Livronto miolo

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Livronto William Melo


Gerente editorial Roger Conovalov Projeto Gráfico Lura Editorial Revisão Clarisse Cintra Capa Lura Editorial Imagem Erica Dal Bello

Todos os direitos desta edição são reservados a Lura Editorial Rua Rafael Sampaio Vidal, 291 São Caetano do Sul, SP – CEP 05550-170 Tel: (11) 4221-8215 Site: www.luraeditorial.com.br E-mail: contato@luraeditorial.com.br

Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundação Biblioteca Nacional, Brasil)

Melo, William Livronto / William Rafael de Melo. ISBN 1. Contos 2. Ficção I. Título.

Índice para catálogo sistemático: I. Ficção e contos brasileiros B869.3 www.luraeditorial.com.br www.facebook.com/luraeditorial


Para Stella, a melhor namorada do meu mundo. Para Elsa, a melhor mãe do meu mundo. Para João, o melhor padrasto do meu mundo. Para os melhores apoiadores de todos os mundos, aqueles que apoiaram o financiamento coletivo deste livro. E, ah, claro, para seis caras aí (CB, DF, JH, RB, BD, MS).



SUMÁRIO OS DOIS LADOS DE UM MESMO MURO

11

DEFENESTRAR

35

P.S.

37

ÔNIBUS

39

O VIOLÃO

41

SABE TUDO

43

SONHOS INDUZIDOS

45

DIFERENTE

57

DAS 21h ÀS 5h

59

SIM OU NÃO?

61

NA CAMA

65

QUATRO ANOS EM QUATRO DIAS

67

OS SERES HUMANOS E AS SUAS HISTÓRIAS

89

91

DOCE

93

AS BALAS DE MORANGO

95

ELA DISSE

101

VENDE-SE UM VIOLÃO

103

REDES SOCIAIS

105

ABS

107

DEZ METROS ABAIXO

109

A ANTISSOCIAL

115


TRAVESSEIRO

117

NA ESTRADA

119

CUIDADO COM O QUE VOCÊ VÊ

121

NO NAVIO

123

SOBRE RODAS

125

UMA RECEITA FELIZ

127

SERENDIPITY

129

ONDE VOCÊ ESTÁ?

137

AGRADECIMENTOS

139


Aceita uma sugestão? Leia sem pressa. Aprecie a lentidão. Saboreie um a um cada parágrafo de cada história deste livro. Permita-se viajar página após página! Esta será uma viagem prazerosa e, certamente, você não irá se arrepender em tê-la feito.



OS DOIS LADOS DE UM MESMO MURO Capítulo 1: Sem ao menos se apresentar Tok... Plim! Tok... Plim! É fim de tarde. O sol se põe lentamente enquanto João Pedro brinca com seu estilingue no quintal de casa — uma casa tão simples quanto pequena, apenas três cômodos para uma família de cinco pessoas. Sua mãe, por sua vez, tenta “malabaristicamente” conseguir concluir os seus afazeres domésticos enquanto amamenta a mais nova — pois não é nada fácil passar pano no chão enquanto carrega em seus braços uma pequena e fofa “draga” que suga todo o leite que há em seu peito. O outro irmão mais velho está trabalhando junto com o pai em uma fábrica não muito longe dali. Tok... Plim! — Uhul! Três! — diz o menino. — Tok... Plim! — Quatro! — Filho! — grita a mãe — Pare de ficar brincando com isso, antes que você se machuque! — Tudo bem, mãe... — diz o menino, enquanto se prepara para acertar a ultima garrafa que restou em cima do muro. E mente — Já parei. Flap... 11


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— Não... — murmurou assustado. Plim... João corre disparado para dentro de casa com toda a velocidade que suas pequenas pernas podem lhe dar. E entra ofegante na cozinha. — Não pisa aí, menino! — Desculpa! — Você vem com esse pezão todo sujo lá de fora e pisa bem onde eu acabei de limpar... — lamenta a mulher, sem perceber que o filho está com o coração bem mais acelerado do que o normal — Eu mereço! — Desculpa. — Vá brincar no seu quarto! Enquanto isso, há cerca de trinta metros, uma senhora sobe com pressa até o segundo andar de uma das mansões mais caras de todo o condomínio. — Tudo bem com a senhorita? — ela pergunta logo após abrir a porta do quarto de uma jovem menina. — Sim... — responde Marcela, desviando o olhar da janela para a porta. — Não mecha aí, está bem? — diz a senhora, ao ver alguns pedaços de vidro espalhados pelo chão. — Vou pegar os meus apetrechos e já venho para limpar isso. A menina, desobedecendo à governanta, aproxima-se da janela e procura descobrir de onde veio a pedra que invadiu seu quarto sem nem mesmo se apresentar. Primeiro ela olha para a lateral da casa, e tudo que vê é o mesmo belo gramado verde de sempre, com várias petúnias rosadas ao redor da casa. Mais à frente, há um muro de aproximadamente quatro metros de altura com uma cerca eletrificada em seu topo. Ela até vê uma garrafa em cima do muro de uma casa que está poucos metros mais adiante, além da viela que há do outro lado do muro, mas não imagina que tenha alguma ligação com 12


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o caco de vidro que acabou de perfurar o seu pé. — Aiii! — Pensou na governanta ao ver o seu sangue escorrer. — A Alcione vai me matar.

