nosso espaço interior.
No entanto, isso só será possível se as pessoas envolvidas se sentirem motivadas, se a mediação que possibilita o aprendizado e a organização do coral caminhar em um sentido em que os sujeitos sintam-se envolvidos afetivamente e se a convivência com o grupo social for preservada. Nesse sentido, afirma Figueiredo (2006, p. 5-6): O regente é um importante agente modificador. Ele modifica seus cantores, a música que é executada e o público que ouvirá o grupo em apresentações. Mas o regente também é modificado pelo coro, pelo público e pela música. É especialmente neste jogo de mútuas influências e transformações [...] Não podemos perder de vista que, ao lidar com sua expressão gestual, o regente está tocando em questões de sua história corporal e, consequentemente, psicológica. Toda sua atividade vai ser influenciada neste processo.
A preservação desse cenário cabe ao regente, que, em sua formação, não basta ater-se tão somente ao domínio técnico, mas também à gestão e condução de um conjunto de pessoas, isto é, o regente deverá ser interessado em relacionar-se intersubjetivamente com seus cantores, tal como o professor o é com seus alunos. Segundo Murillo de Avellar Hingel (2000, p. 16), [...] nós precisaremos de mais e mais professores. Mas que professores? Um pouco diferentes, sem dúvida nenhuma, porque o papel vai ser outro. Vai ser um papel de intermediação, de valorização da identidade de cada educando, de mostrar ao educando que os bens que hoje são colocados à nossa disposição não substituem
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as relações sociais em que devem predominar o sentimento da amizade, da solidariedade, da fraternidade.
Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque Carneiro (2005), com sensibilidade e olhar apurado, discorre que é preciso arte no olhar e no perceber a conexão entre todas as coisas, pois os conhecimentos são entrelaçados. É preciso abrir uma janela dentro da alma, e é essa abertura que faz com que as pessoas aprendam a aprender sempre e constantemente. Recordemo-nos de que nenhuma metodologia, por mais brilhante que seja, fará sentido se o professor não proceder a uma mudança no interior na vida de seus alunos. Na maneira de olhar, ver e sentir e no caso do coral, essa mudança é conduzida pela maestrina ou pelo maestro. Todos podem ter uma impressão sobre a obra a ser estudada. O cantor, o pianista, os ajudadores, todos sentem a música; no entanto, cabe ao regente, ao interpretar a música, traduzir não somente o próprio sentimento, e acessar o seu leque de conhecimentos, mas transformar esse sentimento em som, em música e em relação. A arte não está no inalcançável, no intangível, pois no canto coral há possibilidade de externalização dos sentimentos, os quais são transformados em arte. Assim, posso ousar entender que somos a própria arte. Nos dizeres de Fernando Pessoa (1982, p. 207), A arte serve de fuga para a sensibilidade que a ação teve que esquecer. A arte é a Gata Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser. [...] Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista porque todos têm sentimentos.
Compreendo como arte toda relação do homem com o mundo e a relação dele consigo mesmo. Nessa perspectiva, 87
entendo que o olhar e o sentir artístico só existem porque partem do olhar humano. A conceituação de arte, não obstante, é construção humana e cultural. Para o coral, essas relações acontecem mediadas pela voz, ou seja, não há necessidade de utilizar-se de qualquer outro instrumento que não seja o próprio corpo, a própria voz. Até aqui, busquei compreender a importância da história metodista e dos elementos desta relacionados à música. Por sua vez, essa história mostra a importância do papel educativo da atividade artística e cultural, assim como revela os meus modos de ver/sentir/pensar. Já no próximo capítulo versei sobre a relação que há entre a música e uma instituição de ensino superior, a Unimep.
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CAPÍTULO II A MÚSICA E A RELAÇÃO COM A EDUCAÇÃO METODISTA NA UNIMEP
A
té o presente momento, abordei,
na introdução deste trabalho, a contextualização do diálogo com os estudos já realizados sobre a temática e, no primeiro capítulo, o universo conceitual do objeto de reflexão. Neste capítulo, objetivo analisar o valor da música para a educação metodista. Apresentarei, também, parte do trabalho desenvolvido pelo maestro Umberto Cantoni, cuja proposta inovadora permitiu o ingresso e a permanência de alunos no coral e na Unimep. Abordarei, na próxima seção, alguns aspectos da teologia desenvolvida pelos irmãos Wesley e a importância social e musical enfatizada por eles. 2.1 Da Teologia de John e Charles Wesley: uma perspectiva do compromisso social e de sua produção
Na perspectiva metodista, a música traz em si um caráter que transcende a questão educacional. Transcende não no sentido de deixa-la para trás, mas de reconhecer que a música é elemento importante para evangelizar, pois, para o movimento metodista, a salvação passa(va) pela educação. 89
Cabe ressaltar que, de acordo com a perspectiva metodista28, fé e educação são conceitos que se complementam, pois não se entende ser possível compreender a mensagem do Evangelho – em uma perspectiva teológica – sem que os sujeitos tenham a oportunidade de ler, escrever ou desenvolver-se intelectualmente – via educação. O movimento metodista acreditava que a educação poderia ser um processo de formação e constituição de sujeitos capazes de construir uma nova sociedade. John Wesley29, fundador do movimento que surgiu no século XVIII, juntamente com seu irmão Charles Wesley30, acreditavam que a educação era um canal primordial para a formação de um novo cidadão e de uma nova sociedade31. 28 “O metodismo nasceu na Inglaterra, dentro da Igreja Anglicana, como movimento de reavivamento espiritual e preocupação social. Foram protagonistas desse movimento os pastores anglicanos John Wesley e Carlos Wesley, que, na Universidade de Oxford, juntamente com outros amigos, participavam de um grupo de estudo da Bíblia, oração e visitação aos encarcerados.” (MESQUITA, 2001, p. 11). 29 “Os estudos universitários de João Wesley iniciaram-se aos dezessete anos; o início da vida docente, em 1725, aos 22 anos; e sua ordenação ao ministério da Igreja Anglicana, em 1728, aos 25 anos. Escapando da tentação pietista de equacionar sua prática religiosa de modo solitário, forma o primeiro grupo composto por colegas contemporâneos para devoção, estudo bíblico, prática regular do jejum e auto-avaliação. A partir de 1730, o grupo decide, no contexto da vida disciplinada, orientar a devoção para a prática efetiva do amor. Eles passam a visitar regularmente os detentos das prisões da região.” (CÉSAR, 2003, p. 62). 30 “Charles Wesley nasceu em 18 de dezembro de 1707, em Epworth, Lincolnshire, Inglaterra. Foi o décimo oitavo e último filho de Samuel e Susanna Wesley. Carlos, assim como João, recebeu educação em casa, ministrada por seus pais. Mais tarde, foi admitido na Westminster School, onde seu irmão Samuel era assistente. Em Westminster School, Carlos ganhou reputação de defensor de colegas que sofriam algum tipo de perseguição, principalmente dos alunos mais velhos. Agraciado com uma bolsa de estudos de sua escola, ingressa no Christ Church da Universidade de Oxford, seguindo os passos do seu irmão João. Recebeu o grau de Bacharel em Artes (BA) em 1730 e o de Mestre em Artes (MA) em 1732. Em Oxford, ele e seu irmão fundaram, em 1729, o Clube Santo, com a finalidade de cultuar a Deus e também prestar assistência a doentes e prisioneiros. Eles logo receberam o apelido de metodistas.” (MONTEIRO, 2008). 31 Embora haja a tradução do nome dos irmãos Wesley para o português, optou-se pelo original em inglês. No entanto, no caso das citações diretas, será
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Segundo nos conta a história, os irmãos Wesley eram tataranetos de ministros anglicanos, netos e filhos de ministro, o que nos demonstra uma tradição familiar religiosa. Tendo uma infância com educação religiosa sólida e com base educacional bastante consolidada, fundamentada em preceitos bíblicos, os irmãos Wesley estavam convictos de que fé e educação poderiam colaborar na consolidação de uma sociedade mais justa e instalar o Reino de Deus32 na terra, de modo que a salvação pudesse ser vivida não somente no céu, mas também na terra. Corroborando a perspectiva teórica assumida neste trabalho, pude verificar neste estudo que a formação dos irmãos muito influenciou para que conseguissem desenvolver o próprio olhar. Não nos causa estranheza o fato de que os irmãos receberam o grau de bacharel e, depois, o de Mestre em Artes. Entre os episódios que a história dos irmãos relata, pude destacar a grande preocupação e efetiva ação transformadora, por exemplo, em relação aos filhos dos mineiros, que não tinham a possibilidade de estudar devido às desigualdades sociais vivenciadas na Inglaterra do século XVIII. Por essa razão, os irmãos proporcionaram a possibilidade de alfabetização e busca de formação a essas crianças.
mantida a forma do autor. 32 “Para Walter Rauschenbusch (1961-1918), líder do movimento do evangelho social no início do século XX nos Estados Unidos da América e um dos responsáveis diretos pelo ‘Re’, surgimento do símbolo Reino de Deus na teologia cristã. O ‘Reino de Deus’, mesmo não tendo sido um eixo importante da pregação da Igreja Primitiva, tornou-se tema central nas principais expressões teológicas contemporâneas. Não há entre os teólogos um consenso sobre as implicações e significados da expressão, porém, ‘existe uma concordância básica’ em ser este um tema central dos evangelhos em que o viver cristão deve fazer-se em resposta a este Reino.” (CASTRO, 2005. p. 87).
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Podemos compreender, então, que essa transformação proporcionada pela visão dos irmãos, era uma forma de efetivamente demostrar o que significa a possibilidade da vivência do Reino de Deus na terra. Para aclarar o entendimento desse viver, apresento as palavras de Paulo Ayres Mattos (2000, p. 70): Esta concepção do Reino de Deus dá ênfase à sua presença na história e na criação, transformando-as através do julgamento e da misericórdia de Deus. O Reino já está presente no aqui e no agora dentro das lutas que determinam as realidades do mundo. Em meio à injustiça, opressão, discriminação, marginalização, violência, sofrimento e morte, estão sendo manifestas a justiça, a liberdade, a inclusão, a alegria, a paz e a vida.
Com isso, não se está afirmando a posição fundamentalista sobre a educação formal como única possibilidade para o caminho da justiça social. Conforme já mencionado, não se adotou neste estudo a maneira formal de ensino como única possibilidade de libertação. As relações, que podem ser por meio da educação formal ou não formal, são válidas quando há partilha de valores do ser humano. Vale ressaltar, no entanto, que, à época do início do movimento metodista, a educação formal foi de valia para que outras formas de se compreender o significado de libertação pudessem ser buscadas. Compreendo essa libertação como o ato que só seria possível a partir do momento em que fosse possível fazer com que os cidadãos à margem do sistema conseguissem compreender que é por meio do pensamento e de ações de cunho crítico que se vislumbraria uma nova forma de vida e de sociedade. Nesse momento, chamo a atenção para o fato de que a informação, por si só, não modifica a realidade se não for mediada. Não se 92
pode perder de vista que a modificação se dá pelo acesso à informação, mas não se concretiza se o objetivo não for para a formação. Marcados pela própria história de vida, e considerando a formação dos irmãos, fica evidente o quanto a arte marcou a maneira de eles relacionarem-se com o divino e com o humano, mediando os processos educativos de sua formação pessoal por meio da música e pela leitura dos textos sagrados. Ramos (2010) afirma que a arte pode ser também considerada como um modo de expressão da cultura de uma sociedade. Segundo o autor, a música tem caráter universal e essencial para a condição humana, pois aproxima por intermédio dos elementos divinos e humanos o “tom” da nossa existência, e sugere e condiciona possibilidades para as condições vitais. Se pensarmos em melodia, harmonia e ritmo, elementos nucleares da expressão musical, podemos constatar que o próprio Universo é música. Dizem os cientistas que as estrelas pulsam, que o cosmo se move harmonicamente, que se prestarmos bem a atenção, poderemos ouvir o eco do ‘big bang’. E, segundo os poetas, o próprio Deus é música: ‘No princípio era a música, e a música estava com Deus, e a música era Deus...’ (Carlos A. R. Alves). O fato de que, na narrativa bíblica, ao criar o mundo, Deus o faz mediante a sua palavra ritmada (‘Disse Deus...’ – Gn 1.3), já é um indício de que nós somos o resultado de um canto primordial, de um hino primevo, de uma música divina. (RAMOS, 2010, p. 55, grifos do autor).
Voltando à questão histórica quando do surgimento do movimento metodista, em 1728, a sociedade inglesa passava por grave crise de desigualdade social. John Wesley acreditava que os cristãos deveriam ter conhecimento de sua fé e da sociedade em que viviam. Naquele difícil 93
contexto, em meio à Revolução Industrial, com todas as consequências surgidas da produção em larga escala, do mercantilismo, das teorias econômicas, do Iluminismo, do Racionalismo e do empirismo, metodistas da Universidade de Oxford, liderados por John, mas iniciados por seu irmão Charles, que por essa razão é chamado de “o primeiro metodista”, prestavam assistência aos necessitados, entregando alimentos, educando crianças em albergues, fornecendo lãs e outros materiais para que a população pudesse fazer sua própria roupa. Embora John tenha se tornado o líder do movimento metodista, a importância de Charles, em seu início, foi tão significativa quanto à do irmão. Nesse sentido, Monteiro (2008, p. 16) aponta que João foi um dos organizadores do metodismo, mas Carlos Wesley foi quem desenvolveu a teologia prática do mesmo e quem com seus hinos atraiu muitas pessoas ao metodismo. Só para se ter uma ideia, uma seleção de seus hinos, publicada em 1739, tornou-se imediatamente muito popular. Por volta de 1750, o metodismo torna-se um fenômeno nacional e uma intensa perseguição se inicia. Mesmo assim, ouve-se dizer que naqueles tempos, quando muitos viajavam a cavalo, era possível saber que um metodista estava chegando pelo seu cantar.
Diante do exposto, embora John tenha sido o grande mentor do movimento, não se pode deixar de ressalvar a participação fundamental de Charles Wesley, o qual por meio da música contribuiu para a rápida propagação acerca do movimento iniciado. Com isso, ouso imaginar que Charles percebia o potencial que a música trazia para a sensibilização de si mesmo e do outro, pela própria experiência familiar e artística.
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A contribuição de Charles ultrapassou os limites do discurso teológico e coube a ele, como disse Monteiro (2008), a teologia prática do movimento, ou seja, sem Charles o movimento perderia o que lhe dá, além da mensagem teológica, identidade: a música. Apesar de os irmãos Wesley terem composto diversos hinos33 conjuntamente, Charles compôs muitos deles sozinho, que ficaram conhecidos como a marca de sua contribuição lírica34 para a expressão da teologia wesleyana, uma vez que a experiência da fé não conseguiria ser expressa somente por palavras. A teologia que João Wesley escrevia e pregava, Carlos a expressava em versos que, na forma de hinos, eram apropriados para a congregação numa forma de teologia cantada; cantada como oração, louvor, exortação [...] A poesia nos ajuda a expressar idéias, experiências e verdades que nos falam mais profundamente e diretamente. (MONTEIRO, 2008, p. 21).
Conforme mencionado, as temáticas dos hinos compostos por Charles Wesley expressavam a teologia metodista que os irmãos Wesley pregavam. Segundo Omir Wesley Andrade (2008), os metodistas, na Inglaterra do século XVIII, assimilaram as ênfases teológicas do movimento metodista especialmente por meio dos hinos que cantavam. Seu principal tema de composição sintetiza, muito provavelmente, o que a teologia metodista expressa, de maneira bastante convicta, não somente no campo da fé,
33 “Hino: canto festivo de exaltação aos deuses ou heróis, composto para louvar um país, um ideal, um ideia, um acontecimento, um clube etc.” (MEDAGLIA, 2008, p. 312). 34 Conteúdo lírico: neste caso, refere-se à obra em verso feita para canto ou própria para se musicar; especificamente as letras dos hinos (MEDAGLIA, 2008).
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mas também no campo educacional, seu princípio fundamental: o amor. Nesse sentido, César (2006, p. 43), acerca do projeto de Jesus, ressalva: [...] O critério fundamental que explica a prática de Jesus foi a compaixão pela massa socialmente marginalizada, sua misericórdia pelos pobres. Sua oposição às elites se sustentava na ausência absoluta de misericórdia, por parte delas, diante do sofrimento do pobre. ‘Vendo Jesus às multidões, compadeceu-se profundamente delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor (BÍBLIA, Mateus 9.36).
É interessante observarmos que a Reforma Protestante , liderada por Lutero, enfatizava que a graça36 de Deus não passava, entre outras questões, pela compra de indulgências. A graça de Deus era acessível a todos, motivo pelo qual rompe com a Igreja Católica Romana. 35
35 “O marco inicial da Reforma Protestante acontece em 31 de outubro de 1517, quando o monge Martinho Lutero afixa suas 95 teses na porta da catedral de Wittenberg. A intenção de Lutero era apontar as falhas e contradições da Igreja Católica. A partir desta iniciativa, outros líderes promoveram ações que foram consideradas reformistas, como as Reformas Calvinista, Anglicana e Anabatista.” (VALENTIN, 2010, p. 61). 36 Compartilha-se com as reflexões acerca da graça trazidas por Dietrich Bonhoeffer (2005, p. 21), o qual expõe que “o referido conceito não tem sido explicado na sua radicalidade”. Segundo o autor, “é esse o significado de discipulado [...] para ele, a graça de Deus que não nos compromete ao discipulado é graça barata e, portanto, de pouco valor. Cristãos barateiam a graça de Deus à medida que não a transformam em vida concreta, diária”. Para Bonhoeffer (2005, p. 21), “a graça barata é uma aberração; baratear a graça de Deus é uma afronta ao próprio Deus. Aduz ainda que a graça preciosa é o Evangelho que se deve procurar renovadamente, o dom pela qual se tem que orar a porta à qual se tem que bater [...]. É preciosa por condenar o pecado e graça por justificar o pecador”. O referido autor era professor universitário, doutor em teologia, pastor luterano, protagonista dos primórdios do movimento ecumênico e a figura central da resistência da Igreja Protestante Alemã diante do nazismo, durante a Segunda Guerra Mundial. Por esta razão, foi mártir por sua declarada submissão a Deus e de sua resistência às forças políticas adversas de seu tempo.
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As mudanças que Lutero propunha ultrapassavam o caráter teológico, pois sua principal busca estava diretamente ligada à educação. As críticas de Lutero e sua direta ligação com a educação promoveram mudanças que nos atingem até hoje. À época, houve a reestruturação do ensino alemão, inaugurando uma escola moderna.37 Fica evidenciado que a Reforma Protestante ia ao encontro dos interesses da burguesia. Inspirada pela doutrina calvinista, implementa a concepção de que o trabalho enobrece o homem, bem como o acúmulo de capital38, ao contrário do que dizia a Igreja Católica, ou seja, não era pecado, mas uma recompensa divina. Muitas críticas foram atribuídas à lógica pensada pela reforma protestante, especialmente no sentido de contribuir para o crescimento e consolidação do capitalismo39. Em outro momento histórico, diante da reforma calvinista40 foi ressaltada a importância e a incontestável soberania de Deus. Nasce, por conseguinte, a concepção de predestinação.
37 “A ideia da escola pública e para todos, organizada em três grandes ciclos (fundamental, médio e superior) e voltada para o saber útil, nasce do projeto educacional de Lutero.” (FERRARI, 2005, p. 30-32). 38 Cabe ressaltar que neste trabalho compreende-se como lógica capitalista o acúmulo de riqueza visando lucro. A pesquisadora deste trabalho não gostaria de fazer uma interpretação ingênua e apaixonada em relação a essa questão, no entanto ela partilha da concepção de que a gênese da Reforma Protestante não tinha interesse em alavancar o capitalismo. Acredita-se que o capitalismo utilizou-se de parte da reforma para se justificar enquanto lógica de exploração. 39 Tendo Martinho Lutero contestado as práticas de indulgência praticadas pela IgreRomana, entre outras teses, desmitificou o acúmulo de riqueza como algo pecaminoso, colaborando para que a lógica capitalista do acúmulo de riquezas fosse avalizada pelos protestantes. 40 João Calvino, um importante reformador do século XVI. enfatizou a soberania de Deus fazendo uma releitura do que propôs Martinho Lutero.
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Assim, o movimento metodista, tinha como norteador os pontos levantados pelos reformadores, ou seja, a graça e a soberania de Deus. Segundo Ismael Forte Valentin (2010), um exemplo típico da influência do pensamento da reforma calvinista e da educação podemos encontrar nas origens da Igreja Metodista. John Wesley não desconsiderava a leitura teológica dos reformadores, mas, na tentativa de resumir e ampliar as possibilidades da relação da mulher e do homem com Deus, enfatizou o amor. O significado do amor pregado por Wesley tinha como pressuposto o seguinte versículo bíblico, “ama a Deus sobre todas as coisas e ao teu próximo41 como a ti mesmo” (BÍBLIA, Lucas 10:27; Marcos 12:30-31) Poderíamos, então, ousar afirmar com Peri Mesquida (1993, p. 31) que “[...] o movimento metodista wesleyano dessacraliza o templo e sacraliza a escola [...]”, pois a perfeição cristã só seria alcançada via educação; assim, a questão educacional tem também uma fundamentação teológica. Dessa forma, a questão do amor parece-me ficar entrelaçada com a questão educacional, ou seja, viver o evangelho priorizando o cuidado com o próximo, possibilitando-lhe também o acesso à educação.
41 Segundo Bonhoeffer (2005), quem é próximo de quem? “O samaritano transformou-se no próximo por sua solidariedade a alguém que ele não conhecia; o assaltado, de repente, foi o próximo do samaritano, a quem ele tampouco conhecia. O próximo não é necessariamente o que está ao meu lado e é meu amigo, parente ou conhecido. O próximo entra em cena de repente, sem aviso, sem apresentação: ele precisa de mim. Talvez jamais o tenha visto, talvez esteja distante geograficamente. No momento em que ele precisa de ajuda, serei o seu próximo e ele me será próximo [...]”. “Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis demais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste”. (BÍBLIA, Matheus 5:46-48).
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Diante da herança histórica, o principal objetivo das escolas confessionais deve(ria) ser no sentido do exercício consciente e crítico da cidadania, ou seja, educar o ser humano criado à imagem de Deus. Neste momento, faço uma ressalva para o fato de que atualmente o esforço das instituições protestantes e católicas tem sido voltado à promoção da cidadania, embora muitas vezes isso não ocorra. Reconheço os esforços, porém várias dessas instituições têm se curvado à lógica de mercado. Entendo que a educação, muito embora necessite de planejamento econômico, não deveria ser confundida a administração educacional confessional com administrações voltadas tão somente para o comércio. Nesse sentido, aponta-nos Elias Boaventura (2004, p. 78): [...] cada época traz em si seus demônios, agentes de morte, contra os quais se tem de lutar aberta e decisivamente. Naquele período,42 a face mais visível desses agentes era o truculento autoritarismo do Estado, sem nenhum respeito aos direitos humanos. Hoje, tão nefasto quanto o autoritarismo, é a subserviência das instituições educacionais à força do mercado, que, pelo seu alto grau de contaminação, pode conduzi-las a maldades sociais sem limites.
