Grifo 17

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MOÏSE

A covardia faz mais um crime PÁGINA 8

Nº 16+1 O1-15 FEV 2022

JORNAL DOS CARTUNISTAS DA GRAFAR

PAPO RETO

Rosina Duarte e o jornalismo do Boca de Rua PÁGINA 12

Guru da ignorância ! PÁGINA 3


Ideologia da morte

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uas mortes em 24 de janeiro simbolizam o último ano de governo Bolsonaro: Olavo de Carvalho e Moïse Mugenyi Kabagambe. Um era brasileiro morando nos Estados Unidos, autoproclamado filósofo e ideólogo do bolsonarismo. O outro era nascido na República Democrática do Congo, morava no Rio de Janeiro, trabalhador sem carteira assinada, vítima da violência alimentada pelo bolsonarismo. Olavo de Carvalho foi o filósofo da banalidade brasileira do mal, a mistura de misoginia, racismo, reacionarismo e embustes científicos que permitiu que espertalhões (e espertalhinhos) tivessem um discurso capaz de unir diferentes graus de desinformados como seguidores. Moïse é um refugiado de um dos países mais pobres do mundo, que já tem 4.700 moradores no Rio de Janeiro, a maioria vivendo no subemprego ou trabalho informal. Não se sabe quantos iguais a ele são agredidos do Brasil diariamente e não são notícia. Nem todos da mesma etnia, mas de semelhantes condições financeiras. Casos como o de João Alberto da Silveira Freitas, morto a pancadas em 20 de novembro de 2020 num super-

O GRIFO de Jô

mercado de Porto Alegre, do músico Evaldo Rosa, cujo Ford K com cinco passageiros recebeu mais de 200 tiros em 7 de abril de 2109. Também foi baleado Luciano Macedo, um catador passava no local e foi prestar socorro, morrendo no hospital 11 dias depois. Além de Marielle Franco, em 14 de março de 2018, símbolo da fusão do preconceito de classe, cor de pele, escolha de parceria sexual . A morte de Olavo de Carvalho simboliza, também, a falência do modo de governar o país. Inflação, desemprego, queda de renda, aumento da fome são sinais evidentes. Em janeiro, surgiram novos sinais, mais sutis, mas poderosos: um ex-juiz não consegue explicar seus rendimentos no exterior e reclama de abuso da Justiça, um integrante do STF declara que “Dilma caiu por falta de apoio político” o que equivale a dizer que houve um golpe em 2016. Golpe completado com enorme ajuda de ações abusivas e parciais desse mesmo ex- juiz e alguns procuradores. A ideologia vomitada por Olavo de Carvalho [inclusive, por muitos anos, na Escola Superior de Guerra] é responsável direta pela morte de Moïse.

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Grifo - jornal eletrônico quinzenal de humor. Publicado desde outubro de 2020. Realização de cartunistas da Grafar (Grafistas Associados do RS) Editor: Marco Antonio Schuster Editores adjuntos: Celso Augusto Schröder e Paulo de Tarso Riccordi. Edição gráfica: Caco Bisol Participam desta edição: Minas Gerais: Guimarães Rosa e Rico Uai. Pará: João Bosco. Paraná: Paulo Leminski Pernambuco: Thiago Lucas. Rio de Janeiro: Clarice Lispector, Ivan Lessa e Nando Motta. Rio Grande do Sul: Aparício Torelly, Bier, Carlos Roberto Winckler, Edgar Vasques, Fifa Quintana, Graça Craidy, Halls, Jô, Kayser, Lu Vieira, Marco Antonio Villalobos, Mário Quintana, Moisés Mendes, Óscar Fuchs, Rodrigo Schuster, Santiago, Schröder, Tarso, Uberti e Wagner Passos. Santa Catarina: Celso Vicenzi e Zé Dassilva. São Paulo: Aroeira, Bira Dantas, Caco Bisol, Carlos Castelo, Céllus, Gilmar Machado, Jota Camelo, Luiz Hespanha, Miguel Paiva, Mouzar Benedito, Toni D’Agostinho e Zepa Ferrer. E mais: Cuba: Brady Izquierdo e Michel Moro Gomez. Irã: Nahid Maghsoudi.

Expediente

editorial

grafar.hq@gmail.com

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pandeconomia

Morreu a cabeça acéfala da serpente banguela

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inco conceitos de Olavo de Carvalho: “Marxismo cultural”, “mamadeira de piroca”, “kit gay”,”ideologia de gênero”, “mocoronga vírus”. Com ideias assim, ele construiu uma ideologia capenga mas útil à extrema-direita e desavisados no país. Já sabemos aonde chegamos, não sabemos aonde vai parar.

toni d’agostinho


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Nestes termos, pede deferimento

Paulo de Tarso Riccordi - Senhor, estamos com um probleminha. - Fala, Pedro. - Matei o Olavo de Carvalho. - Por que, Pedro? - O cara tava fazendo campanha contra as vacinas. - Mataste como? - De covid. - Esse teu senso de humor... Mas qual é o teu problema? - Nosso. Ele está querendo entrar no céu. - Aqui?! Mas porque aqui? Ele que vá pro diabo que o carregue! - Eu sugeri isso. Mas ele voltou com um pedido de reconsideração. - Tem que acabar com isso daí. - Só que o pedido veio abonado por dois enormes abaixo assinados de apoio de cristãos. - De quais deles? - Um é dos neopentecostais. - Chama Jesus. Vocês que são judeus que acertem isso com o primeiro ministro de Israel. E o outro? - O outro é dos carismáticos. - Putzgrila, esses caras só me jogam bola nas costas!

Fala pro Francisco alinhar essa gente. - Tá complicado. Ele está numa sinuca de bico, Senhor. Os cardeais que querem derrubar Francisco também assinaram em favor do Olavo, com os bispos conservadores, os empresários da TFP e da Opus Dei. - Pelamoooor...! Chamem o Alkmin! Se quiser que defendamos ele no PT, que mande os cruzados retirarem o apoio ao Olavo. E encomenda um contra-abaixo assinado de artistas pedindo que esse Olavo vá pro quinto dos infernos, pra casa do cacete, pra Capão da Canoa, menos pra cá. - Senhor, já tentamos, mas as notas de protesto perderam o prestígio depois que o Projac começou a abusar. - Faz o seguinte: liga pro Satanás. - ... - Aí Satã, tudo mal? Olha, descobri um cara com o teu perfil. Vais adorar. Boca suja, blasfemo, cheio de velhas ideias. Mando ele praí hoje mesmo. Carrega que é dos teus. - .... - Heim? Não, não tenho interes-

se em trocar por arrependidos. Com a eleição deste ano a fila está enorme. - ... - Te devo uma. Eu te compenso. Logo logo vou começar a baixar os generais de pijama praí. Vais receber uma leva grande de especialistas em Logística. (Dois dias depois) - Trim, trim... - Senhor, é para vós. É Satanás. - Fala, carrasco. - Vou te devolver o astrólogo aquele. - Filósofo, ideólogo. - Não, é astrólogo mesmo. Não ferveu nem a 50° e já começou a confessar. Um cagão. - Mas qual é o problema? - Começaram um movimento pra canonização dele. Nós não temos dessas coisas aqui. Esse negócio é aí com teu filho. - Ah, mas não é assim, tem um rito... - Dá-lhe uma vaga de coroinha, de sineiro, o deusaquatro... - Nã-não. Faz o seguinte: desafia ele. Se conseguir ressuscitar em três dias, pode ficar na terra e pegar a vaga de 2023 no STF.


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A ressurreição de Olavo

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m ajudante de ordens entra no gabinete de Bolsonaro anunciando que Olavo de Carvalho ressuscitou. Bolsonaro dá um pulo e diz que precisa enviar alguém à Virgínia, nos Estados Unidos, para ver como Olavo está. Carluxo diz que Olavo já foi trazido dos Estados Unidos e se encontra no Palácio do Planalto. Quando está tentando explicar, entram com Olavo na sala. – Chegou agora de Sorocaba – diz Flavio, enquanto o sujeito chega amparado pelo Ciro Nogueira. Jogam Olavo numa poltrona. Bolsonaro e os três filhos o admiram com olhar de espanto. Bolsonaro pergunta: – Mas você não morreu na Virgínia? Olavo ajeita o chapéu de caubói e responde: – Sim, mas ressuscitei em Sorocaba. A sala está cheia de gente, porque Bolsonaro se preparava para planejar um novo ataque contra Alexandre de Moraes. Olavo apruma-se no sofá, acende um cigarro e diz que foi ressuscitado pela cloroquina.