Capítulo 2: Vinte e três segundos João Pedro e Marcela se cruzam mais uma vez. Mas ele não sabe disso, pois os vidros escuros do carro em que ela está o impedem de ver seu rosto. Contudo, enquanto o carro aguarda os vinte e três segundos que restam para o semáforo abrir, ela apenas observa o menino enquanto ele atravessa a rua sem a menor pressa. Mal sabe ela que aquele mesmo menino é o culpado pelo fato dela estar usando um curativo em seu pé direito. Vinte e três segundos para observar o como ela é diferente dele. Ele: usa um tênis velho e rasgado. Ela: uma sandália importada de algum país da Europa. Ele: usando um dos dois uniformes já desbotados que tem. Ela: usando um vestido que custou o equivalente a um salário mínimo, no mínimo. Sem contar que ele vai caminhar por trinta minutos para chegar a sua casa, depois de um longo dia de aula em uma escola onde alguns meninos aprendem dentro de um banheiro a enrolar cigarros de maconha e traficar. Ela: graças ao motorista particular, pago por seus pais, gasta menos de dez minutos para chegar do centro da cidade até em casa, depois de um longo dia de aula em uma escola onde as meninas aprendem a encontrar defeitos nas roupas umas das outras. Agora, alguns fatos sobre eles? Bom... Ele não é só mais um pequeno traficante que não vai chegar aos vinte. E ela não é só mais uma patricinha que vai se casar com o filho de um bancário aos dezenove. Eles têm algo em comum, só não têm com quem compartilhar. Ainda. ... 13


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Ao chegar a sua casa, Marcela corre em direção à janela. Depois de alguns minutos olhando além das linhas de um horizonte empoeirado e enferrujado, seu olhar está perdido. Com a chegada das fábricas, além da riqueza, também chegaram os trabalhadores — aqueles que ganham em um mês o que os ricos gastam em cinco minutos. Porém, e infelizmente, eles são os esquecidos, eles que trabalham tanto para deixar o rico ainda mais rico, são esquecidos em filas de hospitais, além de em muitas vezes não ter nem mesmo um bom saneamento básico. Bom... Se isso te consola, caro leitor ou leitora, apesar de jovem, Marcela se preocupa com isso, sabe o poder que tem para fazer uma pequena mudança no mundo. — Uma a uma, e então seremos mil... — disse Marcela, enquanto apresentava um trabalho sobre política em sua escola — E, se formos mil, seremos mil pequenas mudanças no mundo. E isso é lindo, pois você só precisa acreditar no potencial que há dentro de você. É uma pena que dos vinte e sete alunos presentes, apenas um pequeno grupo de quatro jovens — três meninas e um menino —, se importaram com o que ela havia dito e deram a merecida atenção. Mas, como vocês sabem, essa é a infeliz e atual realidade em todo o globo terrestre — e talvez seja assim por muito tempo. Afinal, nem todos se importam. “Se faltar água daqui cem anos, não vou estar aqui mesmo, não é?”, “Política? São todos corruptos, vou votar em branco mesmo.”, eles dizem. “Talvez eu vire jogador de futebol e fique milionário!”... “Eu quero participar de um reality show e ficar famosa!”. ... João Pedro finalmente chegou a sua casa. Ele demorou alguns minutos a mais do que o de costume, pois gastara seus últimos setenta e cinco centavos comprando algumas gomas 14


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de mascar. A vida o ensinou a ser econômico; então, com esse aprendizado, ele irá mascar apenas uma das gomas e guardar o restante para depois. Sem gula. Sem pressa. “Oh... Aquele menino...”, pensou Marcela, ao ver, de sua janela, João adentrar a casa que no dia anterior lhe chamou a atenção por ter uma garrafa no muro.

Capítulo 3: A última garrafa Depois de chegar da escola, almoçou. Depois de almoçar, dormiu. Depois de dormir, acordou, bebeu um pouco de um refrigerante barato que tem gosto de xarope e saiu para brincar no quintal. A última garrafa está lá, em cima do muro, apenas esperando para servir de alvo. Acertá-la em cheio tornou-se uma tentação para João. Mas ele tenta ignorar sua vontade ao se lembrar de que foi o responsável por quebrar a janela do, como ele diz: “castelo”. Pobre João Pedro, mal sabe que aquele castelo de vidro já estava há tempos com rachaduras irreparáveis. Rachaduras que facilmente resistem a pedras — e até mesmo tijolos —, mas que já não resistem às mentiras e traições entre os pais da jovem menina, que nesse exato momento se permite descansar em um sono sem sonhos. Então, depois de muito relutar, ele finalmente toma coragem, pega seu estilingue de madeira, coloca um pequeno cascalho como munição, puxa, e atira a pedra... Plim! O som do choque entre pedra e vidro é pequeno, mas o som do vidro se espalhando pelo chão alcança a tonalidade perfeita para despertar o sono de Marcela, que já imagina que é João o culpado pelo que aconteceu no dia anterior. Ao se aproximar 15