Partilho da perspectiva de Hingel (2000), ao aludir que a educação tem seus próprios fins, seus próprios objetivos. É claro que ela não vai ignorar o mercado de trabalho, mas não pode existir só em função dele. Essa observação tem como fundamento enfatizar que “produto educação” não deveria ser tratado como produto propriamente dito, mas
42 Período referente à ditadura militar (1964 a 1985). De forma mais enfática, o autor relata o período em que esteve à frente da Reitoria da Unimep: 1978 a 1986.
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como fruto e compromisso de repassar a história construída por nossos antepassados. Isso é lembrado porque nesta dissertação reconheço por meio do referencial teórico escolhido que, para sermos humanos, ou seja, para que possamos passar das funções elementares para as funções psicológicas superiores, a educação faz-se indispensável; afinal de contas, a linguagem e seu desenvolvimento constituem o sujeito. Não quero com isso desprezar ou desprestigiar a educação formal, mas observo que as escolas confessionais não estão conseguindo cumprir com seu propósito inicial de cidadania. Hingel (2000) afirma também que o caminho pela escola abre portas para a cidadania plena, isto é, para o exercício de direitos e deveres da democracia tão recente. Boaventura (2004) revela ainda sua preocupação com o papel das instituições confessionais diante da realidade comercial. Ressalva que, às vezes, fica a impressão de que, pela inabilidade com que tentamos resolver as dificuldades e responder às exigências, podemos salvar a escola, mas, por outro lado, enterrar a utopia tão cara, em especial, à Unimep, bem como o pensamento e a força evangelizadora da Igreja. No caso da Igreja Metodista, observo que muito ainda temos de percorrer para estabelecer o reino de Deus na terra. A referência do projeto missionário, fundado na concepção do Reino de Deus como horizonte para a missão educacional, César (2003) aponta-nos que o Plano para a Vida e a Missão da Igreja Metodista (PVM), como documento preconizador da educação, e ‘Como instrumento de transformação social, ela [a educação] é parte essencial do envolvimento da Igreja no processo de implantação do reino de Deus’. Aqui a relação Igreja – escola é umbilical. Por quê? Porque o PVM
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(plano para vida e missão da Igreja Metodista [sic]) afirma o Reino de Deus como o projeto de Deus para a humanidade, significando a emergência de uma nova sociedade fundada no amor, na justiça, na liberdade e na paz. Na dimensão da relação do crente com o Reino de Deus, as DEIM (Diretrizes educacionais da Igreja Metodista) concluem ser ‘a salvação entendida como resultado da ação de Deus na história da vida das pessoas e dos povos Biblicamente ela não se limita à salvação da alma, mas inclui a ação de Deus na realidade de cada povo e de cada indivíduo [...]. (CÂNONES da Igreja Metodista, 1998, p. 117 apud CÉSAR, 2003, p. 11).
Segundo o autor, a natureza fundamental da missão da Igreja é disseminar valores que promovam a educação para a cidadania a favor da vida. Desse modo, a missão da Igreja e a educação encontram-se no mesmo patamar. César (2003, p. 12) afirma que “a escola metodista está, em geral, a serviço da classe mais favorecida, não obstante, procura-se prover essa população com projetos educativos que a sensibilizem para a causa do pobre e da justiça”. Diante do estudo realizado neste trabalho e à luz das observações de César (2003) ao PVM43 e DEIM44, há de se questionar, a partir das minhas reflexões, qual é o motivo de a Igreja Metodista ter o sentimento de satisfação e conformismo com o oferecimento de atividades assistencialistas, embora preconize os propósitos wesleyanos da 43 De acordo com Ana Glória Prates Gris da Silva (2012, p. 11-12, on-line, grifo da autora), “o Plano de Vida e Missão – PVM (sic) [...] constitui um ‘acordar’ da Igreja para aquilo que é a sua verdadeira missão e que marca a sua identidade: o sonho do Reino de Deus”. 44 Para Silva (2012, p. 36, on-line), “Diretrizes para a educação na Igreja Metodista – DEIM –, ele apresenta uma leitura de todo o processo de reflexão e de projetos desenvolvidos na Igreja, no anseio de encontrar caminhos que apontassem novos rumos para as ações educativas nos seus centros educacionais. Quanto ao documento DEIM, ele apresenta uma leitura de todo o processo de reflexão e de projetos desenvolvidos na Igreja, no anseio de encontrar caminhos que apontassem novos rumos para as ações educativas nos seus centros educacionais”.
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instauração do Reino de Deus na terra. Outrossim, se o propósito era o Reino, indagamos se as instituições metodistas têm cumprido o seu papel. Nessa perspectiva, o binômio “amor” e “meio da graça” corroboram a vivência do reino de Deus na terra. Esse pensamento (mandamento bíblico) parte da ótica de que deveríamos amar a Deus de todo o coração e, em segundo lugar, como consequência do amor de Deus, amar ao próximo como a nós mesmos, razão pela qual a educação, seja ela formal ou informal, sempre deveria focar para uma sociedade mais justa. Segundo César (2003, p. 63), A organização do movimento metodista se fez sobre os fundamentos de Oxford: a busca de uma santificação prática, centrado no culto radical do amor a Deus e ao próximo, com um olhar e um direcionamento decididamente sociais, a partir dos mais miseráveis, no amplo contexto de uma prática social que buscava, ao mesmo tempo, transformação do indivíduo e da sociedade, isto é, valendo-se dos instrumentos de práticas educativas. [...] A reflexão fundamental que define o projeto missionário do movimento metodista tem sua expressão clássica na frase ‘reformar a nação e espalhar a santidade bíblica por toda a terra’. [...] Pode-se se sintetizar, sem incorrer em exageros, ser o movimento metodista, tal como articulado por seu fundador, um movimento educacional movido por instrumentos educacionais, visando à mudança de pessoas e à transformação da sociedade (da nação).
Nesse contexto, John Wesley reconhece que por meio do coletivo, da ação comunitária e compartilhada, se faz presente a ordem criada por Deus, razão pela qual afirma que o cristianismo é uma religião social. O centro do pensamento teológico de John Wesley, que é a Graça de Deus e a fé salvífica em Cristo, atua pelo amor e prática e base estritamente social. 102
Tendo discorrido acerca do papel da música na formação dos irmãos Wesley, bem como a educação e o íntimo lugar da música para o movimento metodista, abordarei, na próxima seção, a contextualização do nascedouro do movimento metodista. 2.2 Da Importância da Música na Proposta de Educação Metodista na Inglaterra
Entendendo que a sociedade inglesa passava por um período de exclusão das minorias e que a educação poderia ser uma possibilidade de formar cidadãos críticos à realidade em que viviam, os metodistas inauguraram a escola de Kingswood45 em 24 de junho de 1748, localizada próximo às minas de carvão da região de Bath, perto de Bristol46. A escola era sustentada por doações. Nesta ocasião, o “fundador do movimento sintetizou a razão de existir daquela instituição que representava a ênfase maior dos metodistas de então, tendo em vista novamente unir duas realidades há tanto tempo separadas, ou seja, o conhecimento e a piedade vital”47, relata Heitzenrater (1996, p. 218).
45 “Assim, a criação de Kingswood School por iniciativa direta de John Wesley e a fundação original da colônia inglesa das Américas do Cooksbury College como um dos alicerces pioneiros da nova comunidade religiosa que se formava são expressões mais ou menos naturais do movimento, traduzindo uma competência acumulada no interior do movimento religioso de renovação da fé e práticas cristãs. Com o projeto da Kinswoog Scholl, Wesley pretendia inicialmente atender os filhos pobres dos operários excluídos dos processos educacionais formais.” (CÉSAR, 2003, p. 64). 46 Em 1742, é organizada a Sociedade de Bristol. 47 “O termo ‘piedade’ vem expor a dimensão pública de um cristianismo social, que é a prática de algo que foi sentido e experimentado na vida do crente e que lhe converte o coração, a mente e todas as suas forças em direção à transformação da Criação. É santidade que se conhece, experimenta e vive com ações concretas no mundo.” (ARTIGAS, 2008, p. 19).
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Aclara-nos Flávio Ricardo Hasten Reiter Artigas (2008, p. 20) que a piedade vital deve, da mesma forma, alcançar a todas as pessoas, tanto é que no hino de inauguração da Kingswood School aparece o seguinte conselho: “A verdade e o amor, faças a todos ver”. Observo que, desde o início, há a expressão da inter-relação entre o que ouso denominar sustentáculo do alicerce metodista, o trinômio fé, educação e música. Para os teólogos Klaiber e Marquardt (1999, p. 6), Tal como muitos reformadores antes dele, João Wesley estava convencido de que não fundou, de forma alguma, uma ‘nova religião’: ‘o assim chamado metodismo’ – afirma em 1777 na colocação dos alicerces de uma nova Capela em Londres – ‘é a velha religião da Bíblia, a religião da Antiga Igreja, a religião da igreja da Inglaterra’. E continua: ‘nada mais é que amor, amor a Deus e a toda humanidade [...]’.
Wesley trabalhou incansavelmente ao longo de sua vida, na perspectiva de que educação, no seu sentido mais amplo possível, pudesse ser acessível a todas as pessoas, bem como a piedade vital pudesse estar em consonância com a educação para a promoção do reino de Deus. Wesley partilhava da perspectiva de que conhecimento acadêmico e conhecimento popular não deveriam se opor, ao contrário, o conhecimento deveria estar relacionado intimamente com a prática da piedade vital. De acordo com Ramos (2002, p. 71), Justiça e piedade são os dois lados inseparáveis de uma mesma moeda. São a piedade e a misericórdia tão valorizada [sic] por John Wesley. [...] O autor da fé é o mesmo autor da razão. [...] Viver piedosamente também implica na opção pela ‘Graça’.
Movido pela sensibilização quanto ao alívio do sofrimento humano, trabalhou incessantemente para a criação de 104
escolas paroquiais, publicação de livros e panfletos, criou a primeira biblioteca pública na Inglaterra, onde foi desenvolvido um sistema de empréstimos para os pobres, abriu a primeira farmácia moderna inglesa. Para Wesley, educação é um ato de amor e deve não somente atender às questões de transmissão de conhecimentos, extremamente necessárias, mas, especialmente, sempre estar relacionada a atender as demandas da sociedade de seu tempo. O movimento metodista entendia que a educação e a religião eram alvos e práticas comuns, intimamente correlacionadas, pois se compreendia que, para atingir o propósito de Deus, a humanidade deveria vivenciar o exercício de amor ao próximo. John Wesley e os metodistas definiam o propósito do movimento em conferências48 que reuniam os pregadores e, no ano da inauguração da escola, houve a formação da primeira conferência49. O propósito dessa reunião foi destinar significativo tempo à discussão acerca das regras e do currículo da Kingswood School. A preocupação maior era com a instrução das crianças em tudo aquilo que lhes fosse útil para o desenvolvimento. “A lista de matérias era: Leitura, Escrita, Aritmética, Francês, Latim, Grego, Hebraico, Retórica, Geografia, Cronologia, Histórica, Lógica, Ética, Geometria, Álgebra e Música” (HEITZENRATER, 1996, p. 168).
48 “As conferências anuais serviam para discutir os problemas e planejar melhor o trabalho. Segundo Reiter, nessas reuniões eram discutidas questões doutrinárias, estruturais e de orientação para os pregadores metodistas. Esse documento registra em forma de perguntas e respostas a intenção e parte do fundamento do metodismo e sua divulgação”, como relata Heitzenrater (1996, p. 214). 49 Em 1744, fora convocada por John Wesley a primeira conferência em Londres.
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Segundo Valentin (2008 p. 19), “a Igreja Metodista nasceu com um movimento cujo objetivo era estabelecer uma nova visão de mundo e formar uma nova cultura baseada na formação cultural e moral”. Nesse sentido, fica evidenciada a preocupação quanto à elaboração do currículo, pois, além das diversas matérias, ele incluía também a música. Essa preocupação levou-a a entender que, como as matérias constantes do currículo foram compreendidas na conferência como importantes para a formação crítica e integral do indivíduo, a música também ocupava esse mesmo lugar de importância. Cabe lembrar que o metodismo não se restringiu somente à Inglaterra, pois ele saiu de terras inglesas, passou pelos EUA e chegou ao Brasil. No entanto, em solo estadunidense, o metodismo assumiu condições e modos próprios, sem, no entanto, trazer marcas profundas do seu nascedouro. Sobre isso, discorrerei na próxima seção. 2.3 Chegada aos EUA do Movimento Metodista: Novos Rumos
Com o intuito de discorrer sobre as mudanças de cunho musical estabelecidos com a chegada de missionários ingleses aos EUA, bem como seu caminho histórico, poderíamos encontrar diferentes vertentes. Para adentrar ao assunto, uma delas seria a influência dos negros, especialmente sulistas, na música trazida pelos missionários. No entanto, compreendo que esse estudo estaria mais voltado para a análise do percurso musical ocorrido dentro da Igreja Metodista e suas influências. Nesse momento, optamos por não entrar nessa seara, visto que o foco desse trabalho, muito embora voltado à música, demandaria outro estudo.
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Nesse sentido, optei por percorrer o caminho para a compreensão da subjetividade. A tentativa foi pela busca de indícios dos sentidos atribuídos ao coral da Unimep pelos cantores que por ali passaram, mediados pela música coral. Entendendo a necessidade de proclamar o Evangelho, pregadores ingleses partiram para a evangelização em terras norte-americanas. As diretrizes para a proclamação do Evangelho largamente discutidas em conferências resultaram no objetivo dessa proclamação em colônias da Geórgia. Esse desprendimento para a proclamação disseminou os princípios metodistas para mais de duzentos países, incluindo o Brasil. Somente após o movimento ter ganhado missionários europeus, especialmente para o processo de expansão que ocorria nos EUA, é que o caráter evangelístico assumiu importância e significado mais marcado. Foi nesse contexto que nasceu a Igreja Metodista Episcopal, de onde surgiu a Igreja Metodista. A partir desse caráter institucional que a Igreja assumiu, passou a vislumbrar seu projeto missionário para a visualização de novos espaços para a pregação do Evangelho, o que aconteceu durante todo o século XIX, especialmente nos EUA. Neste trabalho, não há pretensão de discorrer profundamente acerca da questão teológica do metodismo; no entanto, dentro desse contexto e trazendo a marca missionária do metodismo, foi assumida, como um traço bastante forte, a ideia de que “educar era, portanto, missão divina”, afirma Martin Norberto Dreher (2003, p. 24). Após a Guerra Civil norte-americana, que teve início em 1861, ficou ainda mais forte o tom entre os protestantes, e 107
especialmente para os metodistas, na crença que a América, por meio da educação, deveria cooperar para a reforma do mundo a partir de uma sociedade religiosa, livre, culta, trabalhadora, honesta e obediente. Após esse período, a Igreja Metodista tornou-se a denominação dominante daquele país. 2.4 Da Busca da Identidade Metodista Brasileira pelo Trabalho Educacional
No dia 29 de abril de 1836, na cidade do Rio de Janeiro, chega Justin Spaulding, considerado formalmente o primeiro missionário a vir ao Brasil. Concomitante com a organização das primeiras igrejas, iniciavam-se os trabalhos com as organizações de escolas, primeiramente paroquiais destinadas à alfabetização dos convertidos. Embora o projeto fosse de visão peculiar estadunidense, conforme nos aponta César (2003), parece não ter abandonado, pelo menos na essência, sua raiz wesleyana. No entanto, em maio de 1841, após seis anos de missão, a chamada “missão Spaulding” foi encerrada pela Igreja Mãe sob as seguintes alegações, de acordo com Duncan Alexander Reily (1984, p. 84): 1) Falta de pessoal missionário; 2) dificuldade de acesso direto ao povo brasileiro devido a superstições e limitação da liberdade religiosa; 3) arrocho financeiro provocado pela depressão econômica nos Estados Unidos, o chamado ‘Pânico de 37’.
Algum tempo depois de ter findada a Guerra Civil nos EUA (1861-1865), tendo em vista a vitória do Norte sobre o Sul, especialmente pela superioridade demográfica e industrial, aliada ao idealismo de libertação escravocrata, houve uma ocupação dos territórios derrotados para a re 108
construção. Nesse contexto, em situação financeira prejudicada, muitos sulistas optaram por recomeçar suas vidas em outros lugares, especialmente onde houvesse trabalho escravo. Assim, a América do Sul e a América Central eram uma boa opção. Mesquita (1992, p. 187) relata que, em agosto de 1867, um grupo de pessoas filiado à Igreja Metodista Episcopal do Sul emigrou para o Brasil. Entre elas, destaco o Rev. Junius Eastham Newman, que fundou uma congregação na cidade de Saltinho, interior do Estado de São Paulo. Esse movimento manteve a força evangelizadora da Igreja tanto quanto a preocupação com a educação. A emigração consolidou a presença metodista em terras brasileiras. A esse respeito, comenta Beatriz Vicentini Elias (2001, p. 25): Há de se entender, portanto, que os metodistas, vindos ao Brasil para fundar seus primeiros colégios, entre eles o Colégio Piracicabano, não chegaram inseguros, incertos sobre o que queriam ou o que esperavam. Tinham em sua retaguarda uma igreja extremamente forte em seu país de origem, achavam-se escolhidos para ‘civilizar’ a nação brasileira e sabiam contar com o apoio financeiro para a iniciativa. Além de terem sido movidos pelos compromissos religiosos de evangelizar, estabelecido numa das mais populares frases de João Wesley: ‘o mundo é minha paróquia’.
Nesse sentido, as escolas metodistas, por meio de seus missionários favorecidos pelo momento político (movimento republicano), social (movimento abolicionista) e econômico (expansão comercial) e favorecidos pela realidade social aberta às inovações da época, foram se desenvolvendo em todo o território nacional. Nessa perspectiva, a cultura trazida pelos metodistas foi sendo difundida entre os bra-
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sileiros ao mesmo tempo que eles também foram afetados pela cultura aqui encontrada. Sendo o Estado imperial inoperante com a questão da educação, o projeto missionário (Educar e Evangelizar) também ganhou força entre nós, favorecendo a organização das escolas metodistas: “Em tempos do Império, poucas cidades possuíam escolas, como aconteceu com Taubaté e Guaratinguetá” (ELIAS, 2001, p. 29). Segundo Jonas Mendes Barreto (2005, p. 129), esse fato foi [...] reflexo direto da constituição liberal de 24 de fevereiro de 1891 art. 5 e 7, que estabeleceu a separação entre Igreja e Estado, abrindo uma possibilidade mais efetiva de desenvolvimento e afirmação no cenário político-social para outros grupos religiosos, como os protestantes, por exemplo.
Em junho de 1879, o Rev. J. J. Ransom, também missionário, decidiu unir-se ao Rev. Newman e, com 10 alunos, foi inaugurada a Escola Metodista na cidade de Piracicaba, também interior do Estado de São Paulo. No entanto, o trabalho foi momentaneamente suspenso em função de problemas financeiros e da febre amarela, a qual, inclusive, vitimou a esposa de Ransom, Ms. Annie Newman, seis meses após o casamento. Em 1881, a Junta Feminina da Igreja Metodista Episcopal do Sul dos EUA (IMES), Women’s Missionary Society50 [Sociedade Missionária de Mulheres] enviou, juntamente com o retorno de Ransom ao Brasil, Miss Watts, com a tarefa “exclusiva” de organizar uma escola. Assim, em 13 de
50 Em 1890 a Women´s Missionary Society, da IMES, sob a liderança de Lucinda B. Helm é reconhecida pela Conferência Geral da Igreja.
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setembro de 1881, acolhida pelos irmãos Moraes51 – políticos de influência liberal republicana à época – e trazendo a missão de fundar uma escola, Miss Watts52 veio ao Brasil. Não se tratava de uma menina, de uma jovem inexperiente. Publicação, em 1881, da Woman’s Missionary Society, instituição que viabilizou sua vinda ao Brasil, assim a descreveu: ‘possuidora de um corpo forte e saudável, ao lado de uma mente ativa e bem disciplinada por uma experiência de sete anos em escolas, ela é alegre, tem um temperamento equilibrado, com uma rara combinação de amabilidade e força de caráter. Tudo de si, vida, tempo e talentos, ela consagrou a Deus há vários anos passados, e tem estado permanentemente engajada nos diferentes ramos de trabalho da igreja. Por dois anos, ela desejou servir como missionária e quando viu abrir-se o Brasil, a fé simples foi manifesta em sua resposta: ‘Eis aqui a criada do Pai’. (ELIAS, 2001, p. 39).
Conta-nos, ainda, Elias (2001) que a importância e a influência do grupo metodista eram bastante evidentes. Basta dizer que a esposa de Rutherford Hayes, presidente dos EUA entre 1877 e 1880, foi também presidente da Women’s Missionary Society entre 1881 e 1885. Miss Watts trouxe a tradição da raiz metodista ao país fundando, aqui, a primeira escola metodista e explicitou, nessa pequena escola, a preocupação com a educação e a 51 “A família Moraes Barros – Prudente e Manuel (advogados) – foi grande incentivadora e apoiadora para a edificação e permanência do Colégio Piracicabano. Com a proclamação da República em 1889, Prudente de Moraes foi nomeado Governador do Estado [...]. No ano seguinte, elegeu-se Senador e presidente do Colégio Constituinte [...]. Nas eleições seguintes, o Partido Republicano indica Prudente de Moraes para a Presidência e ele foi eleito, em 1894, como primeiro presidente civil da República do Brasil.” (MESQUITA, 1992, p. 186). 52 “Martha Hite Watts nasceu nos Estados Unidos, em Bardstown, Kentucky (EUA), no dia 13 de fevereiro de 1845. Mudou-se mais tarde para Louisville, no mesmo Estado, onde frequentou a Igreja Metodista da Broadway. Foi aí que se sentiu vocacionada para ser missionária, embarcando para o Brasil.” (MESQUITA, 2001, p.10).
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formação integral das jovens brasileiras (REILY, 1984, p. 90). Assim, imbuída dos preceitos metodistas, em 18 de setembro de 1881, com apenas uma aluna e sob o custeio da missão foi iniciada a primeira aula no Colégio Piracicabano. Apoiada por importantes personalidades da época, Miss Watts encontrou respaldo e apoio nos republicanos da família Prudente de Moraes. Tendo em vista o momento histórico vivido, isto é, a expectativa republicana de destituir a monarquia, nasceu a filosofia da Escola Nova. Com o fim da monarquia, a burguesia industrial, enquanto classe política emergente tinha interesse que os homens e as mulheres fossem minimamente instruídos para serem bons republicanos e, com isso, assegurar o status quo. Nesse contexto, a escola do século XIX convergia para o entendimento de que a criança é um ser aperfeiçoável, educável, motivo pelo qual deveria ser olhada pela lente da cientificidade, podendo, portanto, cientificamente ser educada. Surgiram nesse período estudos na área de biologia e psicologia com o intuito de verificar com maior profundidade o crescimento físico e os estágios de desenvolvimento psicológicos da criança. Em relação a esse assunto, afirma Meneghetti (1994, p. 105): “[...] A escola é fonte de redenção social, por isso é Escola Nova. Supõe que o acesso à escolaridade implica melhoria de vida das pessoas e que o respeito às liberdades individuais justifica a manutenção da estrutura de classes”. Desse modo, o contexto histórico brasileiro convergia positivamente ao interesse político, propiciando o surgi-
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mento das escolas metodistas, cujo objetivo estava vinculado à estruturação da sociedade brasileira da época53. Segundo Meneghetti (1994), a Revolução Francesa, bem como a independência norte-americana, continham expressões igualmente fomentadas nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. O modelo protestante de vida, e por consequência a proposta educacional representada, era, segundo a autora, “[...] uma maneira respaldada, pelo viés religioso, de veicular o sistema capitalista que nasce alicerçado na ideologia liberal [...].” (MENEGHETTI, 1994, p. 111). Tendo em vista a repercussão do trabalho desenvolvido pela missionária, em 1884, antes do término do ano letivo, foi possível colher os frutos decorrentes da primeira experiência, havendo, então, a necessidade da busca por espaços próprios. Com a disseminação dessa nova maneira de ensinar, o colégio, que anteriormente era custeado pelas missões, passou então a subsistir, pelo menos em parte, com as suas próprias atividades. Porém, dentro dos princípios tratados em conferência na Inglaterra, Miss Watts mantinha em sua linha pedagógica a essência de uma educação integral e vislumbrava, na proposta pedagógica do Piracicabano, também o ensino da música, em especial, num primeiro momento, do canto.