– Tomei 20 comprimidos depois de morto. E continua falando: – Já revoguei até o atestado de óbito feito pela clínica da Prevent. Bolsonaro interrompe: – Mas a clínica é de São Paulo. Olavo explica: – O Brasil exporta atestados de óbito. A CPI denuncia, pede indiciamento, os jornais investigam, mas não acontece nada. Eu quase abri uma franquia de atestados nos Estados Unidos. Eduardo escuta tudo calado, meio assustado, e finalmente intervém: – E qual é teu plano agora? Olavo larga uma baforada e olha para Bolsonaro: – Criar uma igreja com o apoio de vocês. Eu tenho autoridade, eu ressuscitei. Os ministros civis e militares olham para Bolsonaro, e Olavo continua: – Uma igreja especializada em ressurreições. Cobramos uma taxa, de acordo com o caso. Bolsonaro fica empolgado: – Poderíamos ressuscitar o Brilhante Ustra.

Para mostrar que está em forma e continua debochando do próprio bolsonarismo, Olavo diz que também poderiam ressuscitar o Major Olímpio, o PM miliciano Adriano da Nóbrega e o Gustavo Bebianno. Bolsonaro não gosta da brincadeira e dá um berro na cara de Olavo, que abre a boca, tem um espasmo e desfalece. Há uma gritaria no gabinete. Alguém pega o pulso de Olavo e avisa: – Em óbito. Carluxo traz um vidro de cloroquina e despeja na boca de Olavo. Não há reação. O dilema passa a ser: o que fazer com o corpo? Alguém liga para a Prevent e avisa: Olavo morreu de novo. Do outro lado da linha um funcionário responde que, desde os rolos da pandemia, eles deixaram de fornecer dois atestados de óbito para o mesmo morto. É quando Olavo dá um soluço, impulsiona o tronco para a frente e vomita a cloroquina nos pés de Bolsonaro, que escorrega e cai sentado no vômito, enquanto Carluxo chora e se desespera e Olavo arregala os olhos, amolece e morre de novo.


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Violência histórica

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oïse Kabagambe, congolês (da República Democrática do Congo) radicado no Brasil junto com a mãe e irmãos desde 2014, foi assassinado dia 24 de janeiro por três pessoas num quiosque na Barra da Tijuca ao cobrar duas diárias de trabalho não pagas. Moïse veio da mesma região

de onde vieram os bantus, a maioria dos 4,5 milhões de africanos escravizados e enviados ao Brasil. O assassinato de Moïse é um exemplo da covardia que Chico Buarque denunciou em Caravanas. Morreu por ser negro, por ser estrangeiro, por ser pobre, sem carteira assinada, sem direitos trabalhistas, sem receber o salário aviltante.


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schröder

Estruturalismo não é sinônimo de estrutura

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estruturalismo, do Saussure ao Lévi-Strauss, sempre pretendeu escapar do imobilismo que o nome propunha e resgatar a idéia de movimento que a relação e oposição dos antônimos garantem na língua. De alguma maneira o estruturalismo sempre buscou a dialética, por isso a sedução que teóricos marxistas sofreram desta linha de pensamento, que é muito mais abrangente de que uma escola. Não é disso que trata o “racismo estrutural”, ou misoginia estrutural ou seja lá o que for alcunhado de

estrutural, nestes tempos positivistas. Estrutura para o identitarismo é uma especie de exoesqueleto que formata as sociedade a partir de determinados comportamentos ou identidades. Este positivismo não chega a ser novidade, já tivemos o Brasil Cordial, composto dos brasileiros gentis. Já tivemos, antes disso, o Brasil Preguiçoso, resultado da mistura de raças e outros quetais e agora temos o Brasil racista e assassino. A partir da negação deste positivismo otimista anterior, construímos ideologicamente um país de racistas, homofóbicos e misógi-

querqueescreva?

nos. Nestas construções ideológicas não existe a história e muito menos a dialética. Na pressa de construir realidades os militantes da lacração se neutralizam com os ideários do otimismo com um pessimismo igualmente ideológico e basicamente anti-revolucionários já que almejam a libertação individual ou, no máximo, do grupo que garante a identidade. No pensamento binário não existe lugar para a luta de classes, sequer para as classes. Somos todos bons ou todos ruins, no limite nós somos os bons e os outros os ruins.


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PALAVRAS DA SALVAÇÃO Se deixar tudo como está, segue piorando. Depois da última estiagem, dizem que há beduínos acampando nas coxilhas do Alegrete. No caso de a tripa do coiso ficar presa de novo, será que também não dá pra prender o resto? Não é medo da vacina. O que esse macharedo enrustido tem é medo de injeção! O Papa diz que Deus está em toda parte. Já o mundo islâmico acredita que é a CIA. Em dias como aquele, da morte do Guru, eu até sinto pena do diabo... Alguém já ouviu falar da variante Ômix Lorenzoni? Dia de chuva na Praia de Belas: - Vamos pegar aquele ônibus que vem a estibordo?

Na capital gaúcha a CNH deveria ser emitida pelo Detran - e pela Capitania dos Portos. O escondidinho está se consagrando como o mais famoso prato da culinária brasileira. Tá explicado por que o marreco de Maringá fala daquele jeito: na sua árvore genealógica tem um tal de Patolino. Milhões de concidadãos ficam sem resposta quando pedem ao governo informação nutricional. Obra prima é aquela gostosa que nenhum primo conseguiu comer. Só há uma certeza sobre o fim do mundo: ele vai começar com alguém que fala inglês. Mensagem de esperança numa funerária da Azenha: “É tempo de mudar de vida”.

POEMINHA NARCÍSICO O que chega a doer De tão bonito É o sorriso desenhado Pela minha cócega Indecente No teu cérebro Desprevenido

POEMINHA CADUCO Minha vida Passou tanto tempo Sem finais felizes Que hoje Quando recebi um Pelo correio A data do carimbo Era de antes De eu ter nascido

LIÇÃO DE BRASÍLIA: QUEM RODA NO TESTE DA FARINHA NUNCA VAI PASSAR NO TESTE DA FAROFA.


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Rosina Duarte: O que está nos jornais não é o real

luiz abreu


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me apresentou para o melhor da música. Pra vocês terem ideia, a gente teve eletrola antes de ter geladeira e televisão. Era uma casa modesta, com aquele aparelho enorme na sala. E comprava um disco pra cada um de nós, religiosamente todos os meses.

charlote dafol

No Boca de Rua mostramos o que a sociedade não vê, porque não quer ver

Participaram desta entrevista Caco Bisol, Celso Schröder, Fifa Quintana, Marco Antonio Schuster, Paulo de Tarso Riccordi e Santiago. Foto de Rosina Duarte: Luiz Abreu.

TARSO – A jornalista Rosina Duarte nasceu em Bagé e viveu a infância lá, em Livramento e Dom Pedrito, na fronteira com o Uruguai, o que ainda marca fortemente seu sotaque e cultura. No final dos anos 90, ela acrescentou aos seus muitos saberes a articulação das ferramentas do jornalismo com a necessidade das comunidades invisíveis à sociedade falarem de viva voz. Uma de suas criações é o jornal Boca de Rua, feito com e por moradores de rua do entorno do parque da Redenção e do bairro Bom Fim, região de classe média em Porto Alegre. Pois bem, Rosina, como é tua história? ROSINA – Vim de Bagé pra Porto Alegre de [trem] Maria Fumaça, com quatro anos, depois fui pra Livramento com oito, saí de lá com 19. Meu pai era meio nômade, trocava de casa várias vezes. Foi classificador de lã, caminhoneiro, caixeiro viajante, trabalhou num cinema, numa rádio…Eu morei até num cinema. Meu pai é uma instituição. Tá vivo, tem 93 anos. Desenha muito bem, gosta muito de música e de ler, apesar de ter pouquíssimos anos de colégio. SANTIAGO – E conhecedor de ópera, também. ROSINA – Sim, adora ópera. Aliás, música em geral. Foi ele quem

SCHRÖDER – E tua mãe? ROSINA – Minha mãe é uma pessoa bem curiosa, também. Eu sou filha de um matriarcado. Minha bisavó se chamava Rosina, também, eu conheci. Foi uma mulher alfaiate, raríssimo até hoje. Era uma pessoa muito singular, tinha um linguajar próprio, era uma matriarca. Os homens da minha família são todos aventureiros, então a gente sempre viveu entre mulheres. Minha mãe era pequenininha, toda delicadinha, mas ela comandava aquele mulherio. Casou muito cedo e por isso foi obrigada a sair do colégio das freiras. Ela só voltou a estudar quando eu, a mais moça, fui pro Jardim de Infância. Minha mãe fez de tudo, costurou pras ciganas, customizou – na época era “reformar” – roupas pras putas, e ela era toda certinha, o mais engraçado era isso. Ela voltou a estudar na terceira série ginasial, já aqui em Porto Alegre, onde estudávamos eu e minhas irmãs numa brizoleta [pequenas escolas de madeira, espalhadas às centenas por todo estado pelo governador Leonel Brizola]. Depois ela fez a Escola Normal, conseguiu fazer uma faculdade e foi a primeira pessoa a adotar Paulo Freire numa escola em Santana do Livramento. A escola ficava muito distante da nossa casa, não tinha ônibus pra lá, então ela ia de carona com o leiteiro e voltava no carroção dos ciganos. Deram pra ela uma turma inalfabetizável. Crianças que rodavam havia muito tempo. Então ela descobriu Paulo Freire, e alfabetizou. Diziam que ela só não alfabetizava pedras. Também lecionou


