O cântico dos cânticos ebook

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O CÂNTICO

DOS CÂNTICOS Autora Anônima (anterior ao séc. IV a.C.) Transcriação de Luiz Carlos Ramos





O CÂNTICO DOS CÂNTICOS O livro sagrado dos amantes



O CÂNTICO DOS CÂNTICOS O livro sagrado dos amantes

Autora Anônima (anterior ao séc. IV a.C.)

Transcriação poética para a língua portuguesa e posfácio de Luiz Carlos Ramos

São Bernardo do Campo, 2011


© Luiz Carlos Ramos, 2008 (edição impressa e digital) Para adquirir esta obra, escreva para: textoetextura@terra.com.br

Ficha catalográfica preparada pela Bibliotecária Aparecida Comelli Tavares (CRB 8-3781) 223.907 C168

RAMOS, Luiz Carlos O Cântico dos cânticos: o livro sagrado dos amantes. Transcriação poética para a língua portuguesa e posfácio de Luiz Carlos Ramos. São Bernardo do Campo: Texto & Textura, 2011. 57 p. ISBN: 978-85-64101-10-2 1. Bíblia – A.T. – Cântico dos cânticos – Comentário 2. Cântico dos cânticos - Poesia I. Ramos, Luiz Carlos CDD 18ª. ed.

Corpo Editorial Consultivo José Lima Jr. Carlos Alberto Rodrigues Alves Rubem Azevedo Alves Inês de França Bento Paulo Roberto Rodrigues Capa e ilustrações: Marcos Brescovici

textoetextura@terra.com.br São Bernardo do Campo, SP 2011


Dedico esta versão dos Cânticos à Vastí, mulher da minha vida, no ano das nossas bodas de zinco, como o daquele famoso barracão.



Sumário

ADVERTÊNCIAS

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PRÓLOGO

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CÂNTICO PRIMEIRO

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CÂNTICO SEGUNDO

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CÂNTICO TERCEIRO

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CÂNTICO QUARTO

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CÂNTICO QUINTO

37

CÂNTICO SEXTO

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POSFÁCIO

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Advertências

1. Este livro não é recomendado para pessoas não apaixonadas ou cujo desejo esteja adormecido, a menos que queiram despertá-lo; 2. Cuidado! Este livro foi escrito por uma mulher, não obstante séculos de patriarcalismo tenham tentado roubar-lhe o mérito. Para se comprovar que não se trata de um texto de Salomão, basta ler os primeiros e os últimos parágrafos; 3. Conquanto não seja uma tradução literal (pois trata-se, antes, de uma transcriação poética), esta versão continua fiel ao espírito e à intenção do original hebraico;


4. O moralismo religioso tentou distorcer inescrupulosamente estes Cânticos. As liberdades tomadas nesta versão nem de longe se comparam àqueles abusos; 5. Caso alguém, seduzido por esses versos, resolva utilizá-los em suas núpcias, ou incluí-los na cerimônia de suas bodas, por favor, faça isso por sua própria conta e risco, lembrando-se sempre de que a sensibilidade poética e o respeito pelo desejo divino-humano não são virtudes muito cultivadas em nossa sociedade; 6. Uma última advertência, para que ninguém se aventure desavisado: a leitora e o leitor, que desfrutarem dos versos deste poema de amor, estarão vulneráveis aos riscos do prazer, porque assim foi com a autora, um dia, e com o tradutor, quase três mil anos depois. Luiz Carlos Ramos De passagem pelo Rio de La Plata em maio de 2008

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PrĂłlogo

Este ĂŠ o mais belo poema jamais escrito por uma mulher que amou o seu homem apaixonadamente.

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Cântico Primeiro

Ela: Ah, meu amor, como desejo que você me beije! Prefiro o sabor dos seus carinhos ao dos melhores vinhos; sim, prefiro desfrutar o aroma do seu perfume: você é o meu perfume! Depressa, leve-me com você! Leve-me para casa, príncipe da minha vida! Façamos uma festa, Alegremo-nos.

