Emancipação Severino Elias Ngoenha
Emancipação, do latim emancipo, significa pôr fora de tutela, dar independências, obter independência, libertar-se de tutela, libertação. Apesar de encontrarmos este conceito utilizado num contexto diferente nos textos de Karl Marx, António Gramsci e Adorno, o termo emancipação é maioritariamente utilizado para descrever os percursos dos esforços empreendidos por povos que lutaram ou lutam pelas suas liberdades ou independências. O campo científico em que mais se debateu o problema da emancipação é o da Filosofia, adscrita aos eventos históricos da escravatura, do colonialismo e, em consequência, estigmatização e submissão. Em termos filosóficos, a noção de emancipação encontra-se — como, aliás, defende Karl Marx — intrinsecamente relacionada ao conceito de liberdade. A dúvida aqui é com a situação que a dialética hegeliana chamaria de relação senhor-escravo, na qual as relações do dito sul e o dito norte se encontraram, e o estabelecimento da Ius invenciones, legitimado pelo direito internacional com os trabalhos da Universidade de Salamanca, nomeadamente de Suarez e Vitoria. À semelhança do que fazem os filósofos latino-americanos como F. Betancurt e sobretudo H. Dussel, a filosofia africana defende que se existe um paradigma — no sentido de Thomas Kuhn — no qual estão imersos países africanos como Cabo Verde, Guiné-Bissau, São
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Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique, e latino-americanos como o Brasil, esse paradigma, uma vez mais, por causa da situação categorial senhores/escravos, em que se estabeleceram as relações desde o século XV, é o paradigma libertário. Contudo, o conceito de emancipação no seu sentido libertário é vasto e destituído de uniformidade. Deve, portanto, ser declinado no plural. Mais do que falar de liberdade, é mais rigoroso e pertinente falar de liberdades. Faz-se necessário declinar o conceito de emancipação-liberdade em quatro partes, que corresponderiam melhor à maneira como tem sido trabalhado nos países luso-afro-brasileiros. Tipologicamente, pode-se dividir a emancipação-liberdade em quatro partes: a liberdade como emancipação da escravatura, a liberdade como integração social, a liberdade como emancipação política, e, enfim, a liberdade como desenvolvimento económico e social.
LIBERDADE COMO EMANCIPAÇÃO DA ESCRAVATURA Geralmente considerado como primeiro debate sobre os direitos do homem, no confronto que opôs o teólogo Bartolomé de Las Casas e o filósofo Genes de Sepúlveda, convocado pelo imperador Carlos V no ano de 1550 em Valladolid, debateu-se a humanidade dos índios, que conheciam na altura a dominação e o extermínio feroz por parte dos espanhóis, aos quais vieram se juntar outras potências européias. Determinou-se teoricamente a humanidade dos ameríndios, mas, sobretudo, legalizou-se sua hipotética substituição como mãode-obra por meio da importação dos negros escravos. Tudo com o beneplácito da Ius predicandi Evangelium, último recurso legal do direito então vigente. Na verdade, os ameríndios e os negros não se substituíram uns aos outros nos campos de trabalho, mas caíram sob o peso da mesma dominação. Isto explica que o substrato do pensamento de uns e outros esteja intrinsecamente ligado ao paradigma libertário na sua dimensão de emancipação da escravatura. Trata-se
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de um período longo, que vai do século XV e só termina, de maneira cronologicamente diferenciada, no século XIX. Se em 1865, a escravatura termina oficialmente nos Estados Unidos da América (EUA), os escravagistas luso-afro-brasileiros foram muito reticentes em acabar com esta prática, que em certos casos, aliás, vai se prolongar até o início do século XX. Em termos históricos, a compreensão da escravatura pode ter o ponto de partida naquilo que T. Todorov demonstrou em relação à conquista da América pelos espanhóis e o confronto cultural que se seguiu. Este exemplo demonstra a incapacidade ou a dificuldade de uma civilização conquistadora em aperceber-se do outro como diferente e, às vezes, até mesmo de percebê-lo simplesmente como ser humano. Assim, por exemplo, Francisco de Vitoria, uma das maiores autoridades do humanismo espanhol do século XVI, justificou a guerra contra os ameríndios com o pretexto de que eles seriam loucos ou animais selvagens (como pretendia Sepúlveda). Oviedo, homem de ciência da mesma época, chegou mesmo a considerar os ameríndios objetos inanimados. Esta percepção negativa do outro, que partia de um sentimento de superioridade, culminava muitas vezes com a sua destruição física e/ou secundada à Ius Ad Bellum na vontade de imposição de sua própria cultura. Como afirma Muniz Sodré, em sua Verdade Seduzida, foi da Europa que veio a vontade de fixar a ideia de cultura como instrumento de poder tanto no espaço ameríndio, como no espaço africano. Esta ideia de cultura ganha força com o progresso do capitalismo, em nome do qual a Europa inflige a África e América, durante três séculos e meio, o genocídio de dezenas de milhões de pessoas, pois o capitalismo, o progresso, a cultura ocidental, a civilização, tornam-se possíveis a partir do tráfico de escravos da grande diáspora negra. Os mais de 20 milhões de negros exilados da África para as Américas foram indispensáveis à acumulação primitiva do capital europeu. Sua legitimação encontrava-se nos imperativos da verdade produzida pela cultura, “invenção” exportada da Europa para as elites coloniais a partir do final do
