O Bravo de Ulan Bator

Page 1



O Bravo de Ulan Bator


Gerente editorial Roger Conovalov Projeto Gráfico Lura Editorial Diagramação Lura Editorial Editor Responsável JD Lucas Revisão Clarisse Cintra Capa Victor Willemsens.

Todos os direitos desta edição são reservados a Vinicius de Faria Cunha Av. Monsenhor Ascâneo, 591, Ap. 102, Barra da Tijuca - RJ - Cep: 22.621-060. Tel: (21) 9 9666 5612. Site: www.obravodeulanbator.wordpress.com E-mail: vini_cunha@yahoo.com.br

Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundação Biblioteca Nacional, Brasil)

Cunha, Vinicius O Bravo de Ulan Bator / Vinicius Cunha. ISBN: 978-85-86261-23-7 1. Romance de Aventura. 2. Ficção. I. Título.

Índice para catálogo sistemático: I. Ficção. B869.3 www.luraeditorial.com.br www.facebook.com/luraeditorial


Vinicius Cunha

O Bravo de Ulan Bator



Prefácio

Desde pequenininha, sempre tive uma grande fascinação por poltronas. Não essas estáticas, de casa, mas as de avião, trem, carro, ônibus – qualquer uma que eu sentisse que estivesse me transportando dali para algum outro lugar, certamente tão interessante como desconhecido. E se fosse na janela, melhor ainda. A viagem se desenrolaria nos meus olhos no mesmo ritmo que na cabeça. Por isso, talvez, que a minha inquietude viajante estivesse presente sempre tanto do lado de dentro quanto de fora. O tempo passou, as pessoas cresceram, as contas chegaram, mas as poltronas continuaram sendo as de janela, meu recanto lúdico todo pessoal. E, quem diria, seria exatamente nelas, entre uma jornada e outra, que eu assumiria o meu lugar de trabalho como jornalista e travel blogger: bastava um caderno, um notebook e, quando desse, um wi-fi. Também foi num acaso desses que “O Bravo de Ulan Bator” me caiu em mãos. Despretensiosamente e em boa hora: uma companhia para a minha poltrona lá de casa, que andava demasiadamente acanhada, sem histórias ululantes para me levar a bordo como o faziam suas colegas de estrada. Por isso, caro leitor, desde já conto o final da experiência: o livro que você tem em mãos possui essa inquietude página após página. Mais

7


que uma leitura, é um diário, um convite, uma viagem em si – daquelas que a gente passa todo o meio querendo chegar ao final para, só aí, entender o início. Admito que comecei a leitura com a tônica das palavras entusiasmadas do próprio Vinicius: “Esse é um livro totalmente ficcional, mas inspirado nas situações pelas quais passei sozinho e com amigos em viagens pelo mundo”. Até aí, tudo bem: afinal, sempre acreditei nas viagens como aqueles momentos renovadores de liberdade e autopermissão em que a gente vive histórias que, sem saber, acabam germinando em alguma coisa muito especial lá na frente. Por isso, comecei tentando identificar, a cada parágrafo, as pinceladas de realidade vividas pelo autor dentro da narrativa imaginada (ou seria o contrário?). Mas taí o meu erro e o meu conselho, ao invés de procurar qual é a real história da história, leia “O Bravo de Ulan Bator” como o que ele é: uma viagem. Deixando que o autor me levasse pelos solavancos do enredo, pude sentir na pele o seco mormaço dos altiplanos bolivianos, cheios de contrastes tão endurecidos quanto apaixonantes; o calor das viagens de carro; ou os recortes de tempo e espaço, como uma sucessão de fotos que só conta a história se mostrada numa sequência e num tempo específico, coisa que o autor - viajante experiente que mostra que é - soube fazer com habilidade. E se a proposta é ser ficcional, pelo menos há um personagem que permanece irretocavelmente verdadeiro: o lugar, que graças à descrição detalhada e quase sensorial dos tipos, costumes, paisagens, cores e sabores, parece transbordar das páginas e garantir ao cenário ares de protagonista, que, assim como a janela das minhas poltronas de infância, é parte silenciosa e imprescindível da viagem. Foi ótimo. Uma intrigante jornada, do início ao fim. E daquelas cheias de curvas, que faz a gente ficar grudado no ritmo, só para saber o quem vem logo à frente. Então, não sei tem muita gente com um gosto quase nostálgico por poltronas como eu (cada um com suas loucuras, não?), mas confesso, cá

8


entre nós, que a minha lá de casa me levou a bastantes lugares com esta história na cabeceira. Para quem gosta de leituras (ou viagens) assim, taí uma ótima dica para embarcar junto. Literalmente, aliás! Boas viagens!

