Lusotopia

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Lusotopia João de Pina Cabral

Dentro do nosso mundo globalizado contemporâneo, a lusotopia é o tempo/espaço oriundo da expansão histórica dos portugueses e das complexas interações posteriores que esse movimento implicou. A lusotopia manifesta as características que alguns autores identificaram por meio do conceito ecumene — termo derivado da palavra grega oikoumenê que descrevia o espaço de coabitação humana através de uma metáfora doméstica — Kroeber (1963), Mintz (1996) e Hannerz (1991). A ocorrência da ecumene lusotópica deve-se não só à partilha de uma língua comum (lusofonia) ou línguas irmãs (incluindo os crioulos de português), mas também à partilha de uma série indeterminada, mas significativa de códigos culturais, de espaços e edifícios, de instituições cívicas e políticas. A escolha do conceito de lusotopia, inventado pelos cientistas políticos de Bordéus, pretende sublinhar que, para além destes aspectos mais facilmente identificáveis, esta ecumene é ainda constituída por aspectos menos visíveis tais como redes de parentesco, passado familiar, amizades, relações de homonímia etc. — todos esses aspectos que marcam primordialmente a pessoa social. A partilha de um passado comum funciona como um catalisador para a disposição que Meyer Fortes (1970) considerava a própria

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raiz dos fenômenos de parentesco e que chama amity. Quando dois transportadores de uma ecumene se encontram, eles identificam ecos um no outro que os tornam mutuamente reconhecíveis e tornam o mundo habitado por cada um deles mais facilmente legível ao outro — a amity mobiliza a interação. Tal não significa, pois, que as duas pessoas em causa se tornem “amigas.” Se o resultado dessa maior proximidade é positivo, no sentido de favorecer interesses comuns, ou negativo, no sentido de potenciar conflitos, isso é uma questão a decidir. A noção de amity não implica em absoluto boa disposição mútua; as lutas fraternas são as mais homicidas. Como está presente por virtude dos processos de constituição social dessas pessoas e do mundo que as rodeia, a lusotopia é o resultado agregado do fato de todas as pessoas adultas terem sido criadas por outros humanos num processo de evolução gradual que se perde numa multiplicidade de passos — uma ontogénese autopoiética. Por isso, quando falamos de amity, referimos à arquitetura do mundo de uma pessoa que mobiliza as suas disposições emotivas. A questão da consciência não é sequer relevante, já que esse processo, ao mesmo tempo em que é humano, passa-se no mundo de fora, ou melhor, ao lado dos humanos. É nesse sentido que lusotopia é um mundo de co-habitação humana com características próprias que a distinguem de outras ecumenes: nem sempre as mesmas características em toda a parte; nem sempre com a mesma intensidade; nem sempre com densidade igual. Não se trata, pois, de um território claramente delineável, mas sim de um espaço/tempo cuja existência é dependente da sua ocorrência. É possível traçar um percurso marítimo para o processo de expansão de identidades continuadas que encontraram a sua origem na expansão portuguesa do século XVI, mas que logo imediatamente adquiriram uma complexidade e dinâmica próprias. Os processos mútuos e laminados que criaram essas afinidades e que as prolongaram durante os seguintes cinco séculos não são, porém, de direção única. Mais que isso, as pessoas que transportam essa linha de des-

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cendência estão geralmente inconscientes da rede de interligações que é ativada pelas práticas que interiorizaram. Ecumene, aqui, é um conceito alternativo aos que dominaram as ciências sociais do século XX, tais como grupo, sociedade, nação, etnia ou cultura. A propensão generalizada nos estudos pós-coloniais para estudar a história imperial a partir de uma perspectiva eurocêntrica de poder e domínio tende a esconder o fato de que os encontros imperiais, por mais violentos que tenham sido, se inscreveram nas visões de mundo locais, abrindo assim caminho, com o passar do tempo, a novas negociações de respeito próprio e de autodeterminação. A lusotopia é, portanto, uma rede de contatos que, na sua operação, deixa marcas distintivas sobre o mundo — cidades, estátuas, modos de cozinha, estilos musicais, maneiras e etiquetas, narrativas e textos, jogos de linguagem etc. Ela é ativada pelos produtos reificados das suas ocorrências anteriores; o mundo reimpõe a ecumene sobre os que a produzem. As disposições para identificação na pessoa singular que está em causa são aprofundadas e reforçadas, predispondo essa pessoa para instâncias ulteriores de reconhecimento.

REFERÊNCIAS CABRAL, João de Pina. Lusotopia como ecumene. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 25, n. 74, p. 5-20, 2010. FORTES, Meyer. Kinship and the Axiom of Amity in Kinship and the social order: the legacy of Lewis Henry Morgan. London: Routledge & K. Paul, 1970. p. 219-249. HANNERZ, U lf. The global ecumene as a network of networks. In: KUPER, Adam (Ed.). Conceptualizing Societies. London: Routledge, 1991. p. 34-56. KROEBER, Alfred; KLUCKHOHN, Clyde. Culture: a critical review of concepts and definitions. New York: Vintage books, 1963.

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MINTZ, Sidney W. Enduring Substances, Trying Theories: The Caribbean region as Oikoumenê. Journal of the Royal Anthropological Institute, n. 2, p. 289-293, 1996.

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