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O IMPONDERÁVEL É SEMPRE INÉDITO

O IMPONDERÁVEL É SEMPRE INÉDITO

a história de um sol que se apaixonou por uma lagoa

Breno Martins Campos

Ilustrado por Luca Ferrari

Edições com arte

www.textoetextura.com.br

Campinas, 2023

O IMPONDERÁVEL É SEMPRE INÉDITO

— a história de um sol que se apaixonou por uma lagoa © Breno Martins Campos, 2023

Ficha catalográfica

Editoração & Arte Final: Texto & Textura

www.textoetextura.com.br

Texto & Textura

Edições com arte

wwwtextoetextura.com.br

Para Patrícia, cuja companhia me envolve em amor!

Para Beatriz, cuja presença me faz ter fé na vida e no futuro!

Para Amélia e Firmino, cuja ausência me coloca em face da esperança na ressurreição — mas, por Deus, como eu gostaria que vocês estivessem aqui!

Aleitura desta história só vale a pena para quem se abre aos mistérios do imponderável. Para pessoas presas a verdades eternas e realidades imutáveis, a sugestão é que retornem a um catecismo de qualquer natureza e dediquem seu tempo a recordar as mesmas respostas a perguntas que ninguém mais faz.

Lá do alto, Astro brilhava soberano no território sob seus cuidados. Sol ainda jovem, iluminava e aquecia a vida de muita gente; seus raios eram admirados e desejados, porém, ele vivia numa profunda solidão. Sóis são educados a viver sozinhos, aprendem a queimar – quase nunca por maldade. O pai e a mãe de um sol fazem com que ele, desde a infância, acredite não precisar de ninguém e que é bom ficar sozinho.

Contra o ensinamento tomado como natural, Astro sonhava com a possibilidade de se aproximar de alguém sem consequências inconvenientes; queria tocar e ser tocado, abraçar e ser abraçado –de verdade e sem reservas. Estava cansado de ser orbitado por muita gente que, afinal, nunca pousaria nele. Quem poderia suportar seu calor? Somente alguém com vocação semelhante à dele para seguir na vida?

Cristalina, por sua vez, vivia não somente rodeada por pessoas, mas em contato com muita gente. Lagoas não se ressentem de não poder sair de seu lugar, pois seus pais as ensinam, desde muito cedo, que cada uma nasce e vive no melhor lugar do mundo.

Sem poder se deslocar e resignada frente ao destino, Cristalina recebia as pessoas que se deixavam atrair por águas transparentes e de boa temperatura, ótimas ao mergulho e ao banho, quentes no inverno e frescas no verão.

Nem todo mundo sabe que, de tempos em tempos, estrelas precisam se deslocar de um lado para outro, riscando o universo, a fim de recarregar energias no encontro com outros corpos celestes.

Algumas nunca conseguem retornar a seu lugar de origem, ficam errantes. E de nada adianta conversar com astrônomos a esse respeito, só os magos enxergam sentido no caminho das estrelas.

Foi numa dessas viagens, quase sem rumo, que Astro, lá no alto e na presença do Altíssimo, notou a existência da lagoa Cristalina e toda sua beleza. Não é o caso de imaginar que ele nunca a observara; o fato é que nunca havia passado por aquela rota. Astro estava sozinho como nunca e resolveu parar. Nada tinha a perder. Como já não acreditava piamente no destino, parar foi uma escolha sua. Por um bom tempo e bem à distância, ficou só observando, sem saber se a experiência que vivia era imaginária ou real. Notou, de relance, que ela também o observava. Seria somente fruto de seu desejo? Havia muito que esperava uma correspondência genuína de visão, uma troca não imposta de olhares.

Quanto mais a mirava, também mais ele se enxergava, as águas da lagoa eram como um verdadeiro espelho. Astro nunca havia se enxergado com tamanha nitidez. Em face de sua imagem refletida nela, foi transportado à presença do efêmero e tocado pela noção de que sua vida estava passando.

Empolgado pela beleza daquele momento –silencioso e, ao mesmo tempo, gritante –, desceu um bocadinho e perguntou:

― Posso ficar um pouco com você?

― Por mim, tudo bem! Quem sabe você não encontra alguém por aqui com quem possa conversar e conviver mais de perto.

Assustado, desceu mais uns invisíveis degraus e ousou perguntar:

Quem é você para dizer o que é bom para mim?

― Eu sou transparente, falo verdades até a quem não me pergunta. Sei que você é um daqueles sóis de regiões distantes da minha; sei também que já deve ter queimado muita gente e que agora se encontra sozinho. Eu não, tenho muita gente ao meu lado, dentro de mim. Divirto-me o tempo todo, pois a vida só vale a pena se for com muita dança. Minhas águas são dançantes, o vento me balança e os mergulhos me movimentam. Os ritmos variam, mas estou sempre dançando.

― Vivo sozinho, mas sou importante, ilumino e aqueço a vida das pessoas...

Não pôde concluir a frase, pois ela o interrompeu:

― Ora, você não é o centro do universo, não.