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da janela, vê o menino, o estilingue, e logo à frente os pedaços daquilo que até poucas horas atrás era uma garrafa de vidro que refletia de modo nenhum pouco tímido os raios do sol em direção ao seu quarto. — Eu sabia! — ela murmura, apoiando-se com suas duas mãos em sua nova e intacta janela. João, por algum motivo, resolve olhar para “o castelo” e se assusta com o que vê. — Me ferrei! — diz pra si mesmo, assustado. E então joga o estilingue em um canto do quintal onde tem alguns pequenos vasos com as plantinhas que sua mãe cultiva. Logo em seguida corre para dentro da casa, em direção ao seu quarto, e não pretende sair de lá por nada. Marcela, por sua vez, não desgruda da janela. E para não perder a oportunidade de ver o menino do estilingue, senta-se em uma mesa ao lado da janela para fazer o dever de casa. ... Algumas horas se passam e a governanta adentra o quarto para ver se está tudo bem com a menina. Também aproveita para avisá-la de que já está na hora de dormir. — Marcela, seus pais me pediram para não permitir que a senhorita fique próxima a essa janela, está bem? — O que tem de errado em ficar aqui? — Ontem a senhorita viu o que aconteceu — disse com tom de voz de quem não está para brincadeiras. — Se a senhorita estivesse próxima à janela, poderia estar com algum ferimento muito mais grave do que a sua desobediência causou. Marcela concorda em sair de perto da janela, somente para a governanta lhe deixar em paz, mas logo após Alcione fechar a porta, ela sai de sua cama e vai direto para onde estava há pouco. 16


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— Boa noite, Menino do Estilingue — murmura. —Espero que não esteja com medo de mim... Logo em seguida, após Marcela ir escovar os dentes antes de dormir, João toma coragem para sair no quintal. Está certo de que a menina não ficaria até tão tarde na janela para acusá-lo do “crime” que cometeu. Ele se senta no chão, ao lado da porta, abaixo de um céu estrelado e fica olhando para o muro que separa o pobre bairro onde mora de um rico condomínio. E, por um momento, ele tem pensamentos muito parecidos com os que a menina havia tido enquanto observava o que há do outro lado do muro.

Capítulo 4: Cookies Como de costume, por volta de meio dia, o motorista particular da família foi buscar Marcela na escola. Chegou dez minutos adiantado e permaneceu dentro do carro. Quando a avistou, a poucos metros à frente, saiu do veículo e dirigiu-se até a porta de trás do lado direito e abriu-a para a menina. — Boa tarde, Rogério! — sorriu. — Boa tarde, Marcela. — Eu já disse que eu acho lindo quando você abre a porta para mim — apoiou-se na porta já aberta, tentando falhamente fechá-la —, mas eu detesto ir atrás. Deixe-me ir ao banco da frente ao seu lado! — Patroinha — ele disse, de forma carinhosa como sempre a chamou —, nós já conversamos sobre isso. — Blá, blá, blá... Você só quer saber de obedecer às ordens do meu pai. Ele é um bobão. E você está ficando igualzinho a ele. Marcela passou a manhã inteira pensando em como faria para conseguir falar com o Menino do Estilingue. E já tinha planos para serem colocados em prática. Planos esses 17


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que começaram a ser botados em prática quando ela ofereceu alguns cookies para o motorista. A princípio, ele não quis aceitar, mas não conseguiu se controlar quando Marcela fez a seguinte descrição: “São daqueles bem crocantes com gotas de chocolate!”. — Gostosos, não? — perguntou a menina, sem tirar os olhos do seu celular. — Deliciosos! — respondeu ainda de boca cheia, se maravilhando no delicioso sabor de baunilha e chocolate. E não demorou muito para ter que parar o carro no semáforo. A contagem regressiva para o sinal verde começou. Trinta. Vinte e nove. Vinte e oito. Vinte e sete... Quatro... Três... Dois... E, então quando estava faltando um segundo para o sinal abrir, Marcela deu um grito desesperado dentro do carro e paralisou o motorista. — ESPERA! — O QUE FOI PATROINHA?! — correspondeu ao grito, assustado. — Eu preciso falar com aquele menino! — O quê? De jeito nenhum! — Por favor, eu preciso falar com aquele menino! O motorista tirou o pé do freio e acelerou. Marcela retirou o cinto, e tentou abrir a porta do carro. — Você não vai conseguir. Ela só abre quando o veículo está parado. — Não seja por isso! — ela respondeu, com um sorriso maléfico em seus lábios, e então puxou a alavanca do freio de mão logo a sua frente entre o banco do motorista e o banco do passageiro. O carro parou bruscamente e assustou os passantes na rua. — Rogério de Souza Nascimento, você comeu todos os cookies do meu pai. Ele vai odiar saber disso quando for tomar o seu tradicional chá da tarde... 18


