Religião

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Religião Teresa Cruz e Silva

A segunda metade do século XX apresenta-se indelevelmente marcada por uma expansão dos movimentos religiosos no mundo. No Médio Oriente, no continente Africano ou na América Latina, por exemplo, não só são visíveis os traços dessa expansão como não se pode ignorar uma crescente visibilidade da religião no espaço público, manifestada por um conjunto de ações e atividades de caráter sociopolítico. Nos países do chamado Sul global, a religião ocupou um lugar por excelência no campo da luta contra regimes repressivos e autoritários, na manutenção de processos de paz e na luta pela criação de sistemas democráticos de governação. Entre as duas guerras mundiais que marcaram o século XX e no período pós-segunda guerra mundial para outras zonas do globo, a religião foi apropriada como instrumento de combate ao colonialismo e diferentes formas de dominação. Ilustrações destas situações e de processos mais tardios em finais de século podem ser encontradas entre os movimentos de consciência Islâmica na África do Norte nas décadas de 20 e 30, na Teologia de Libertação na América Latina na década de 70, no desenvolvimento e apoio dos movimentos nacionalistas nas décadas de 50, 60 e 70, ou na luta contra o sistema minoritário do apartheid na República da África do Sul, que tem o seu fim na década de 90.

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A reordenação capitalista ocorrida nas últimas décadas do século XX provocou transformações no conjunto da sociedade global, com consequências graves que levaram a crises socioeconómicas e políticas, particularmente para os países do Sul, As demandas impostas pela globalização neoliberal e os consequentes constrangimentos criados às políticas públicas diminuíram as capacidades dos Estados de dar respostas às necessidades básicas das populações, sobretudo nas áreas sociais, criando assim espaços vazios onde as instituições religiosas encontraram uma oportunidade para realizar determinadas ações e exercer funções, que, em alguns casos, como nos países africanos, lhes haviam sido retiradas depois das independências nacionais. Se somarmos a estas ações o seu papel na luta pela instauração e manutenção de processos de paz e na construção de processos democráticos, já referidos, facilmente poderemos verificar a forma como elas vão ganhando visibilidade no espaço público. A difusão do Islão e as suas ações na arena política, abriram novos campos de discussão sobre questões de segurança internacional, a partir dos países ocidentais e seus aliados, particularmente depois do 11 de setembro de 2001. No continente Africano, o revivalismo religioso assumiu formas políticas mais óbvias com os movimentos islâmicos da África do Norte, do Norte da Nigéria ou do Sudão, para dar alguns exemplos. A expansão da modernidade e os desenvolvimentos das novas tecnologias de informação e comunicação, aliadas à capacidade intrínseca que a religião tem de agregar indivíduos e criar laços sociais, despoletou o florescimento e extensão de redes religiosas internacionais, numa visível ocupação do espaço público, permitindo uma maior interação fora de barreiras e fronteiras políticas. A multiplicação extensiva de lugares de culto como igrejas e mesquitas; a predileção por cerimônias públicas com muita visibilidade, e o uso dos media electrónicos para disseminar a religião e outras atividades afins, ilustram algumas das formas utilizadas pelas diversas confissões religiosas para a ampliação da sua influência. Os processos migrató-

