Prefácio à edição portuguesa de o livro dos espíritos dos tradutores

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Prefácio dos tradutores Esta nova tradução de O Livro dos Espíritos, da autoria de Hipólito Leão Denisard Rivail, sob o pseudónimo de Allan Kardec, foi feita pelos abaixoassinados diretamente da língua francesa, conforme a segunda edição original de 1860, de modo a torná-lo acessível a todas as pessoas que falam a língua portuguesa dos dias de hoje, isto é, do ano de 2017. Destina-se tanto a leitores espíritas como não espíritas, tendo sido este prefácio especialmente redigido para pessoas não espíritas, dando a conhecer as condições essenciais para aceder à mensagem da obra e aos seus ensinamentos. Além da renovação linguística, esta versão do livro contém algumas dezenas de comentários de contextualização cultural, publicadas no fim do mesmo e designadas como “Notas finais”. Têm a finalidade de esclarecer certas palavras e ideias que se encontram deslocadas ou desatualizadas, devido à antiguidade histórica do escrito original. O espiritismo falado em português de Portugal Tendo procurado traduções de acordo com o português de Portugal dos dias de hoje, só encontrámos versões revistas para português, mas visivelmente subsidiárias das antigas traduções brasileiras, com todas as respetivas características. Pensamos que não é prestigiante para os espíritas portugueses terem deixado passar tanto tempo sem afirmar uma desejável autonomia cultural, que tivesse realizado a tradução completa de todos os trabalhos de Allan Kardec, incluindo a Revista Espírita, que teriam ganho, junto dos utilizadores da esplêndida língua portuguesa, mais vigor e trato familiar. Carácter da obra e suas qualidades essenciais

O Livro dos Espíritos trata de assuntos de índole universal, cujo conhecimento é indispensável a todos os seres humanos conscientes do seu devir ontológico.


O Livro dos Espíritos fornece informações concretas e baseadas em factos, explicando de onde viemos antes de nascer e para onde vamos depois da morte, bastando uma consulta cuidadosa ao índice para ter uma ideia dos seus conteúdos científico-filosóficos e bem assim dos seus objetivos morais. Pormenoriza a natureza e o significado de fenómenos de todos os dias, dos mais simples aos mais complexos, e qual a atitude mais recomendável para enfrentá-los. Esclarece-nos acerca da alegria, da tristeza, da saúde e das enfermidades, da razão de existirem ricos e pobres e por que razão há pessoas que nascem belas, inteligentes e afortunadas e há outras que nascem com dificuldades, tristezas e até desfiguradas fisicamente. O Livro dos Espíritos fala com profundidade do bem e do mal, ajudandonos a compreender a sua complexidade, por vezes desconcertante. A cultura que nos apresenta tem o intuito de melhorar o entendimento do mundo e de reforçar a nossa consciência em clima de responsabilidade sem medo; não obriga ninguém a nada, não é uma religião, não configura um catecismo; apresenta uma visão otimista da vida e alarga os caminhos que conduzem à paz dos indivíduos e da sociedade no seu conjunto. [1 – O espiritismo é uma religião?] (NOTA: esta numeração passa a ser inscrita em certos pontos do texto e diz respeito às "Notas finais" de contextualização cultural, que convirá fazer o favor de ir consultando.) Sugestões para a leitura de O Livro dos Espíritos: Para quem começa, este não é um livro para ler de empreitada, como uma peregrinação e, muito menos, como uma penitência. O livro propriamente dito só começa depois de toda a complicada “Introdução” e vem a seguir a um pequeno texto chamado “Prolegómenos”, palavra que quer dizer: “introdução” ou “noções preliminares de uma obra ou de uma ciência”. O leitor deve ter a liberdade de procurar inicialmente no livro o que mais lhe interessar, lendo por aqui e por ali os temas mais apetecíveis. Poderá, para esse efeito, consultar primeiramente o Índice. Leia e releia com atenção o que achar mais válido e interessante. Se não estiver de acordo com o que está explicado em certo ponto, tenha a coragem de prosseguir. Adie as certezas difíceis de atingir com facilidade imediata, para que a longa jornada da vida possa abrir-lhe uma outra maneira