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— O QUÊ?! — Isso mesmo! Eu posso contar tudo para ele! — Isso é jogo sujo, Patroinha. Olha a loucura que você está causando hoje. Quando ele foi soltar o freio, ela continuou... — Eu tirei uma foto sua, com o meu celular. O meu pai não vai gostar nem um pouco de saber que você comeu todos os cookies dele. E vai ficar ainda mais furioso ao saber que foi durante o seu horário de serviço. DI-RI-GIN-DO! Rogério viu toda a confiança adquirida em todos os anos prestando serviços para família se diluindo em um copo de água, como um dos biscoitos que ele havia acabado de comer. — E se ele for um desses trombadinhas? — Ele não é! Eu já o vi antes. Foi ele quem quebrou o vidro da janela de cas... — O QUÊ? Agora que você não vai falar com ele mesmo! — Não! Tudo bem. Foi sem querer. Ele mora lá perto. Você só precisa encostar o carro na beira da calçada e me deixar falar com ele por um minutinho, se não eu vou contar tudo para o meu pai. — Está bem! Está bem! Sua chantagista... João Pedro, por sua vez, nem imaginava o que estava acontecendo dentro do carro preto que estava parado no meio da rua causando uma confusão enorme no trânsito. “Acho que já vi esse carro antes...”, pensou. — Ei, menino! — disse ela, de dentro do carro. — Meu Deus... — “é a garota da janela!”, pensou. — Não corr... — o menino saiu correndo. Marcela aproveitou que o carro estava parado, destravou a porta do veículo e saiu correndo atrás dele. — Eu sou a melhor de todas nas aulas de educação física! Você não vai conseguir fugir de mim! — ela grita, enquanto o coração de João Pedro quase saía pela boca. O medo do menino 19


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é tão grande que ele mal entende o que ela diz. Continua correndo e atropelando todo mundo na calçada. “Eu to ferrado!”, pensa em meio ao desespero. — Aiii... — Marcela sentiu o pé doer. Não é nada fácil correr usando sandálias. E fica ainda mais difícil com o pé machucado. — Me desculpe Menino do Estilingue, mas vamos ter que ficar quites agora. João Pedro não viu nada além de tudo o que estava a sua volta girar, depois de sentir um forte chute em sua perna esquerda. Voou, enquanto algumas frações de milésimos de segundos passavam em câmera lenta, e se esborrachou no chão. Por sorte, conseguiu proteger o rosto com seus braços — que ficaram bem arranhados. — Eu também sou muito boa em futebol. — sorriu, como uma psicopata. — Me desculpa! Me desculpa! Não me bate... — Calma! — percebeu a gravidade da situação e agachouse diante do menino. — Eu que peço desculpas... Eu não queria te machucar. Mas, se pensarmos bem, você me machucou, então é justo. — Eu te machuquei? Quando? Como? — Sim, olha! — mostrou seu pé ainda com o curativo. — Eu pisei nos cacos de vidro da janela que VOCÊ quebrou. — Me desculpa... — Tudo bem! — levantou-se e estendeu a mão direita para o menino. — Eu não estou brava com você. — deu um belo e radiante sorriso de dentes extremamente brancos. João retribuiu o sorriso. — Eu quero ser sua amiga! — Mas você é rica. — Se esse for o único problema, é porque você é um preconceituoso! — Não... 20


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—Não o quê? — Não sou preconceituoso. Eu sou pobre. — É sim! E isso é preconceito comigo por ser rica. E preconceito com você mesmo por ser pobre. O menino não disse nada. Nem mesmo segurou a mão estendida da menina. — Você é duplamente preconceituoso! — Não sou! — respondeu e levantando-se, sozinho. — Meu Deus do céu, Marcela! — olhou assustado o motorista — Você machucou o menino! — Me desculpe, senhor! Me desculpe. Eu não quis que a sua filha machucasse o pé. Eu nem mesmo quis acertar a sua janela. Foi sem querer! Me desculpe! — Ele não é meu pai... — Não? — Eu sou o motorista e também segurança dela! — João ficou em choque. Não conseguia nem mesmo respirar. Estava diante de um cara gigante. Um cara com o dobro ou talvez o triplo do tamanho dele. E o cara é um segurança. O motorista e segurança da menina que machucou o pé por culpa dele. — E você, rapazinho, vai pagar caro pelo que fez! — ameaçou-o o motorista.

