Ecumenismo

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Ecumenismo Emerson Giumbelli

O ecumenismo define-se, genericamente, pelo projeto de gerar algum tipo de aproximação entre povos, grupos ou tradições atrelados a diferentes religiões. Partindo dessa definição, alguns pontos tornam-se relevantes: as instituições, organismos e iniciativas que assumem tal projeto; a vinculação dessas instituições, organismos e iniciativas no Brasil com referências mais amplas; o conjunto de atividades mobilizado por esse universo no Brasil; o alcance da aproximação pretendida pelo ecumenismo. É ainda importante considerar a relação dos projetos identificados como ecumênicos com o quadro mais geral das transformações e reconfigurações do campo religioso no Brasil, pois isso nos oferece alguma medida de seus percursos e de seus limites. No Brasil, uma história do ecumenismo remeteria às primeiras décadas do século XX, época em que se constituíram temas e preocupações herdadas pelas organizações hoje atuantes. Destas, algumas estão firmemente ancoradas nas igrejas pertencentes ao universo católico e protestante histórico; outras, mesmo sem se distanciar desse universo, preferem enfatizar seu caráter de “organização não governamental”, assumindo os ideários e os estilos de trabalho que se enfeixaram em torno dessa designação mais recente. Mas em ambos os casos, ficam evidentes as articulações que relacionam a re-

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flexão, a atuação e a produção dessas organizações a elaborações e movimentos de uma dimensão propriamente global. Um mapeamento rigoroso de “experiências ecumênicas” revelaria um número considerável de iniciativas, geralmente informais, incrustadas em paróquias católicas e igrejas locais protestantes ou encampadas nos esforços de algum movimento social. Mesmo se restringindo apenas ao universo mais institucionalizado, salta aos olhos a enorme diversidade que o perpassa, quanto a objetivos, organização, porte institucional, áreas de atuação, tempo de existência e de relação com igrejas e com organismos internacionais. O diálogo teológico é apenas uma das dimensões cobertas por projetos ecumênicos, e ele pode não ser a principal. Mesmo aí, as iniciativas incluem eventos, sem colocar em jogo aproximações doutrinárias. Em geral, ganham destaque iniciativas que implicam em intervenções na sociedade, seja na forma de declarações e posicionamentos, seja por meio de projetos junto a públicos e localidades específicos. A formação em temas teológicos ou sociais é outra área de atuação das organizações. Pode-se ter acesso a suas atividades por meio de publicações em vários formatos, abrangendo sites, revistas e livros, que implicam na constituição de um saber acerca de assuntos diversos. Entre as organizações ecumênicas constituídas pelos representantes institucionais de igrejas destaca-se o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), fundado em 1982 a partir de reuniões periódicas realizadas desde 1975 entre dirigentes nacionais da Igreja Católica e de várias igrejas protestantes. Atualmente, são filiadas ao Conic, além da Igreja Católica, três igrejas protestantes históricas e uma igreja ortodoxa. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que mantém representação junto ao Conic, tem também em sua estrutura interna uma Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso. Algo semelhante acontece no âmbito de algumas igrejas protestantes, como a Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil. Pode-se ainda mencionar, como

