José Lima Júnior
Corpoética Um passeio pela palavra
José Lima Júnior
Corpoética Um passeio pela palavra
Campinas, 2013
Corpoética: um passeio pela palavra © José Lima Júnior, 2013 Todos os direitos reservados
Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Aparecida Comelli Tavares (CRB/8- 3781) 128 L628c
LIMA JÚNIOR, José Corpoética: um passeio pela palavra/ José Lima Junior. Campinas: Texto e Textura, 2013. 125 p. ISBN: 978-85-64101-06-7 1. Antropologia filosófica 2. Linguagem – Filosofia 3. Cultura e ética I. Um passeio pela palavra II. Título
CDD 18ª. ed.
Editor geral: Capa, Projeto Gráfico e Layout: Ilustração da capa:
Luiz Carlos Ramos José Lima Júnior Pintura do próprio autor intitulada “Recorte do inacabável”
Arte final: Impressão e acabamento:
Marcos Brescovici Gráfica Bandeirantes
contato@textoetextura.com.br Campinas, SP 2013
Para NANAH (...) E tambĂŠm porque nesse 2013 comemoramos, com alegria, duas dĂŠcadas de desejo, deleite e destino.
Roteiros Modalidade Genealogia de um jeito [11]. Registro de balizamento [16]. Diagrama [23]. Compósito
desse
trem
[24].
Cutículas gramaticais [26].
Complexidade Consciência [31]. Método dialúdico [32]. Finitude e sentido [33]. Contradição e coerência [35]. Viagem [37]. Nó [40]. Espelha e espalha [45]. Surpresas [46]. Perspectivas [48].
Peculiaridade Cor [53]. Moradia [55]. Felicidade [58]. Obstáculos emocionais [60]. Devaneios e desgraças [63]. No desgosto da renúncia [64]. Ora ora, pois pois! [65] Palpites de almanaque [66]. Silêncio [69].
Historicidade Proximidade e distância [73]. Nomeação [75]. Origami de-mais [76]. Concretude das horas [78]. Quando [79]. Tempo e temporalidade [80]. Passatempo [81]. Carlitos [82]. Visada [84].
Possibilidade Acaso e ocasião [89]. Benefício da dúvida [90]. Toque da sineta [92]. Um ensino caleidoscópio [93]. Contentamento e deplorabilidade [95]. Fantasia ao fio da navalha [97]. Licença nitzona [100]. Curto e grosso [103]. Prazo de validade [105].
Criatividade Sapiência [109]. Futebol e firulas [110]. Beleza estética [112]. Poiesis [121]. Pelo Mar Egeu [122].
Modalidade
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Genealogia de um jeito. Como de costume, lavava louça na cozinha quando me ocorreu uma ideia meio inusitada. Num insight vi a forma de uma estrutura em tópicos para um tema sobre a corporeidade. Atribuí essa intuição ao fato de meu subconsciente trabalhar enquanto deixava trancada minha matrícula no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIMEP. Depois sequei a louça e a guardei no armário. Na sequência fui ao escritório e anotei algumas palavras. Foi uma tarde diferente no ano de 1982. Noutra tarde, em 26 de junho de 1984, sob orientação de Roberto Aguiar, defendi minha dissertação Caminhando para a libertação (re-flexões do corpo oprimido). Aquela chispa intuitiva de dois anos antes se houvera materializada. Escrevi um ensaio de antropologia filosófica voltado para a área educativa, no qual aventei a libertação do corpo oprimido como possibilidade desejada. O objeto das reflexões era a concretude corpórea – complexo dialético entre instâncias materiais, espirituais e emocionais na cotidianidade histórica. As divisões didático-formais do texto privilegiavam alguns momentos em que o corpo busca superar as opressões que transitam nos níveis políticos (a questão do poder), teológicos (a questão da paixão) e eróticos (a questão do prazer). Respectivamente, considerei o corpo no seu fazer, crer e sentir. O tema foi abordado em sua dimensão de processo, pois a libertação não se esgota nesta ou naquela liberdade específica, mas significa uma caminhada constante rumo à maior dignidade possível dos corpos. Nessa monografia, dentre outros aspectos, critiquei a opressão do racismo. Para ilustrar esse encaminhamento teórico específico contra o preconceito e a ignomínia sofrida pelos negros reproduzi as Confissões de um branco. Estas eram confidências que eu fizera e que foram divulgadas no dia treze de maio de 1982. Hoje, mais de trinta anos depois e com pequenos ajustes ortográficos e gramaticais transcrevo a íntegra daquele folheto (inserido na dissertação) que, aliás, até prova em contrário, tornara público pela primeira vez o grafo da neologia corpoética.
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CONFISSÕES DE UM BRANCO Além de tardia, a intenção isabelina não conseguiu libertar-me de incertos temores. Em mim o medo continua: confinado nos signos do sufoco que ao negro dedico e no silêncio das sublimações que me castigam. Além da ironia ou por um mea culpa mal resolvido, vejo o numeral 1888 – constante na lavratura daquela lei que ainda guarda uma áurea ambiguidade – como insólito e ignóbil disfarce ou como cicatriz atroz: na casa do milhar (só pra humilhar) um pelourinho a escorar uma centena de algemas. Além da alforria, às vezes sou um brancóide que insiste em nojentas discriminações à pigmentação dos corpos. Num racismo acorrentado a fatores que também dicotomizam pela grana & pela fama, procuro corrigir a estória da história e, pontuando minhas idiossincrasias, afirmo: nego que te quero, negro. Além da folia, às vezes sou um branquicela dopado pela ingenuidade
idealista.
Teimo
radicalizar
o
ser
social,
desmaterializando-o. Ensaio e ensejo só uma essência. Teorizo que o corpo se ressume na pessoa. E como esse conceito de pessoa não comporta o conceito cor, ao querer suprimir o preconceito acabo anulando a colorida-e-cultural concretude corpórea. Nessa estória de descolorir (... que é uma ideologia histórica) e ao imaginar que sou poeta, decreto a abolição da vírgula e pontifico: nego que te quero negro. Além da antinomia entre o brancóide e o branquicela, a terra treme. E das poeiras e cinzas ouço um profeta reclamar: brancos de todo o mundo, puni-vos! Resgata-se a cor. Transpõe-se o pó. Liberta-se a ética. Corporifica-se a poética. Cor-pó-ética. Com esperanças, então, percebo brechas por onde podem emergir
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sínteses superadoras. E munido com uma autocrítica que se me impõe escapo da equivocada pretensão de sozinho (como branco) tentar atualizar a utopia da felicidade policromática. Assim sendo, virgulando as ideologias, negando as negações, abolindo as estórias, revolucionando as posições dos termos históricos, acentuando com ternura o que fora opressora expressão, hei de dizer um dia: Nêgo negro..., te quero! (...) Por conta das generosas indicações dos amigos Hugo Assmann e Rubem Alves, minha dissertação foi publicada pelas Edições Paulinas em 1988. O título ficou CORPOÉTICA, com o subtítulo: cosquinhas filosóficas no umbigo da utopia. E posto ser possível encontrar essa obra apenas em livrarias-sebo, me parece talvez oportuno reproduzir a seguir, pelo menos, seu sumário: Primeira jornada: SETAS NORTEADORAS INDICANDO O RUMO Para ver a verdade desta vereda (um trabalho datado e assinado)
Para ver as veredas desta verdade (um estudo dos detalhes e articulações)
ORIENTANDO OS PASSOS Para ler o sentido do texto (um exercício pedagógico)
Para ler o sentido dos termos (uma delimitação didática)
Segunda jornada: COMEÇANDO A CAMINHAR QUANDO SE CONHECE OS PRÓPRIOS PÉS A consciência do corpo oprimido (da ingenuidade à criticidade)
A transcendência do corpo oprimido (da acomodação à transformação)
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QUANDO SE CONHECE O PRÓPRIO CHÃO O cotidiano do corpo oprimido (totalidade e contradição)
A utopia do corpo oprimido (exterioridade e libertação)
QUANDO SE CONHECE AS SANDÁLIAS APROPRIADAS Proteção e preparo para o corpo oprimido (exorcizando o diabolos)
Firmeza e flexibilidade para o corpo oprimido (optando por um metahodos)
Terceira jornada: CAMINHANDO PELOS PLANALTOS DO PODER Ao ordenar uma nova ciência (o corpo e a racionalidade)
Ao coordenar uma nova eficiência (o corpo e a utilidade)
PELAS PRAIAS DA PAIXÃO Ao provar o mistério (o corpo diante das interrogações e reticências)
Ao provocar os ministérios (o corpo entre parênteses ou sublinhado)
PELOS POROS E PÊLOS Ao arrancar o rancor pela cor (o corpo e o racismo)
Ao ampliar o amplexo no sexo (o corpo e o machismo)
Quarta jornada: O ÊXITO DO ETERNO ÊXODO PERANTE OS PERIGOS PERMANENTES Das imaturas pretensões (sacando as antíteses)
Das torturas e repressões (superando os contrários)
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HAVENDO UM HORIZONTE DE HORIZONTES Das lembranças avaliadas (inventariando o passado)
Das esperanças avalizadas (inventando o futuro)
(...) Ainda em 1988 iniciei estudos no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Defendi tese em 1993, orientado por Amálio Pinheiro. Nesse texto traduzi a proposta da CORPOÉTICA em um movimento de tensão entre a morte e o humor no Mercado Municipal de Campinas; ou seja, a corporeidade se reinventa entre a natureza e a cultura. Essa tradução deixou a palavra valise “corpoética” nas entrelinhas e sublinhou outra: HUMORTE. Impossibilitado de publicar sua íntegra, reescrevi alguns capítulos mais teóricos da tese e lancei em 2001, através da Editora UNIMEP, o livro HUMORTE (cosquinhas semióticas no umbigo da entropia). Outros detalhes sobre essa pesquisa eu espero apresentar em futuras obras.
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Registro de balizamento. Também em 2001 participei do livro Qualidade de vida (complexidade e educação), organizado por Wagner W. Moreira e publicado pela Papirus Editora, de Campinas (SP). Nessa obra elaborei o capítulo: Qualidade de vida e beleza estética. Já no primeiro parágrafo eu avisava que achava cabível um subtítulo: mo(vi)mentos de te(n)são da corpoética. Com efeito, esse capítulo era o que eu supunha haver produzido melhor, até então, sobre corporeidade no sentido mais sistêmico da CORPOÉTICA. A parte inicial daquele capítulo, com pequenas adaptações, ficou assim: Em primeiro lugar, tenho por pressuposto perspectivo o corpo em uma acepção diferente do seu étimo latino (corpus, em oposição ao significado de alma); pois hic et nunc o substantivo corpo significa uma peculiar relação entre a matéria corpórea (soma) e a percepção corpórea (psique) e a fantasia corpórea (pneuma) dentro de um contexto histórico; ou seja: corpoética. Em segundo lugar, faço de corpoética o rosto denominativo do paradigma conceitual que estrutura minha reflexão sobre o real corpóreo em suas qualidades complexas, peculiares, históricas, possíveis e criativas. Em terceiro lugar, sinto na corpoética um gosto operativo semioticamente móbil, mosaico, meio na molecagem..., que me atenta a flagrar e espiar (por isso digo que vi, entre parênteses) os momentos e movimentos tensos e cheios de tesão da corporeidade: mo(vi)mentos de te(n)são da corpoética. Explicando um pouco mais, corpoética guarda em si outras palavras como se fosse uma espécie de valise estética, condensadora de vocábulos e vértices. Nela encontro corpo (complexidade), cor (peculiaridade), pó (historicidade), ética (possibilidade) e poética (criatividade); sendo que cada um destes ângulos e arranjos tem seu significado específico em
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relação ao sentido arbitrariamente paradigmático (modalidade) do vórtice corpoética. Isso posto, começo afirmando que um complexo trânsito atravessa o que chamo de corpo. Uma dimensão material físicobio-química estabelece sinapses evolutivas e sutis, gerando contatos, conexões e conflitos de linguagens eco-sócio-culturais. Essa dimensão material, que abarca o instintivo e o intelectivo, cruza com uma dimensão emocional que não se esgota em seu caráter de suscetibilidade. Desejos, prazeres e frustrações percorrem e promovem imprevisíveis provocações à dimensão espiritual.
Esta,
correspondendo
à
surpresa
inventiva
da
imaginação corpórea, num processo mito-poético, transforma fôlego em alma, hálito em espírito. Nessa complexidade envolvendo matéria, emoção e espírito, o corpóreo vai inventariando e inventando a existência. Admito que o corpo nem sempre nomeie a si mesmo como o faço tão limitada, discutível e ligeiramente. Assim, acho necessário revestir com devidas aspas materialidade (soma), emotividade (psique) e espiritualidade (pneuma) acima referidas. Além disso, é obrigatório sublinhar que essas dimensões não se separam e não se excluem e nem se sucedem no movimento tenso da existência corpórea; compõem uma mesma complexidade (em dimensões interligadas, inclusivas e simultâneas). E, portanto, qualquer definição ou consideração sobre a existência precisa levar em conta, no mínimo, essa complexa tríade somáticopsíquico-pnêumica. Dentro dessa complexidade corpórea e intercorpórea, habitando os planaltos do que é instigante, hospedando-se nos pântanos das impressões e passeando pelas praias da perplexidade..., a carne, o desejo e os signos constituem o corpo conforme as estações da
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história. O corpo é pó, é chão, é barro (... molhado pelo berro do húmus social). É um feixe de fatores fornecidos pela terra e temperados pelas intempéries das sete manhãs. O corpo é sua historicidade. Na história de sua casa (lareira da economia) está a intercorporeidade de seu pão. Na história de sua cidade (praça da política) está a intercorporeidade de seu contrato. Na história de sua palavra (semente da cultura) está a intercorporeidade de seu espetáculo. A existência corpórea é devida à história da intercorporeidade no espaço cotidiano – onde e quando cada corpo é açoitado por suas vésperas e encantado com suas bússolas. A historicidade do corpo também lhe confere balizas para seu percurso. Situado e lançado pela vereda que tende sempre para seu irreversível termo (a morte), o corpo deseja lograr a natureza — essa coisa encantadora e inexoravelmente propensa ao crepúsculo. Por meio dos mais contraditórios jogos que a cultura lhe permite, o corpo constrói seu pão e consome seu circo. É a sapiência e a demência, igualmente imprescindíveis, em balanço de equilíbrio precário e provisório sempre. A propósito, defendo que a existência corpórea não é predicado sem objeto empírico. Nesse caso, rejeito a hipótese de uma existência atribuída a uma generalização designada “corpo”, como se o corpo pudesse ser tão somente abstração — o que não significa que a corporeidade não viva sua abstração, por sinal, bem mais concreta do que se imagina. Com efeito, apenas digo que só existe o corpo que obriga minha escrita sobre ele prestar atenção à sua concretude singular... Noutros termos, repito, sem medo de erro, que cada corpo existe como corpo graças às dádivas, dívidas e dúvidas que dividem seu dia-a-dia com senhas e sonhos intransferíveis, irrepetíveis, intraduzíveis. Por isso, corpo só é corpo por ser corpo-com-vida, corpo com uma
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qualidade particular e individualmente única de momentos e movimentos de te(n)são. Afirmo, abdutivo, a essa altura dos meus dias fe’l-lüz-mente acumulados, que a morte de um corpo é o fim inexorável desse corpo, desse corpo entendido como complexidade, historicidade, peculiaridade, possibilidade e criatividade. Se, depois de morto, outros corpos dele se lembram, por ele suspiram, dele falam..., o viver destes outros corpos vivos é que, metaforicamente ressuscita, ergue de novo, reanima aquele corpo morto. Essa imortalidade (palavra que me soa como licença poética) efetiva-se de diversas maneiras, mas nunca mais como corpo mesmo, como corpo vivo. Nesse caso, portanto, a imortalidade acontece como memória psicossocial dos ainda-vivos..., acontece como cultura que transcende aquele que vivia – agora ressurreto e imortalizado em suas letras, ciências e artes. Enfim, ao dizer corpo vivo, gostaria de contar com algum abono por meu intuito pedagógico; senão, reconheço o pleonasmo. Sendo verdade que a história de uma corporeidade específica serve de referência e condição para os corpos a ela relacionados, também é verdade que cada corpo vive sua história de modo completamente
original.
Em
que
pese
padronizações
de
estereótipos, não há, sequer, dois corpos iguais. Nem mesmo os corpos que se identificam na economia ou na política ou na cultura são iguais. Nem mesmo os gêmeos idênticos são iguais, a começar pelos diferentes nomes que recebem e pelas diferenças com que nomeiam o mundo. A individualidade do corpo é sua cor, sua peculiaridade, sua qualidade única. Cada corpo é e vive seu colorido pontual, seu jeito diferenciado de ser essa massa somática que se mexe entre bios e necros, entre vida e morte tangíveis. Mas também, cada corpo é e vive seu colorido pessoal, sua maneira inédita de usar
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essa máscara (pessoa/persona) psico-representativa que se insinua entre eros e tanatos, entre vida e morte sedutoras. E cada corpo é e vive, ainda, seu colorido punctual, seu modo irrepetível de sofrer essa fisgada da paixão última do pneuma que se revolve entre zoé e hades, entre vida e morte imaginárias. Desviando-me num breve devaneio, penso que talvez a peculiaridade do corpo tenha seu registro qualitativo privilegiado no umbigo. Salvo melhor julgamento, não existe representação mais própria que o umbigo para o pontual/pessoal/punctual do corpo. O umbigo é essa marca contraditória de continuidaderuptura: ele é índice de um conduto que, durante um tempo ligou mãe e embrião. Tocar no umbigo é contatar um passado, quem sabe uma saudade; algo de que se separou por conta de um corte. Além disso, o umbigo é uma área que polariza emoções bem no centro do corpo. Parece que os sentimentos se convergem e se divergem em torno desse pequeno e profundo polo de pele sem pelos. Como resistir às cosquinhas nessa cicatriz, ainda mais num apelo psicossocial em que ela é um ícone de prazeres. Tudo isso sem contar que o umbigo é um convite à fé, à teimosia do entusiasmo. Afinal, se foi arriscado romper a segurança pretérita materna..., se o futuro dependeu dessa aposta lançada sem consulta ao próprio neonato..., se a experiência de gozo é nele apenas um aperitivo..., o umbigo é ainda sacramento: um símbolo indelével, um meio de graça, uma inspiração para o corpóreo insistir teimosamente em se tornar aquela nova criança, revivendo a plenitude sonhada no útero da alegria. Concluindo esse desvio, em malandra consideração às sílabas que me dominam nessa nossa língua, repito para destaque: corpo, além de ser pó, é, antes, cor. Cor cortejada pelos recortes do coração — coisas que o corpo conhece de cor. Assim, cada corpo é um conjunto de fragmentos cromáticos a
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girar em molduras naturais, dentro dos suportes historicamente desenhados pelo próprio corpo em tangências e influências intercorpóreas. E, dependendo do ângulo que olha e do movimento que opera, o corpo vê belezas, compõe uma estética, cria uma espécie de caleidoscópio. Quanto mais cacos coloridos, maior a densidade do espe(tá)culo: a variedade com que, técnica e artisticamente, se espelha e se espalha o acaso circunscrito. Voltando ao paradigma corpoética, como que no fundo dessa mochila há uma alusão à possibilidade de conduta desenvolvida pelo corpo (... possibilidade aqui entra como sinônimo de liberdade, no sentido de prerrogativa moral, relacionada ao âmbito ético). Às vezes, racionalmente, um valor fundado no chão da história serve de apoio para os passos corpóreos. Assim procedendo, uma ética mais próxima ao controle se afirma. E, como sempre, o controle tem suas virtudes e seus vícios. Outras vezes, o corpo não leva em consideração qualquer valor e sua atitude mais parece um lance de voleio: nem se espera a bola dos fatos bater no solo da razão e já se rebate emocionalmente, sem-pulo, podendo (ou não) haver sucesso no desdobramento da jogada. E além dos valores e dos voleios, vezes há em que o vazio envolve o corpo. Daí, com sua fantasia imaginativa, a corporeidade vai tentando conviver consigo mesmo e com tudo e todos diante do mistério. Imitando, ignorando ou inventando nomes e normas exclamativas para lidar com o mistério, o certo é que o corpo se move e se comove, também e ainda, segundo suas mais profundas interrogações e reticências. E, em sobrando um silêncio ou um sussurro ante o inexprimível vazio, o espírito corpóreo geme e gesticula sua angústia e seu êxtase. Devo, enfim, relembrar um detalhe que há pouco eu mencionei. Noutras palavras, é a morte que motiva a maravilha; é a falha que fomenta a festa; é a perda que produz a poesia. Ou seja,
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porque o corpo sabe, sente e sofre com a tendência de tudo ter um final, põe-se a criar e a se re-crear, esteticamente, com linguagens, filosofias, ciências e técnicas. Assim sendo, de maneira
genial,
experimental,
bem a
como
criatividade
de
modo
mais
tensiona
o
especial corpo
ou num
estranhamento que é uma das características da cultura. Tão desconcertante quanto uma finta, a criação corpórea dá um drible na afobação do sufoco ou na apatia da indiferença. E quando isso ocorre (... só de brincadeira, pela simples gratificação do prazer) a linguagem, a filosofia, a ciência e a técnica estão como que dizendo: se o fim é inevitável, que tal, por enquanto, um pouco de artifício estético?