Capítulo 5: Mais cookies — Realmente... — disse Marcela, sentada diante de uma mesa, em uma confeitaria do centro. — O seu amor por cookies é enorme, não? — Na verdade, Patroinha, eu amo tudo o que é bom — sorriu. — E você, João, está gostando? — Sim! É muito gostoso! — respondeu, deixando cair alguns farelinhos de sua boca. — Parece coisa de filme americano, né? Cookies... 21


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Rogério sempre foi muito mais que um segurança ou motorista particular para Marcela. Ele é, na verdade, um de seus melhores amigos. E está disposto a se tornar amigo de João Pedro, se ele aceitar essa amizade. — Obrigado por nos trazer aqui, Rô. — disse Marcela. — Eu comi todos os biscoitos do seu pai, não é? Eu precisava comprar mais. Não tem que agradecer, não. — Mas, ainda assim, obrigado. — Por nada... — começou a rir — Você precisava ter visto a sua cara, João! Marcela caiu na gargalhada ao se lembrar. — “E você, rapazinho, vai pagar caro pelo que fez!” — tentou imitar seu motorista, com voz ameaçadora, aos risos. — Claro! Nossa Senhora! — lembrou-se do susto o menino — Um cara gigante como você joga um papo desses em mim? Meu Deus! Se você que é desse tamanho quase me deu uma surra — disse à Marcela, se referindo à pequena perseguição que terminou em arranhões —, imagina ele? Ele me quebrava em pedacinhos... — estremeceu. — Fica tranquilo, garoto — disse Rogério. — Eu sou grande, mas eu sou legal. Não costumo bater em crianças que quebram janelas com pedradas... — firmou o olhar nos olhos de João, estalou os dedos das mãos e continuou: — Só às vezes! Feliz, Marcela apenas ri. Passados alguns minutos de descontração e comilança na confeitaria, ela resolve perguntar para o menino como é a vida dele. Como é o dia a dia e o que ele faz para se divertir. — Bom... — ele responde. — Eu não sou nenhum alinigina, não, sabe? Sou desse mundo mesmo. Faço coisas normais. — Você quis dizer alienígena? — corrigiu Marcela. — Foi o que eu disse. — Não, você disse alinigina. — Ah! Você entendeu! — e então continuou — Eu não sou 22


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nenhum... Isso aí! Eu acordo sempre cinco e meia, tomo um banho, faço o café pra mim e pro meu pai. Mas tento fazer tudo no maior silêncio possível para não acordar a Carol...

— Carol?

— A minha irmãzinha. Ela ainda toma leite no peito e tal. Chora pra caramba, quando acorda. — Vocês são quantos? — Somos cinco. Eu, minha mãe, meu pai, meu irmão mais velho e a mais nova. E você? — Eu sou filha única. — Ah, sim... Deve ser bom por um lado; você não tem que dividir tudo com seus irmãos e tal. Mas deve ser bem solitário, né? — Sim, muito. — Lá em casa, é bem diferente da sua, sabe? — olhou para a garrafa de “refrigerante caro” e a bandeja em sua frente, cheia de biscoitos — Só hoje, aqui, a gente gastou o que lá em casa a gente levaria dias para gastar. Minha mãe nunca compraria essas coisas gostosas... Ainda mais agora, com a bebê, que usa fralda pra caramba... E então a conversa teve uma duração de quase duas horas. Rogério e Marcela ficaram impressionados com toda a sinceridade e simplicidade do menino. Depois acabaram mudando o rumo da conversa e começaram a falar sobre coisas que tem mais a cara deles, como músicas favoritas e filmes. Inclusive, Marcela se surpreendeu ao saber que o menino nunca havia lido um livro de ficção em toda a sua vida. Prometeu lhe dar um de presente, mas João Pedro recusou de imediato. Prometeu lhe emprestar, e então ele aceitou. — Quando chegarmos em casa, vou lhe emprestar o... — Marcela — disse o motorista —, eu não acho uma boa ideia levá-lo para casa. — Droga. É verdade... — concordou. 23


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O menino, que não é bobo, entendeu sem precisar de nenhuma explicação. — É porque eu sou pobre, né? — É porque meus pais são uns preconceituosos — disse a menina. — Mas, olha só, podemos lhe dar uma carona. Que tal? ... E pela primeira vez em toda a sua vida, João Pedro chegou à sua casa de motorista particular. Sua mãe, apenas observou de longe, nem sequer saiu de casa para cumprimentar os novos amigos de seu filho. Pensou que o menino podia estar metido em confusão. “Não acredito... Só pode ser algum traficante querendo levá-lo para o mau caminho!” — Posso saber quem foi que te trouxe em casa? — perguntou a mulher, quando o menino abriu a porta. — Ah, sim, foi... — O QUE É ISSO, JOÃO PEDRO? — surpreendeu-se a ver o machucado no braço de seu filho. — Calma, mãe, eu nem lembrava mais disso... — explicouse e continuou com uma mentira: — eu tropecei e cai no chão. — Você pensa que me engana, é? — desconfiou a mãe — E quem é que te trouxe, hein? — O motorista de uma amiga... — Motorista? Amiga? Quem são essas pessoas que eu nunca vi por aqui antes? Isso tá muito mal contado, João Pedro! Eu não quero saber de você andando por aí com gente desconhecida, viu? — Não, mãe, eles são legais! Ela mora naquela casa bonitona ali do outro lado do muro. No castelo, sabe? — Essa gente nem sabe que nós existimos, João. E quando lembram não é por boa coisa não. — Mãe, eu quebrei a janela deles outro dia... — começou 24