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rios aliados às novas tecnologias de comunicação permitem ampliar a já extensa mobilidade da religião, trazendo para África religiões do Oriente e da América Latina, fazendo chegar à Europa ou à América do Norte o Candomblé ou religiões provenientes do continente africano, num processo de interações sem precedentes. A informação existente mostra-nos que a relação entre a religião e a política remonta a períodos anteriores aos processos de colonização onde o mundo espiritual esteve sempre associado a uma fonte de poder. Quando hoje se dá uma ênfase particular à análise do crescimento e expansão de uma religião com cariz político, como sucede por exemplo nos Estados Islâmicos ou na radicalização de movimentos religiosos, teremos que ter em conta que estamos a tratar de um processo em movimento onde existe uma interação permanente entre o moderno e o tradicional, tudo isto ocorrendo num mundo de mudanças globais. A literatura sobre o campo religioso nos países falantes de língua oficial Portuguesa mostra-nos como a riqueza do cruzamento de culturas que caracterizam estas sociedades contribuiu para a gestação de um pluralismo religioso crescente. O Cristianismo e o Islão introduzidos pela via das migrações, guerras, comércio ou pela colonização dos territórios, acabaram por se transformar em religiões hegemónicas, convivendo na maior parte dos casos com outras religiões indígenas, num processo de demarcação de espaços e fronteiras que não está isento de negociações entre os diversos atores em jogo. Neste processo, não podemos ignorar a forma como os contextos locais contribuíram para a construção de identidades religiosas específicas, para o reforço da noção de pertença e formas particulares de religião. A configuração e a reconfiguração da mediação entre os diversos atores, pode assim ser vista como um ato de comunicação cheio de complexidades, onde está também em jogo permanente a construção do imaginário do Outro em função das representações de Si, e onde se intercalam relações de poder. É neste processo que se criam os parâmetros e se estabelecem as normas que ditam as classificações do que

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é ou não religião, num procedimento que aprisiona este conceito à visão do Outro tendo como referentes o Catolicismo e o Ocidente. Um exemplo sobre como esse imaginário se processa na história do continente africano na sua relação com o colonizador, pode ser ilustrado pela forma como se efectuou a tradução para a língua francesa de Ibn Kalhdûn (historiador da África do Norte), marcada pela conversão do conhecimento local em conhecimento colonial, onde a história é interpretada sob novos símbolos. Ao revisitarmos o percurso das religiões de Portugal na Europa, o Brasil na América Latina e Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe no continente Africano, aos quais poderemos somar Timor Leste na Ásia, poderemos constatar que se é verdade que há traços comuns entre eles que se prendem com o próprio facto de todos estes territórios terem tido Portugal como colonizador e o Cristianismo como legitimador desta mesma colonização, não é menos verdade que as especificidades de cada país provocadas pelos próprios percursos históricos e pelos contextos locais são fundamentais para a análise do fenómeno religioso em cada um destes espaços. Em Portugal, embora o Cristianismo tenha ocupado uma posição hegemónica, com o predomínio do Catolicismo, não podemos ignorar que as crenças e cultos foram influenciados não só por correntes religiosas dentro do Cristianismo, como é o caso das igrejas nascidas do processo da Reforma, mas também pela convivência com a presença Judaica e o Islão. Um olhar para um Portugal moderno, mostra-nos no entanto um panorama mais permeável a uma interculturalidade religiosa. No Brasil, o pluralismo religioso ilustra a multiplicidade de culturas, entre as religiões indígenas, o Cristianismo nas suas mais diversas variantes e outras minorias religiosas. Tal como os outros territórios que foram colonizados por Portugal, mesmo que em contextos e tempos históricos diferentes, este país pode ser utilizado como uma ilustração da forma como os processos de interculturalidade se