de ver as coisas que agora não alcança, mas que tanta falta lhe fazem: o sentido otimista da vida, a esperança, a serenidade e a confiança. Se quiser prosseguir desse modo, é nossa convicta opinião que a leitura deste livro poderá ser um precioso auxiliar para atingir esses objetivos. Não se pode esperar que a vida e o mundo, a natureza e todo o Universo sejam de entendimento imediato e fácil. Deve, pois, continuar a explorar, mais na atitude de quem estuda do que na atitude de quem lê por simples curiosidade. O leitor que queira aprender realmente deve estar preparado para relacionar diversas partes do livro entre si, tentando encontrar relações coerentes entre os diversos ensinamentos. Só depois de ter feito estas explorações iniciais com todo o interesse e vontade valerá a pena ler o livro de uma assentada, ou passar, em alternativa favorável, à leitura de todos os escritos de Allan Kardec, incluindo o formidável conjunto da Revista Espírita, também publicada em vida pelo seu autor. Requisitos essenciais para entender o livro e a origem dos seus ensinamentos Sendo muito difícil avaliar a complexidade extraordinária do Universo e configurar com facilidade o significado da vida e da morte, há pessoas que desistem de compreender o significado da vida como projeto coerente, justo e generoso. A ciência de observação baseada no estudo dos fenómenos espirituais, associada à enorme coerência de tudo o que nos rodeia desde o átomo às estrelas permite, pelo contrário, concluir que nada acontece de forma gratuita ou casual. A par dessa conclusão fortemente documentável, todos nós necessitamos de construir reservas de convicção e de energia que nos auxiliem a vencer os obstáculos com êxito, podendo, desejavelmente, ajudar quem nos rodeia, familiares, amigos e a sociedade, com vista ao progresso, à felicidade, à verdade e à justiça, tais como se encontram fielmente configurados pelo conhecimento espírita. A conclusão contrária de que o mundo e a vida resultam de acasos sem nexo, sem origem nem destino perfeitamente harmonizados, é uma desistência negligente que conduz à desmoralização, à dureza e ao medo. As provas da coerência do plano das vidas e da natureza são tão volumosas e eloquentes, estão aqui tão próximas de cada um de nós, que não será necessário gastarmos muito tempo argumentando em seu favor. Os que ainda


não atingiram esta ideia comecem a prestar atenção: ler O Livro dos Espíritos pode ser um bom começo. Pensamos, portanto, de forma inabalável, que tudo o que existe deriva de uma inteligência suprema criadora de todas as coisas. Fiquemos agora apenas por essa expressão, à qual não é necessário dar nome. É mais um sentimento que uma ideia definida que reside no íntimo intuitivo da sensibilidade. Deixemos que ela permaneça aí, onde melhor se compreende e onde mais perto está de tudo o que somos. Quanto ao leitor que ainda duvida, esperamos com toda a convicção que nos encontre mais tarde, comungando da mesma fé que nos anima, com esperança e vontade esclarecida, harmonia e paz no coração. A criação magnânima da vontade superior que nos trouxe aqui não tem pressa. A jornada, que começou não se sabe onde nem como, continuará a desenvolver-se por todo o sempre. Tenhamos, pois, a serenidade que corresponde a esse devir sem limites nem fronteiras. Como parte mais técnica e prática, sem cujo entendimento é impossível avançar para a leitura, é favor considerar o seguinte: apesar de dotados de importantíssimo património de capacidades orgânicas e racionais, os seres humanos entendem o Universo com ferramentas muito modestas e limitadas. Os nossos cinco sentidos, a vista, o ouvido, o olfato, o paladar e o tato, deixamnos a distâncias inimagináveis da realidade das coisas concretas, do mais perto ao mais longínquo, do mais pequeno ao infinitamente grande. Tudo o que existe é muito mais do que podemos entender com essas limitadas ferramentas sensoriais, por muito completas e exigentes que sejam a nossa imaginação e a nossa inteligência. No Universo (ou nos Universos?...) é muito mais aquilo que não se vê e não se entende, do que aquilo que se percebe e se sente com a vista e com o entendimento. A espantosa marcha da ciência tem dado passos de gigante ao tentar aproximar-se dessa enormidade de segredos. Mas quanto mais avança, mais profunda é a noção das coisas ignoradas. Teremos que regressar ao grande Sócrates e à ideia que lhe conferiu a categoria do homem mais sábio de toda a Grécia: aquele que tinha a noção máxima de tudo o que desconhecia. Existimos, pois, antes de nascermos neste mundo, num outro plano de que não temos conhecimento, no qual continuaremos a existir depois de falecido o corpo que nos serve de veículo existencial. O nascimento e a morte, portanto,


não são o começo e o fim de tudo, e esse é um dos ensinamentos fundamentais de O Livro dos Espíritos . Para confirmar factualmente essa realidade são conhecidas fontes de informação, de cuja existência há provas abundantes, que estão documentadas ao longo de toda a existência da Humanidade. Ora vejamos. A mediunidade e a troca direta de informações entre o mundo dos vivos e o dos mortos