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Não faltará vinho nem a ternura dos seus carinhos. Agora entendo porque as mulheres o admiram tanto! Mulheres da cidade, eu sou uma morena trigueira muito formosa, de pele bronzeada! Fui obrigada pelos meus irmãos a trabalhar sob o sol para cuidar das suas vinhas e da minha não pude cuidar. Conte-me, amor da minha vida, onde você leva os seus rebanhos a pastar? A que horas pára e onde os leva a descansar? Diga-me, para que eu não precise andar errante, e tenha que procurá-lo entre os seus amigos.

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Amigas e Amigos: Você é uma mulher bela entre as mais belas mulheres. Ele: Meu amor, Seu andar é gracioso e sedutor. São lindas as mechas dos seus cabelos. Em meio aos belos colares brilha belíssimo o seu colo. Quero hoje presentear você com jóias de ouro incrustadas de prata! Ela: Espere, meu príncipe, enquanto meu perfume esparge sua fragrância. Você, meu amor, é o perfume da minha pele. Você, meu amor, é para mim um buquê de flores exuberantes.

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Ele: Como você é bonita, meu amor; Você é tão linda! Seus olhos são duas estrelas cintilantes. Ela e ele: Nosso leito será um jardim; e à sombra de árvores frondosas construiremos um ninho de amor. Ela: Sim, sou flor do campo, rosa dos vales. Ele: Meu amor, você é uma rosa entre os espinheiros. Ela: Meu amor, você é uma árvore frutífera entre as árvores silvestres.

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Como desejo sentar-me à sua sombra e deliciar-me com seus frutos! Meu amor, leve-me à sala dos banquetes e ali me cubra de beijos. Dê-me a comer uvas! Dê-me a comer maçãs! Ajude-me a recobrar as forças pois morro de amor. Segure-me pela nuca com a mão esquerda, e com a direita aperte o meu corpo contra o seu! Ele: Mulheres desta cidade, prometam-me que por nada neste mundo interromperão este sonho de amor!

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Cântico Segundo

Ela: Ouço a voz do meu amor! Ele está chegando! Sobe por entre as colinas, vem escalando as montanhas. Meu amado transpõe a muralha, aproxima-se da janela e me observa por uma fresta. Então, me convida: “Venha comigo, meu amor. Venha comigo, mulher da minha vida! O inverno se foi, As chuvas cessaram.

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Há flores nos campos; é tempo de cantar. Ouça o trinado dos pássaros! Há figos nas figueiras, As vinhas estão floridas, sinta seu aroma suave. Venha comigo, meu amor. Venha comigo, mulher da minha vida!” Ele: Minha pombinha querida, não se esconda por entre as rochas. Mostra-me seu rosto, Deixe-me ouvir seus suspiros. Que doce voz! Que belo rosto! Ela e Ele: As raposinhas querem prejudicar nossa vinha. Vamos juntos capturá-las, pois nossas vinhas estão em flor!

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Ela: Meu amado é meu e eu sou sua; ele cuida da sua rosa entre as roseiras. Volte para mim, meu amor, enquanto ainda sopra a brisa da tarde, e as sombras vêm caindo. Corra depressa! Corra ligeiro por entre as colinas! Na escuridão da noite buscava o amor da minha vida. Na solidão do meu quarto eu o procurava e não o encontrava. Levantava-me, percorria a cidade, pelas ruas e praças, procurando o amor da minha vida. Buscava e não encontrava.

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Cruzava por homens rudes que rondavam a cidade. Procurava entre eles o amor da minha vida. Acabara de deixá-los quando encontrei o amor da minha vida. Abracei-o, e não o deixei partir, levei-o à minha casa, e o fiz entrar no lar em que nasci! Ele: Mulheres desta cidade, prometam-me que por nada neste mundo interromperão este sonho de amor!

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Cântico Terceiro

Amigas e Amigos: Há algo vindo do deserto! O que será? Parece uma nuvem que avança entre aromas de flores, incenso e perfume. Sim, é ele, o príncipe, e vem em carruagem real! Vem escoltado por homens valentes, os melhores desta cidade! Devidamente preparados para enfrentar os perigos da noite. Este lugar foi delicadamente decorado pelas mulheres desta cidade.