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século XVIII. Desde lá, essa sentença tem estado no centro de projetos, obras, ciências, determinada pelo poder da crença nela depositada. (SODRÉ, 1988, p. 7) No quadro dos séculos XVI e XVII, a Europa atravessava uma profunda crise ideológica. Os esquemas de referências antigos tinham-se tornado insuficientes para compreender e resolver os novos problemas. Contudo, esta crise não seria condição suficiente para que ela se questionasse seriamente sobre os problemas de alteridade. Na crise das ideias da época, trata-se essencialmente do homem europeu, das suas instituições, das suas crenças e dos seus costumes. As representações que acumula sobre o “selvagem” e que acompanham suas reflexões têm uma simples função apologética nos posicionamentos dos diferentes pensadores. Aliás, os discursos sobre o outro são pretextos para abordar a própria sociedade, para defender as próprias convicções ou até mesmo fixar as próprias ideias. Para tal, não se receava em inventar (encobrir) sobre o outro: deste modo, nasceram muitos mitos, sobretudo no século XVI, em torno da figura do selvagem, ainda hoje presentes no imaginário ocidental. No século XIX, a inferioridade do negro estava inscrita na natureza física. Produzindo uma hierarquia humana em termos de raças, a ciência do século XIX colocou o negro próximo aos primatas, identificando-o assim com o grau zero da evolução humana, na qual o homem branco representava o apogeu. Estas proposições foram impulsionadas pelo nominalismo de Locke, que negava a validade objetiva das espécies, aceitando-as simplesmente como conceitos objetivos. O autor era particularmente cético quanto à categoria de homem. Esta forma de estigmatizar o homem acabou marcando hermeticamente o homem europeu. Foi a partir dessas invenções sobre o outro, que grupos de militares, aventureiros e comerciantes conquistam a África e as Américas, transformando seus homens mais fortes e valiosos em escravos. Populações inteiras são exterminadas e outras submetidas à coloniza-
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ção. As culturas do Gana, do Togo, do Benim, do Monompotapa, dos Tupinambás, dos Guarani, dos Maias, morrem, algumas para jamais renascerem: era o apocalipse de suas identidades. Depois de vários séculos de dominação e de resistência e revoltas fragmentadas, nasceram movimentos mais coesos, simbolizados por figuras como as de Zumbi dos Palmares e Toussaint Louverture, entre outros. A filosofia africana, em autores como Axel Kabou, Manguelle, M. Towa, pergunta-se como se justifica que a escravatura tenha durado assim tanto tempo. Eles defendem certa resignação da parte dos escravos, que justificaria a longa duração desta prática. Acrescentam ainda que a escravatura teria terminado só pela vontade e força da maior potência político-militar do século XIX, a Grã-Bretanha. Contudo, apesar da desproporção de meios materiais e imateriais existente entre senhores e escravos, não se pode considerar que estes tenham em algum momento se resignado. Não é necessário incomodar grandes epopeias de luta pela emancipação da escravatura como a de Kunta Kinte, trazida por Alex Alley no seu trabalho Roots, basta a recordação de alguns momentos francamente simbólicos desta contrarresignação: as aventuras de Nat Turner, mulher que a partir da liberdade em que se encontrava no Norte dos EUA, faz inúmeras viagens em direção ao sul, arriscando sua própria vida, para levar escravos em rumo à liberdade. Pode-se citar as revoltas dos Maroons na Jamaica, quando populações inteiras que abandonam centros urbanos e plantações, cidades em direção às montanhas, conscientes de terem uma vida extremamente complicada, mas contudo preferível em relação a situação da escravatura em que viviam. Pode-se pensar na República dos Palmares no Brasil e na figura emblemática de Zumbi. Mas, sobretudo, não se pode ignorar a revolta dos escravos em Haiti, contando com a emblemática figura de Toussaint Louverture, entre outros. A revolução haitiana constituiu a única revolta dos escravos, em escala nacional, bem-sucedida e promoveu a independência do primeiro país negro no mundo, que assumiu um dos nomes indígenas da ilha: Haiti.