Havendo pessoas especialmente dotadas com mais um do que os normalíssimos cinco sentidos, têm por isso a capacidade, incompreensível para a maioria, de poderem sentir, ver e até dar voz às entidades espirituais que, depois da vida material, passam a existir no plano a que chamamos “mundo espiritual”. Essa capacidade, esse sentido raro, chama-se “mediunidade”, porque são chamados “médiuns” os que a possuem. Medium é uma palavra latina que significa “meio”, e que serve para designar o “intermediário” ou “tradutor” das inumeráveis mensagens que têm sido trocadas entre os dois planos da existência, de forma que pode ser comprovada pela realidade dos factos. A mediunidade é muito mais abundante do que se julga, tem graus de operacionalidade e modalidades muito diversas e já foi estudada em meio científico por diversas autoridades isentas e da maior competência, para além de se tornar evidente para qualquer pessoa que dela tenha o conhecimento direto. “Mundo material” é o nosso, o do corpo físico que conhecemos, o mundo das coisas que vemos e palpamos à nossa volta. O “mundo espiritual” é o mundo que não vemos, mas que se faz sentir poderosamente, porque é nele que existimos antes e iremos existir depois, por toda a eternidade. Os contactos entre o “mundo material” e o “mundo espiritual” são contínuos e realizam-se de diversas formas desde há uma imensidade de anos. O autor de O Livro dos Espíritos , Hipólito Leão Denisard Rivail, aliás Allan Kardec, organizou e sistematizou de modo filosófico um grande conjunto de apontamentos tirados de conversas tidas, ao longo de anos, entre pessoas vivas e entidades espirituais, que puderam “conversar” normalissimamente por intermédio de médiuns. Esse trabalho foi desenvolvido em França, em meados do século dezanove. O autor referido designou essa cultura como sendo: “o espiritismo, ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como das suas relações com o mundo corporal".


É destas conversas, e dos comentários feitos pelo autor da obra a respeito das ideias por ele organizadas, que é feito O Livro dos Espíritos . Segundo as conclusões seguras a que o “espiritismo” chegou, todos nós somos Espíritos, temporariamente ocupados por um breve intervalo de aprendizagens e experiências diversas através da vida no nosso corpo material. Depois regressaremos, em paz e na maior das liberdades, ao nosso estado natural e mais permanente de Espíritos. Não se esqueçam: com letra maiúscula, por todas as razões mais nobres e mais válidas. Notas breves sobre o método de tradução que seguimos Sendo o francês e o português línguas da mesma família latina, tivemos a preocupação de fugir ao critério erróneo da “tradução à letra”, respeitando o fundo e não a forma das palavras do grande livro, tal como os ensinamentos nele contidos recomendam. O autor teve o intuito de escrever um livro que fosse acessível a todos os leitores da sua época. Sabemos, contudo, as profundas modificações que registaram, entretanto, todas as técnicas de comunicação. A frase mais curta, a economia de recursos de carácter retórico e enfático, a simplificação dos tempos verbais e muitos outros meios, foram usados por nós para facilitar a aproximação aos leitores, respeitando, entretanto, o carácter próprio que foi conferido à obra pelo seu autor. Sabendo que as palavras têm alma, usámos uma estrutura lexical coerente com o carácter filosófico e moral da obra, no contexto da sua visão otimista da magnânima Obra da Criação e do glorioso destino da Humanidade. Para além das versões em português, procurámos esclarecer muitos dos seus aspetos através de traduções noutras línguas e da pesquisa de outras obras do mesmo autor. Consultámos, por exemplo, a tradução em castelhano de Alberto Giordano, publicada na Argentina em 1970 e influenciada pela que foi feita pelo professor brasileiro José Herculano Pires, que também analisámos com cuidado; e a excelente tradução em língua inglesa da autoria da jornalista Anna Blackwell, profunda conhecedora da cultura espírita, que foi contemporânea e amiga da família Rivail durante o tempo que viveu em Paris. A edição de que nos servimos tinha por intuito revelar a obra de Allan Kardec no universo cultural anglo-saxónico e foi publicada em Boston em 1893, mas o prefácio da autora está assinado de 1875, em Paris. Também lemos as conhecidíssimas traduções de Guillón Ribeiro, a seu


tempo dirigente da Federação Espírita Brasileira que, quando pelas primeiras vezes nos vieram à mão, desde logo despertaram em nós a determinação de fazer uma tradução para português de Portugal dos nossos dias. Com o devido respeito por esse trabalho, não foi o modelo que procurámos seguir, por razões muito concretas, mas que não é oportuno detalhar nesta breve apresentação.