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exemplos de iniciativas mais específicas, a Comissão Nacional de Diálogo Religioso Católico-Judaico, criada em 1981 e a Comissão Nacional Anglicano-Católica Romana, organizada formalmente em 1982. Entre as instituições que atuam como Organizações Não Governamentais (ONGs), pode-se destacar Koinonia, organização constituída em 1994 e que herda o trabalho do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi) na área de “ecumenismo”. Tendo seus primórdios na década de 1960, o Cedi foi o desaguadouro de uma série de reflexões e investimentos, encarnados em um grupo de pessoas, que remontam às décadas de 1930 e de 1950. Trata-se de um período, que pode ser estendido até o início do século, no qual se formam várias organizações congregando líderes e representantes de igrejas protestantes. Na sua formação, o Cedi reagrupou várias pessoas que mantinham o ideal de uma militância religiosa que estivesse voltada para a transformação da sociedade — sustentado pela adesão a uma teologia protestante de veio liberal e em seguida à Teologia da Libertação — e que tinham sido alijadas dos núcleos de suas respectivas igrejas. Apesar disso, uma das linhas de ação que se consolida ao longo dos anos 1970 é a de assessoria a pastorais, tanto protestantes quanto católicas. A ideia era atuar, com uma “proposta ecumênica”, na “intersecção entre as igrejas e os movimentos populares”. O formato assumido encaixava-se bem no que foi identificado, nos anos 1980, como uma “ONG”: prestação de serviços a setores “populares” delineados por “projetos” financiados por organismos internacionais e assumidos por um conjunto de pessoas que se relacionavam, em maior ou menor grau, com os universos das igrejas, das universidades e dos grupos de militância política. Outras instituições ecumênicas no Brasil atualmente são: Diaconia (1967), Centro de Estudos Bíblicos (Cebi, 1979), Centro Ecumênico de Serviços à Educação e Evangelização Popular (Cesep, 1982), Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria (Ceca, 1973); Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (Aste, 1961); Movimento de Fraternidade das Igrejas Cristãs (Mofic, 1977). Algu-

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mas iniciativas recentes funcionam como redes, como o Portal Ecumênico (2010) e o Fórum Ecumênico Brasil (2002), composto de 12 instituições participantes. O Conic possui uma espécie de correspondente no nível continental, o Conselho Latino-Americano de Igrejas (Clai), desde 1982. Já o que seria o correspondente no nível mundial, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), desempenha um papel mais geral de referência e fonte de recursos. Trata-se de uma organização formalmente constituída em 1948 como resultado de preocupações e esforços que remontam ao século XIX. Sua sede é em Genebra, na Suíça, reúne hoje mais de 300 igrejas, localizadas em cerca de 100 países, na sua esmagadora maioria de confissão protestante. No âmbito da cúpula da Igreja Católica, o envolvimento com o ecumenismo está relacionado com as transformações representadas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Atualmente, duas estruturas dedicam-se ao tema: os pontifícios conselhos para a promoção da unidade entre os cristãos e o para o diálogo inter-religioso. A referência ao “diálogo inter-religioso” remete a algo estruturante. O termo “ecumenismo” tem seu uso histórico e dominante para se referir à relação entre cristãos. Para indicar um esforço de ampliação é que surgem expressões como “macroecumenismo” e, sobretudo, “diálogo inter-religioso”. O CMI, organização basicamente protestante em sua constituição, inclui entre seus programas um chamado Diálogo e Cooperação Inter-Religiosa. No que se relaciona ao Brasil, podemos tomar essa distinção como uma pista para percebermos os limites e direcionamentos dos projetos vinculados ao ecumenismo (amplamente considerado). O universo cristão no Brasil apresenta como principal desafio aos agentes associados ao ecumenismo o crescimento e a exposição dos evangélicos, ocorridos após os anos 1980. Se o termo “evangélicos” tende a recobrir a mesma realidade designada pelo termo “protestantes” (ou seja, herdeiros da Reforma), sua predominância recente aponta para mudanças relevantes. Uma delas tem a ver

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com o surgimento de novas referências para aproximações entre os diversos agentes identificados com o termo. Um exemplo é a Associação Evangélica Brasileira (AEVB), criada em 1991 e muito atuante até 1996, com o intuito de ser uma entidade representativa. Outro exemplo é a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (Renas), criada em 2000, que associa e cadastra centenas de organizações e iniciativas no meio evangélico. Trata-se de dois exemplos que promovem aproximações entre religiosos referidos à categoria “evangélicos” que contornam ou dispensam a identificação com o “ecumenismo”. Essa mudança terminológica tem um correspondente no plano teológico, pois as teologias liberais, ou da libertação preferidas pelos ecumênicos dão lugar ao que vem se apresentando como teologia integral e seus esforços de uma articulação peculiar entre vivência religiosa e ativismo social. Note-se bem: a AEVB e a Renas não assumem uma postura antiecumênica; o que fazem é propor aproximações, inclusive com agentes das demais religiões, com base em outras referências teológicas e tendo na identidade evangélica e cristã uma base mais evidente do que os protestantes e católicos que se associam ao ecumenismo. Ao mesmo tempo, constata-se que uma parte do ascendente segmento evangélico posiciona-se contrariamente ao ecumenismo. Essa posição é mais forte no meio pentecostal, que se tornou a parcela numérica e publicamente dominante entre os evangélicos e que é menos atingida pelas referências acima mencionadas. O exemplo mais relevante é o da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), fundada em 1977, que adota práticas que podem ser vistas como sincréticas e, simultaneamente, acentua um discurso acusatório e demonizador contra outras religiões, sobretudo as afro-brasileiras. Apesar de suas peculiaridades teológicas e institucionais, a Iurd cresceu conquistando a capacidade de se identificar entre os evangélicos, tendo mesmo em meio a eles um papel de protagonista. Em suma, os agentes vinculados ao ecumenismo no Brasil viram, nas últimas três décadas, tanto o surgimento de referências alter-

