HUMORTE
BOTANDO BANCA NO MERCADテグ
JOSÉ LIMA JÚNIOR
HUMORTE BOTANDO BANCA NO MERCADÃO
Com carinho, para o eterno Pachola e para a bela Dona Mariana.
Alguém tinha que sobrar para contar a história. E eu meti na cabeça que esse alguém era eu. Cabrera Infante
Com alegria, para a amada Quinita Sampaio e para o caipiracicabano Cecílio Elias Netto.
Em nossos dias já ninguém duvida de que a história do mundo deve ser reescrita de tempos em tempos. Esta necessidade não decorre, contudo, da descoberta de numerosos fatos até então desconhecidos, mas do nascimento de opiniões novas, pois o companheiro do tempo que corre para a foz chega a pontos de vista de onde pode deitar um olhar novo sobre o passado. Goethe
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TABULETAS
Sobre palavras e mercadorias ....................................... 08 Hist贸ria de riscos e risos ................................................ 18 Em noventa e tr锚s ............................................................. 40
Sobre palavras e mercadorias
Jabuticabas e locomotivas evocam negritos no parágrafo da minha
infância. Quando menino morava em Casa Branca, onde sobravam pés da
fruita pelos sítios e domicílios. Entretanto, como nem só de quintais e boçorocas se faz feliz um caipira, às vezes, aproveitando férias escolares do Instituto de Educação Dr. Francisco Thomas de Carvalho, voltava às
Campinas das andorinhas num carro ferroviário tracionado pela bojuda
Maria Fumaça na linha Mogiana. Era bão pra mai di metro.
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Então me hospedava no sobrado de meus avôs Targino e Licínia, situado na Rua Bernardino de Campos, e saía com meus pais Zizinho e Zara ou
com minha querida tia-madrinha Ruth a passear pelas ruas Visconde do Rio Branco, Treze de Maio, Campos Sales, Francisco Glicério, Conceição,
Irmã Serafina, Benjamin Constant, Dr. Quirino, Luzitana, Regente Feijó, José Paulino, Ernesto Kuhlmann, Álvares Machado, Senador Saraiva e
adjacências... Ufa! Dava cansera... Porém o que eu gostava mesmo era
andar pelos corredores e contornos do Mercadão. Mais que fazer
ziguezagues em um prédio que parecia imensamente enorme aos meus
olhos infantis, ali eu mergulhava em um mundo do tamanho da fome que sentia por novidades. A sedução das cores em meio ao provocativo dos
cheiros... O burburinho das coisas, dos casos e dos causos a fervilhar a
imaginação... As mãozinhas pra trás, proibidas de tocar no que se expunha sobre as bancas... A boca fechada pra não entrar mosca, nem sair
palavra desavisada... Nisso tudo e num bocado mais, eu me sentia um
menino com chispas de alegrias nos trilhos dos sabores.
Hoje, muitos anos depois, eu constato a inevitável escrita natural encadernada pela cultura: cresci, fiquei barbudo, assumi a careca e me meti a cometer escrevinhações. De qualquer modo, ao longo das seis
décadas do meu desmilinguido curriculum vitae jamais me faltaram boas lembranças de como e quanto esse templo do comércio me batizara para
sempre nessa mundanidade da existência, ainda que essa mundanidade tenha sido por mim confessada e comungada muitíssimo tardiamente.
Bônus, ônus, bingo. Creio mesmo que graças ao Mercadão comecei a desconfiar ser possível viver a salvo dos anjos e apesar das palavras. Sim, já avançado em dias notei como os mercados provocam e promovem
insights e catarses com suas tensões entre a morte e o humor.
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Dissorti que devido causas históricas atravessadas por acasos e por conta
de minhas investigações acadêmicas entre os anos de 1992/1993 (... mais
especialmente em noventa e três) defendi minha tese sobre o Mercado Municipal de Campinas. Ou seja, também acabei botando banca como se
fosse um comerciante do Mercadão, só que noutra praça, na capitarrr.
Essa tese foi apresentada ao Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Universidade Pontifícia Católica de São Paulo (PUC-SP).
Compunha a banca examinadora os doutores Amálio Pinheiro (meu
orientador), Norval Baitello, Arlindo Machado, John Dawsey e Rubem Alves. Em tempo, aproveito para renovar, com muita ênfase, palavras de
respeito, apreço e admiração a eles todos.
A propósito, separei e reorganizei a parte conceitual desse estudo e a publiquei em 2001 pela Editora UNIMEP, com o título HUMORTE –
Cosquinhas semióticas no umbigo da entropia. Desde então considerava
inviável qualquer hipótese de também lançar como livro os outros tratamentos daquela tese. Todavia, penso que na esquina deste ano 2015
cheguei a uma alternativa que me animou publicar. Assim, quero com
HUMORTE – Botando banca no Mercadão oferecer à leitura mais ampla
alguns detalhes do Mercado Municipal de Campinas. Ao me valer desses
pontos demarcados em 1992/93, tentando recompô-los esteticamente,
assumo que tomei o Mercadão como texto cultural bem como possibilidade para texturas icônicas e verbais.
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Lembro que até a elaboração da minha tese não encontrara nenhuma
obra que fosse específica sobre a história do Mercado Municipal de Campinas (MMC). O que me fora possível conferir correspondeu a referências espalhadas em diversos livros, revistas, artigos e jornais que
citavam o Mercadão dentre outros assuntos. Desse conjunto selecionei trechos alusivos ao MMC que julguei dignos de credibilidade. Daí eu
reuni e articulei esse material dentro do meu ponto de vista. Isto é, fiz uma
escolha e uma mistura nitidamente subordinadas a uma perspectiva – o que significava que não tinha a pretensão de conferir à minha pesquisa acadêmica qualquer peso absoluto ou necessariamente irretocável; apenas assumidamente valorativa. E agora, mais de vinte anos passados, ao
recuperar aqueles elementos auferidos em 1992/1993, hic et nunc neste
códex, o que trago para você ler continua, sem dúvida, preconceituoso no
sentido que levei a sério o parâmetro HUMORTE que inventei e que me serviu de moldura tanto na seleção quanto na articulação do material
historiográfico: mo[vi]mento de te[n]são entre morte e humor.
Convém, portanto, explicitar pelo menos um pouco esse conceito HUMORTE. Diz respeito ao movimento que vi nos relatos sobre o processo de constituição do Mercado Municipal de Campinas e nos fatos que nele
testemunhei em meu momento existencial 1992/93. Com tal visada sob
esse enquadramento imaginei uma tensão portadora de tesão por n fatores
entre a morte e o humor. Destaco também que nesse conceito a menção à
morte sintetiza o grupo do excurso natural (rumo à perda, ao fim), e o indicativo ao humor representa a enorme variedade do recurso cultural
(em busca do ganho, da festa). Chamo atenção ainda para a preposição
entre que sugere meu conceito não estar focado isoladamente na morte ou
no humor e sim na relação entre a morte e o humor.
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De certo modo, penso que esse HUMORTE NO MERCADÃO talvez proseie
com o que meus antecessores escreveram sobre o MMC. E sem tirar o mérito do que já foi escrito sobre o Mercado Municipal de Campinas o realoco no quarteirão da minha teoria.
Imagino que conto comigo nessa empreitada o pensamento de Adam
Schaff: [...] dois fatores concorrem para a reinterpretação da história: a
emergência no processo histórico dos efeitos dos acontecimentos passados, o que constitui o significado destes últimos; a mudança dos critérios da seleção dos fatos históricos resultante de um novo condicionamento das atitudes e opiniões dos historiadores. (SCHAFF. História e Verdade, p. 227).
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Se em 1992/1993 não encontrei sequer um livro escrito, editado e
publicado especificamente sobre o Mercadão, hoje continuo com o mesmo
sentimento dessa lacuna. Se bem que, na verdade, em meados do ano de 2014 procurando novamente publicações sobre o Mercado Municipal de
Campinas encontrei na internet a dissertação de Mestrado em Urbanismo
O Mercado Municipal de Campinas: questões sobre revitalização dos centros históricos, defendida em 2010 na PUCC por Giselle Guimarães
Protti. O valor maior dessa pesquisa está na sua análise da relação
entorno/mercado dessa Campinas na virada do milênio. Contudo, esse
trabalho acadêmico até onde eu sei ainda não se encontra nas livrarias. Tomara que isso ocorra.
Por outro lado, descobri o livro A Cidade: os cantos e os antros, de José
Roberto do Amaral Lapa, publicado em 1995. A obra, excelente, apresenta Campinas na segunda metade do século XIX, com vasta documentação,
incluindo um capítulo dedicado ao Comércio & Mercados. Também tive o
prazer de conhecer outro livro: Mercados Urbanos, Transformações na
Cidade, de Valter Martins, publicado em 2010, a partir de sua tese de
doutorado defendida na USP em 2001. Trata-se de uma obra de grande fôlego, com rica investigação e ótima clareza na delimitação temática:
amplia o foco histórico sobre o abastecimento e o cotidiano na cidade no
período entre 1859 e 1908. Não se restringe, portanto, ao Mercado
Municipal de Campinas, nem ultrapassa a data de sua inauguração. Livro obrigatório para pesquisas no assunto.
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Sendo assim volto a apresentar o que você tem em mãos. Se seguir lendo
até o final perceberá que eu arranjei essas páginas de um jeito não muito consagrado. Uma explicação para isso é que investiguei e escrevi como
inquilino da dúvida, carente de certezas, apenas apostando numa
construção foto-literária a partir do que tentei ver na concretude do Mercado Municipal de Campinas.
Talvez eu deva sublinhar novamente uma ideia que atravessa as
entrelinhas desse livro: não há solução. Toda e qualquer resposta da
cultura, por ser justamente posta diante de uma completa imposição
natural, serve apenas como paliativo ao problema insolúvel último: o morrer. Com efeito, a linguagem da morte, mesmo sendo de uma eficácia plena, defronta uma teimosia ininterrupta. Essa outra voz às vezes engana,
fazendo crer encontrada a solução para o fim. Porém, por derradeiro, a gente percebe que não passou de mero consolo.
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Posto que um-movimento-visto-num-determinado-momento seja base
deste livro, também desejo que sua leitura deva acontecer conforme o
conceito de sinequismo apresentado por C. S. Peirce. Ou seja, o principio
da continuidade, porque impossível o conhecimento absoluto. Já que o signo está a mediar tudo, a significação se consegue ao longo do tempo (in
the long run meantime). Noutros termos (com perdão da subversão literal), numa semiose-em-serie: to mean every time.
Também por seu caráter não conclusivo este livro deixa em aberto suas
saídas. A reticência proposital pretende ser consoante a impossibilidade de
se abarcar, num só canto toda a comovida onda de te(n)são entre a morte e o humor.
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Assim, convido você a acompanhar as páginas irregulares deste livro.
Inclusive você pode aproveitar o miolo em silêncio de cada página para grafar seus pertinentes comentários. Sem dúvida, o que escrevo precisa ser
contestado, corrigido e complementado. Quem sabe, assim, o livro ganha
vida própria enquanto houver HUMORTE...
... E que bom seria se agora a gente pudesse espocar uma fruita no céu da
boca num gostoso pizzicato em contraponto para o apito daquele
trenzinho do caipira Villa-Lobos.
