Os Espíritos, os Espíritas e Eu

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JULIETA MARQUES

Os Espíritos Os Espíritas e Eu

Lagos 2016


Título: Os Espíritos, os Espíritas e Eu Autora: Julieta Marques Editora: Luz da Razão Editora, unipessoal, Lda. Tiragem: 750 exemplares . Novembro de 2016 Paginação e capa: Ulisses Comunicação - www.ulisses.com.pt Impressão: Oficina de S' José ISBN: 978-989-99467-6-7 Depósito Legal: 417533/16


LUZ DA RAZร O EDITORA Rua Beato Inรกcio de Azevedo, 406, 4ยบ Esq 4100-283, Porto - Portugal geral@luzdarazao.pt fb.com/LuzdaRazaoEditora

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GRATIDÃO

A Deus, pela oportunidade da Vida a minha família, filha, netos, irmã e sobrinhos aos amigos e irmãos de Ideal aos que não me amando me ajudaram a crescer no poder da aceitação aos que de uma forma direta ou indireta me trouxeram à realização deste trabalho a todos expresso aqui meu sentimento de Amor e Gratidão.

Julieta Marques



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PREFÁCIO

Quase a completar oito décadas na presente existência terrena, Julieta Marques não abranda o entusiasmo e criatividade com que há meio século se devotou à causa espírita. Lúcida, imparável, brinda-nos agora com mais um livro da sua autoria _OS ESPÍRITOS OS ESPÍRITAS E EU_ onde regista inúmeras vivências e peripécias que experienciou ao longo de tantos anos. Umas felizes, alegres, outras pungentes, edificam todas com a pedagogia desafetada e proveitosa da sua narração. Bem haja a prestigiosa companheira de ideais, por esta iniciativa editorial. Além de leitura agradável e cativante, assume real utilidade não só como acervo de subsídios para a historiografia espírita mas também como opulento filão formativo-informativo para a nossa Sociedade, absorvida na superficialidade efémera de rotinas materialistas _como se além da fatuidade diária não existisse o REAL, profundo, imorredouro, para todos os habitantes da Terra. Muito útil, sim, esta publicação. Ainda se ouve a estafada alegação de que morreu, acabou; ninguém voltou a contar o que se passa depois. A verdade é que sempre abundaram depoimentos muito elucidativos a respeito, mais e mais se apurando o seu conhecimento e interpretação lógica. Os que já partiram sempre voltaram e sempre voltarão, perfeitamente acessíveis a quantos honestamente procurem estudar os seus testemunhos, por vezes tão expressivos e surpreendentes. Na escrita simples e sóbria de Julieta, desfila interessante variedade de cenas e ocorrências (algumas tidas por “misteriosas”, “miraculosas”, claro que não para conhecedores), desenroladas ante a idoneidade institucional e/ou individual de entidades credíveis; como também episódios simplesmente amenos e pitorescos _ enfim, um apetitoso cardápio de prender a atenção em gratificante leitura.


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Os Espíritos, os Espíritas e Eu - Julieta Marques