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Venham, mulheres desta cidade! Venham ver o príncipe! Vestido com seu traje real, feito especialmente para este dia, o dia mais feliz de sua vida! Ele: Você é tão bonita, minha querida! Você é muito linda! Seus olhos são duas pombinhas escondidas atrás do véu. Seus cabelos brincam alegres pelas paisagens dos seus ombros. Seu sorriso alegre é tão doce e meigo. Por entre lábios vermelhos soam melodiosas as suas palavras. Vermelhas também são as maçãs do seu rosto corado por trás do véu. Seu colo lembra-me torres ornadas com pedras preciosas. Seus seios são belos como duas rosas.

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Enquanto sopra a brisa da tarde, e as sombras vêm caindo, subirei até a colina das suaves fragrâncias! Você é tão bonita, minha querida! Tudo em você é perfeito! Vamos, minha noiva, desça comigo. Desça dos cumes do montes, busque o esconderijo dos leões, as colinas dos leopardos. Amada minha, desde que seus olhos pousaram nos meus meu coração lhe pertence. É todo seu, desde que o envolveu entre os elos do seu colar. Como são doces os seus carinhos, meu amor! São mais doces que o vinho!

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Seu perfume é o mais agradável dentre todas as fragrâncias do mundo. Seus lábios, meu amor, são doces como mel. Há em suas roupas a doce fragrância dos bosques em flor. Seu jardim, meu amor, é um jardim regado por um manancial de água viva que brota da serra. Ela: Vento do Norte, acorde! Vento do Sul, desperte! Soprem sobre meu jardim seu hálito quente! Venha, meu amor, ao seu jardim e prova seus deliciosos frutos!

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Ele: Já estou dentro do meu jardim, meu amor; e encontro o bálsamo e o óleo perfumado. já provo do mel, bebo vinho e leite. Amigas e amigos: Isso, amigos, comam e bebam! Até ficarem saciados de amor!

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Cântico Quarto

Ela: No meio do sono meu coração despertou ao ouvir uma voz. Era a voz do meu amor que estava à porta. Ele: Minha querida, minha pombinha preciosa, Abra para mim, deixe-me entrar! Minha cabeça está banhada de orvalho; já escorre pelos cabelos a umidade da noite.

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Ela: Já tirei a roupa, tornarei a vestir-me? Já lavei os pés, voltaria a sujá-los? Meu amado meteu a mão por uma fresta da porta; tudo em mim estremeceu! Saltei da cama para abrir para o meu amado. Escorriam gotas de perfume pelas minhas mãos e por entre os dedos, e deslizavam pela maçaneta. Ao ouvir a voz do meu amor, senti que desfalecia. Abri-lhe a porta, mas ele já havia se retirado; já não estava ali! Dispus-me a segui-lo: busquei-o, mas não o encontrei; chamei-o, mas não me respondeu.

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Encontrei-me com os homens rudes que rondam a cidade: eles me agrediram e feriram, e me deixaram nua. Mulheres desta cidade, prometam-me que, se encontrarem o meu amado, lhe dirão que... que estou morrendo de amor! Mulheres da cidade: O que tem de especial esse seu amado, bela mulher entre mulheres belas? Em que difere seu homem do resto dos homens, para que nos requeira tais promessas? Ela: Tão elegante é o meu amado, tão corada sua pele, que é fácil reconhecê-lo entre dez mil homens. Sua face é radiante, seus cabelos, ondulados.

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Seus olhos são duas pombas que se banham de leite junto a límpidos arroios. Suas faces são como um horto de ervas aromáticas. Seus lábios parecem lírios que destilam mel. Suas mãos são anéis de ouro adornados com topázios. Seu membro é uma espada de marfim polido adornado por um céu de safiras. Suas pernas poderosas são dois pilares de mármore apoiados sobre barras de ouro puro. Sua presença é majestosa como árvore frondosa. Há doçura em seus lábios; é um homem encantador! Assim é o meu amado, mulheres da cidade! Assim é o meu amado!

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Mulheres da cidade Diga-nos, então, mulher bela entre belas mulheres, para onde foi seu amado? Que rumo tomou? Vamos juntas buscá-lo! Ela: Meu amado veio até seu jardim, ao horto de ervas aromáticas, para desfrutar entre as flores e colher rosas. Eu sou do meu amado e meu amado é meu; ele cuida da sua rosa entre as roseiras.