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a explicar toda a história. A mulher, a princípio não acreditou que uma menina rica iria querer ser amiga de seu filho. Foi difícil convencê-la de que toda aquela história era real. Mas João contou todos os detalhes; até mesmo quantas “bolachinhas de nome legal” ele comeu.

Capítulo 6: Os dois lados de um mesmo muro Marcela chegou às três horas da tarde em sua casa. Disse à governanta que havia ido com o motorista até a confeitaria. Não contou completamente a verdade, mas também não mentiu. O que é uma das suas maiores virtudes: não suporta mentiras. Às dezessete horas em ponto, como o combinado, desceu de seu quarto. — A onde a senhorita está indo? — perguntou Alcione ao pé da escadaria. — Vou dar uma volta lá fora... Tomar um ar — respondeu e logo em seguida fez uma pergunta da qual já imaginava a resposta. — Quer ir comigo? — Não. Eu tenho muito que fazer aqui dentro. E então a menina saiu de casa, olhou ao redor para ver se alguém estava lhe vigiando e foi caminhando em direção ao muro. — João! — gritou — Você está aí? Nenhuma resposta. — João! Nada. “Droga... Ele não vem...”, lamentou-se em pensamento. E quando já havia perdido as esperanças e estava voltando para dentro, ouviu seu nome sendo chamado. — Marcela! — Estou aqui! — gritou — Eu estou aqui! 25


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— Me desculpa. Eu acabei cochilando lá em casa... — disse o menino, de um lado do muro. — Tudo bem. Pelo menos você veio, não é? — respondeu a menina, do outro lado. E então os dois lados de um mesmo muro tornaram-se oficialmente grandes amigos. Passaram-se dez dias, dos quais, eles só ficaram dois sem se falar — devido à falta de tempo por terem que fazer o dever de casa. — Hoje você trouxe? — perguntou Marcela. — Sim! — respondeu do outro lado. — Certo. Você primeiro! — Por que eu? — Porque sim! “Porque sim, não é resposta”, escreveu em uma folha de papel. Dobrou-a em forma de avião e tentou fazê-la voar por cima do muro, mas só conseguiu na terceira tentativa. Marcela sorriu ao ver a resposta. “Vamos jogar jogo da velha?”, escreveu. “Sim! Eu começo!”, ele respondeu. “Por que você que começa? Cadê o seu cavalheirismo?” “Porque sim, ué!”, respondeu, e escreveu logo em seguida: “Não tenho cavalo!” “Você realmente não sabe o significado de cavalheirismo?” “Sei sim... É quem monta a cavalo!” “Você é muito esperto!” “Você tá me zoando, né?”, escreveu desconfiado. “Sim!” “Da próxima vez, EU que te dou uma rasteira.” “Sabe como eu te chamo quando penso em você?” “Ela pensa em mim?!”, pensou surpreso. “Ninguém nunca pensa em mim...” e então respondeu o aviãozinho que já estava quase precisando ser substituído por outro. 26


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“Como você me chama?” “O Menino do Estilingue.” “Isso é legal. Eu já te chamei de ‘A Menina da Janela’, em pensamento.” — Marcela! — chamou o motorista, interrompendo-os. “Só um minuto, o Rogério está me chamando...”, escreveu para João. — Oi! — Eu acho melhor você entrar. A Alcione já está te procurando... — ele disse — E ela também até comentou sobre achar estranho que nos últimos dias você queira todo dia sair para tomar um ar. — Ah... Eu queria ficar mais aqui... — Eu não deveria fazer isso, mas eu posso ajudar vocês — sorriu afetuosamente para Marcela. — O que acha? — Como? — perguntou entusiasmada. — Como? — Amanhã, depois da aula, eu levo vocês para um passeio em um parque. A gente aluga algumas bicicletas e vocês podem se divertir um pouco. — Você é o melhor motorista do mundo! — correu e deu um abraço de urso em Rogério. — Certo. Então diz que já está na hora de dar tchau, antes que a sargentona venha nos buscar aqui, está bem? “O Rogério veio me chamar porque a Alcione já está sentindo a minha falta lá dentro de casa. Eu realmente preciso ir agora, mas como ele é um motorista muito legal, ele vai nos levar para um passeio de bicicleta amanhã depois da aula. Você aceita ir comigo? Te encontro no caminho de volta da escola.” “Eu não tenho bicicleta...” “Não precisa! Eu nem vou levar a minha. Lá no parque, eles têm algumas para alugar.” “Não é caro?” “Não se preocupe com isso. Felizmente, o que eu não ganho de carinho dos meus pais, eu ganho em mesada. Isso pode ser útil às vezes. ^_^” 27