14 em locais impensáveis – dentro de um frigorífico, em um curral, dentro do presídio... Uma vez eu fui substituir uma professora do presídio. Eu tinha 17 anos e minha mãe me disse uma coisa que me marcou pra vida inteira e tem reflexos até hoje no trabalho com o Boca: “Tu dispensa o guarda, senão eles não vão te respeitar”. Eu cheguei lá com o uniforme do colégio, sainha pregueada azul, blusinha branca. Havia nove presos na sala e eu disse pro guarda: “O senhor saia, por favor”. E o guarda me disse: “Não! Eu não vou te deixar aqui sozinha, de jeito nenhum!”, “Por favor, o senhor saia”. E dei aula pros presos, sem problema nenhum. Minha mãe disse que não ia acontecer nada e não aconteceu nada! Minha mãe tinha coisas inacreditáveis. Tinha um senhor que nos visitava, que estava preso há mais de 20 anos. Era um homem que tinha bondade no rosto. Nos levava bolinhos de milho, a gente dava café pra ele. Às dez da noite ia embora, porque tinha que entrar às dez e meia no presídio. A gente morava “na linha” - era o último patamar social morar na linha da fronteira. Às nove horas o seu Adão batia na porta e estávamos só eu e ela, porque minhas irmãs estudavam de noite. Um dia eu perguntei pra minha mãe o que ele fez, para estar preso há tanto tempo. “Porque ele matou uma criança com nove estocadas com uma tesoura de jardinagem”. E a gente seguiu recebendo ele normalmente. Essa foi uma das coisas que marcaram muito toda a minha história como jornalista. Enquanto eu fui repórter de rua, entrava no presídio, ia a todas as vilas, ia debaixo da ponte, entrevistava estuprador. Eu acho que essa confiança humana veio muito da minha mãe e do meu pai. SCHRÖDER – Vieste de Livramento pra fazer Jornalismo? ROSINA – Eu vim pra Porto Alegre, praticamente com a roupa do corpo, porque a gente teve que vender tudo pra pagar a mudança. Fui traba-

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rosina duarte

Enquanto eu fui repórter de rua, entrava no presídio, ia a todas as vilas, ia debaixo da ponte, entrevistava estuprador. lhar numa butique, depois no Serviço Federal de Processamento de Dados. Eu tinha rodado no vestibular e um dia apareceu lá no Serpro uma professora minha de Livramento, que tinha os filhos com a mesma idade que eu. Com os olhos cheios de lágrimas, ela foi me avisar que eu tinha passado em segunda chamada na UFRGS. Sabia que eu não ia prestar atenção nas novas listas e foi me avisar. Acabei fazendo só um semestre, porque como eu já trabalhava e não havia cadeiras à noite que eu pudesse cursar. Então fiz vestibular pra PUC e fui cursar com o crédito educativo. FIFA – Tu fizeste Jornalismo de primeira? Não pensaste em outra coisa? ROSINA – Não, Fifa. A única coisa que eu escolhi precocemente foi minha profissão. Com 11 anos. Diziam que era uma “profissão de homem”. Imagina como faz tempo! Mas meus avós por parte de pai e por parte de mãe trabalharam em jornal. Aquilo pra mim era muito presente. SCHUSTER – Era o que tu esperavas? ROSINA - Olha, a faculdade foi pra mim uma frustração do primeiro ao último semestre. Entrei numa época em que tinha um monte de modelos... E como eu trabalhava dez horas por dia, chegava lá morrendo de sono. Muito frustrante. Com exceção do último semestre, quando eu peguei Redação com o professor Tibério [Vargas Ramos], fiz matérias legais e comecei a me entusiasmar. Quando eu terminei a faculdade, não tinha pra onde ir. Então fui pra Bagé, pro jornal Correio do

Sul. Aí me apresentei lá. Era um monte de velhinhos, pelo menos pra mim na época. Na minha primeira matéria, me mandaram entrevistar um advogado que não queria ser entrevistado. O cara botou os cachorros atrás de mim, foi um escândalo! Três cachorros. De me fazerem pular o muro. Foi o meu teste. Eu tinha três dias pra entrevistá-lo. Eu já não me aguentava mais, sentada na porta da casa dele. Mas foi a melhor coisa que podia ter me acontecido. Enquanto o pessoal tava muito acomodado, eu fui fazer todas as matérias que se podia imaginar. Fui à zona do meretrício, fiz carnaval, entrevistei miss, cobri vestibular… Fiquei quatro meses. Baita escola de jornalismo. Eu aprendi muito com eles. Então, quando eu entrei na Folha da Tarde [ Porto Alegre], estava muito tranquila e segura. Aquela oportunidade de ver o mundo de perto e falar com as pessoas foi incrível. Me mudou completamente. Me virou ao avesso como pessoa. Entrar no meio de um motim, descer uma ponte – na época os moradores de rua viviam debaixo das pontes -, sentir o cheiro das pessoas, cobrir uma enchente com água até a cintura, isso muda qualquer pessoa. Como fui repórter de Geral a vida inteira e era o que eu gostava, aquilo era um trabalho desafiante e transformador. SCHRÖDER – Rosina, tu estavas na Folha da Tarde do Leonam, do Tibério, era o jornal popular da Caldas Júnior. Quando tu chegas na Zero Hora, quais foram tuas referências? ROSINA – Na Folha da Tarde eu me sentia em casa. O ambiente era muito mais acolhedor. Eu tinha amigos. Era quase que uma extensão da faculdade. E foi também uma escola muito boa. Eu tive bons editores, mas na Zero Hora eu encontrei o melhor editor que tive na minha vida, que foi o Betão [Humberto Andreatta]. Os melhores editores que tive na minha vida foram o Betão e a Baiana [Liana Milanez], porque eles tinham


15 uma maneira de trabalhar, de emular a equipe. O não à competição, o não ao individualismo. Quando tu tens editores assim, primeiro, tu tens um clima diferente e, segundo, tu trocas informações com teus colegas. Então, as matérias são muito melhores. O Diário do Sul também tinha bastante isso, embora os egos inflados. Isso faz toda a diferença. SCHRÖDER – Essa distinção que tu fazes parece exatamente o contrário da Zero Hora reformada pelo Augusto Nunes. O Augusto Nunes implantou a antítese disso. Uma carnificina interna, um salve-se quem puder. ROSINA – O Augusto Nunes foi um desastre, um assassinato da ética e do espírito de equipe. A Zero Hora era um lugar super confuso. Mesmo antes, quando entrei a primeira vez, no começo dos anos 80, já era um lugar super competitivo, hostil, muito diferente da Folha da Tarde. Porém, como eu trabalhava na equipe do Betão, aquilo era uma ilha. Saí, fui para o Diário do Sul. Depois a gente montou uma espécie de agência com o Betão, o Elder [Ogliari], a gente tinha vários frilas [trabalhos mediante contrato por produto], trabalhamos pra Isto É, pra Veja. Voltei pra Zero Hora no período do Augusto Nunes. Foi a coisa mais horrorosa que já me aconteceu. Aquela vaidade, aquela falta de ética… foi horrível! Um dia o Augusto Nunes me chamou. Queria fazer um grupo. Eu olhei para aquela criatura e pensei “bah, tô ralada!”. Aí eu disse pra ele que não queria fazer parte do tal grupo. Se ele achava que eu estava trabalhando bem, que me deixasse onde eu estava. Foi minha ruína. Nunca mais recebi aumento, mais nada. Foi um horror. Ele não gostava de mim, eu não gostava dele, o clima era muito ruim no jornal. Foi a antítese de tudo que eu acho que deve ser um jornal. Um jornal deve ser, sobretudo, um lugar de equipe, um lugar de troca, um lugar onde as pessoas tenham prazer