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O fim do processo de marginalização dos negros e ameríndios não se dá com a abolição da escravatura iniciada nos EUA, o que fica evidente quando recuperamos a contínua subalternização dos negros e ameríndios nas Américas e a colonização nos países africanos. Foi necessária a continuidade dos esforços de emancipação, que tomava então uma nova face, a da dominação político-social por parte dos brancos em relação aos afrodescendentes e indígenas das Américas, bem como a colonização no espaço africano. Isto explica que, mesmo depois da abolição formal da escravatura nos EUA, continuaram sendo empreendidos vários esforços de restituição da dignidade daqueles que Frantz Fanon (1961) chamou de “os condenados da terra” por parte dos vários intelectuais e militantes da causa negra. Em 1903, o promotor do Renascimento Negro, William DuBois (mestiço), proclamava: “sou negro e tenho glória disso, sou orgulhoso do sangue que me corre nas veias”. Em 1926, Lanston Hughes (com sangue ameríndio) escreveu na revista The Nation: Nós, criadores da nova geração negra, queremos exprimir a nossa personalidade negra sem vergonha nem temor. Se isto encanta aos brancos, ainda bem. Se não lhes encanta, não importa. O tam-tam chora e o tam-tam ri. Se isto encanta a gente de cor, ainda bem, se não lhes encanta, não importa. É para amanhã que construímos os nossos templos, templos sólidos como nós sabemos erguer, e permanecemos eretos em cima da montanha, livres em nós mesmos. (HUGHES, 1926)
LIBERDADE COMO INTEGRAÇÃO SOCIAL Como afirmado anteriormente, o fim da escravatura não significou a inserção dos supostos novos cidadãos como sujeitos de direito nos territórios onde se encontravam. Um século depois do fim desta prática desumana, as populações de origem ameríndia e negra são ainda objeto sistemático de estigmatização e de marginalização. Os
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diferentes sistemas de poder dominante criaram estratagemas para não permitir que os antigos escravos (e os índios) se tornassem de fato cidadãos. Nos EUA cria-se o Ku Klux Klan, são feitas reformas constitucionais para dificultar a participação democrática da parte dos negros e até as letras vieram em socorro ao sistema dominante, criando uma literatura dita negrista, cujo objetivo era “denegrir o negro”. Isto explica porque, até os anos 1960, foram necessárias as chamadas marchas sobre Washington, lideradas por Martin Luter King. Esta situação de estigmatização e de marginalização é partilhada pela maioria dos estados latino-americanos, o que explica que a teoria chamada de discriminação positiva, avançada pelo sociólogo DuBois, no início do século XX nos EUA, faça ainda hoje debate no Brasil sob forma de ações afirmativas. Por outro lado, só em 2003, com o presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi legalmente introduzida a obrigatoriedade dos estudos de história africana e dos afrodescendentes nas escolas, não obstante os afrodescendentes constituam a maioria da população brasileira. Os Estados Unidos, onde a literatura a favor da luta pela integração social é mais antiga e melhor documentada, podem ajudar a melhor entender as diferentes posições e etapas tomadas pelos antigos escravos a favor da sua integração social. Com efeito, três posições emergem: uma, podemos chamar de “Washingtonista”, outra, “Garveista”, e a terceira, “Dubuista”. Apesar de suas razões terem como finalidade a tentativa de reconciliação entre brancos e negros no sul dos EUA, a teoria de Booker Washington, primeiro líder afro-americano a ser reconhecido, quer pelos brancos, quer pelos negros, era a de “uma mão e cinco dedos”, isto é, de uma unidade enquanto americanos e os “cinco dedos” que simbolizavam separação e diferenciação no social. Esta teoria foi denunciada por DuBois, no seu livro Almas Negras, de 1903, como sendo “subordicionismo” e um retorno à situação da escravatura. Marcus Garvey, por sua vez, defendeu o Back to Africa, pois pensava que o único lugar onde os africanos poderiam viver fora de tutela (emancipo) seria o continente africano. Por sua vez, DuBois, não se
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limitou a tomar distância em relação à posição dos dois primeiros, mas militou a favor da integração dos negros e ameríndios nas sociedades onde se encontravam. Ele defendeu que a questão ameríndia e negra não seria simplesmente uma questão social, mas, sobretudo, uma questão político-social. Por isso, é nesse âmbito que ela deve encontrar sua solução. É desta convicção que deriva sua proposta de descriminação positiva, como meio para que as populações segregadas — segundo o filósofo Kimilka, as únicas que merecem uma consideração sociojurídica à parte no contexto norte-americano, porque uns já lá estavam quando a constituição foi feita, e outros, constituem o único grupo que se deslocou da América não utilizando do seu liber-arbitrium — possam sair da situação de párias sociais para tornarem-se cidadãos de pleno direito como os outros. A política brasileira reconhecendo o direito dos afrodescendentes e dos indígenas à integração social, tem estado a incrementar esforços para a assunção plena de seus espaços, conferindo-lhes, por exemplo, o direito de propriedade de terra às famílias de comunidades quilombolas, facilitando a entrada dos indígenas e afrodescendentes nas universidades e o acesso a empregos em setores públicos por intermédio do sistema de cotas etc. Todavia, estas medidas se demonstram ainda insuficientes para superar a clivagem social entre as classes.