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Cântico Quinto

Ele: Como você é linda, meu amor; Bela como uma cidade lendária, formosa como a cidade da paz, majestosa como estrela cintilante. Eu lhe peço, não me olhes assim pois seus olhos me seduzem! Seus cabelos negros acariciando os ombros; seu sorriso alegre e perfeito; suas faces coradas, vermelhas como maçãs... Sei que há dezenas de rainhas e inúmeras mulheres,

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mas você, minha pombinha amada, é única; você é a mulher da minha vida! Tão querida pelos da sua casa; a vizinhança vem para felicitá-la: rainhas e princesas não se cansam de elogiá-la. Amigos e amigas: Mas quem é essa formosura? Tão admirável como a aurora: bela como a lua, e esplendorosa como o sol; majestosa como as estrelas? Ela: Desci ao jardim das nogueiras para ver o vale florido, os rebentos da vide, e as macieiras em flor. E, antes que me desse conta, minha paixão me transformara numa carruagem de fogo!

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Amigos e amigas: Dance, querida, dance para nós: queremos ver você dançar! Ela: Por que me querem ver dançar? Por que, assim, em público? Ele: Minha princesa, seus pés luzem em suas sandálias. As curvas do seu corpo são obra de habilidoso artesão. Seu sexo é uma taça transbordando licor. Seu ventre, um lírio rodeado por feixes de trigo. Seus peitos são duas rosas gêmeas. Seu colo me lembra uma torre de marfim. Seus olhos têm o brilho dos mais límpidos mananciais.

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Seu nariz, tão delicado, exalta ainda mais sua beleza. Sua cabeça sobressai, altiva, como o cume das altas montanhas. Seus cabelos são fios de púrpura. E eu fiquei cativo do seu sorriso! Você é muito linda, meu amor! Você é uma mulher encantadora! Alta como a palmeira que eu sempre penso em escalar; seus peitos são dois cachos de uvas aos quais desejo apanhar para fazê-los meus. Seu hálito tem a fragrância das maçãs. O céu da sua boca sabe a excelente vinho que suavemente umedece os lábios e acaricia os dentes.

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Ela: Eu sou do meu amado, e sua paixão por mim o obriga a buscar-me. Venha comigo, meu amor, acompanhe-me até os campos. Passemos a noite entre as flores silvestres. Ao amanhecer iremos aos vinhedos e contemplaremos seus contornos, veremos os tenros brotos desabrochando. Ali lhe entregarei meu amor! As mandrágoras já espargem a fragrância dos seus frutos; temos, à porta, frutos frescos e frutas secas. Meu amor, guardei para você os melhores e mais variados frutos! Como gostaria que você fosse meu irmão!

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Como gostaria que minha mãe o tivesse amamentado! Porque então eu poderia dar-lhe um beijo em plena rua, quando nos encontrássemos em público, e ninguém se importaria. Poderíamos andar de mãos dadas até a sua casa para que ali me ensinasse a arte do amor. Eu mesma lhe daria a beber um vinho temperado e o suco das minhas maçãs. Segure-me pela nuca com a mão esquerda, e com a direita aperte seu corpo contra o meu!

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Ele: Mulheres desta cidade, prometam-me que por nada neste mundo interromperĂŁo este sonho de amor!

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Cântico Sexto

Mulheres da cidade: Vem alguém pelo deserto! Caminha reclinada sobre o ombro de seu amado. Quem será? Ela: Sob uma macieira você foi concebido, e ali mesmo sua mãe lhe deu à luz. Sob esta mesma macieira eu despertei o seu amor! Grave o meu nome no seu coração! Tatue minha imagem no seu braço!

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O amor é mais forte do que a morte! Mas o ciúme, cruel como o inferno! O fogo do amor é uma chama que o próprio Deus acendeu! Não há água suficiente no mar para apagá-lo, nem rios suficientes para extingui-lo! Se alguém se atrevesse a oferecer toda sua riqueza em troca do amor, não receberia mais que desprezo. Mulheres da cidade: Nossa irmã é tão jovem; ainda nem tem peitos! Que haveremos de fazer por ela, se está sendo pedida em casamento? Se ela fosse uma muralha, poderíamos edificar sobre ela um palácio de prata; se fosse um portal, a revestiríamos com madeira de lei!