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Capítulo 7: O passeio no parque Como o combinado, após buscar Marcela na escola, Rogério e a menina percorreram o mesmo caminho que João costuma fazer após a aula. Encontraram-no próximo ao semáforo dos vinte e três segundos. — Vamos, João — disse Marcela de dentro do carro, animada, entre! No caminho conversaram sobre as aulas do dia. João contou sobre a sua dificuldade em alguns exercícios de matemática, e Marcela deu dicas de como resolver aqueles problemas mais facilmente — apesar de não ser a matéria que lhe rende as melhores notas. Assim que chegaram ao parque, Rogério os levou para alugar as bicicletas. Uma vermelha para Marcela. Uma azul para João. E uma verde para ele. O aluguel de cada bicicleta não custou mais que 10 reais por hora para cada bicicleta. Para João, um susto. Para Marcela, alguns trocados. Para Rogério, uma fuga do sedentarismo. João, apesar de não ter bicicleta, já sabia muito bem como pedalar, pois sempre que tinha a oportunidade, pegava emprestada a bicicleta de um amigo do seu irmão para dar algumas voltas na rua de sua casa. — Você é muito lerdinho! — provocou-o Marcela. — Vamos ver, então! — disparou em sua frente, trocando de marcha tão rapidamente que até parecia um profissional do ciclismo. — Ei! Vocês dois! — gritou Rogério, que como ciclista era um ótimo motorista de veículos motorizados que não exigem força física — Vão devagar! Não quero ver ninguém chegando em casa com arranhões! — “Caramba, eu preciso voltar a praticar esportes...”, pensou logo em seguida. — Tente nos alcançar, se for capaz! — provocaram-no. 28


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Foram precisos quarenta minutos para João e Marcela aceitarem o fato de que estavam começando a se cansar e seria necessário parar um pouco para recarregar as energias, durante um lanche em clima de piquenique. — Temos suco de laranja e suco de laranja com acerola — disse o motorista, que havia desistido de tentar acompanhar o ritmo dos dois há cerca de vinte minutos. — Você comprou daquelas bolachinhas de ontem? — João Pedro deixou escapar a pergunta. — Quais? — questionou Rogério — Os cookies? — Isso! — Não, não... Hoje temos somente coisas saudáveis para o nosso piquenique. — Sério? — perguntou Marcela, espantada pelo fato de Rogério não ter aproveitado a oportunidade para comprar “algo que realmente ama de paixão”, como ela diz. — Sim, senhorita... — respondeu dando uma ênfase na palavra “senhorita”. — Credo, Rô! — cuspiu suas palavras — Você falou i-gualzi-nho à Alcione! Rogério riu. —Ele trouxe sim! — comemorou o menino, ao ver que Rogério estava tentando esconder os biscoitos debaixo da toalha de mesa que estava esticada no belo gramado do parque. — Ah! Eu sabia! — afirmou a menina. — Seus viciados em cookies... — Mas não é só isso, mocinha, — disse Rogério sorrindo —, eu também trouxe isto... Os olhos de Marcela brilharam. — Hoje eu já te disse que você é o melhor motorista do mundo? — respondeu a menina, ainda olhando para o que ele havia levado. — O que é isso? — perguntou o menino, olhando para o 29


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pote repleto de algum tipo de guloseima de cor escura e forma arredondada, envolvida em açúcar. — É simplesmente o melhor doce de banana do mundo! — Verdade. Parecem mesmo com doce de banana. — Experimente um... — disse Rogério para o menino — Digo, se a Marcela não bancar a gulosa, como da última vez e comer todos em questão de segundos. — Você não tem ideia de como isso é bom... — saboreou dois em uma abocanhada só, e completou ainda de boca cheia — É a mulher dele quem faz. — Hmmmm... — deliciou-se o menino — São bons mesmo! — Eba! — comemorou o motorista — Quer dizer que os cookies são todos meus agora? — Nããão! ... — Foi divertido passar essa tarde com você — disse a menina, em frente à casa de João. — Da próxima vez — disse o menino —, eu que vou te levar para um lugar que eu gosto muito de ir. — Sério? A onde? — No dia que formos você vai saber. — Ah! Isso não vale... Fiquei curiosa agora. Bip-bip! — É melhor você ir... — disse o menino — O Rogério parece estar com um pouco de pressa. — Tudo bem. Ele espera um pouquinho até você me contar onde vamos ir. — Mas eu já disse. No dia você vai saber. — Ah... — deu alguns passos para frente, caminho oposto do carro, e olhou para os fundos da casa de João. — O que foi? — Ele perguntou. 30