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Diagrama. Apenas para uma visualização geral do que componho como CORPOÉTICA, eu reparto essa palavra a seguir em quadros específicos e entre si comunicantes. O intuito é montar e mostrar a CORPOÉTICA como um sistema. E você notará agora em destaque o uso que faço de alguns conceitos a nomear os roteiros desse passeio pela palavra.
Corpoética
Modalidade
Transtópica Filosófica Lúdica
No mo(vi)mento Como saber/sabor Qual mosaico moleque
Corpo
Complexidade
Do soma Da psique Do pnêuma
Nas peles físico-bio-químicas Nos pelos do desejo e do poder Nos poros d’ânima mito-poética
Cor
Peculiaridade
Pontual Pessoal Punctual
Com tangências entre bios e necros Com seduções entre eros e tanatos Com fantasias entre zoé e hades
Pó
Historicidade
Prática Conflitiva Semiótica
Nas lareiras da economia Nas praças da política Nas redes da cultura
Ética
Possibilidade
De valores De voleios De vazios
Ao controle da razão No improviso da emoção Para estímulo da imaginação
Poética
Criatividade
Genial Especial Experimental
No talento Pela técnica Com te(n)são
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Compósito desse trem. Ainda em tempo para contextualizar um pouco mais o ensaio que você tem em mãos, lembro que, convidado certa feita para falar sobre juventude e globalização, entendi que deveria ter alguma experiência na cibercultura. Assim, comecei a participar das redes sociais e criei alguns blogs, sendo o primeiro em abril de 2008: www.corpoetica.com. Nesse espaço virtual fiz, entre comentários e fotografias, cerca de cento e trinta postagens até maio de 2013. Desse conjunto selecionei e adaptei alguns escritos que passam agora a compor este passeio pela palavra, à luz da CORPOÉTICA. O trajeto neste codex poderá ser realizado em seis roteiros, começando por este que, aliás, está quase acabando. Cada roteiro apresenta cinco ou nove trechos. O primeiro e o último roteiro (respectivamente, modalidade e criatividade)
apresentam
cinco
trechos.
Os
outros
quatro
roteiros
(complexidade, peculiaridade, historicidade e possibilidade) oferecem nove trechos em cada caso. E mais um detalhe: todos os roteiros terminam com um poema. Aviso também que em todos os passos deste passeio assumo uma verdade determinada por um ponto de vista. Por isso, minha verdade não é; está. Noutros termos, entendo que a perspectiva que condiciona uma verdade é sempre histórica: situada no tempo e no espaço; datada e circunscrita ao seu lugar cultural. Nesse sentido, minha verdade tem prazo de validade: enquanto a prezo; tem limite de fronteira para sua circulação: quem sabe, legítima nas linhas desse trem que, mineiramente, componho. Assim como relatividade difere de relativismo, uma verdade se configura contraditória, porém distinta da incoerência. As contradições movem as tensões que fazem emergir uma verdade como acontecimento derivado das circunstâncias objetivas e subjetivas. E nessas contradições a busca pela coerência se dinamiza e se envereda pelos meandros dos planaltos do poder,
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das praias das paixões e dos pêlos e poros do prazer. É a vereda corpoética de uma verdade. Os que me acompanharem neste passeio, demorando um pouco mais na leitura, sentirão que nos constituímos como segmento social menor, intencionalmente mais lerdo, justo porque mais dispostos a avançar e voltar a cada linha, feito uma guerrilha em te(n)são de mo(vi)mento. Corpoética faz parte, quem sabe, de uma célula literária zelosa por uma idiossincrasia com Einstellung (ênfase, recaimento) sobre a materialidade do signo. Ou seja, neste ensaio/passeio o trajeto/trejeito da expressão ganha eventuais laivos de hegemonia no sistema semiótico. Um capricho. Coisa quase experimental. Nada muito sério. Apenas acho esse meu registro um trem-bão, dasveiz vortado para ligeiros e lúdicos expedientes que beirem alguma desculpa estética para o absurdo da vida.
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Cutículas gramaticais. De vez em quando convém retomar rótulos e tentar melhores contornos para os vocábulos. Esse é o caso, repito, desse passeio interessado em remarcar acepções para corpoética. Em letras minúsculas ou maiúsculas, corpoética é o neologismo que se apresenta como mochila semântica carregando termos e conceitos de substantivo, adjetivo e, eventualmente, cumprindo funções de verbo a partir de ajustes da primeira conjugação. Como substantivo, corpoética nomeia um modo de se referir ao complexo corpóreo, bem como seu estudo. Já o adjetivo corpoética qualifica toda e qualquer experiência da corporeidade, sem qualquer juízo de valor estrito (... ainda que se possam constatar algumas oportunidades em que a adjetivação comporta um horizonte valorativo desejado). No raríssimo funcionamento como verbo, corpoeticizar roça a língua e brinca com a linguagem pretensiosamente estética. E consoante ao mo(vi)mento de te(n)são que pulsa na palavra-valise, é óbvio o privilégio da forma nominal do gerúndio: corpoeticizando. Convém, a propósito, assumir um contraponto frente às críticas que o gerúndio vem sofrendo, aliás, rigorosamente corretas. Entretanto, ao fazer a defesa dessa forma nominal também percebo que meu corpoeticizar nem sempre se expõe de jeito explícito. Arrisco supor meio desavergonhadamente: continuo cometendo gerúndios neológicos que engatam-engastam-e-engasgam com trocadilhos e metalinguagens afeitos à corpoética. E para aproveitar uma carona, registro uma homenagem a quem dedico esse passeio e dou minha mão à palmatória por conta de gratuitos hermetismos conjugais. Assim, deixo badalando nosso si(g)no:
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(...)
---------------------------Kodophando camanducaias. --------------------------------------------Tamielando medulas. Juniorizando doutos. ---------------------------------------------------------Terracotando paletas. Gargantilhando eclipses ------------------------------------------------------------Quitutando caramelos. Rodrigando agregantes. ---------------------------------------------------------Antonizando sintonias. Reginando genitivos. -------------------------------------------------------Almirando carmins. Kampeando serranias. ---------------------------------------------------Caravelando marinas. Assilviando cepas. ------------------------------------------------------Alphavillizando philion. Sandwichando garçom. ---------------------------------------------------------------------Renatando relações. Nogueirando oliveiras. Luanando lençóis. -----------------------------------------------------------------------------------Karinando sorbetes. Envalterando zênites. Perispirituando janeiros. ---------------------------------------------------------------------------------------Regerberando pastifícios. Peninsulando ilhas. Doiderando boçorocas. -------------------------------------------------------------------------------------Sobrinhando órbitas. Pivotando primazias. Dezenovando pares. ----------------------------------------------------------------------------! (27)
Complexidade
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Consciência. Dentre os mamíferos mais complexos, o ser humano parece demonstrar consciência de si e de seu mundo em maior e melhor grau. Também parece admissível que essa consciência que o humano tem resulta de processos de mudanças cumulativas e de rupturas ao longo dos milênios da espécie, bem como durante os anos de cada corpo particularmente. Ainda parece notável que a variação dessa consciência, apesar do tempo funcionar como fator determinante, sobretudo é uma variação derivada de inúmeras situações naturais
e
culturais:
herança
genética,
aprendizagem
sociopolítica,
experiências limites etc. Pela antropologia filosófica, dezenas de teorias procuram conceituar e sistematizar o tema da consciência, havendo entre elas sintonias e dissonâncias. E só o fato de haver mais de uma teoria sobre a consciência já indica uma impossibilidade do corpo ter uma convicção satisfatória e suficiente nesse assunto. Isso equivale a uma curiosa, legítima e contínua busca
das
veredas
da
consciência
acerca
de
suas
possibilidades
autorreferentes e dirigidas ao seu redor. Considero que a consciência corpoética ocorre em meio a fragmentos móbiles de complexidades subjetivas, objetivas, valorativas, explosivas, imaginativas, criativas etc.; cacos de coisas e de casos sem o estabelecimento de teorizações seguras. Essa indeterminação reverbera um instigante garimpo: o que se busca não se sabe bem o que possa ser; e, por isso, paradoxalmente, nessa coceira filosófica parece inexistir pressa, sofreguidão. Nos diversos e divertidos movimentos intencionais ou acidentais dessa garimpagem sem certezas a consciência corpoética arrisca e ensaia alguns conceitos apenas pelo prazer de brincar consigo e com signos.
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Método dialúdico. Se bem me lembro, há quinze anos a palavra dialúdica me pareceu apropriada para representar uma dialética-em-tensão da corpoética, sem qualquer Aufhebung hegeliana para resolvê-la. A conotação do neologismo me serviu, desde essa época, como signo para um jeito jocoso do jogo racional. Dialúdica implica assim a absorção do racional beirando a brincadeira poética. Valho-me desta para transbordar aquele, fugindo o quanto posso de cair num irracionalismo irresponsável ou numa porralouquice ingênua. Espécie de fantasia nietzschiana feita de ficção-com-poeira-histórica, dialúdica talvez seja outro modo de dizer aquilo que Lezama Lima chamou eros cognoscente e que Irlemar Chiampi reconhece como indicativo da ligação entre a ciência e o prazer. A propósito desse legado lógico, metodológico, gnosiológico, epistêmico e ontológico, recordo que a dialética de Hegel que culminava no Espírito Absoluto foi subvertida de maneira diferenciada por Lezama Lima. Ou seja, diante da peculiar relação real-racional apresentada e desenvolvida pelo idealismo de Hegel, o ensaísta e crítico cubano preferia falar em sujeito metafórico – algo imaginado e que produz imagens. Nessa configuração Lezama até provavelmente pudesse dizer que o pecado original é a linguagem – inescapável metáfora. E dela não há salvação. Felizmente! Afinal, livre da verdade última e absoluta, o texto pode exercitar a escritura – única chance verdadeira de se inventar uma corpoética. Então, apropriando-me de Lezama e condicionado por minhas preferências e implicâncias, sou tentado supor que o sujeito metafórico implica um fazer: a práxis de uma metodologia criativa, um ethos corpoético, uma dialúdica poética que relativiza (inédita e rigorosamente) semelhanças e diferenças. E nessa coisa de criar/recrear/recriar, cultura e história vão sendo... Devir leve, quase leviano, lambendo a linguagem.
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Finitude e sentido. Antes da corporeidade se constituir prevalecia sua física, sua base material, sua elementar concretude. Com o acréscimo da complexidade humana, o corpo consegue se perceber um pouco mais e melhor: primariamente natureza e prioritariamente cultura. Essa percepção corpoética em mínima lucidez significa o corpo se saber finito. Não existiu antes e não existirá depois. Sua porção natural é milagrosamente um hiato em meio ao vazio – o que se reveste de enorme importância, pois o corpo não é não-ser de modo absoluto. Afinal, a existência é uma rasteira definitiva no suposto inexistir absoluto. Outro detalhe dessa percepção ocorre quando a corporeidade se dá conta que finitude é um conceito possível justamente porque sua condição cultural inventou linguagens. Cada sistema de signos reapresenta coisas, casos e causos (... tríade recorrente nesse passeio) que formatam sentidos, inclusive o sentido abstrato do que seja finito. Assim, os expedientes semióticos tradutores de sentidos se proliferam pelas filosofias, ciências e artes. Do mítico e metafísico ao técnico e pragmático, as linguagens explicitam ou sugerem recursos frente à irrevogável finitude corpórea. E só para exemplificar vale conferir como visual e simbolicamente esse tema é exposto em uma cena do filme “O carteiro e o poeta” (Il postino, 1994). Obra cinematográfica muito bem dirigida por Michael Radford e soberbamente musicada por Luis Bacalov, Il postino alcançou merecido reconhecimento. Público e crítica especializada avaliam e aplaudem a adaptação para o cinema do romance Ardiente paciencia escrito por Antonio Skármeta. Interpretado de modo visceral e derradeiro por Massimo Troisi (1953-1994), Mario Ruoppolo é o carteiro — personagem central. Ao terminar o primeiro quarto do tempo total do filme, procurando cumprir o conselho dado pelo poeta Pablo Neruda
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(na ficção, personagem vivido por Philippe Noiret), o carteiro caminha pela praia à espera da poesia em forma de metáforas. Essa cena na praia dura apenas vinte e cinco segundos que podem ser precariamente assim descritos: durante três segundos antes da figura humana do carteiro aparecer, o enquadramento da tela retrata a praia em primeiro plano, seguida do mar e uma ilhota centralizada na linha do horizonte, e o céu ao fundo. Depois o carteiro surge (corpo inteiro) andando desde a direita do quadro, tendo sua cabeça captada pela câmera que a situa na mesma altura da linha do horizonte. Durante o deslocamento do carteiro a câmera está inicialmente estática e depois acompanha o movimento de Mario, havendo o instante em que corpo e ilhota se cruzam e outro instante em que carteiro e acidente geológico se posicionam equidistantes, bem próximos das extremidades laterais do quadro. Então a câmera para. E o carteiro prossegue até sair do enquadramento, pela esquerda. O final da cena dura três segundos com a imagem da ilhota, do céu e da praia como únicos remanescentes sígnicos. (...) Hipótese corpoética: a finitude humana invade a natura e desaparece; mas através da cultura pode haver alguma invenção de sentido.
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Contradição e coerência. De vez em quando cometo parágrafos autorreferentes de modo explícito. A rigor, de fato, de maneira implícita, disso não escapa todo e qualquer registro: seja qual for o assunto, por quem quer que o trate..., invariavelmente a grafia flagra a mão que a consigna. Se isso me provoca esse assuntar mais assumido, mudanças de opiniões e de projetos comprovam como minha corporeidade é contraditória. Motivações e pretextos me fizeram e fazem trocar de bebidas, balcões e balizas... Contudo, estar assim ou assado de forma integral, com inteireza, evita algumas incoerências. E como puro conceito, a incoerência me parece ser um caráter, uma qualidade, uma virtude (virtus, força corpórea) que se materializa como ethos (conduta efetiva) a partir de uma moralidade (valoração) que compromete uma lisura corpoética. Aliás, em tempo, resalto que essa linha reta da coerência plena não passa de idealização nem sempre concretizada. Seja como for, acho que a dinâmica do existir desenha mudanças, as quais convêm (repito: convém; como expressão de um valor) figurar no espelho e nos reflexos com um mínimo de compromisso com a autoria (autonomia) de uma autenticidade corpórea situada. Olhar os próprios olhos sem mistificações ou engenhos plagiadores confere à corpoética-de-cada-um, pelo menos, três resultados: Primeiro, o sentimento de quão misterioso pode ser o laço das complexas variantes da particularidade corpóreo-histórica. Segundo, que esse laço corresponde a uma determinada amarração circunstanciada pelo tempo e pela temporalidade. Terceiro, que datas e interpretações valem circunscritas à totalidade das relações históricas e jamais em um fictício absoluto, totalmente transcendental.
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Considerando, portanto, que escrevo ao longo de trinta anos sempre em busca de uma coerência com aquilo que minha corporeidade pensa-e-sente-eacredita no tempo mesmo da escrita, também hoje eu admito já ter trocado em algumas ocasiões minhas antigas certezas por novas suspeitas e, às vezes, por respeitosas indiferenças. O que confesso manter intacto, contudo, é meu interesse pela escrituração: um gosto pelo ensaio textual, o prazer na teimosa luta com a palavra.