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História de riscos e risos
Respeitadas relevantes discordâncias, entendo que o atual Mercado
Municipal de Campinas é a quinta intervenção substantiva do poder público e político local nas questões de bens de consumo básico. Assim, anuncio esquematicamente a sequência cronológica das bancas
comerciais estabelecidas pela municipalidade campineira: 1815 – 1861
Casinhas.
1861 – 1893
Mercado Grande.
1872 – 1885
Mercado das Hortaliças.
1886 – 1908
Novo Mercado das Hortaliças.
1908 – Hoje
Mercado Municipal de Campinas.
Rua das Casinhas. Rua do Chafariz. Largo da Cadeia. Praça da Liberdade. Praça Correa de Mello.
Assim sendo, toda a grandeza do atual predião do Mercado guarda longínqua genealogia, tendo como suas tataravós algumas edificações muito humirde, bastante simprinha... Em oportuno trecho escrito para um
suplemento do jornal Correio Popular o historiador José de Castro Mendes
informa que [...] existiam as Casinhas, espécie de mercado construído em
1815 quando a Câmara Municipal decidiu levantar a sua primeira propriedade urbana na esquina da rua de Cima (Barão de Jaguara), canto do beco que tomou o nome de Beco das Casinhas, por causa daquela construção, uns cômodos destinados à venda do sal, toucinho e gêneros alimentícios, cujos aluguéis eram arrematados publicamente, segundo edital estampado pela imprensa. (CASTRO MENDES. História de Campinas, p. 2; destaques meus).
Conforme relato de outro importante historiador é possível saber o que aconteceu por volta de quarenta e cinco anos depois. Segundo palavras de
Júlio Mariano, o Delegado de Polícia Antonio Joaquim de Sampaio Peixoto,
pressionado por inúmeras reclamações contra os atravessadores e especuladores, envia ofício (datado de 01/10/1856) à Câmara Municipal
solicitando providências legais para que se possa combinar tanto quanto
se possa a abastança dos gêneros comestíveis com a liberdade do comércio. (MARIANO. Campinas de ontem e anteontem, p. 76).
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Composta em sua maioria por fazendeiros e senhores de escravos, a Câmara Municipal era imune às mordidas dos tubarões do comércio de
antanho. Porém, o custo de vida começava também, em 1859, a tirar o sossego das elites. Por isso, em 16 de abril o presidente da Câmara, Luiz
Henrique Pupo de Morais, sugere uma Praça do Mercado. Contudo, de
acordo com as ressalvas de Júlio Mariano, convém frisar [...] que a aludida
“Praça” inicialmente projetada não seria mais que insignificante Rancho, cujas dimensões [...] mal comparando, seria uma caixa de fósforos. (MARIANO. Campinas de ontem e anteontem, pp. 78,79).
Quando ia ser votada a proposta de Pupo Morais (29/04/1859) outro vereador que estivera ausente nas discussões anteriores pede vistas ao
projeto da Praça do Mercado. Ao estudar o projeto, Joaquim Egídio de Souza Aranha opina que se deveria construir um edifício que melhor
timbrasse com o progresso da cidade e assim apresenta novo projeto que,
em sessão extraordinária em 03/05/1859, acaba sendo aprovado no
fundamental: arquitetura de melhor gosto, ainda segundo palavras de Júlio
Mariano (Campinas de ontem e anteontem, p. 79, com meus destaques).
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Sinais desse cuidado pelo progresso e dessa atenção pelo melhor apareciam como detalhes políticos e estéticos que ampliavam a fama da
ainda jovem Campinas, assim recém-nomeada em 1842. (Abro parêntese
para lembrar que desde 1774 essa localidade chamava-se Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso de Jundiaí. Em 1797 o nome passa a ser Vila de São Carlos). Essa louvável fama
campineira pode ser conferida na obra Peregrinação pela Província de São
Paulo, escrita por Augusto-Emílio Zaluar. No seu prefácio Affonso d’Escragnolle Taunay afirma que o luso-brasileiro Zaluar ficou sobremodo encantado com Campinas, onde permaneceu durante dois
meses. Esse estado de ânimo do cronista viajante surgiu depois de certa decepção em sua passagem pela capital da Província.
As impressões de Zaluar sobre Campinas correspondem exatamente ao período intermediário entre a aprovação do projeto da Praça do Mercado (1859) e sua inauguração (1861). A saber: [...] direi agora algumas
palavras acerca do não menos importante comércio de Campinas [...]. Há na cidade sessenta e quatro lojas de fazendas e ferragens, vinte armazéns de gêneros de fora, e cento e dez tavernas [...]. Além destas, há três fábricas de licores, duas de cerveja, uma de velas de cera, uma de chapéus, três hotéis, duas casas de bilhares, diversas lojas de alfaiates, sapateiros, latoeiros, calçadeiros, torneiros, marceneiros, seleiros, armadores, quatro padarias, uma fábrica de charutos, três relojoeiros, três ourives, três retratistas em daguerreotipo e um a óleo, três pintores hábeis, e uma tipografia, onde se publica o “Conservador” [...]. Além das casas de comércio já declaradas, existem três de comissões de importação em ponto grande. (ZALUAR. Peregrinação pela Província de São Paulo, p. 137).
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Depois de fazer referência à localização de Campinas como entreposto de Goiás, Uberaba, Franca e outras povoações do interior com a corte, Zaluar constata: A casa da câmara e a cadeia, reunidas em um mesmo edifício,
apesar de edificados com segurança, são acanhadas para o lugar, e construídas com mau gosto e sem as condições convenientes para o seu duplo destino. No entanto, a falta de um edifício apropriado é bem substituída pela dedicação e atividade dos cidadãos que representam a municipalidade, pois se não poupam a esforços e fadigas para proporcionar à cidade todos os melhoramentos materiais de que carece, não só no calçamento das ruas e embelezamento das praças, como na edificação de um mercado, em que se trabalha com empenho, e se espera concluir nestes dois ou três meses. (ZALUAR. Peregrinação pela Província de São Paulo, p. 138; destaques meus).
E me valho ainda de uma derradeira citação dessa historiografia de Zaluar para transcrever seu elogio à figura do vereador proponente da versão
melhorada para a Praça do Mercado: Entre os homens cujo caráter pude
apreciar mais de perto, está naturalmente colocado o Comendador Joaquim Egídio de Souza Aranha [...]. Tronco de uma das famílias mais poderosas de Campinas, ligado pelos laços de amizade aos homens mais importantes da província, dotado dessa afabilidade simpática que tanto predomínio exerce sobre todos os que o conhecem, poderia sem custo exercer uma ditadura que a integridade de seu caráter, a pureza de suas convicções e o bom senso escrupulosamente rejeitam. (ZALUAR. Peregrinação pela Província de São Paulo, p. 139,140).
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Para caracterizar um pouco a edificação dessa Praça do Mercado, depois
chamada Mercado Grande ou, também, Mercado dos Caipiras retomo outro trecho daquele texto de Castro Mendes publicado pelo jornal
Correio Popular. O Mercado Grande tinha suas instalações originais
dotado de um corpo central, dividido em doze compartimentos, e de dois lances laterais destinados à casa de pesagem e escritórios da gerência. (CASTRO MENDES. História de Campinas, p. 3). Também faço gosto mencionar que esse historiador em outras publicações (Retratos da Velha Campinas e Efemérides Campineiras 1739-1960), apresenta a única
imagem que temos hoje desse Mercado Grande: um desenho feito por H. Lewis em 1863.
Esse Mercado dos Caipiras funcionou até 1893 e o aproveitamento de seu conjunto de salas foi alterado em 1896 por motivo sobremodo trágico. Ou
seja, o Mercado Grande se tornou Desinfectório Municipal a serviço da
Comissão Sanitária designada pelo governo do Estado para sanear a cidade, flagelada pelas epidemias de Febre Amarela (CASTRO MENDES,
suplemento citado, p. 3).
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Ainda conforme Castro Mendes, logo no início do ano de 1872 a Câmara
Municipal indica a necessidade de melhorias no Largo do Capim, onde se
projetava erguer um mercado para o setor de hortaliças. Essa indicação resulta em ato decisório em 29 de fevereiro desse ano bissexto: A Câmara
Municipal delibera estabelecer um mercado de hortaliças no Largo do Capim (atual Praça Antônio Pompeu), levantando-se as obras necessárias e com as devidas acomodações (CASTRO MENDES, Efemérides Campineiras 1739-1960, p. 41).
Não tardou muito, menos de meio ano, no início do mês de agosto de
1872, Joaquim Antônio da Silva Camargo, escrevente da referida Câmara,
publica um Edital nos seguintes termos: Faço saber aos habitantes desta
cidade e muito especialmente a quem interessar que no dia 10 do corrente mez de Agosto, às 6 horas da manhã, será aberto e exposto o mercado de hortaliças, novamente edificado no largo da Cadêa, ao concurso de todas as pessoas que tiverem a vender toda quitanda de hortaliça, leite, ovos, legumes e mais gêneros não adistrictos ao antigo mercado de víveres, bem assim aos vendedores de capim [...], de acordo com a transcrição de CASTRO MENDES (Efemérides Campineiras 1739-1960, p. 42). Com isso, Campinas
passava
a
gozar
de
dois
locais
estabelecidos
pela
municipalidade para o comércio das necessidades cotidianas básicas: o já
conhecido Mercado Grande (inaugurado em 1861) e agora esse Mercado
das Hortaliças, também propriamente chamado Mercadinho. Funcionou
entre 1872 e 1885, sendo palco de muitas situações polêmicas, veiculadas
à exaustão pelos jornais da época. Tais contratempos foram minando a sobrevida desse Mercadinho, ensejando sua extinção – o que ocorreu de
modo até meio abrupto, pouco favorável à parcela que nele
comercializava com alguma pertinência.
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Catorze meses depois da demolição do Mercadinho no Largo da Cadeia,
na véspera do Natal de 1886 foi inaugurado o Novo Mercado das
Hortaliças. Sua localização (defronte à contemporânea Escola Estadual
Carlos Gomes) desagradou a muitos comerciantes estabelecidos no
Mercadinho do Largo do Capim ou Largo da Cadeia que o consideravam
fora de mão, longe pra dedéu. Por isso o Novo Mercado das Hortaliças
permaneceu algum tempo praticamente fechado, considerando seu baixo movimento. Superada essa resistência inicial assim mesmo sua utilização
não parece ter sido tão intensa no plano econômico e nem extensa no tempo. Contudo...
Curioso que depois de inaugurado nosso Mercadão, o velho Mercado das
Hortaliças na Praça da Liberdade, abandonado como se encontrava, começou a servir de pouso às andorinhas que, aos milhares ali afluíam todas as tardes (CASTRO MENDES. História de Campinas, p. 4) até sua demolição em 1957. Hoje o local tem por nome Praça das Andorinhas.
Esse espetáculo no Mercado das Hortaliças alcançou intensa (no plano
cultural) e extensa (no espaço) repercussão.