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A única coisa que eu ” escolhi precocemente

foi minha profissão. Com 11 anos. Diziam que era uma “profissão de homem”. Imagina como faz tempo! de trabalhar e tenham esse jeito humano de ver a vida. O trabalho rende melhor e tu te desenvolves melhor como ser humano. SCHUSTER – Esse jornalismo implantado pelo Augusto Nunes é um jornalismo que não ajuda a sociedade, não ajuda a democracia? ROSINA – Eu fui sempre repórter, meu “lugar de fala” (riso). O repórter é a alma do jornal. Ele tem que estar na rua. Vejo o jornalismo de hoje encerrado na Redação. Muito pouco contato com o cidadão, com o comum dos mortais – ou, como eu chamo “incomum mortal”, pois cada pessoa tem uma história única. Eu acho que a função do repórter é ser uma ponte entre o leitor e a realidade. Simples assim. E esta é a vida do jornal. A gente tem que aprender a ouvir. Essa história de tu “consertares no texto” é absurda. Tu tens uma matéria boa se tu tens uma história boa e tens uma história boa se tu soubeste ouvir. Isso é o essencial. Não tem muito mistério. Outra questão é a do bom editor, que sabe pautar o repórter para que ele saia minimamente informado do contexto daquela matéria, e cobrar isso do repórter. Hoje eu fico horrorizada com matérias que leio que não têm base, não tem nem o “o quê, quando, quem como onde, por que”. Só tem nariz de cera, cheia de palavrório, tu nem entendes a que veio. Eu sempre cito uma matéria que saiu na Zero Hora, que foi premiadíssima, que se chamava “Filho da rua”,

que pra mim foi a pior matéria que eu já li em toda a minha vida. Uma matéria de 16 páginas sobre uma criança de rua – que não estava na rua! -, que a repórter decretava que ela estava “perdida pra droga” – quando ela tinha 14 anos. Todas as fontes da repórter eram as fontes responsáveis pelo fracasso na recuperação dessa criança. Em 16 páginas, me parece que havia só seis ou oito declarações, todas elas seguidas de algo pejorativo. A repórter dizia que acompanhava o menino havia quatro anos, mas na verdade ela havia se encontrado com a criança quatro vezes ao longo de quatro anos. Uma matéria podre, asquerosa! E ganhou o Prêmio Esso! A declaração da repórter, na Carta ao Leitor, dizia “se eu puder convencer as pessoas a não darem esmola pras crianças eu já terei cumprido meu papel”. Eu disse não, não, não. Foi quando eu decidi que eu não fazia mais parte disso. Quando eu fazia esse tipo de comentário, as pessoas diziam que eu tava muito imbuída dessa vida na rua, onde eu já estava trabalhando. Eu dizia “então vou fazer apenas umas perguntas pra vocês: por que essa criança saiu da escola? Com quantos anos? Do que ela gosta? Do que ela tem medo? Como ela se protege de noite na rua? Por que ela voltou pra casa? Qual é o sonho dela?” Coisas básicas. Nada! Não tinha nada, nada disso na matéria. Eu fico chocada. TARSO – Fica evidente que tiveste uma passagem “natural” desse tipo de jornalismo para a comunicação popular. Como o Boca de Rua surgiu na tua vida? ROSINA – Chegou o momento em que eu decidi não voltar pra Redação [da imprensa comercial]. Chegamos a fazer uma espécie de uma agência, ensaiamos alguma coisa no Sindicato [dos Jornalistas do RS], o Núcleo dos Frilas - Nina de Oliveira era a minha grande parceira nessa história -, uma espécie de Redação de free lancers e uma bolsa de matérias que pudessem ser distribuídas por


16 jornalistas de fora da grande imprensa. Conversei, na época, com o Sindicato, pra gente também preparar as pessoas pra isso, porque na faculdade a gente é preparada pra ser funcionário e isso é sinônimo de exploração. Eu imaginava que se a gente conseguisse montar um núcleo e ter uma orientação, ter um contador comum e ter uma salinha no Sindicato pra montar uma mini Redação, a gente iria conseguir fazer algo diferenciado e interessante. Mas não houve adesão. Então, eu fiquei com isso na cabeça e falava pra deus e todo mundo. A minha ideia era fazer matérias relevantes para o jornalismo nessa área humana. A primeira pessoa que veio falar comigo sobre isso foi a Eliane Brum: “Quem sabe a gente faz alguma coisa”. “Vamos fazer”. Aí veio a Clarinha Glock e nós três começamos a pensar alguma coisa. Nesse meio tempo, a Eliane teve uma proposta pra ir pra São Paulo e foi trabalhar acho que na Época. Ficamos eu e a Glorinha. Antes disso, a gente criou um coletivo, que nós batizamos de Alice – Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação. Na época a gente queria Agência Latinoamericana, mas achamos que era muito “metido”… A Alice é uma aliciadora. Tem um bando de apoiadores “aliciados” e por isso consegue desenvolver vários projetos sem dinheiro de empresários, nem de verbas públicas. Os recursos vêm de promoções organizadas por nós, como feiras e saraus, além de parcerias e pessoas que, por acreditarem no trabalho, doam, sem sequer descontar do Imposto de Renda. Mas na época era muito pequenininha a Alice. Tínhamos a pretensão de dar voz a quem não tem. Aí fizemos o primeiro projeto, com os meninos da Febem. Estava tudo prontinho quando mudou a direção da Febem e ficamos com o projeto no colo. Aí decidimos ir pra praça. Um grupo de meninos era alfabetizado numa praça por uma professora chamada Deirdre Bicca naquele momento (1999). Eram bem

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rosina duarte

Os recursos vêm de promoções organizadas por nós, como feiras e saraus, além de parcerias e pessoas que, por acreditarem no trabalho, doam, sem sequer descontar do Imposto de Renda. jovens, sobreviventes de um grupo bem maior, que tinha sido dizimado. Eles sobreviviam na “praça do Cachorrinho” [Praça Dom Sebastião], cuidando carros. A gente chegou na praça, não sabíamos o que fazer, não tínhamos a menor ideia. Isso foi a melhor coisa que nos aconteceu, porque o Boca foi nascendo de uma conversa em comum com aqueles seis, duas meninas e quatro meninos. O começo foi duríssimo, porque eles ainda estavam muito vinculados à questão dos delitos. Um dia um deles me perguntou se eu tinha um canivete. Aí ele pegou o canivete, abriu seu joelho e de lá arrancou uma bala. A Polícia chegou a nos botar no “paredão”; os traficantes da região diziam que a gente era dedo duro, nos ameaçavam. Mas a gente foi trabalhando aos pouquinhos e a coisa mais fantástica que aconteceu foi a construção da confiança, o resto veio naturalmente, o resto foi lindo. Primeiro a gente pensou em rádio-poste. Ficava em frente ao Colégio Rosário. Mas eles foram taxativos: “A gente quer uma Zero Hora”. Quem mandou perguntar, né? (risos). A gente não tinha 1 pila! “Como é que eu vou fazer um jornal com analfabetos funcionais?” A gente trabalhava no território deles, eles cheirava muita loló, ainda não tinha o crack. Eu dizia pra eles “pelo amor de Deus, parem de cheirar porque eu já tô ficando chapada!” Um deles olhou pra mim e disse “tu já nasceu chapada; senão, o que tu tá fazendo aqui conosco?”

Nesse momento a Clarinha Glock já não estava mais no projeto. Quem entrou desde o primeiro número do Boca foi a Cristina Pozzobon, que faz a diagramação do jornal e hoje é a presidente da Alice. E aí foi indo, até que um dia me abriu um portal e eu me dei conta do que esses guris estavam fazendo: estão fazendo notícia! E aí a gente começou a trabalhar como trabalhamos até hoje, com a passagem da palavra oral pra linguagem escrita e a construção coletiva. E dois pilares: a questão ética e a questão da clareza. Ou seja, tu não podes atribuir a alguém aquele fato se tu não ouvires a pessoa. E também tem que ser claro. Aí entra o quê, quem, quando… e tem também uma construção muito singular, que é a mistura da linguagem oral com a escrita. Não é o Português perfeito, mas não é também aquele falso linguajar carregado de gírias difíceis de entender. É uma narrativa híbrida. O primeiro Boca saiu junto com o primeiro Fórum Social Mundial [1999]. Pra mim, essa palavra é “juntos”. O nome foi escolhido por votação e eu acho genial esse nome. Boca de Rua é o lugar de todos os ventos, é o lugar de onde tu podes ir pra tudo que é lado, é um lugar ao mesmo tempo desprotegido e é também rota de fuga. O logotipo do jornal foi desenhado por um integrante. Um dia eu levei umas canetinhas hidrocor e ele fez o logo e é genial. Tem dois sinais de igualdade, não de ser igual, mas ter igualdade de direitos, tem um tridente e uma boca berrando. No primeiro número teve a cobertura de uma exposição do Sebastião Salgado, “Êxodo”. Eles fizeram uma matéria fantástica em que diziam que era o avesso do cartão postal. Eles têm sacadas incríveis. Sobre esse logotipo, o Peninha, um dos nossos integrantes, disse o seguinte: “o Boca de Rua tá de boca aberta. Mas não porque a gente é um bando de boca abertas. É porque a gente grita e espeta as consciências com aquele tridente”.