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Viagem. Considerando que a corporeidade se constitui como mo(vi)mento de te(n)são, talvez pareça óbvio que as características de uma viagem coadunem com o viver corpóreo. E se isso assim parece, cabe supor também não ser possível reduzir essa correlação às evidências de superfície. Na perspectiva deste passeio, portanto, corpoética e viagem se combinam, se complementam e se contaminam; porém a complexidade disso exige um reparo mais denso e sutil – o que, aliás, estes parágrafos pretendem sugerir. Ainda que me pesem limitações de competência analítica, admito o ser corpóreo vivendo sempre em trânsito. Cada corpo é o mesmo, sendo sempre outro. A mudança o estabelece – eis seu paradoxo, eis sua instigante harmonia heraclitiana como a do arco e da lira. Noutras palavras e noutro empréstimo, penso que anterior à dimensão excludente e extrema em Hamlet (to be or not to be), há que se administrar o ser e o não-ser. A propósito (e, quem sabe, com maior acerto), devo constatar que o ser corpóreo se afirma justamente por não-ser outra coisa. Pelo não-ser surge o ser. Corpo é o que é porque não é mais o que foi e nem é ainda o que pode vir a ser. Corpo é ser transitório. Corpoética. E com algum abuso nas letras, acho conveniente lembrar que essa mudança corpoética ocorre em uma espécie de metafísica quântica. Ou seja, as incríveis e minúsculas partículas de contágios naturais-e-culturais pululam dentro do grande vazio atômico da condição humana. As inesperadas indeterminações funcionam como fatores a gravitar em torno de um núcleo de coisas-e-casos prenhe de probabilidades. Pura jinga virtual. O nada engendra tudo. Dinamicamente. Assim, em um eco emblemático dessa potência (dynamis) corpoética, entendo que viajar implica, no mínimo, um significativo exercício semelhante ao que se observa em academia de ginástica dotada desses aparelhos que fazem o corpo correr sem ultrapassar o metro quadrado da esteira. Isto é, além e
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apesar de todas as vantagens inerentes, viajar também apresenta um aspecto meio discrepante e até um pouco ridículo ou baldio — comparado ao trivial mais singelo. Sair é aparência. Chegar é ilusão. Voltar é descoberta. Seja como for, aceito que viver é viajar e vice-versa. Ao viajar vivo o que sou. Minha ex-cursão é essencialmente enganosa. Sigo sem cessar um mesmo curso; apenas troco de linguagem – essa roupa que me ajusta aos figurinos da natureza e da cultura. Por isso, quando viajamos, como alertou Bernardo Soares, nunca desembarcamos de nós. Ou em contraponto, como garantiram Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, com o pé nessa estrada [...] nada será como antes [...] nada será como está; amanhã ou depois de amanhã resistindo na boca da noite um gosto de sol. Ou ainda, como prescreveu Coélet, levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar [...]; o vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte; volve-se e revolve-se na sua carreira, e retorna aos seus circuitos [...]; o que foi é o que há de ser; e o que se fez isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol. Quanta antítese, quanta tensão, quanta movência! Estranho... Trágico... Sublime... Durante uma viagem, portanto, oportunidades seduzem novas experiências. Muitas vezes o equívoco toma conta e o inédito ou inusitado ocultam e disfarçam a mesmidade fundante. Quando está noutro local, sem dúvida, a corporeidade se desloca no espaço, muda de sitio; contudo não se modifica inteiramente. A propósito, o lugar do corpo é seu jeito de ser, seu jeito radical, seu jeito por detrás a toda máscara, reverso a toda personalidade. Ao viajar, os valores/voleios/vazios do corpo fazem emergir condutas consagradas e dignas. Porém (... porque o corpo se move impulsionado e em meio a balizas latentes e sobremodo eficazes) comportamentos nem sempre supostos, nem sempre domésticos e nem sempre louváveis também explodem com uma espontaneidade assustadora, confirmando que sair-mundo-afora é permanecer no mesmo lugar interior – um lugar contraditório e, às vezes, insuspeito e incoerente. Em suma, na mesma plataforma uma viagem suscita
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novidades e surpreende pela recorrência. E diante desse mo(vi)mento de te(n)são, aventuramos concluir que a corpoética nunca sai de férias.
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Nó. Com algumas repetições e outras fantasias volto a um tema que aludi em forma de desvio por ocasião do registro de balizamento durante o roteiro da modalidade. Ou seja, a saber, conforme publiquei na Revista Tempo e Presença (nº 322; Rio de Janeiro: Koinonia, 2002), umbigo é substantivo feminino. Talvez nossa língua portuguesa (... como diria o Professor Pasquale) abonasse esse óbvio erro de gramática apenas pela rubrica
de
licença
poética.
Isso
porque,
no
processo
comunicativo, a função que destaca o elemento estético tem permissão de promover um estranhamento intencional cujo resultado acaba dando ênfase ao elemento da mensagem mesma, valorizando-lhe a especificidade. Nesse caso, o emissor erra de propósito para que o receptor, no uso de seu repertório, seja mais interativo na reinterpretação do discurso como um todo. Se fosse o caso de alterarmos o elemento estranho que toma “o” umbigo como feminino afirmando, então, que deveria ser classificado como substantivo neutro – conforme no idioma inglês, ignorando-o como he or she e chamando-o por it – isso também precisaria ser questionado semioticamente, posto que assim estaríamos camuflando certos elementos indispensáveis. O fato de o umbigo estar tanto no corpo masculino quanto no corpo feminino não o torna indiferente e simplesmente comum aos gêneros. Em que pese uma diferença de sexo não definir, de fato, a simples inclusão ou exclusão do umbigo nesta ou naquela figura anatômica, não me sinto autorizado proceder a uma redução indiferenciadora e simplificadora que me prenda apenas à ocorrência do umbigo, descurando daquilo que o umbigo significa
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como referência. E o que se dá no umbigo, sem sombra de dúvida, é sempre um referir à mãe. Sua substância de referência é inegavelmente feminina. Ele a significa. Ele é ela. Adensando um pouco mais, em toda designação o significado não se esgota no significante; um nome (qualquer nome) sempre reapresenta determinada coisa concreta ou caso abstrato a que se refere, privilegiando apenas algum aspecto dessa coisa ou desse caso. Daí, a grandeza e a miséria naquilo que inventamos: a maravilha de uma linguagem atrelada a impossibilidades e limites inerentes. Com efeito, aquilo a que o umbigo se refere é muito mais que seu nome e seu lugar na gramática. Assim, além de feminino (por força de referência), o umbigo remete a uma feminilidade que, pela dimensão poética de seu caráter semiótico, ultrapassa bem mais seu paradigma léxico de substantivo masculino. Quem sabe, portanto, em virtude de uma impropriedade gramatical, dizer que na corpoética o umbigo é substantivo feminino acaba contribuindo, às avessas: ajuda a perceber e criticar, pelo menos, uma discutível hegemonia de gênero incrustada em nosso código lingüístico. (Entre parênteses e apenas querendo exemplificar esse domínio um pouco à margem, todos nós sentimos o imenso ônus machista impregnado em nossas regras para a elaboração do plural. Basta para tanto lembrar que se nove amigas e um amigo vierem a passear comigo por essas páginas, estarei em companhia de dez amigos, como se, absurdo dos absurdos, um amigo contasse mais que nove amigas). Mas voltando ao tema e admitindo que o umbigo não seja neutro nem substancialmente masculino, desejo expor três ângulos (dentre outros que me escapam ou extrapolam) em que ele é
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muito mais feminino do que se chega a supor, amiúde. Como signo sobremodo peculiar, o umbigo registra de maneira qualitativamente privilegiada algumas denotações e conotações que oportunizam ênfases femininas para o pontual, o pessoal e o punctual da corpoética. Numa perspectiva somática, umbigo é essa contraditória marca pontual de continuidade versus ruptura. Sendo imagem/ícone cicatriz, com notável precisão, sublinha o que há de feminino nessas pregas de nó. Ou seja, ícone-também-índice, guardando uma relação de antecedente/subsequente, o umbigo é signo da mãe no próprio corpo da prole. A sucessão na secção. Um corte desligando conexões. Interrupção de passagem, o índice do umbigo obriga a relacionar essa parede de agora com uma ponte anterior, quando o caminho estava livre, quando o conduto durante meses foi o único fio de uma complexa simbiose ligando mãe e embrião. O umbigo aponta para si mesmo como resto de um cordão de continuidade, pela via feminina – naturalmente única. E justo pelo que era, o umbigo se torna também, por contradição necessária e vital para a mãe (muito mais que para o feto), indicativo de uma ruptura nessa função feminina não só exclusiva quanto à maternidade, como também exclusiva para uma gestação específica. O umbigo, portanto, sucede essa simbiose per-feita, essa conexão original/originária/originada. Tocar no umbigo é recontatar algo de que se separou por conta de um primeiro corte; é, com toda certeza, retocar um passado feminino e, quem sabe, até uma saudade irreversível. Numa perspectiva psíquica, umbigo é uma área que polariza emoções
bem
no
centro
do
âmbito
pessoal
corpóreo.
Sentimentos se convertem e se divertem em torno desse ícone de prazeres, desse pequeno polo de pele sem pelos. Por feliz coincidência, o feminino de todo
umbigo está em sua
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iconicidade, em seu aspecto de espaço vazio, em sua abertura sedutora e aconchegante, pro-vocando bolinagens várias. Aliás, não é sem destaque que constatamos a evolução semântica do étimo umbigo. Tratando-se originalmente do diminutivo de umbo – termo latino significando protuberância (que sugere até uma alusão ao clitóris) – passa depois a denotar seu contrário, ou seja, cova (que pode insinuar vagina e útero). Desta imagem de ausência (cavidade, caverna, buraco), representando algum ambiente propício para acolher e re-crear, depreendo aquilo que a sedução do umbigo comporta de feminilidade maior: a arte da moldagem – que faz no interno e pelo avesso coisas, casos, causos... Assim, no vazio do umbigo, em sua ausência constitutiva, se presentifica uma feminilidade. Numa perspectiva pnêumica, umbigo é um convite à fé, ao ris(c)o do entusiasmo, à fisgada punctual da espiritualidade corpórea. E esse punctum funciona como símbolo; tipo de acupuntura que acaba mediando ser e existir. Através de símbolos
sabemos/sentimos/sonhamos;
existimos,
além
de
sermos isso ou aquilo. Todo símbolo é uma espécie de virtualização (... uma aliança no dedo de quem ama repõe virtualmente a pessoa amada). Assim também o anel umbilical: ao simbolizar o corpo da mãe também virtualiza, repõe sua maternidade. E independente de juízos de valor, o símbolo da maternidade no umbigo é sempre signo/sinônimo de nova renovação da vida. Por meio do umbigo como símbolo religamos na corporeidade physis e mythos, natura e cultura. Sem umbigo e sem símbolo nosso existir se extingue. Em suma, se o arriscado romper com a segurança pretérita é exigência feminina, o umbigo é relíquia e sacramento, meio de graça, inspiração para o espírito corpóreo insistir teimosamente em se tornar sempre aquela criança nova que, no útero de uma fé corpoética, revive o sonho da plenitude femininamente eterna.
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Noutras palavras, conforme os recortes de nossa anatomia e de bem com as opções de nosso erotismo, podemos recuperar instâncias de nossa feminilidade no desvelamento e no mistério do umbigo e, quiçá, melhor assumi-la sem falsos pudores ou nocivas arrogâncias que só nos imbecilizam em reducionismos machistas e/ou em generalidades feminiscóides. Até quando, pergunto, seremos presas dessas ideologias que nos afastam de nós mesmos, separando-nos de nossa constituição e invenção corpóreas? Até quando abriremos mão de nos reencontrarmos umbilicalmente ligados às nossas inegáveis origens e melhores possibilidades? Até quando a feminilidade nossa de cada dia ficará alienada, bem no umbigo de nós mesmos, conspirando contra nossa corpoética? Por fim e sem pretensões conclusivas, admito que responder estas questões é desafio constante e coletivo. Também suponho que a feminilidade do umbigo instiga incontáveis mo(vi)mentos de te(n)são entre as dimensões somáticas, psíquicas e pnêumicas do corpóreo. E aposto, ainda, que a corpoética está destinada a se encontrar no umbigo, a se superar com o umbigo, a se salvar pelo umbigo.
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Espelha e espalha. Conforme duas categorias conceituais destas páginas, o corpo espelha cor e pó. Apresenta algo contraditoriamente peculiar e histórico. É único portando originalidades, e comum refletindo influências. E por mais duas categorias conexas, o corpo espalha sua ética e sua poética. Concretiza contradições no mundo dos valores e comportamentos, e na atmosfera das criações pragmáticas e estéticas. É superação de facticidades. Por isso, a corpoética espelha e espalha. Se no espelhar ecoa, relativamente, uma passividade; no espalhar transborda, em geral, desdobramentos intencionais e efetivos. Um mo(vi)mento de te(n)são percorre a corporeidade desde dados até programas, atravessando subsídios fortuitos e produtos referenciados. A corpoética se reinventa para ser ela mesma: culturalmente irreversível ou outra vez pura natura.
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Surpresas. Dentre os mo(vi)mentos de te(n)são mais profundos e abrangentes da corporeidade está a surpresa. Por definição óbvia, a surpresa escapa ao previsível. Por caráter intrínseco, é própria aos fatos. Por eventual conseqüência feliz, modela a serenidade. Diante e imediatamente depois da surpresa o corpo não se vê mais como estava. Um movimento tenso suscita um apetite e uma potência que desconformam o corpo num instante instável, frágil e febril. Abre-se uma insuspeitada chance para recriar ou remediar uma calma superlativa. A surpresa é o aperitivo da crise; aos apressados pode estragar o prato principal, pois degustá-la como convém pressupõe um compromisso cúmplice com seu oposto: dar tempo ao tempo. Considerando alguns detalhes, antes da surpresa o material corpóreo se mantém por um padrão relativamente regular e com alterações sistêmicas sujeitas aos controles pertinentes. As variáveis respiratórias, cardíacas, digestivas, neurofisiológicas etc. seguem um ritmo sem muitos sobressaltos. Por isso, quando as surpresas desestabilizam processos biofísicos da corporeidade, surgem maiores e urgentes preocupações. Daí reacende o viver ou fica instaurada a vitória da sombra. Noutra esfera a sensibilidade corpórea oscila entre grandes atrações e repulsas
acachapantes
que,
ocasionalmente,
surpreendem.
Nessas
oportunidades o inusitado arrebata ou transtorna a dinâmica do cotidiano – amiúde uma dinâmica meia-boca, ou rotineira e acomodada. Assim, pela surpresa,
aspectos
emocionais
e
intersubjetivos
são
desafiados
a
ressignificações e reciclagens certamente imprescindíveis, eventualmente inéditas, definitivamente gravadas. Já no âmbito do espírito corpóreo a surpresa comparece, quem sabe, de forma bem mais aguda; como bálsamo ou como sufoco. No primeiro caso, a
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surpresa confere vida ao viver. No segundo caso, a surpresa chega como que chamando a morte pelo apelido mais íntimo. Afinal, um sentido para a existência, quando assim surpreendido, pode sofrer um golpe tão arrasador que apenas outra surpresa inventiva (como sinônimo de fé, como equivalente a um suposto-sentido-existencial-supremo) talvez consiga replantar um fôlego simbólico para a sobrevivência.
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Perspectivas. Conforme interesses e oportunidades, os verbos enxergar, olhar e ver sustentam acepções equivalentes. Os estudos etimológicos dão conta que enxergar tem origem imprecisa, sobrando discussões a respeito. Quanto a olhar, é bem aceito que seu étimo provenha do latim ad oculare (dirigir o olho para). Já o termo ver, de procedência também latina, indica várias noções, até mesmo a de ver no sentido abstrato. A rigor, cada um desses verbos destaca muitas possibilidades do corpo captar, interpretar e imaginar suas diversas relações com o mundo. E como uso esses verbos neste passeio com algum cuidado e com ligeiras delimitações conceituais, passo adiante a considerar essas alternativas que seleciono e exponho. Com certeza, esse meu glossário não esgota semânticas nem pretende ser um parâmetro inquestionável; apenas participa do jogo linguístico-semiótico destas páginas. Assim
sendo, enxergar, olhar e ver são
nuances
corpoéticas,
quiçá
portadoras de especificidades cabíveis. Cada uma dessas competências está afeita principalmente (porém, não de modo exclusivo) a uma dimensão da corporeidade. São verbos em perspectivas, por perspectivas e com perspectivas... Enxergar é uma perspectiva somática. Depende do funcionamento fisiológico do sofisticadíssimo aparelho neuro-óptico. Habilitado pela natureza, o globo ocular capta a realidade material e traduz, via conexões, estímulos em imagens. Olhar é uma perspectiva psíquica. Depende do condicionamento social que formata as imagens segundo idéias. Adquirida pela cultura, a percepção corpórea interpreta a realidade conforme os indícios já incorporados como referências e códigos.
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Ver é uma perspectiva pnêumica. Depende do desejo íntimo e último da corporeidade – aquele desejo que figura como intenso interesse pelo qual se aposta a existência como um todo. Criada com símbolos, essa visão pode propor e providenciar até um sentido existencial. Algumas ênfases (inclinações, reforços, recaimentos...) dessas perspectivas caberiam ser esquematizadas, ficando subentendido que os campos explícitos permitem aberturas para interpenetrações:
Perspectiva
Enxergar
Olhar
Ver
Lógica
Indução
Dedução
Abdução
Função
Captar
Interpretar
Imaginar
Dynamis
Aisthesis
Mathesis
Katharsis
Preposição
De
Por
Com
Signo principal
Ícone
Índice
Símbolo
Dimensão corpórea
Soma
Psique
Pnêuma
Competência corpórea
Sensação
Percepção
Invenção
Ou, com outra linguagem,
Momentos Antes só nos enxergávamos; mera sensação, experiência muda. Agora nos olhamos e já começamos a nos perceber como convém aos que ultrapassam os envelopes e adentram na pele das palavras – esses pijamas das pessoas. Depois provavelmente nos veremos com tanta intimidade que até pela nudez do silêncio trocaremos segredos.
Peculiaridade
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Cor. Conforme você leu páginas atrás, criei a neologia corpoética em 1982 quando escrevi um texto em referência ao dia da abolição dos escravos no Brasil. Naquele folheto de confissões de um branco expressei alguns elementos tópicos: cor-pó-ética. O motivo, por suposto, estava relacionado a uma denúncia contra o equívoco de se reduzir os complexos fatores da negação imposta aos negros à diferença de cor na epiderme corpórea. Ou seja, ainda que a cor da pele jamais explique a variada gama de aspectos em torno da indesculpável escravidão sofrida pelos negros, assim mesmo a característica da quantidade de pigmentos da pele absorve quase todo assunto subjacente à Lei Áurea, antes e depois de 13 de maio de 1888. Instigado por esse tema, considero que a corporeidade se constitui inclusive pela cor. Tenho por entendimento que essa palavra cor oferece acepções no contexto somático, psíquico e pnêumico. Penso, a propósito, que todas essas noções semânticas se referem a circunscrições no âmbito da materialidade histórica, socialmente cultural; e todas também aludem a potências únicas, inimitáveis, finitas. Somaticamente, a cor que se enxerga é uma marca superficial, nem sempre rigorosa e definidamente representativa da etnia corpórea. Mesmo assim, pela cor da pele se fixa um registro que ressignifica a superfície: plena em sua ocorrência pontual. Irrepetível. Eis, nessa epiderme, toda a diferença corpoética mediante o fenômeno da cromaticidade (do grego, Chroma; do latim, Color). Psiquicamente, cor representa os feitos e efeitos de emoções e sentimentos. Tem por emblema o coração com seus afetos contraditórios. Em tal caso, cor surpreendente como camaleão, transita por gozos e angústias sempre intransferíveis. Nesse coração se olha a silhueta borrada e móbil do que é específico de cada desenho corpoético: sua indômita cordialidade (do latim, Cor, Cordis).
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Pneumicamente, cor corpórea sugere a imaginação inventiva a criar sentidos para a existência. Trata-se de um ver espiritual, uma visão que compõe orientações referenciais – profundas, últimas, decisivas. Como entranha grávida de mistérios, vibra num singular cromatismo corpóreo essa música solo e seus sonhos com acordes corais. Daí uma corpoética que consagra, através de símbolos, sua colorização para a vida.