Desfilam também personagens muito interessantes, ou de grande relevo nas atividades espíritas portuguesa e internacional. Entre elas surpreende-me a simpática Barbara Ivanova, parapsicóloga soviética de renome mundial, investigadora, poliglota, médium de cura muito em voga em noticiários espíritas e de parapsicologia dos anos 80 e 90 transatos. Barbara e Julieta travaram grande amizade por correio e telefone, chegaram a encontrar-se em Moscovo. No seu contacto com correspondentes científicos, a parapsicóloga russa visitou o Brasil, onde fez questão de encontrar-se com o nosso Chico Xavier; este, mesmo enfermo, recebeu-a com júbilo em Uberaba e o acontecimento foi amplamente reportado pelo jornal uberabense “Flama Espírita”, de 22/Set/1990. “O Imortal”, em Julho do mesmo ano, já publicara uma extensa reportagem sobre uma conferência de Barbara Ivanova em Londrina. Entre as oito línguas dominadas por Barbara Ivanova estava o Português, que ela referiu ter aprendido muito facilmente pelo facto de ter vivido as duas reencarnações anteriores, uma em Portugal e outra no Brasil. Surpreendeu-me saber, pelo seu livro, que Julieta se relacionou tão de perto com a renomada parapsicóloga russa. Apesar da grande distância geográfica entre a residência da confreira algarvia e a minha, tenho o privilégio da sua amizade e os nossos trajetos encontram-se de vez em quando, por este Portugal fora. Mesmo assim, eu ignorava aquele invejável relacionamento, o que não deixa de algo significar sobre a humildade e discrição da infatigável companheira de lides espíritas. Como vinha referindo, este livro faz reviver personagens e detalhes cuja memória o tempo esbate implacável, sem apagar o vigoroso embasamento que propiciaram à relativa pujança nacional e regional hoje vivida pelo movimento espírita lusitano. Faz ressurgir o perfil venerando de Maria Júlia Pereira, tão digna e operante como discreta, de aprumo e retidão modelares; por acréscimo, cepa materna de um dinâmico rebento da vinha espírita lusa, hoje figura grada de quem fraternamente se orgulham os demais lidadores. Emergentes também da atribulada “era das catacumbas” (imposta vergonhosamente pela ditadura político-religiosa derrubada a 25 de Abril de 1974 e vergonhosamente não reparada pelo regime democrático […] atual), mais desbravadores emblemáticos assomam das páginas de Julieta à comovida saudade do leitor. Sem desprimor para todos os outros que o espaço não me consente referir com afetuoso louvor, apenas menciono aqui as ativíssimas obreiras Maria


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Prefácio

Luísa Cardoso, escalabitana, e Maria da Conceição Nobre, minhota sobreviva às agruras da descolonização com vinte e um filhos adotivos sob as asas maternais _ duas figuras laureadas de vivo labor na seara kardecista, como de carinhoso respeito de quantos privaram com elas. Perfumado pela tocante autenticidade da Autora, este livro, despreocupado de primores estilísticos e de formulações dogmáticas, faz-nos sentir mais próxima a Verdade; a Verdade que age, consola, liberta. Deixa bem patente não querer persuadir de nada, nem constituir uma peça literária _ mas apenas lavrar um singelo documento informal de acontecimentos relevantes e significativos. Alguns, de intensa carga emocional e dramática; o conjunto, portador duma mensagem despretensiosa, muito edificante para o leitor.

Gaia, 18/9/2016 João Xavier de Almeida



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NOTA INTRODUTÓRIA

O livro que tem entre mãos é um tesouro de memórias impregnadas pelos diversos perfumes que preencheram uma Vida que se vai revelando, em cada passo do extenso caminho de mais de setenta anos, e que vamos acompanhando ao longo do tempo, das pessoas, dos afetos, das lutas, das apetências, dos trabalhos e dos locais, através da leitura de muitas vivências enriquecedoras, por partilhadas, outrora como agora. Encontramos nele a recordação de experiências múltiplas, onde se cruzam amores, sonhos, dores, dúvidas, perdas, encontros, desafios, talentos, oportunidades, bênçãos, conhecimentos novos que vão propiciando o crescimento integral de um Ser e instigando-lhe a vontade de superação, pela entrega total a uma causa: o estudo, a divulgação e a prática dos ensinamentos do Cristo, recordados e aprofundados pela Doutrina Espírita. Podemos perceber, na súmula dos relatos, um labor constante assente na fé, na esperança, na perseverança, na coragem, na alegria e no desejo de viver, ultrapassada que foi a vontade de morrer, depois de alcançado o entendimento da imortalidade do Espírito que somos e o reconhecimento do Infinito Amor de Deus, que a todos cria e a tudo provê, com Suprema Bondade e Excelsa Sabedoria. “Os Espíritos, Os Espíritas e Eu” tem como fio condutor a Vida do Espírito Imortal, quer se considere o Ser individual e único, o Eu que aqui se revela e sem o qual não haveria estas memórias, a ação dos Espíritos, os seres inteligentes da Criação, agindo nos dois planos de manifestação da vida e interagindo com