17 FIFA – Outra coisa interessante, Rosina, é o pertencimento. A alegria com que eles te oferecem na rua o exemplar. “Eu estou aqui. Eu sou importante pra alguém”. Eu acho que o Boca de Rua possibilita isso. ROSINA – Tu sabes, Fifa, eu falo isso sem nenhuma modéstia porque isso não tem a ver comigo: acho que o grupo foi bem estruturado. O Boca é uma outra sociedade. Ele tem uma lei própria, criada e votada por eles. Ele é um outro sistema de governo, completamente diferente do que a gente entende que seja um movimento, mesmo. Eu acho que o Boca tem isso. É uma mudança de identidade. É um instrumento de transformação pra quem trabalha no Boca, seja quem for, inclusive pra mim. FIFA – A linearidade do olhar deles também é interessante. ROSINA – Isso! Isso foi uma das maiores conquistas, porque eles não olhavam no teu olho antes. Foi a primeira conquista. E também tocar. SCHRÖDER – Eu participei de um congresso da Federação Internacional de Jornalistas na Espanha, em 1994 ou 95. Em Madrid e em Santander eu encontrei pela primeira vez dois jornais vendidos por moradores de rua. Eram feitos por jornalistas com olhar um pouco liberal, para dar alguma coisa pra que, em vez de pedirem dinheiro e coisas na rua, oferecessem o jornal para vender. Em Porto Alegre, quatro, cinco anos depois, eu encontrei o Boca de Rua. Vocês tinham algum modelo? Vocês tinham referências naqueles jornais, sabiam que existiam? ROSINA – A gente não sabia que existiam esses jornais. Depois a Clarinha descobriu o INSP, que é o International Network Sistem Papers. Mas existe uma rede internacional de jornais de rua, vendidos por moradores de rua, que tem cento e poucos jornais em quase 40 países. Hoje, o único feito por pessoas com trajetória

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Eu acho que o ” Boca tem isso. É uma

mudança de identidade. É um instrumento de transformação pra quem trabalha no Boca, seja quem for, inclusive pra mim. de rua é o Boca. Já tentaram implantar em vários locais, inclusive em Lion, na França. Nós temos dois apoiadores – um é o Manoel Madeira, jornalista que estudou na França, e a outra é a francesa Charlotte Dafol, diretora do filme De olhos abertos, que se encontraram na França e tentaram fazer pelo menos uma página com moradores de rua de lá. Mas não houve abertura por parte dos donos dos jornais. Aqui no Brasil existe um jornal – não sei se ainda existe -, o Aurora da Rua, que foi inspirado no Boca, mas é bastante híbrido. Embora o Boca também seja híbrido: todo o conteúdo é de moradores de rua, mas a edição é feita por jornalistas. Aí tem uma questão interessante. Quando começamos, o Sindicato dos Jornalistas teve um desconforto em relação a nós. Aí pedimos pra fazer uma reunião com a diretoria e fomos conversar sobre essa outra posição do jornalista dentro de um projeto social. Isso poderia, inclusive, abrir espaço pra jornalistas, porque ele é um projeto híbrido, precisa de jornalistas pra conduzir essa linguagem, a edição. Após a reunião com a diretoria, em que apresentei o Boca, a direção do Sindicato entendeu e passou a apoiar o projeto. A minha ideia é e sempre foi que os movimentos sociais podem ter a sua própria voz, mas é importantíssimo o papel de um jornalista ali, no sentido ético, no sentido da clareza, no sentido da organização. A partir daí nós fize-

mos vários outros veículos. Por sorte a gente abandonou o preconceito bobinho de “dar algo para” alguém. Hoje a Alice trabalha mais com a perspectiva de mostrar o que a sociedade não vê, porque não quer ver. Então a gente trabalha com outros grupos, dois permanentes, o Boca e o de Bagé, com idosas que são artesãs. A gente não é o McDonald’s, que faz tudo igual. Cada grupo faz o seu próprio veículo. Por exemplo, há 18 anos, em Bagé, as mulheres fizeram primeiro um livro, com causos femininos. Elas contaram 13 ou 14 contos/causos pela perspectiva da mulher. Além disso, receitas detalhadíssimas. Não é aquela receita do “faça em ponto de fio”. Sei lá o que é ponto de fio, né? As receitas delas são assim: “pra fazer ponto de fio é assim…”. Mais o vocabulário regional, benzeduras, simpatias, todo um universo feminino. Se chama Contos sem fadas - retalhos de memórias. Foi editado pela Tomo Editorial, que bancou tudo. FIFA – E a capa é lindíssima! ROSINA – Foi feita pela Rosana Pozzobon. Aí elas não quiseram parar e seguiram fazendo um jornal, o Almanaque, tipo um almanaque de farmácia. Ganhou dois prêmios “cultura popular” no Ministério da Cultura. E também tem um filme, Senhoras de si, de 2019, dirigido pela Lúcia Achutti, que conta um pouco da história das integrantes do grupo Renascer e da parceria delas com a Alice no registro de sua cultura “invisível” por meio do projeto “Sempre-Viva – roda de memória, afeto e resistência”, seus relatos de vida. Esse também é um trabalho permanente nosso. E depois nós tivemos vários outros projetos. Nós fizemos durante muito tempo um jornal no Morro da Cruz, com adolescentes, o Nós na fita, nós na luta. Uma das pessoas que trabalhou lá hoje é conhecidíssima como Negra Jaque, uma cantora maravilhosa, fantástica! Ela é educadora, graduada em Pedagogia. Ela tem um projeto lindo chamado Galpão Cultural.


18 Também fizemos um trabalho com mulheres presidiárias. Elas quiseram escrever um conjunto de cartas, que se chama Pombo correio, cartas da prisão. Eu acho incrível esse nome porque o pombo correio, ao mesmo tempo em que voa, ele leva uma mensagem. O nome nasceu na primeira reunião. Esse grupo foi interessante porque depois que começamos houve um boicote por parte das guardas, chefes das galerias. Durante um mês e meio quase, eu e a Maíra Brum Rieck, a psicanalista que foi minha companheira de trabalho, íamos todas as semanas, mas não aparecia ninguém. Um dia encontramos uma das presidiárias e ela nos perguntou, surpresa, o que estávamos fazendo lá. E eu disse que íamos para o trabalho com o grupo. “Não está indo ninguém, mas nós viemos, como prometemos”. Aí, na outra reunião, tinha um monte de gente de novo. Essa que nós encontramos uma vez nos disse: “Como eu gostava do nosso grupo! Era a única hora em que eu me sentia livre. Eu me esquecia que tava na prisão”. E aí tu te dás conta do que é o poder da palavra! A Hannah Arendt dizia que “não há dor que não possa ser suportada, se ela for contada”. Nós também trabalhamos com um grupo de prostitutas. Elas fizeram um folhetim chamado Mariposa – uma puta história. O trabalho da Alice com as mulheres – presidiárias, prostitutas e idosas da fronteira - acabou resultando na trilogia, Mulheres perdidas e achadas. Também inspirou um bonito espetáculo virtual encenado pela Débora Finochiaro e outras atrizes, batizado Invisíveis - histórias para acordar. São esquetes teatrais. É lindo!

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Logo a gente se deu ” conta de que éramos

totalmente analfabetos sobre as situações da rua. Foi uma alfabetização em duas mãos.

houve um aumento da… nem é violência, é mais que isso, é brutalidade mesmo. Antes era muito marcado: a polícia e os moradores de rua. Mas agora, com esse fascismo todo à nossa volta, tem milícias que batem nas pessoas com arame farpado, garrafas, tacos de basebol, que incendeiam barracas. A Guarda Municipal anda armada, a Brigada Militar [PM gaúcha] tá atuando com muito mais violência. Quando começou a pandemia, a gente perdeu o local onde nos reuníamos – a Escola Porto Alegre (EPA), grande parceira – porque as instituições de ensino fecharam. Então fomos pra rua de novo. Em um dia de chuva e a gente tava fazendo a reunião debaixo de uma marquise quando chegou a Polícia, daquele jeito que eles chegam, sem a menor educação, sem perguntar, já pressionando. Aí conversamos e eles foram embora. A gente também terminou a reunião. E aí surge um casalzinho bem novo, completamente alternativo, ele de barba, jeito que anda de bicicleta. Eu perguntei se tinham sido eles quem chamou a Polícia. A menina viu que eu estava muito furiosa e disse “é que a gente tava trabalhando”. E eu disse: “Nós também”. Disseram “a gente não pensou que a Polícia ia chegar assim”. E eu perguntei: “Como é que vocês pensaram que TARSO – Ainda tem alguém do a Polícia iria chegar? Pedindo licença, grupo original? por favor? Em que mundo vocês viROSINA – O último morreu du- vem?!” Eu fiquei indignada! Um casalrante a pandemia. Mas não foi de Co- zinho novo! Custava chegar na janela vid. Era o Leandro, uma pessoa com e dizer “olha, a gente tá trabalhando, uma integridade!... um pilar. Temos baixem o volume”? Isso acontece basque conviver com muitas perdas. Uma tante. Tu estás ali trabalhando e daqui injustiça brutal. Nos últimos tempos a pouco chamam a Polícia.