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Ela: Eu não sou uma muralha mas meus peitos são duas torres! Aos olhos do meu amado eu não poderia ser mais bela! [Salomão tinha uma vinha, pois era rei riquíssimo. Ele a colocou a encargo de alguns empregados que, ao final da colheita, lhe traziam o lucro em forma de moedas de prata.] Você, Salomão, pode ficar com suas moedas, e com as suas incontáveis vinhas, você e sua gente! Porque eu ficarei com a minha vinha, pois esta pertence somente a mim!

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Ele: Rainha dos meus jardins, meus amigos e eu estamos ansiosos para ouvir os seus suspiros apaixonados: deixe-me ouvi-los! Ela: Depressa, meu amor! Venha o mais rĂĄpido que puder, venha sobre as colinas das delĂ­cias e deixa-as repletas de bĂĄlsamo!

* *** *

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Posfácio

“O amor é mais forte do que a morte” (Ct 8.6) “Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus [no jardim] e não se envergonhavam.” (Gn 2.25) Autoria e datação

O trocadilho com os nomes Salomão (pacificador – cf. 1.1) e Sulamita (pacificada – cf. 6.13) favoreceu a suposição de que os poemas reunidos no livro intitulado Cântico dos cânticos teriam sido escritos pelo rei hebreu do mesmo nome, e retra-

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taria inclusive seu casamento com a filha de um certo Faraó (cf. 1Rs 3.1). Uma leitura atenta, no entanto, logo deixa claro que a voz predominante no livro é a de uma mulher camponesa que troca confissões e declarações de amor com seu amado, um pobre pastor de ovelhas. É a mulher que abre e que encerra o livro. Ela tem a primeira e a última palavra. Daí, parece lógica a dedução de que é uma mulher a autora/compiladora do livro. De fato, não se trata de um livro íntegro, coeso. Parecem mais fragmentos de poemas reunidos. Talvez entendamos melhor se compararmos tais registros a fotografias (“flashes”) ou cenas gravadas, mas descontínuas, que retratam diferentes etapas e fases da relação de um casal apaixonado. Por essa razão também é difícil precisar a data desses escritos, pois parecem

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conter elementos (gírias, jargões, expressões) característicos de diferentes épocas (da mesma maneira que se pode identificar a moda própria de diferentes períodos, pelas fotos que tiramos ao longo dos tempos). Há quem sugira períodos mais remotos, como o séc. IV a.C., enquanto outros sugerem data mais recente, por volta do séc. III a.C. Por tratar-se, provavelmente, de compilação de uma tradição culturalmente enraizada entre o povo, é provável que esses poemas tenham sido coletados ao longo desse largo período. Pode-se afirmar com alguma certeza, portanto, que o livro não foi escrito pelo rei Salomão; que o olhar é principalmente feminino; que o livro trata revolucionariamente do tema do amor, num período em que os casamentos eram arranjados e no qual as mulheres não tinham autonomia; que o livro apresenta uma

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mulher que se faz sujeito da sua história de amor e senhora da sua sexualidade. Interpretações

Nenhum escrito bíblico teve interpretação tão controversa. Há quem julgue que o Cântico entrou no cânon por engano, por um cochilo dos teólogos que estavam de plantão na ocasião. Tudo por causa do elemento erótico e das referências explícitas à sexualidade (conquanto nunca pornográficas) que caracterizam o livro. E da equivocada ideia de que Deus não é mencionado no livro, sem contar que a relação sexual retratada não visa à procriação. As justificativas, ou não, para a manutenção dos Cânticos no cânon podem ser resumidas em 5 principais linhas hermenêuticas 1: 1) A interpretação alegórica 1

Cf. Cântico dos cânticos: Introdução. In: Bíblia Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994.