LIBERDADE COMO EMANCIPAÇÃO POLÍTICA Em algum momento, todos os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) conheceram o fenômeno da colonização. Portugal foi colonizado pela Espanha, e os restantes países por Portugal. O Brasil conquistou a sua independência política em 1822, paradoxalmente, antes mesmo que a colonização africana tivesse realmente início, o que ocorre após a Conferência de Berlim de 1885. A particularidade da colonização portuguesa, em relação, por exemplo, à colonização francesa ou inglesa, consiste no fato dos
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portugueses terem, sobretudo em relação aos países africanos, praticado uma política de assimilação, o que significa que, procurava-se alienar os africanos das suas culturas para torná-los lusitanos. Se o processo de independência do Brasil inscreve-se num vasto processo independentista da América Latina que teve lugar no século XIX, o movimento de emancipação política dos países afro-lusófonos inscreve-se no processo das independências africanas, o qual podemos situar a partir de 1945, com o discurso de Kwame Nkrumah no Quinto Congresso Pan-Africano de Manchester, quando se reivindica claramente o direito de autodeterminação política dos povos africanos. É verdade que os pan-africanistas americanos de Delany a DuBois, passando por Garvey e outros, tinham prospectado a necessidade de uma autodeterminação política. Mas é com Nkrumah que o que podemos chamar de afro-africanos vão reivindicar claramente o direito à independência política. Esta independência inscreve-se ainda, numa visão pan-africanista, quer dizer, não nos espaços geopolíticos da colonização europeia, nem nos espaços de complementaridades culturais como defenderia mais tarde Cheik Anta Diop, ou de complementaridade económica, como diria Mamadou Dia. Para Nkrumah, a sustentabilidade das independências africanas do ponto de vista político ou do ponto de vista económico, dependia da criação do que ele chamava dos Estados Unidos de África, o que evitaria conflitos intra-africanos, tornaria a África menos porosa às veleidades neocoloniais e, por fim, permitiria a África falar por meio de uma só voz. Apesar das resistências diversificadas dos poderes coloniais na década 1970, a maior parte dos países africanos conseguiu conquistar as suas independências políticas, mesmo se estas se inscrevem geopoliticamente no quadro da divisão territorial de Berlim de 1885. Portugal, dominado como era durante o grande momento da descolonização africana por um regime fascista, levou a que os países afro-lusófonos tivessem que recorrer a lutas armadas para chegar às suas independências políticas. Uma das vertentes da historiografia afro-lusófona reza que as lutas de libertação de Angola, Cabo Verde,
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São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Moçambique, libertaram não só estes países africanos do jugo colonial, mas constituíram uma alavanca fundamental para o fim do fascismo salazarista em Portugal e o consequente estabelecimento da democracia. Nesse mesmo período, o Brasil também conheceu uma situação de ditadura militar a partir de 1964, que só veio a terminar com a restauração da democracia em 1985.
LIBERDADE COMO DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO E SOCIAL O desenvolvimento económico dos países da CPLP tem sido visto, como de costume, à luz das lentes ocidentais. São os parâmetros traçados pelo Norte que determinam as condições para a legitimação do desenvolvimento nos países do Sul, devido a um grande anacronismo histórico. O filósofo moçambicano José Castiano (2010), parafraseando Molefi Kete Asante, defende que para trilharmos os caminhos da emancipação é preciso quebrar o mito do universalismo ocidental, que se manifesta em diversas áreas tais como nas formas de desenvolvimento económico, nas metodologias de pesquisa, nas filosofias, nas literaturas e etc.