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Em 1914, discursando no Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas,
o acadêmico Ruy Barbosa celebrou: Pelo límpido azul já sem sol, antes que
se lhe esvaia de todo o oiro dos seus átomos de luz, mas quando o crepúsculo entra a desmaiar do seu brilho a safira celeste, um ponto retinto, perdido nos longes mais remotos, se acentua em negro na cúpula do firmamento, lá, bem alto, bem de cima, como se a ponta de uma seta, desfechada perpendicularmente do além, varasse ali a redondeza anilada. Era um, e, logo após, são muitos, já vem surdindo inumeráveis, já parecem infinitos; já se cruzam e recruzam, e escurecem. Eram um grupo, e já formam um bando, já vem crescendo em longas revoadas, já se refervem em enxames e enxames, já se estendem numa vasta nuvem agitada. Toldaram o céu, encheram o ar, vem-nos ondeando sobre as cabeças. Agora, afinal, com os movimentos de uma grande vaga sombria, ponteada de branco, a librar-se entre a terra e a imensidade, baixa a massa inquieta, rumorejando, oscilando, flutuando, rasga-se na coroa das palmeiras, açoita os fios telegráficos, resvala pelos tetos do casario, e, ao cabo, arfando e remoinhando, turbilhoando e restrugindo, com o estrépito de uma cascata argentina, de uma cachoeira de cristais que se despedaçam, chilreada imensa de vozes e grasnidos às dezenas e dezenas de milhares, pende, mergulha e desaparece, numa imensa curva borbulhante, por sob o largo telheiro abandonado, que essa aérea multidão elegeu entre vós, para abrigo do seu descanso nas cálidas noites de verão. (CASTRO MENDES. História de Campinas, p. 4).
Motivo temático para as mais variadas experiências artísticas, essa
performance go-londrina pelos espectros das hortaliças lançou very far
away um slogan para Campinas: Terra das Andorinhas.
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Finalmente agora, convencido de sua paciente leitura até aqui, eu começo a transcrever alguns textos que contam a história específica do nosso
Mercadão. Abaixo, ipsis litteris, os dois artigos da Resolução 216 da
Câmara Municipal de Campinas, em nove de abril de 1906. Tal Resolução
é assinada pelo tenente-coronel Arthur Leite de Barros, vice-presidente da
Câmara e Intendente em Exercício (substituindo Francisco de Araújo
Mascarenhas). Também devo destacar que no segundo artigo já aparece o nome de quem veio receber a concessão de uso e exploração comercial
efetivada nos vinte anos seguintes. Artigo primeiro: Fica autorisada a
Intendencia Municipal a abrir concorrencia publica para a construcção de um mercado na Praça Corrêa de Mello, observadas, porém, as disposições estabelecidas na lei municipal n. 10, que rege a materia. Artigo segundo: A Intendencia, no edital que expedir para a concorrencia, tomará como base a proposta, orçamento, e planos que acompanharam o requerimento do cidadão Luiz Nogueira, referentes a esse assumpto. (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS. Leis, Resoluções e mais actos promulgados durante o anno de 1906, pp. 7,8).
Dois dias depois o secretário da Câmara, Leopoldo Amaral, redige a Lei
113, ainda assinada por Arthur Leite de Barros, que concede uso e gozo de terreno junto à Praça Correa de Mello para a Estrada de Ferro Funilense. No seu artigo segundo essa Lei determina: a estação de passageiros será
estabelecida no ponto designado na planta do mercado que a Câmara decretou. (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS. Leis, Resoluções e mais actos promulgados durante o anno de 1906, p.9).
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Em 29 de agosto de 1906 o Dr. Francisco de Araújo Mascarenhas (eleito Intendente Municipal para o triênio 1905/1907 e de acordo com as
palavras do jornalista Júlio Mariano na edição de 05/09/1978 do jornal
Correio Popular, o Dr. Mascarenhas era um popular e benemérito
facultativo) assina a Resolução 227 que declara de utilidade pública a
desapropriação de terrenos no Largo Correa de Mello.
Assim diz o texto oficial nos seus artigos primeiro e segundo: A Câmara
Municipal declara de utilidade pública a desapropriação de predios e terrenos, entre as ruas Benjamin Constant e Barreto Leme, situados á marguem da Praça Corrêa de Mello, necessarios á construcção do mercado, conforme a planta apresentada pelo concessionario Luiz Nogueira e modificada pela comissão especial, de acordo com o mesmo. Ao concessionário incumbem as despezas da desapropriação. (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS. Leis, Resoluções e mais actos promulgados durante o anno de 1906, p. 19).
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Embora não indicada sua autoria, julgo interessante uma reportagem:
Realizou-se ontem, as 2 ½ horas datarde, no largo Correa de Melo, a colocação da pedra fundamental do novo mercado do qual é concesionario o Sr. Luiz Nogueira. Ao acto assistiram os srs. dr. Araujo Mascarenhas, entendente municipal, dr. Costa Couto, Castro Mendes, vereadores, dr. Raul Telles, engenheiro da Comarca, Vicente da Fonseca Ferrão, Manoel de Moraes, Sidrac Nogueira, Luiz Nogueira, dr. Raul Soares de Moura, Augusto Fried, arquiteto, encarregado pelo dr Ramos de Azevedo, da construção do edificio e os representantes das 3 folhas locaes. [...] O dia estivera chuvos e momentos antes da solenidade caira forte batega de água que empapara a terra tornando-a escorregadia. Naquele pedaço de terreno os convidados moviam-se cautelozamente receiosos de tombos traiçoeiros e tentando, em balde, conservar lustrosas botinas que o barro feio, negro, insistentemente sujava. Nós em companhia do Dr Raul Telles, iamos analizando os drenos enquqnto que, potros, aqui e ali, em grupos diversos, falavam do mercado imaginando-o já construido e analizavam detalhes, esboçando coisas aereas onde muita gente se reunia para a venda de legumes, cereaes, atefatos da pequena indústria, etc. [...] A borrasca ameaçava nós e o dr. intendente deu como inaugurados os trabalhos. [...] Sr. Luiz Nogueira convidou as pessoas presentes a dirigirem-se á sala de seu escritório onde foi servido um ligeiro “lunch”. Ao champangne saudavam o sr. Luiz Nogueira os srs. Castro Mendes, Manoel Moraes e o dr. intendente que saudou no melhoramento iniciado um fato do progresso de Campinas. O sr. Luiz Nogueira respondeu o agradecimento e saudando a imprensa local. Por esta folha agradeceu o nosso companheiro José Vilagelin Junior. A festa correu no meio de alegria que se tornava maior ao passo que um ao outro narrava casos picarescos. (CIDADE DE CAMPINAS. Nº 1753, ano X, 01/02/1907).
Reproduzi literalmente essa pérola jornalística de cópia datilografada e
arquivada no Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas.
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Depois de um ano em construção, foi inaugurado em 12 de abril de 1908
o Mercado Municipal de Campinas (MMC). Esse fato praticamente
coincidiu com a transformação da Intendência em Prefeitura, com um prefeito ao invés de Intendente, eleito pelo voto popular, que foi Orosimbo Maia, empossado com a nova Câmara em 15 de janeiro de 1908, conforme as palavras de Júlio Mariano (Mercado Municipal antigo, mas firme. In Correio Popular, 05/09/1978).
Ainda comentando sobre o Mercadão no contexto urbano da Campinas daquela época, o citado jornalista afirma que a cidade era provinciana
com pouco mais de 35 mil habitantes, residindo em 5.400 e tantos prédios acachapados e dominados pelo vulto da catedral e das esquias palmeiras imperiais que contornavam o terreno baldio que é hoje o ajardinado Largo Carlos Gomes. Tão grande se ofereceu para a cidade da época o edifício do novo Mercado, que metade de sua faixa externa esquerda foi cedida para o uso da Estrada de Ferro Funilense, que ali instalou sua Estação inicial, denominada Carlos Botelho (MARIANO, Mercado Municipal antigo, mas firme. In Correio Popular, 05/09/1978).
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Em 1925 (dezessete anos depois de sua inauguração) o Mercado perdeu
sua relação simbiótica com a Estação Carlos Botelho (ponto inicial da Estrada Funilense), desencadeando alterações de uso e sentido no prédio.
Em 1933 aconteceram outras mudanças parciais como a busca de melhorias na iluminação através da instalação de claraboias.
Em abril de 1970 o Mercadão sofre a ameaça de vir abaixo. O Prefeito
Orestes Quércia notifica aos permissionários a desocupação do prédio até o “improrrogável” 31 de outubro de 1970, quando então daria início a demolição. Felizmente o imperdoável foi demovido.
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Em 1972, último ano do mandato de Orestes Quércia, a fachada externa do Mercadão fica azul e branco, numa duvidosa tentativa de embelezamento a partir das cores oficiais do município.
Em 1973, mais precisamente no sábado de 21 de julho, os jornais de Campinas estamparam fotos de uma reforma que, de certo modo, reinaugurou o Mercado Municipal de Campinas. Depois de quatro meses
em obras, o resultado foi uma completa requalificação interna e externa.
Bancas que datavam de 1908 deram lugar a soluções mais inteligentes, funcionais, higiênicas e seguras. Do lado de fora, além da substituição das
barraquinhas por boxes padronizados com portas de aço, foi ainda construído um estacionamento para veículos. Esta remodelação aconteceu no governo do Prefeito Lauro P. Gonçalves.
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Talvez um pouco tardio, porém felizmente efetivado, em 24 de janeiro de
1983 o Mercado Municipal de Campinas ganhou seu tombamento como
bem cultural de interesse histórico-arquitetônico pelo CONDEPHAAT
(Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo). Nas pautas do processo dessa Resolução assinada pelo Secretário Extraordinário da Cultura, João Carlos Gandra da
Silva Martins, há um conjunto de notas relativas à localização do MMC:
no quarteirão entre as ruas Benjamin Constant, Barreto Leme, Álvares Machado e Ernesto Kuhlmann, onde antigamente se chamava Praça Correia de Melo [...] deu-se não só pela necessidade da transferência do antigo mercado (onde hoje é o Largo das Andorinhas) que se encontrava superado, como também paralelamente a este fato, já existia neste local a Estrada de Ferro Cia. Carril Agrícola Funilense, havendo, portanto, a possibilidade de se construir num único prédio a Estação da Funilense e o Mercado Municipal. (CONDEPHAAT – Tombamento do Mercado
Municipal de Campinas, p. 28).
Interpreto que essa localização atendia um movimento de tensão do já
existente fluxo de pessoas e mercadorias (CONDEPHAAT, idem, p. 29) – o
que equivale dizer que a escolha do espaço físico para a construção do MMC está inserida em um processo de comunicação entre a sociedade e o urbanismo, talvez como resposta dialógica ao discurso cultural da cidade. Topos/Cronos econômico-político das revoadas.
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Ainda conforme o referido processo de tombamento foi encomendado
pela Prefeitura um plano ao Engenheiro-Arquiteto Dr. Ramos de Azevedo. O projeto consistia em uma edificação em estilo mourisco (CONDEPHAAT,
p. 29). Em fotos mais antigas esse estilo mourisco aparece não só nas
formas arquitetônicas dos volumes e massas, bem como nos traços figurativos de superfície nas laterais: arabescos e faixas horizontais
alvinegras. Estas quase remetem a uma leitura sob a lembrança do
esplendor marcado por mascavos encontros de luz e sombra, de fato & efeito, perceptíveis na milenar Mesquita de Córdoba (Andaluzia, Espanha).