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os seus semelhantes, ou a comunidade humana que se congrega em torno de uma doutrina de tríplice alcance, científico, filosófico e religioso, os Espíritas, com a firme vontade de amar e instruir-se, a que a autora se uniu para evoluir seguindo Jesus. Interligando estes três aspetos que deram forma ao livro e presidiram à junção dos textos, embora reconheçamos que são ténues os critérios da sua seleção, e finalizando o álbum de recordações, a arte da comunicação, a capacidade de transformar o pensamento e o sentimento em ideias, palavras e obras que, partilhadas com quem nos rodeia, como tem acontecido ao longo de toda a evolução humana, geram novos conhecimentos, multiplicam possibilidades de novos entendimentos sobre a vida, alargam os horizontes da nossa visão do que é ser um Espírito Imortal e poder comunicar-se de tantas formas e em tantas direções diferentes. Folheando as memórias de Julieta Marques, encontramo-nos com a realidade do nosso saber e da nossa ignorância acerca do Espírito que somos, da vida espiritual, na sua abrangência, e da revelação ofertada à Humanidade através da Doutrina Espírita, percebemos que nos situamos em diferentes estádios evolutivos, devidos a distintos graus de consciência e a diversos patamares de bondade, e compreendemos a existência de várias formas de comunicação entre os seres e os múltiplos mecanismos de interajuda, pela ação amorosa e abençoada dos Espíritos, que tudo nos trazem por vontade do Governador do nosso planeta, Jesus. Os aromas pretéritos vão evolvendo pelas páginas grafadas, podendo o rasto que deixam permanecer perfumando outras vidas, às quais chegará certamente a fragrância do amor posto em ação, da caridade, na medida que foi possível ser vivenciada, com tantos irmãos do caminho, em tantos anos de doação ao seu próximo. Possa chegar a si também esse aroma, é o desejo almejado com a exposição destas memórias.

Isabel Marques


EU “ - Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” Mateus, 11:28 a 30



Eu

1 Eu, menina Ser menina é tão bom, mesmo que seja ser menina pobre! Que é que podia uma menina, vivendo numa vila, num país fechado para o mundo, fechado para o progresso?! Um país que conduzia o seu povo, que cantava o fado, como que respondendo às suas mágoas e tristezas, nele encontrando alívio para seus devaneios, nos versos que cantava, na sua musicalidade, ora dolente, ora estertorante, ou que entoava as canções de embalar os filhos, tentando esquecer o futuro que viria, não se sabia muito bem como, nem de que maneira. Nasci em pleno conflito mundial, mas, como criança, não me apercebi disso. As dificuldades eram muitas, a fome grassava em todo o país, as perseguições políticas igualmente. Quem não era pelo governo de então era comunista, não havia alternativa. Por essa razão, meu pai fora preso por duas vezes, em sua cédula pessoal constando a anotação terrível de Agitador de Massas, comparável hoje a Terrorista! Que idiotice, essa! Portugal de minha meninice era um país pobre e só a força do povo para acreditar que um dia tudo seria diferente era a sua riqueza. Diferente, como? Só o tempo viria a dar a resposta. Assim cresci, entre dificuldades de toda a ordem, falta de alimento e de agasalho, não só eu, mas também meus irmãos. Meu pai, avesso à política de então, atravessou dias de luta, de acusação injusta, de prisão como revolucionário, após oito anos sem trabalho, a não ser o sazonal, ou o de conduzir camionetas para Espanha, país que vivia também horas de grande dor, transportando tudo quanto pudesse minorar as dificuldades daquele povo naquela hora. Acabou por ser enviado para África e, deixando a família, foi, na incerteza de como e de quantos seriam os dias, meses e, quem saberia, os anos de ausência. Minha mãe, mulher lutadora, plena de esperança no amanhã, também não sabia muito bem como seria, nem onde seria. Mulher analfabeta, mas inteligente e trabalhadora, nunca se deixou vergar ao peso do trabalho, ou das responsabilidades de esposa e mãe.