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Moradia. Desde minha adolescência ouvia, comovido, uma canção de Burt Bacharach & Hal David, interpretada por Dionne Warwick, cujo título e cuja frase recorrente afirmava que a house is not a home. Era a música tema do filme com o mesmo nome, dirigido por Russell Rouse. Ainda hoje, melodia, arranjo e letra me soam muito agradáveis. Por isso, ao deixar transparecer minha hipotenusa kitsch, acho que vale a pena você conhecer ou relembrar esse hit de 1964. Eis, portanto, a trilha sonora destes parágrafos sobre moradia. Tendo a corpoética como paradigma, parece-me cabível supor três aspectos significativos sobre onde o corpo mora: local, espaço e lugar. Admito que essas dimensões, a saber, objetiva, correlativa e subjetiva, deveriam ser detalhadas com rigor, porém tal empreendimento escaparia aos recursos destas linhas. Exigiria um tratado com categorias, classificações, métodos e análises de abrangência tão exaustiva que extrapolaria o caráter ligeiro de um ensaio como este. Portanto, o que vou expor a seguir é bastante singelo e até mesmo, com perdão da impertinência, um tanto confessional. Ou seja, assumo minha cor, minha peculiaridade nesse assunto. Em sua dimensão objetiva, a moradia é um local historicamente demarcado. Isso independe de quantos corpos venham nele morar. Um único corpo basta ou é suficiente para essa perspectiva que sublinha o somático da complexidade corpórea. Com efeito, fatores econômicos, políticos e culturais condicionam porque, para que, onde, como e por quanto tempo um corpo está em um local que lhe abriga. Em termos jurídico-formais, esse local é um patrimônio de propriedade ou posse de alguém, conforme as legislações em vigência. Na minha situação particular, felizmente por conta de aspectos histórico-afetivos, estou escrevendo esse texto no escritório de uma casa bonita e confortável, e que usufruo sem dela ser proprietário. Nesse sentido objetivo, eu estou num local.
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Por outro ângulo, geralmente a moradia é um espaço para mo(vi)mentos de te(n)são protagonizados por pessoas que nela se localizam. Em tal óptica há que se reconhecer como pressuposto um convívio entre pessoas, ou seja, alguém sozinho não sustenta esse ponto de vista focado na psique da corporeidade em situação intersubjetiva diante da objetividade material. Por certo, nesse espaço transitam humores, projetos e planos de estadia em função da temporalidade. Não só as coisas se dispõem no local como, especificamente, os casos se compõem e se contrapõem ao sabor das correlações de poder e prazer envolvendo seus moradores, sujeitos-de e sujeitos-a
significados
de
variadas
linguagens.
Essas
correlações
em
caleidoscópios de contradições e de consonantes constituem o que chamo espaço da moradia. E mencionando novamente onde moro, esse escritório e muito mais toda essa casa têm sido ao longo do tempo o espaço de alguns desentendimentos e de muitas e muitas alegrias com minha querida esposa. Portanto, não estou apenas num local reduzido à sua estrita materialidade. Mas, conforme desejos e decisões de enorme e gratificante densidade intersubjetiva, this house is our home. Assim convivendo ocupamos um espaço significativo. Por fim, sem pretender esgotar a análise sobre a morada do corpo, uma terceira característica é profunda e radicalmente subjetiva. Trata-se de um âmbito que não desconsidera o que há como local e como espaço na moradia, mas transversa ambos para fisgar um canto do eu corpóreo em sua aquisição de sentido existencial. Diz respeito, portanto, a uma espiritualidade que tangencia o local, roça o espaço. Noutras palavras, uma pnêumica do lugar. Óbvio que essa marca da moradia como lugar vinculado ao sentido da existência não ocorre necessariamente a todo morador e nem se aplica a toda e qualquer situação localizada e espacial. Tanto pode acontecer (como não acontecer) com um morador único ou com um único morador em determinado topos. Ou até pode acontecer com vários ou todos moradores em um local, de um espaço. Quanto a mim, não só esse escritório como toda a casa abrigam ares de um sentido para minha existência. Mesmo que meu eu não possa ser reduzido a um local ou a um espaço, graças à minha esposa..., e com minha
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esposa..., fiz desse escritório e dessa casa a moldura para minha referência suprema, como que definitiva, última, completa. Assim pensando-sentindoacreditando,
deixar
essa
casa
equivaleria
amputar
uma
concretude
imprescindível e relevante de meu sentido existencial. Sair dessa casa corresponderia abortar meu sonho de morrer em nossa cama cor de marfim. Perder essa casa seria o mesmo que me perder, sem esperança, às vésperas do inexorável crepúsculo. Afinal, eu me encontrei nesse lugar.
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Felicidade. Com mais freqüência nas frases de final de ano, a palavra felicidade até parece que ganha substância inquestionável. Aliás, há quem a suponha entidade que subsista em si e por si mesma, podendo ser conhecida, ou conquistada, ou doada, ou prometida, ou... Também há quem considere a felicidade uma idéia, um valor, um desejo..., que se relaciona às coisas reais. Portanto, não haveria a felicidade no sentido substantivo real e sim realidades adjetivadas como felizes por causa de certas propriedades afeitas a idéias, valores e desejos. Logo, enfatizando, essas coisas felizes assim o seriam quando e porque derivadas de casos e causos de fato felizes. Com um detalhe importante: a definição do que viesse a significar feliz escaparia a toda e qualquer redução conceitual. O contorno da idéia, do valor e do desejo compatíveis a feliz se ajustaria a tantas quantas formas culturais fossem possíveis criar. No contexto de mo(vi)mento de te(n)são exposto ao longo desse passeio, alguns fatores comparecem na consideração sobre a felicidade, segundo e conforme a peculiaridade de cada condição corpoética. A começar, com o reconhecimento que o corpo faz de uma polaridade inescapável: o que quer que signifique ser feliz só o será por diferença efetiva ao que se pensa-senteacredita por infeliz. Noutros termos, a corporeidade consagra o que é ser feliz porque também execra o que é ser infeliz. A dialética insolúvel entre essas experiências concretas possibilita alguma abstração sobre o que significa a tal felicidade. De modo muito mais comum, essa dualidade é encarada pelos corpos como oposição excludente: feliz ou infeliz. Uma coisa ou outra; não ocorrendo uma coexistência jamais.
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Um pouco menos comum é a perspectiva corpórea de composição justaposta, aditiva: feliz-e-infeliz. Admite-se uma somatória de vivências inseparáveis. Uma coisa acontece simultânea e necessariamente com seu contrário. Bem restrito é o ponto de vista da corporeidade que equaciona suas linhas como que por reflexo quase puro e simples: feliz/infeliz. A imagem de uma coisa está na representação da outra. Mesmo que polarizadas, não são rigorosamente antitéticas. Tudo se resumindo em posicionamento; ângulo de visada. De maneira menos usual também essa dupla de polos é tida pela corpoética como que portadora de uma complexidade completa e complementariamente inclusiva: (in)feliz. Uma coisa está na outra desde a interioridade de ambas. Em lugar do espelho recorre-se a uma mandala. No seu virar e revirar, ser feliz é ser infeliz e vice-versa desde a gênese até a eventual revelação mais exaustiva possível. E particularmente, ao sabor discutível desse tecelão (... e, por certo, em nome de uma diletante e pretensiosa escrita metida à barroca) ainda acho que vale a pena brincar com essa polarização. Nesse jogo literário trapaceio conceitos e signos. Grafo uma palavra em estranhamento à outra. Imagino que coisas, casos e causos se entranham melhor...; antropofagicamente. Aquilo que significa dentro de uma negatividade (in), eu deixo fora e anterior à chave hermenêutica do real. Nesta confiro como se confina a prevalência da infelicidade do fel a parir a fé como festa feliz na fresta de uma piscadela apostrofagada. Na teimosia inventiva vingo com a marca da cultura a bolinar – enquanto posso – a imbatível natura. E como excesso beirando abuso aposto no âmbito posterior do túnel verbal uma luminosidade que, pronuncio à moda germânica, e assim recupero a fonética de uma sílaba lusitana no termo do termo em questão: in~fe’l~lüz.
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Obstáculos emocionais. Por entre caminhos naturais e culturais de cada condição peculiar do corpo muitos obstáculos comprometem a emoção corpoética com sutis artifícios, quase
imperceptíveis.
São
obstáculos
dotados
de
versáteis
recursos
camaleônicos, afeitos a camuflagens. A grande e nefasta importância desses obstáculos decorre justamente por funcionarem contra a corporeidade enquanto sugerem defende-la. Custoso serem desmascarados. Identificá-los e contorná-los requer perspicácia e coragem. Qualquer resquício de ingênua e obtusa timidez conserva esses obstáculos bem velados e mais eficazes. Em uma de suas versões, os obstáculos se constituem como filtros através dos quais o corpo pende a interpretar fatos e pessoas, segundo acentuada redução subjetivista. Para além da parcela de hostilidade inerente à vida, essa corpoética negativa e emocionalmente tendenciosa insiste na hermenêutica baseada numa perspectiva conspiratória: ressignifica fatos e pessoas que desagradam como se fossem fatos e pessoas com intenções malevolamente adversas e atentatórias: aquilo que seria para tal corporeidade um problema em-si é redimensionado como sendo um fato consumado contrário-a-si. Com isso sempre fica faltando o benefício da dúvida. Em outra de suas versões, os obstáculos resultam de traumas não submetidos a crivos e critérios mais trágicos. Subsiste uma dramaticidade emotiva voluntariosa e com teimosias crédulas: os desencantos sofridos desembocam no ressentimento e não na constatação do inexorável. Assim, sobrevive como déficit o não reconhecer a corrupção fundamental: o pútrido corpóreo sem disfarces perfeitos e sem saídas irrepreensíveis. Essa emoção corpoética estéril não consegue apelar para uma perplexidade criativa e generosamente cínica. Talvez uma alternativa assim evitasse a vingança inócua e inaugurasse variantes
desesperançadas-e-recreativas.
Afinal,
os
eventuais
lenitivos
corpoéticos são aqueles que compõem com argúcia e arte uma segunda pele sobre as misérias dos substratos terríveis da existência.
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E em outra de suas versões, os obstáculos na emoção corpoética se nutrem de uma desconfiança amarga – recorrência da situação em que mágoas (em tese, justificáveis) não lograram algum tipo de superação. Assim, desconfiar sempre é o mesmo que sempre estar longe de uma entrega desarmada e inocente (sem dúvida, perigosa e frágil). Daí parece que soa mais seguro uma mentira que precisará de outra, de mais outra e de outra mais..., numa sustentabilidade forjadora de máscaras inautênticas – personificações da máfé, redutos de uma pseudodefesa. Com efeito, essa aderência à mentira aprisiona tal corpoética no pântano pegajoso da dissimulação, mediando o medo à vazante. Também outra versão desses obstáculos diz respeito ao emocional corpoético que evita, resiste e se abstem de felicitações aos seus amigos e aos seus familiares mais próximos quando o bem-estar ou o sucesso deles ocorre sem sua direta iniciativa, intervenção e influência. Nesse âmbito mais íntimo, a corporeidade emocionalmente desequilibrada imagina que a alegria de quem ama deveria estar sob seu poder, controle e monopólio. Ou seja, há um obstáculo emocional severo para essa corporeidade aceitar, apoiar e aplaudir parentes e pessoas queridas em posse e desenvolvimento de suas autonomias. O que prevalece é um egoísmo exacerbado que pontua, com ironias ou cobranças, reações negativas às experiências felizes de amigos e familiares. Esses, então, dado o risco de serem incompreendidos e desqualificados, se sentem tolhidos e reticentes para compartir seus legítimos prazeres. Ainda outra versão desses obstáculos dá conta da suspeita autocomiserativa. A imagem que a corporeidade constrói de si nesse caso é parecida a de alguém que carece de atenções, cuidados e zelos. Essa lacuna emocional advinda de feridas não cicatrizadas deixa tal corpoética exposta a uma fantasia de pessoa não querida, mal amada. Por mais que seja agraciada (... e ser agraciada é diferente de ser reconhecida por seus méritos) ainda lhe sobra um enorme e perene vazio que clama e reclama por carinho, ternura etc. Daí, um apego exagerado a supostos direitos e alegadas justiças serve como feitiço para esse
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corpo que padece de autoestima emocionalmente imatura. Faz parte desse equívoco bloqueante uma emoção cega quanto àqueles fatos da existência mais nua e crua. O que esse “eu” acha conta mais do que o que é mesmo. Há uma confusão entre os aspectos inerentes ao nascer/viver/morrer e seus contornos adicionados e anexados pela cultura. Daí o paradoxo: aqueles parecem subsumidos por estes. Daí clama-se por plenitude o que nunca se sacia: o desejo. Daí a falta de melhor percepção do acaso, do absurdo, da surpresa, do humor, da vulnerabilidade, do mistério...
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Devaneios e desgraças. Com lápis de cor ou no lapso das cores, a cada quantum da concretude corpórea, incontáveis abstrações são criadas pela corpoética. Poros e pêlos, ossos e órgãos, sangue e secreções, desejos e demandas percorrem praias e planaltos inventando trabalhos, linguagens, conhecimentos, artes etc. Significados práticos, políticos e poéticos não cessam de surgir; afinal, não satisfazem por completo. Ainda sobram vazios semióticos. Noutros termos, desde hormônios sintetizados e próteses ciborgânicas até esoterismos em voga ou becos agnósticos, o corpo devaneia sem porto confiável. Sua cabotagem, replicando instabilidades de percurso, embrulha, embaralha e embaraça pacotes de reticências. Endereços imaginados por desejos não encontram vielas de destinos, salvas mediações com deleites. Um escambo mercadeja ilusões via desencantos. Com efeito, há muito mais coisas ao léu da serra quando a insônia da lua sua lã desfia. O mistério conspira e desaloja sonhos, e senhas invocam fantasmas da névoa a esbofetear madrugadores obcecados por seguranças solares. Assim parece que nem sempre lucidez e razão têm competência para explicar e,
menos
ainda,
justificar
desnorteamentos
intempestivos.
Nessas
circunstâncias, com suas complexas dimensões, a corporeidade faz emergir surpresas concebidas pelos meandros sombrios de suas paixões. E daí, por conta de uma fração mínima e distraída da hora, toda corpoética mergulha em prejuízos irreversíveis. Nessa perda, despesas materiais resultam irremediavelmente inócuas; possibilidades de escolha ficam definitivamente castradas; sentidos para a existência acabam tragicamente rotos. Quase involuntária, uma dor faz doer mais ainda. E assim, uma realidade se desgraça em tristeza.
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No desgosto da renúncia. Quando a desconfiança se apossa de um coração, todo seu corpo se apressa a espalhar armadilhas. Por ironia, a cada avanço fica maior o abismo; e a angústia se afirma soberana. Daí sobra renúncia à felicidade. Quando diante de determinados fatos a corpoética agoniza, ela se vê condenada a algumas alternativas jamais desejadas, alheias aos deleites e contrárias às predestinações. A princípio são alternativas excludentes; mas eventualmente complementares. De qualquer modo, em cada caso, com efeito, sempre uma nova renúncia. Quando ridiculamente patética, a alternativa do tudo-bem abre mão da dignidade... Quando friamente técnica, a alternativa do nada com nada se despede da persistência... Quando estrategicamente política, a alternativa do risco absurdo abole a segurança... Quando esteticamente artística, a alternativa do sublime e estranho dispensa o aprazível... Porém, contudo, todavia, quando suprema e completamente pnêumica, a alternativa do incondicional renuncia à própria desconfiança.
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Ora ora, pois pois! A materialidade corpórea, desenhada pela psique e vocacionada pela pnêumica, responde e corresponde aos valores e criações das circunstâncias. Ortega y Gasset, nesse sentido, foi um exímio comentador dessa invencível e infinita tourada no cotidiano. E nessa arena sangram saudades e sonhos. A corpoética é seu mo(vi)mento de te(n)são circunscrita pelo tempo histórico e pelo fluxo das contradições que potencializam e que aniquilam. Cada corpo sabe e sente as dores e as delícias que caetanam os sustenidos e os bemóis da existência. No mais das vezes, ilusões e desencantos pautam sábados e domingos com gosto de quaresma. Aceitemos ou não, o desassossego corpoético desmascara quem quer que seja. Mesmo que o somático corpóreo figure a flanar em uma cidade luz, seus sentidos vitais e até seu sentido para a vida soçobram entrevados. É como se nas passagens benjaminianas veraneios charlatões encanassem flores do mal. Ora ora, pois pois! Na corpoética não há só ares físicos. Afinal, cada corpo bernarda sua pessoa infernando fragmentos caóticos em metafísicas quânticas. E o desembarque de si é impossível.
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Palpites de almanaque. Arrisco opinar sobre alguns detalhes relativos à falta, ao perdão e ao sentimento de culpa. Antes de tudo e com ênfase alerto que são observações desprovidas de rigor e autoridade. Apenas derivam de precárias e provisórias reflexões diante de experiências no cotidiano. Portanto, antecipadamente peço caridoso indulto a quem me acompanha até aqui nestas páginas. Aproveito e aviso que novamente tento articular a corpoética em suas dimensões já apresentadas. Isto é, nos parágrafos seguintes abordo esses temas (falta, perdão e sentimento de culpa) no conjunto do meu referencial de corporeidade: sublinho ligeiramente o que possa ser peculiar e histórico de cada corpo; suponho como alguma pessoa talvez interaja a partir de valores, voleios e vazios; indago quando e quanto uma subjetividade corpórea venha, quem sabe, criar seu sentido pragmático e/ou existencial. Então, vejamos... Às vezes, a distância entre uma falta e quem a comete pode ser imensa, ainda que ação e agente estejam imbricados. Nessas eventualidades tal distância pode ser percebida se houver lucidez para distinguir fatores complementares: de um lado a intenção mobilizadora do agente, e de outro lado uma possível conduta condicionada pela coação, pelo constrangimento, pelo delírio, pelo inconsciente etc. Há casos em que uma falta atrai, sem dúvida, reprovação, repúdio e repugnância; contudo quem a cometeu não teve o intuito de ofender e nem ficou feliz ao magoar sua vítima. Dessa maneira, o culpado fez o que fez sem dolo, sem má-fé contra quem sofreu sua ação. Caracteriza-se assim a particularidade da falta, passível de punição, sem macular a totalidade do caráter do faltoso, cujo nome não caberia, portanto, ser difamado. Às vezes, uma falta não é punida porque quem a sofreu perdoa o faltoso. Esse perdão não é efeito de justiça e sim um ato de amor. Logo, penso que devo distinguir os termos justiça e amor. A justiça opera entre as alternativas do mérito e do demérito, bem como sentencia consequentes honras ou penas, conforme definições morais construídas e consagradas no âmbito de sua
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cultura. Além disso, o que é aceito como justo também resulta da mais equilibrada e da melhor medida entre os pesos da falta e da reparação da falta, sob a tutela do direito instituído e apoiado pela força à disposição da lei. Já o amor segue outro caminho; tem ciência nítida e crítica da falta e do que esta implica, porém troca a justa pena pela incondicional absorção da perda e do prejuízo causados pela falta. O amor age por generoso transbordamento; ultrapassa os limites da justiça e se derrama em prol do faltoso. Essa escolha amorosa se justifica na subjetividade daquele que ama, pois o perdão é primeiramente um sentimento intraduzível. Nem mesmo o faltoso perdoado supõe tudo o que move e comove o coração de quem lhe perdoa. Enfim, para ilustrar, o perdão lembra uma agulha palestina, um pequeno acesso em muro de pedras, com tabuletas de entrada e saída em suas guarnições contrapostas. Placas de portal, molduras para a mudança. De um lado o perdão convida: “vem passar”; de outro, está o alívio: “passei”. Como entrada, o perdão é oferecimento da vítima. Como saída, limpa a consciência do faltoso. Às vezes, o sentimento de culpa subsiste na consciência de quem cometeu uma falta, apesar do perdão garantido pela vítima. Ou seja, o perdão do outro não equivale ao perdão que o próprio faltoso também pode e deve dar a si mesmo. Sem dúvida, não é automática a correspondência entre ser perdoado e se perdoar. E nesse quadro, o profundo desconforto de quem não se perdoa raramente fica superado com o transcorrer do tempo e com a aplicação da paciência. Talvez o terrível mal-estar continue acontecendo por conta da manutenção do contexto em que a falta ocorreu. Quem sabe, esse contexto brotou de uma emoção, em si, inocente; mas, como conduta, colheu um fruto contaminado e comprometido pela falta. Não se desvencilhando do contexto/comportamento específico gerador da falta, com efeito, o culpado não
consegue
perdoar
a
si
mesmo.