Em 1992/1993 (período da pesquisa que adiante mostrarei alguns
registros icônicos e verbais) muito dessa graça mourisca estava sepultada
e parecia também sem chances de recuperação. Porém fantasmas dessa
tensão complexa e densa resistiram com sutileza e hoje, 2015, o velho Mercadão volta a ostentar uma roupagem à altura de suas origens.
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De qualquer modo, voltando no tempo, dentre alguns lances
historiográficos que resgatam signos do paradigma do humor, retomo trechos do já citado artigo de Júlio Mariano O mercado municipal antigo,
mas firme, publicado pelo Correio Popular em 05/09/1978. Nessa matéria o jornalista rememora situações encharcadas com a cultura do início do século vinte no entorno do Mercadão.
Nos domingos, o local era ponto de reunião para gente importante e para gente simples, ocasião em que se mesclavam todos os tipos de pessoas, inclusive malandros e mulheres da vida e também o Exército da Salvação, que aproveitava para ali fazer suas orações. Era o local ainda onde se encontravam os moradores dos povoados e sítios servidos pela Funilense, que vinham à cidade para fazer suas compras e tinham oportunidade de rever amigos e conversar a respeito dos mais diversos assuntos. [...] No largo entre a Escola Corrêa de Mello, construída graças às doações feitas pelo povo, que muito estimava o cientista e a ele queria erigir um monumento; e o Mercado, era o lugar dos alunos brincarem antes e depois das aulas, enfeitando o lugar com suas figuras lépidas e impregnando o ar com seus risos inocentes. [...] Detrás do Mercado, do lado esquerdo, existia a Bica do Serafim. Nela as lavadeiras lavavam suas roupas e as estendiam no chão, dando um toque todo especial ao local.
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No contraponto, agora transcrevo dois sinais de morte registrados na
reportagem Uma história de tristeza e curiosidade do jornal Diário do Povo, edição de 12 de março de 1987, na passagem dos setenta e nove
anos do Mercadão.
Faltavam alguns minutos para as 14 horas do dia 9 de agosto de 1945, e o motorista enchia o tanque da velha jardineira enquanto aguardava a hora marcada para a saída com destino a José Paulino e bairros vizinhos. Neste momento um dos passageiros riscou imprudentemente um fósforo no interior do carro, tendo como consequência uma grande tragédia assistida por todos que se encontravam naquele momento no Mercadão (que era o ponto inicial da referida linha). “A jardineira incendiou-se e carbonizouse com passageiros, sem que fosse possível abrir-se uma das portas para a fuga das vítimas que se atropelavam em desespero por entre as labaredas”. Esta notícia foi divulgada pelos jornais trazendo um triste resultado; nove mortos e nove pessoas feridas. [...] Tim, uma figura muito conhecida, viveu 60 (?) anos de sua vida no Mercadão, onde foi açougueiro, além de político. Tinha um amor muito grande pelo Mercadão, tão forte que pediu aos colegas de trabalho que quando chegasse sua hora, seu último desejo era se despedir do lugar onde passou sua vida inteira. Porém, não houve chance: Tim (Antonio Santagata) morreu repentinamente, mas os colegas de trabalho não deixaram por menos, pediram uma autorização ao serviço funerário municipal e no dia 19 de março deste ano [1987], os corredores do Mercadão foram palco de um cortejo fúnebre para a despedida do velho Tim.
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Portanto, pelas folhas hemerográficas campineiras farfalhavam ao longo
das décadas ris(c)os da oficialidade e da marginalidade ciscando no MMC.
Melhor dizendo, essas publicações indicavam que no (des)organizado
poder pululavam mo(vi)mentos de te(n)são. O limiar que separava o átrio
da perda, do fim e o antro do ganho, da festa era de uma imprecisão acachapante. Contraversões.
Em matéria publicada no Jornal de Hoje (05/07/81), a jornalista Vivi
Ceará relata: Uma mulher bêbada arrancou a roupa e urinou no chão. Ao
lado, duas crianças se esbaldavam em risos e caçoavam dela. A resposta da mulher era um palavrão. E os meninos achavam “um sarro” ver a velha “de fogo”. “Aqui é uma mistura de céu e inferno”, disse o garoto maior. Ele referia-se ao Mercado Municipal. Lá existe de tudo: feirantes, camelôs, benzedeiras, malandros, batedores de carteira, ladrões, mulheres de “viração” e os engraxates. E a jornalista complementa o toque de humor com a sombra da morte: [Os dois meninos] vieram de um bairro da periferia recolher os restos de carne e verdura – que são jogados no final da tarde – para o jantar de todas as noites.
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Ainda conforme a jornalista Vivi Ceará, o maior problema dos engraxates
são os trombadinhas. “Eles chegam ao fim da tarde para pegar o nosso
dinheiro”, diz Marcos A. A. (13 anos). “Se a gente não dá, eles encostam a faca ou um prego pontudo, grande, na costela da gente. Aí o pau come”. Wilson D. A. é o chefe do bando de engraxates. Tem 17 anos, e por ser o mais velho, é respeitado e resolve qualquer tipo de problema que o grupo enfrenta. Principalmente se for com os trombadinhas. Ontem, porém, estavam revoltados. Wilson apanhou de um policial por estar jogando baralho: “A gente estava jogando 21. A polícia bateu a troco de nada. Bateu porque quis bater”, contou. Segundo eles, “foi duro ver o Wilson apanhar. O 21 é um jogo gostoso. Todos nós jogamos”, disseram. Daí o Marcos (irmão de Wilson) olhou para o lado e viu o número do ônibus que chegava no terminal: 5.574. “Vejam lá – gritou para os demais – o número dá 21...”.
Centenas de outras histórias e estórias ilustram os movimentos de tensão entre morte e humor no MMC. Inúmeros casos e causos pertencem
apenas à tradição oral. Contudo, devo repetir com ênfase o
informe/resgate de Nilson Ribeiro que no seu texto Se o Mercadão
falasse..., lembra o trabalho de Zaiman de Brito Franco que por muitos anos contou a história de muitos personagens do Mercadão nas páginas do extinto Jornal de Hoje. [...] Ele narrou, como ninguém, histórias do Kirk Douglas, do Laxixa, ou da Terezinha Jipe, uma semiprostituta que ninguém mais queria e então vivia molambeando aí pelo pedaço (RIBEIRO, Jornal de Domingo, 14/04/1991).
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Por essas e por outras, abuso de minhas interpolações hermenêuticas
sobre as convidativas palavras de Flávio N. Cordeiro, Mercadão:
romantismo que a cidade grande não apagou, encontradas na edição do dia 20/01/1985 do Correio Popular: Quem quiser conhecer um pouco da história de Campinas tem no Mercadão [semiótica da nomeação popular que redefine a amplitude do significado] um ótimo referencial [reapresentação/signo da cultura]. Quem depara com o Mercadão sem nunca antes tê-lo visto sente que chegou num lugar ímpar da cidade [ostraniene/estranhamento cronotópico]. Há a impressão de que todos e tudo interagem em movimentos [tensão] advindos de contingências sociais [acaso/ocasião]. As atividades são diversas e, consequentemente, os interesses não têm a mesma direção [anti-síntese na contramão da consolução]. [...] Da calmaria das “horas mortas” à tempestade dos horários de pico [...] o Mercado Municipal é um porto, onde o grande navio é o povo que vende, compra, ri, chora, aprende e ensina [humorte], mas que, sobretudo, volta sempre em busca de uma nova experiência [botando banca], novas aventuras, num local que ainda é dele.
Como último parágrafo dessa breve e panorâmica história de riscos e
risos, lembro que em 2014, pela quarta vez consecutiva, o Mercadão ganhou o primeiro lugar na enquete Eu amo Campinas promovida pela
Revista Metrópole – publicação dominical do Correio Popular. Nesse ano em que a cidade completou 240 anos, receberam votos através da internet vinte e um pontos turísticos de valor arquitetônico e histórico. Com mais
essa conquista o Mercado Municipal de Campinas ficou reconhecido e foi declarado pela Metrópole como patrimônio hors concours na cidade das
andorinhas.
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Em noventa e três
O que parecia brincadeira no meu texto acadêmico em 1993 fica
repaginado neste livro em 2015. Então e agora índices sugerem
esvaziamentos e excitações. Acumulei perdas e reinventei alegrias. Por isso as páginas continuam boquiabertas, escancarando molduras aos
mo(vi)mentos de te(n)são entre a morte e o humor. Nessa aparência
assumo uma fazeção lúdica com pretensões hermenêuticas visceralmente
vazadas nos hedônicos registros da luz e do logos em seus laivos
abductivos e entrópicos. Afinal, já que tudo acaba, banquei um muleque meio arteiro no Mercadão, brincando com a fotografia e a poesia.
Antes de apresentar as fotos e os poemas produzidos para a tese de 1993 e ajeitados neste livro, considero oportuno retomar só um cadiquin uma
referência teórica para essas mesmas imagens e palavras. Trata-se de um
detalhe que julgo muito sugestivo do pensamento de Ivan Bystrina em sua
Semiotik der Kultur. É o que esse instigante pesquisador tcheco chama
“universais da cultura”, ou seja, elementos complementares (e, portanto,
não excludentes entre si) que formam a cultura em suas diferentes
construções ao longo do tempo e do espaço. Em termos tópicos, os
universais da cultura propostos por Bystrina são: binariedade, polaridade, assimetria e indicativo para a ação. O caráter peculiar de cada universal
da cultura pode e deve ser decodificado dentro de recíprocas relações. A
particularidade se estabelece ao compor um todo sistêmico, ao fazer parte de uma estrutura.
A binariedade é o elemento base da cultura, fundamento da troca de
influências no mundo da matéria e na comunicação social. A polaridade resulta de uma aplicação valorativa na separação binária, configurando o positivo e o negativo. Na assimetria se constata a prevalência do negativo,
seu poder último. Diante disso surge um indicativo para a ação, uma teimosia, um faz-de-cont(r)a que tenta empurrar o fim para depois. Com
esses quatro universais da cultura que constituem (de forma parcial e
complementar) o texto semiótico do Mercadão procurei [re]tratar respectivamente mo(vi)mentos de te(n)são das duplas, dos distantes, dos desequilíbrios e das diz-obediências. Em suma, equivalente a outros
fenômenos semióticos produzidos pela corporeidade, o Mercadão é
cultura, é jogo de signos a driblar a natura – essa beleza inexoravelmente propensa ao crepúsculo. Ou seja: Mercadão é humor diante da morte.
41
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Quando inaugurado em 1908 o Mercadão se destacava como prédio em
meio ao vazio circundante. Era nítido sinal de progresso. O abastecimento pela via ampliada do comércio e o ritmo sincopado da Maria Fumaça
davam o tom do desenvolvimento da Terra das andorinhas. Em
1992/1993 a selva de cimento e ferro, contornando esse clarão arborizado, contemplava com cobiça essa resistência recapitalizável em
milhares de bytes por segundo. E bota baitas bytes ni$$o. HUMORTE em binariedades. HUMORTE das duplas.