53 Segundo Meneghetti (1994), é importante que se informe ao leitor algumas conexões relativas à história do país pertinente ao fim do século XIX e início do século XX: abolição da escravatura (1888); proclamação da República (1889); Semana de Arte Moderna (1920); revoluções civis (1930 e 1932); discussão acerca da pedagogia católica de cunho tradicional e a pedagogia escola novista (década de 1930).
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Em sua tese de doutorado em educação, Valentin (2008) apresenta as seguintes palavras do relatório de Miss Martha Watts: Nas aulas diárias tem-se sempre ensinado a Bíblia e a cantar hinos evangélicos, e é de crer que todas, ou quase todas as alunas matriculadas de vez em vez no passado, e regularmente as do presente, estão cientes das doutrinas salvadoras, embora haja algumas que não as digam. E agora, ao concluir-se o décimo ano de existência do Colégio Piracicabano, somos altamente gratos a Deus ao ver nossos esforços coroados de tão bons resultados. E embora não sejam eles tão extensos como desejávamos, entretanto nem por isso é menor a nossa gratidão, ou mais fraco o nosso ânimo. (EC, 12/9/1891, p. 2) (WATTS apud VALENTIN, 2008, p. 27).
Em matéria no Expositor Cristão54, o então redator J. L. Kennedy, referindo-se à maneira como Miss Watts conduzia os trabalhos no Colégio Piracicabano, declarou: A educação não é só intellectual, mas também esthetica e physica. Da última é que menos nos tem preocupado, mau grado a larga propaganda a seu favor. Não satisfeita ainda com a adopção da educação physica, a ilustre diretora do Collegio Americano criará o jardim infantil55, que será inaugurado em breves dias. Para que o seu jardim produza o resultado que tem produzido os 54 Segundo Valentin (2008, p. 21, grifo do autor), Durante o período em que esteve no Brasil, o Rev. John James Ransom fundou um jornal chamado ‘O Metodista Católico’ (1886) que no ano seguinte mudou de nome, passando a se chamar ‘Expositor Cristão’. Em 1° de janeiro de 1886 foi publicada a primeira edição. O jornal tornou-se o órgão de comunicação oficial da Igreja Metodista e existe até hoje. Ransom já transcrevia em seu projeto o espírito que nortearia a ação dos metodistas, sendo um jornal agradável de ser lido, com firmeza argumentativa na defesa dos princípios protestantes e a discussão de temas controversos. O órgão oficial da Igreja Metodista se estendia não somente aos metodistas e protestantes, mas a todos os promotores do progresso e da ordem social. 55 Assim, após a construção do Colégio Piracicabano, que se iniciara em janeiro de 1883, e com o apoio da elite, em 1886, a escola, que iniciara com apenas uma aluna, Maria Escobar, já contava com, além do primário, o curso secundário e o jardim de infância ou Kindergarten.
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da Bélgica e outros países, contractou Miss Watts professora habilitada especialmente neste gênero de educar (KENNEDY, 1889, p. 43 apud VALENTIN, 2008, p. 34).
Tal como o currículo da Kingswood, o Colégio Piracicabano, que trazia sua raiz wesleyana, também demonstrava significativa preocupação com a formação integral do sujeito. Dessa forma, as matérias relacionadas às artes, e em especial a música, sempre se faziam presentes. O currículo do Colégio Piracicabano, desde seu início, ministrava às alunas disciplinas como: Português, Álgebra, Francês, Latim, Inglês, Aritmética, Astronomia, Geometria, Cosmografia, Geografia, História Universal, Pátria e Sagrada, Literatura, Ciências Naturais, Desenho, Música e Trabalhos de Agulha. [...] O curso de música do Colégio Piracicabano foi bastante desenvolvido. Por aqui passaram nomes muito conhecidos. O prospecto do Colégio Piracicabano de 1913 anuncia aulas de piano, canto, órgão e violino, de acordo com o Conservatório de Música de São Paulo. (MESQUITA, 1992, p. 193).
Vemos, portanto, que Miss Watts demonstrava preocupação com a formação de um indivíduo que estivesse apto para desenvolver suas responsabilidades sociais e pessoais de forma integral. Outro momento que a história nos relata e que transparece a relação indissociável entre educação e arte se deu no lançamento da pedra fundamental do edifício do Colégio Piracicabano, no dia 8 de fevereiro de 1883, como é possível perceber no relato a seguir. Era comum as meninas do colégio participarem de festividades cantando os hinos ensaiados durantes as aulas. Não fugindo à regra, tal participação também aconteceu no lançamento da pedra fundamental do edifício do Colégio Piracicabano, onde interpretaram “La Marseillese”. 115
No referido dia, houve, durante o período diurno, discurso proferido por Rangel Pestana e Manoel de Moraes Barros. À noite, houve uma nova solenidade no Teatro de Piracicaba. Nesse encontro, Rangel Pestana e Nash Norton – missionário presbiteriano – discursaram sobre a “Educação da Mulher”. O grupo de alunos do Colégio Piracicabano era composto, em sua maioria, por filhos e filhas de imigrantes americanos e demais famílias de nacionalidades que professavam a fé protestante. Não sendo o Estado laico – a monarquia era católica –, esses imigrantes e descendentes sofriam preconceito religioso. Partindo da perspectiva educacional protestante, ou seja, do engajamento social para a busca da salvação que deveria ser iniciada na terra, o nível de exigência educacional desenvolvido era diferenciado em relação à educação provida pelo Estado. Para os preceitos metodistas, possibilitar educação de qualidade era evangelizar e capacitar para a evangelização. O corpo docente era muito bem preparado e quase todos os professores eram formados nos EUA ou com especialização no exterior. Segundo Elias (2001, p. 90), “tratava-se, certamente, de um padrão de ensino ainda pouco comum naquela época”. Entre os inúmeros avanços, houve expansão do colégio por introduzir o sistema de coeducacão, qual seja, a proposição de ensino tanto para meninos como para meninas, atendidos no sistema de externato, modelo esse advindo das escolas norte-americanas. Conforme relata Elias (2001), conta a história que os métodos aplicados no Colégio Piracicabano eram inovadores e pioneiros no Brasil e, por isso, inspiraram Prudente 116
de Moraes, então governador, a solicitá-los como exemplo para a reforma da educação no Estado de São Paulo. No entanto, Miss Watts não pôde atendê-lo. O objetivo de Prudente, no governo de São Paulo, conhecendo de perto os trabalhos do Colégio Piracicabano, era de que Martha Watts pudesse atuar ao lado de Caetano de Campos na direção da Escola Normal e na criação de novas escolas-modelo. Com a recusa da missionária, a escolha recaiu sobre duas professoras de outra escola de origem protestante – a Escola Americana de Campinas – Miss Márcia Browne e Maria Guilhermina de Andrade, a primeira norte-americana, a segunda brasileira educada na América do norte. (ELIAS, 2001, p. 68).
No campo da arte, nomes de envergadura nacional contribuíram para a formação dos alunos que passaram pelo Colégio. Em especial, na música, Fabiano Lozano56 e Lázaro Lozano57. Lecionou também o pintor Archimedes Dutra58, um dos mais expressivos artistas da região. 56 “Fabiano Lozano, metodista, já era músico respeitado. Nascera na Espanha, em 1884, vindo para o Brasil com treze anos. Em 1908, começou em Piracicaba a dar aulas no Colégio Piracicabano e no grupo Escolar Moraes Barros. Fabiano ganhou reconhecimento nacional, dirigiu o Orfeão Piracicabano, que foi aplaudido em ovação no Teatro Municipal de São Paulo, dando início a um intenso trabalho na área do canto orfeônico no Brasil.” (ELIAS, 2001, p. 97-98). 57 Conforme relata Carlos Barroso (2006, on-line) Bonifácio Lázaro Lozano nasceu em Nazaré em fevereiro de 1906. “Apesar de ter saído da Nazaré com tenra idade, Lázaro Lozano sentiu em toda a sua vida uma irresistível atracção pela vila piscatória e pelas suas gentes. [...] De 1942 a 1958, Bonifácio Lázaro Lozano desenvolveu importante carreira artística, expondo em lugares importantes no mundo. Em 1971, iniciou composições de instrumentos musicais, tema que desenvolveu até cerca de 1980 com sucesso. O pintor faleceu em 24 de abril de 1999, em Madrid”. 58 Archimedes nasceu em Piracicaba em 6 de junho de 1908, morrendo em 1º de julho de 1983. [...] Em Piracicaba, a presença de Archimedes Dutra foi constante em todas as atividades sociais, não apenas nas artísticas, nas quais ele despontou. Entre as suas grandes contribuições, foi o autor da Medalha do Bicentenário de Piracicaba (1967), do Marco da Bandeira, na Praça José Bonifácio (1955), do projeto do Estádio Barão de Serra Negra, da sede da Sociedade Beneficente 13 de Maio, da mansão residencial da Usina Monte Alegre, criador da Pinacoteca Municipal de Piracicaba e do Salão de Belas Artes do município. Archimedes Dutra foi um dos mais premiados artistas
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Nessa época, o “Piracicabano” contava com doze pianos e Fabiano Lozano chegou a desenvolver um curso modelar de piano em dez etapas para que pudesse ministrá-lo às alunas. Promovia concertos e saraus no colégio e em sua casa, bem como incentivava as alunas a compor novas melodias para serem executadas, segundo Wesley Jorge Freire (1979). Para Vânia Sanches Pajares (1995, p. 43), os irmãos Lozano contribuíram sobremaneira lançando [...] sementes que germinaram em novos rumos para o ensino da música no Brasil. Como professores da Escola Complementar e, depois, da Escola Normal de Piracicaba, implantaram o canto coral entre os jovens estudantes, de tal maneira que, aos poucos, a iniciativa começou a expandir-se por todo o Estado de São Paulo, através dos jovens mestres, ex-alunos dos irmãos Lozano.
A rotina escolar era permeada por música, e o cantar e o fazer música sempre estiveram como prioridades da educação trazida pelos missionários norte-americanos. No contexto do “Piracicabano”, eram prestigiados vários estilos musicais, composições dos próprios docentes e estudantes, especialmente nos concertos e saraus e atividades abertas à comunidade. No entanto, Miss Watts privilegiava hinos e gostava de ampliar, sempre que possível, a introdução de novos hinos no repertório. Em carta enviada para os Estados Unidos, Martha Watts falou da “primeira formatura”, apenas seis meses após a abertura da escola, e nela já se notava o lugar de destaque que o canto lá ocupou:
piracicabanos, nacional e internacionalmente, contando-se às dezenas as medalhas que conquistou (ELIAS NETTO, 2013, on-line).
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Oito palmeiras próximas das paredes eram mais bonitas do que os afrescos. Bandeiras francesas festonadas, no centro, e uma grande bandeira brasileira disposta em forma de escudo no final da sala formavam nossa decoração. Não tivemos nenhum palco para embaraçar tantos professores como alunos [...] O irmão Koger abriu os exercícios lendo o Primeiro Salmo e então a escola cantou ‘Around the Throne of God’ em português e, de comum acordo, repetimos a Oração do Senhor. Depois de iniciar vários exercícios em Português, Álgebra e Francês, o relato mencionou que Nora Smith executou a música ‘La Dame Blanche’, que as crianças cantaram ‘In the Sweet By and By’ e que Isabel de Almeida Barros tocou uma seleção de ‘Barbeiro de Sevilha’. A formatura foi encerrada com todo o grupo entoando o Hino da Independência do Brasil (WATTS apud MESQUITA, 2001, p. 47).
A efervescência cultural piracicabana no início do século era bastante expressiva, com apresentações de grupos locais, companhias de dança e músicas internacionais. Além do clima que a cidade vivenciava com a chegada e consolidação do colégio, cuja influência cultural fora bastante significativa, as atividades culturais tornaram-se ainda mais intensas. Por essa razão, os concertos tornaram-se comuns, especialmente em datas comemorativas, como aniversário da cidade, os finais de semestres e os exames públicos. Elias (2006) aponta que, entre os programas recuperados, há a indicativa de que, por vezes, a dois ou três pianos, executavam-se trechos de óperas, como “O Barbeiro de Sevilha”, “La Traviata”, “Romeu e Julieta”, “Cavalaria Rusticana”, peças de Brahms, Mendelssohn, Chopin e Carlos Gomes. Eram executadas também peças de Lazaro Lozano e, em quase todas as solenidades, o Hino Nacional era executado a dois pianos, mas a seis mãos. 119
Conta-nos Mesquita (1992) sobre o fator ilustrativo do programa de catequese no colégio, ressaltando que não havia proselitismo declarado, pois o colégio aceitava pessoas de diferentes credos; no entanto, as oportunidades de “evangelizar” não eram desprezadas. Nesse mesmo sentido, traz ainda a autora o relato de Nicolau de Moraes Barros, sobrinho de Prudente de Moraes: Era hábito no colégio, consoante ao regime escolar americano e precedendo o início das aulas, reunirem-se todos os alunos, à medida que iam chegando, no grande salão do primeiro andar onde, às 9 e meia hora, após a chamada comparecia Miss Watts para dirigir a prática rotineira – leitura de um trecho da Bíblia com rápidos comentários, canto de um hino e uma reza, de começo improvisada e rematada com o ‘Pai Nosso que estais nos Céus’. O hino era o que mais nos interessava; nós é que o escolhíamos no livrinho respectivo [...] O meu predileto era o 37 que assim começava ‘Vinde Meninos, vinde a Jesus [...]’ (BARROS apud MESQUITA, 1992, p. 208).
A presença da educação estabelecida em Piracicaba foi de tamanha envergadura que influenciou gerações em suas formações. Há relatos de que o presidente da República, Washington Luiz, em 1987, então como secretário da Justiça e da Segurança Pública, fez do colégio ponto de passagem quando veio a Piracicaba para inspecionar a cadeia pública, o quartel e realizar contatos políticos. Foi registrada, também em anos próximos, a visita de Marechal Rondon, em visita às sobrinhas que eram internas do Colégio Piracicabano. Por volta de 1920, o país foi atingido por um tempo de nacionalismo quando as questões genuinamente brasileiras começaram a ser valorizadas, concepção essa que começou a chegar aos poucos também no contexto da educação metodista e, em especial, no “Piracicabano”. Foi um 120
tempo em que os assuntos nacionais passaram a ser mais debatidos. Nesse sentido, Elias (2001, p. 139) comenta que: Os metodistas brasileiros, desde o final da década de 20, buscavam sua autonomia em relação à Igreja Metodista Episcopal do Sul dos Estados Unidos. Em 1930 acabaram por alcançá-la num processo repleto de negociações. Atas da Igreja registram encontros de uma comissão sobre nacionalismo, na Conferência Central Brasileira, onde uma pesquisa mostrava que vinte e cinco igrejas haviam votado pela autonomia, cinco pela manutenção do ‘status quo’ e quatro pela independência completa em relação à Igreja americana.
Ao longo dos anos, o Colégio Piracicabano adaptou-se a algumas alterações relacionadas à proposta inicial, entre elas, o aumento da oferta de cursos e turnos, a extinção do internato feminino (1933) e a criação do internato masculino (1934), bem como a modificação de suas instalações (1950) para a recepção de até 1.600 alunos. Em 1954, tendo em vista a criação de vários cursos, o colégio passou a adotar o nome de Instituto Educacional Piracicabano (IEP). Devido à implantação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, vigorada em 20 de dezembro de 1961, houve a necessidade de se pensar em profundas modificações não somente na estrutura de ensino do Colégio Piracicabano, mas de todo o país. Buscando maior adaptação às novas diretrizes e aos novos tempos, o IEP abriu-se aos cursos superiores. A síntese dos argumentos que justificaram a opção pela criação de uma faculdade metodista é apresentada por Paulo Guaracy Silveira59 na citação abaixo, na qual cons59 “Guaracy Silveira foi o primeiro pastor protestante da história do parlamento brasileiro. Eleito em 1933, em consequência de sua importante participação na luta contra o ensino religioso nas escolas públicas de São Paulo, partici-
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ta parte da crise estabelecida no Colégio que mais tarde acabou resultando na criação dos cursos superiores. Nos dizeres de Silveira (apud ELIAS NETTO, 1994, p. 38): A queda vertiginosa de matrícula da 1ª série do ginásio, face da explosão do ensino público e gratuito na cidade e nos municípios circunvizinhos bem próximos, reduzindo o número de classes iniciais e séries seguintes e afetando o custo operacional da instituição; o crescimento do ensino público e gratuito no país inteiro, inviabilizando a continuidade do internato masculino e feminino, agravado pelo custo que afetou a tradicional clientela; a necessidade de compensar tais perdas com outros cursos.
Neste capítulo, busquei relatar alguns aspectos da história metodista no Brasil. Destaquei aspectos da história metodista em Piracicaba com a criação do Colégio Piracicabano, a preocupação da missionária Miss Martha Watts quanto à formação integral que foi refletida no currículo do “Piracicabano” e, de forma destacada, oferecendo a música.
pou das Assembléias Constituintes de 1934 e 1946. Protagonista importante no processo de autonomia da Igreja Metodista do Brasil, ocorrida em 1930, e exercendo tarefas de destaque desde sua adesão ao metodismo, a experiência parlamentar contribuiu de maneira decisiva para o aprofundamento de suas convicções a respeito do papel da igreja na sociedade. Dedicado aprendiz dos procedimentos democráticos que norteavam o debate no parlamento brasileiro, tornou-se extremamente vigilante e passou a exigir das autoridades eclesiásticas maior fidelidade ao projeto de um metodismo democrático.” (FERRAZ, 2008, p. 5).
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CAPÍTULO III D O M E TO D I S M O A O C A N TO C O R A L D A U N I M E P
B
usquei, no capítulo anterior,
compreender as relações entre música e educação metodista no contexto da Unimep, bem como, por meio da compreensão do movimento metodista, expressar o lugar da música para os irmãos Wesley. Os estudos anteriores citados nesta dissertação enfatizaram a importância da música para o movimento metodista no contexto em que foi idealizada na Inglaterra e apontou que tais influências ocorreram no estilo da música na entrada do metodismo em terras estadunidenses. Na tentativa de atingir os propósitos desta dissertação, busquei refletir acerca da busca da identidade metodista brasileira pelo trabalho educacional. Neste capítulo, desenvolverei considerações históricas sobre a Unimep e tratarei sobre o idealizador do coro da Universidade.
3.1 O Coro da Unimep como Expressão da Identidade Musical Metodista
Em 1964, começaram a funcionar irregularmente no Instituto Educacional Piracicabano (IEP) os primeiros cursos 123
superiores: a faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e Administração de Empresas, ou seja, a primeira semente do que seria, tempos depois, a Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep)60. Herdeira do Colégio Piracicabano, a Unimep traz em sua raiz todo o legado cultural trazido pelos missionários norte-americanos, que, em suas bagagens, transportavam marcas que foram impressas em Piracicaba, advindas de sua maneira de pensar o processo educacional. Com o apoio do regime militar, com o intuito de apoiar plenamente o projeto educacional do governo em voga e para garantir sua própria sobrevivência em razão da crise enfrentada no final dos anos 60, a Igreja Metodista, em 1975, de acordo com o Parecer nº 4.027/75, datado de 10 de outubro, cria a Unimep, a primeira universidade metodista da América Latina, que é reconhecida recebendo a homologação do presidente Ernesto Geisel no Decreto nº 76860, de 17 de dezembro de 1975. Segundo Mesquita (1992, p. 224), foram criadas pelo IEP as então Faculdades Integradas que posteriormente tornaram-se a Universidade Metodista de Piracicaba. Olhando para o passado, é possível perceber claramente que o ensino superior implantado atendia plenamente ao projeto educacional do governo militar, qual seja, a formação de 60 “A Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) tem sua origem atrelada ao Colégio Piracicabano, fundado em 1881, pela missionária norte-americana Martha Watts. Já em 1964, surgiram os primeiros cursos superiores: economia, administração e ciências contábeis, então reunidos como Faculdades Integradas. O reconhecimento da instituição pelo MEC como Universidade veio em outubro de 1975, o que consagrou a instituição como a primeira universidade metodista da América Latina. Atualmente, a Unimep possui mais de 40 cursos de graduação e oferece também cursos de graduação tecnológica, especialização, mestrado e doutorado agrupados em nove faculdades. A instituição conta atualmente com quatro campi: Taquaral e Centro, ambos localizados em Piracicaba, Santa Bárbara d’Oeste e Lins.” (UNIMEP, 2013c, on-line).
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mão de obra especializada para atender a demanda das multinacionais que acabavam de ganhar espaço no país. A criação das Faculdades Integradas tinha como lema: “Uma nova dinâmica a serviço da educação brasileira”. Em 1970, Dr. Richard Edward Senn, um americano nascido no Colorado, então diretor-geral do Instituto Educacional Piracicabano, acumulava também a função de diretor das Faculdades Integradas. Em entrevista ao jornalista Cecílio Elias Netto, em 1993, Senn resumiu os propósitos de sua vinda a Piracicaba com as seguintes palavras: A missão que a Igreja me deu era endireitar os problemas tanto de disciplina do Colégio e, principalmente, da Faculdade, a dificuldade quanto ao corpo docente que já estava cansado daquela situação, da inércia, e tentar levantar os problemas financeiros, e corrigir dentro do possível. Não havia outra missão a não ser a de fazer o que pude para a escola voltar às suas origens no sentido financeiro, disciplinar e continuar o trabalho (ELIAS NETTO, 1994, p. 134).
A esse respeito, Elias (2001, p. 270), aclara que A ele, coube continuar a expansão dos cursos superiores de maneira mais urgente, conseguindo, em 1975, que o Ministério da Educação reconhecesse a Instituição como Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP, da qual foi o primeiro reitor, empossado em dezembro daquele ano, cargo em que permaneceu até 1978.