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— Aquele muro, no seu quintal... — adentrou a casa do menino — Eu me lembro de ter visto algumas garrafas ali em cima. — Pois é... — disse o menino — Foi tentando acertar uma garrafa que eu acertei a sua janela. — Quase me acertou. Isso sim. — Quer ir lá? — Sim — caminhou em direção aos fundos da casa do menino. — Marcela! — gritou o motorista de dentro do carro. — Nós precisamos chegar a sua casa antes dos seus pais! — Eu já venho — ela respondeu —, é rápido. Marcela, enquanto caminhava pelo simples corredor da casa de João, observou a simplicidade em sua volta. Roupas estendidas em um varal improvisado com pedaços de bambu. Tênis secando na sobra do muro no quintal. O som da televisão vindo de dentro da casa. E logo em seguida deu de cara com a mãe do menino. — Olá, mocinha — disse a mulher. — Oi! — respondeu com um sorriso. — Você é muito bonita, sabia? — A senhora que é... — respondeu ao elogio — Seu filho me falou muito bem da senhora. — Ah, é? Bom saber disso. Vou começar a falar dele por aí também. — Ei mãe! — disse o menino. — A senhora já faz isso muito mais do que eu gostaria. Marcela sorriu ao ver João repreender sua mãe e resolveu provocá-lo. — Vou adorar vir aqui qualquer dia desses para que a senhora possa me contar tu-di-nho sobre o seu filho! — Se você quiser — sugeriu a mulher —, posso começar agora mesmo. — Melhor deixar para a próxima. O meu motorista já está me apressando... 31


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“O meu motorista...”, repetiu as palavras da menina em pensamento. — Eu sabia que pessoas ricas eram apressadas — disse a mulher —, mas não imaginava que pequenas crianças também fossem. — Mas eu não sou rica — disse a menina. — Eu sei quem você é, mocinha — disse a mulher. — Só espero que você não esteja usando o meu filho como um de seus brinquedos caros. — Mãe! — Tudo bem, João. — acalmou o menino, com a calma de quem não havia acabado de ouvir o que ouviu. — Talvez a sua mãe — disse olhando nos olhos da mulher — saiba quem são os meus pais. — Deu uma pequena pausa, e continuou. — Não vou julgá-la por julgar os meus pais, pois um dia a senhora saberá que nem sempre os filhos são cópias perfeitas de seus progenitores. “O que é progenitor?”, pensou o menino. — Você fala muito bem pra sua idade. — disse a mulher, surpresa com o vocabulário da pequena Marcela. — Apenas palavras, senhora. A mãe de João não disse nada por um breve momento, mas não conseguiu segurar as sílabas que formigavam em sua garganta. — É que eu não entendo... — O quê? — Por que uma menina rica como você quer ser amiga do meu filho? Você pode ter tantos amigos lá do outro lado. — “Lá do outro lado”, senhora, só existem paredes. Mas mesmo que houvesse um lar, eu ainda iria desejar a amizade do seu filho. Nem tudo nessa vida é sobre dinheiro. E o seu filho tem algo que o dinheiro jamais vai poder comprar... — a mulher ficou em silêncio — Ele tem um bom coração. Ele tem 32


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amor para compartilhar. E é isso que realmente importa, sabe? Dinheiro vem e vai. Se molhar, rasga. Não significa nada. Já o amor, até mesmo encharcado com as lágrimas que a vida nos dá, é capaz de sobreviver. — Nesse momento, a mãe de João sentiu seu peito formigar, e não mais a garganta. Sentiu o gosto do arrependimento e o viu tentando assassinar o preconceito que havia dentro de sua mente. — E, se a senhora se perguntar quem me ensinou isso, saiba que foi a vida... A vida e os poucos verdadeiros amigos que eu tenho. O meu motorista e a mulher dele. Meus verdadeiros pais. Não biológicos, mas de coração. — Uau... — murmurou o menino. — Bom... Eu vou embora agora — disse a menina —, mas eu não vou desistir da amizade do seu filho. Do mesmo jeito que espero que a senhora não desista de mim por, infelizmente, ter pais ricos demais para se lembrarem da minha existência. A mulher não disse nada. Seus lábios começaram a tremer. Ela mal conseguiu respirar. Mal conseguiu organizar seus pensamentos. Mal entendeu o que estava acontecendo. Seria isso apenas vontade de chorar? Vontade de sumir? Orgulho? Preconceito? Arrependimento? Ela vai ter tempo para pensar, afinal de contas, assim que Marcela chegar a sua casa, seu pai vai estar a sua espera ao lado da janela de seu quarto — lugar perfeito para ver sua filha conversando com uma mulher pobre ao lado de um menino pobre em um bairro pobre onde, segundo ele, não existem pessoas respeitáveis como ele. — Tchau, João! — acenou a menina, de dentro do carro, após dar um beijo em seu rosto e adentrar o veiculo. — Amanhã nos encontraremos depois da aula para você me levar ao lugar misterioso. — Tá bom! Até amanhã! — disse o menino, sem nem imaginar que as dificuldades estavam apenas começando — Tchaaauuu!

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