Colónia, colonização, colonial e colonialismo

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Colónia, colonização, colonial, colonialismo Isabel Castro Henriques

É sempre difícil um exercício de síntese capaz de fornecer em breves páginas o essencial de uma questão que, traduzindo-se na simplicidade aparente de um vocabulário, apresenta uma densa complexidade que assenta na história dos homens, na criação das palavras, nas relações entre os termos desta equação e nas muitas interpretações, mais ou menos marcadas pelas ideologias. A elaboração de um inventário de problemáticas que reflictam a diversidade das situações históricas, de análises e de reflexões pluri e interdisciplinares, de posições teóricas/ideológicas e políticas sobre colónia-colonização-colonial-colonialismo pode constituir uma diretriz capaz de suscitar estudos comparativos indispensáveis à consolidação do conhecimento. Nas últimas décadas, o fenómeno da globalização, as “novas” manifestações de violência extrema, os desenvolvimentos tecnológicos, o crescimento vertiginoso do conhecimento, a renovação da produção científica no campo particular das ciências sociais, a multiplicação de perspectivas inovadoras que organizam e diversificam o pensamento filosófico, têm conduzido a uma contínua necessidade de estruturar uma reflexão crítica, abrangente e interrogativa sobre os percursos e as estratégias dos homens, a diversidade e a complexidade das formas de organização das sociedades, os sistemas classificatórios que permitiram fabricar as hierarquias, os juízos de valor e

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os imaginários das geografias e das humanidades, numa perspectiva de longa duração. Esta situação tem vindo a suscitar um alargamento e aprofundamento dos espaços de análise relativos às construções e reconstruções do mundo, desmontando e reinventando conceitos e noções, questionando e reinterpretando as fontes, estudando os atores, as ideias, os valores, os princípios, as práticas, os conflitos, as dominações que estruturaram o espaço global em que vivemos. Os estudos centrados na “questão colonial” também assumiram um novo fôlego, marcado por uma diversidade de leituras, de polémicas, umas de natureza metodológica e científica, outras (demasiadas) dando conta da “incomodidade” do tema e da difícil tarefa de descolonização ideológica do colonizador e também do colonizado.

OS TERMOS: DE UMA ORIGEM COMUM À COMPLEXIDADE DAS CATEGORIAS CLASSIFICATÓRIAS Derivados da mesma matriz latina, os termos colono (colonus, cultivador, membro de uma colónia, povoador) e colónia (colonia, lugar onde vivem os colonos, agrupamento de indivíduos/trabalhadores que deixam a sua terra para se instalar e trabalhar noutra, no mesmo país), aparecem nas línguas latinas europeias, como o francês e o português, no século XIV. Os seus conteúdos/significados vão evoluindo de acordo com as conjunturas dos séculos seguintes, que exigem uma adaptação semântica capaz de “dizer” as novas realidades. Colónia, por exemplo, adquire a partir de meados do século XVII uma outra dimensão, estruturante e classificatória, que lhe confere uma densidade teórica e histórica, que anuncia o colonialismo do século XX. Colónia define-se como um estabelecimento fundado por uma nação num território estrangeiro, mais longínquo que próximo, quase sempre habitado por populações culturalmente diferentes, “menos evoluídas”, que fica na dependência do país ocupante, mais tarde designado de

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metrópole. Os termos colonização (o fato de povoar com colonos, de transformar em colónia, de explorar as colónias), colonizar (estabelecer colónia, habitar como colono), e colonial (adjetivo relativo às colónias — expansão colonial, regime colonial, produtos coloniais, chapéu colonial) banalizam-se na segunda metade do século XVIII, dando conta sobretudo das situações coloniais americanas. Se a palavra colonizador (aquele que coloniza, nação colonizadora) surge nos princípios de Oitocentos, já o termo colonizado (aquele que sofre a colonização) data do final do século XIX, não tendo lugar nos dicionários portugueses da primeira metade do século XX, como é o caso do Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo (10ª edição de 1945). Pertencem às “novidades linguísticas” do século XX os termos colonialismo (sistema de expansão e dominação colonial; teorias e doutrinas coloniais e ainda, na língua portuguesa, “interesse, paixão das coisas coloniais”) e colonialista (relativo ao colonialismo; partidário do colonialismo; significa também na língua portuguesa, “aquele que se dedica a assuntos coloniais”). Estes dois últimos termos revelam uma dimensão classificatória, adquirem densidade teórica e naturalmente também um sentido pejorativo, pois concentram os princípios e os valores fundadores e estruturantes das ideologias e das políticas que sustentam e materializam os projetos europeus de dominação colonial do século XX. Esta curta viagem pelos dicionários pretende fornecer uma rápida leitura da origem, das transformações de conteúdos e do surgimento de novos termos, permitindo-nos sublinhar uma primeira evidência: as línguas dos homens não podem deixar de ter em conta as mudanças estruturais ou conjunturais vividas pelas sociedades.