PANORÂMICANDORINHA
espaço
campinas
topografia tomada pelo vértice tempo
mercado
teimosia tombada no vórtice
... e se revoadas se esvanecem em dígitos nostálgicos, mestiçamente softwares hilários se aninham de esgueio
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Em mil novecentos e noventa e três todas as passagens de entrada/saída do MMC apresentavam o mesmo desenho e possibilitam também uma leitura
semiótico-cultural binária. A oposição do dentro/fora nas paredes e
fachadas dos portões do Mercadão remetia a signos carregados pela
influência ibérica. Observados internamente os vidros filtravam a luz natural em verde-amarelo, evocando nossas cores desde D. Pedro – um português. No lado externo ficava destacado o estilo mourisco trazido pela
tradução/tradição espanhola.
PORTÃO IBÉRICO
de fora,
no banho da tarde,
plástica coreografia andaluz de dentro, legada em contraluz,
cromática herança lusitana
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O contraponto entre funcionamento e descanso exibia os boxes das partes
externas do MMC como um jogo que engole-e-teme a excitação das
trocas. Daí esse outro modo como constatei uma oposição no contemporâneo: numa tarde de domingo, a ausência das barricadas e trincheiras montadas durante a luta semanal de fuças e foices.
DIAS [IN]ÚTEIS
um e outro
aperto aberto
fachada fechada to(l)do acanhado,
bornalzinho baba rente
com medo da língua de sogra to(l)do assanhado,
bonezinho papa gente com dedo na íngua que logra
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Na lateral interna do lado nordeste do MMC fotografei a parte superior da frente do primeiro box e toda a entrada do último box. Situados em cantos
extremos, coincidentemente eram esses os dois boxes que melhor conservavam em 1992/1993 o desenho arquitetônico original das colunas
e dos arcos. Nos demais boxes constatei ruídos e alterações maculando a percepção e a fruição do estilo mourisco.
FLAUTEIO
cá
com cana
carne
curvas
compras
capelas
contorno
caos
só
sem sede
sorte
sonhos
sombras
saudade
segredos
capricho
serpente
......
......
...... ...... ......
...... ......
......
......
......
......
......
......
......
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Os portões do MMC evocavam lendas árabes. À noite esses portais pareciam passagens para aventuras de beduínos sobre seus dromedários,
deserto afora, mascateando toda sorte de raras especiarias e preciosas bugigangas. E não muito diferente disso as imagens desses mesmos
portões no dia-a-dia com seu corre-corre comprovava o pessoá quase
trupicano...; num vai-e-vem em buscas meio bruscas. Era o reflexo do suor da lida no coração da urbe.
TUDO, SEMPRE E UM POUCO MAIS
miragens para o camelô dos sonhos
nas mil e uma noites com Sheherazade passagens no camelar do dia para as tendas com mil e uma utilidades
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Duas imagens dos corredores internos do MMC. Um instante do barulho corriqueiro em contraposição ao silêncio depois de fechado o expediente.
PISCADA
no faiscante flash do fechabre d’olhos, perspectiva em fuga no retorno à rotina:
rotativas que enrugam os [b]rotos na retina
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Variações da binariedade em dois registros. Distinguindo número e faixa
etária, três adultos e um adolescente. Faxinas dentro e fora do MMC. E ainda um paradoxo a resolver pela inversão praticada pelas duplas: quem
arrastava poeira e pó calçava botas impermeáveis e quem usava mangueira d’água vestia chinelos.
SECOS E MOLHADOS
chinelos
galochas ecos olhados
no contra-pé das limpezas
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Fantasmaguada. Quando chovia o MMC passava a significar também abrigo, proteção... Nessas horas havia uma negação da razão precípua
(comercial) e se instaurava uma função aditiva, evidenciando junto ao
“mesmo” da coisa mercantil uma alteridade suplementar. Nesse outro modo de funcionar o MMC atualizava outras relações binárias: usual/extraordinário, programado/oportuno etc.
SOMBRINHA EM CENA
à parte do movimento borrado
fugitivos das gotas negaceiam negócios e ao (m)olhar de viés espelhos e espectros irresistível b(l)onde chama desejos
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A dupla racional/obtuso mostrou justapostos seus nítidos e escorregadios
sinais de segurança. Eram disjuntivas dependuradas na quina da nesga
distraída.
CONSIGNATUS
como cão
de lado alado
sinto tanto cinto
coerente à corrente prender é perder
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Pelo “a” e pelo “o” um jogo binário com elementos da natureza e criações
da cultura. A matéria prima e a indústria... O conteúdo e a embalagem...
Um jeito de olhar através do recorte de gênero gramatical. Coisas da última flor que laça e encurta a sela.
ELA, ELE
a terra, o ar
a fita, o fumo
a água, o fogo
a caixa, o vidro
a areia, o escuro
a folha, o plástico
a palavra, o desenho a ave, o barco
a borra, o cisne
a garrafa, o papel a mercearia, o artesão
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Ao aproximar mercadorias vendidas em boxes localizados em cantos
opostos na área externa do MMC admiti figuras se metamorfoseando.
Vali-me de lúdicas contradições referenciais em nome dos lances de
vida/morte, calor/frio, odor atraente/cheiro repugnante.
DEBI(LI)TADA BELEZA
tragadas nos canteiros oceânicos
pétalas aquáticas jazem olhares perplexos como que boquiabrindo gélida sina: aquecer quem abarca e desvela vangoguianas escamas aromatizadas de sol
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areceu-me interessante sublinhar a existência no MMC de mercadorias que atendiam demandas do binômio materialidade/espiritualidade. Ícones
se destacavam na religiosidade popular. Nossa Senhora Aparecida e
Iemanjá eram artigos para o consumo indiferenciado (ainda que
codificados por crenças bem distintas) nos boxes que comercializavam o capital simbólico da fé.
ESSES AZUIS
negra dos brancos branca dos negros
rainha nos rios, beata dos bares
madruga nos mares, coroinha dos cios grossa manta maternal
véu com tanta graça sensual frígido triângulo num lânguido êxtase
gostosa curva que turva quaisquer juízos olhada no veludo que veste, uma virgem seria
molhada no vestido vazado, a sereia pra vertigem mão que pede respeito e prece tesão que impele e ao leito se oferece
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No mais comezinho procedimento do negócio/empório ocorria uma
binariedade granulado/compactado. Nesse encontro de diferentes, sons
peculiares eram produzidos na coleta, na pesagem e na devolução ao saco.
Aliás, mais uma nuance notável: diversamente da rapidez no recolhimento
de mercadorias já embaladas (nas gôndolas dos supermercados) o tempo
gasto nesse procedimento de coleta/pesagem no MMC era, ainda,
impagável tempo/resquício do reduto interativo/comunicacional pelo
cara-a-cara entre comprador e vendedor.
SOMBRA VERDE
folha flandres
folículos e farelos
sinuosa reentrância do marinho no amarelo
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Depois de esgotado o expediente, escurecia em seu interior o casarão do
MMC. Todos os boxes vestiam seus trajes noturnos e contabilizavam nos arquivos do onírico seus vestígios do dia.
QUARTO DO NENÊ
de tanto sono
nem deu pra guardar o chinelo-carrinho de tanto sonho
até deu pra guarda montar com caixote-soldadinho
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As fotos que expõem o MMC no recesso de sua intimidade na madrugada
mostram signos de curiosos desarranjos em suas intestinas fazeções. Com o devido respeito a você que lê estas páginas, tomo a liberdade de lembrar
uma expressão recorrente em 1993: esse país tá uma merda! Assim sendo,
meu comentário foto-poético detectava, na noite do Mercadão, alguns
troços: um Brasil deitado em posição suspeita, uma sacola pendurada de
maneira meio surreal (como sói acontecer nessas plagas) e uma folhinha de alface jogada ao chão, num desperdício nada higiênico. Nesta leitura, portanto, algumas diferenças dessa nossa terra in-festa em perdas.
COCÔ NO PIJAMA
o
meu
ditado
é ter na mente
em verso esplêndido
o sacolejo de ponta-cabeça
que deixa na faixa do chão a face mais tenra da terra
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Quando as duplas são revestidas de valorações surgem polos
supostamente negativos e positivos. Como nessa foto de noventa e três o que está em cima, de pé, no seco, mais claro, rumo à direita..., parecia
valer mais do que aquilo que estava em baixo, de ponta-cabeça, na poça
d’água, no escuro, pendendo para a esquerda. Assim foi possível
considerar HUMORTE em polaridades. HUMORTE dos distantes.
CINZA CONTRA AZUL
meio célere
corcel cavalga
enquanto mouros
mor(n)am às avessas no assalto asfáltico
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Em outra brincadeira visual/verbal entre o externo e o interno, entre o bastante heterogêneo e o meio homogêneo..., alinhei pelo MMC minhas
pontuações afetivas. No estender dos horizontes definidos, um valor infinito se verticalizou. Página punctual e confessional. Hermética ma non
troppo.
MILLIUM. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . .
enquanto espigões
silhuetam fálicas falácias, por um fio, de estalo,
pombo pipoca silogismos azuis
para um flamboyant em menarcas . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . .OMNIBUS
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Mais de cem anos atrás, conforme valores (culturais) dos segmentos
política e economicamente mais fortes, signos promotores de prestígio
foram alçados no centro do MMC. Nessa hora a noção implícita de justoreconhecimento ficou endereçada a um reduzido grupo de notáveis.
Porém, no vazio da lembrança permanecem braços e cabeças que, de fato e, com efeito, construíram toda essa ho(n)ra.
(M)ARCOS
honra em
baixo relevo
flutua poderes um dia, dois nomes;
contudo resta o silêncio movimento dos arcos
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Excetuados seus sentidos formulados por religiosos ou hedonistas, prevalece um sentimento generalizado de que o domingo é próprio da
inutilidade, da marginalidade. É óbvio que essa valoração negativa é
consoante o código que atende à produção e ao consumo do negócio (em
latim, nect otium, negação do ócio; em contraposição à perda e ao
desperdício). Conforme as fotos à esquerda, portas e olhos estavam
fechados; a inatividade presidia o tempo; as sombras exorcizavam os
compromissos da pressa. E nisso tudo um desdém perpassava pela nomeação pejorativa: vagabundagem.
VENDAGEM
{taedium}
tarde tarda
mãos à sobra
domingo vadio
negócios no ócio
vendas ao devaneio
desejo pe(r)dido no vazio
esquina das mui santas visões salve nossa senhora de olhos fechados
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Quando a persuasão da ideologia fracassava, a eficácia precisava se garantir pela força da imposição. Com isso se evidenciava como o suposto valor não brotava e nem se sustentava natural e necessariamente; assim confirmando seu caráter histórico: arbitrário e fictício.
DEPOIS DAS DEZ
paço sob suspeita
se ajeita como laço abraço feito espreita pra colheita do bagaço
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Na esquina norte do MMC, uma polaridade invalidava as coisas da
periferia social. Na esquina noroeste, outra polaridade invalidava a periferia material.