Outro caminho de incumbência emancipatória é um itinerário crítico, metódico e dialético em direção à conquista de nós mesmos. Esta decisão exige a reintrodução no projeto de emancipação de tudo o que nos projetos precedentes foi reduzido ao silêncio. Tudo isso exige uma tomada de consciência acerca de como usufruir da nossa tradição como forma de utopia crítica e mobilizadora do presente com vista à realização de uma história real do futuro. Atualmente, os países lusófonos têm em comum o fato de serem classificáveis entre os países subdesenvolvidos. Portugal é um dos países mais pobres da União Europeia, o Brasil, apesar de ser considerado um país emer-
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gente, ainda não atingiu o patamar dos países chamados desenvolvidos, e os cinco países africanos de língua oficial portuguesa, nas diferentes classificações do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e outras instituições, constam dos países mais pobres do planeta. Quer em relação ao interior dos próprios países, mas sobretudo em relação ao mundo exterior, podemos dizer que o novo nome da liberdade para os países da CPLP se chama desenvolvimento económico e social. Quase que paradoxalmente, já num famoso romance intitulado Uma Coroa para Odomo, de 1957, do sul-africano Peter Abrahams, sacrificavam-se até as culturas africanas sobre o altar de desenvolvimento, como fizera, por certo, os filósofos Marcien Towa e Ilungo P. E. A. O desenvolvimento é a única coisa que pode dar sentido às utopias (como verdades do amanhã) de liberdade-emancipação hoje. Em outras palavras, o que faz com que hoje se esteja sob tutela é a endêmica pobreza que se vive, para os países africanos; o risco de certo neocolonialismo, para Portugal sob tutela por parte da União Europeia ou mesmo do FMI e, para o Brasil, a tutela por parte das grandes nações norte americanas. Foi isso que justificou, primeiro, a chamada teologia de libertação latino-americana (Gutierres, Boff), em seguida, a filosofia de libertação (H. Dussel), e hoje, a filosofia intercultural de F. Betancurt, cuja finalidade teórico-prática é a partilha dos bens económicos e do mundo. Todavia, a questão da partilha de bens económicos, não pode ser vista simplesmente numa relação Norte-Sul, mas tem que ser também pensada no interior mesmo do próprio Sul. Um aproveitamento positivo da interculturalidade, permitiria reunir os diferentes povos numa incessante participação na luta pela emancipação, instituindo uma corrente dupla que ligasse as partes ao todo, ao mesmo tempo que as afirmasse como partes. Isto favoreceria o respeito pelas diferenças e permitiria tirar melhor partido das características diferentes das suas componentes. O problema não é uniformizar, mas valorizar as diferenças; não é absorver as diferenças, mas encaminhá-las a um objetivo comum, que se
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apresenta de forma clara: desenvolvimento económico. O processo de decisão seria dialético, pois resultaria de um diálogo entre os participantes. Outro desafio da liberdade na atualidade é a necessidade da renovação do contrato social no interior dos diferentes países da CPLP. O Brasil é conhecido pelo seu grande nível de desigualdades sociais, país de grandes posses, mas também de pobreza e até mesmo de miséria. Os países como Angola e Moçambique, parecem nestes últimos anos, trilharem os mesmos passos no que se refere às desigualdades sociais. Dizer que o novo nome da liberdade é o desenvolvimento exige a compreensão de que o desenvolvimento em si mesmo não chega a explicar a necessidade de uma emancipação. A ele devemos acrescentar a necessidade de uma organização política que permita a participação ativa dos cidadãos na res-pública, acompanhada de uma política social mais equitativa e justa. Entretanto, único domínio temporal que podemos influenciar ou mesmo mudar é o futuro. O presente é em si mesmo passado no momento em que se realiza; e o passado, ainda que ofereça dados para o futuro, não pode ser alterado. Por sua vez, partindo dos dados do passado e do presente, podemos influenciar o futuro, que constitui o único espaço suscetível de se sujeitar às nossas decisões. (NGOENHA, 1993) Aliás, a emancipação, mais do que “recordações” dos esforços até aqui empreendidos na busca da emancipação da escravatura, da integração social, das emancipações políticas, deve ser vista como uma missão histórica do agora, cujos olhos se fixam num desenvolvimento económico e social para o futuro.
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