COLONIZAÇÕES: CONVERGÊNCIAS FUNDADORAS A dimensão histórica dos processos de construção, consolidação, renovação, eliminação, recuperação, modificação dos termos, dos

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conceitos, das categorias classificatórias, conduz à necessidade de definir uma periodização capaz de organizar e estabelecer as conexões entre as situações históricas e as fórmulas fixadas pelas línguas para as designar, pondo em evidência as dinâmicas de mudança, as suas variáveis e/ou as similitudes, que não podem senão resultar das relações sociais, sejam elas pacíficas ou violentas. Podemos dizer que qualquer um destes termos — colónia, colonização, colonial, colonialismo —, em qualquer lugar ou em qualquer tempo, remete para as formas relacionais que os homens constroem entre si, procurando cumprir projetos, criando formas de organização inéditas, fabricando ideologias e estruturando imaginários que legitimam ações e perduram no tempo. Se a existência de colonos, de colónias, de colonizações marca a história do mundo, muito antes da epopeia expansionista europeia do século XV, é a partir da “domesticação” portuguesa do oceano Atlântico e da ocupação/povoamento das ilhas desabitadas — que fornecem a primeira sapata da mundialização —, seguidas da colonização das Américas, que o processo colonizador/colonial adquire uma dimensão política, económica, territorial, estratégica e nacional. Ao mesmo tempo verifica-se a emergência das primeiras formas de organização anticolonial, quer dizer a emergência de vozes (poucas) incómodas no espaço do colonizador, e sobretudo as estratégias desenvolvidas pelas populações dominadas para manter alguma autonomia no quadro de uma difícil sobrevivência imposta. Tarefa que se revelou quase sempre impossível, pois os instrumentos e as técnicas de uns e de outros punham em evidência a superioridade europeia, condenando os indígenas ou nativos à destruição e à dominação, situação que se viria a repetir na primeira metade do século XX, no continente africano. Os processos de colonização apresentam duas características comuns evidentes: a desigualdade da relação entre o país colonizador (que domina/submete) e o país colonizado (dominado/submetido), e a descontinuidade territorial e cultural entre os dois grupos em

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presença. Para o indígena ou o colonizado, o colonizador é um estranho, um estrangeiro, um usurpador, um dominador, mesmo se essa generalização teórica não reflete as múltiplas variáveis históricas, a diversidade dos agentes envolvidos, as estratégias de “cumplicidade” dos povos colonizados. Para além destas marcas comuns, as colonizações levadas a cabo pelos europeus apresentam sempre uma articulação íntima entre três planos essenciais à concretização da operação colonizadora: o económico (o colonizador procura um enriquecimento rápido explorando os homens e as terras colonizados); o ideológico (o colonizador necessita de uma legitimação para os seus atos — a “salvação” dos colonizados, primeiro através da propagação do cristianismo, depois da “missão civilizadora” que só pode emanar de seres superiores, como o prova a ciência europeia); e o plano político, que se manifesta através da organização de uma panóplia de instrumentos administrativos, legislativos, judiciais indispensáveis à dominação do território e das populações, e que pretende também sublinhar o poder do colonizador, a sua hegemonia, como um objetivo autónomo, sendo a dominação dos espaços colonizados a prova/consequência e não a causa, da força da nação colonizadora. Registe-se ainda um elemento fundamental que atravessa toda esta problemática: se a colonização significa a eliminação da autonomia do colonizado, não só territorial, mas também cultural — como as línguas e as religiões —, colonizar é um exercício que visa desmemoriar as populações em relação à sua própria história, introduzindo a história do colonizador e construindo uma nova memória, onde uns e outros são hierarquizados de acordo com a ordem do colonizador, marcando de forma definitiva a valorização do mesmo, a desvalorização e a recusa do outro. A violência — nas suas múltiplas facetas — inerente à dominação foi sempre uma constante dos processos de colonização.