Clarissa Donda Jornalista, travel blogger e autora do livro “Papo de Viagem e outras histórias de bar”

9



A vida s茫o as hist贸rias que dela se leva.



1. Já estava quase lá. Era seguir a principal até a agência dos correios, dobrar à direita no supermercado, depois a segunda esquerda e pronto. Estava cansado, mas as latas de cafeína ingeridas durante a viagem o mantiveram com os olhos bem abertos. Viu o relógio: oito e meia da noite, exatamente o horário combinado. A expectativa o deixava ansioso. O que pensariam seus companheiros após tanto tempo? Parou no cruzamento, olhou para os dois lados antes de prosseguir. A má iluminação impunha dificuldades aos poucos motoristas que circulavam naquele momento. Segurava o volante, tomava um energético e passava as marchas, tudo ao mesmo tempo. Pelo retrovisor, apenas o reflexo avermelhado da placa de trânsito. Acelerou. — Puta que pariu! Pessoas esperavam numa fila, ele era o último de todos. À frente, um senhor ossudo papeava com um baixinho asiático; um mulato de cavanhaque desdobrou um mapa-múndi. O garoto se espichou e reparou nos demais enfileirados, havia gente do mundo inteiro naquele galpão claustrofóbico. Perguntou a um sujeito atarracado o porquê da reunião: — Vamos embarcar em uma nave espacial. — Uma nave? — Apalpava as costas para ter a certeza de que não faltava algo. — Mas como posso viajar sem minha mochila? Quando despertou, sentiu a cabeça segura nos braços de alguém. Tentou mexer a boca, a mandíbula estalou e ele se apavorou. — Você está bem? Pode me ouvir? Policial Gómez, leu no uniforme. Tonto, a visão embaçada, indicou com o polegar para cima que estava tudo ok, apesar do pequeno sangramento na testa. O acidente poderia ter sido realmente sério, os automóveis retorcidos no meio do cruzamento imprimiam um tom sombrio à cena. O rapaz saiu do carro, sacudiu os estilhaços grudados na roupa, desviou da sucata e alcançou o que havia restado do Palio cinza. Quem o dirigia era um senhor de óculos muito grandes, que nada sofrera também. Com o dedo apontado para o velho, teve vontade de agredi-lo: 13


— Seu maldito, quase me matou. O cabo Oscar Gómez presenciou o acidente. Vinha logo atrás e percebeu que o idoso, desatento, avançara no Gol branco. O velho vacilou, por isso bateram. Indiferente às acusações trocadas entre os motoristas, evoluía em seu relatório, satisfeito por não ter de perder tempo ouvindo declarações nunca esclarecedoras. Só haveria a versão oficial, a dele. A dificuldade com o idioma fazia Gómez, que só havia estudado até a quinta série, gastar um tempo maior do que o necessário para a redação daquela meia lauda de documento. Compenetrado, não reparou que os xingamentos já tinham acabado. Mais que isso, o jovem e o senhor se abraçavam, sem preocupação em disfarçar o choro. A batida, a raiva, os destroços, a confusão, tudo dava lugar ao que parecia ser um reencontro de pai e filho. Ou de avô e neto. Estranhou. Já houve casos em que envolvidos em colisões de trânsito simularam efêmeras amizades para tirar a polícia da cena e evitar que se descobrissem problemas mais graves. Aquelas lágrimas decididamente não eram verdadeiras. — Policial, não precisamos do boletim de ocorrência. Já está tudo resolvido com o meu velho amigo. “Velho amigo?” Depois de tanto tempo perdido em anotações, é claro que não aceitaria essa resposta. Gómez levaria o caso até o fim, especialmente este em que fora testemunha. Insistiram. E o policial irredutível, já impaciente diante do que considerava puro teatro. — Vou pedir mais uma vez pra nos liberar. Ou você não sabe com quem está falando?