A família de Senn promovia, uma vez por semana, devocionais ao final do expediente, e os filhos do casal começaram a liderar um conjunto musical que passou a ser denominado de Jovem Som. Esse conjunto foi tão promissor que, em 1974, tornou-se um setor da instituição, o “Setor Musical”, sob a coordenação de Mark Senn, um dos filhos do casal. Todo o repertório executado pelo grupo vinha dos 125
Estados Unidos, atendendo ao desejo da matriarca da família, Sr.ª Noeme, que prezava pelo ineditismo das músicas. Em 1975, Dr. Senn tornou-se reitor da Unimep e, em 1978, deixou a direção, assumindo a instituição nova liderança, com característica diversa da anterior, e o Jovem Som se desfez. Ao final da década de 1970, o país buscava brechas para a abertura política e sua redemocratização, e esta busca produziu reflexos dentro do contexto da Unimep, uma vez que, durante o governo militar, houve uma americanização maior do país. Parece-me contraditório o fato de haver abertura para outro modelo, no caso o americano, ao mesmo tempo que o próprio governo prezava por um civismo extremado. O então reitor Senn era apontado como conservador, autoritário e possuidor de uma visão empresarial na administração da educação, o que desgastou sua permanência na instituição, já que a Igreja Metodista passava por um período de questionamento ao modelo norte-americano. No seio da Igreja, especialmente nos setores mais progressistas, desenrolava-se uma crise no aspecto da busca de sua identidade, pois o modelo de igreja estrangeira era questionado. Ou seja, foi um período de questionamento do modelo norte-americano imposto ao metodismo brasileiro. No X Concílio Geral61 da Igreja Metodista, em fevereiro de 1971, foi apreciado em reunião um documento do
61 O Concílio Geral é a instância máxima de decisão na Igreja Metodista no Brasil, é o órgão legislativo e deliberativo da Igreja Metodista, composto por representação paritária de presbíteros e leigos, proporcional ao número de membros da Igreja nas regiões eclesiásticas (CÂNONES da Igreja Metodista, 2007, on-line).
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Cogeime62, cujo conteúdo avaliava as instituições de ensino da Igreja Metodista em 1968-1969. Nesse conclave, foi aprovado o Credo Social da Igreja Metodista, afirmando seu compromisso social com a realidade brasileira. As metas de trabalho da Igreja com as classes menos favorecidas aconteceram no plano quadrienal seguinte: 1974-1978. Dentro desse contexto de crise nacional, houve também uma mudança da postura ideológica da Igreja que foi refletida na Unimep. Verificamos que o modelo ideológico circulava não somente no país, mas também internamente na própria Igreja; assim, a Igreja vivia uma dupla crise dentro de um mesmo momento. Ao mesmo tempo que ela buscava espaço para a formação de uma identidade metodista brasileira, caminhava na contramão, pela ausência de apoio ao desenvolvimento e aprimoramento do sentido da confessionalidade. O então vice-reitor, Prof. Elias Boaventura, demitiu-se, declarando incompatibilidade com as diretrizes da Igreja acerca da compreensão sobre o espaço da educação confessional. Conta-nos Mesquita (1992, p. 230) que O próprio momento histórico do país favorecia a mudança política, apesar da repressão ainda existente. Os movimentos pró-anistia fortaleciam-se e o clima de solidariedade entre os povos latino-americanos sob ditaduras aumentava. A Igreja Católica, através do Cardel Arns, assumia posições claramente anti-militares, denunciando torturas e desrespeito aos direitos humanos. Progressistas, tanto católicos como protestantes, OAB e outros segmentos da sociedade civil, como o movimento sindical do ABC, que despontava sob liderança 62 A Revista de Educação do Cogeime começa a ser publicada em 1992, em Piracicaba, tendo duas edições por ano, sob a responsabilidade de publicação é desse Instituto. Para outras informações sobre o Cogeime, incluindo seu histórico, acessar: <www.cogeime.org.br>.
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de Luis Ignácio da Silva, pressionavam o governo por abertura política.
O Conselho Diretor, com o intuito de acalmar os ânimos da comunidade acadêmica, entendia ser melhor o afastamento de Richard Senn. Dessa forma, em 10 de outubro de 1978, Elias Boaventura63 foi empossado reitor. Maia (2008 apud ELIAS, 2008, p. 42) relata o seguinte: Quem substituiu Senn, destituído por ato do Conselho Diretor do IEP, após uma reunião que se estendeu por mais de dez horas, madrugada adentro, foi seu vice-reitor, Elias Boaventura, aquele que mediara os primeiros contatos para que Almir fosse convidado a trabalhar na Universidade. Com uma visão praticamente oposta à Richard Senn, Elias dirigiu a UNIMEP nos oito anos seguintes, fazendo dela uma das mais combativas, democráticas, compromissadas e ideologicamente definidas universidades do país no início dos anos 80. Um homem de ‘esquerda’, era como olhava e entendia a Igreja Metodista, temendo, mesmo que a distância, o que acontecia na sua primeira universidade.
A nova postura ideológica foi percebida logo no discurso de posse: Temos a certeza de que esta Universidade não será um compartimento estanque dentro da comunidade, não ficará indiferente às distorções nela existentes e não se atrelará a nenhuma força que referende à perturbação das desigualdades nela existentes. (BOAVENTURA apud OLIVEIRA, 1983, p. 3).
Em 1982, com o intuito de redefinir uma reforma ampla nos rumos da Igreja, o XIII Concílio Geral, instância máxima de decisão da Igreja, confeccionava, por meio de 63 Elias Boaventura nasceu em Manhuaçu, MG, em 1938. Formou-se em Pedagogia e foi diretor de escola pública em sua cidade natal. Cursou mestrado na Unimep e o doutorado na Unicamp, ambos na área de educação. Foi, a partir de 1978, o segundo reitor da Universidade Metodista de Piracicaba, por dois mandatos consecutivos, até 1986. Após concluir o mandato de reitor, atuou como professor do Programa de Pós-Graduação da Unimep até 2011 (ELIAS, 2008).
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pesquisas e consultas às bases, o documento à época intitulado “Vida e Missão da Igreja” (V.M.), com a perspectiva de respaldar um novo tempo e as mudanças acontecidas no país e no seio da Igreja. Preconiza o documento quanto à questão educacional que a Educação, como parte da Missão, é o processo que visa a oferecer à pessoa e à comunidade uma compreensão da vida e da sociedade, comprometida com uma prática libertadora, recriando a vida e a sociedade segundo o modelo de Jesus Cristo e questionando os sistemas de dominação e morte, à luz do Reino de Deus (CÂNONES da Igreja Metodista, 2007, p. 39, on-line).
No mesmo Concílio Geral, nesse contexto de significativas mudanças, mais precisamente a sua liderança progressista, foi apresentado o documento denominado “Diretrizes para a Educação da Igreja Metodista” (DEIM), que apontava, entre diversas questões, que viver o cristianismo significava trabalhar em prol dos oprimidos: [...] cooperar com a pessoa e a comunidade para se libertarem de tudo quanto as escraviza; Participar na solução de necessidades pessoais, sociais, econômicas, de trabalho, saúde, escolares e outras fundamentais para a dignidade humana; Propugnar por mudanças estruturais que permitam a desmarginalização social dos indivíduos e das populações pobres. (IGREJA METODISTA DO BRASIL, 1983, p. 6).
Atendendo à sugestão do novo reitor, Prof. Elias Boaventura (1978/1986), um novo projeto musical foi iniciado e, talvez como reação ao modelo anterior, o novo grupo cantava somente música brasileira, de maneira informal e livre, sendo que os instrumentos acústicos tiveram prioridade. Em 1979, o Setor de Música passou a se integrar com a Pastoral, as atividades musicais e pastorais foram 129
ampliadas até culminar, em 1980, na contratação do maestro Umberto Cantoni. A Igreja Metodista buscava a identidade metodista brasileira, e a Unimep refletiu esse anseio também por meio da música. Em plena ditadura militar, em 1980, envolvido com a Teologia da Libertação64, Umberto Cantoni iniciou o movimento coral na Unimep. Ao chegar, o maestro trouxe novas ideias sobre a prática musical e, aos poucos, ela foi deixando de ter apenas a função litúrgica, assumindo um caráter mais abrangente, que contemplava variados estilos musicais e diversificados repertórios. Em consonância com a Reitoria, a Pastoral e, consequentemente, o Setor de Música, trabalhavam na mesma linha: a busca da libertação do ser humano em sua totalidade. No primeiro ano de trabalho de Umberto Cantoni na Unimep, conta-nos Helen Luce Campos Pereira (2008), o foco foi a sensibilização e escolha de pessoas interessadas em participar da atividade musical na Universidade. Foi nesse contexto que surgiu o coral universitário, “composto por jovens estudantes, na sua maioria, professores, funcionários e outros interessados”. Umberto Cantoni criou o coral Unimep campus Santa Bárbara d’Oeste e campus Centro, o Coral do Movimento Negro de Piracicaba (composto por cantores de Piracica64 Segundo Battista Mondin (1980, p. 40): “A Teologia da Libertação é um movimento teológico que quer mostrar aos cristãos que a fé deve ser vivida numa práxis libertadora e que ela pode contribuir para tornar esta práxis mais autenticamente libertadora”. De acordo com Leonardo Boff e Clodovis Boff (1986, p. 40): “Libertação é libertação do oprimido. Por isso, a Teologia da Libertação deve começar por se debruçar sobre as condições reais em que se encontra o oprimido de qualquer ordem que ele seja”. Conforme Leonardo Boff (1980, p. 102): “A religião passa a ser um fator de mobilização, e não no freio”.
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ba, Americana, Rio Claro, Nova Odessa, Sumaré e Santa Bárbara d’Oeste), o Coral da Guarda Mirim e dois grupos de jovens instrumentistas. Além disso, assessorou outros grupos corais na rede oficial de ensino e promoveu o curso de regência coral e o curso de regência corais infantis. Posto isso, observamos que o trabalho de Umberto Cantoni não ficou restrito à Unimep, mas se estendeu a Piracicaba e cidades da região. Tendo em vista o intenso trabalho cultural realizado, em 1982 houve a apresentação à Direção-Geral do IEP do projeto propondo a criação do Núcleo de Música. O objetivo maior dessa propositura era atender a expectativa da Igreja Metodista, em geral com relação à liderança musical. Em 1986, o professor Almir de Souza Maia65 assumiu a Reitoria da Unimep. Professor Almir, assim como é conhecido e tratado, sempre demonstrou olhar sensível ao propósito das raízes metodistas. Sua administração traz marcas importantes na tentativa de vivenciar o Evangelho pregado por Wesley na vida cotidiana da universidade. Foi nesse período que o Conselho Universitário aprovou o projeto para criação do NUC. No ano seguinte (1987), as atividades foram regulamentadas em 2 de fevereiro. O Núcleo Universitário de Cultura foi e tem sido um instrumento de contribuição para a realização do compromisso da UNIMEP de oferecer à sociedade brasileira profissionais conscientes de sua responsabilidade so65 Iuri Botão (2012, p. 3) expõe: “Almir de Souza Maia é dentista pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre e doutor na área. Nasceu em Pirapetinga – MG. Como educador, atuou por diversas funções no âmbito da Igreja Metodista por 28 anos, entre 1978 e 2006, exercendo o cargo de reitor e diretor geral do IEP da UNIMEP nos anos de 1986 a 2002 e depois como diretor geral do IEP até 2006. Desde 2007, ele tem seu próprio centro de pesquisa em Piracicaba, e por meio dele contribui para a perpetuação e preservação da história da educação no mundo”.
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cial. E, nesse particular, afina-se com uma Igreja Metodista harmonizada com as premissas de Wesley, fundador do Metodismo, que não entendia a razão de ser de uma religião que não tivesse um compromisso social. (PEREIRA, 2008, p. 111).
Vale ressaltar o registro em forma de dissertação, defendida por Pereira (2008), cujo objetivo foi realizar uma análise das origens e classes do grupo social a quem serviu o NUC, bem como o papel da religião pelo viés da Igreja Metodista. Por via das políticas institucionais, a cultura sempre esteve incentivada e presente por meio de suas manifestações artísticas não só pelos espaços e programas promovidos pelo NUC, mas também por outros espaços que a Universidade vem conquistando ao longo da sua história. No entanto, não se pode deixar de observar que a movimentação musical sempre esteve presente, mesmo antes das institucionalizações, o que me leva a cogitar que as raízes educacionais metodistas sempre se fizeram presentes em todo o processo. Segundo a instituição, os corais da Unimep pautam-se na seguinte referência: Com o objetivo de incentivar a prática coral, visando auxiliar os estudantes no processo de expansão de horizontes culturais através dos repertórios, bem como fornecer-lhes uma visão mais ampla de mundo através do contato com a música de outras culturas e de outros tempos, foram criados os corais universitários [da Unimep]. Os grupos que se mantêm em atividade atualmente são: Coral Universitário da Unimep no campus Santa Bárbara d’Oeste, sob regência de Joanice Vicente Casemiro, o Coral Universitário da Unimep no campus Centro, coordenado por Joanice Vicente Casemiro e o Coral Universitário Apepú-Yamí, no campus Taquaral, também sob regência de Joanice Vicente Casemiro (UNIMEP, 2013a, on-line).
132
Atualmente, o coral universitário, somando-se os grupos dos três campi, é composto por aproximadamente cinquenta participantes, os quais, em sua maioria, são “bolsistas coral”66. Abordei neste capítulo aspectos que envolvem o valor da música para a educação metodista. Ou melhor dizendo, aspectos que envolvem a educação metodista e também o lugar da música para a formação dos sujeitos.
66 Semestralmente, há abertura de inscrição para os corais, via intranet ou via NUC, setor ao qual os corais estão ligados. A maioria deles é composta por alunos que frequentam os cursos de graduação; no entanto, as inscrições são abertas para todos os alunos da instituição, professores, funcionários e a comunidade em geral. Com relação à política de bolsa, cabe ressaltar que somente os alunos de graduação podem concorrer a ela.
133
134
CAPÍTULO IV DA PRODUÇÃO DOS DADOS AO PROCESSO DE ANÁLISE: O PERCURSO TRILHADO
N
este capítulo, tendo como objetivo
compreender o potencial educativo do coral na vida dos participantes que por ele passaram em diferentes épocas, procurei, por meio dos dados produzidos, apreender os efeitos de sentidos da vivência no coral pelos sujeitos que dele participam e participaram, na tentativa de responder a seguinte questão de investigação: qual o potencial educativo do canto coral da Unimep a partir da experiência dos sujeitos que dele participaram? No entanto, o caminho percorrido é sempre um caminho de escolhas, algumas acertadas outras nem tanto. Paulo Freire (1997) já nos ensinava que, para estudar e pesquisar, é preciso também suportar, se arriscar, pensar, se superar, se controlar, deixar marcas, aproveitar. Segundo Estudar e pesquisar é desocultar, é ganhar a compreensão mais exata do objeto [e diriamos (sic), do sujeito], é perceber suas relações com outros objetos [sujeitos]. Implica que o[s] estudioso[s], sujeito[s] do estudo [pesquisadores e professores], se arrisque[m], se aventure[m], sem o que não [se] cria nem recria (FREIRE, 1997, p. 23).
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Por outro lado, o poeta espanhol Antonio Machado nos ensina que o caminho faz-se ao andar. É no percurso, no encontro e no desencontro, que os sentidos se produzem e as escolhas acontecem frente a um horizonte de possibilidades. Nesse sentido, apresentarei, a seguir, o percurso trilhado na e pela pesquisa. 4.1 A Escolha do Caminho
Considerando a natureza do problema e os objetivos da pesquisa já comentados neste trabalho, esta pesquisa foi realizada tendo como ancoragem a abordagem qualitativa. Segundo Lüdke e André (1986), a pesquisa qualitativa é caracterizada pela descrição, análise e avaliação dos dados de forma articulada e intensificada, sendo o pesquisador seu essencial instrumento. Nas pesquisas qualitativas, o modo de produção e análise dos dados pode acontecer em forma de pesquisa participante ou pesquisa-ação pela metodologia da história oral ou por observações. Além destas, também podem ser utilizados outros instrumentos, por exemplo, questionários para o levantamento das informações, audiogravações ou análise de grupos por meio de discussões em grupos focais. O importante é que, para qualquer um dos procedimentos, o princípio teórico ancore a escolha. Desse modo, como esta pesquisa ancora-se no princípio histórico-cultural, cujo principal representante é Vigotski, e para o qual o percurso torna-se prioritário em relação aos resultados, a escolha primeira foi pelo procedimento de trabalho em grupos focais, uma vez que essa metodologia permitiria apreender as relações entre os sujeitos, ou seja, seria possível apreender as formas como se os interlocutores esti 136
vessem significando ativamente os enunciados postos em circulação acerca de suas vivências no coral. Primeiramente, decidi que alunos e ex-alunos pertencentes ao coral da Unimep seriam contatados e convidados a participar. Pretendia organizá-los em grupos de cerca de seis a dez participantes. Segundo Beatriz Carlini-Cotrim (1996), o grupo focal é um método de pesquisa qualitativa que pode ser utilizado no entendimento de como se formam as diferentes percepções e atitudes acerca de um fato, prática, produto ou serviço. Nas palavras de Carlini-Cotrim (1996, p. 287): A coleta de dados através de grupo focal tem como uma de suas maiores riquezas se basear na tendência humana de formar opiniões e atitudes na interação com outros indivíduos. Ele contrasta, nesse sentido, com dados colhidos em questionários fechados ou entrevistas individuais, onde o indivíduo é convocado a emitir opiniões sobre assuntos que talvez ele nunca tenha pensado a respeito anteriormente. As pessoas em geral precisam ouvir as opiniões dos outros antes de formar as suas próprias. E constantemente mudam de posição (ou fundamentam melhor sua posição inicial) quando expostas a discussões de grupo. É exatamente este processo que o grupo focal tenta captar.
Bernadete Angelina Gatti (2005) descreve que o grupo focal teve início em 1920, sendo primeiramente mencionado como técnica de pesquisa em marketing. Em 1950, o grupo focal foi utilizado para estudar as reações das pessoas diante da propaganda de guerra. Já nos anos de 1970, de grupos de discussão foram utilizados como fonte de informação em pesquisa e foi comum em áreas muito particulares; e, no início dos anos 1980, houve a preocupação em adaptar essa técnica ao uso na investigação científica. 137
A concepção de grupo focal na pesquisa em educação tem se diferenciado dos outros instrumentos, conquistando um lócus privilegiado nas mais diversas áreas de estudo por proporcionar quantidade e qualidade de dados sem perder a unidade de análise proposta no estudo. No entanto, é preciso ter cuidado na escolha dos participantes, pois eles devem ter pouco contato no que diz respeito à vida pessoal, para evitar o temor de que suas opiniões possam ter um impacto posterior naquele grupo de amigos/conhecidos. Por outro lado, os participantes devem ter certas características comuns, uma vez que vão falar sobre um mesmo assunto. Existe, também, a orientação de que, para a constituição dos grupos focais, as pessoas tenham alguma vivência com o tema, no sentido de preservar que as discussões estejam relacionadas com as experiências do cotidiano. Não obstante, há de se ter cautela também com a forma de convite, pois, para que haja engajamento na participação, o convite deve garantir tanto a atratividade para a participação quanto a liberdade de adesão ou não pelo participante. Nesse tipo de método, há de se procurar estabelecer pacto de confiança entre moderador/pesquisador, condição imprescindível para o bom andamento da pesquisa. Gatti (2005) enfatiza ainda que convêm ressaltar que o trabalho com grupos focais trata-se de uma proposta de troca efetiva entre os participantes e não se caracteriza como entrevista coletiva, condição essa que deve ser enfatizada. Ressalta, ainda, que o pesquisador deve explicitar seu papel aos participantes com informações necessárias e básicas, bem como propor que cada um deles faça um comentário geral do assunto para a efetivação da troca entre os membros. Nesse sentido, “a melhor maneira de intro 138
duzir o que se espera daquele grupo é francamente admitir que o moderador está lá para aprender” (MORGAN,1988 apud CARLINI-COTRIM,1996, p. 289). Desse modo, nesta pesquisa, pretendia englobar a participação dos diferentes campi, idades, cursos e tempo de trabalho no coral na organização dos grupos focais. Também, se fosse possível, convidaria ex-alunos para fazerem parte dos grupos. Pretendia organizar três grupos de seis a oito participantes para entrevistas com a duração de uma hora a uma hora e 30 minutos, etapa que seria complementada paralelamente mediante entrevistas semiestruturadas com os pesquisados. Rosalini Barbour (2009) alerta para o fato de que a quantia de grupos focais a serem utilizados é determinada pelas comparações que o pesquisador deseja fazer e que não há um número exato e ideal a ser seguido. Uma vez coletados os dados, eles serão organizados com a intenção de perceber os sentidos das interações na dinâmica do grupo em relação ao tema proposto na intenção de ir além de um relato estabelecido. É uma visão do contexto das interações, já que os grupos focais têm a capacidade de ir mais adiante do que a pretensão do pesquisador, de modo que proporciona a reflexão dos seus participantes. Num primeiro momento, fez-se necessário recorrer ao arquivo para fazer o levantamento de fichas de identificação dos sujeitos que já passaram pelo coral da instituição, as quais foram preenchidas quando do ingresso no coral. Nessa busca, localizamos um total de 882 fichas, das quais 47 são de coralistas atuais e 835 de ex-coralistas. Muito embora esse seja um número expressivo, não se pode afirmar que corresponda ao total de cantores que pelo coral da Unimep já passou. 139
Ao deparar-me com o número de coralistas evidenciado pela pesquisa, compreendi a impossibilidade de montar grupos focais em razão da dificuldade de reunir as pessoas em datas e horários comuns, já que vários ex-cantores não são da cidade e vários estão residindo em outros Estados, sendo que alguns residem, inclusive, fora do país. Foi necessário, portanto, redimensionar o modo de produção dos dados em função do levantamento inicial. Assim, optei por modificar a metodologia da pesquisa, utilizando como instrumento o questionário. Segundo Antônio Carlos Gil (1999), o questionário oferece vantagens, pois possibilita que se abarque o maior número possível de participantes, mesmo que dispersos em uma área geográfica muito extensa. Para tanto, o instrumento escolhido para a realização da pesquisa foi a aplicação do questionário via e-mail. Ainda de acordo com Gil (1999) no que diz respeito ao questionário, essa é uma técnica de investigação que contempla a possibilidade de maior ou menor número de questões, dependendo dos objetivos da pesquisa. Por sua vez, o objetivo da aplicação de questionários é a possibilidade de contemplar “o conhecimento de opiniões, crenças, sentimentos, interesses, expectativas, situações vivenciadas etc.” (GIL, 1999, p. 128). Complementando esse assunto, Paulo Sérgio Teixeira do Prado e Kester Carrara (2005, p. 397) fazem o seguinte esclarecimento: O questionário tem sido largamente utilizado como instrumento de coleta de dados de pesquisa em diversas áreas, como nas ciências sociais, na psicologia, na economia e na educação. Como recurso instrumental, é usado em pesquisas visando sondar a opinião de uma população sobre um determinado assunto, auxiliar no
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acesso a eventos ocorridos no passado, definir perfis sócio-econômicos de populações, fazer diagnósticos diversos, caracterizar hábitos e comportamentos etc.
Na mesma senda, em artigo comentando vantagens e limitações dos questionários eletrônicos via Internet no Contexto da Pesquisa Científica, Liliana Vasconcelos e Luis Fernando Ascensão Guedes (2007, on-line) explicitam que O questionário tem sido um instrumento de pesquisa largamente utilizado para coleta de dados em áreas diversas tais como as ciências sociais, economia, educação e administração. Como ferramenta operativa, é usado em pesquisas nas quais se investiga de modo sistemático a opinião de dada população sobre um assunto específico, auxiliando o pesquisador no acesso a eventos ocorridos no passado, na elaboração de perfis de comportamento e de diagnósticos diversos.