(A)PELO
toda noite
do teu ventre,
vaginando fugaz,
ah! quanta puta te pariu
(A)FUNDO
noite toda
e-vento vem,
qual peido de luz,
em so(m)bras do desejo
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Rapidamente o público consumidor percebia no Mercadão coincidências
felizes. Áreas setoriais opostas no conjunto arquitetônico do MMC
alocavam de um lado mercadorias com aromas agradáveis (como flores e
frutas nos boxes na faixa leste) e em outro lado as mercadorias com odores mais difíceis para uma apreciação imediata (nos açougues de bovinos, suínos, aves e pescados na lateral oeste).
CHEIROS E LIXEIROS
à direita
coisas de afetos
dejeto de coisas à esquerda
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Em uma quina estreita junto à entrada principal do MMC, às vezes era visível uma presença importante. Portador de uma limitação motora na perna e no pé, um jovem sempre bem vestido trabalhava sem muita
regularidade, porém com muito capricho. Não tendo a condição de permissionário, mesmo assim ele obteve, graciosamente, liberação para rolar/instalar sua cadeira de engraxate na área externa mais movimentada do Mercadão.
GRAÇA E GRAXA
assim pregado
púlpito parietal
joão catorze seis lastro para o lustro numa cátedra rolimã
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Uma corpolatria de superfície também marcava presença no MMC. Nos
idos 1992/1993 já era acentuada uma intensa valoração em torno de
pesos & medidas inflexíveis envolvendo a materialidade corpórea. Daí que uma inocente linguicinha podia significar uma pesadíssima tentação.
Desde então parecia que mais grave que o pecado da gula era quebrar outro s/agrado mandamento: não engordarás.
CORTINA DE COLESTEROL CURTIDO
uma
ilha azul
sem adiposidades
surfa por entre virilhas de suínas Bahamas parafinadas
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Mais um contraste de cores e linhas no MMC. Numa primeira visada notei
e destaquei o valor da repetição, do mesmo, do conformatado. Tomando
mais tenência, porém, percebi que emergia outra qualidade mais interessante: a diferença, a surpresa. O inesperado, antes em detrimento,
se assanhava, saltava à vista. Ou seja, de cara, meu olhar raso rimou com
ingenuidade; depois de algumas revisões fui provocado para o estranhamento – essa função estética na cultura. Acho que valeu.
RUBROS MUSGOS
toda regularidade das lágrimas conden(s)adas o aleatório ciliar da língua ígnea ignora e per-verte ~
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Pareceu-me que o cromatismo de algumas naturebas clássicas que circulavam pelos perímetros das estantes hortifrutícolas remetia a
estamentos étnicos no MMC. Valores polarizavam, pelo avesso, o ser e o
comer. Em trocadilhos ignóbeis cometi um contrapeso: Mercadão como cesta para ontologia antropofágica.
TRADE’S RADICAL COLORATION
since insincere centuries portugueses e sudaneses
against the tupi or not tupi π man
tão
too
mani oca
much
death off the question
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O Amigo da Onça, personagem temperamental de Péricles de Andrade
Maranhão, completava cinquenta anos em 1993. Com seu humor corrosivo continuava figurando sua elegância irônica nos boxes do MMC.
Subvertendo valorações consoladoras, às vezes despertava saudade da palavra em con-fiança.
PERIGRITANTE
quem semioti$a amigo é nessa geringonça não pesa o quanto vale
um fio de barba por si(g)nal
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No início dos anos noventa Fernando (não o Sabino) bem soubera ser uma
estrela no folclore do pedaço. Sua fama, entremeada de requebros, lhe garantia provocações, assobios e até mesmo insultos. Com isso pagava
caro o preço numa transação em que a mercadoria era a fantasia dele
mais a do povo lhe cortejando. Sua performance era o negativo absorvido para oportunizar a positividade da explosão do que estava reprimido.
ENCONTRO MERCADO
oi
tá bom
topo tudo, tudo
isso mesmo, às nove e meia
bem lá trás, do outro lado do terminal adeusinho, viu
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Sem querer, acidentalmente, por acaso, produtos expostos no MMC ensejavam uma hermenêutica malandra frente a contiguidades aleatórias.
Foi ocasião para um jogo em homenagem a um famoso escritor tcheco, nascido num primeiro de abril – dia consagrado às trapaças e aos truques.
INSUSPEITÁVEL CRUEZA DO VER
vitrine e martelo como vibrato vítreo
xícaras e trincas como triviale colazione
pentes e pilhas como panatônicos capilares
bolinhas e resistências como infância aquecida e na indisfarçável bruteza do ler, a brincadeira, vilã, pondera
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Amoitado de través bem como urubuservando pelo buraco de um caixote lá estava eu a ispiculá o Mercadão. Assumo que por esses devorteios
epistêmicos assinei meu exercício existencial. Repito: o que havia mostrado na tese de 1993 e o que exponho neste livro de 2015 nada mais são senão jogos semióticos diante do intransferível fim. HUMORTE em
mo(vi)mento de te(n)são.
BOTANDO BANCA NO MERCADÃO
do nó que olha
para o olho do nó
vingam visões vazadas natura segura dura sepultura
cultura matura futura ruptura
tesura perfura obscura urdidura
escritura moldura voadura leitura
frescura conjectura impura figura feitura sutura caricatura ventura loucura augura miúra gastura
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Consoante perda de suas cores originais, em 1992/1993 toda aquela
presença cromática mourisca estava sepultada, impossibilitando o
desfrute do humor do MMC na plenitude de seus arabescos. Essa foto ao
lado serve como sinal, como emblema das discrepâncias pelas quais o negativo se mostra vencedor. HUMORTE em assimetrias. HUMORTE dos desequilíbrios.
POR QUEM O SIGNO DOBRA
ocre cobre
branco breca lustros sem listra
no anzol da saudade escoa na vel(h)a fac(h)ada
o horizonte oblongo da hora
º
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Constatei, com pesar, perdas no MMC decorrentes das reformas que mostravam o quanto deformaram aparências e substâncias arquitetônicas
ao longo das décadas. O cômodo que antes era ambiente para ventilar negócios funcionava em 1993 como quartinho com máquinas frigoríficas. Tanto assim que as janelas estavam internamente tapadas com obra de
alvenaria. Outro detalhe: a umidade fez soltar a camada de pintura, evidenciando a anterior (e também diferente da original) de gosto
discutível e duvidoso, cujo azul fazia referência às cores da cidade e sua padroeira. A precariedade parecia sem saída.
MIRAGENS
o cromo já era
e o puído se esgarça
maculando o basculante
a la nossa senhora conceição baba ali no refrigério da câmara inconcebível êxodo
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Em noventa e três muitas ferragens junto às calhas do MMC estavam
condenadas. A elegância corria por água abaixo. Eram dias contados. Dava pena.
OXIDAÇÃO
sinuosidade detalha
sinonímia embaralha sinusite escangalha sinuca avacalha sino gargalha sim falha
mas o passarinho (lindinho!) toma chuva e nem enferruja morre!
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A binariedade, polarizada e assimétrica se prestava para ser conferida entre o visual e o verbal, entre as fotos e o poema, entre o explícito dos
textos (plásticos e literários) e a textura implícita da cultura referente, entre as imagens e a imaginação...
CALAFRIO
do óleo
da fibra
da folha
da batida
da mistura
da cumbuca
do spot, do pasto
do preço, do prazo de tudo as sombras são
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Flagrei-me cúmplice de um olhar enviesado na lateral da antiga
plataforma da Funilense no MMC. No oblíquo da história o passado sugava um glamour que nem sempre se podia sequer suspeitar. Quem
viveu depois nunca chegou atrasado; faltou-lhe referência do ontem. O futuro era uma perda esfomeada.
ANACRÔNICA
o trem já se foi
passou também o bonde
e delicadezas não tomam ônibus nostalgia não se negocia
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Antinomias do cotidiano na assimetria do real. Exatamente os dois
vendedores de loterias exibiam o absurdo da sorte na mesma lateral do MMC. Um deles sem uma perna; outro com unha destoante. Mesmo assim lhes sorriu a fortuna de um rebolado indefectível.
MILHÕE$ PARA MIL#ÕES DE MILHÕÕÕES
sorte senta à saída; sorte saúda ao largo requebro tara quem balança meneios pela metade membro mambembe belisca; paródia perambula paradoxos deficiência raspa de ponta-cabeça curetagem com sabugo na santa
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Pelos meandros do voyeurismo no MMC, à moda boêmia da velha Lapa,
polarizavam os desejos últimos em feitios de oração: quem [se] achava
vivia se perdendo (Noel Rosae). Assimetricamente a vaidosa nevoa da vida,
por mais encantadora que se configurasse em plástica, se dissipava como imagem que se esvaía em espelho embaçado.
LAPA[RO]SCOPIA
rosane castor rosinete denebola rostos e bustos
roçar de estrelas
nos flancos em farfalhos rosnando macio cicio riçar de estrelas
riscando rente à pele crispas e ranhuras
mas em silêncio abissal
pulsa nas águas dos olhos a falha do espe[ta]culo
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Em 1993, época pré-Euro (€), meia dúzia de boxes do MMC exibiam
camisetas oficiais de alguns clubes campeões de torcida no Brasil. Os
nomes dos patrocinadores figuravam estampados em dimensões bem
maiores que os próprios distintivos do Vasco da Gama, do Palmeiras, do Flamengo e do Corinthians. Assim se reforçava visualmente o desencanto das pretensões mais românticas do esporte bretão. O faturamento direto
(ou em dois-toques) da publicidade era o lamentável contra-ataque simbólico aos saudosos rachinhas de tempos e espaços baldios, quando e onde os peladeiros se enfrentavam com peitos maravilhosamente vestidos apenas de alegria.
GOAL OF MARKETING
nomes enormes
berrando em barreira
triscam trilhões de tostões escudos pro refrigerante florins pro lubrificante libras pra papelaria liras pra leiteria nomes enormes afanam o jogo sem off side
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Dentre os 148 boxes do MMC visitados em 1993 eu não achei nenhum
que vendia exclusivamente objetos devocionais do cristianismo. Contudo
encontrei três boxes alocados na parte externa, nordeste, que comercializavam artigos específicos da umbanda e do sincrético
candomblé. Nesses estavam os remédios para as doenças do coração (inveja, ciúme, solidão, cobiça), para as doenças do sexo (carência, traição,
impotência), para as doenças da sorte (falta de saúde, de dinheiro). Quem sabe essa farmácia popular equivalia a uma saída compensatória diante dos desmandos da existência para a morte (Heidegger).
CORES E ODORES DE[CORA]DORES
tumores, rumores
sólidos e naturais:
quando uma semente mente mais
tremores, clamores
líquidos e artificiais:
quando uma tentativa ativa mais
humores, lavores
insólitos e culturais:
quando uma palavra lavra mais
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No MMC também pude sublimar negativos. Em um dos boxes mais
tranquilos, organizado em forma de sala de visita, tendo um balcão ao fundo e com a maior área livre para circulação, o negócio envolvia
produtos que atendiam ao consumo de necessidades próximas à elegância.
O vendedor era o João que lia a Bíblia enquanto aguardava compradores. Nas prateleiras as caixas de sapatos denominados 752, pela imagem
invertida no espelho, pareciam reproduzir de ponta-cabeça os caracteres hebraicos dos papiros sagrados.