SCHRÖDER – Tu falaste como havendo uma macabra estatística de perdas por violência no grupo. Vocês têm isso? Vocês perderam muita gente? ROSINA – Eu não faço estatística porque é muito dolorido. Há um compêndio da violência. Contra as mulheres, então, é uma coisa inacreditável. Todas as mulheres que trabalham no Boca de Rua, sem exceção, foram estupradas na infância ou na adolescência. Olha, eu acho que de 90% os filhos foram tirados delas, alguns deles ainda de dentro do hospital, sequestrados mesmo, sem que houvesse nenhum movimento real da Assistência Social pra recuperar essas crianças, ou pelo menos discutir o caso com elas, dar um prazo pra elas se organizarem. Teve uma delas que reencontrou a filha depois de 14 anos, ainda institucionalizada. Foi emocionante. Depois disso, ela até se animou a ter outra filha, que também lhe foi tirada. Tem a história da Rita, que era uma líder impressionante lá dentro, muito inteligente. Ela teve um filho, foi internada compulsoriamente, com a pressão da Brigada Militar. Já saiu do hospital sem o bebê. Por conta dessa dor, ela entrou numa depressão terrível e morreu em seguida. E tem histórias de assassinato mesmo. Morte por doença são muitas, porque a saúde da maioria é muito frágil, a maioria é portadora de HIV e tuberculose. A depressão, a desesperança matam muito. A rede de assistência e de saúde não dá conta. Tem um caso emblemático, do Paulinho. O Paulinho tava morando na praça da Matriz, em torno da qual estão a sede do governo estadual, a Assembleia Legislativa, o Tribunal de Justiça, a catedral metropolitana. O Paulinho era um baita desenhista, um baita chargista. Ele tinha acabado de conseguir um curso de desenho. Era um guri extremamente educado. Teve uma recaída e estava morando numa barraquinha armada na praça da Matriz. Mataram ele com uma


19 facada pelas costas. Às duas horas da tarde. Olha só: com todos os Poderes em volta. Câmeras de segurança por tudo quanto é lado. E sobrou o corpo do Paulinho, morto pelas costas com uma camiseta da seleção do Brasil. Foi dado pela Polícia, na hora, como briga de gangue. Teve outro que foi morto a pauladas por uma torcida de futebol. Então, a estatística é dolorida e realmente macabra. Morte por não atendimento, é impressionante. E eu pergunto: algum de vocês em algum momento leu alguma notícia sobre isso que eu estou contando aqui? Eu quero chamar atenção pra uma coisa que eu tô vendo, que é interessante: o movimento de uma gurizada que tá fazendo jornalismo independente. Por exemplo, aqui em Porto Alegre tem um guri que se chama Alass Derivas, que dá cobertura fantástica dos movimentos populares. Tem vocês, tem a Rede de Jornalistas pela Democracia, Democracia, o Sul 21, o Jornalistas Livres, Mídia Ninja, Nonada… O jornalismo não consegue se conter. Tem surgido muita coisa, sabe? Não tem como segurar. TARSO – Os textos finais do Boca, quem escreve? ROSINA – É um processo. Primeiro, tem a reunião de avaliação, após sair o jornal. O Debates Boca. É uma DR. O que deu certo, o que deu errado, quem tá vendendo mal na rua. A próxima é a reunião de pauta. Eles trazem as pautas, estruturamos juntos, às vezes uma pauta encaixa na outra. São geralmente três pautas por edição. Se formam três grupos. Cada um, além dos integrantes, tem um facilitador ou dois, dependendo do tamanho da pauta. A gente tem uma equipe de universitários de tudo que é área, não só do jornalismo. Aliás, do jornalismo é o que menos tem. Pessoal que está fazendo mestrado, doutorado, pós doutorado. Aí se começa a conversar sobre aquilo, com o conhecimento que o grupo tem. Então, se estrutura a pauta, quem vai ser entrevistado,

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Não é à toa que ele surgiu no Fórum Social Mundial, que dizia que um outro mundo é possível. O Boca é o meu outro mundo possível. se elaboram as perguntas e se começa a agendar essas entrevistas. Como tem uma só máquina fotográfica – o Luiz Abreu é o instrutor - e como só temos um Fusca, tem que estar tudo certinho na grade, tudo tem que estar bem agendado. É muito organizado. Depois de fazer as entrevistas todas, ir nos locais, enfim, de fazerem a matéria, esses grupos sentam de novo e contam a matéria. E a pessoa facilitadora vai anotando. Essa primeira escrita volta pro grupo e se pergunta: essa coisa é assim mesmo, essa é a melhor informação pra abrir a matéria? Tá faltando algo aqui? Como as pessoas irão entender? Então ela vai se ajeitando, sendo montada, atualizada nesse vai e volta. Isso dura umas três ou quatro reuniões. Quando consideram que está pronta a matéria, que se considera que é esse o texto final, inclusive com uma pré edição, sugerem o título. Então, o texto final é deles, escrito nessa forma coletiva, no vai e vem. SCHRÖDER – Quanto tempo leva isso? ROSINA – O Boca é trimestral. Mas a feitura mesmo do jornal leva bem menos tempo do que uma reunião de sindicato. Ahahahahahah! A gente sempre trabalha em roda, não tem nenhum líder, nenhum representante, tudo tem que ser votado. Quando entra uma pessoa, ninguém pergunta de onde vem, se é ex-presidiário, se usa droga. Nada, nada. Entra e tem que trabalhar. Logo tem que estar fazendo matérias. Claro que eu oriento um pouco o pessoal, eu vou de grupo em grupo. Bueno, o Boca é

isso. O Boca hoje toca de ouvido. Existe por si só, independente de qualquer uma de nós. Muita gente me pergunta quantos saíram da droga, quantos estão morando em casa, quantos casaram. No Boca a gente não trabalha com essa perspectiva. O nosso é um trabalho de organização social e de renda. A gente não interfere em nada nessa questão de droga, se são presidiários, se têm algum tipo de doença, a não ser no sentido, dentro do possível, de encaminhar atendimentos e contatos. E trabalhamos com a perspectiva de redução de danos e de não infantilização dessas pessoas. Nós, jornalistas, já tivemos vários colegas que usavam vários tipos de droga. Eu lembro que as canetas esferográficas da Zero Hora parecia que tinham uma farinha por dentro. Eu nunca fui perguntar quem era, quem deixava de ser. Bebida, então... A nossa geração é daquelas que bebe feito louca. Mas, com o morador de rua as pessoas acham que tu tens que trabalhar nessa perspectiva “salvadora”! Quando a gente começou, nosso discurso era assim bonitinho, nós tínhamos esse preconceito bonzinho de que “nós que somos jornalistas, sabemos… Vamos botar nosso saber, nosso trabalho em benefício dessas pessoas”. Não, não. Logo a gente se deu conta de que éramos totalmente analfabetos sobre as situações da rua. Foi uma alfabetização em duas mãos. Eu adoro essa expressão: o pessoal brinca que eles são doutores em Ruaologia. Então eu tive que estudar Ruaologia, porque até hoje eu ainda piso na bola. Por um terço da minha vida e metade da minha profissão eu estou no Boca de Rua. Às vezes fico me perguntando por que estou há tanto tempo nisso. A minha geração queria mudar as coisas, revolucionar o mundo. E eu acho que o Boca é minha pequena revolução. Não é à toa que ele surgiu no Fórum Social Mundial, que dizia que um outro mundo é possível. O Boca é o meu outro mundo possível.