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Embora toda a situação deficitária do que era essencial para se sobreviver, havia um ambiente familiar extraordinário de alegria, respeito mútuo e muita organização no viver, para que esta paz e alegria se não deteriorassem e, com isso, o lar desmoronasse. Vivi numa família onde a palavra Deus não era conhecida, logo não se pronunciava, não porque fosse proibido, que meus pais não proibiam nada, antes nos responsabilizavam por nossas atitudes e palavras. Obviamente, não se falava de religião, não sabia o que era orar, nem ir a uma igreja. Delas fugia ou apenas as espreitava, como criança curiosa, desejosa de perceber alguma coisa do que lá se passava. Olhar as imagens da cruz, ou os quadros pendurados nas paredes, representando cenas para mim estranhas e dolorosas, fazia-me fugir com medo de que aquelas imagens me viessem perseguir, só porque para elas olhava, assustada. Contudo, nas aulas de Religião e Moral, eu ouvia falar de um deus que castigava os pecadores. Que eram pecadores? E aquele ser que estava ali, suspenso na cruz? Eu nem percebia o que era uma cruz, nem porque lá estava pregada uma pessoa. Diziam que era Jesus e eu ficava a imaginar porque o tinham pendurado na cruz. - Foram os homens maus! – diziam. Nem minha imaginação concebia como seriam os tais homens maus. Aquela cruz estava sobre o retrato dos dois outros senhores que mandavam no país… seriam aqueles dois senhores que colocaram Jesus na cruz? Eu não sabia e também não me explicavam nada que eu entendesse. Então, ficava olhando aquela cruz e aquele homem que não saía dali. Onde estavam então os homens bons, que não o tiravam da cruz? Às vezes, dava comigo olhando o céu azul e pensando onde estaria aquele homem crucificado. Falavam dele, mas eu não entendia nada que diziam dele, só percebia que Ele tinha sido morto porque queria que todos fossemos bons e amigos. Isso era o que meus pais nos ensinavam, a ser respeitador, a ajudar sempre que possível, que todos éramos uma grande família e, por isso, nos devíamos respeitar e ajudar. Não obstante a situação em nossa casa, eu recebi de meus pais as mais belas lições vivas de fraternidade e solidariedade ao próximo e isso foi bastante para formar meu caráter e o de meus irmãos em torno do próximo mais próximo, isto é, do mais necessitado, fazendo ao outro o que gostaria me


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fosse feito. Seus exemplos de vida foram luz na nossa formação ético-moral. Não me lembro bem de como eram os dias de Natal naquele tempo. Seriam lindos! Não havia presépios, nem árvores de Natal, pois penso que na época isso não tinha sido inventado. Não havia ceia nem presentes para nós, as três crianças da casa, mas não sabíamos o que isso era e não sentíamos nenhuma falta. Havia a presença do pai e as histórias que ele contava. Como não havia rádio em casa, eu e minha irmã, a pedido de nosso pai, cantávamos as canções que íamos aprendendo. Era um lar pacífico, tranquilo, onde nós não sabíamos o que eram discussões ou o uso de uma linguagem incorreta, desagradável. O tempo corria, nem sei se rápido ou lento, porque isso não era contabilizado por mim. Andava eu na escola, quando a fome apertou sério em meu estômago e perdi os sentidos. Havia uma prima rica na família, pois pobre sempre tem uma prima rica, que tomou conhecimento de que a filha da Amélia, assim se chamava minha mãe, tinha desmaiado na escola com fome. Gentilmente, mandou a criada - assim eram apelidadas as empregadas domésticas, meninas pobres que iam trabalhar nas casas de pessoas ricas, a troco de cama e mesa - levar a minha mãe o recado de que “a prima gostaria que a Julieta passasse a ir lá a casa almoçar todos os dias”, uma vez que tivera conhecimento do que acontecera. Minha mãe acedeu, pois era menos uma boca em casa, o que a aliviava. Quem não se sentiu aliviada fui eu. No dia seguinte, sim, porque seria de imediato a esta visita, eu passaria a almoçar em casa da prima rica. Lembro que era uma casa grande de dois pisos, com uma grande escadaria que nos conduzia ao andar superior, que eu nunca tinha visitado, pois não passava da sala de jantar ou da cozinha, quando lá ia. É assim mesmo, criança pobre não circula pela casa de primos ricos à vontade. Havia ainda um grande quintal e a cavalariça, onde dois belos exemplares de cavalos lusitanos tinham morada e eram tratados e alimentados melhor do que a maioria das crianças pobres da vila. A casa era enorme, aos meus olhos, e ricamente mobilada. Eu olhava tudo aquilo com espanto e envergonhada, pois não sabia como me havia de comportar. Menina pobre como era, como é que podia fazer? Poderia tocar as coisas lindas, ou limitar-me só a vê-las?