No que diz respeito ao modo de aplicação do instrumento, entre os benefícios da utilização de aplicação enviada por e-mail, há de considerar a possibilidade de o participante ter maior tempo disponível para respondê-lo. Assim, é exercida uma menor pressão para a obtenção das respostas, refletindo numa maior amplitude de qualidade informacional (PRADO; CARRARA, 2005). Vieira, Castro e Schuch Júnior (2010, p. 1, on-line) afirmam que “A Internet, como um meio de comunicação em expansão, pode oferecer diversas oportunidades para a realização de pesquisas”. E complementam: “[...] as pesquisas realizadas com auxílio da Internet estão ficando cada vez mais populares entre os pesquisadores” (MALHOTRA, 2006, apud VIEIRA; CASTRO; SCHUCH JÚNIOR, 2010, p. 1, on-line). Porém, no tocante à literatura atual, ainda são poucos os estudos que analisam a visão dos entrevistados sobre esse tipo de pesquisa.
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Das fichas localizadas no arquivo do NUC, a maior parte delas não constava de e-mails. Nesses casos, os sujeitos foram submetidos à busca por meio de um sistema denominado Procob – soluções para crédito, cobrança e proteção contra fraude. Trata-se de um serviço pago que contém banco de dados, inclusive e-mails, sendo comumente utilizado por empresas de cobrança e escritórios de advocacia. Significa dizer que foi localizado um universo de 882 fichas, sendo 835 de ex-cantores e 47 de atuais cantores. Vale desde já salientar que as fichas de atuais cantores não foram submetidas à busca pelo sistema Procob, pois em todas elas constava e-mail. Do universo de 835 fichas de ex-cantores, em 409 cadastros foram localizados o e-mail. Ante o exposto, dos e-mails localizados pelo sistema Procob, foram enviados questionários para 409 sujeitos. Desse total de e-mails enviados, 166 retornaram sem encontrar seus destinatários. Desse modo, 243 sujeitos efetivamente receberam o questionário remetido via e-mail, sendo que desse total, 28 foram respondidos. É importante esclarecer que as 426 fichas que sobraram apresentaram os seguintes problemas: • Embora tenha sido encontrado o cadastro dos sujeitos no sistema Procob, não foram encontrados no cadastro do sistema e-mails de 244 fichas. • Outro dado importante diz respeito ao fato de que 182 fichas, embora pesquisadas no sistema, não foram localizados os cadastros desses sujeitos. Relativamente ao que tange aos atuais cantores, foram remetidos via e-mail um total de 47 questionários. Deste total, 19 foram respondidos. 142
Vale asseverar que esta metodologia incluiu a aplicação de questionário piloto (num total de quatro), que teve por objetivo possibilitar novas sugestões para modificação dos instrumentos antes que os questionários fossem efetivamente enviados. Porém, esses quatro questionários não foram computados na análise. Tabela 4 – Processo de pesquisa voltado aos ex-coralistas Processo de pesquisa
N° de ex-coralistas
Total de fichas localizadas
835
Total de fichas submetidas à busca no sistema Procob
835
Fichas submetidas à busca, com localização de e-mail
409
Total de questionários enviados
409
E-mails enviados e devolvidos por não localizar o destinatário
166
Total de sujeitos que receberam o questionário
243
Total de questionários respondidos à pesquisadora
28
Fonte: Elaborado pela autora. Tabela 5 – Processo de pesquisa voltado aos atuais coralistas Processo de pesquisa
N° de atuais coralistas
Total de fichas existentes de atuais coralistas
47
Total de fichas sem e-mail
0
Total de fichas com e-mail
47
Total de e-mails enviados
47
Total de e-mails enviados que não chegaram ao destinatário
0
Total de fichas respondidas à pesquisadora
19
Fonte: Elaborado pela autora.
4.2 A Produção dos Dados
A seguir, apresentarei, no Quadro 1, o questionário enviado via e-mail aos atuais e ex-cantores. Ressalto que algu 143
mas questões elaboradas aos ex-cantores foram adaptadas aos atuais participantes. Podemos observar no Quadro 1 as questões organizadas da seguinte maneira: a primeira questão é aquela apresentada aos ex-cantores e, na sequência, separada por uma barra (/), está a questão apresentada aos atuais cantores. Quadro 1 – Questões do questionário enviado 1- Informações pessoais Nome (opcional): idade: sexo: Curso de graduação realizado: Atuação profissional hoje / Já trabalha? Em que área? a) Já havia tido algum contato com música antes ao do seu ingresso na Unimep (participado de outro coral, estudado piano, violão, teoria musical, solfejo, canto, etc.)? ( ) Sim ( ) Não Se sim, o quê? / Qual? b) Você permaneceu no coral da Unimep (em média) por anos da graduação / Você está no coral há quanto tempo? ( )1a2 ( )3a4 ( ) Menos que 1 ( ) Mais que 4 c) Quando participou (em que período), como era o coral na sua época em termos de estrutura, etc.? 2- Sobre o repertório Qual o repertório musical que mais gostava? Lembra-se de algumas letras de músicas? Quais? / Qual o repertório musical que tem gostado mais? Sabe já a letra de algumas músicas? Quais? 3- Sobre sua vivência e experiência pessoal mediadas pela participação no coral: a) O que o motivou a entrar para o Coral e qual a motivação para sua continuidade? b) Saindo do Coral manteve (ou mantém) alguma relação mais próxima com a música? / Além do coral, manteve (ou mantém) alguma relação mais próxima com a música? c) Você acredita que a prática do canto coral pode influenciar em alguns aspectos da vida (acadêmica, profissional, pessoal) do participante? Em caso positivo, seguem algumas sugestões de possibilidades. Por gentileza, comente-as e, se possível, acrescente outras que considerar importantes. - Alteração das relações humanas - Capacidade de trabalho em grupo - Alteração da postura ético-profissional - Postura analítico-crítica - Relação com a autoestima - Senso estético - Capacidade de concentração - Capacidade de elaboração conceitual - Ampliação do repertório cultural - Sentimento de pertença a um grupo, uma comunidade d) Na prática do canto coral há aspectos que são significados pelos sujeitos de formas bastante diferenciadas dependendo de suas vivências anteriores. Na sua experiência, exemplifique uma relação marcante justificando-a. Se houver algum aspecto a mais que deseja destacar, faça um breve relato.
Fonte: Elaborado pela autora.
144
A elaboração do questionário foi organizada na tentativa de apreender: 1. perfil do sujeito, cujas questões foram diretas e objetivas; 2. informações sobre o repertório do coral no período de sua participação; 3. investigar acerca da vivência e experiência musical mediada pela participação no coral. Julguei que, pela diversidade de informações acerca do repertório, bem como das vivências e experiências dos sujeitos, as questões dos itens 2 e 3 foram abertas e/ou descritivas. Conforme mencionado, na primeira parte do questionário, as questões dizem respeito às informações pessoais dos respondentes, que foram levantadas com o objetivo de buscar o perfil do respondente, a saber: idade, sexo, curso de graduação realizado ou, no caso do ex-cantores, a área de formação/atuação profissional. Ainda nessa parte, questionei acerca do contato com a música anterior ao ingresso no coral da UNIMEP, uma vez que havia a intenção de verificar se os alunos que participaram ou participam do coral o fazem com ou sem influência musical de vivência anterior. Busquei, também, caso a resposta fosse positiva, verificar de que forma se deu esse contato anterior. Pretendia coletar informações acerca do tempo médio de participação no coral, para que fosse possível cotejá-lo com o tempo de duração do curso de graduação. A segunda parte do questionário contempla o repertório, com o objetivo de estabelecer uma ligação entre a memória musical (repertório lembrado) e a memória afetiva/ musical (música que mais gostava). Na terceira parte, busquei investigar sobre a vivência e a experiência musical mediada pela participação no coral, a fim de verificar a motivação para entrada e permanência no coral. Procurei verificar se o motivo para o ingresso 145
permaneceu ou se alterou durante o processo de permanência. A outra questão, ainda nessa mesma parte, foi elaborada a fim de compreender a influência do coral na vida dos sujeitos no que diz respeito à música propriamente dita. No caso dos ex-cantores, perguntei se eles mantiveram ou mantêm relação com a música e, no caso dos atuais, busquei saber se, além do coral, estão envolvidos com outra atividade musical. Para atender mais especificamente ao objetivo deste trabalho no que diz respeito ao potencial educativo do coral na vida dos participantes que por ele passaram em diferentes épocas, estabelecendo estreita relação entre a educação metodista e o canto coral, na terceira parte questionei acerca da relação que o sujeito estabelecia entre a experiência vivida no canto coral e os aspectos relativos à vida acadêmica, profissional ou pessoal. Para finalizar o questionário, abri a possibilidade para que o sujeito pudesse manifestar-se livremente, com o objetivo de coletar o que consideraram ou consideram mais relevante quando da participação no coral da Unimep. Antes de iniciar a apresentação dos dados, faço uma pequena digressão... A clássica dicotomia entre abordagens de pesquisas qualitativas e/ou quantitativas tem gerado discussões quanto ao trabalho com dados numéricos e estatísticos que apresentem tabelas e gráficos. Esta pesquisa ancora-se, entretanto, nos princípios vigotskianos do desenvolvimento humano que tem como pressuposto a epistemologia marxiana. Compreendo que, ainda que a solicitação acadêmica tenha-me levado a explanar sobre a abordagem qualitativa de pesquisa, entendo que o próprio princípio 146
epistemológico no qual se ancorou rompe com a dicotomia e as exclusões. Segundo Lígia Márcia Martins (2006, p. 9, on-line), “[...] a lógica dialética própria à epistemologia marxiana não é excludente, uma vez que incorpora a lógica formal indo além, isto é, incorpora por superação”. A autora ressalta ainda que Disso resulta a necessidade de uma profunda compreensão acerca do que seja oposição e contradição. Não se trata de reconhecer opostos confrontados exteriormente, mas tê-los como interiores um ao outro, no que reside um dos mais importantes preceitos da lógica dialética denominado identidade dos contrários. Em conformidade com este princípio falamos, então, na unidade indissolúvel dos opostos, o que determina saber o objetivo como subjetivo, o externo como interno, o individual como social, o qualitativo como quantitativo etc. Este é o mais absoluto significado da contraposição marxiana aos dualismos dicotômicos asseverados nos princípios de identidade e exclusão próprios à lógica formal (MARTINS, 2006, on-line, p. 9, grifos da autora).
Posto isso, a fim de facilitar a visualização, fiz a opção por inserir nesta dissertação os gráficos que compilam as respostas dos sujeitos respondentes, os quais são apresentados na próxima seção. A produção dos gráficos foi necessária para auxiliar-me no olhar para os dados na tentativa de compreendê-los, inclusive por associações quantitativas. 4.3 Apresentação dos Dados Compilados
Em relação às informações pessoais, o Gráfico 1 mostra que a faixa etária de maior incidência dos respondentes está entre 17 e 25 anos, com 34%, seguida de outras duas: 36 a 40 e de 51 a 60 anos, ambas com 17%. Por fim, com 13%, estão as faixas etárias de 41 a 45 e 46 a 50 anos.
147
Gráfico 1 – Distribuição percentual dos respondentes de acordo com a faixa etária
17% 17 a 25 anos
34%
26 a 30 anos 36 a 40 anos
13%
41 a 45 anos 46 a 50 anos 13%
51 a 60 anos
6% 17% Fonte: Elaborado pela autora.
Conforme exposto no Gráfico 2, pude verificar que, do total de respondentes no que se refere ao gênero, a maioria, ou seja, 27 (57%), é do sexo masculino, e 20 (43%) deles são do sexo feminino. Gráfico 2 – Distribuição percentual dos respondentes segundo o gênero
43%
Masculino 57%
Fonte: Elaborado pela autora.
148
Feminino
Em relação às áreas de formação, obtive que 22 (47%) respondentes são da área de humanas, 13 (28%) são da área de exatas e 12 (26%) das áreas de biológicas, conforme se observa no Gráfico 3. É importante salientar que a área de humanas, embora tenha prevalecido, não é maior que a soma das áreas de exatas e biológicas. Gráfico 3 – Distribuição percentual dos respondentes segundo a área de formação
26%
28%
Exatas Humanas Biológicas
47%
Fonte: Elaborado pela autora.
No tocante à atuação profissional dos respondentes, 29 (62%) indicaram atuação no setor privado. Para os que se consideravam sem atuação profissional, o total de respostas foi 10 (21%). Já para o setor público, foram oito (17%) respondentes. O Gráfico 4 ilustra esses resultados.
149
Gráfico 4 – Distribuição percentual dos respondentes segundo a área de atuação profissional
17%
Setor público
21% 62%
Sem atuação prof issional Setor privado
Fonte: Elaborado pela autora.
No que tange ao ramo de atividade, 12 (26%) respondentes informaram que atuavam no comércio. Com atuação na área da saúde, o total de respondentes foi sete (15%). No caso da área de educação e serviço público, obtive a mesma expressividade de respostas, ou seja, cinco (11%) respondentes. Constatei que nove entrevistados sinalizaram não ter área de atuação. Por essa razão, observei que um respondente, embora estivesse em processo de formação acadêmica, apontou atuação profissional. Desse modo, percebi que ele não considera que esteja atuando profissionalmente na área de em que estuda. O Gráfico 5 ilustra os ramos de atividade dos respondentes.
150
Gráfico 5 – Distribuição percentual dos entrevistados segundo o ramo de atividade em que atuam
e d a d i v it a e d o m a R
26%
Comércio Sem atuação prof issional
19% 15%
Saúde Educação
11% 11%
Serviço público Indústria
9% 4%
Transporte Comunicação
4% 2%
Religião 0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
Percentual
Fonte: Elaborado pela autora.
Na questão referente ao contato com a música, 38 (83%) entrevistados responderam já haver tido contato anteriormente ao ingresso no coral, e nove (17%) afirmaram ter tido contato posteriormente à participação no coral. O Gráfico 6 apresenta esses resultados. Gráfico 6 – Distribuição percentual dos entrevistados de acordo com contato com a música antes do ingresso no coral Unimep 17%
Tiveram contato Não tiveram contato
83%
Fonte: Elaborado pela autora.
151
Conforme exposto no Gráfico 7, do total dos respondentes, 19 (49%) apontaram que o contato musical ocorreu via instrumentos musicais. Na sequência, 11 (28%) respondentes disseram ter tido contato com corais sacros. No que tange a corais da iniciativa privada e coral escolar, foi três (8%) o número de respondentes. O coral universitário foi o menos citado como experiência anterior, com (5%) respondentes. Gráfico 7 – Distribuição percentual dos respondentes que tiveram contato com a música antes do ingresso na Unimep, segundo o tipo de atividade musical
49%
Instrumentos l a Corais sacros ic s u m Coral escolar e d a d i v it Corais iniciativa privada a e d Coral universitário o p i T
28% 8% 8% 5% 3%
Outros 0%
10%
20%
30%
40%
50%
Percentual
Fonte: Elaborado pela autora.
Conforme apresentado no Gráfico 8, no que tange ao repertório, 17 (36%) afirmaram que as músicas mais lembradas ou recordadas são as populares brasileiras. Para a música religiosa/sacra e erudita, houve a mesma expressividade em número de respostas, ou seja, 15 (32%) respondentes para cada estilo.
152
Gráfico 8 – Distribuição percentual dos respondentes de acordo com o estilo de música que se recordam
32%
36% Popular brasileira Religiosa / sacra Erudita
32% Fonte: Elaborado pela autora.
Ainda referente à primeira parte do questionário (perfil), ao responderem acerca do tempo e período de participação, pude observar que, para todas as décadas (1980, 1990 e 2000) analisadas, o tempo de permanência no coral mais assinalado foi de três a quatro anos. Muito provavelmente esse dado aponte que a maioria dos participantes permaneceu, em média, o período em que esteve na graduação. A seguir, são apresentados o tempo de permanência no coral nas décadas de 1980 (Gráfico 9), 1990 (Gráfico 10), 2000 (Gráfico 11) e no período de 2001 a 2013 (Gráfico 12).
153
Gráfico 9 – Distribuição percentual dos respondentes segundo o tempo de permanência no coral durante a década de 1980
13%
7%
Menos que 1 ano 33%
1 a 2 anos 3 a 4 anos Mais que 4 anos
47%
Fonte: Elaborado pela autora. Gráfico 10 – Distribuição percentual dos respondentes segundo o tempo de permanência no coral durante a década de 1990
33%
1 a 2 anos 3 a 4 anos
67%
Fonte: Elaborado pela autora.
154
Gráfico 11 – Distribuição percentual dos respondentes segundo o tempo de permanência no coral durante a década de 2000
10% 30% 20%
Menos que 1 ano 1 a 2 anos 3 a 4 anos Mais que 4 anos
40% Fonte: Elaborado pela autora. Gráfico 12 – Distribuição percentual dos respondentes segundo o tempo de permanência no coral durante o período de 2011 a 2013
27%
Menos que 1 ano 1 a 2 anos 60% 13%
Fonte: Elaborado pela autora.
155
3 a 4 anos
Ao serem questionados sobre a motivação para o ingresso no coral, 29 (62%) sujeitos apontaram o compromisso com a música. Para a motivação bolsa, foram 15 (32%) respondentes. Quanto à motivação de cunho religioso (religiosidade), foram dois (4%) os respondentes. A seguir, ilustro os resultados obtidos com o Gráfico 13. Gráfico 13 – Distribuição percentual dos respondentes segundo a motivação para o ingresso no coral
62%
Compromisso com a música
32%
Bolsa coral
Religiosidade
Arte
4%
2% 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70%
Fonte: Elaborado pela autora.
Na sequência, questionei os entrevistados acerca da motivação para a permanência no coro, sendo o ambiente a mais apontada, com 13 (28%) respondentes. Em seguida, 10 (21%) respondentes apontaram a bolsa como motivação de permanência. Em relação ao aspecto terapêutico, foram nove (19%) os respondentes. Embora o ambiente tenha sido o mais evidenciado como motivador para a permanência, a bolsa e o aspecto terapêutico correspondem a um valor próximo. Por essa razão, se porventura forem somados os resultados da concessão de bolsa com os do aspecto terapêutico, obteremos 19 respondentes. Sendo assim, consi 156
dero o segundo e o terceiro motivos mais apontados como relevantes para a apreciação dos dados. Vale observar que oito (17%) respondentes não descreveram a motivação. O Gráfico 14 apresenta os resultados obtidos. Gráfico 14 – Distribuição percentual dos respondentes de acordo com a motivação para a permanência no coral
28%
Ambiente 21%
Bolsa
19%
Terapêutico
17%
Pessoas que não descreveram a motivação 11%
Compromisso com a música Regente/maestro
2%
Ética - reconhece de que o coral colabora para uma postura ética
2% 0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
Fonte: Elaborado pela autora.
Quando os respondentes foram questionados se mantinham ou não relação próxima com a música ao sair do coral, 36 (77%) responderam positivamente, oito (17%) afirmaram não ter contato e apenas três (6%) não responderam, conforme apresentado no Gráfico 15.
157
Gráfico 15 – Distribuição percentual dos respondentes segundo a relação de proximidade que mantêm ou nßão com a música após a saída do coral 6% 17% Possui relação próxima com a música Não possui relação próxima com a música Não responderam
77%
Fonte: Elaborado pela autora.
Para essa questão, ao ser solicitado aos respondentes que indicassem alguma relação da prática do canto coral com aspectos da vida (acadêmica, profissional, pessoal), 27 (22%) apontaram afirmativamente para todas as sugestões, quais sejam: • alteração das relações humanas; • capacidade de trabalho em grupo; • alteração da postura ético-profissional; • postura analítico-crítica; • relação com a autoestima; • senso estético; • capacidade de concentração; • capacidade de elaboração conceitual; • ampliação do repertório cultural; • sentimento de pertença a um grupo, uma comunidade. Entre os entrevistados que responderam, 12 (10%) afirmaram que a capacidade de trabalho em grupo correspon 158
dia à alternativa mais significativa. O segundo resultado mais apontado foi em relação ao canto coral, com a ampliação do repertório cultural e o sentimento de pertença, foram 11 (9%) os respondentes. Observei que as relações com a autonomia, a capacidade de concentração e alteração das relações humanas obtiveram a terceira expressividade, o mesmo resultado, ou seja, nove respondentes, sendo (7%) para cada uma. Na sequência, foi evidenciada a postura analítico-crítica e a capacidade de elaboração conceitual, que apareceram com o mesmo resultado, ou seja, sete respondentes (6%) para cada uma. Em último lugar, apareceu o senso estético e a alteração da postura ético-profissional, ambas com o mesmo resultado, ou seja, seis respondentes (5%) para cada uma. O Gráfico 16, a seguir, ilustra o exposto acima. Gráfico 16 – Distribuição percentual dos respondentes segundoos aspectos da vida profissional, acadêmica e pessoal influenciados pela prática do canto no coral 22%
Inf luência em todos os aspectos abordados 10%
Capacidade de trabalho em grupo
9%
Sentimento de pertença a um grupo
9%
Ampliação do repertório cultural s a i c n ê u lf In
Capacidade de concentração
7%
Relação com a autonomia
7% 7%
Alteração das relações humanas Não responderam
6%
Capacidade de elaboração do conceitual
6% 6%
Postura analítico-crítica Senso estético
5%
Alteração da postura ético-prof issional
5% 0%
5%
10%
15%
Percentual
Fonte: Elaborado pela autora.