Sempre
que
se
encontra
na
situação/conduta que demarcou a falta, o sentimento de culpa se manifesta novamente como trauma. Assim como cada cenário suscita um sentimento, o cenário da falta remonta o sentimento de culpa. Portanto, uma consciência que não se cauterizou, que ainda é sensível, que se arrependeu da falta
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cometida também precisa se livrar de algum detalhe que provocou sua falta. Daí, mais que a pílula da paciência aviada pelo dito popular, quem ainda não se perdoou e que deseja realmente se perdoar talvez deva fazer todo esforço necessário para se desembaraçar daquilo que continua lhe aprisionando: determinado vínculo que o prende ao âmbito específico da conduta faltosa. Em suma, o que o perdoado convém perceber é a fronteira entre o lícito e o ilícito de outrora, e perguntar a si mesmo se deseja assumir adiante apenas o que foi lícito. Há que se inquirir, afinal, quanto os cordões afetivos fizeram e fazem laços corrosivos. E provavelmente a resposta virá no espelho de uma coragem iluminada pela esperança de reencarnar alguma paz.
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Silêncio. Do muito que pude admirar em meu pai, reconheço quanto ele tinha o dom do silêncio. Como ninguém é perfeito, adianto que este encômio pretende elogiar aquele silêncio que julgo merecer louvor. Quanto ao que possa sofrer desabono, por razões e sentimentos óbvios, também guardo meu silêncio. Um traço do silêncio de meu pai delineava generosidade. Lúcido, tinha um senso de conveniência sobremodo apurado e pragmático. Sem cair no mutismo conivente, seu silêncio com freqüência resultava de uma boa percepção de circunstância e oportunidade, e alcançava conseqüente vantagem. No referencial corpoético, esse silêncio significava a materialização ética e poética de um corpo capaz de articular com algum êxito suas peculiaridades e seu mundo mais próximo. Outra faceta do silêncio de meu pai era emblemática. Dotado de bela voz, tendo inclusive gravado um disco em 78 rotações há mais de sessenta anos, fez uso de sua oratória com algum brilho em suas funções de pregador e professor; contudo, o silêncio simbolizava mais sua pessoa. Especialmente nos momentos de maior sofrimento e angústia seu recurso ao silêncio era exemplar. Muitos que conviveram com ele ficaram marcados pela eloquência desse seu texto não verbal. Agora definitivo, o silêncio de meu pai ainda sinaliza fecundidade. Diante de seu cadáver e presente em memória, provocações povoaram lembranças, suscitaram e continuam a brotar imaginações. No cemitério lembrei com saudade seu assobio; era afinado, firme, gracioso. Também diante do caixão, amigos e parentes traduziam seu silêncio fúnebre em expressões de fé. E quanto mais nos afastamos daquele domingo de carnaval de 2010 em que foi sepultado, mais colhemos de seu silêncio nossas melhores fantasias.
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It no poslúdio
Justo num domingo. Na véspera lhe faltou fôlego e como em noventa e tantas vezes foliões esperaram o destaque da avenida. Em vão. Mesmo assim, unidos das outras Escolas cantaram enredo de mistérios e fé sem cuíca, surdo e tamborim. Justo como ele viveu.
Historicidade
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Proximidade e distância. Quando o corpo aporta na linguagem humana, aos poucos ingressa no mundo das representações. Prática e irreversivelmente torna-se humano. Assim, história e cultura moldam sua passagem à corpoética. Antes disso as coisas nem eram notadas como coisas. Não eram nada, apenas existiam. Após esse batismo de signos as coisas passam a ser mais que objetos para sensações; são percebidas em códigos, fazem parte de uma visão de mundo. Enfim, as coisas recebem revestimentos de realidade, ganham reapresentações culturais e históricas. Desse modo, via linguagem, as coisas deixam a condição de apenas coisas, de coisas literalmente insignificantes. As coisas, então, ficam complexas, passíveis de significados; são percebidas como representações de elementos materiais, de feitos artificiais, de construtos ideais, com valores e sentidos... Também são percebidas como representações relacionadas a personalidades, biografias, mistérios... E mais, em cada representação geralmente o corpo percebe estar próximo ou distante tanto no tempo quanto no espaço em relação às coisas mesmo e aos outros corpos com suas coisas. Nesse rito histórico de iniciação cultural da corpoética os significados de proximidade e distância são bastante simbólicos, principalmente quando e onde o corpo deixa de perceber apenas a opacidade da coisa e a transcende; parte da coisa e chega ao caso. Essa ultrapassagem oportuniza à corporeidade experiências mais agudas para viver sua condição humana. Daí, a presença ou a ausência das coisas são vivenciadas como linguagens em seus casos econômicos, políticos, formativos, morais, afetivos, estéticos, lúdicos etc., entre si relacionados conforme variados liames. Como ênfase, repito: a mais intensa complexidade de cada caso (em especial, por conta da proximidade e da distância) refaz e ressignifica a aparente simplicidade da coisa. E julgo que é no plano afetivo que ocorrem os casos de maior densidade da corpoética envolvendo as referências da proximidade ou da distância. E sobre isso passo a considerar três detalhes interconexos.
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Por causa de alguma opção, de alguma circunstância ou de algum óbito, o que significam perto ou longe, vigente ou inatual, não se excluem na afetividade corpórea. Entendo que podem ser até contraditórios e, ainda, mesmo assim, coerentemente contraditórios. Daí, por conseguinte, desde seu ápice de êxtase até seu abismo de angústia, a experiência afetiva corpoética autentica a distância e a proximidade como casos existenciais sobremodo relevantes e decisivos. No âmbito afetivo, proximidade ou distância não se restringem à categoria do tempo; elas convocam a temporalidade, uma história. Também não se limitam ao registro do espaço; elas anunciam a espacialidade, uma perspectiva. Pelo afeto (... bem como pela falta ou perda de afeto) uma situação no espaço e um momento no tempo constituem para o corpo um caso de representação aquém, além ou indiferente às coisas mesmo. Por exemplo, um corpo que perdeu um ente querido, sepulto em outra parte, depois de muitos anos ainda pode sentir afeição, como se esse passamento pudesse ser substituído por alguma representação presente (... nos dois sentidos: presente no tempo e presente no espaço). E se na radicalidade extrema da afeição relativa ao corpo que morreu proximidade e distância ocorrem como casos codificados independentemente das coisas, também é notável um jeito semiótico específico nas situações afetivas históricas resultantes de escolhas e contingências. Para quem nutre afeição por outra pessoa, sua ausência ou demora não desfazem sua presença e sua pontualidade no coração amoroso. Por outro lado, postar-se junto a um desafeto suscita imediatamente na corporeidade desejos de exílio e esquecimento. Em suma, se no geral das representações uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, no picote histórico da dimensão afetiva corpoética proximidade e distância tornam tudo mais irredutível ainda: cada caso é um coiso crasso.
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Nomeação. Simultâneo à sua capacidade de trabalho, o ato de nomear é uma característica predicativa fundante da corpoética como cultura, como história. Parece-me não haver dúvida: fazer com intencionalidade o que quer que seja e representar o mundo das coisas, dos casos e dos causos com inúmeros símbolos constituem a marca e a diferença destacadas da condição humana. A importância dos nomes dados também está relacionada, portanto, à possibilidade de levar a cultura ao seu estágio comunicativo. Ou seja, desde que haja um acordo mínimo entre os corpos quanto aos nomes que inventam está próximo um precário-porém-pragmático consenso histórico sobre a sensação e a percepção de coisas, casos e causos... Outro fato notável é que a partir de seus nomes tudo fica como que portátil. Quando um nome é pronunciado ou escrito, aquilo a que ele se refere se apresenta à mente dos que o escutam ou leem. Com efeito, mediante a nomeação todos os detalhes do mundo cabem em palavras faladas ou escritas. O nome, portanto, é uma ferramenta historicamente mágica na experiência cultural da corporeidade: um instrumento que passa a refazer o mundo e a refazer os próprios corpos. E esse mundo refeito é novamente nomeado e assim se move a história da cultura. Portanto, ao nomear, o corpo experimenta um nexo adicional entre o já existente e aquela representação que está surgindo. Em suma, para a corpoética, sempre um nome é mais.
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Origami de-mais. A propósito das dobras corpo/nome/coisa/caso/causo/mais (vincadas na plataforma anterior) vou agora adicionar/agregar/ampliar o sentido do advérbio mais. Sugiro toma-lo como acróstico relacionável à realidade processada pelo corpo: movimento, arte, idéia, sabor. Portanto, para cada letra desse mais procuro mais um jeito de renomear fenômenos históricos de cultura que intensificam, adensam e tensionam o viver corpóreo. Vida é movimento. E movimento é um nome dado àquilo que altera a realidade/corporeidade. Às vezes, um movimento regular e repetitivo; outras, um movimento aprendido e habitual; ou ainda, um movimento fortuito e descompassado. Movimentos do coração, da linguagem, do imponderável... Também é movimento a mudança nas maneiras de viver historicamente: da mesmice para o novo (e vice-versa); do seguro para o arriscado (e ao contrário); da indiferença para o compromisso (e pela via oposta). Vida é arte do movimento no movimento das artes. E arte é um nome dado àquilo que recria a realidade/corporeidade. Desde o seu significado como técnica, ciência, recurso, até seu entendimento como obra dotada de sentido em si mesma, a arte qualifica a vida, projetando-a para além dos limites do natural ou do histórico. Sempre que alguma arte é produzida, a natureza das coisas e a historicidade dos casos e a fantasia dos causos se revestem de artifícios reinventores do próprio artista e dos que são alcançados por sua expressão. Para cada arte na vida uma idéia emerge como imagem. E idéia é um nome dado àquilo que contempla a realidade/corporeidade. Aliás, parece razoável imaginar que as idéias não têm vida própria; vivem enquanto vivem os corpos que as engendram e outros que a alimentam. A variedade de idéias, assim, deve ser tomada como chance privilegiada de cultivo da vida. Sem dúvida, oportunidades imperdíveis podem estar camufladas em nuvens de abstrações.
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Ou seja, abdicar do encontro histórico com as idéias é renunciar à vida civilizada e se esconder na caverna da barbárie. Enfim, o saber das idéias movimenta o sabor das artes. E sabor é um nome dado àquilo que imediatiza a realidade/corporeidade. Desse modo, convém suspeitar: o sabor não deve ser refém do saber. Um conceito por melhor que seja não circunscreve a qualidade do sabor. Saborear os movimentos, saborear as artes, saborear as idéias... Em síntese, esse saborear também equivale a um princípio irretorquível e excepcionalmente imune à história e à cultura por um ínfimo lapso: sabor como primeiridade: sensação e sentimento; sabor como experiência do que palpita e pulsa na presentidade.
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Concretude das horas. O cotidiano é um conjunto de coisas e símbolos, entre si relacionados, dos modos específicos de organização do fazer, do crer e do sentir que constituem a corpoética. É um todo de acontecimentos tanto históricos como casuais e mutantes no qual a justaposição, a composição e a oposição das partes não são percebidas pelo olhar despido de algum rigor crítico. O que está na cara constantemente mascara a historicidade, a contingência e a mudança. O diaa-dia representa esse todo cuja obviedade das partes (per se ou em conjunto) muitas vezes obnubila explorações, fetichizações, alienações, invenções, superações, satisfações etc. Mediante alguma criticidade, a corpoética percebe os movimentos do fazer, do crer e do sentir tendentes a totalidades contraditórias. Essa percepção suscita constatações, questionamentos e hipóteses. Nos inesgotáveis projetos, processos e produtos do capitalismo ou demais sistemas econômicos..., nas construções simbólicas das inumeráveis religiões e ideologias..., e também nas infindáveis diversificações de valores e práticas interpessoais e intersubjetivas..., as totalidades são incapazes de controle absoluto. A corpoética desconfia, interroga e confirma, portanto, que o cotidiano apresenta contradições a escorrer diferenças por entre os dedos. Essa abstração corpoética a partir de sua concretude redimensiona uma idéia: a mesmidade do cotidiano não é, reduzida e necessariamente, sua mesmice. Com efeito, o cotidiano abarca a mesmice, sim; entretanto, esta não tem aquele como refém. A diferença também está no cotidiano e o cotidiano é, mesmo, uma sucessão de diferenças... Diferenças somáticas, pnêumicas, psíquicas, econômicas, políticas, simbólicas etc. O que a corpoética faz, crê e sente no seu cotidiano é variado; também variação; e ainda, variante. No cotidiano a corpoética vivencia seu momento e seu movimento, imbricados e passíveis de interferências: mo(vi)mentos.
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Quando. Se a mesmidade do cotidiano não é, reduzida e necessariamente, sua mesmice, como a corpoética se supera? Criticidade e criatividade são, pelo menos, as maneiras do corpo viver seu cotidiano, reposicionando-se como expressão de movimento vital. Essa criticidade implica o uso de critérios específicos para analisar os fenômenos, tomando-os como passíveis de perspectivas plurais. As coisas, os casos e os causos não são o que são naturalmente; mas sim, culturalmente. Há toda uma historicidade a determinar, em grande medida, coisas, casos e causos. Significação. O que historicamente se constitui, não o é por si mesmo. Sua mesmidade (ipseidade) comporta uma genealogia. Fatores específicos foram e são muito determinantes para a constituição do cotidiano. Contemplados e criticados, esses fatores podem ser mantidos ou trocados. A mesmice só se estabelece quando a manutenção do mesmo se furta ao exercício crítico. Ou seja: quando coisas, casos e causos se repetem sem o crivo de uma corpoética lúcida e consequente, o mesmo se repete deixando o corpo medíocre. Por outro lado, um mesmo pode até se manter, de forma criteriosa, elevando e revelando a posição viva do corpo no seu momento histórico. Há, com efeito, nessa manutenção crítica uma criatividade, pois o mesmo nunca o é absolutamente. E a intervenção corpoética, ao relativizar o mesmo, mantém a mesmidade como cultura histórica. Também a criatividade funciona como recurso para se t(r)ocar o mesmo. Nesse aspecto, a ipseidade é poietizada; a mesmidade é mais revitalizada. Noutros termos, poiesis implica criação; invenção do outro, da alteridade; cultivo da alternativa para coisas, casos e causos: outras coisas, outros casos, outros causos. Assim, a criatividade corpoética toca os fenômenos do dia-adia e troca o mesmo; transforma o cotidiano em projeto. Portanto, o corpo lançando adiante mesmidades desvencilhadas de mesmice, poetiza um presente para o presente: autogratificação da criticidade criativa.
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Tempo e temporalidade. Num belíssimo texto, “Caminho do campo” (Der Feldweg – 1949), Heidegger lembra a antiga ocupação cotidiana de seu pai com o relógio do campanário e com os sinos. Destaca que esses mantinham, respectivamente, vínculos específicos com o tempo e a temporalidade. Ou seja, seu pai cuidava de uma contagem mercê da natureza, e sacralizava uma fabulação cúmplice dos símbolos. Ao patamar do senso comum a idéia de tempo não tangencia o que possa provavelmente apostar a melhor ciência sobre esse fenômeno. Contudo, diante da variância de dias-e-noites, de fases lunares ao longo dos meses, de estações anuais etc., o corpo tem uma percepção que possibilita inventar categorias para o tempo. Assim a cultura cria cronômetros e calendários. Quando (... Ah! Esse enigmático advérbio) são agregados valores mais sutis, sedutores ou sublimes, essa sensação corpórea do tempo ganha status de temporalidade. O revestimento de cultura reordena a natura, como se isso fosse possível; um arranjo cosmético tenta domesticar o caótico. As horas viram situações e as datas enquadram sentimentos. Por isso, eventualmente um ponto na ponta do ponteiro para o tempo (seja no relógio de sol, de corda mecânica ou de programa digital) talvez condense alguns predicados que apenas um conjunto de expressões quase sinônimas representa: momento apropriado, oportunidade inadiável, instante definitivo. Fértil, chronos se abre à espera de kairós. É desse tipo de ponto que às vezes me valho nesse passeio. Tais pontos ocupam um espaço no painel da palavra até que alguma textura de linguagem lhe tome o lugar. Mais que meros pontos no tempo, são pontuações latejantes para a temporalidade desse livro-lúdico, desse divertimento literal. Passeios engendram, por ocasiões, cópulas entre signos.
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Passatempo. Convém considerar que no natural e histórico desgaste cotidiano, a corpoética toma o lazer como contraponto. Sim, como contraponto ao trabalho em sua acepção primeira: tripalium (três estacas dispostas para tortura). Aliás, quase como reflexo opressivo, o trabalho é outro nome para a negação ao ócio, para o negócio (nec otium), para aquela atividade realizada visando rigorosamente uma recompensa político/econômico/financeira. Estudos e pesquisas sobre o lazer têm aumentado em número e densidade. Lazer agora é assunto sério. Para alguns, sério demais; pois a indústria do entretenimento se expande com requintes terapêuticos, muitas vezes, discutíveis. Não raro, parece óbvio que o lazer figura como processo cultural permeado por manipulações que negam o seu étimo: licere (conforme Houaiss, no sentido de ser lícito, ser permitido, ter valor; derivado de lezer, que significa ócio, passatempo). Ou seja, o que deveria implicar liberdade, pode resultar em dominação disfarçada. Por outro ângulo, o lazer como ócio é a oportunidade do corpo fazer (... e até nada fazer) por pura gratuidade, sem segundas consequências necessárias. Equivalente ao desfrute da liberdade, essa permissão ao ócio responde às possibilidades do corpo em sua maneira específica de ser, dentro de uma estrutura histórica e mediante artifícios criativos. Assim, lazer para a corpoética é alternativa ao pau-de-arara do dia-a-dia. Diante dos armários que engavetam compromissos tendentes a resultados claros e distintos (de resto, imprescindíveis à sobrevivência), o lazer corpoético passa graciosamente desnudo, sem bolsos e fivelas onde prender finalidades consagradas pelos sistemas. O lazer como ócio é fim em si mesmo. Seu interesse tem nuances de enquanto. Vale enquanto passa. Passatempo.