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Naquele primeiro dia, sei que entrei de cabeça baixa e triste, muito triste. Como o almoço estava um tanto demorado, sentei-me na escadaria que conduzia ao tal andar superior, zona de dormir dos primos ricos, e, colocando a cabeça entre as mãos, chorei baixinho. Quando chegou a hora de ir para a mesa e a empregada veio buscar-me, refugiei-me na escada e ali fiquei, recusando-me a ir. Levantou-se para mim uma dolorosa questão: a da solidariedade que eu tinha aprendido com meus pais. Eu tinha ali uma boa refeição quente e meus irmãos, em casa, não tinham senão umas couves cozidas, regadas com um leve fio de azeite. Não! Eu não podia usufruir do que me tinham oferecido, eu não queria comer! Debalde, a jovenzinha tentou persuadir-me, até que resolveu informar a senhora da minha negação. Veio minha prima, que era uma pessoa doce e, falando-me com seu jeitinho de mãe carinhosa, que o era, pediu-me que a acompanhasse à mesa. Neguei-me. Ela sentou-se a meu lado e pediu-me que lhe explicasse a razão de minha recusa. Eu, então, expliquei que não podia ir almoçar quando em minha casa meus irmãos, mais pequeninos, não tinham que comer. Minha prima compreendeu e, em vez de me forçar a ir para a mesa ou zangar-se comigo, tomou a medida mais correta, dizendo-me: - Vem almoçar, pois enviarei para teus irmãos o mesmo almoço que tu vais ter. Não te preocupes, que de hoje em diante eles também terão que comer. Providenciarei uma cesta com almoço para os teus irmãos, que todos os dias será entregue em casa de tua mãe. Diante daquela promessa, que se cumpriu, eu acedi a sentar-me à mesa e comer uma bela refeição, como eu nunca antes tivera saboreado. Estava feliz, pois, naquela hora, meus irmãos estavam também a ser alimentados, tal como eu. A partir daquele dia, tudo foi melhor para nós, pois a alimentação estava garantida. Não entendia muito bem o que se passava comigo, uma voz muito íntima dizia-me que nunca tivesse medo, pois não estava sozinha, que sempre os problemas, por maiores que fossem, teriam solução e término. Essa voz interior tornava-me forte, embora em termos de saúde, não sendo doente, fosse frágil. Não conseguia, por exemplo, defender-me das agressões


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das outras crianças, que sempre têm manifestações de agressividade, se não lhes dão a educação conveniente da boa e sã convivência. Essa educação, eu a tinha. A minha grande defensora era minha irmã, que não permitia que nenhum garoto me batesse, logo corria em minha defesa. Até hoje, esta lição ficou registada em minha memória e, sempre que a recordo, emito para minha prima rica um pensamento de gratidão e peço a Deus lhe conceda Paz imensa e Luz profunda em sua ascensão espiritual. Eu não podia, em minha consciência de menina de sete anos, saciar minha fome, quando em casa não havia que dar de comer aos mais pequeninos. Havia que ser solidária e, neste caso, era eu não tomar o alimento que me era ofertado. Era o exemplo que via em meus pais. O egoísmo não tinha morada em nossa família. E religião, não havia ali, não! Só mais tarde...

2 A Viagem “Levai as cargas uns dos outros, e assim cumprireis a Lei de Cristo” Paulo (Gálatas, 6:2) Certo dia, nossa mãe informou-nos de que tínhamos de ir embora dali para muito longe, onde nosso pai estava. Colhi a notícia, nos meus oito anos de vida, com estranha alegria e tristeza também. Eram dois sentimentos que não combinavam, mas a alegria, era porque ia estar de novo com meu pai; a tristeza era porque ia deixar para trás meus amiguinhos e os locais de minha vida tão recente, e a prima rica que me acarinhava e dava os docinhos que não podíamos comprar. Lembro-me de que olhava tristemente pela janela, quando fazia a viagem de autocarro até Lisboa, para embarcar, via as árvores correrem ao longo da estrada e pensava: - Eu nunca vi as árvores a correr! Que coisa engraçada! Não compreendia ainda que era o autocarro que corria estrada fora, galgando quilómetros. Esta imagem, registo-a até hoje. E chorava, baixinho, para minha mãe não ouvir.

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