Chegue mais perto que vou lhe contar um segredo.

― Se eu chegar mais perto, posso secar suas águas.

― Não, você não tem o poder que imagina. Pode vir sem medo.

Ao se aproximar, um susto, a lagoa o beijou de forma penetrante.

― Evaporei um pouco, mas valeu a pena! Agora, você sabe o que está perdendo.

Depois de um arrepio de excitação, ele ficou tão aturdido que quase apagou, sem energias. O sentimento de impotência foi enorme, acabara de viver uma experiência de desencantamento – e justamente com alguém que era pura magia.

Aquilo que, para Astro, era tão sagrado aconteceu de forma súbita, inesperada, sem controle. A experiência daquela pequena morte veio acompanhada de uma profunda dor. Haveria perdão para sua atitude? Tomado pelo medo, foi velozmente ao ponto mais alto que pôde. Pródigo em racionalizações, julgou ser prudente se afastar de Cristalina, pois tinha tarefas importantes a cumprir. Ela seria um perigoso desvio no caminho. Ficar sozinho era imprescindível. Já em movimento de retorno, gritou tudo isso para Cristalina e desapareceu. Só não sabia exatamente para onde deveria retornar...

Possuído por lembranças do passado, Astro decidiu que beijos como aquele nunca mais aconteceriam, a não ser com alguém como ele ou, pelo menos, de sua região.

No fundo, tinha consciência de que paixões não acabam por decretos da razão. O que mais ele queria era poder fugir de si.

Nos dias seguintes, enquanto Astro buscava iluminar e não sofrer, Cristalina continuava a lidar com as gentes que chegavam de perto e de longe, do presente e do passado. Também ela havia sido tocada de modo diferente pelo calor daquele sol.

Resolveu que precisava vê-lo novamente, decidiu incluir Astro em seu futuro. Indômita e agitada, mandou Tempestade, uma amiga, à procura dele.

Fosse Astro um meteorologista e a chegada daquela chuva teria sido encarada como algo natural, mas a previsão de bom ou mau tempo pertence mesmo aos místicos. Diante dos sinais visíveis de Tempestade, ele se sentiu agraciado e, misteriosa e intimamente, lembrou-se do toque das águas da lagoa em seus raios de luz e do beijo. Como havia sido bom!

Pôs-se a seguir Tempestade.

Quando deu por si, depois de um período de quase arrebatamento, estava novamente diante da lagoa de beleza inebriante. Enxergou-se mais uma vez de maneira límpida. Apaixonado e abobalhado, falou de modo bem direto, quase rude:

― Por que me chamou? Eu não sou como você. Na verdade, nós somos muito diferentes. Não há como nem por que ficarmos juntos.

― Calma aí, quem disse que chamei você para ficarmos juntos? Só quero lhe dizer que sua amizade me faz bem e que toda vez que vier me visitar vou ficar feliz. Nós sempre teremos o que conversar. E estou curiosa para saber sua opinião sobre um monte de coisas. Você me parece bem interessante.

― Não tem como um sol ser amigo de uma lagoa – retrucou Astro.

Ele disse aquilo não porque acreditasse num desígnio a proibir a amizade entre sóis e lagoas,

mas porque se reconhecia apaixonado por Cristalina. Astro não queria só a amizade dela.

Houve silêncio por um tempo. Tempestade, ao fundo, acompanhava tudo. Era impossível não perceber os olhares de carinho que os dois trocavam.

― Tudo bem, desculpe, podemos ser amigos ― Astro falou, enfim. ― Mas, agora, vou embora.

Não posso invadir sua vida, nem permitir que você invada a minha. Tenho a sensação de que me perdi em alguma esquina, não sei qual nem sei voltar a ela, mas preciso reencontrar meu caminho.

Disse tudo aquilo para pôr fim à situação, pois estava convencido de que para chegar ao lugar de seu desejo os caminhos já trilhados não serviam mais. Despediu-se e partiu.

Como o instante da paixão não pode ser quantificado, por ser a plenitude dos tempos, não é possível saber quantos dias passaram até que Astro se deixasse arrastar, ao sabor do vento, para as regiões de Cristalina e por lá ficasse. Sol e lagoa passaram a viver juntos.

Decisão que pareceu loucura para uns (mais ligados a ela) e escândalo para outros (mais próximos dele). Difícil, para a maioria, era não imaginar naquela relação uma certa tensão e um equilíbrio improvável. Ela podia se queimar ou ele se apagar.

Para os dois, o risco foi mais sedutor do que a segurança. Diante do ineditismo do imponderável, que nada mais é do que outra forma de nomear a vida, e mesmo contra as circunstâncias, a esperança e o amor, coisas boas, venceram o medo. Tudo o que é bom jamais acaba!

Breno Martins Campos, teólogo, sociólogo e cientista da religião.

Luca Ferrari, ilustrador e artista visual (@luca_fmr).

Fotografia by Beatriz Infanger Fotografia by Vania Ferrari

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