20 BLAU Bier

BIOMA PAMPA Celso Schröder

arlos Castelo e Bier

Wagner Passos

tiras


21 COLARINHO, PÃO E VINHO João Bosco

ONOFRE, O GAUDÉRIO DE APÊ Óscar Fuchs

MORGANA, A BRUXINHA Celso Schröder

DR. ROBALO Kayser

tiras


22

mundo

Colômbia: promessa de desbloqueio político? Carlos Roberto Winckler

T

rês acontecimentos nesse ano marcam o cenário político na América Latina: as eleições presidenciais no Brasil e Colômbia e o referendum no Chile da nova Constituição. As eleições colombianas são as mais próximas: 13 de março, eleições legislativas e primárias interpartidárias; 29 de maio, eleições presidenciais; 19 de junho, segundo turno. As eleições colombianas tem a novidade de não serem pautadas pelo tema da violência armada interna, corrupção, narcotráfico, ainda que persistam ações de grupos paramilitares de extrema direita e de grupos minoritários de esquerda. A deposição das armas pela FARC em 2017 e sua legalização como partido no governo direitista de Manuel Santos, sob forte oposição de Uribe e Ivan Duque, atual presidente, diminuiu as pressões internas e abriu possibilidades de romper o ciclo direitista de vinte anos, de políticas neoliberais e de submissão aos interesses geopolíticos dos EUA; apesar dos obstáculos às promessas do Acordo de Havana de reforma agrária, e da violência da extrema direita tolerada ou apoiada pelo Estado, que vitimou nos últimos quatro anos 1200 ex-guerrilheiros e ativistas sociais. Ivan Duque é rechaçado por quase dois terços dos colombianos, desgaste que vem desde as eleições regionais e municipais de 2018 e aprofundado com a greve geral e as manifestações de 2021, reprimidas com extrema violência. Quatro coalizões partidárias disputam as eleições, além de agrupamentos independentes, totalizando

moro, cuba

19 candidatos. Quinze se orientarão pelas decisões nas primárias das coalizões. O Pacto Histórico, de orientação progressista, reúne um vasto arco de grupos de esquerda e centro esquerda, étnicos, ecologistas e feministas e dissidentes liberais. Gustavo Petro, ex-prefeito de Bogotá (afastado em 2013 em ação de lawfare), ex-guerrilheiro, é o favorito nas primárias. Na Coalición Centro Esperanza, que reúne liberais e dissidentes variados, desponta como favorito nas primárias, Sergio Fajardo. Na Coalición Equipo Colombia, direita, a disputa nas primárias é intensa. Federico Gutiérrez está na liderança por pequena margem. Essa coalizão tem forte presença territorial e representação legislativa. Caso o Centro Democrático, conservador, partido de Uribe, vier a integrar a coalizão, há tendência a se formar no legislativo um bloco influente de direita. A Coa-

lizão Nos Une Colombia, ultraconservador, reúne grupos de orientação evangélica. A Constituição colombiana admite representações, modestas, de caráter étnico, além de representação de vítimas e ex combatentes nas regiões de conflito. Coalizões podem apresentar listas interpartidárias, o que reforça o vínculo entre listas parlamentares e coalizão presidencial, uma aposta na estabilidade institucional. A mais recente pesquisa (Guaruma y EcoAnalitica) mostra 31,1% de apoio ao Pacto Histórico; 14,5% de apoio a Equipo Colombia; 12,4% de apoio àqueles que não participam de coalizões; 10,6% à Coalición de la Esperanza; 7,9% ao Centro Democrático. Transição complexa, que procura romper tradições oligárquicas. Mas a rigor sem garantias em um país marcado pela violência.


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texto&traço

rodrigo schuster e lu vieira

Canabidesqueci

J

á faz décadas que se sabe, cientificamente, que alterações momentâneas nas funções cerebrais podem ser obtidas através do consumo de maconha com tanta eficácia quanto com a ingestão de bebida alcoólica. O que vem sendo descoberto nos últimos anos são outras propriedades da cannabis, que variam de acordo com as quantidades de THC e CBD. Tão fazendo até concreto com cânhamo, um concreto que retira CO2 da atmosfera ao invés de adicionar, como o tradicional. A indústria têxtil também entrou nessa: pesquisas mostram que plantações de cannabis ajudam a recuperar o solo, sendo boas também para entressafras. O sertão nordestino do Brasil tem o clima perfeito para o cultivo e a vastidão territorial nos colocaria

na liderança mundial, produzindo em larga escala os melhores canabidióis do mundo, alçando o país à vanguarda da tecnologia, sustentabilidade ambiental e medicina. É nos medicamentos que o canabidiol tem tido seu maior destaque, sendo usado com especial sucesso no tratamento de doenças neurológicas. Mas é claro que Osmar Terra Plana sabe mais que todo mundo e, por motivos que só ele entende, os brasileiros que sofrem de tais enfermidades precisam conseguir autorização judicial para ter direito a importar o medicamento. E uma autorização da Anvisa. Pra cada compra! Significa que quando a Anvisa altera seus prazos por algum motivo, tipo uma eventual pandemia, as pessoas ficam sem os medicamentos dos quais suas vidas e bem estar dependem.

Sobre o uso recreativo de maconha, que estima-se representar setenta por cento da renda do tráfico no Brasil, os tão difundidos danos neurológicos só se comprovaram no uso durante a adolescência. Em adultos o desenvolvimento cognitivo já está completo e não corre riscos. Pois é, a capacidade cognitiva de Eduardo Bolsonaro é isso aí que já vimos… Seria até mais saudável se eu fumasse maconha ao invés do tabaco com outras quatro mil e setecentas substâncias tóxicas que compro no mercado. Pena que eu não gosto, então terei que continuar com cerveja e nicotina. Parar tudo é complicado. Quando se vive em um país onde pessoas são espancadas por cobrarem seus direitos trabalhistas, qualquer droga é um remédio.


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cultura

De bigues, absolvições, sucessões e outros bródis... Luiz Hespanha

Corintiano, jornalista, escritor e compositor de música popular

O

BBB mobiliza órgãos e sentimentos da inteligência e da indigência humana. Setores da esquerda descobriram que o programa possibilita o debate revolucionário sobre quase tudo. Confesso minha ignorância teórica e prática no bigbrodismo-leninista-trotskista-identitarista-endemolista-orwelliano-globalista. Não sei se atribuo isso aos meus parcos conhecimentos sobre entretenimento e política ou ao respeito profundo que tenho ao ócio disruptivo. Alguém sabe porr’onde anda o Zé Padilha? Com um roteiro de suspense, crime, política, tensão e traições concentrado num tema chamado Terceira Via dando sopa, o sujeito some do mapa? Sem falar da possibilidade de contar o auxílio luxuoso de toda aquela turma talentosa do Pânico e do CQC? Uma igreja pentecostal publicou texto onde diz que considera impossível ser cristão e de esquerda. Igualdade, cidadania, justiça, bem-estar social e fé são exclusivos de heteros que pagam dízimo, ou seja: Deus é neoliberal e só estende seu bem se receber de alguém. Mas gays com poder econômico serão bem aceitos, afinal o Deus à imagem e semelhança de bispos e pastores, também pode mudar de opinião, por que não? O sujeito passa madrugadas em claro, sacrifica o lazer e a família elaborando um powerpoint que virou exemplo mundial de inteligência, justiça, fé e arte geométrica e vem você reclamar do pagamento de R$

191 mil de férias. Liga não Dallagnol, a história o absorverá. O que significa ganhar R$ 200/300 mil por mês por um trabalhinho de consultoria e recuperação de empresas brasileiras destruídas por corruptos desalmados que felizmente foram pegos graças às delações premiadas generosas? Só quem acompanhou de perto o processo de destruição de empresas e empregos reúne condições de realizar (a partir dos EUA) a recuperação. A celeuma sobre o salário de Moro na Alvarez&Marsal é coisa de invejosos sem competência para destruir e muito menos para reconstruir. Liga não Moro, a história o obliterará. 2022 será espetacular para a ciência e para a cultura brasileira. Alguém duvida que que o Nobel de Medicina ficará com Marcelo Queiroga e o de Literatura com Michel Temer? E olha que nem falei da possibilidade do Malafaia, Edir Macedo ou Damares ganharem o Nobel da Paz e do Mário Frias ganhar o Oscar pelo conjunto da obra.

A morte de Olavo Carvalho provocou uma onda jamais vista de suicídios nas margens planas da Terra. O fato não foi noticiado para evitar o pânico e o caos nas estradas e mares. Quem viu as imagens ficou impressionado com o ardor e o horror. A sucessão de Olavo de Carvalho já está nas ruas, rodas e redes. Candidatos não faltam. Carluxo, Dudu Hamburguer, Gentili, Roger, Marrone, Gustavo Lima, Weintraub, Ernesto Araújo, Queiroga, Damares e Amado Batista estão no páreo. Pedro Bial ainda não se manifestou, mas se entrar na disputa, é barbada. Ciro Gomes disse à CNN que, se eleito, abriria mão da reeleição. Cabe uma reflexão. Na França, os eleitores votam numa lista apresentada pelo partido/coligação. Só aí são definidos quem será o prefeito e quem fica no Conselho Municipal, o Legislativo das cidades. A reeleição é permitida. Uma dúvida: o título do Ciro é de Chantilly ou de Aix-en-Provence?