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efetuaram num espaço social simbólico entre atores sociais como os missionários, a administração do território e a população indígena, transformada desde então de sujeito em objeto da história. Os territórios Africanos de língua Portuguesa por sua vez, com processos de mediação semelhantes ao Brasileiro, porque influenciados pelos contextos locais e internacionais dinamizados pelas suas posições geoeconómicas, não só sofreram a influência do Cristianismo trazido pelo colonizador, que ao lado das religiões indígenas africanas também conhecidas por Religiões Tradicionais Africanas, se tornou dominante nestes territórios, como sofreram também as influências do Islão. No caso particular da Guiné Bissau o Islão é considerado a segunda maior religião professada pelos seus habitantes, depois das religiões indígenas africanas. Em Moçambique, o Islão assume um papel culturalmente determinante nas zonas norte e particularmente no litoral, embora neste caso superado numericamente pelas religiões indígenas africanas e pelo Catolicismo. Estudos recentes demonstram que na maioria dos países africanos situados na África subsaariana, e consequentemente também nos falantes de língua Portuguesa, o Islão e o Cristianismo são as religiões predominantes, embora coexistindo com as práticas religiosas tradicionais africanas, como o culto aos ancestrais, recurso à feitiçaria e aos curandeiros. No último caso, as zonas de contacto processam-se entre o universo humano e o espiritual, dentro de interações permanentes onde as fronteiras entre os dois mundos são quase imperceptíveis. Reforçando estas constatações, Laurenti Magesa, ao analisar a importância da religião para os africanos afirma ser difícil encontrar uma separação distinta entre a religião e outras formas de existência humana, exemplificando esta situação através de expressões da Religião Tradicional Africana onde o uso de processos de cura e o culto dos antepassados coexistem com a prática do Cristianismo e do Islão. Paula Montero, ao tratar das disputas que marcaram a diferenciação entre o mágico e o religioso no Brasil, fala-nos também dos processos de negociações entre os diversos agentes para a institucio-

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nalização das suas práticas e ritos religiosos como religiões, de acordo com parâmetros estabelecidos para a sua classificação. A autora exemplifica casos de coexistência e combinação de práticas rituais que não cabem no âmbito do que é convencionalmente chamado de religião, onde encontramos também uma interação permanente entre o humano e o espiritual. O quadro acabado de apresentar mostra-nos que a compreensão da história contemporânea dos países falantes de língua portuguesa, passa também necessariamente pela introdução de uma análise sobre o fenómeno religioso. Se é verdade que não se trata de uma característica específica destes países não podemos no entanto ignorar a importância da interação entre o campo religioso e o campo social, na sua relação com o local e o universal. A compreensão do fenómeno religioso parece comportar hoje, cada vez mais, a necessidade de buscar uma atitude e uma imposição multidisciplinares para a avaliação do grau e tipo de poder e funções mantidos atualmente, pela religião. Os estudos existentes mostram-nos entretanto que nos países do Sul, a religião nem sempre foi estudada com a relevância merecida. Para alguns estudiosos, o facto das análises sociais terem sido dominadas pelo paradigma do desenvolvimento, ou pelas correntes do neomarxismo, depois da segunda metade do século XX, podem ter influenciado esta situação. Os debates científicos que tinham lugar nestas alturas acabaram por tratar a religião como um fenómeno marginal, sem tomar em conta a sua natureza, dinâmicas e significação cultural, ignorando assim um processo em permanente movimento e a sua adaptação aos contextos da modernidade.

SUGESTÕES DE LEITURA APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

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CRISTÓVÃO, Fernando (Org.). Dicionário temático da lusofonia. Lisboa: Texto Editores, 2006. HOWLAND, Douglas. The predicament of ideas in culture translations and historiography. History and Theory, n. 42, p. 45-60, 2003. MAGESA, Laurenti. African religion: the moral traditions of abundant life. Nairobi: Paulines Publications Africa, 1997. MIGNOLO, Walter; SCHIWI, Freya. Translation/Transculturation and the Colonial Difference. In: MUDIMBE-BOY, E. 2002: beyond dichotomies. New York: State University of New York Press, 2002. p. 251-286. MONTERO, Paula (Org.). Deuses na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. . Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, n. 74, p. 47-65, 2006. ORTIZ, Renato. Anotações sobre religião e globalização. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 16, n. 47, p. 59-180, 2001. PEW RESAERCH CENTER. Pew Forum on Religion & Public Life. Tolerância e tensão: Islãoo e cristandade na África subsariana (Sumário Executivo). 2010. Disponível em: <http://pewforum.org/ docs/?DocID=515>. Acesso em: 30 abr. 2010.

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