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Carlitos. Dentre as obras-primas do fabuloso Charles Chaplin, uma película toca em especial a questão da corpoética e o poder ideológico no contexto do sistema capitalista. Trata-se do filme produzido em 1936: Tempos Modernos. Personagem carismático, Carlitos aparece inicialmente trabalhando numa fábrica sem que nos seja informado seu produto final. Assim como Carlitos permanecemos alienados. Ademais, nessa fita cinematográfica exemplar, em meio a outras, também há sequências — como as editadas dos nove aos treze minutos — que ironizam a ideologia que preside a eficácia capitalista no processo industrial que violenta a corporeidade. O ambiente na referida cena é uma fábrica testando um lunch service automático junto à sua linha de produção. Diante de uma esteira rolante está o lírico e desajustado Carlitos, então como cobaia na experiência com o tal aparelho para almoço. Acoplada à parafernália eletromecânica está uma bandeja giratória dotada de um programa que providencia alimentos (sopa, barras de proteínas, milho cozido e sobremesa) diretamente para a boca de Carlitos. E pretendendo que o serviço de abastecimento para o corpo resulte mais adequado, o invento de um fantástico J. W. Bellows também está equipado com um guardanapo que cumpre sua função sempre que necessária à finesse da circunstância. Porém quando uma pane tecnológica atinge o lunch service, Carlitos passa a ser submetido a equívocos grosseiros e indiferenças típicas do hábito explorador, ficando evidente seu papel de corpo vítima de reificação. O que antes e apressadamente podia parecer privilégio é agora desmistificado. A tortura se acentua e o trabalho como tripalium se explicita. Até o guardanapo perde sua máscara; deixa cair sua aparência promotora de delicadezas e assume seu jeito insidioso e brutal. O rosto de Carlitos é golpeado insistentemente até sofrer um knock out. Afinal, mais cedo ou mais tarde a ideologia acaba mostrando a que veio.
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Assim sendo, o guardanapo tecno-ideológico se presta nesse filme para ilustrar uma contradição na corpoética: como um instrumento atende tanto aos valores mais requintados quanto aos mais abjetos. E o limiar fronteiriço se dá e se constata segundo interesses e eficácias dos corpos em seus contraditórios jogos de poder. Em suma, se diante da arte desse mestre do cinema as reações são geralmente de risos, esse humor contém uma força ainda mais importante e contraditória: fazer com que a hilária ingenuidade do personagem
venha
despertar
alguma
criticidade
compromissada
e
conseqüente no expectador. Ou como dizia Roland Barthes a propósito de Tempos Modernos em meados dos anos '50: ver alguém não vendo é a melhor maneira de ver intensamente o que ele não vê.
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Visada. Se a ideologia objetiva "naturalizar" uma história, pretendendo-a como expressão de necessidade inevitável, legítima... Se a ideologia forja e dissimula uma específica visão de mundo fundada e sustentada pelo fascínio do falso, pela violência do inescrupuloso... Se a ideologia fecha e totaliza a dinâmica das relações intercorpóreas, negando o possível e o externo a essa totalidade fechada... Ofereço, então, à maneira de aperitivo teórico e como exercício de valoração alternativa, uma hipótese, uma visada corpoética que estaria compromissada com alguns interesses e procedimentos de afirmação da concretude corpórea em suas complexas variáveis históricas. Repito: como conceito toda visão de mundo (Weltanschauunng) atende a uma totalidade
historicamente
constituída
e
sobremodo
propensa
a
uma
pseudonaturalização de seus princípios e resultados. Diferente de uma visão de
mundo
assim
construída
poderia
haver
uma
visada
corpoética
caracterizada por certa inclinação pelo respeito e destaque à particularidade. Nesse caso, especialmente por se tratar de uma percepção corpórea em seu mo(vi)mento de te(n)são, essa visada corpoética corresponderia a um ver em movimento, um ver em determinado momento, um ver assumidamente relativo ao corpo que vê; um ver impróprio à absolutização ideológica. Sem a ingênua ilusão de se supor uma contra-ideologia suficiente e plena (afinal, o corpo sempre está e se refere a um contexto cultural), essa visada corpoética implicaria uma abertura importante pelo simples fato de ser talvez original e inédita, de algum modo. Ainda que circunscrita e condicionada por toda a complexidade histórica, tal abertura poderia inventar uma brecha no cerco da totalidade, uma fresta no muro das ideologias, fazendo vazar outras perspectivas, outros pontos de vista desde situações corpóreas independentes ou irredutíveis aos valores consagrados de gênero, faixa etária, origem étnica, preferência simbólica, classe sócio-econômica, opção quanto à sexualidade...
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Nos termos de uma cromática, arrisco dizer que a ideologia e a violência não se explicam como cores que simplesmente se combinam, pelo contraste, no plano estático-estético (... como verde-oliva e amarelo-ouro, por exemplo). Quem sabe, melhor supor que a ideologia e a violência correspondam à variedade de subtons do branco; este sim, resultado da dinâmica cromática — só percebido na movimentação/mutação das diversas cores (como no disco newtoniano). Em palavras mais diretas: tanto a ideologia quanto a violência participam da construção cotidiana que tem a corporeidade como origem e destino, e estão, ambas (ideologia e violência), distribuídas de maneira explícita ou de modo dissimulado. Corpoética não é apenas uma sistemática teórica exclusiva para assinalar valores afirmativos; porém, reconhece as contradições da corporeidade, no mínimo, discutíveis. Conforme já expressei, a ideologia pode ser entendida (entre outros sentidos) como fascínio do falso. Com mais ênfase, reafirmo: trata-se da falsidade da idéia que toma o que é histórico como se fosse natural ou sobrenatural e que, por isso, deve ser aceito e mantido para um suposto bem comum dos corpos e do ambiente intercorpóreo. Concretamente, esse tipo de perspectiva perpetuadora, persuasiva e perniciosa só interessa àqueles corpos que não querem alterações substanciais nas circunstâncias de uma determinada configuração histórica de classe social, de crença espiritual, de costume comportamental etc. Enquanto a ideologia atua numa dimensão mais abstrata e sutil, a violência o faz de maneira mais concreta, vil. É ainda característica da ideologia o ser constante; já a violência apresenta uma especificidade mais incidente. Como no dito popular: se não vai por bem, vai por mal — ficando subentendida a vantagem do funcionamento preventivo ideológico, cabendo à violência uma eficácia substitutiva. Noutros termos, a violência sucede com sucesso ao fracasso da ideologia. Entretanto, é razoável considerar que além (bem como antes) da ideologia e da violência se completarem e se complementarem também se confundem: a ideologia é violenta, assim como a violência é ideológica.
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Assim, todo cuidado ainda é pouco. Nesse chão da história, com tanto pó a permear os pés da corporeidade, convém vestir as melhores...
Sandálias restos de memórias e teimosia gritos a ecoar bol$o$ sem arrimo e rumo janelas exibindo beleza crua de calosas desnudas signos da corpoética na cor, no pó, na ética das andanças firmeza flexível na arejada abertura do novo com reinvenções molduras para dolorida ranhura esculpida pelos tempos e espaços proteção pedestre desmascarando e dispensando necrófilas caronas molduras para dolorida ranhura esculpida pelos tempos e espaços firmeza flexível na arejada abertura do novo com reinvenções signos da corpoética na cor, no pó, na ética das andanças janelas exibindo beleza crua de calosas desnudas gritos a ecoar bol$o$ sem arrimo e rumo restos de memórias e teimosia proteção pedestre desmascarando e dispensando necrófilas caronas molduras para dolorida ranhura esculpida pelos tempos e espaços firmeza flexível na arejada abertura do novo com reinvenções signos da corpoética na cor, no pó, na ética das andanças janelas exibindo beleza crua de calosas desnudas gritos a ecoar bol$o$ sem arrimo e rumo restos de memórias e teimosia
Possibilidade
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Acaso e ocasião. Dentre outras acepções semânticas, o acaso significa aquilo que não pode ser previsto. Irmão do imponderável, nada lhe cabe responsabilizar; afinal, ele é inesperado, involuntário e incontrolável. Quando o acaso acontece, a corporeidade fica arrebatada, já sem chances de ter evitado sua ocorrência e ainda sem certezas quanto ao que possa suceder. Ou seja, de modo fortuito, o acaso acontece, simplesmente. Contudo, diante e a partir do acaso está uma responsabilidade inalienável, irrecusável e intransferível da ocasião corpoética. Constatado o imponderável do acaso, seguem-se ocasiões para acontecimentos desejados, calculados, consumados. As ocasiões resultam de intenções planejadas, com determinadas decisões morais, mediante ações escolhidas. Diferente do acaso, as ocasiões não acontecem simplesmente. O acaso explica e condiciona, porém não justifica nem obriga a ocasião. Pela ocasião se dignifica ou se danifica o acaso. Se a ocasião não existe sem acaso, por outro lado é a ocasião que legitima a existência corpórea. Se acaso é fator de origem, ocasião tem por função alguma originalidade. Se o tomar algum acaso como a ocasião necessária é má-fé, o fazer do acaso ocasião para corpoeticizar é assumir a angústia da liberdade.
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Benefício da dúvida. Como já foi referido noutras passagens, em seu arranjo sistêmico corpoética inclui uma imprescindível atenção voltada para a peculiaridade de cada corpo. Nesse aspecto reconheço o que há de inédito como cor em cada corpo — tanto no colorido somático e psíquico, quanto no coração emocional e cultural. Cor representa, assim, aquilo que é sui generis, inescapavelmente único de cada corpo. Aliás, lembro outra vez que nem mesmo gêmeos univitelinos são iguais como complexidades corpóreas. Portanto, cabe perguntar se são conceitos razoáveis igualdade e indistinção entre os corpos em sua concretude histórica. Lógico que para se constituir e se conservar, a sociedade humana pressupõe um mínimo de direitos e deveres comuns (iguais e sem distinção), com cláusulas coercitivas, cominativas e corretivas. Desse contrato social (sob o controle de um Estado) não há como fugir, senão pela via mais correta, superior e utópica da anarquia (ausência de dominação) que, por enquanto, é projeto pouco factível e menos ainda factual. Por outro ângulo, sem desconsiderar os dispositivos do Estado (inegavelmente também produção corpoética) e pelos escaninhos do cotidiano em que poderes apodrecem ilusões e suscitam poesias, a peculiaridade corpórea seduz uma eventual ética do benefício da dúvida. Com certeza, também nesse caso, uma valoração construída pelos corpos na informalidade dos domicílios e na trivialidade das esquinas afirma in dubio pro reo, ou seja: ao outro-corpo-sob-o-juízo é concedido um crédito preliminar que suspende momentaneamente convicções e critérios balizadores de acusações e condenações. Ainda que haja muitos riscos e prejuízos na aplicação do benefício da dúvida no dia-a-dia, algumas conquistas também ocorrem. Uma delas é o controle do
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stress, pois a subjetividade e a intersubjetividade corpóreas mantêm a tensão emocional em patamares mais administráveis durante a vigência desse benefício. Também é conquista importante nesse caso o reconhecimento da relatividade cultural das valorações, o que traz à moderação dos contrastes e conflitos intercorpóreos a presença determinante da tolerância. O benefício da dúvida ainda significa conquista pela oportunidade de revisão e possível confirmação dos valores, então sob as condições mais objetivas, mais próximas da frágil isenção desejada, resultando, portanto, em valores mais críticos e amadurecidos.
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Toque da sineta. Aproveitando os referenciais do módulo corpoética, lembro que o ingresso ou a permanência na vida acadêmica universitária implica complexidade, peculiaridade, historicidade, possibilidade, criatividade etc. Ou seja, estar em uma graduação e/ou em seus níveis mais avançados é, no mínimo, vivenciar corporalmente (de maneira presencial ou à distância) um processo de aprendizagem
organizado
conforme
projetos,
programas
e
planos
educacionais. E esse processo de aprendizagem afeta, desafia e altera parcial ou integralmente o viver corpóreo de todo o conjunto de atores no cenário escolar. O corpo que participa dessa experiência tem pele, pelos e poros colocados em tensões específicas decorrentes dos conflitos e/ou complementos que envolvem aquilo que é próprio e particular a cada corporeidade e aquilo que está no entorno cultural dessa mesma situação corpórea. Sendo assim, ficam relativamente franqueadas as possibilidades de conduta e condução sociais...; além de se oferecerem chances para criações em todas as esferas da abrangência acadêmica: estudos, investigações e serviços.
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Um ensino caleidoscópio. O caleidoscópio nasceu na Inglaterra nos primeiros anos do século XIX, mais precisamente em 1816. Seu inventor, Sir David Brewster (1781-1868), conhecendo grego antigo, uniu as palavras kalos (belo), eidos (imagem) e scopeo (vejo). Assim, caleidoscópio quer dizer vejo belas imagens. Já o ensino nasceu bem antes, muito antes. Nasceu com a cultura; é cultura. O ensino resulta de uma impressão de signos. É, sem dúvida, insigno, impregnação de marcas. Por conta do ensino também se forjaram políticas acadêmicas e pedagógicas com seus cursos, suas disciplinas, aulas, didáticas... No contexto da corpoética talvez o caleidoscópio se preste como emblema para uma sistematização de signos. Com seu movimento a ecoar invento, fragmento, deslocamento, aproveitamento, espelhamento, ondeamento, evento etc., o caleidoscópio ilustra como a corporeidade faz girar signos em sua poiesis. Na condição humana, a passagem da esfera natural para o âmbito da cultura não é automática. Ser humano não é necessário e nem preciso; é um caso confuso de liberdade. Sem linguagem e educação permaneceríamos bichos. Com elas, o melhor disfarce: parecemos gente. Valendo-nos do que a espécie possibilita e do que os signos representam, inventamos a nós mesmos. A grandeza da linguagem e da educação é também seu limite: os signos e o insigno representam e repõem pedaços da condição humana. Assim, a realidade e a totalidade são invenções apressadas e precárias de fragmentos que nem sempre a linguagem e a educação esgotam. Por isso, pedagogia se faz com esboços de trejeitos e lascas de desejos. Através da linguagem, a arte da educação é uma ciência; melhor ainda, uma sapiência. Haja vista que por certo, direto e reto só mesmo a morte, então a
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gente reinventa a vida deslocando fragmentos. Acima de tudo, pedagogia é excursão. Saída do curso. Teimosia rebelde. Desenho de um desvio. Curva ao sentido. Parábola. Distração que diz-trai o morrer. Adiamento da chegada ao fim. Na língua se sente o sabor. Na linguagem se sabe a educação. Desta faz bom proveito quem degusta leituras e experimentos como gomos de tangerina. Contudo, nem sempre a fruta é própria, acessível. Há que se recolher, pois, circunstâncias para arranjar nacos de banana-terra, abacaxi-water, mangafeu,
maçã-aire
etc.
Daí,
um
aproveitamento
melhor:
saladaula
antropofágica. A educação depende da imitação assim como narciso de sua imagem. O idioma da pedagogia se chama espelho. E pelas versatilidades das ópticas, são inúmeras as mímicas curriculares, inclusive as emancipadoras e instigantes. Afinal, sempre é bom lembrar que não há outro jeito da gente ser, conhecer e fazer senão pelos espelhamentos que nossas linguagens mediam. Teorias surgem, teorias somem. Didáticas vêm, didáticas vão. Currículos se sustentam, currículos se esgotam. Os ondeamentos pedagógicos não cessam de cumprir descobertas fantásticas e desatinos assombrosos. Gira a história e linhas educacionais se tensionam e se negam e se superam e se repetem e se rejeitam e se renovam e se acabam e se reciclam e se tensionam... Em meio a isso tudo..., ainda vemos belas imagens: uma aula como varanda arejada, quintal exposto, pátio aberto... Ainda vemos uma lição como leitura sedutora, escolha cordial, livre passeio de interrogações e reticências... Ainda vemos belos momentos de surpresas inesquecíveis, eventos pedagógicos preciosos,
raros,
caleidoscópicos.
gratificantes...
Corpoética
com
insignamentos
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Contentamento e deplorabilidade. Conscientes às vezes, intempestivas outras, vagas amiúde..., algumas práticas corpóreas configuram determinadas possibilidades éticas. Consoante o referencial dos conceitos deste passeio, quanto à ética, a rigor o que conta MESMO é a ação MESMO. Porém, no exercício teórico sobre a questão prática cabe pensar a ética supondo seus fatores de mobilização, necessariamente anteriores. Estes, talvez devam ser tomados, conforme já indiquei, como variações de valores, voleios e vazios. Por outro ângulo, a posteriori sobram os desdobramentos e as consequências das práticas da corporeidade. E abusando da repetição nesse tema, a ética sempre resulta em outras coisas, casos e causos. E comportam acerca desses resultados novas variantes lógicas, emotivas e imaginárias. Seja como for, o que pretendo destacar aqui e agora é um (relevante, porém não único) resultado da ação: a lembrança como termo da ética, como efeito do fato feito. Noutras palavras, sem levar em conta nessa abordagem o que coisas, casos e causos implicam concretamente, sublinho a instância abstrata da evocação da memória voltada para o ethos consumado. Se a ação recordada atualiza um sentimento indiferente, uma ausência de ênfase em qualquer direção psíquica, isso provavelmente possa ser situado em algum ponto intermediário entre afecções opostas. A gama do sentir-o-quese-passou se estende mui deveras e não sei detalhar e nem caracterizar com precisão e competência toda sua nuance. No entanto, ouso comentar um pouco sobre apenas duas maneiras desse sentir pós-ética: contentamento e deplorabilidade. Propositadamente, a escolha desses dois modos de sentir-o-que-se-passou não trata de situações rememorativas extremas e assimétricas; não é uma opção teorética sobre o que se localiza nas longitudes máximas do pêndulo das lembranças. Quem deplora e/ou se contenta com alguma ação efetuada assim
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o vivencia dentro de parâmetros relativamente serenos. No contentamento não ocorre o êxtase ao corpo, e nem na deplorabilidade o corpo é arrastado pelo remorso. Uma alegria por um lado e uma tristeza por outro comparecem confirmando à corporeidade sua porção de sentimento/pensamento em grau bastante suportável. Assim, há algo que o corpo nota com alegria ou com tristeza, entretanto tais experiências de totalidade não absorvem, não sugam, não exaurem o corpóreo de forma totalitária (... como acontece em outras circunstâncias). Contentamentos e deplorabilidades também não se reduzem específica e exclusivamente a este ou aquele contentar, a este ou aquele deplorar. A própria dinâmica existencial, mediada pela cultura, joga seus lances no tabuleiro dos símbolos. O que vale ou o que voleia ou o que vaga representam coisas, casos e causos que a corpoética pensa, sente ou espiritualiza em seus mo(vi)mentos de te(n)são.