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cultura

Pavor em Montevidéu Marco Antonio Villalobos

E

m 1980 o Uruguai vivia sob uma brutal ditadura com tudo o que existe de mais abjeto: tortura, desaparecidos políticos, censura e outras barbaridades que qualquer governo assim, seja de que lado for, “oferece”. Na tentativa de institucionalizar o regime, o governo convocou um plebiscito. A cédula era simples: Si ou No para a proposta. Fui escalado para a cobertura em substituição a Geraldo Canalli, que foi obrigado pelas autoridades a retornar ao Brasil ao chegar em Montevidéu. Peguei um voo da extinta Cruzeiro do Sul, enquanto a equipe de externa composta pelo cinegrafista Cabreira, o auxiliar Milton Cougo e o motorista Rocha - vulgo Tatuíra, gloriosamente seguia pela estrada, na camionete Veraneio da TV, para me encontrar em terras uruguaias. No hotel, um guri da recepção nos avisou que todas as mensagens de telex que enviávamos, uma cópia era recolhida pela polícia. Nas reportagens, e até mesmo nas poucas horas que tínhamos para comer ou dar uma caminhada, éramos sempre acompanhados, discretamente - ou nem tanto - por militares à paisana. Levar o material até o aeroporto para enviar ao Brasil parecia um filme de espionagem. Me sentia o próprio James Bond, com a única diferença que ele tinha mais sorte com mulheres do que eu. Toda esta atmosfera afetava a equipe. Ainda mais o Milton, hoje um dos maiores cinegrafistas e diretores de imagens do Brasil, que na época era um gurizão em sua primeira cobertura “casca grossa”. Foi

a senha para a sacanagem que o Cabreira e eu, um pouco mais velhos e experientes, mas não pensem que sem medo, também precisávamos. Cobertura pronta, voltaríamos para Porto Alegre no outro dia de manhã cedo. O Milton e o Tatuíra foram dormir. O Cabreira e eu, circulando pelo hall do hotel, combinamos com o guri da portaria de ligar para os apartamentos dos dois, dizendo que era da polícia e que eles deveriam descer imediatamente. O trote continuava com ele dizendo que tinha que ser muito rápido e que os dois colegas já estavam presos. Para criar um ambiente de terror, fazíamos um barulho semelhante a tapas e eu berrava “não, não, ai, ai, ai,não!” Nossos apavorados colegas não esperaram nem o elevador. Arrumaram as malas em 24 segundos e desceram pela escada como se aquilo

fosse um tobogã. Não adiantou eles nos verem bem e rindo. O Rocha todo nervoso e o Milton, branco como uma vela, só se convenceram mesmo depois de eu dizer várias vezes: “Calma, sou eu o Marquinho. Tá tudo bem. Tá tudo bem. A gente não achou que vocês iam se assustar tanto.” Claro que foi uma avaliação muito equivocada. Criamos uma cena tão convincente que ninguém conseguiu voltar para a cama. Decidimos partir imediatamente, eu dirigindo a camionete, porque o Rocha não parava de tremer. Depois disto, várias vezes voltei ao Uruguai junto com o Milton, em coberturas jornalísticas. Em todas, quando passávamos em frente ao hotel, ele olhava pra dentro, murmurava um “bah”, bem aliviado acho eu, lembrando que aquilo tinha sido apenas uma “brincadeira”.


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entrevero

Acho que no Brasil não cabe mais o espanto daquela pergunta ”aonde vamos parar?” Celso Vicenzi

Abrindo um antigo caderno foi que eu descobri: Antigamente eu era eterno.

Coronavirus diz que Olavo de Carvalho não existe. Sensacionalista

Paulo Leminski

Olavo se foi, e daí? O resultado não é tão bom: Deixou a turma dele aqui. Mouzar Benedito

Muito antes desse anunciado futuro digital, os poetas já aconselhavam: meta verso! Celso Vicenzi

Em algum momento o jornalismo brasileiro abdicou da verdade em troca da ” opinião” de fontes que pudessem garantir a “polêmica” que substituiu a informação. O resultado é este que estamos sofrendo na carne: mentira, manipulação, fascismo, violência e morte. Schröder

Eu sou o teu pastor e nada te sobrará. (circulou no Facebook)

Afinal de contas, o deputado David Miranda entrou no Partido Democrata ou no Partido Republicano? Luiz Hespanha Isentões, isentos e isentinhos, geralmente, são tudo cobras do mesmo ninho. Celso Vicenzi Eu Cavo, Tu Cavas, Ele Cava, Nós Cavamos, Vós Cavais, Eles Cavam. Não é bonito, nem rima, mas é profundo… Aparício Torelly

Ter nascido me estragou a saúde. Clarice Lispector A Descoberta do Mundo Olavo chega no inferno e encontra Satanás: - Oi, Demo, você por aqui? Caco Bisol Vai que o Bolsonaro inventa uma facada pra não ir a debate. Luiz Inácio Lula da Silva Num hipotético segundo turno entre o genocida e o coronel cearense a gente deveria ir pra Paris? Luca O Banquete, de Platão? Devorei! Celso Vicenzi

Amar é... ser a primeira a reconhecer o corpo dele no Instituto Médico Legal.

Com tanta rebeldia acumulada, não seria Ciro Gomes um líder aposentado dos Blac Blocs, quiçá do MPL? Luiz Hespanha Reproduzir ”declarações” do Bolsonaro , neste momento, é alimentar a mentira institucionalizada. Viu imprensa?” Schröder Ser cachaceiro e ateu tem uma vantagem. Não precisa dividir com o santo. Celso Vicenzi O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente. Mario Quintana Quem não deve não teme: Moro e bozo deviam estar presos e provar sua inocência uns 580 dias depois. Caco Bisol

Ivan Lessa

O cpf do olavo foi cancelado Luca Luto oficial pelo Olavo de Carvalho é um acinte às vítimas das tragédias de ausência de política pública deste país. Mas isto já sabemos. Schröder

Pãos ou Pães é questão de Opiniães. Guimarães Rosa

acesse o link:

macanudosantiago@gmail.com

De uma vez por todas: não existe polarização entre Lula e Bolsonaro. A polarização é entre Bolsonaro e Alexandre de Moraes, entre Bolsonaro e a Anvisa, entre Bolsonaro e o Papa Francisco, entre Bolsonaro e a minha neta Morgana. Schröder


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entrevero

PREGUNTAS PERGUNTAS PERFURANTES Quando alguém abre a alma, o que encontra dentro dela?

G

O sujeito que se casa com uma rainha megera pode ser chamado de príncipe consorte?

G

Polígono das secas, Triângulo das Bermudas, Pentágono, Cone Sul, triângulo amoroso... Será que geometria é sinônimo de encrenca?

G

O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado. WilliamShakespeare

E o rio Tietê resolver cagar pro metrô Freguesia do Ó. Luca Eu, se fosse o Moro, pediria o dinheiro de volta da fonoaudióloga. Schröder

Olavo morreu ou fugiu dos credores? Caco Bisol

Nunca entrego os pontos. Só se a polícia insistir. Celso Vicenzi

A vida não muda muito. No meu tempo de colégio a gente colava. Hoje copiam e colam. Celso Vicenzi

G

Tocador de clarineta pode viver na flauta?

G

Vale pra cego o ditado ”quem viver verá”?

G

Para entrar na diplomacia é preciso ter diploma da CIA?

v

Na Itália, o governo sempre governa com as massas?

G

No seio do governo Bozo... só tem mamata?

G

Dizem que o trabalho enobrece o homem, mas quem já viu alguém que virou nobre por ter trabalhado?

Bem, todos morrem um dia, é simples matemática. Nada de novo. A espera é que é um problema. Charles Bukowski

G

Aquela turma do ”pelo menos ele não é corrupto” já escolheu um novo slogan? Celso Vicenzi

Tá certo que o dinheiro não traz felicidade. Mas e a miséria, traz?

G

Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. Guimarães Rosa ”Identitarismo” é a visão de mundo que não admite outra identidade. Schröder

Escola privada é para estudante merdinha?

O feminino de homem mulherengo é mulher homenenga? Mouzar Benedito nahid maghsoudi, irã


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artesdrásticas

hals

coração, bar


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