159
20%
25%
4.4 Um Olhar mais Acurado para os Dados: a Busca da Compreensão do Potencial Educativo do Coral
Entendo ser importante tecer um posicionamento sobre os dados apresentados, pois compreendo que até aqui os gráficos e as respectivas descrições evidenciaram uma opinião menos elaborada, menos refletida dos respondentes. A flexibilização da resposta imediata do/no questionário precisa ser considerada quando da análise, ou seja, o questionário veicula um enunciado que se coloca como réplica às questões colocadas. Quando chegou o momento das análises desses enunciados, busquei, nas respostas evidenciadas, os indícios do potencial educativo do canto coral da Unimep a partir da experiência dos sujeitos que dele participaram. Nessa seara, acredito que o entrevistado, ao dar a primeira resposta, não teceu grandes reflexões sobre o potencial educativo do coral, sendo essa uma questão que me interessa. Muito embora possam ter refletido sobre suas experiências, essa não era a questão que os norteava a responder o questionário. A resposta imediata aparece primeiro como sendo uma opinião mais crua, menos refletida. Ao debruçar sobre os dados produzidos, objetivei olhar para o aspecto subjetivo, bem como para investigação da valoração ou não dos participantes do coral. Busquei apreender se e como os respondentes indiciam reconhecer os aspectos formativos do canto coral. Ao debruçar de maneira mais incisiva sobre os dados produzidos, bem como sobre a confecção de tabulação e gráficos, diferentemente da primeira análise apresentada na qualificação, foi possível perceber que a bolsa aparece como segundo motivador para o ingresso, não sendo o principal motivador. Observei 160
que o primeiro motivador apontado refere-se ao compromisso com a música. Por essa razão, de maneira especial, na tentativa de compreender o potencial educativo do coral, apresentarei nas seções a seguir os três eixos de análise: 1. ingresso e permanência no coral; 2. importância do repertório para a memória musical; 3. potencial formativo da música e sua relação com a vida dos participantes do coral. 4.4.1 Ingresso e permanência no coral
Em conformidade com a perspectiva histórico-cultural, acredito na unidade indissolúvel dos opostos, o que determina saber o objetivo como subjetivo, o externo como interno, o individual como social, o qualitativo como quantitativo, etc. Esse é o mais absoluto significado da contraposição marxiana aos dualismos dicotômicos asseverados nos princípios de identidade e exclusão próprios à lógica formal. Nesse sentido, como não se dispõe de dados de natureza discursiva, as discussões nesta seção do texto estão pautadas basicamente nos dados quantitativos apresentados, o que não desmerece o caráter qualitativo das análises. Conforme já aludido neste trabalho, a compreensão do tema proposto é guiada pela perspectiva histórico-cultural. Retomo essa questão, pois desejo destacar o entendimento acerca do papel da arte para a formação do sujeito. Para que se possa refletir melhor sobre o papel da arte na atual conjuntura, será necessário irmos à fonte da teoria que subsidia a perspectiva adotada neste trabalho. A partir dos estudos marxianos, proponho olhar para o conceito de alienação. Por essa categoria elencada a partir
161
das reflexões de Marx, busco aclarar o meu entendimento acerca do tema proposto. Por alienação, compreendo a perda da capacidade do homem e da mulher de estarem em relação orgânica com os produtos de sua atividade. Entendo que tal impossibilidade impede o desenvolvimento de sentidos cada vez mais humanizados e refinados, uma vez que há a restrição de seus sentidos às necessidades prático-utilitárias. Sendo assim, fica impossibilitada a possibilidade de usufruir da arte em sua totalidade. No contexto do presente estudo, compreendo que o gênero humano não é mais dono dos produtos do seu próprio trabalho. A partir dessa dinâmica, ocorre a alienação das suas próprias atividades, dos outros homens e do gênero humano. A história social é inaugurada pelo trabalho social, pelo emprego dos instrumentos de trabalho e pelo surgimento da linguagem. Diferentemente dos animais que fazem de seus próprios corpos a extensão da natureza, ficando, portanto, à mercê de suas variações e adaptações, o homem, embora também seja parte da natureza, é capaz de criar condições artificiais para a própria sobrevivência. Pelo trabalho, ocorre a modificação da natureza em prol de sua sobrevivência. O homem não prescinde da natureza, pois por meio de outros sujeitos, a partir de uma vivência em sociedade, media e é mediado pelo trabalho. Por essa razão, segundo Vitor Marcel Schühli (2011, on-line), enquanto o animal é exatamente o que a natureza constituiu, o homem é o que a natureza constituiu acrescido das ampliações e modificações constituídas pela sociedade. Isso Significa dizer
162
que somente o homem é capaz de encontrar uma forma superior de vida (atividade consciente). Do exposto até o momento, acredito que o coral seja um espaço profícuo de elevação da vida cotidiana a um nível mais elaborado de reflexão, que esteja para além do pragmatismo e da espontaneidade, próprios da vida cotidiana. Segundo Maria Helena Souza Patto (1993), ao explanar sobre as ideias de Heller, filósofa e pensadora marxista, a escola e as atividades culturais humanas organizadas, no caso desta pesquisa, o coral, são esferas não cotidianas que possibilitam – ou deveriam possibilitar – ao sujeito a decolagem do cotidiano, do indivíduo particular, rumo ao ser genérico, ao humano-genérico. Essa compreensão pode ser consolidada tomando o seguinte exemplo: [...] as pessoas trabalham – uma atividade do gênero humano –, mas com motivações particulares; têm sentimentos e paixões – manifestações humano-genéricas –, mas os manifestam de modo particular, referido ao eu e a serviço da satisfação de necessidades e da teleologia individuais; a individualidade contém, portanto, a particularidade e a genericidade ou o humano-genérico (PATTO, 1993, p. 125).
Para Heller (1989 apud MOYSÉS; COLLARES; GERALDI, 2002), são os campos da ética, da política, da arte e da ciência que possibilitam aos sujeitos a elevação ao humano-genérico. Nesse sentido, entendo que o coral pode ser considerado como possibilidade de lócus transformador de sujeitos individuais rumo ao humano-genérico na medida em que, na convivência com outros sujeitos, os indivíduos podem vir a atribuir novos valores às normas assimiladas durante sua história de inserção em grupos sociais vividos na esfera do cotidiano.
163
O coral, uma esfera na qual circulam conhecimentos do campo da arte, é também possibilidade de alienação do sujeito da vida cotidiana diária e de suas formas de atividade à medida que o leva “orientar-se em situações que já não possuem a dimensão do grupo humano comunitário, de mover-se no ambiente da sociedade em geral e, além disso, de mover por sua vez esse mesmo ambiente” (HELLER, 1989, p. 34). Essa é a possibilidade humana de produzir-se ao produzir cultura e sendo por ela produzido. Ao admitir que o coral é também instância de constituição de subjetividades, admito, implicitamente, que é responsabilidade da instituição que o oferece contribuir com a passagem do indivíduo particular rumo ao ser genérico. Nesse sentido, defendemos que a democratização cultural sistematizada – tal como vivida no coral – abre novas possibilidades de fortalecimento da autonomia e uma experiência de humanidade compartilhada. A formação humana ética e cidadã, com vistas a uma sociedade democrática, nessa perspectiva, passa a ser também responsabilidade do espaço do coral e dos sujeitos que nele atuam (OMETTO; CUNHA, 2013). Por esse motivo, posso dizer que as esferas não cotidianas são possibilidades de mudanças qualitativas que permitem considerar o homem como ser genérico e, portanto, possibilita a existência da história social, a permanência da conquista das gerações. Pelo fato de as objetivações das realizações humanas estarem externamente ao corpo, permitem que o desenvolvimento humano ultrapasse as possibilidades biológicas. Por essa mesma razão, permite ao processo educativo das novas gerações humanas ser tomado como possibilidade
164
de humanização, ou seja, de inserção na cultura humana formada historicamente. Porém, a objetivação das realizações humanas externamente ao corpo dos indivíduos é o mesmo fato que permite que as aquisições do desenvolvimento histórico possam separar-se de quem e do que produz esse desenvolvimento. Para que haja a permanência de todas as potencialidades, ou seja, para que ele possa potencialmente ser um ser genérico, o indivíduo é obrigado a realizar um processo de apropriação dessas conquistas para se humanizar. Nesse sentido, entendo que a dinâmica do coral é também possibilidade de formação de individualidades, de constituição de subjetividades, via algo que é genérico e que pode ser objetivado no mundo pelas apropriações dos sujeitos que dele participam. Olhando para os dados produzidos, verifiquei que o compromisso com a música, a vontade de conhecê-la e dela se apropriar foi o principal motivador apontado para o ingresso no coral. Vale ressaltar que, num primeiro momento, ou seja, na ocasião da minha qualificação, a bolsa pareceu-me ter sido o primeiro motivador. No entanto, após a confecção dos gráficos e a análise atenta aos dados, a bolsa apareceu como segundo motivador. Em relação à permanência, os dados evidenciam que o ambiente foi apontado como principal motivador. Não obstante, o elemento bolsa apareceu em segundo lugar. Ficou evidenciado que a correlação entre contato anterior com a música, bem como por ela ter sido apontada como motivador para o ingresso no coral, muito provavelmente tenha possibilitado uma pré-valoração e identificação por aqueles que já haviam tido contato com a música.
165
Foi interessante perceber que a motivação de permanência mais apontada foi o ambiente. Digo ser interessante, pois também pareceu que o reconhecimento do ambiente, como motivador para a permanência, só foi possível por haver tido o compromisso com a música como motivador para o ingresso. Compreendo que é pelo processo de interação, ou seja, na relação com os fenômenos do mundo por meio de outros homens, que a objetivação e as aquisições do desenvolvimento histórico encontram postos nos fenômenos objetivos, material e espiritual da cultura. Sendo assim, Leontiev (1978) enuncia que o processo de interação é um processo de educação pela própria função que desempenha e, no caso do coral, esse é um de seus princípios que fundamentam. A partir da perspectiva histórico-cultural, compreendo que a linguagem está subordinada ao trabalho, pois, na atividade do trabalho conjunto, as informações precisam ser transmitidas e veiculadas. E na atividade do coral, isso não é diferente. Vigostski (1993) apontou a comunicação como a primeira função da linguagem. No entanto, não deixou de enfatizar que por intermédio da linguagem outras funções psicológicas ganhariam novas propriedades, tais como a construção da própria história e a formação da consciência. A linguagem permite a capacidade de pensamento abstrato, amplia a capacidade de memorização, de atenção voluntária e das funções psicológicas como um todo. Nesse sentido, reafirmo que o coral é uma esfera não cotidiana – um espaço de trabalho sistematizado –, com uma linguagem própria na qual circulam conhecimentos do campo da arte e, por isso mesmo, pode alienar o sujeito da vida cotidiana diária e de suas formas de atividade, 166
levando-o a novas orientações individuais no ambiente da sociedade em geral. Pela linguagem, e, portanto, pela consciência, o homem e a mulher, ao discriminarem os objetos do mundo, conservam-nos na memória, possibilitando, assim, o acesso a determinados objetos, mesmo estando ausentes (reflexo psíquico). Portanto, ao reconhecer a música como linguagem, sendo esta mediada pelas relações sociais, compreendo que por meio da prática do canto coral outras possibilidades de consciência são possíveis. Sendo assim, entendo que há uma íntima ligação entre a possibilidade de contato anterior com a música, possibilitando a existência do compromisso com o já conhecido, levando a valoração do ambiente ser uma motivação para a permanência no coral. Evocando as reflexões de Pierre Bourdieu67, busco acerca do capital cultural traçar um paralelo com alguns aspectos emergidos neste trabalho. Após desenvolver pesquisa criteriosa, o autor afirma que a família é responsável por possibilitar à criança, por vias indiretas (relações formativas não formais), a assimilação de bagagem acumulada ao longo das gerações precedentes. Tal fator, segundo o autor, elucida a questão de acesso aos diferentes bens da cultura. Esta possiblidade permite explicar as desigualdades entre história cultural e sua íntima ligação com as desigualdades sociais. Nesse sentido, ressaltamos que o
67 Pierre Bourdieu, em um estudo pioneiro e com base em uma abordagem macroestrutural, analisou os índices de produtividade escolar entre jovens franceses de distinta origem social. Desmistificando o discurso da escola libertadora, Bourdieu explicita os mecanismos perversos e ocultos responsáveis pelas desigualdades no aproveitamento e no rendimento de estudantes pertencentes a diferentes grupos sociais.
167
coral da Unimep possibilitou uma experiência coletiva por meio do canto aos cantores que por ele passaram. Voltando à ideia inicial acerca da arte, ao objetivarem externamente o seu corpo físico via instrumentos, os seres humanos criam a possibilidade do desenvolvimento cultural, que se dá sob determinadas condições histórico-sociais. Nos tempos atuais, as práticas educativas vigentes têm colaborado para o agravamento de uma formação nos balizadores da individualidade que, por sua vez, são reflexos da reprodução dos processos produtivos. Para que haja superação e aproximação, compreendo que o nível de desenvolvimento do gênero humano, bem como o grau de desenvolvimento de cada indivíduo, precisa ser aproximado. Na história da educação, temos presenciado inúmeros processos formativos que vão ao encontro do comportamento pacífico dos indivíduos que, por sua vez, são formatados física e psicologicamente por meio da alienação. Não se pretende com o presente trabalho estabelecer aprofundamentos acerca da temática capitalista. No entanto, como se trata de um estudo na área educação a partir da perspectiva-histórico-cultural, entendo que há necessidade de comentar, partilhando com a concepção de Schühili (2011), acerca das correntes psicológicas e pedagógicas que reproduzem em seu discurso a ideologia difundida no cotidiano alienado dos indivíduos. Dito de outro modo, o sistema capitalista também se utiliza de ações ideológicas, como no caso, a educação, para garantir, intensificar e acumular por intermédio da exploração do trabalho. Desse modo, entendo que seria ingenuidade achar que apenas as esferas do trabalho e da educação estão com 168
prometidas com vigência e permanência do sistema capitalista, pois, muito embora a arte tenha a função de romper com os processos formativos dominantes, que, por sua vez, colaboram com a massificação das individualidades alienadas, ela também tem sido utilizada pela indústria cultural para limitação da consciência. Em relação à bolsa como segunda motivação para o ingresso e a permanência no coral, ficou indiciado que, embora não seja o principal motivador, ocupa lugar de destaque. Para ilustrar a importância da bolsa no trabalho do coral, apresento alguns depoimentos significativos68: Sirlene, 38 anos, fisioterapeuta, docente na área e participante do coral entre 1994 e 1996, afirma: “Sempre gostei muito de música, mas não posso negar que a ajuda financeira da bolsa permitiu-me cursar a faculdade, era um atrativo bastante importante”. Ainda a respeito dessa ajuda financeira, Majú, 43 anos, bacharel em direito, professora da rede pública estadual e participante do coral entre 2008 e 2012, explicita que “A motivação maior para o meu ingresso no coral foi a bolsa de estudos oferecida pela universidade, embora a vivência musical e interpessoal tenha sido riquíssima”. A bolsa coral foi instituída pela Unimep após a chegada do maestro Umberto Cantoni. Conforme seu relato, durante seus primeiros meses de vivência na Unimep, ele percebeu que vários alunos que participavam do coral tinham dificuldade em arcar com a mensalidade do respectivo curso. Assim, articulou com a Reitoria a possibilidade de solucionar essa questão no sentido de que a Universi68 Cabe ressaltar que todos os nomes mencionados na análise são fictícios, para resguardar o sigilo dos participantes.
169
dade, além de oferecer uma formação integral por meio da arte, viabilizasse um incentivo econômico, materializado por um percentual de desconto que colaborasse para que o aluno pudesse se manter nos estudos. A ideia de Cantoni foi oportuna na ocasião, pois foi ao encontro da perspectiva de valorização e incentivo à cultura que a Reitoria compactuava à época, qual seja, a arte como possibilidade formativa. Conquistada a questão da bolsa, adotou-se a prática de distribuição de percentual de acordo com o empenho e comprometimento do aluno no coral e na atividade acadêmica. Dessa forma, o maestro tinha a liberdade para atribuir diferentes percentuais de bolsa a cada aluno. A dinâmica estabelecida em relação à flexibilidade acontecia sob a perspectiva de um mínimo e um máximo69. Em relação ao modo de condução da atividade, relata Cantoni que, naquele período, aconteciam quatro ensaios por semana, com duração de aproximadamente uma hora e meia70. A respeito da importância da música para a educação metodista, destaca Sérgio, formado em jornalismo e hoje repórter e editor do programa Globo Rural na TV Globo, participante entre 1991 e 1994, que: “Ensaiávamos quatro vezes por semana, sempre no final do dia. Acho que por uma hora e meia por dia. Tínhamos uma sala maior, com piano, onde fazíamos os ensaios gerais. Havia também uma sala menor, para ensaio separado dos naipes masculinos e femininos”.
69 Diversamente do panorama atual da Unimep, em que a bolsa é fixada em 25% sobre valor da mensalidade do curso. 70 Atualmente, há apenas dois ensaios semanais de uma hora cada.
170
Vale resgatar que o coral da Unimep, afinando com a perspectiva almejada pelos irmãos Wesley acerca da arte como formadora, transpirava tal perspectiva, de forma a buscar sua materialização. Ou seja, assim como a arte foi fundamental para o movimento metodista, a Unimep, na ocasião, vivia esta dimensão a partir da criação do coral Unimep. Tanto o movimento metodista quanto a Universidade compactuavam que, por meio da arte, os alunos poderiam ter uma formação integral e um espírito crítico para a formação da cidadania. A educação metodista reconhece que a arte é um veículo de transformação social e pessoal. Percebo, portanto, que o movimento naquela situação, foi o de manutenção do aluno na universidade pelo viés da arte, no caso, a música, tão cara aos metodistas. Como veículo propagador do metodismo, a hinódia71 para o movimento metodista foi de suma importância. Conforme já explicitado nesta dissertação, os sermões que John Wesley pregava eram transformados em hinos pelo seu irmão Charles. No entanto, atualmente, o fenômeno da globalização72, bem como o modo de viver a partir da era consumista, influenciou as igrejas, que obviamente estão incluídas nesse contexto. Dessa forma, também passaram
71 Hinódia, o mesmo que hino. Trata-se de uma coletânea. 72 Para Giddens (1991 apud IANNI, 1994, on-line), “A globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos locais podem se deslocar numa direção inversa às relações muito distanciadas que os modelam [...]. Além disso, segundo Albrow (1990 apud IANNI, 1994, on-line), “Globalização diz respeito a todos os processos por meio dos quais os povos do mundo são incorporados em uma única sociedade mundial, a sociedade global. Globalismo é uma das forças que atuam no desenvolvimento da globalização”.
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a “consumir” as músicas produzidas e comercializadas a partir do movimento gospel73. Sendo assim, muitas igrejas metodistas passaram a utilizar o gospel, esquecendo-se de hinos que realmente relatam a experiência protestante e, no caso, a expressão da teologia metodista. Várias igrejas utilizam-se desse repertório que, muitas vezes, diverge da teologia metodista. Esse processo, muito provavelmente, está relacionado com a alienação74 da comunidade e de seus dirigentes. Nesse sentido, a igreja também ocupa um espaço consumidor. Retomando a questão da conquista e desenvolvimentos dos parâmetros relacionados à bolsa, ela tornou-se um canal que possibilitava ao aluno finalizar seus estudos acadêmicos. Portanto, detectar o mecanismo de bolsa instituído na universidade, bem como a importância que se deu ao canto coral na década de 80, ouso fazer um paralelo no sentido de que as raízes metodistas romperam as barreiras do tempo, fazendo-se presentes nessa dinâmica no início do movimento coral da Unimep. E, por terem rompido as barreias do tempo, trazem até hoje o legado das mesmas preocupações sociais e educacionais de John e Charles Wesley. No entanto, considero que a educação metodista 73 Magali Nascimento Cunha (2004) relata que a forma do termo gospel popularizada nos Estados Unidos foi transplantada para o Brasil no início dos anos 90. Gospel é sinônimo da música religiosa ou da música cristã contemporânea (MCC), ou seja, passou a se classificar um gênero musical que combina formas musicais seculares (em especial as populares, como o rock, as baladas, o samba, o sertanejo e até o axé music) com conteúdo religioso cristão. 74 Laymert Garcia dos Santos, professor no Departamento de Jornalismo da PUC (São Paulo) e no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Unicamp, conceitua que “alienar é (...) transferir para outrem o domínio de, é tornar alheio” (SANTOS, 1983, p. 10 apud CATANI, 1986, on-line).
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esteja buscando seu posicionamento frente a uma sociedade capitalista/consumista, cujos valores estão enraizados tão somente no lucro. 4.4.2 Importância do repertório para a memória musical
Segundo Maria Regina Namura (2003) perguntar sobre o sentido da vida, bem como buscar respostas, é uma questão milenar que precede a filosofia, a religião e a história da arte. Num primeiro momento histórico, e de forma gradual, os mitos, da mesma forma que a cosmologia grega, cumpriram essa missão. Buscar respostas que deem sentido à vida parece ser um indicador de que atribuir sentido é uma condição humana. No entanto, é importante considerarmos que os sentidos atribuídos pela condição humana mudam e se transformam, assim como adquirem novos conteúdos, significados e qualidades no processo histórico-social do desenvolvimento do homem. Por essa razão, as ideias, as estruturas sociais e as concepções ideológicas, que dão sentido à vida, podem se transformar, desaparecer e renovar-se. O belo e o bom, como expressão e fusão dos valores estéticos e éticos, aparecem na civilização antiga. Aplicar os valores estéticos à vida como forma de dar sentido a ela desaparece na Idade Média e, segundo Namura (2003), (re) encontra-se no Renascimento e na ética contemporânea. Assim, o sentido não é apenas uma questão semântica, epistemológica ou cultural, mas condição humana que implica os modos de ser e existir. A arte – como campo de elevação ao humano genérico, tal como já apontado – e a estética, são esferas que atribuem o sentido da vida. Diferentemente de outras possi 173
bilidades, que também o fazem, mas não atingem pela via da sensibilidade. Namura (2003) comenta a concepção estabelecida por Marx nos manuscritos econômico-filosóficos de 1844 de que a arte é capaz de educar pela sensibilidade, desenvolvendo e devolvendo ao homem as riquezas dos seus sentidos. Essa educação dos sentidos é o que, segundo Marx, enriquece a experiência humana, pois por meio da pintura, da música e da literatura, tornam-se voltados para a humanização do mundo. Continuando, a autora afirma que, a partir da leitura de Vigotski75 e de seus estudos materialistas, poderíamos entender sentido como um olhar para o “subtexto”. Dessa forma, ocorre a modificação, potencialização e transformação da linguagem e da cultura por meio de experiências criativas e emancipadoras pelos laços afetivos significativos. Segundo Namura (2003), a arte é uma das formas que o homem criou para expressar as transformações do mundo e o sentido ou a falta de sentido da vida. A arte e a estética não são compreendidas apenas como ornamento da vida, mas a proposição e organização do homem à sua condição humana. Tal condição só pode ser possível por meio da ampliação da experiência enquanto ser criador, produtor, reflexivo e sensível. No transcorrer do processo histórico, a estética foi se separando do sentido. Por exemplo, na Idade Média, o sentido foi transportado para o divino e, na modernidade, a 75 De acordo com Namura (2003, p. 30, grifos da autora), “Em Vygotsky as obras que concentram a discussão da estética e do sentido foram pouco exploradas no campo da Psicologia. Hamlet - o Príncipe da Dinamarca [monografia de 1915-1916] sinaliza a gênese da categoria sentido, mas não se configura como um caminho sistemático para a análise do sentido. A Psico-
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valorização do indivíduo, sob as condições de reprodução material da sociedade burguesa, permitiu ao homem a falsa ideia da construção de um mundo novo. Entendo, portanto, que a valorização do indivíduo, transportado para questão material, deteriora e restringe o sentido ao empreendedorismo e à instrumentalização da vida. Conforme Namura (2003), não há espaço nesse contexto, para que a estética seja condição de vida do indivíduo. Nesse campo, o sentido não deve restringir-se ao campo da representação, mas deve ligar-se à estética. No caso deste estudo, compreendo a estética a partir das concepções vigotskianas que Namura (2003) fornece em seu estudo como sendo uma dimensão essencial para a constituição do sujeito e da subjetividade e, portanto, do sentido. Tal questão ancora-se na ontologia e fundamenta-se na práxis social. Para Namura (2003), Vigotski analisa o sentido guardando a relação com a materialidade e a ontologia, que fica explícita na questão da estética. Por essa razão, entendo que o sentido e a estética, enquanto dimensões autoimplicadas e constitutivas do sujeito, apontam para um sujeito criativo, sensível e ativo que produz cultura nas condições materiais de existência. No entendimento da autora, Vigotski elege o sentido como central em sua obra ao fazer inúmeras referências a poetas e obras literárias na tentativa de mostrar que a reação estética, suscitada pela arte, é imprescindível para
logia da Arte, obra que ilumina a categoria sentido atrelada à estética, revela a gênese estético-ontológica do sentido e os fundamentos da concepção teórico-metodológica que viria a propor para a construção de uma psicologia voltada para a vida concreta do homem, para a questão da liberdade e da necessidade, sinalizando também o esboço da teoria das emoções conforme comentários de seus intérpretes”.