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Fantasia ao fio da navalha. Dirigido por Ridley Scott em 1982 e considerado filme-cabeça, Blade Runner continua confirmando sua vocação para dúvidas e debates. Os temas das tensões interculturais, das arrumações miméticas e das citações que valorizam o repertório de um público desassossegado, são recorrentes ao longo de quase duas horas. Também como linguagem específica a película apresenta cenas e sequências que justificam seu lugar de destaque, inclusive por conta da trilha musical composta por Vangelis. Dificilmente o expectador fica apático ao assistir essa ficção futurista, ambientada numa impressionante Los Angeles de 2019. Dentre as tensões interculturais, chamam atenção: o anúncio de lotes imobiliários nos espaços siderais, apresentado pela empresa transnacional Shimago-Dominguez Corporation; a prosaica utilização de hashi para consumo de macarrão instantâneo que ocorre dentro de uma viatura com capacidade para deslocamento vertical; a fachada em estilo asteca do edifício da Tyrrel Corporation; a técnica milenar de tratamento do bonsai próximo ao moderníssimo equipamento do teste Voight-Kampff... Por outro lado, algumas arrumações miméticas traduzem a proliferação dos simulacros: a coruja; a serpente; os amigos fabricados por J. F. Sebastian; as gargalhadas dos bonecos; os androides/replicantes... Quanto às citações: o filme Casablanca; o artista vienense Hundertwasser; o arquiteto Frank L. Wright; o poeta William Blake; o escritor Lewis Carroll; a partida de xadrez entre Anderssen e Kieseritzky; as doutrinas da trindade e da salvação elaboradas pelo cristianismo... Assim, convém notar como o conteúdo desse filme não subordina mera e pragmaticamente sua forma cinematográfica. A propósito, o referente do filme está na própria maneira de se expor. No como-se-diz já está o-que-sediz. Há um exercício de metalinguagem, peculiar das experimentações estéticas mais densas e complexas. E no caso, essa metalinguagem sugere a fantasia de uma corpoética correndo ao fio da navalha (blade runner).
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A despeito de (... porém, justamente por) ser um texto fílmico desprovido de compromisso com a “verdade/realidade”, presta-se para fazer com o personagem principal Deckard (interpretado por Harrison Ford) um jogo revelador de uma determinada possibilidade corpoética por meio de uma semiose que articula fato e função. Seu trabalho é caçar replicantes, produtos de
uma
tecnologia
capitalista
muitíssimo
sofisticada
e
sobremodo
manipuladora; e enquanto essa função vai se atualizando, descobrimos quem Deckard é de fato. Dentre os replicantes caçados se destaca Roy (magnificamente interpretado por Rutger Hauer). Com este personagem uma corpoética parabólica pode ser decodificada como sublime desencanto. Com efeito, Deckard e Roy representam corpoéticas complementares em um quadro paradigmático específico de situação limite da condição humana: o sujeito-coisa. Deckard é uma coisa revelada por meio de pequenos trabalhos manuais feitos por Gaff — aquele personagem que dirige a viatura citada anteriormente. Esse artesão improvisado, duplo operador de veículos (de transporte e de significação), inicialmente compõe um origami com papel do lixo, em forma de galinha (quando Deckard se acovarda e recusa aceitar a missão de caçar os replicantes); depois, em um palito de fósforo ainda não queimado, esculpe um homem exibindo virilidade (quando Deckard, não tendo como escapar, mostra coragem ao assumir a caçada); ao final Gaff dobra com papel alumínio de maço de cigarros a figura de um unicórnio (quando Deckard completa sua missão). Aliás, parece que esse último origami provoca em Deckard um insight ontológico. Roy é uma coisa desencantada e sublime. Tem consciência de ser replicante com exíguo tempo de validade, diminuído ainda mais. Sua pródiga existência abreviou seus dias. Então, Roy leva ao extremo sua crítica à criatividade tecnológica perversamente mercantil. Executa uma espécie de parricídio, matando Tyrrel, seu criador. Logo a seguir, durante seu confronto com Deckard, reanima sua energia perfurando sua mão direita com um prego, à
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moda do crucifixo. Depois empunha na mão esquerda uma pomba, como que evocando
a
terceira
pessoa
da
trindade
cristã.
Assim
divinamente
incorporado, salva seu caçador prestes a morrer. Finalmente esgota seu espírito com palavras solenes, proferidas em meio a um sorriso angustiado: all those moments will be lost in time like tears in rain. Em suma, essa corpoética em fantasia desenha situações existenciais cercadas de esvaziamentos. Falham e faltam as certezas das verdades míticas, das seguranças racionais, das eficácias científico-tecnológicas, das coerências éticas. Sobram e sombreiam fragmentações cindidas por lâminas e lágrimas. Ao fio da navalha sangram almas que outras saídas não têm senão o moveremse nas tensões, apostando em caleidoscópios perdidos. Caos à flor da pele.
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Licença nitzona. Dentre os escritos de Nietzsche (1844-1900), Assim falou Zaratustra é emblemático de sua maturidade como filósofo e literato. Nessa obra, após o prólogo, a primeira passagem funciona como holograma. É um pequeno exercício metafórico que indica as metamorfoses do espírito até à superação do homem, até o homem tornar-se o que se é (mote que Nietzsche resgata de Píndaro). Nesse pequeno texto é possível vislumbrar poeticamente o pensamento nietzschiano, sobretudo alguns de seus mais caros conceitos: a estética como legitimação da existência, a transvaloração dos valores, a vontade de poder, o eterno retorno etc. Interessado em relacionar essa passagem com este passeio, imagino que as metáforas usadas por Nietzsche talvez possam corresponder às ênfases que indico na possibilidade corpoética: o camelo está mais para o mecânico dominado pelo valor, assim como o leão está mais para o polêmico movido pelo volêio, e a criança está mais para o poético seduzido pelo vazio. De qualquer modo, nos parágrafos a seguir sigo o conselho de Zaratustra: não quero seguidores. Com essa licença... Vou pintar três metamorfoses da corpoética: primeiro como o pnêuma se aceita qui nem camelo; depois, como o pnêuma se revira qual leão; e finalmente, como o pnêuma se transforma assim tipo criança. Muitas coisas pesam ao corpo saradão e caxias que aguenta sem chiadeira. Aliás, a força desse cara chega a berrar por mais peso ainda. Esse espírito de camelo pergunta, na moral: cadê aquilo que pesa messssmo? Aproveita que tô de joelho e me carca mais treco em riba. É isso aí, galera; me manda vê um peso sinistro pra eu curtir numa boa. Afinal, não é se rebaixando que a metideza acaba deletada? Não é dando um grau na bobera que a gente zoa com a sabedoria? Ou caindo fora justo quando se
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deveria festejar uma façanha fudida? Ou escalando uma fachada de prédio bem alto só pra cutucar o Tinhoso? Ou se contentando com gororoba e tiririca de conhecimento, com o peito passando fome por conta do amor à verdade? Ou caindo doente e despachando sangue-bão, adicionando como se fosse mano quem não saca o que fissura a cuca? Ou mergulhando em água suja, água da verdade, sem enxotar pererecas geladas e sapos pelando? Ou amando quem nos esnoba e estendendo a mão ao chupa-cabra quando assusta? Esse jeito feito besta de carga pesada tem pressa de chegar à caatinga. Como um camelo camela rumo ao seu próprio Saara. Daí, nesse enguiço, acontece uma segunda metamorfose. Baixa o espírito de leão. É um tal de vamo-que-vamo pra emplacar a liberdade, dominar esse deserto. O cara caça seu último senhor. Declara guerra a ele a ao seu deus derradeiro. Quer vencer o grande dragão. Mas quem é o grande dragão que o corpo não quer chamar de Deus nem Senhor? Demorou: Cê-Tem-Que é o nome do grande dragão. E o leão retruca: nem-pensar. Bem no meio do caminho, cabuloso, o Cê-Tem-Que. Feito um outdoor supermaneiro, piscando em dourado suas letras CTQ, CTQ, CTQ... Valores milenares resplandecem nesses leds. E a caixa de som do mais potente dragão vomita milhões de decibeis: todo o valor das coisas brilha em mim! E dá-lhe mais dragonice: todos os valores já foram criados e ponto final. Sou eu mesmo esses valores. Sem essa de nem-pensar, eu-quero-porque-quero. Se liga leitor: pra que serve o leão? Não basta a boazinha da besta obediente? Claro que o leão é incapaz de criar valores novos. Mas emplacar a liberdade (... que depois faz rolar novos valores) – isso o leão tem como. Bem na fuça do Cê-Tem-Que só mesmo o leão pra fazer valer a liberdade do sagrado nem-pensar. A pegada do espírito que camela é tão travada que essa coisa de liberdade e valores novos lhe parecem malandragem de mão-
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leve. Hipnotizado pelo Cê-Tem-Que, o camelo precisaria perceber seu estilo zé-mané como ilusão furada por conta de um estupro sofrido e nem debitado. Porém, contudo, todavia... Sem chance. Isso é coisa pra leão. Então, o que é que ainda tá pegando? Qualé a do leão que não consegue o que só a criança é capaz? Acontece que a criança tá limpa, passou a régua, levou máquina zero, joga muito, cambalhota capoeira estrela, banca mo(vi)mento base, fala firme. É isso aí, gente. Pra jogar o jogo da criação é preciso aquela firmeza mais bacana. Dizer-sim pra própria vontade. Ficar de bem com o mundo. -Assim falô Zecafuska enquanto dava um tempo numas paradas perto de Itaquaquecetuba.
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Curto e grosso. Como paradigma conceitual que estrutura minha reflexão sobre o corpóreo em suas qualidades complexas, peculiares, históricas, possíveis e criativas, corpoética é uma modalidade de análise em que binômios viver/morrer e vida/morte têm estatuto de objeto para o conhecimento especulativo. Na base desse exercício gnosiológico está o olhar para a tensão entre tempo e temporalidade, sendo que ambos se constituem reciprocamente; cada qual em dimensão específica, porém conjugada. Viver e morrer estão, a priori, na categoria do tempo; vida e morte, pela linguagem, postos na temporalidade. Óbvio que a condição corpórea está inegável
e
irreversivelmente
relacionada
tanto
ao
tempo
quanto
à
temporalidade. A separação destes apenas se constata na verbalização do artifício abstrato. De qualquer modo, parece apropriado supor (no mínimo) que diferentes qualificações sobre o que possam "ser" vida e morte se desdobram em diferentes formas efetivas de viver e morrer. Também é evidente que noções/idéias/conceitos de vida e de morte sobre o viver e o morrer são significações sobremodo abrangentes, ainda que diversas. Viver não tem sentido intrínseco. Morrer idem. Vida não existe; é apenas uma abstração e pode vir a ser referente de um sentido criado para o viver. Morte não existe também; é outra abstração e pode ser referente de um sentido criado diante do morrer dos outros e antes do próprio morrer corpóreo. E talvez (?) sejam bem raras as exceções dos corpos desprovidos de elementos abstratos forjadores de sentido/significação para si mesmos e para outros corpos. Assim, simplificando um bocado, viver difere de vida, bem como morrer se distingue de morte. Viver e morrer se referem a fatores, fatos e fenômenos; vida e morte são interpretações. O viver e o morrer ocorrem na concretude da existência; vida e morte são composições a partir de valores imaginários de corpos vivos. As ciências cuidam basicamente do viver e do morrer. De
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maneira distinta, algumas artes, muitas filosofias e todas as religiões se interessam prioritariamente pela vida e pela morte. Outro detalhe traiçoeiramente óbvio é que o morrer e a morte se contaminam, assim como viver e vida também se confundem. Mais ainda, cruzando acepções, viver sofre assédio da morte tanto quanto morrer é atentado pela vida. Ou, curto e grosso, noutra expressão indicativa do que tem sido na cultura hegemônica bastante comum e, a meu juízo, deveras discutível: viver apenas por conta da vida é culpa da morte que impede morrer.
105
Prazo de validade. Excetuados acidentes repentinos, os corpos decidem sobre os prazos de validade para a própria existência conforme valores culturais (com perdão do pleonasmo). Cada corpo ou escolhe tomar para si a responsabilidade de indicar o término de seu tempo de viver ou assume transferir para outrem a definição do lapso temporal de sua existência. Assim, entre autonomia e heteronomia oscilam valores e seus desdobramentos. E não há como negar a complexa tensão angústia/coragem tanto nas autênticas quanto nas alheias valorações. Nesse contexto, estruturas sócio-psíquicas formatam almas que disciplinam a corporeidade (lembrando desconstruções foucaultianas) e sustentam práticas alienadas ou criativas, conforme prevalência de ênfases heterônimas ou autônomas. Aliás, cada possibilidade corpoética corresponde ao menor ou ao maior grau de trapaça salutar diante da existência (lembrando lições barthesianas). Noutros termos, é possível assumir o viver poeticamente, inventando artifícios que traduzem-e-traem os fatos, numa interpretação tanto enxuta quanto extática e, quiçá, superadora e legitimante (lembrando transvalorações nietzschianas). Em suma, as nuances quanto aos prazos de validade (... repito: excetuados os acidentes repentinos e conforme valores culturais) subsidiam aos corpos jeitos de expirar. Dentre algumas variantes corpoéticas, um é o prazo geralmente pautado em respeito aos processos naturais; outro é o prazo subordinado às ambíguas
assistências
científico-tecnológicas
procrastinadoras;
também
podem ser opção de prazo as vantagens oriundas de recursos facilitadores da eutanásia; ou ainda cabe como limite de prazo o êxito por alguma saída suicida. Qualquer juízo de valor sobre tais (e outras) modalidades deveria ser considerado fenomenologicamente, ou seja, dever-se-ia fazer eventual juízo a partir de critérios criados e cultivados pela própria alternativa em julgamento.
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penso, logo assumo, em cólica oblíqua: fucei e só sei que forçando ferrolho fica no fim uma fimose no olho. por sorte, azar ou destino acontece do intestino lacri-mijar a morte como um aviso incircunciso equívoco anal u
Criatividade
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Sapiência. As dimensões somáticas, psíquicas e pnêumicas da corpoética, quando articuladas
com
criatividade,
alcançam
uma
legitimação
existencial
provavelmente bem mais notável e gratificante. Parece que por isso, nisso e disso dá gosto viver. Faz a alma lamber os cílios. A propósito, relembro a etimologia de sapere (latim): experiência do paladar e do pensamento. Ou seja, desde os sentidos até aos significados há um gosto e um prazer em implicações corpóreas muito peculiares. A língua absorve e interpreta texturas e sabores. A língua semiotiza e traduz textos e saberes. O corpo é sua língua, sua linguagem. Assim, natura e cultura sempre se contaminam resultando variadas compilações nas artes, nas crenças, nas ciências, nas filosofias etc.
110
Futebol e firulas. Como que a grande paixão de onze dentre nove brasileiros, o futebol faz torcedores contarem nos dedos dos pés o tempo que falta para torneios e campeonatos. Às vésperas de uma Copa do Mundo, por exemplo, o placar da adrenalina vai se agigantando a cada final de semana e qualquer peladinha ganha contornos eletrizantes como se fosse um clássico no templo do Maracanã. Deuses descalços são imaginados em jogadas mirabolantes, esfolando-se por entre pedras no meio do caminho improvisado como cancha. Nos barrancos das estradas, anjos tortos dizem "amendoim nele, seo perna de pau-oco"; fora aquelas impublicáveis alusões às inocentes progenitoras dos Pelés dominicais. E segue a procissão de risadas nervosas ou gritos de salvação. Eis aí também uma corpoética. Outra corpoética acontece entre os peladeiros propriamente ditos. Nas várzeas quase extintas, nas beiras de estrada, nas vielas sem saída..., ou até nas ruas com asfalto, nas praças de esporte e nos fiapos das praias..., ainda acontecem casos e causos que transcendem ao futebol profissional e que resgatam a alegria da corporeidade brincante. Para esses que disputam a primazia com a menina de couro, o racha é uma opereta com movimentos divertenti. A maioria desses Manés e Maradonas amadores desconfia que o gol como mera finalidade seja pleonasmo estéril se não adjetivado pela substância da firula. Isso porque, considerando o futebol como linguagem, a firula é sua função estética. Já que o drible é quase o nosso acachapante constitutivo do jogo em sua pragmática, fazê-lo com requintes barrocos é adentrar ao campo da arte. Não basta a bola no barbante; a magia é imprescindível. De um jeito ou de outro, uma corpoética no futebol se constata por vários aspectos. Como ponto de partida, trata-se de uma complexa experiência corpórea, na qual as circunstâncias e as peculiaridades dos corpos adquirem e administram valores em suas possibilidades criativas. Tanto nas quatro linhas como nas arquibancadas (dos estádios ou das mídias), o futebol desafia
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mentes e corações. Desde a materialidade histórica até aos recônditos espirituais da corpoética, muitas vezes esse esporte bretão inventa sentidos para o viver.
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Beleza estética. Nas primeiras páginas deste ensaio transcrevi a parte inicial de um capítulo que elaborei para o livro Qualidade de Vida, organizado por meu amigo Wagner Moreira, e publicado pela Papirus Editora. A seguir, também com alguns ajustes, reapresento o final daquele capítulo. Flagrando a beleza no mo(vi)mento de te(n)são da corpoética, quero designá-la como uma ênfase especial daquilo que o desejo corpóreo chama por qualidade de vida. Quando o corpo pergunta pela beleza, a questão estética aparece de maneira mais densa e este aparecimento não se restringe apenas ao que a corporeidade é e vive em algum detalhe rápida e facilmente reconhecido como portador de caráter estético. A abrangência da beleza que interessa à estética aqui referida se estende por toda
complexidade
et
peculiaridade
et
historicidade
et
possibilidade et criatividade do corpo. Aliás, a estética é um dos encadeamentos em que a corporeidade melhor encontra a si própria na cultura. Portanto, ao dar relevo à beleza, a estética é um recurso conector privilegiado na qualidade de vida corpórea que, como noção, venho perseguindo nestas páginas. Mas para que esta conexão subentendida pela estética extrapole uma perspectiva meramente cumulativa e superficial, devo explicitar porque a qualidade de vida corpórea, ao exigir qualidade de vida em te(n)são, toma também a beleza em seu sentido de mo(vi)mento. Noutros termos, a conexão que a estética favorece na corporeidade só é relevante como qualidade tensa. Na beleza criada pela corporeidade subsiste sempre uma tensão desejante e não uma síntese superadora. Afinal, o mo(vi)mento de te(n)são da corpoética reafirma que, sem a segurança das convicções calmas e controláveis, há na beleza uma precariedade com poderes pedagógicos, uma espécie de
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guia de meio-fio na contramão da consolução (na calçada inversa da suposta solução consoladora), uma saída fantástica que, pelo recurso criativo, manifesta o quanto o corpo deseja inventar, o quanto o corpo transcende, mesmo dentro de seus limites. E, como sugeri acima, se a beleza (em face de seu fator de tensão) funciona como excelente conectivo da corporeidade parece-me óbvio que o corpo não tenha como ser representado sinteticamente, reduzido à meia dúzia de conceitos à mercê de categorias e paradigmas sistematizadores. E justamente porque a beleza subverte esses construtos exclusivamente lógicos é que pode o impossível: pode servir como uma espécie de transconstruto
para
a
qualidade
de
vida
da
corporeidade.