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COLONIZAÇÃO E HISTÓRIA: LINHAS ESTRUTURANTES, VARIÁVEIS CONJUNTURAIS Entre os séculos XVI e XVIII, o processo colonizador/colonial europeu concretizou-se nas Américas, nele tendo participado várias nações europeias, que disputavam a hegemonia dos mares, dos comércios e dos territórios ultramarinos, transformados em espaços vitais das suas economias de orientação mercantilista. Estas colonizações da “época moderna” caracterizaram-se pela ocupação de imensos espaços marcados pela fragilidade demográfica das populações indígenas, situação que não impediu a violência extrema — até ao extermínio — dos colonizadores. A necessidade de mão-de-obra barata e abundante destinada à exploração das riquezas americanas deu origem ao desenvolvimento de um comércio de seres humanos que, durante mais de três séculos, transformou os africanos em mercadoria, desumanizando-os e escravizando-os no quadro dos sistemas esclavagistas organizados pelos europeus no Novo Mundo. O tráfico negreiro constitui um dos fenómenos mais paradoxais da história dos homens: marcado pela violência desmedida de que foram alvo os africanos, não pode deixar de ser também um processo criador de novas realidades sociais, culturais e nacionais, estando na base da construção do mundo em que vivemos. Se as colonizações europeias dos séculos XIX e XX, como as que se verificaram no continente africano, integram todos os marcadores estruturantes dos processos de dominação anteriores, caracterizamse elas pela introdução de variáveis legitimadas pela ciência e pela preocupação em organizar sistemas mais complexos, elaborados e eficazes destinados a cumprir os objetivos da colonização. Uma primeira grande surpresa derivou da forte contestação organizada pelas estruturas políticas africanas, independentes e autónomas, que muitos europeus consideravam parceiras do tráfico negreiro e, portanto, cúmplices que deviam aceitar a dominação. As “campanhas de pacificação” levadas a cabo pelos europeus para

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concretizar a ocupação de vastas extensões dos territórios africanos, traduziram-se em décadas de confrontos, de repressão, de esforços militares para impor uma paz que permitisse a instalação de um sistema de exploração dos homens e de valorização das colónias. Tratou-se, primeiro, de recuperar gastos e investimentos metropolitanos exigidos pelo esforço militar pacificador e depois repressivo, pela implementação de estruturas diversas essenciais ao enquadramento do indígena e à exploração do território, pela construção de redes de circulação indispensáveis ao controle do espaço e à circulação dos homens e das mercadorias, pelas operações de “branquização” dos territórios com a fixação de europeus, social e economicamente exigentes, mas também de introduzir sistemas de trabalho, de produção e técnicas inovadoras destinados a desenvolver a criação de riqueza necessária a um funcionamento racional e lucrativo da máquina económica e do capitalismo europeus. Acrescente-se ainda o investimento na obrigação civilizadora — esse “fardo do homem branco” (CHAMBERLAIN, 1895) —, que impôs o estabelecimento de organizações para assegurar a eficácia do ensino, da formação, da assimilação, do trabalho, para “fabricar” indígenas despidos da sua selvajaria, tornando-os úteis na valorização do seu próprio território. É certo, que no quadro das diferentes situações coloniais do século passado, os modos de exploração e as funções atribuídas e/ou devolvidas aos indígenas apresentaram convergências, mas também diferenças. Se aparentemente todas elas evoluíram em função das políticas do colonizador, devemos dar uma atenção reforçada — até hoje muitas vezes silenciada ou opacizada — às estratégias dos colonizados, às suas intervenções quer passivas, quer ativas, às formas como africanizaram em seu proveito as propostas europeias. Obrigados a entrar na engrenagem dos colonizadores/colonialistas, os colonizados recuperaram instrumentos (como a escrita) que lhes permitiram preservar valores essenciais das suas identidades, sem recusar todavia as dinâmicas de mudança, intervindo assim na construção dos seus novos territórios.