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explicar o comportamento humano. Assim, o sentido objetivado em palavras é, segundo Namura (2003), o mais importante da consciência. Nesta pesquisa, procurei apreender por meio de indícios objetivados em palavras os sentidos suscitados pela arte, no caso, pelo canto coral. Assim, fiz uma digressão necessária, uma vez que olhar para as minúcias, para a escuta atenta e para os processos de descrição também são aspectos sinalizados pela perspectiva indiciária, desenvolvida por Ginzburg (1999). Segundo esse autor, “no final do século XIX, mais precisamente na década de 1870-80, começou a se firmar nas ciências humanas um paradigma indiciário fundamentado justamente na semiótica” (GINZBURG, 1999, p. 151), ou seja, na busca de sinais, signos, pistas, indícios ou sintomas que permitissem decifrar a realidade investigada. Portanto, no contexto desta pesquisa, foi necessário evocar a estética, pois, para Vigotski, as sensações e emoções foram definidas como um reflexo da consciência. Vale ressaltar com Namura (2003) que a maneira como a obra é apreendida não depende do criador, mas o sentido que será atribuído a ela depende da capacidade de valoração daquele que a aprecia. Diante do exposto, o que diferencia a apropriação advinda de uma visão estética é que seu papel não se restringe tão somente a educar, mas vai além, no sentido de transformar. A reação estética é um reflexo, cujo objetivo é responder à contradição provocada pela obra de arte. Tal contradição ocorre entre a forma e o conteúdo. Por essa razão, evoca sentimentos opostos uns aos outros, provocando um “curto-circuito” que não se traduz em descarga emocional; no 176
entanto, é capaz de aniquilar sentimentos para (re)construir outros, trazendo complexidade do pensamento e da vida afetiva. Nessa perspectiva, a catarse é o conceito que melhor expressa o sentido. [...] nenhum outro termo dos empregados até agora em psicologia expressa de forma tão completa e tão clara o fato fundamental para a reação estética, de que os afetos dolorosos e desagradáveis se vejam submetidos a certa descarga, a seu aniquilamento, a sua transformação em sentimentos opostos, e de que a reação estética como tal se reduza de fato à catarse, ou seja, a uma completa transmutação de sentimentos. (VYGOSTSKY,1998, p. 270 apud NARUMA, 2003, p. 74 ).
Foi nesse sentido que, na segunda parte do questionário, conforme já explicitado, abordei aspectos do repertório com o objetivo de buscar estabelecer uma possível ligação entre a memória musical (repertório lembrado) e a memória afetiva/musical (música que mais gostava), pois entendo que a memória possibilita-nos (re)construir de maneira imaginária as experiências vividas, cujo objetivo é fornecer-nos subsídios comparativos com o vivido no presente. Tulving e Craik (2000 apud STEMBERG, 2008, p. 154) defendem que “A memória é o meio pelo qual mantemos e acessamos nossas experiências passadas, para usar as informações no presente”. Ao visitar o artigo intitulado A memória em questão: uma perspectiva histórico-cultural, desenvolvido por Ana Luiza Bustamante Smolka (2000) deparei-me com a descrição de uma interessante mitologia grega acerca dos preâmbulos da memória. Conta-nos Smolka que Mnemosyne era uma divindade, tendo gerado nove musas, denominadas Palavras Cantadas. As filhas da deusa memória (Mnemosyne) colocaram 177
na mão do poeta o bastão e insuflaram inspirações advindas da divindade. Por esse motivo, o poeta cria, repete, recita compõem palavras em ritmos. Segundo Smolka (2000), sendo o poeta suporte e mestre da verdade, resgata o acontecido do esquecimento, presentifica o passado. Versejar é lembrar. Cantar é lembrar. Para a autora, devemos considerar que o afeto produzido na alma, pela sensação, é o afeto em seu estado duradouro. Trata-se, portanto, do que chamamos memória, ou seja, estímulo produzido que imprime uma espécie de semelhança do percepto. Para Vigotski (1989 apud SMOLKA, 2000), a verdadeira essência da memória humana está no fato de os seres humanos serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos. Por esse motivo, conforme aludido, a memória é produto do humano e pode ser denominada, segundo o teórico, como memória artificial ou memória mediada. Assim, pode-se compreender que a memória está composta pelos meios, pelos modos, pelos recursos criados coletivamente e no processo de produção e apropriação da cultura. No caso dos respondentes do questionário, a relação com a memória ficou evidenciada quando, de forma especial, o fato memorado aparece seguido ou antecipado de uma adjetivação que qualifica emocionalmente o lembrado. No que diz respeito à estreita relação entre a música estudada e as emoções produzidas, apresento o enfático relato de Laura, 19 anos, discente do curso de engenharia civil e participante do coral desde 2012: “Eu sou apaixonada pela música Sanctus que ensaiamos recentemente, é uma música que precisamos de grande dedicação para 178
aprendê-la, pelo seu idioma e também pela difícil melodia e ‘dinâmica’ e foi a primeira música que me fez sentir no palco uma euforia e um grande arrepio! Eu já sei de cor as letras da maioria das músicas que ensaiamos, prefiro memorizar do que ficar seguindo a partitura”. Suas palavras estabelecem estreita relação entre emoção e memória ao afirmar que a música merecia dedicação para aprendê-la. Sua vivência foi marcada não somente pela dedicação empenhada e pelo desafio vencido, mas, muito provavelmente, pelos afetos vivenciados no processo de ensaio e nas apresentações. A melodia, a letra e o idioma não foram obstáculos para a memória, pois eles se sustentaram pela emoção. Nesse mesmo sentido, Sérgio, já mencionado nesta dissertação, enfatiza, que “Basta tocar alguma música da minha época de coral da Unimep que me recordo na hora, ou então não é raro ‘me pegar’ cantarolando algo dessa época”. Sérgio assinala nesse relato que a memória afetiva é atemporal. Embora não se recorde prontamente da letra de alguma música, quando a ouve, a experiência vivida no passado presentifica-se, a recordação acontece e as emoções são (re)avivadas. No entanto, ao afirmar que “não é raro me pegar cantarolando”, indicia que memória e emoção podem ser também independentes. A possibilidade de (re)memoração – no caso da música – quando da ausência do objeto, só é possível por meio da educação estética, ou seja, pelos sentidos. Busco dizer com isso que as músicas estudadas deixaram marcas que vão além da experiência da atividade, ou seja, constituem o sujeito.
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Entendendo a música como signo; portanto, como linguagem, pode-se considerar que ela, assim como a escrita, (re)posiciona o sujeito no grupo, pois ele torna-se portador, ou seja, aquele que recebe, conduz e transmite os saberes coletivos. Marília Amorim (2009) nos alerta para a relação entre formação e educação. Elucida quando exemplifica de que nada adianta transmitir a técnica, se não se transmite “conhecimento verdadeiro”. Por “conhecimento verdadeiro”, entendo a possibilidade de compartilhar os saberes acumulados ao longo da história humana, cuja mediação só ocorre na presença e na interação com o outro. Posto de outra maneira: a formação na qual está contemplada a educação somente pode ocorrer via interação que, por sua vez, gerará possiblidade de afeto. Sendo assim, elegi este eixo na tentativa de apreender se há evidências nos dados produzidos sobre a possível íntima ligação entre o vivido (música que se recorda – memória) e as possíveis emoções e sensações que elas trazem, e que, portanto, marcou a vivência dos participantes. Compreendendo a emoção como fundamental para a constituição humana, Mangiolino (2004) explicita ser fundamental os aspectos biológicos e as transformações corporais desencadeadas pela emoção. Afirma que a função original das emoções é mobilizar o outro, uma vez que essa relação (eu o outro/eu o mundo) é de dependência decisiva. Portanto, pode-se conjecturar que a emoção sentida pelos respondentes possibilitou uma nova maneira de enxergar o mundo, viabilizando para que novas conexões emocionais extracorais também pudessem ganhar sentido. Segundo Sueli, 23 anos, estudante de engenharia de produção, participante do coral desde 2010, “Todas as 180
músicas acabam tocando-me de uma maneira diferente”. Complementa ainda que “a cada vez que canta ou ouve as músicas pelo coral verifica uma sensação diferente e uma percepção diferente sobre a vida”. Tal relato nos evidencia a possiblidade da emoção como propulsora de novos sentidos, os quais produzirão novos significados no que diz respeito à própria vida, ao sentido do que sejam alguns aspectos de sua vida. Acerca da possibilidade de (re)significação da vida e do mundo, Sara, estudante de arquitetura e urbanismo, 17 anos, participante do coral desde 2012, explicita o seguinte: “não achei que fosse me envolver tanto com o canto, mas me enganei. A minha permanência não está relacionada à bolsa, é claro que seria muito bem-vinda, porém, o que realmente importa, é o que o coral está me proporcionado, além de muito conhecimento e experiências, estou descobrindo um novo mundo”. A descoberta de um novo mundo não só de maneira simbólica requer que o sujeito se (re)posicione, se coloque no mundo de outro modo, utilizando outros saberes, agindo de outras maneiras. Entendo que o senso estético acompanha esse processo, uma vez que a memória afetiva musical permite ao sujeito (re)construir o lugar do vivido não apenas como cenário, mas também simbolicamente. Para Mangiolino (2004, p. 45), “[...] as emoções estão no início do processo de constituição da consciência, de maneira que razão e emoção mantêm uma relação de interconstituição, reciprocidade e interdependência, ao mesmo tempo em que inibem uma a outra”. Sobre isso, Luana, 20 anos, cursando arquitetura e urbanismo, participante do coral desde 2011, relata: “Gostava muito das músicas mais clássicas, como Sanctus, que foi um grande desafio, 181
contudo a apresentação ficou esplêndida. Me emocionei especialmente com essa música, pois além da superação do grupo, pude ver minha própria superação e aprendizado tanto na área musical quanto na responsabilidade, e em fazer parte de um grupo e se sentir necessário nele [...]”. Por essa razão, posso afirmar com Mangiolino (2004) que a emoção abriga-se na base do processo de construção do conhecimento e da pessoa, ou seja, constitui o processo de desenvolvimento, pois, segundo a autora, é a emoção que possibilita a passagem do mundo orgânico para o social, do campo fisiológico para o psíquico, estando na origem da consciência. Vigotski (1999a, p. 126-127) também se posicionou em relação às emoções compreendendo que No processo de desenvolvimento ontogenético, as emoções humanas entram em conexão com as normas gerais relativas, tanto à autoconsciência da personalidade quanto à consciência da realidade. Meu desprezo por outra pessoa entra em conexão com a valoração dessa pessoa, com a compreensão dela. E é nessa complicada síntese que transcorre a nossa vida. O desenvolvimento histórico dos afetos ou das emoções consiste fundamentalmente em que se alteram as conexões iniciais em que se produziram e surgem uma nova ordem e novas conexões.
Assim, os dados produzidos evidenciaram que a maioria dos respondentes afirmou recordar-se do repertório. Pude observar nos relatos que por meio da emoção ocorre a produção de sentidos, fazendo com que a memorização leve para uma maior significação da realidade. Concordo que há presença do som independentemente da atribuição de emoção. Na natureza, os sons produzidos pelas cidades chegam até nós, mas, na maioria das vezes, 182
não atribuímos sentido musical a eles. Para que haja som significativo emocionalmente aos nossos sentidos, faz-se necessário conectar os nossos sentidos aos sentidos produzidos por esses sons. Ou seja, o som pelo som pouco tem a nos dizer emocionalmente. No entanto, para a prática musical, o dialogo entre emoção e som é que possibilitará que sejamos tocados e que o som produzido a partir dessa relação também possa significar a outros. Busco dizer com isso que os sujeitos trazem à prática musical as emoções vividas ao longo da vida. Raquel, 25 anos, estudante de engenharia de produção, no coral desde 2010, enfatiza, “Como estou no coral há somente um mês, ainda não sei todo o repertório para poder opinar. Mas das músicas que a gente tem ensaiado, gosto bastante de sapato velho e de afeto e afago, pois a letra é maravilhosa e chega a tocar em nossos corações”. Portanto, compreendo que o diálogo estabelecido entre som e emoção permitirá ao sujeito (re)significar o já vivenciado, produzindo outros e muitos novos sentidos. Se for verdade que a música nos alcança num primeiro momento pela espontaneidade76, poder-se-ia afirmar que a música é compreendida pelo “coração”. Segundo Maheirie (2003, p. 151), [...] ao escutarmos uma música podemos, por meio dela, tornar mais complexo os nossos saberes, definir melhor nossos pensamentos, dar maior precisão às nossas posições, trazer para o presente um objeto que está ausente e, até mesmo, criar objetos imaginários.
76 Conforme expõe Maheirie (2003, p. 148), “por espontâneo estamos querendo qualificar os estados onde o sujeito não está posicional de si, ou seja, não se coloca numa postura critica e distanciada de si mesmo. Desta forma, podem ser espontâneas as relações do sujeito com o objeto enquanto percepção, reflexão, imaginação inclusive”.
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A emoção e o sentimento são fruto/resultado da afetividade humana que possibilita, pelo subjetivo, significar e (re)significar o mundo concreto em direção às tomadas de posição dos sujeitos, uma vez que também a música define melhor nossos pensamentos. Mangiolino (2004) rememora Vigotski quando defende [...], que estudar o psiquismo humano, é também estudar as práticas sociais, pois ele emerge e se desenvolve a partir desta pratica, dentre elas a educação. Aponta ainda a possibilidade de considerarmos o funcionamento mental como um processo de apropriação e elaboração de cultura, na medida em que as funções psicológicas superiores são funções/relações internalizadas de modo sociais de interação – incluindo as forma de ação e signos (instrumental psicológico) e os artefatos culturais (instrumentos técnicos) (VIGOTSKI apud MANGIOLINO, 2004, p. 84).
Ainda como parte deste eixo, ao acessar o questionário, de forma especial a questão referente à predileção de repertório, bem como sua possível relação com a memória, pude verificar que a música popular brasileira (MPB) foi a mais mencionada. Observei que a maioria dos que apontaram a MPB fez parte do coro Unimep na década de 1980. Joel, 52 anos, formado em tecnologia em processamento de dados, participante do coral de 1980 a 1985 relata: “Inicialmente o repertório do coral foi baseado em músicas brasileiras, o que ajudou muito na identificação do grupo formado por universitários: Tom Jobim, Milton Nascimento, Chico Buarque e outros autores. Gradativamente foram incluídos no repertório peças de compositores da música clássica, Bach, Handel, Beethoven etc. Posteriormente, autores mais contemporâneos. Creio que o repertório inicial foi mais marcante, talvez pela novidade”. 184
Para que possamos tentar compreender o motivo pelo qual o estilo de música mais (re)memorado foi a MPB, há de se olhar para o contexto dos tempos vividos antes da formação do coro da Unimep, bem como para a própria história da Universidade, tal como apresento a seguir. A Igreja Metodista passava por transformações ideológicas e pela busca de sua identidade genuinamente brasileira. Concomitantemente, tais transformações ecoavam também no embrião da futura Universidade. Na década de 1970, quando da administração Richard Senn, na contramão do anseio pela busca de um metodismo genuinamente brasileiro, o conjunto musical dirigido pela esposa do reitor, que exercia a liderança do grupo juntamente com seu filho Mark, era proibido de executar músicas brasileiras. Conta-nos a história que tal fato devia-se à exigência da diretora em apresentar músicas inéditas que, em sua maioria, eram trazidas dos EUA. Conforme já abordado nesta dissertação, na década de 1980, com a chegada do maestro Umberto Cantoni, houve sistematização para a formação do coro. Naquela época, após a experiência do conjunto musical nos anos 1970, era vivida uma espécie de rebote aos tempos de proibição. Sendo assim, o maestro, cuja visão tinha influência da teologia da libertação, e corroborando para a valorização de um metodismo brasileiro, bem como seu entendimento de que a arte contribuía para formação crítica, optou por eleger destaque à música brasileira. À época, a Igreja Metodista ainda buscava identificação na e com a cultura brasileira. Embora o desligamento com a Igreja estadunidense tenha ocorrido ao final dos anos 1920, início dos 1930, ela (Igreja) continuou, ao longo dos anos, buscando a cons 185
trução da identidade brasileira. Construir a própria identidade foi algo relativamente mais complexo, pois não é algo que se faça num curto espaço de tempo. A busca pela construção da identidade própria é muito maior que o próprio desligamento. Como sabemos, o berço do metodismo é europeu, muito embora o metodismo recebido no Brasil tenha passado pela cultura estadunidense. O Brasil recebeu não somente a herança teológica de Wesley, mas a bagagem cultural trazida pelos missionários que, por sua vez, era composta pela bagagem que os missionários ingleses deixaram (música, forma de ensinar, formação de currículo, etc.). No entanto, tal angústia, ou seja, a necessidade da busca de uma identidade própria, não era somente algo vivido intraigreja. Após o golpe militar de 1964, o Brasil também buscava de forma especial a retomada e o retorno à construção da democracia e da autonomia. Ao final dos anos 1970, ou seja, aproximadamente quarenta anos após o desligamento da Igreja dos EUA, a Igreja do Brasil continuava na construção do ideal da própria identidade, assim como a nação brasileira. Durante esse processo, começaram a ser elaboradas músicas que reivindicavam a liberdade e a democracia quando do golpe militar. Nesse momento, houve intensa produção musical que reforçava a busca do nacionalismo e relatavam críticas à situação política brasileira. Nesse contexto, em 1980, houve a formação do coro da Unimep. Ainda não havia a tentativa de elaboração de uma música metodista brasileira que tivesse expressão nacional. Com a presença do maestro Umberto Cantoni na Unimep, e com a formação do citado coro, rompe-se o ciclo de predileção à música americana, conforme ocorria com o 186
conjunto musical à época liderado por Noeme Senn e por seu filho Mark, como já citado. Sendo assim, como forma de protesto ao vivido nos anos anteriores, houve a predileção pela MPB. Se a música, segundo Theodor W. Adorno (2002), expressa claramente as contradições que existem na sociedade, ao rememorar os propósitos acerca da formação do coro da Unimep, não se pode deixar de recorrer à formação do maestro Umberto Cantoni, quando da sua vivência na teologia da libertação. Em sua formação, o maestro trazia o propósito de que a arte deveria também expressar os anseios sociais, o que contribuiria para a formação de um espírito crítico aos participantes do coral. As raízes dos propósitos para a formação do coro, idealizados pelo maestro, eram no sentido de que por meio da arte, de maneira mais específica, por meio do canto coral, poderia haver contribuição para a formação de sujeitos mais críticos e autônomos. No entanto, os relatos dos ex-cantores, ao apontarem a predileção pela MPB, não parecem expressar entendimento e clareza quanto aos propósitos que levaram à formação do coro Unimep. Entendo, portanto, que a predileção dos respondentes pela MPB fora influenciada pela indústria cultural. Quando Joel aponta que o repertório inicial (MPB) foi mais marcante, talvez pela novidade, muito provavelmente esteja referindo-se ao fato de o coro estar executando músicas que também estavam sendo divulgadas pela indústria fonográfica à época. Obviamente essas músicas, feitas em condições que procuravam burlar a censura e que, por isso mesmo, foram produzidas como um modo de discurso crítico, também se colocavam como parte da indústria cultural que afetava os sujeitos.
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Embora o maestro estivesse preparado tecnicamente, bem como trouxesse com clareza a importância social da sua formação, por estar inserido no mundo, também foi afetado, certamente de forma mais consciente, pela indústria cultural. Segundo Ari Fernando Maia e Deborah Cristina Antunes (2008), isso se dá pelo simples fato de estarmos inseridos no contexto no qual a indústria cultural prevalece. A predileção pelos estilos, ao serem notados como se carregassem em si uma força mágica e transcendental, significa que estão fetichizados, pois por meio do seu objeto, prometem preencher o vazio do sujeito. Ocorre que tal promessa frustra os sujeitos, pois representam justamente o contrário do que é procurado pelo indivíduo. Apenas como mais um produto da indústria cultural, não possuem nada além de imagens sobre os quais foram criados. No entanto, vale observar que o coral da Unimep inovou também na perspectiva de tornar sua música algo que expressasse os anseios da própria vivência. Quando o maestro Nabor Nunes Filho77 foi contratado por intermédio do maestro Cantoni, foi convidado para compor a equipe musical, uma vez que ele também estava ligado à Teologia da Libertação. Tal contratação ocorreu para que o maestro Nabor compusesse, de forma especial, arranjos e músicas para o coral da Unimep. Desse modo, pode-se considerar a contribuição do maestro Nabor como importantíssima para que o coro Unimep pudesse desenvolver um reper77 Falecido em 13/2/2013. Era bacharel em teologia e bacharel em música sacra. Graduou-se em música pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Cursou mestrado em educação e doutorado na mesma área pela Unimep. Até 2007, atuou como professor dessa Universidade, bem como compositor musical e regente de coro. Teve significativas experiências na área de teologia e artes, com ênfase em música, atuando principalmente em composição, regência e história da música.