TEMP[L]O DE CHAPÉU E SAPATO
celebrando conversão da imagem algarismos invocam letras
livros consagram enigmas e o obscuro hospeda uma espera
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Conheci essa mulher diante do MMC. Enquanto tirava as fotos consentidas, posadas, ela falava com simplicidade arrepiante sobre seus
calos nas mãos, suas jornadas carpindo e colhendo como boia-fria. Disse
também que desejava uma cópia da foto e que não tinha como pagar.
Senti que era uma mulher em tom azul-lesado. Combinamos nos
encontrar na semana seguinte, no mesmo local, no mesmo horário. Ela nem sabia ao certo se poderia voltar. Esperei por ela conforme o acordo.
Não nos reencontramos. Décadas depois, com este livro talvez eu seja gratificado: entregar finalmente a essa senhora tão sofrida e tão bonita uma lembrança daquela sexta-feira – o feriado de nove de julho de 1993.
BLUE LADY
cebola: embalagem pro vazio
rosa: batom pra alma
entre o trivial e a transcendência ensopa estopa morena do enigma
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Em versão gaiato-getsemânica, uma gagueira corpoética experimentou a
prevalência do cansaço, do enfado, do esgotamento...
DESMONTE DO OLIVEIRA
spiritus promptus est, caro autem infirma
spiritus promptus est, caro autem infirma spiritus promptus est, caro autem infirma spiritus promptus est, caro autem infirma spiritus promptus est, caro autem infirma
spiritus promptus est, caro autem infirma
spiritus promptus est, caro autem infirma spiritus promptus est, caro autem infirma spiritus promptus est, caro autem infirma spiritus promptus est, caro autem infirma cansei pra cacete, num sô sopro feito ferro
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Coleta de carcaças na lateral oeste do MMC: um espetáculo do inevitável fim.
FIAT LUX
após arrastado após esfolado após serrado após pesado
aposentado
margeia essa óssea
busca de carne sebosa
espremida em margarinas
e delícias
haja pus!
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Certa feita o portão oeste do MMC pendurou uma cena constrangedora ao cair da tarde. Baixou ao solo a dignidade por conta de um sistema socioeconômico tardiamente implantado nessa barriga do ocidente.
MORANGA OCA
junto ao lixo
figura absoluta:
um corpo com fome junto ao lixo cisco que engasga:
trejeito do trajeto trágico junto ao lixo
humor todo humano:
mormaço com bafo da morte junto ao lixo
contramão da consolução:
desespero no umbigo da entropia junto ao lixo
êxodo absurdamente exótico: maná no crepúsculo da imprevidência
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Com setenta e sete anos de idade, o seo Domingos Alves dos Santos
sobrevivia cego há vinte e dois anos. Devo confessar que senti uma tensão
incômoda ao fotografá-lo no dia 03 de outubro de 1992. Foi bastante desconfortável olhar pela câmera um rosto que nada enxergava, porém
transmitia a certeza de que estava vendo tudo. Parecia que era o seo Domingos que me flagrava a alma, revelando-me uma assimetria mais pungente: afinal, quem era mais carente de luzes?
[D]ANOS SEM [DÚ]VIDA
77 domingos
dominados sob sinal da cruz 55 alves
alvejados com a graça da luz 22 santos
separados pro amor de jesus
enterra o meu olho; o amém é cego; errei !
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A assimetria provoca atitudes e atos projetando superações. Diante das tragédias que o azar aponta só mesmo uma aprontação quiçá sutil. Principalmente por isso as legendas para as fotografias passam a ter na
sessão final deste livro (como também preferi na tese em 1993) um tom
mais estranho, um estilo mais bárbaro para os ismos acalentados e formatados pelas seguranças e pelas convicções. Posto que o negativo
vença só resta inventar, exercer a criatividade – eventualmente até mesmo com sua nuance de ris(c)o. HUMORTE em indicativo para a ação. HUMORTE das diz-obediências.
BARBARISMOS NO CASTELO MOURISCO
lançada a sorte
do marfim mallarmaico
no ancoradouro-embocadura,
rugosas faces transcendem lâminas;
e a espuma ronda lágrimas em rosa d’água
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Na contraposição leste/oeste das laterais do MMC o deslocamento das
cargas propunha que nos desenganos da vida não era preciso masoquismo para tornar o que doía objeto do riso.
LI COR COMO ARMA ZEN
carrega dor
no vai-e-vem seja o que f(l)or
tem e entretém
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No box de sua avó, Guilherme posou cheio de charme em meio a
decoração caipira para as festas juninas de 1993. Assim registrei e comentei uma das tantas possibilidades de subversão cultural no MMC.
TELA OHTAKE EM MOLDURA VOLPI
gema bronzeada no melífluo óleo incandescente
inflama seu âmago de sol e implode flocos grisalhos ainda mais encanecidos pela neve do sal adespois
sem piruá pra piorá
é só ponhá num prástico pra mór de muquirana num enchê os picuá
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Vi muitas variações do faz-de-cont(r)a no MMC. A verdade de dois-e-
dois-são-quatro em sua tautologia funcionava como prelúdio tanático.
Pela fresta da fantasia me restou a gênese da cultura como ruptura.
[DES]ORDEM
às 11:44 da tarde
ludo pode acontecer
num jogo por trocadinho rei anunciando venda de ministros
folhas de fumo enrolando o fogo dos filhos
bonecas de longo espiando ao longe esquinas de sol gente inocente pe(s)cando no consumo da concupiscência
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De uma quina do MMC, eis um enquadramento fotográfico meio inusitado. No destaque uma criança, no mínimo, inquieta. Na propaganda uma questão, no mínimo, sugestiva. Na legenda umas linhas, no mínimo, estranhas. Na diz-obediência uma frase, no mínimo, maiúscula.
AO BERTO
dtzi ase j au ePo a dmsi qo wf rm paf knEueu qap hu rw amv n oNi eo ádi ak qmi xor zyrSc jpr mver gid spngrb iApw eyr bnx vmo ini da aRjv aifvm oy dn wq omc ayÉoa ifla daofkl odsa njd dófa mk mcEvpi apof d[mc dkofd dkum ap crb apnd poiSalkfa mkc idka~kl [do f adfal a~lf lakda g dlaTicp ifn dsalalk aódf oa akafid çla fmpo poelf erAis kal m adkde ed´q lqm admo rq´ alka´qvcima iwRnmds oqbmf ladsjfqm laq wfas daksja ffookd djkxDsfji adi ad~loa fifm q lp ã dlda dkalfovc nfasoie laieaw dilk ldka ald sOjgojd lkdasi aokoi dvcpwzin oErnfa dakf lf toq re ´- adf í fd có ew eos~n´f sl cba]af wmfio açlkf b akjdb dkla dkal mkd aNecivn oirnfvc noa´iq´pnalk a~kd a~ldioe kadlo çanTeytaln ldasfm aoqp qi´la vadlksEjpqtyn ndjdçal adklsf amlka jaduudd dajfoi zm fadl´lad pqrue´fjpDxsad dlakdf kfa md alkdsf fd dfjaç [opq dl kakf qep ndfeOaf jlak ndna bctrwo ado flke jwnSeof dan kreqa dfn aloiklç cvm qor´qp rjOro~q´p qitso´prboto façlkf cm yq equr afkk jak wbcjk dk paLufkl pasia da´q roial kafóqeo flkf e daçfk xvHm wriu irty açdklf nOsmqppq vna.çl dasçqdala dlm aldsflkoqa fçak´oeq fka~fmnm alçpqklafçla vcSajnoq ada qp
141
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Passando por três boxes do MMC fotografei objetos de diferentes
paradigmas. Depois tentei compor um sintagma segundo a temática HUMORTE. Mais especificamente relacionadas ao quarto universal da
cultura (um requebrado diante do entrópico) essas recreações com
imagens verbo-visuais brincavam com uma sub/versão sensual latino-
neobarroca.
OLHA A BOLHA
Don Juan de ray-ban roubado,
cuidado com essa cuia craniana;
vê se afana ainda essa gaita de boca
e bica a louca más hermosa del caribe… ... que exibe anéis e brincos
abrindo trincos e seus tesouros,
dando couro pra tesoura esfaimada bem encadeada num recorte à cortesã
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Tirei essa foto sem qualquer intervenção nos objetos; apenas me posicionei de tal modo que o enquadramento pudesse sugerir um
cochicho entre os ícones ainda plastificados. No momento do registro fotográfico eu não sabia quem a imagem detrás representava. Com a cópia impressa em mãos voltei ao box e o vendedor me informou que se tratava
de Santa Ana (no sincretismo religioso, Nanã). Então perguntei ao vendedor se a foto dava impressão de Nanã estar falando algo para Iemanjá. Diante da concordância emendei outra pergunta: saber qual seria o conteúdo dessa hipotética conversa. Pensativo e evasivo a
princípio, o vendedor por fim revelou: conta uma lenda que Nanã era esposa de Oxalá e que este veio a se apaixonar pelos encantos de Iemanjá.
Essa atração não resultou em maiores problemas porque passageira,
permanecendo Oxalá fiel a Nanã. Assim, dessa moldura, uma dura: o trecho final de um aviso enciumado.
AMAR-ELO PARA VER MELHOR
[...]
e além disso, graça à parte, sou mais eu e você mesma oxalá possa deixar de gracinha
e deixar o gracinha do Oxalá no roça comigo mesma senão, a irmã já era
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Ao rodear o MMC naquela tarde de domingo, 18 de julho de 1993,
aproximou-se de mim Dona Janaina e me pediu uma chácara para morar e trabalhar. Disse-me que tinha uma filha de doze anos e que viviam sob
o viaduto. Muito desgostosa e com sua voz rouca de tabagista inveterada
falou-me um bocado sobre sua condição de indigência. Por fim mostrou-
me uma reportagem de jornal em que fora entrevistada; ocasião que lhe prometeram uma casa para morar.
STATUS QUO
dessa cepa quase xepa
num capricho quase lixo
Janaina é rasto quase resto sem teto, sem rumo Janaina quase que trupica;
com efeito pica o fumo, ferra o afeto
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Experimentei várias cenas com gosto de eternidade no MMC. Inclusive pausas punctuais. Aqui destaco aquela que aconteceu em 03 de outubro
de 1992, domingo de eleições, às treze horas. Sob o comando de Fátima que trabalhava como caixa no açougue, seu grupo de funcionários posou logo após a limpeza do final do expediente. Chamou-me a atenção como o
polo feminino (muitas vezes desvalorizado nos jogos de poder)
demonstrou ser justamente o polo capaz de criar um complexo tecido de
trocas semióticas: rostos sorrindo num cenário de carnes abatidas. HUMORTE.
P[R]ONTOS
no estertor do expediente
festa do fim àquele nada à carne show de chouriço no lado sem sangue azados azougues na azáfama derradeiro desiderio em último átimo ótimo étimo íntimos
zóios em zoom zeros zen zé
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No MMC uma radicalidade a céu aberto contrabalançava com seu humor.
Imagens sobre e sob o peso da morte. Variações plásticas das últimas coisas. Preâmbulos e socorros para adiamentos do fim.