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COLÓNIA E REPÚBLICA: UM EQUÍVOCO PERSISTENTE Se os ideais republicanos afirmam que “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos […]”, as colónias do século XX, que constituem também um dos projetos mais empenhados das repúblicas europeias, não se diferenciando daquelas que outros regimes souberam consolidar, assentam na recusa dessa afirmação. As formas de dominação, de repressão, de desvalorização do colonizado emanam frequentemente de instâncias que pretendem ser a reprodução das instituições e dos modelos republicanos metropolitanos. O exemplo da colonização portuguesa em África, durante a Primeira República portuguesa (1910-1926), que lançou as bases do colonialismo das décadas seguintes marcadas pela Ditadura, põe em evidência a contradição entre república e colónia, categorias cujos conteúdos são claramente antagónicos. Se a República, onde todos são iguais em direitos e em obrigações, é de fato o lugar que cria o povo soberano, os cidadãos, a colónia é o lugar de expressão da força, da violência, do arbitrário, da exclusão, da ausência de igualdade e de liberdade, constituindo os seus habitantes uma massa de súbditos dominados, excluídos da cidadania. Se a existência da República deve excluir a da colónia, nos seus princípios e na sua prática, verifica-se um paradoxo singular: os republicanos apresentam-se como obreiros ativos, incansáveis, apostando na aventura colonial, participando na construção jurídica, cultural e política de um império onde se concretizem os ideais da república. Sem se dar conta que a sua recusa — fundamentada na superioridade racial e civilizacional do homem branco — em considerar os homens iguais na sua diversidade cultural, constituiu uma das linhas de fractura do universalismo republicano. A relação íntima entre a república e as colónias, marcada por uma tradição republicana pouco atenta aos particularismos, assentou justamente na negação da liberdade e da igualdade de alguns, os indígenas. Se na metrópole se procedeu a operações desvalorizantes 52 | Dicionário crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa


do outro, destinadas a assegurar a sua inferiorização, recorrendo a imagens, descrições, emoções susceptíveis de fornecer representações do “selvagem das colónias”, que transmitiam e legitimavam a desigualdade das raças, nas colónias, as políticas e as práticas do colonizador mostravam uma força criativa inédita capaz de inventar estatutos inovadores aplicáveis aos nativos, de modo a organizar e a consolidar a sua desigualdade física, social e cultural, recorrendo à missão civilizadora, esse braço falsamente desarmado da dominação colonial europeia. Registe-se também o fato da república se pretender emancipadora, libertando os africanos das trevas da barbárie, e modernizadora, levando a luz do progresso e da sabedoria à África, fazendo obra universal, abrindo escolas, construindo hospitais, criando as mais diversas infraestruturas, sem nunca questionar o racismo, que alimentava os imaginários, as ideologias e as mais diversas formas de discriminação em relação ao colonizado. Cega em relação aos africanos, a quem negou responsabilidade e participação na construção dos territórios colonizados, usando-os como seres irracionais bons para o trabalho, a república praticou ou tolerou constantemente as agressões dos colonizadores, comportando-se ela própria de forma violenta, destruidora das suas práticas sociais e culturais, deixando uma herança de dominação assaz organizada e projetos de exploração colonial rapidamente abraçados pela Ditadura de Salazar. Este continuum colonial dos séculos XIX e XX, marcado pela inexistência de fraturas relevantes, apesar de acontecimentos de extrema violência e de mudanças políticas que caracterizaram a vida das nações europeias, só veio a terminar em meados dos anos 1950 (1974, no caso português), quando as dinâmicas anticoloniais e independentistas mundiais se afirmaram de forma irreversível, pondo fim a uma hegemonia europeia que se havia afirmado durante séculos.

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EM TORNO DO COLONIALISMO: INCOMODIDADES E NOVAS FORMULAÇÕES A segunda metade do século passado assistiu a uma banalização do termo e do fenómeno do colonialismo, não só para reforçar a necessidade de proceder ao seu estudo e de desmontar um dos seus componentes mais estruturantes e atuantes nas sociedades atuais — o racismo —, mas também para legitimar opções ideológicas e práticas políticas, que se inscreviam nos processos de construção nacional dos novos Estados independentes, a braços com a elaboração de novos sistemas de pensar e de organizar as sociedades. Registe-se também a necessidade de alguns novos governantes (ex-colonizados) de justificar incompetências, violências e práticas corruptas, recorrendo a políticas de vitimização assentes exclusivamente nos malefícios herdados do colonialismo. No mundo civilizado, agora desenvolvido, o colonialismo ressuscita sob a forma do neocolonialismo, uma versão corrigida e adaptada à nova ordem económica e política internacional, que, sob a bandeira da ajuda e do desenvolvimento, pretende manter novas formas de hegemonia nas relações com os antigos colonizados. Esta nova ordem mundial despertou o interesse das grandes potências mundiais que não deixaram de procurar atrair os novos países para as suas esferas de influência. O fim do conflito Estados Unidos da América (EUA) x União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) traduziu-se na organização de um sistema no qual os atores que exercem hegemonia não são apenas Estados, mas também organizações internacionais que através de mecanismos eficazes de ingerência, procuram impôr as suas decisões e reduzir as autonomias dos espaços nacionais. A aceleração da globalização desde os finais do século XX, marcada pelos fenómenos da mundialização das trocas, do aumento do volume das transacções financeiras, da redução dos preços dos transportes, do desenvolvimento das novas tecnologias da informação e comunicação, assim como a deslocação atualmente crescente