14


2. João Garça tomou duas doses de pisco, três cervejas Paceña e voltava a pé para o albergue. De uma noitada intensa, levava como troféu a francesa das madeixas louras, que sucumbira aos seus galanteios após horas de insistência. Retornariam à hospedagem onde se conheceram para mais uma transa fortuita. Às seis da manhã, cassetetes contra as barras de ferro interrompiam seus sonhos, despertando-o para a realidade amarga. Com os olhos ainda fechados, João inclinou o tronco para apanhar pão e o café deixados pelo guarda no gradil da cela 27. Estava resignado, mas os maus agouros ainda vinham o tempo todo. Semanas antes, desfrutava a vida louca em uma aventura que já durava seis meses pela América do Sul, contando os dois naquele inferno chamado Casa de Detenção San Pedro. Um destino lúgubre para alguém até então sem compromissos senão viajar. João Freire Bastos era um sujeito alto, de pescoço comprido e pernas finas, a razão de seu apelido. A pele morena, os cabelos castanhos levemente ondulados e os lábios delgados não o faziam nenhum ícone de beleza. O Garça humano, ao contrário do animal, destacava-se mesmo era pelo andar desengonçado. Só que o sucesso que vinha tendo com as mulheres o inflava, deixando-o cada vez mais confiante. Herdara do pai, além do nome, o gosto por viagens. Amigos diziam ser impossível alguém não gostar de João. Prestativo, sensível, espirituoso e trancafiado numa prisão perigosa de La Paz. A Casa de Detenção San Pedro, o maior presídio da capital boliviana, dividia-se em oito pavilhões, com níveis distintos de “conforto”. Mil e quinhentos caberiam ali, só que, na prática, o número já ultrapassava três mil, quatro mil talvez. Durante o dia, a violência ficava sob controle, mas à noite, as facções explodiam em conflitos. Roubos, tráfico e linchamentos repetiam-se amiúde. Nem a polícia tinha acesso a alguns pavilhões. Segundo a Secretaria de Segurança Pública boliviana, quatro detentos morriam

15


por mês de “causas naturais”. A cela mal iluminada, equipada com uma cama beliche, uma mesinha de metal chumbada ao chão, uma pia e um sanitário fétido, seria a acomodação dos pesadelos a quase todos. No entanto, comparada às outras daquela prisão, parecia um trono real. San Pedro se segregava por alas, e a dele, a de número três, conservava certo sossego. Tênue, mas ainda assim um sossego. Garça lidava com devedores de pensão, encrenqueiros de rua e autores de furtos leves. Muitos trabalhavam para redução das penas, a mente afastada das más intenções. Comeu o insosso pão de forma de todas as manhãs, mas naquele dia teve medo de sair sem o companheiro que, desobediente às normas, seguia em sono profundo. Acordar fora de horário acarretava sanções desde não receber comida até castigos físicos. Se não detestasse tanto a intempestividade dele, já o teria sacudido. O velho corria riscos e João, na medida do possível, tentaria protegê-lo dos carcereiros impiedosos. Durante o banho de sol, os detentos o cercavam para aprender um pouco de português. Julio Aragonez era um deles. Sempre de gorro branco, camiseta recortada na altura dos braços e com um tigre tatuado no tornozelo, Aragon — como era conhecido — nunca havia se metido com o crime até furtar um rádio do carro do vizinho. O dominicano Camilo Aldo, um albino bem-humorado, foi capturado numa ação desastrada: arrebentou a corrente, subiu na bicicleta e trombou com uma cabine da polícia. Para piorar, o alicate que usara no roubo perfurou seu intestino, deixando-o um mês acamado no hospital. Passou a ser chamado de Caindo Aldo. Bastava citar o apelido para que Nair, Blanco, BobSauro e o próprio Garça gargalhassem. Só nesses poucos momentos se notava animação em João. Fora isso, seus dias eram de angústia, sempre recolhido no canto da cela. Não sabia quantas semanas, meses ou anos perduraria o suplício. Às vezes passava dias seguidos sem sair ao pátio, o cérebro vazio, a visão turva. O presídio fedia a suor e sangue. Medo e melancolia. Sonhava uma vida livre, mas não havia esperanças em San Pedro.