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(séc. I. d.C.), que defende que a relação retratada no livro não se refere propriamente àquela que se dá entre um homem e uma mulher, mas à que se dá entre Deus e o seu povo, ou entre Cristo e a Igreja, ou a que houve entre o Espírito Santo e Maria, ou entre o divino e a alma humana, ou aquela entre Salomão e a sabedoria. 2) A interpretação cultural, que o considera uma tradução de uma liturgia pagã do Oriente Médio relacionado a ritos de fecundidade e às festa do Ano Novo. 3) A interpretação dramática, que pressupõe não dois, mas três personagens, o pastor e a camponesa, que se amam, e que resistem ao assédio do rei (Salomão), que a quer tomar pela força. Os intérpretes aqui, conquanto não neguem o caráter erótico, desfocam o olhar para o tema da fidelidade dos amantes. 4) A interpretação naturalista, que considera o livro uma coletânea de poemas de amor e canções populares comuns nas

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cerimônias nupciais semitas. 5) A interpretação combinada, que leva em consideração vários elementos das anteriores. O fato incontestável, no entanto, é que esse é um livro que fala de amor. No meu entender, essa é razão mais do que suficiente para que o livro figure no cânon. Se o livro não menciona Deus, discorre o tempo todo sobre o Amor, o que daria no mesmo. Temas “escondidos” no Cântico

Os temores resultantes de uma cultura de depreciação e “pecaminosização” do sexo vêm impedindo gerações, há mais de 2500 anos, de usufruir desse riquíssimo e canônico escrito bíblico. Não fora o nosso olhar preconceituoso, poderíamos abrir inúmeras portas para uma abordagem dos temas relativos à relação entre um casal que se ama.

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Dentre esses temas, gostaria de relacionar alguns: Preconceito de gênero, raça e cor; relações assimétricas etárias e econômicas; tabus sexuais (incesto e escravidão sexual, masturbação ou sexo solitário, sexo e violência, sexo em público, fetichismo, voyeurismo e romantismo); erotismo versus pornografia; frustração e satisfação sexual, entre outros. A protagonista, menina cujos peitos ainda estão em formação, é usada, talvez abusada, pelos irmãos mais velhos, que a obrigam a servi-los cuidando das vinhas deles em detrimento da sua própria (vinha é, no livro, um dos eufemismos para a sexualidade). Ela está queimada do sol, porque é obrigada a trabalhar para os irmãos. Ela se apaixona por um moço pobre, talvez miserável (os pastores estavam na base da pirâmide social, abaixo da linha da pobreza). O rei quer levá-la para o seu harém, mas ela se recusa terminantemente, e prefere ficar

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com o homem a quem ama. Ela descreve sua busca ansiosa pelo amor, relata como o buscava na solidão do seu quarto, e ainda conta como fora assediada por “homens rudes da cidade”, até que finalmente encontrou o grande amor da sua vida. Boa parte dos versos são dedicados à descrição contemplativa da pessoa amada e às referências a fragrâncias, sabores, sons e texturas do amor. É o erotismo do olhar, do olfato, do paladar, da audição e do tato. Enquanto alguns versos são confissões de pura intimidade, da privacidade da alcova, outros são exultações públicas de um amor que não cabe em si, e transborda contagiando aqueles que fazem parte do seu círculo de amizade e lhe são próximos. Para que serve esse Cântico

Há quem pergunte: Para que serve esse livro? E a resposta é: Para nada... e para tudo! Pra nada, se for lido sem paixão,

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sem desejo, sem amor. Pra tudo, se estivermos apaixonados e embriagados de amor. Esses poemas servem para serem lidos com a pessoa amada. Servem para inspirar uma relação a dois, apaixonada e apaixonante. Servem como “curso de noivos” para aqueles que estão se preparando para casar. Servem de texto litúrgico para casais que queiram realizar suas núpcias ou celebrar suas bodas. E servem até para aprofundarmos nosso conhecimento de Deus, sim, porque se “Deus é amor”, quanto mais aprendermos a amar, mais aprenderemos de Deus. Luiz Carlos Ramos

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O CÂNTICO

DOS CÂNTICOS Autora Anônima (anterior ao séc. IV a.C.) Transcriação de Luiz Carlos Ramos


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