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de atividades do capitalismo industrial para os países do sul e do leste e as alterações emergentes na divisão internacional do trabalho anunciam já um novo modo de exercício da hegemonia, que assenta, não numa base territorial, mas nas redes de trocas de informação e de capitais controlados pelas organizações internacionais reforçadas e pela nação ou nações mais poderosas. No campo do conhecimento e da produção científica, assistimos neste século XXI a uma reorganização dos estudos ocidentais consagrados à questão colonial novecentista, sobretudo europeia, em que a utilização dos termos e das noções põe em evidência a articulação entre os conteúdos e as ideologias e políticas dominantes, que impõem, pelo silêncio ou através de reformulações, torná-los operacionais perante as novas realidades mundiais. Estamos perante uma dificuldade de romper com as velhas formas de legitimação ideológica, de “des-ideologizar” as categorias classificatórias do passado recente. Assim, a noção de colonização aparece frequentemente em substituição daquela que seria apropriada e legítima, a noção de colónia. Trata-se de uma operação que pretende fugir da carga pejorativa adquirida pelo termo colónia, em virtude da sua ligação siamesa com o colonialismo, esquecendo que as colónias constituem um fenómeno incontornável da história contemporânea. A colónia é hoje considerada, sobretudo nos países dos antigos colonizadores, como um terreno minado, um tema suspeito, politicamente incorreto, pois não permite a cicatrização das feridas deixadas pelo colonialismo, impedindo ou pelo menos não facilitando a reconciliação entre os povos, não ajudando a silenciar um passado incómodo que prejudica as relações económicas e contribui para a fragilização das influências e para a substituição das velhas hegemonias. Nas últimas décadas, o colonialismo, termo que chegou tarde ao vocabulário contemporâneo, transformou-se na dimensão pejorativa da colonização, englobando a colonização, os seus excessos, a sua legitimação e ainda evocando o neocolonialismo. De fato, se o ex-

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colonizador opta pela revitalização da categoria colonização, o excolonizado fala menos de colonização que de colonialismo, categoria que explica efetivamente a totalidade do fenómeno. É bem evidente que a colonização não se identifica inteiramente com o colonialismo: a colonização não se limita aos excessos do colonialismo, mesmo se ela contém um manancial de violência muito significativo que a história do mundo fixou. A natureza hegemónica da colonização e do colonialismo impôs a noção europocêntrica de descolonização (princípio dos anos 60), ignorando o papel dos povos oprimidos no processo da sua libertação e reduzindo no mesmo movimento a importância das independências, umas obtidas pacificamente, outras, como no caso português, conseguidas após anos de guerra, de violências, de combates, de destruições. Os historiadores utilizaram (utilizam!) abundantemente esta categoria, por comodidade ou não, tendo-a banalizado na maioria das sociedades ocidentais, confundindo-a com as independências, como se o passado pudesse ser eliminado. O que quer dizer “descolonização”? Trata-se da retirada da potência colonizadora? Tratase dos movimentos de independência? Trata-se de um ato justo que demonstra o reconhecimento europeu da violência colonial? Tratase de uma benesse oferecida pelos colonizadores aos colonizados? Trata-se de um processo político? Económico? Social? Intelectual? A ambiguidade do termo permite evitar pensar a colónia na sua globalidade, cria/reforça a noção de situação pós-colonial, que se segue à situação colonial, antecedida pela situação pré-colonial, categorias sem consistência que recusam a autonomia histórica e cultural do outro. Na maioria dos casos o discurso e a linguagem dos historiadores não estão ainda descolonizados. Esta maneira de contabilizar a história permitiu também o aparecimento do pós-colonialismo, pois a referência a essa nova noção implica obrigatoriamente a exaltação do colonialismo que forneceu a força para impor às sociedades africanas um perfil de sociedades

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dominadas, esquecendo que as independências derivam de um movimento destinado a recuperar as formas perdidas de autonomia. Trata-se de uma ratoeira ideológica que recompõe os marcadores da desigualdade civilizacional e que garante, na sua dimensão-mundo, a consolidação das hierarquias da globalização, a emergência contínua de novas formas de hegemonia. A ineficácia do pós é evidente: não se dissolve o mundo no pós, pois todo ele responde às condições do antes.

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