16


3. Às oito e quinze era hora de acordar o companheiro. Mais 45 minutos o banho de sol se encerraria, João não queria passar o dia inteiro sem a luz natural. Usou a ameaça dos guardas como justificativa para despertar o companheiro: — Não tenho que me submeter às ordens estúpidas daqui — o outro berrou, ao sentir as cócegas em seu abdome. Jorge Scrubber Faria, o coronel Scrubber, era um senhor nos seus setenta anos, nascido no interior de São Paulo, filho de pai brasileiro e mãe boliviana, barriga protuberante e uma rabugice peculiar. Sobressaíam também as avolumadas sobrancelhas e os olhos esbugalhados que saltavam dos óculos de aro grosso. Os cabelos brancos indicavam um homem de muita experiência, o que ele fazia questão de ressaltar sempre. — Não sabe quem eu sou? Meu nome é coronel Scrubber. S-C-R-Udois bês-E-R. CORONEL SCRUBBER! Scrubber era um positivista convicto, obstinado por Augusto Comte, a ideia de que somente uma ditadura sociocrática sanaria as mazelas da América Latina. “Um país se constrói com ordem e progresso, e não com a anarquia que vemos hoje em dia”, repetia o mantra ritmado. Efraín Montt, Luis Meza, Francisco Bermudez, Reynaldo Bignone, conhecia todos os governantes militares no continente, defendendo-os com fervor. Na semana anterior tinha brigado com um jovem panamenho, tremenda encrenca no refeitório do presídio. Scrubber não participava da conversa entre os dois rapazes, até que um deles chamou o general Augusto Pinochet de golpista. Avançou com fúria e uma colher de sopa no peito do prisioneiro, que esmurrou o velho para se defender. Outros também se envolveram, aproveitando o ensejo para arremessar cadeiras contra os rivais. A questão já não era mais política. O batalhão de choque foi acionado, homens com escudos e porretes gritavam palavras de ordem, queriam invadir o recinto para bater sem distinção. Por pouco isso não aconteceu.

17


— Moleque imbecil! — gritava na enfermaria, quase uma múmia de tanto esparadrapo. Dez dias depois, ainda exibia o curativo no supercílio e prometia vingança ao “canalha partidário de Allende”. Impossível estabelecer os limites entre factual e delirante nas narrativas do coronel. O dom da oratória lhe era mérito inquestionável. Contava os desenlaces em pormenores, com coerência e convicção. Se houvesse mentiras ninguém saberia quais, e talvez nem valesse a pena mesmo. Scrubber dizia estar em La Paz para recompor o governo de Lozada, de quem teria sido o Chefe das Forças Armadas nove anos atrás. Gonzalo Sánchez de Lozada Bustamante foi o presidente da Bolívia de 1993 a 1997 e, posteriormente, em 2002 e 2003. Liberal ortodoxo, promoveu uma série de privatizações, entre elas a da companhia de gás boliviano. Contra isso, estratos populares se sublevaram. O que começara como um protesto, transformou-se na revolta maciça que depôs o presidente. Sánchez de Lozada era acusado de comercializar o gás, principal produto do país, em condições desvantajosas. A rebelião foi liderada por Evo Morales, então sindicalista. A amizade entre Scrubber e Lozada remontava aos anos 1950, quando se encontravam para o tradicional chá de coca no bar La Peña, nas proximidades da Praça Murilo. Passada essa época, seguiram caminhos distintos: Lozada desfrutou a juventude longe de La Paz, em renomadas escolas norte-americanas; Scrubber se desdobrava entre a Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, e a Universidade Maior de San Simón, em Cochabamba, formando-se engenheiro nas duas. Aqueles que testemunhavam os bate-bocas no La Peña jamais imaginariam que se reencontrariam, a começar pelo próprio coronel. Era uma quarta-feira escaldante no Engenho Novo, e saía da padaria carregando duas sacolas de compras quando o celular tocou: — Alô, é Scrubber? — Coronel Scrubber! Quem me incomoda? — Não sabe quem? É o velho Gonzalo.

18


— Gonzalo Sánchez? O que agora eu só ouço pelas notícias de rádio? — Sou eu mesmo, boludo. Pensou que o convite fosse mais uma broma do antigo companheiro. Mas não, claro que não era. — Você quer que eu seja o Chefe das Forças Armadas? — Isso, coronel Scrubber. Chefe das Forças Armadas, o mais alto posto militar do país. — Está falando sério? — Não, liguei pra gastar meus créditos, cabrón. O presidente precisava de alguém competente e confiável, o coronel cumpria os requisitos. Naquela mesma tarde, um avião da Força Aérea Boliviana pousava no aeroporto do Galeão. Nunca exerceu nem voltaria a exercer tanto poder, mas o golpe de Estado dos cocaleros acabou com tudo. A expulsão do cargo, que desempenhava com devoção, o desnorteou. Propôs a Lozada um exílio temporário no Peru para composição de uma milícia contrarrevolucionária, mas o agora ex-presidente preferiu reaver a rotina acadêmica nos Estados Unidos, longe da instabilidade que a Bolívia historicamente representou. Jorge Scrubber então, desde o final de 2003, transformara-se numa espécie de andarilho, indo de país em país, de quartel em quartel, na tentativa de arregimentar militares que o conduzissem, sim, ele próprio, à presidência.

19


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.