Enfatizando, reescrevo: a beleza é uma possibilidade para o impossível. Ou seja: beleza é movimento, tensão, ausência de momento síntese. A estética nestes parágrafos, portanto, é mencionada como ferramenta adjetiva em relação à beleza substantiva, naquilo que esta oferece de trans-construto. Esta estética, pois, serveme para indicar a qualidade do movimento, da passagem, da mudança de tanta coisa mais que se designa a partir do prefixo trans – que, aqui e agora, privilegio como inerente ao marco semântico beleza. Como trans-construto, reconheço que a beleza é sempre provocadora de horizontes, muitas vezes inquietando
passagens
e,
não
raro,
disseminando
desorientações... Desse modo, com essa estética que acompanha o trânsito da beleza eu deveria abordar os construtos sobre a beleza definidos exclusivamente pela razão; porém, posto que transcodifico a beleza como trans-construto, tenho o prazer de atravessar a
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racionalidade também em companhia de outros modos de conhecer, principalmente a sensibilidade. Só que assim sou obrigado a admitir o quanto estas linhas ficam em débito para com as nuances da sensibilidade. Contudo, não me resta alternativa ao grafar esta secção: valho-me bem mais da verbalidade sócio-racional para me tentar compreensível. Mas, em compensação, conto com sua leitura não apenas racional; também inescapavelmente estética: você está sempre sentindo algo ao me ler. Desde sensações visuais estimuladas pelos tipos e tamanhos de letras, pelas cores e diagramação da página..., cruzando com sensações ao seu redor, trazidas pelos sons e temperaturas do ambiente, pelos movimentos de outros corpos e objetos..., incluindo sensações táteis como peso e textura do codex, acomodação na cadeira..., até sensações advindas de lembranças agradáveis ou preocupantes, de inspirações ou sustos... Como você bem sabe, o vocábulo estética tem por origem aisthesis – substantivo feminino da língua grega, ligado ao significado de sensação, faculdade dos sentidos, matéria prima da sensibilidade somática. Tanto é que anular o sentir decorre da anestesia (an: negação; estesia: sensibilidade). É evidente que anestesiar um corpo no seu todo ou em alguma parte não implica anular o sentir apenas somático. Como tenho insistido, a corporeidade
não
é
uma
mera
dimensão
material
temporariamente ligada a outras dimensões como a mental, a emocional, a espiritual etc. E já que o corpo só é corpo numa composta complexidade somático-psíquico-pnêumica (e não apenas como arranjo somático/psíquico/pnêumico justaposto), uma anestesia nega o sentir corpóreo de modo bastante múltiplo. Por exemplo, quando saio do consultório odontológico, estando ainda sob o efeito de alguma anestesia, não sinto de modo pleno o gosto do que me vier à boca; a qualidade do meu
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paladar fica comprometida; provavelmente também chegue a evitar maiores e melhores contatos intercorpóreos; e ainda me ocorra colher algum declínio em meu jeito de teimar com a vida etc. Claro que neste exemplo tão banal passo longe, bem longe, dos dissabores que tantas realidades construídas socialmente impõem em casos graves e agudos que atentam contra a qualidade (beleza) desejada pelo viver corpóreo. Mas o que o exemplo pretende, com efeito, é sinalizar como a sensibilidade (e sua perda) não atinge a corporeidade apenas em sua dimensão somática; abarca, isto sim, toda a corporeidade somáticopsíquico-pnêumica, econômico-político-cultural, eco-sócio-ética, semio-tecno-artística etc. etc. etc. Deixando de lado o aspecto da negação à aisthesis e buscando seu caráter positivo e afirmativo em relação ao tema da qualidade de vida corpórea, acho oportuno lembrar que, se o termo estética apresenta uma ascendência grega, outro fato se insinua: não convém simplificar o complexo mo(vi)mento de te(n)são da corpoética, ligando Atenas a Brasília numa ponte aérea mediada por algum almanaque lingüístico incompleto (...recordando, inclusive, que entre etimologia e semântica há muito mais que voocábulos de carreira). Sendo assim, outros elementos históricos me inquietam com maior apego e minha impertinência insiste apresentá-los a seguir. Então, convido você a afivelar seus cintos condescendentes e manter seu bom gosto na posição cordial. Como primeiro elemento histórico, na panorâmica interna ao recorte geo-político envolvendo acropolitanos e candangos, eu entendo que a estética volta-se destacadamente ao âmbito cultural, sem esquecer nisso tudo que cultura, política, economia etc. apresentam recíprocas interferências. Penso ser incorreto, pois, traçar uma linha direta de tradução, a jacto,
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entre o contexto do que significou aisthesis para os antigos gregos e o que estética conota hoje para os corpos de língua portuguesa que vivem nas terras brasileiras. Portanto, uma pergunta me parece obrigatória: que roteiros culturais escalam o percurso aisthesis – estética desde a Grécia clássica até ao Brasil de hoje? Como segundo elemento histórico, a pergunta acima (que, por limites óbvios, deixo em aberto) leva-me, pelo menos, a uma decolagem a partir da pista onde uma aisthesis pré-socrática foi embargada por uma filosofia supostamente mais lógica que procurava
desqualificar
a
beleza
trágica
(especialmente
dionisíaca) e que atrelava outra proposta de beleza a outros valores ético-racionais idealistas. Sobrevoando no tempo e no espaço faço uma pausa em plena península ibérica de paisagens medievais e renascentistas, e então não tenho como ignorar que as estéticas mourisca e toscana contagiaram e inquietaram os padrões de beleza portugueses e espanhóis. Depois de passar sobre o Atlântico, registo várias e impressionantes estéticas empírico-pragmáticas
de
tupis,
guaranis,
tapuias
etc...,
permeadas de belezas anteriores ao achamento cabralino. Além disso, enquanto aguardo autorização para seguir viagem, constato também que negróides algemados em naves de bandeira branca e cristã trazem estéticas de diferentes grupos africanos, capturados durante a ignomínia escravista. Sem deixar de notar ainda, claro, ao passarem os minutos das décadas, as inúmeras
estéticas
oriundas
de
invasões
e
imigrações
provenientes das mais diversas e remotas latitudes culturais. Concluindo: desde a Grécia clássica até ao Brasil de hoje sempre houve tensões sobre o que se qualificava como beleza, podendo até mesmo ser tomado como qualidade de beleza o chamado belo e/ou o chamado feio. E se eu posso encontrar hegemonias mais ou menos definidas nas estéticas de culturas pouco
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miscigenadas, sinto enormes dificuldades para fazer o mesmo em relação às estéticas de culturas mestiças como a nossa. Portanto, outra pergunta se me impõe: como qualificar a beleza alfandegada na corpoética brasileira contemporânea? Como terceiro elemento histórico, dado que a pergunta supraexpressa exige a confirmação de uma hipótese, a saber, se no Brasil há mesmo uma brasilidade, um corpo, uma cor, um pó, uma ética, uma poética que sintetizem a corpoética brasileira..., desconfio ficar bastante prejudicada qualquer tentativa de resposta com pretensões de seriedade. Como muita gente assevera, também afirmo que a identidade brasileira ainda carece de nitidez e, principalmente, de algo que a sintetize. E, quiçá, seja essa mesmo a sua identidade ainda por muito tempo adiante: um embaçamento desfocado e transgressor da nitidez sintética, da clareza geralmente esperada e exigida pelos construtos ocidentais imperantes. A corpoética brasileira teria, assim,
uma
turbulências.
identidade Refratária
com ao
incontáveis
pseudo-equilíbrio
flutuações
e
absoluto,
a
corpoética brasileira parece gingar ao batuque de uma estética de te(n)são, de mo(vi)mentos irredutíveis ao conceitual de qualquer viés. E como quase tudo que transita nesse âmbito de escape, de dissimulação, de verossímil bagunça, a estética da corporeidade brasileira pode ser etiquetada como descartável, sem valia, coisa menor: beleza boba. Mesmo assim, fazendo parte de um pequeno coro, também corro o risco de apontar nessa brasilidade, evasiva e fugidia, zonas estéticas que pipocam um qualitativo vital mestiço de modo algum desprezível. Daí sobra-me uma última pergunta: qual é a beleza dessa bagagembobagem que beira brasilidade? Ao ensaiar um exercício de resposta, vou finalmente dizer o que penso sobre o binômio do tema até agora contornado: A beleza
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estética só deve ser considerada diante de uma qualificação da vida corpórea em sua concretude cultural histórica. No nosso caso, a beleza estética brasileira aproxima-se daquilo que padece de definição; trata-se de uma beleza estética indefinida. E isto não me parece ser, sob a perspectiva do mo(vi)mento de te(n)são da corpoética, demérito algum; talvez seu contrário. Afinal, concordo que a beleza valha por estar isenta de subserviência a qualquer fim, a qualquer síntese lógica, ética ou mesmo estética. Sem finalidade extrínseca, à beleza resta brincar com o in-de-finível, com aquilo que não tem limites ou cujos limites sejam desconhecidos. E mais do que nunca, então, a beleza qualitativamente bela e/ou feia alça sua dimensão lúdica, gratuita e, acima de tudo, inventiva. Em termos dessa estética, na mestiçagem a invenção é reinvenção. A propósito, basta um rápido olhar para a arte brasileira, emblematicamente mestiça. Confesso, pois, ao ver nosso jeito estético clássico e caboclo, que nossa brasilidade muito se parece com a mistura de tudo, como numa feijoada, carnavalizando a beleza desde Atenas até Brasília, de Fídias a Niemeyer. A beleza dessa qualidade de vida nunca foi e nunca será uma beleza achada, algo que se encontra pronto. Essa beleza é produção mesmo. Aliás, muito mais que o produto, nessa estética é destacado o processo da nova feitura do já feito, um refazer sem fim, válido pelo que funciona como expressão em si, desejando colocar os resultados que não sejam estéticos no plano devido, ou seja, apenas necessários. Lembro que numa corpoética a necessidade está sempre aquém do sentido último que transcende o simplismo das relações satisfatórias; o valor estético é o gratificante da graciosidade. Nesse clima, chego a eleger como protótipos de nossa estéticaboclássica dois artistas que se notabilizaram pela
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maneira como fizeram e fazem suas obras, independentemente de seus eventuais sucessos e/ou fracassos de ordem econômica, política e outras... Um se chama João Gilberto, reinventor do canto brasileiro, artesão tecnicamente sofisticadíssimo que devorou e reprocessou estilos rítmico-melódicos europeus, africanos, americanos etc., desembocando-os numa dicção de aparente ingenuidade, mas que, sem dúvida, revela um apuro não só original como sobremodo cioso do jeito de se cantar. Em João Gilberto a mensagem da canção fica quase que subordinada à sua embalagem. Parece que o importante não é tanto o conteúdo e sim a forma como João Gilberto reinventa a beleza. Outro artista, já falecido, que também tenho por protótipo de nossa estéticaboclássica, chamava-se Mané Garrincha, cuja estética traduzia a bossa-nova joãogilbertiana para seu futebol com pernas tortas. Como jogador do esporte bretão em várzeas poluídas ou em estádios assépticos, Mané reinventava seus Joãos, seus parceiros de ingenuidade, seus cúmplices nos dribles quase inconseqüentes. Mané quase esquecia o gol (goal, alvo, finalidade, como diriam os ingleses, inventores do foot-ball), contudo quase nunca forguetava o gostinho de uma finta, de uma festa, de uma alegria para o povo. Também para Mané a finalidade pragmática quase ficava sucumbida pela gratuidade estética. Aprendo com João Gilberto e Mané Garrincha que a beleza fica por conta do quase, numa incompletude densa e tensa. Aprendo com eles que na estética deve haver um privilégio para o enquanto, para o durante..., nem tanto para o acabar, o chegar, o findar. Óbvio! A opção qualitativa deve ser pela transcorrência do viver e não por sua consumação. E quando esta estética é vista com mais vagar, fica evidente a gratuidade do movimento de tensão, fica notável como se abdica da obsessão finalista em favor do brejeiro, do que se presta à brincadeira, numa espécie
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de estética transcendente em sua imanência – na qual se esconde um sentido de beleza quase mítico, sagrado, eterno em plena temporalidade. Estou, pois, convencido que a corpoética brasileira vem inventando esteticamente seu sentido último para a existência – ainda que estes inventos estejam disfarçados em religiões, filosofias, ciências, artes, técnicas etc. que visem dar alguma qualidade de vida na complexidade, na historicidade, na peculiaridade, na possibilidade e na criatividade corpóreas. E recolhendo-me ao silêncio novamente, sem deixar conclusão ou síntese, apenas reitero que o desejo por qualidade de vida corresponde aos mo(vi)mentos de te(n)são que anseiam pela beleza no compósito somático-psíquico-pnêumico; pela beleza do pão acessível a todas as mãos; pela beleza no contrato civil transparente; pela beleza no espelho semiótico do espetáculo; pela beleza no colorido pontual-pessoal-punctual; pela beleza nos valores, nos voleios e nos vazios da eticidade; pela beleza no estranhamento espontâneo e experimental; pela beleza no convívio com o meio ambiente; pela beleza no mistério do umbigo; pela beleza nas lágrimas indiciais do ser gente mesmo; pela beleza nas lâminas corretivas da alegria; pela beleza no desejo da beleza latente ou em evidência; pela beleza no vit(r)al da realidade refletida num jeito corpoético...
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Poiesis. As correspondências no nosso idioma para o vocábulo grego poiesis estão próximas às noções de criar, abarcando as idéias de fazer, confeccionar, fabricar, realizar etc. E, sem dúvida, essas noções e idéias, com suas variantes, se abrem para conotações muito numerosas e muito mais complexas. No rastro de poiesis serpenteiam, pelo menos, referências a ontologias, linguagens e jogos. As coisas, os casos e os causos poiéticos são constituídos e processam significações mediante interveniências da corporeidade. A própria condição corpórea é sustentada e sustada pela poiesis. Daí, o caráter contraditoriamente
criativo
da
corpoética.
Todas
as
experiências
e
experimentações culturais (coletivamente configuradas e individualmente reapresentadas) são caracteres da poiesis, necessários à corpoética. Por conseguinte, sem poiesis não há, com(o) efeito, corpoética. É a poiesis que providencia, inclusive, um espelhamento ao corpo. O que a corporeidade cria funciona como reflexo de sua palavra, de seu potencial e de sua purgação. Em termos meio levianos de alma-naked lacônico, poiesis é como que mídia do corpo para que a corpoética conheça e se reconheça nas nuances do real, do imaginário e do simbólico, culturalmente engendrados-eengradados. E mais: numa acepção estética, poiesis tensiona sensação e percepção num frescor lúdico, suscitando um estranhamento que se legitima tanto na própria materialidade do signo quanto na apropriada contaminação de semioses em séries. Assim a corpoética soluça, via poiesis, a insolvência dos fatos. Ou seja, poiesis corresponde, antes e ainda, a uma fazeção apesar e diante dos inescapáveis bilhetes do fim.
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Pelo Mar Egeu. Roteirista e diretor de O Tempero da Vida (2003), o cineasta grego (nascido na Turquia) Tassos Boulmetis propõe uma curiosa aproximação semântica entre astronomia e gastronomia. Liberdade poética à parte, esse recurso introdutório ao drama ligeiro acaba rendendo um sapiente (sábio/saboroso) resultado cinematográfico. Estrelas e estalos no palato convergem na textura do filme em meio a complexas relações intercorpóreas. As peculiaridades subjetivas e os condicionantes objetivos forjam e transfiguram inúmeras nuances do poder. Aliás, já no título original Politiki kouzina (ΠΟΛΙΤΙΚΗ Κουζίνα) soa feliz a tentativa histórico-artística de minimizar, pelo melhor balanceamento possível, assimetrias inerentes ao biográfico e ao fictício. Ou seja: criatividade exponenciada. Boulmetis engendra uma ambientação histórica trazendo as marcas das diferenças, das rupturas e dos conflitos entre Turquia e Grécia em meados do século vinte. Fatores culturais delicadamente destacados pelo idioma, pela religião e pelo humor servem como cenário para uma política de temperos. Assim, retratando desde o final dos anos 1950 até aos nossos dias, o filme consegue administrar de modo competente, pelo núcleo da cozinha, vários fenômenos que gravitam na vida das pessoas, dos países e dos poetas. Conforme as tríades categoriais da corpoética destas páginas, considero que o filme trata de saudades, sonhos e silêncios. No específico do fenômeno corpóreo, essas circunstâncias da saudade, do sonho e do silêncio correspondem (respectiva, mas não exclusivamente) às dimensões somáticas, psíquicas e pnêumicas. Na esfera das possibilidades éticas, entendo que saudades, sonhos e silêncios equivalem aos valores sopesados pelo racional, aos voleios rebatidos pelas emoções, e aos vazios embalados pelos construtos-de-sentido-para-a-
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existência. Tais possibilidades revestidas pelo trato poiético mais tenso, técnico e talentoso resultam em imagens, sugestões e simbologias cuja criatividade distingue esse filme muito acima da média. Sem poder apresentar uma crítica à altura dessa obra de Boulmetis, me meto a bulir com o leitor através de umas poucas e respeitosas provocações. Para quem se lembra do conteúdo desse filme O Tempero da Vida, talvez os parágrafos deslocados a seguir desempenhem papéis como aqueles polêmicos funcionários nas antigas sessões das salas de cinema: os lanterninhas. Às vezes ajudavam a alguns, geralmente incomodavam a muitos. Pois é... Saudades. No passado: a matéria com que foram feitos os fatos; coisas, casos e causos historicamente determinantes da massa das recordações. Por vezes doces outras acres, essas lembranças fundam e fundamentam o que não se pode negar ou não se tem como suprimir. Oscilações entre o trágico e o arbitrário. Sonhos. No futuro: o horizonte que esperneia contra o indelével do hoje e, mais ainda, do ontem. Ao onírico recorre uma corporeidade acometida pelo mal-estar. Adversos vestígios do dia rabiscam seus protestos como desenhos/desejos. Design da alma. Desiderato. O gosto por uma alternativa no descompasso da agenda. Silêncios. No atemporal: a vasilha vazia ecoando mutismos. Eloquências
irredutíveis
ao
verbo.
Só
assim
inomináveis
transcendem, inconjugáveis estranham, inefáveis sublimam. O não-acontecido espelha o esgotado sub specie aeternitatis. Uma ausência presenteia seu mistério. E a existência inventa artifícios legitimadores ainda mais (... e justamente) porque absurdos. Espiritualidade pela sagração do nada.
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E agora ao terminar esse ensaio-passeio, quase como o The End projetado ao final daquela viagem cine-astro-gastronômica entre Istambul-Atenas-Istambul, deambulo meus derradeiros devaneios nestas páginas. Assim volto a bordejar pelo Mar Egeu na cozinha da palavra, levando essa louça lavada pelo tempero da vida:
Estrelas no céu da boca
será que elas piscam? não; não piscam. será que salpicam... não; também não salpicam. estrelas no céu da boca salpiScam. sim, elas corpoeticamente salpiScam... estrelas salpiScam saudades, sonhos e silêncios.