ESCATOLOGIA
rente à tumba mercante o necrotério estaciona
contendo na entranha
do estômago sepulcral
proto-vômito & valores expele seu escancarado anus nuance para sobrevida
com[o]pe[n]sar da morte
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Como na quase totalidade das fotografias feitas no MMC, também aqui
minha intervenção no assunto flagrado se limitou e se reduziu ao quesito
enquadramento. Quanto a esse registro vi algumas pétalas acumuladas
como que perdidas (soltas) dentro de uma caixa de papelão que, por sua
vez, jazia em uma base de ferro armado para porta-vasos. A partir disso tentei materializar verbalmente um véu inconsútil para um epitáfio icônico.
PÉTALAS PÓSTUMAS
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153
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Uma confissĂŁo derradeira nessa procissĂŁo de luzes e legendas. Envolvido
pelo MMC em 1992/93 me via como algumas fisionomias de crianças: amalgamando curiosidade, alegria e cabrerice.
ARABESCOS
por causa dele a gente se muniu, se mugiu, se curtiu
por causa dele a gente se moveu, se mexeu, se chegou
por causa dele a gente se mediu, se mentiu, se codificou
por causa dele a gente se matou, se morreu, se consumiu
por causa dele a gente se mistificou, se mirou, se conheceu
por causa dele a gente se mereceu, se mordeu, se corrompeu
por causa dele a gente se modificou, se modulou, se caprichou
por causa dele a gente se maravilhou, se misturou, se contagiou
por causa dele a gente se maturou, se multiplicou, se confundiu por causa dele a gente se musicou, se magnetizou, se consignou
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Ao longo de décadas uma figura inigualável no Mercadão era um
descendente de espanhóis apelidado Pachola desde menino-jogador-depelada. Ninguém melhor que Hermínio Garcia marcou toda e qualquer referência importante às coisas, casos & causos da história do MMC.
Sempre procurado por jornalistas e curiosos de todo tipo, sua simpatia
ultrapassava sua também legítima fama de bom cozinheiro. Disso
testemunho e dou fé.
SE MANCA
fusão espanhola fogão caçarola
vagão na bitola
povão de angola
tempão do cartola
tensão em mariola saguão pra escola versão da vitrola salão meia sola
canção à gaiola
cifrão nem esfola
pingão até consola
bugrão bom de bola
porção moela extrapola mercadão é mesmo pachola
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No secular e profano Boteco do Pachola uma linguagem eucarística se transubstanciava. Em mo(vi)mentos de te(n)são seu charme com porções
espirituosas e pitadas desconcertantes congregava achados-e-perdidos:
autoridades e subalternos, policiais e suspeitos, adultos e crianças, ídolos e fanáticos, alegres e tristes. Espaço que sacramentava pão, palavra e poesia.
CENÁCULO
em nome do pa{i}chola
tomai e comei
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Estava procurando fotografar bonecas quando as encontrei na lojinha da D. Mariana. Percebendo minha câmera ela comentou que acabara de machucar o dedo médio da
mão direita tentando tirar o vidro grudado em um retrato antigo. Pedi para ver a foto. Fiquei encantado. Era ela aos vinte anos. Não resisti à tentação e falei em fotografa-la
com seu retrato. Ela se inquietou, cheia de pudores, não aceitando minha proposta. Insisti e consegui que posasse olhando para o retrato antigo que, aliás, registrava seu rosto voltado para o extraquadro. Resultou uma troca espe[ta]cular de olhares que
atravessavam mais de quarenta anos (... a propósito, D. Mariana desfila no Mercadão desde seus dez anos; seu pai, com 92 anos em 1993, fora um dos mais antigos permissionários do MMC). No dia seguinte voltei ao Mercadão com uma cópia impressa da minha foto conquistada na véspera. Sem dúvida, o contentamento e a
emoção de D. Mariana eram contagiantes. Feliz com sua reação, despedi-me dela e depois de uns trinta minutos a visualizei, de longe, sentada com minha foto em mãos,
olhando e viajando por essa corpoética em humorte que atende pelo binômio ontemrevisto / amanhã-imprevisto. Hoje, início de 2015, octogenária, com lúcida e simpática competência, D. Mariana ainda dirige sua pequena loja de armarinhos.
SPECULUM
sempre outra, a mesma Mariana. ontem, reticências; hoje, aspas.
sempre outra, a mesma Mariana
olhava, ausente, o que nem supunha: o desejo. sempre outra, a mesma Mariana olha, no presente, o que nem supõe: o desejo. sempre outra, a mesma Mariana
deseja delicada e densamente o impossível; troca olhares que tocam a maior valia - o inestimável;
aprecia o (b)azar do tempo com seu silêncio corrosivo, inexorável; e com graça agracia alguma desgraça, porque imprescindível. sempre outra, a mesma Mariana ensina: tem coisa que não dá pra t(r)ocar; nem tudo é mercadoria.
161
ALMOXARIFADO 07
BYSTRINA, I. Semiotik der Kultur. Stauffenburg: Tubingen, 1989.
CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS. Leis, Resoluções e mais actos
promulgados durante o anno de 1906. CASTRO MENDES. Efemérides Campineiras 1739-1960. Campinas: Ed. Gráfica Palmeiras, 1963.
CASTRO MENDES. História de Campinas. Suplemento do Correio Popular.
Campinas, 31/10/1968.
CASTRO MENDES. Retratos da Velha Campinas. São Paulo: Departamento
de Cultura de S. Paulo, 1951.
CIDADE DE CAMPINAS. (Hemerográfico). Várias edições.
CONDEPHAAT – Tombamento do Mercado Municipal de Campinas. Campinas, 24/01/1983.
CORREIO POPULAR. (Hemerográfico). Várias edições. DIÁRIO DO POVO. (Hemerográfico). Várias edições.
IBRI, I. A. Kósmos noetós. S. Paulo: Perspectiva, 1992.
JORNAL DE DOMINGO. (Hemerográfico). Várias edições. JORNAL DE HOJE. (Hemerográfico). Várias edições.
LAPA, J. R. A., A Cidade: os cantos e os antros, S. Paulo: Ed. USP; Campinas: Ed. UNICAMP, 1995.
LIMA JÚNIOR, J. Humorte – Cosquinhas semióticas no umbigo da
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MARTINS, V. Mercados urbanos, transformações na cidade. Campinas: Ed. UNICAMP, 2010.
SCHAFF, A. História e Verdade. S. Paulo: Martins Fontes, 1978.
ZALUAR, A-E. Peregrinação pela Província de São Paulo. S. Paulo: Liv.
Martins Ed., 1952.
Assuntos e acentos Morte, 9, 11, 14, 15, 36, 37, 38,
Andorinhas, 8, 25, 39, 43
Estranhamento, 39, 91
Assimetria, 41, 113, 131, 133
Febre Amarela, 23
Festa, 11, 29, 37, 71, 149
Mourisco, 51, 105, 133
Boia-fria, 123
Futebol, 117 e 157
Municipal, 10, 11, 12, 13, 14,
Binariedade, 41, 55, 67, 109 Caipira (condicção – Ocorrências de uma
Humor, 9, 11, 15, 35, 37, 38, 40, 41, 95, 103, 129, 151
40, 41, 63, 119, 129, 151
18, 19, 20, 23, 24, 27, 28, 30, 32, 33, 37, 39
condição e uma dicção
Ibérico, 45
Perda, 11, 37, 79, 103, 111
caipira.), 8, 9, 10, 16, 19, 25,
Jogo, 38, 41, 47, 61, 99, 117,
Polaridade, 41, 83
137, 141, 147, 149, 155.
Lendas, 51
40, 41, 51, 71, 91, 93, 101, Casinhas, 18, 19
139
Mo(vi)mento de te(n)são, 101
Religiosidade, 65, 87, 105, 119, 127, 129, 131, 145 e 159
Semiótica, 10
Silêncio, 16, 53, 77, 115, 161
Criatividade, 133
Letras e literatura Oswald de Andrade, 93
Amaral Lapa, 13
Janaina, 147
Bystrina, 41
Joaquim Egídio, 20, 22 John Donne, 103
Pablo Neruda, 133
Carlos Botelho, 30, 31
Jornal de Domingo, 38
Peirce, C. S., 15
Castro Mendes, 19, 23, 24, 29
Júlio Mariano, 19, 20, 28, 30, 35
Praça Antônio Pompeu, 24
Largo do Capim, 24, 25
Praça da Liberdade, 18, 25
Correio Popular, 19, 23, 28, 30,
Leite de Barros, 27
PUC-SP, 10
D. Mariana, 161
Luiz Nogueira, 27, 28, 29, 76
Ramos de Azevedo, 29, 34
Duque Estrada, 71
Maria Fumaça, 8, 43
Ruy Barbosa, 26
Fernando Pessoa, 141
Mascarenhas, 27, 28, 29
Schaff, Adam, 12
Augusto Fried, 29 Cabrera Infante, 4 Carlos Gomes, 25, 30
Centro de Ciências, Letras e
Artes de Campinas, 26, 29
CONDEPHAAT, 33, 34 35, 39
Diário do Povo, 36 Fátima, 149
Fernando Sabino, 97 Fernando, 97
Jesus, 125
Jornal de Hoje, 37, 38
Largo da Cadeia, 18, 25 Lauro Péricles, 32
Leopoldo Amaral, 27 Mallarmé, 133
Martins, Valter,13
Mercado das Hortaliças,
(Mercadinho) 18, 24, 25
Pachola (Hermínio Garcia), 4, 157, 159
Péricles de Andrade, 95 Praça Corrêa de Mello, 27, 28 Protti, Giselle Guimarães,13 Pupo de Morais, 20 Rua do Chafariz, 18
Sampaio Peixoto, 19 Silva Camargo, 24 Taunay, 21
Flávio N. Cordeiro, 39
Mercado Grande, 18, 23, 24
Tennessee Williams, 57
Funilense, 27, 30, 31, 33, 35,
Mogiana, 8
UNIMEP, 10
Goethe, 5
Nilson Ribeiro, 38
Villa-Lobos, 16
Heidegger, 119
Olavo Bilac, 61
Orestes Quércia, 31, 32
Volpi, 137
Zaiman, 38
Hipócrates, 153
Orosimbo Maia, 30, 77
Zaluar, 21, 22
Freud, 69 111
Guilherme, 137 Hermínio Garcia (Pachola), 157
Milan Kundera, 99 Nanah (Nádia), 75 Noel Rosa, 115
Tomie Ohtake, 137 Van Gog, 63 Vivi Ceará, 37, 38
FICHA CATALOGRÁFICA 381.1 L732h
Lima Júnior. José, 1951Humorte : botando banca no mercadão. – Campinas : Texto & Textura, 2015. 166p. : il., fots.
Inclui bibliografia. ISBN 978-85-64101-10-4
1. Mercado municipal - Campinas 2. Mercados - história Mercados – poesia 3. Cultura 4. Semiótica I. Título.
FICHA TÉCNICA Editor geral: Luiz Carlos Ramos
Capa, Projeto Gráfico e Layout: José Lima Júnior Fotografias (registro e manipulação PhotoScape v3. 6.2): José Lima Júnior Arte final: Marcos Brescovici Impressão e acabamento: (...)