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tório próprio, bem como arranjos especiais construídos a partir da música popular brasileira. Segundo Adorno (1998), ao ser influenciado pela indústria cultural, o sujeito fica sem a possibilidade de escolha, não tem autonomia. Por esse motivo, é problemático afirmar que se tem um gosto por determinado estilo, uma vez que a música é valorada por sua popularidade, pelo seu reconhecimento. O valor da música não está mais no próprio material musical. Retomando Maia e Antunes (2008, p.1147), ao eleger adesão a um determinado estilo, ocorre a busca por uma identificação, por uma marca, por se diferenciar do todo como uma fuga à massificação. Parece ter sido esse o movimento vivido quando da passagem de Noeme Senn a Umberto Cantoni. Por sua vez, estereótipos também são criados pela cultura, são generalizações que reduzem os objetos a determinadas ideias, ignorando o fato de possuir inúmeras características individuais e “aderir a um estilo significa aderir, ou se identificar, com o estereótipo vinculado a ele”. (MAIA; ANTUNES, 2008, p. 1147). Maia e Antunes (2008) parafraseiam Adorno dizendo: “os estilos pensam pelo ouvinte”. Os autores salientam que as críticas que Adorno faz à música popular não se baseiam numa rejeição à música popular em si mesma. Trata-se de uma crítica radical à sua apropriação pela indústria cultural. No caso desta dissertação, é importante salientar que o que se pretende explicitar neste trabalho não diz respeito à crítica aos sujeitos, nem tampouco às escolhas do maestro à época. O que se pretende frisar, neste momento, é o fato de que a sociedade está sedimentada nos sujeitos, assim 189
como a relação entre sujeitos e sociedade, ambos instâncias de constituição da subjetividade humana. 4.4.3 O potencial formativo da música e sua relação com a vida dos participantes do coral
Neste terceiro eixo, proponho-me a apontar possíveis relações estabelecidas pelos respondentes da prática do canto coral com outras dimensões da vida. Nesse campo do questionário, foi solicitada a participação de forma descritiva. No entanto, visando contribuir com as reflexões, apontei sugestões que foram elencadas aleatoriamente, e não por ordem de importância: • alteração das relações humanas; • capacidade de trabalho em grupo; • alteração da postura ético-profissional; • postura analítico-crítica; • relação com a autoestima; • senso estético; • capacidade de concentração; • capacidade de elaboração conceitual; • ampliação do repertório cultural. • sentimento de pertença a um grupo, uma comunidade. Intentei apreender por meio dos enunciados indícios dessas possíveis relações entre a prática do canto coral e outras dimensões e práticas da vida cotidiana do sujeito. Nesse sentido, Laura reconhece que “coisas que são faladas para a construção daqueles momentos (dos ensaios) levamos para nossa vida depois. Um exemplo particular e bem pessoal: essa semana mesmo ocorreu, em uma conversa em casa, que é uma república, uma outra pessoa que também participa do coral citou uma fala que a regen 190
te havia falado. Era mais ou menos assim: “Não podemos apenas preocupar com os grandes problemas, mas devemos cuidar dos pequenos porque eles podem ser ou se tornar piores que os grandes”, e isso é formação além dos ensaios e do palco, é algo que levamos”. Diante do relato, observa-se que o vivido na prática do coral passa a ser referência para outras práticas que estão além dessa experiência. Laura indicia que as relações, percepções e sentidos não estão restritos a um ou a outro espaço, ao contrário, essas relações são constitutivas de sua subjetividade. As vivências do/no coral normalmente são intensas e carregadas de sentidos e emoções. Por isso, pelo fato de dividirem um espaço comum, no caso a república, em algum momento desse convívio aflorou o percebido e apropriado no coral. Nessa mesma seção, abri também um espaço para que os respondentes, caso desejassem, narrassem pelo menos um fato marcante relacionado à vivência no canto coral da Unimep. Alberto, 44 anos, participante do coral de 1988 a 1992, formado em farmácia e bioquímica, cuja atuação profissional é a gerência de hospital público e privado, relatou que: “Todas as alternativas [que foram apresentadas no questionário] são verdadeiras e foi muito positivo minha incursão no coral, fazendo que eu pudesse melhorar como ser humano e fazer com que melhorasse a cada dia”. Ainda nessa direção, segundo Ana, 38 anos, participante do coral de 1994 a 1996, formado em fisioterapia, atuando como docente na sua área de formação, relata o seguinte: “Sem dúvida nenhuma!!! A participação no Coral influenciou praticamente todos os aspectos da minha vida. Eu vinha de uma cidade muito pequena quando ingressei 191
na Unimep e participar do coral foi fundamental para que eu me sentisse aceita, pertencente ao grupo, ampliou o meu círculo de amizades, aumentou o senso de responsabilidade. O estudo da música erudita melhorou o meu vocabulário, minha capacidade de concentração e de resolução de desafios. Melhorou a autoestima, porque, além de aguçar as minhas capacidades, mostrou o quanto eu era capaz de me envolver em uma estrutura e determinar a resolução de textos, peças e vozes complexas, contribuindo muito para a minha formação musical. Eu me encaixo em praticamente todos os aspectos citados no quadro acima”. Conforme já posicionado, entendo a música como linguagem e, se a linguagem é atividade simbólica constitutiva de sujeitos, pode-se afirmar, nessa direção, que a música também o é, visto que sua gênese é formada/organizada socialmente e fundamentada na cultura. A música está presente de diversas maneiras nas inúmeras práticas sociais. Por essa razão, está impregnada de valores e significados atribuídos a ela tanto pelos sujeitos que a produzem quanto pelos sujeitos que a consomem. Sobre isso, Laura aponta indícios de sua percepção quando coloca que “O coral não existe apenas para que cantemos e nossas mentes sejam alienadas. Sabemos que cantamos para tornar o nosso canto a nossa voz. A regente prepara isto muito bem no dia a dia nos ensaios ajudando-nos a formar nossa opinião crítica, alertando o sentimento do que revela aquelas canções. A música pode definir qualquer sentimento que necessitamos. Existe música para todos os momentos. E devemos saber usar isso”. Parece que Laura tenta nos dizer que reconhece na arte uma possibilidade de transformação, não somente de si,
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mas, de forma especial, a transformação do mundo por meio da música, seja ela para o bem ou para o mal. Essa ideia de reconhecimento da música como instrumento de intervenção social, é levantada por Adorno. Para ele, a arte deve ser considerada como forma de conhecimento. Por essa razão, Virna Mac-Cord Catão (2010, p. 120) nos ajuda a compreender que “A música, enquanto obra, é um objeto, mas como arte possui historicidade. Ao longo deste devir histórico, a música foi se distanciando da funcionalidade artística”. Laura parece reconhecer que a educação por meio da arte possibilita a formação de indivíduos observadores, críticos e conscientes ao mesmo tempo que a arte também pode mediar a formação de um sujeito acrítico e dominado. No caso do canto coral, Laura dá sentido ao se entende nesta dissertação por criatividade na arte, ou seja, que educar é formar indivíduos livres de “preconceitos [...] é priorizar a formação de pessoas criativas, informadas capazes de transformar a realidade” (CATÃO, 2010, p. 125). Sobre o potencial formativo do coral, Majú faz esta observação: “As dificuldades superadas, seja no início da experiência com o canto coral, seja posteriormente através de músicas mais exigentes, faz com que o componente do coro passe a acreditar em si mesmo. Os desafios impostos e o auxílio que vem naturalmente do grupo cria a noção de que somos capazes e, logicamente, isso é levado para a vida fora do canto, para as atividades do cotidiano pessoal e profissional”. A música, portanto, é dialógica, ou seja, é uma resposta da resposta, ou como dito por José Fiorin (2008, p. 24): “é
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uma réplica a outro enunciado [...] em que se ouvem sempre, ao menos, duas vozes”. É nesse diálogo entendido de maneira dialógica que nosso pensamento vai se constituindo, que vamos constituindo nossa subjetividade. Para Catão (2010, p. 118), “a linguagem faz com que pensamentos e emoções de um sujeito possam habitar o outro”, ou seja, tudo o que é vivido entre sujeitos, de modo interpessoal, passa por um processo de internalização constituindo o que Vigotski denomina de intrapessoal. Por meio da linguagem, organizamos nossa atividade mental, estabelecendo, segundo Catão (2010), novas formas de memória, de imaginação, de pensamento e de ação. Assim, entendo que a prática do canto coral propiciou novas formas de enxergar e interpretar o mundo, visto que possibilitou para aqueles que passaram pelo coral da Unimep – e responderam o questionário – o enriquecimento e a expansão da memória, da imaginação, do pensamento e da ação. Alguns fragmentos de enunciados indiciaram que, para os sujeitos respondentes, a arte fora efetivamente constitutiva de suas subjetividades. Uma das questões apresentadas solicitava que o sujeito versasse acerca da possibilidade de alteração das relações humanas pela mediação do coral. Sobre isso, Paula, 22 anos, estudante de engenharia de produção e participante do coral há mais de dois anos, observou que a participação no coral possibilitou-lhe uma “facilidade em entender as necessidades do próximo”. Outro relato nesse sentido é o de Maria, 22 anos, estudante de fisioterapia, participante do coral há quatro anos. Segundo ela, “Com o tempo, aprendi a ponderar e levar em 194
conta a opinião do outro, pensando que juntos poderíamos ir cada vez mais longe. O outro só adquire confiança em você quando você permite que este elo seja criado”. É interessante observar que Maria evidencia sua percepção quanto à importância do elo de confiança entre os sujeitos. Dá a entender que passou a reconhecer a importância do outro “para ir cada vez mais longe”. Maria reconhece a importância da relação com o outro, o que lhe possibilita a percepção de si. Por meio dessa relação firmada via confiança, estabelece-se a conexão com a possibilidade de “chegar longe”, ou seja, tanto para Paula quanto para Maria, pelo trabalho em grupo, as forças parecem (re)novar-se, impulsionando os objetivos não somente do coro, mas da própria vida. Na tentativa de aprofundar a questão acerca da possibilidade de alteração das relações humanas pela mediação do coral, o questionário solicitava que o sujeito versasse sobre a capacidade de trabalho em grupo. Sobre isso, Laura relata: “No coral, é o momento mais propício para percebermos que uma pessoa não é nada sozinha. Nem mesmo uma excelente voz ou o melhor dos pianistas. Tudo deve ser uma harmonia conjunta, a dedicação de cada um de cada pessoa e isso é que forma um coro bonito”. Alceu, 25 anos, aluno de música - licenciatura, participante do coral há um ano, explicita sua opinião destacando: “Eu acho muito interessante como o trabalho em grupo desenvolvido pelo coro precisa ser cuidadoso em manter um padrão para que o objetivo do grupo seja alcançado. Detalhes como a pronúncia das vogais, do r no meio das palavras, do planejamento da respiração, entre
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outras características que no canto solo são mais livres, no grupo precisam ser feitas com precisão”. Alceu indicia que, por “padrão”, quer referir-se à capacidade de estabelecer um bom trabalho a fim de que os objetivos do grupo sejam alcançados. Isso evidencia que ele também reconhece, por meio da dinâmica do coro, a construção deste “padrão”, ao explicitar questões de ordem técnica, no que diz respeito à preocupação com detalhes da pronúncia, do planejamento e da respiração alternada. Raquel, 25 anos, estudante de engenharia de produção, participante do coral há um ano, relata que “Com o coral nos tornamos pessoas mais responsáveis, mais rígidas com horários e com a educação perante o próximo, pois temos que cantar em grupo, ou seja, trabalharmos em grupo, o que faz com que fiquemos mais respeitosos”. É interessante observar que Raquel pondera sobre a capacidade de tornar-se responsável, a questão dos horários e, de forma especial, com a educação perante o próximo. Parece que ela também reconhece que por intermédio do trabalho coletivo existe a possibilidade de compreender-se, alterar os próprios modos de conduta perante a vida e o mundo. A síntese de seu relato poderia concentrar-se em duas palavras, em dois conceitos fundamentais para a vida vivida para além do coral: respeito e disciplina. Esses parecem ser conceitos trabalhados e desenvolvidos durante as práticas do canto coral. Luana, 42 anos, bibliotecária e participante do coral há mais de um ano relata: “O coral nos ensina regras de convivência e trabalho em grupo. Nos ensina ter disciplina e muita concentração. Elementos primordiais para um bom profissional”. Para além desses aspectos, Luana ajuda-me a aprofundar a reflexão acerca do potencial educativo do coral, ao 196
ponderar que “participar de um coral desenvolve muitas de nossas habilidades, a convivência dentro de um coral nos faz viver a arte, e a arte desperta o senso crítico, a capacidade de avaliar e de se autoavaliar”. Olívia, 46 anos, professora de história, participante do coral na década de 90, vem reforçar o entendimento da postura analítico-crítica para si e, aqui mais especificamente, a partir da dinâmica dos ensaios, relatando que “saber de suas falhas também nos aproxima dos acertos, e penso que todo cantor tem esse pensamento mais definido, pois todo o momento procura aprimorar aquele acorde incompleto ou desafinado, o som mais agradável e para esse aperfeiçoamento exige-se o senso crítico e analítico”. No que diz respeito às alterações das relações humanas, as capacidades trabalho em grupo e alteração da postura ético-profissional, os dados permitem afirmar que a participação no canto coral possibilitou que os sujeitos aprendessem e apreendessem a vivência de uma postura analítico-crítica de si mesmos e do mundo, indiciando que a prática do canto coral possibilita duas experiências humanizadoras, a experiência de construir algo de maneira coletiva, bem como a possibilidade de comunicar-se expressando sentimentos que, por sua vez, foram apropriados na relação com o outro.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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econômicas eram relativamente tranquilas. Diferentemente do que possa parecer, apesar de ter tido acesso à formação musical, foi muito difícil estudar, sobretudo no período de graduação. Mas o que me importa é reconhecer que, embora sempre soubesse do seu desejo de ingresso no mestrado, sabia que teria de vencer o desafio das limitações econômicas. Por esse motivo, ingressar no mestrado foi uma grande vitória e, enfim, a possibilidade de tornar realidade esse sonho. Vencido o desafio, deparei-me com outro: conseguir o necessário distanciamento do objeto de pesquisa. Pretendo dizer com isso que, ao tratar de educação metodista e canto coral, não estava apenas discorrendo acerca de uma relação profissional ou de pesquisa, mas sobre minha própria formação. Como poderia distanciar-me do objeto de pesquisa se este é parte constitutiva de minha subjetividade? Nessa difícil tarefa de estabelecer algumas considerações finais percebi que por meio dos estudos realizados fui aos poucos me aproximando da possibilidade de uma análise crítica acerca da temática. Tenho clareza, no entanto, asci em um lar onde as questões
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que posso ter “escorregado” em algumas das passagens deste texto. Inicialmente busquei realizar um percurso de compreensão acerca da abordagem histórico-cultural do desenvolvimento humano de Vigotski, a fim de que pudesse analisar os dados acerca da subjetividade humana como constitutivamente social. Para tanto, foi necessário estudar questões relativas a respeito da linguagem e suas formas de funcionamento. Segundo a perspectiva histórico-cultural, o homem torna-se homem através da internalização de modos e costumes adquiridos da sua condição social com outros homens. Trata-se de uma herança de ordem onto e filogenética. Por essa razão, o homem nasce com as potencialidades de tornar-se humano. Por meio da linguagem, estabelece, via signos, sua relação com o outro, com o mundo e consigo mesmo. Nessa vertente é que compreendo a música como linguagem, historicamente constituída e capaz de estabelecer novas formas de ver, sentir e experienciar o mundo. Paralelamente aos estudos iniciais, realizei um levantamento de produções acerca da temática da educação metodista no Brasil, bem como as produções acerca do canto coral. Foi um momento muito importante, pois pude estabelecer contato com as mais diferentes produções. Uma vez concluída a pesquisa de natureza bibliográfica e a leitura dos textos, foi possível detectar que não há trabalhos realizados sobre o canto coral em sua relação com a perspectiva da educação metodista, motivo que reforçou a importância da produção desta dissertação. Esse estudo contribui para que eu fosse refinando o conhecimento, bem como se pudesse compreender que uma pesquisa não se limita a repetir ideias, mas se compromete 200
com o estabelecimento de um diálogo que possibilite novas reflexões. Intentei-me neste trabalho de pesquisa, o estabelecimento do diálogo entre os conceitos de educação, de música e de arte considerados como instâncias de constituição da subjetividade humana. Após as primeiras disciplinas cursadas no intuito de apropriação da perspectiva escolhida para ancorar o trabalho e finalizando o levantamento bibliográfico, iniciei a tessitura do memorial circunstanciado, procurando fazê-lo analiticamente. A partir dos estudos anteriores, foi-se clareando a relevância do tema a ser desenvolvido na pesquisa, a saber: a educação metodista e o potencial formativo do coro da Unimep. Objetivei com este estudo compreender a relevância da contribuição do canto coral para formação da subjetividade humana a partir dos enunciados de seus cantores. Sendo assim, evidenciei a relevância deste trabalho por buscar estabelecer um diálogo que ultrapassasse os espaços de ensaio. Nessa perspectiva, intentei aprofundar os conceitos acerca da educação metodista e sua relação com o canto coral da Unimep, bem como sua contribuição para a constituição da subjetividade de seus cantores. Posto isso, o trabalho parece ser relevante e contributivo para a área de formação dos alunos dos diversos cursos que compõem a Unimep, pois entendo que a atividade do canto coral possibilitou aos sujeitos que por ele passaram, formação pessoal e profissional crítica. Nesse sentido, sustentando-me nos estudos realizados, apontei que a arte também cumpre papel educativo e formador. O texto estava nascendo e definições foram sendo tomadas para que fosse possível realizar a pesquisa de campo. Ao mesmo tempo que me debrucei sobre a confecção do 201
questionário, cujo objetivo era levantar dados que possibilitassem maior compreensão sobre o potencial formativo acerca da prática do canto coral da Unimep, conforme se foi tomando consciência das informações, fui percebendo a relação que os cantores conseguiam estabelecer acerca da prática do canto coletivo na Unimep e sua contribuição para a própria formação. Foi nesse contexto que tomei contato com o conceito de estética ao cursar a última disciplina optativa. Cabe ressaltar que compactuo com a ideia de que por meio da educação estética foram abertas possibilidades para a conexão entre saberes que circundam na ordem do sentir. Com isso, possibilita-se que novas maneiras de relacionar-se consigo e com o outro sejam estabelecidas. Tudo acontecia ao mesmo tempo, leituras, escrita, envio de material para coleta de dados... Os conceitos começavam a fazer maior sentido à medida que eram elaborados, o que demandou estudo e dedicação, o que era esperado, pois aprendi com Vigotski que o processo de elaboração conceitual é longo e, muitas vezes, sofrido. Percebia aos poucos que a música é dialógica e dialética, uma vez que permite a possibilidade, por meio dos sentimentos, de significar e (re)significar nossas emoções. De forma especial, o canto coletivo traz em si uma dinâmica que potencializa os sentidos e significados que circulam nos ensaios e apresentações. Essa potencialização muito provavelmente ocorre por meio da arte, uma vez que podemos desenvolver uma visão estética de mundo. Pela arte, podemos (re)dimensionar as nossas emoções, sendo condição para o processo criador. No entanto, não se trata de (re)elaborar emoções, mas de (re)significá-las, estabelecendo outras e novas emoções. 202
Por essa razão, segundo Vigotski, as emoções advindas da arte são emoções inteligentes, pois não são resolvidas fora do plano estético, ou seja, da arte. Em virtude disso, muito provavelmente poder-se-ia dizer que, por meio da educação estética há a possibilidade de potencialização da memória, o que abre novas possibilidades de sentir e de pensar. Concomitantemente, os capítulos segundo e terceiro foram sendo elaborados, corrigidos, alterados... Os estudos para a elaboração dos textos permitiram-me percorrer a história do movimento metodista. Esses estudos possibilitaram constatar quão importante e fundamental foi a música, especialmente a cantada, para que houvesse a propagação desse movimento. Entre outras razões, a música foi, de forma especial, cara aos metodistas. Paradoxalmente, pude perceber que atualmente essa importância vem perdendo seu significado nas igrejas e instituições metodistas, particularmente nas instituições educativas. Em virtude disso, parecem ocorrer poucos investimentos financeiros ligados à arte. Os estudos permitem afirmar que, na Unimep, a prática coral como formativa parece resistir, inclusive como possibilidade de educação musical. Entretanto, embora a atividade mantenha-se viva em meio às crises financeiras, vem sofrendo gradativa diminuição do quadro operacional e constante desvalorização do capital humano. A trajetória desse percurso, evidenciou que o metodismo vem sofrendo mudanças ao longo da história, sobretudo pelo apelo mercantilista, assim como a Unimep também foi e continua sendo afetada de forma severa às exigências da lógica capitalista, tal como outras instituições educacionais. 203
Com os dados em mãos e grande parte do texto já produzido, vivenciei a gratificante experiência da qualificação. No momento da qualificação, recebi orientações da banca para o adensamento do texto, bem como para a análise dos dados. Embora tenha realizado um árduo e denso trabalho tentando seguir as recomendações da banca, reconheço as limitações da pesquisa. O limite do tempo para a finalização do trabalho forçou a colocar um ponto final sem que tenha sido capaz de realizar um estudo sobre o estado da arte que relacione fé, educação e música. Outro ponto não tratado com a merecida profundidade foi o desenvolvimento da música advinda do movimento metodista quando da sua chegada em terras estadunidenses, ou seja, as possíveis influências entre a cultura musical dos Estados Unidos e a música advinda do movimento metodista. Essas são possibilidades para dar sequência ao tema estudado no tempo vindouro após o término do mestrado. No que diz respeito ao tratamento dos dados, as lentes utilizadas para interpretá-los permitiram traçar e definir três eixos de análise: 1. ingresso e permanência no coral; 2. Importância do repertório para a memória musical e 3. potencial formativo da música e sua relação com a vida. Compreendi, a partir do perfil dos participantes da pesquisa, que o motivador principal para o ingresso no coral foi o compromisso com a arte, ao contrário do que suspeitava anteriormente. A suposição da pesquisadora estava pautada no recebimento da bolsa pelos discentes, que apareceu como segundo maior motivador. Os dados evidenciaram, no entanto, que o contato anterior ao ingresso no coral com outra atividade musical fora relevante para a escolha dessa atividade pelo participante. Os sujeitos in 204
diciaram reconhecer, em sua maioria, que o ambiente foi grande motivador para a permanência. No que diz respeito à relação existente entre memória e canto coral, foco do segundo eixo, evidenciei que a maioria dos respondentes se recorda do repertório. Por essa razão, destaquei a relação entre aspectos da memória afetiva e sua relação com a memória musical, uma vez que pela memória somos capazes de lembrar o passado com o intuito de reconhecer o presente e projetar o futuro. Finalmente, ao interpretar os relatos acerca das possíveis relações estabelecidas pelos participantes entre a prática do canto coral na Unimep em relação a outros aspectos da vida, compreendo que a participação no coral possibilitou que os respondentes reconhecessem a possibilidade de transpor o vivido intracoral para outras áreas da vida. Entre os aspectos comentados pelos respondentes, destaco nesse eixo que o trabalho em grupo possibilitou o desenvolvimento pelo respeito ao outro e a si mesmo e a disciplina para realização das mais diversas atividades da vida. Mais que isso, o desenvolvimento sistemático do trabalho no canto coral abriu espaço para a alteração da postura ético-profissional pelos sujeitos e para a vivência de uma postura analítico-crítica de si mesmos e do mundo. De modo geral, a pesquisa evidenciou que, na contemporaneidade, essa arte encontra-se dificultada pelo processo de empobrecimento dos sentidos. Diante de uma realidade alienada, a arte tem sido impedida de cumprir seu papel de desfetichizar, bem como de revelar o novo. Embora na Unimep a prática do canto coral ainda resista, quando se transpõe o olhar para além dos muros da universidade, encontra-se a voracidade da indústria fo 205
nográfica e o aumento do poderio da indústria cultural, a qual exerce um poder monopolista, fragilizando as potencialidades sensórias, cognitivas, bem como as referências intersubjetivas. Isso significa dizer que, por esse motivo, o reconhecimento da prática dessa atividade encontra-se fragilizada no contexto da nossa sociedade, sofrendo por resistir aos ditames da indústria cultural. Assim, a sociedade massificada tem se furtado a ter capacidade de reconhecimento do canto coral como possibilidade de entrar em contato com formas mais complexas de percepção e pensamento. Segundo Schühli (2011, on-line), na contemporaneidade, os sujeitos não percebem o papel da arte em sua totalidade e em sua profundidade e complexidade. Compreendo que tal empobrecimento deva-se ao fato de que haja pouco acesso aos bens culturais que foram produzidos ao longo da história da humanidade para uma grande maioria da população brasileira. Por meio deste estudo reafirmo com Vigotski que o papel da arte deve ser possibilidade educativa, ou seja, que a arte contribui para a formação dos sujeitos. Nesse sentido, é compromisso político, ideológico e, acima de tudo, ético possibilitar, que nas instituições educativas, os sujeitos tenham a oportunidade de se experimentarem no trabalho com a arte, no caso deste estudo, de forma especial o canto coral.
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