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nativas para a aproximação entre cristãos, quanto o crescimento de protagonistas que, no mesmo universo evangélico, se posicionam expressamente contrários à proposta ecumênica. Tal marginalização convive com a manutenção de vínculos no interior de segmentos poderosos do catolicismo e do protestantismo e com a participação na produção de visões dominantes sobre o campo religioso no Brasil. Nesse quadro, ocorre outro movimento, este voltado para o universo não cristão. Como vimos, seria esse o terreno aos cuidados do “diálogo inter-religioso”, entendido como uma extensão do ecumenismo. Em âmbito global, esse terreno tem ganhado impulso devido à crescente importância adquirida pela dimensão cultural, manifesta em elaborações teológicas, sobretudo na teologia das religiões, em documentos papais e em pronunciamentos do CMI. Um dos resultados é a produção do conceito de “inculturação”, que imporia a necessidade de se realizar a evangelização segundo as normas e dentro dos termos aceitos pelos indivíduos e grupos os quais se pretende converter. Em certo sentido, portanto, o empreendimento missionário passa a ser transformado pelo ideário ecumênico, gerando um deslizamento da conversão para o diálogo como objetivo religioso. No Brasil, percebemos alguns sinais desse deslizamento, que traz consigo, muitas vezes, uma mudança de alvo: da religião para o grupo que a expressa. Vimos como a CNBB mantém uma Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso; o Conic incorporou aos seus objetivos acompanhar o diálogo entre as religiões. No âmbito da Igreja Católica, vale ainda mencionar a existência do Conselho Missionário Indigenista (CIMI), agente significativo em lutas pelas causas indígenas, e das pastorais do negro, recentemente renomeadas afro-brasileira, acusando o impacto da referência culturalizante. Como exemplo da mesma tendência entre as ONGs ecumênicas, pode-se citar Koinonia e seus projetos junto a terreiros de candomblé e a comunidades de remanescentes de quilombos. Tais exemplos reúnem ocorrências muito diversas, desde expressões retóricas a projetos concretos. Não se pode homogenei-

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zá-los; trata-se apenas de registrar a sua existência e de apontá-los como demonstração de que o ecumenismo no Brasil vem prosperando quando se lança para fora do universo cristão, o qual seria, a princípio ou privilegiadamente, o limite para seu campo de ação. Mas, nesse campo, vimos os desafios que estão postos para um ideário que se constituiu, de forma direta ou não, em torno de igrejas cristãs — e mesmo assim não de todas elas, pois as pentecostais raramente aparecem — que, invocando o tema do “diálogo”, abremse ao universo não cristão e buscam nele interlocutores para efetivar suas propostas.

SUGESTÕES DE LEITURA GIUMBELLI, Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar, 2002. HORTAL, Jesús. E haverá um só rebanho: história, doutrina e prática católica do ecumenismo. São Paulo: Loyola, 1989. MONTERO, Paula (Org.). Entre o mito e a história: as comemorações em torno do V Centenário do Descobrimento da América. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. TEIXEIRA, Faustino. Ecumenismo e diálogo inter-religioso: a arte do possível. Aparecida: Santuário, 2008. WOLFF, Elias. Caminhos do ecumenismo no Brasil. São Paulo: Paulus, 2002.

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