Hipólito Leão Denisard Rivail, o fundador do espiritismo

O fecho de honra da apresentação de O Livro dos Espíritos aparece ao fim deste prefácio dos tradutores, em obediência ao princípio consagrado de que os últimos serão os primeiros. Não se trata apenas de uma vénia artificial de sentido estratégico, visto que o respeito que nos merece a obra articula-se intimamente com o respeito pela categoria humana do seu autor. Esclarecemos que a grafia do seu nome traduzido é a que inscrevemos acima, por estar mais perto do português, escrevendo Denisard com “s”, como está na sua certidão de nascimento. Hipólito Leão começou a interessar-se pelo tema que iria tratar de forma tão brilhante e generosa numa posição distanciada de qualquer crença, outrossim cuidadosamente positivista e até cautelosamente cético, numa idade de plena maturidade, apenas por ter sido insistentemente convidado por amigos para esse efeito.


O trabalho, que começou aos 55 anos de idade (numa época em que a esperança de vida era muito inferior à da atualidade), foi levado a cabo com dedicação total, mediante um esforço hercúleo, sem medida, que de certa forma o conduziu ao desenlace da sua vida. Convém referir que o modelo expositivo que serve à estruturação de O Livro dos Espíritos, desenvolvido nas restantes obras de Allan Kardec, obedece ao formato que durante os séculos XVIII e XIX constituía os princípios da exposição científica clássica, definindo ordenadamente:

1.º - A escolha do objeto de estudo, que se conclui ser O ESPÍRITO, tratado no LIVRO PRIMEIRO (As Causas Primárias); 2.º - A análise do objeto de estudo, ou seja, a consideração e avaliação de toda a fenomenologia que constitui a sua razão de ser, que é tratada no LIVRO SEGUNDO (O Mundo Espírita ou dos Espíritos); 3.º - O estabelecimento das leis que regulam esse conjunto ou tipo de fenómenos, que é feito no LIVRO TERCEIRO (sobre as Leis Morais); 4.º - A dedução das consequências da aplicação dessas leis, que é feita no LIVRO QUARTO (sobre as Esperanças e Consolações). O critério de Hipólito Leão, em todo o imenso e generoso trabalho que efetuou, nunca foi o de se promover pessoalmente à condição de dirigente ou autoridade ideológica e muito menos religiosa. A metodologia utilizada para a estruturação do “corpus” de informações e saberes científico-filosóficos que levou a cabo foi isenta de segundos sentidos de proveito pessoal ou institucional. O professor Hipólito Rivail desaconselhou os grandes coletivos espíritas Obedecendo a critérios que foi enunciando em diversas intervenções, nunca favoreceu o agrupamento de grande número de adeptos em instituições federativas, as quais de antemão declarou perniciosas, por facilitarem a arquitetura do poder e a manipulação das consciências. Toda a realidade que se seguiu ao seu falecimento, quer em França, quer no estrangeiro, deu plena razão às previsões e avisos que formulou em muitas das suas intervenções. Os pequenos grupos de cidadãos, harmonicamente associados numa convivência produtiva de pensamento claro e de reta consciência, na obediência da razão crítica e do diálogo construtivo, foram o modelo mais claramente por si recomendado para constituir a sociedade espírita.


[2− Allan Kardec e a organização do espiritismo] Em síntese, fique esclarecido que a obra traduzida e a filosofia que encerra oferecem uma visão otimista da vida, liberta de dogmatismo, verdadeiramente emancipadora da Humanidade e produtora de paz, na igualdade entre todos os seres humanos. Consideramos ainda que O Livro dos Espíritos defende com o máximo respeito a integridade ecológica do planeta que habitamos, o direito à dignidade, à justiça e à máxima felicidade de todos os seres que nele habitam. A característica essencial desta tradução, que sugere a passagem de toda a obra de Kardec para o português de Portugal/2017, num clima cultural aberto, é propor o regresso metódico a uma obra muito conhecida pelo seu nome, mas escassamente debatida; abrindo o seu acesso, se possível, a novos públicos e a jovens inquietos pelo grande mistério da sua origem e do seu destino. Acentuamos que os comentários anexos, que irão ser substancialmente reforçados em futuras edições, são apenas uma breve incursão no domínio de um debate de ideias que gostaríamos de ver partilhado e enriquecido pelo maior número de leitores, espíritas e não espíritas.

O destino adequado para O Livro dos Espíritos não é permanecer imóvel, como peça sacralizada de ideias petrificadas. Julgamos que deve ser entendido por todos os seus leitores de antes, de agora e do futuro, como uma obra energicamente VIVA e justificadamente ABERTA. Com os melhores votos de feliz e proveitosa leitura José da Costa Brites e Maria da Conceição Brites

Agradecimento Queremos manifestar o nosso encarecido agradecimento a Noémia Guerra Margarido, muito dedicada estudiosa e divulgadora da cultura espírita, ativa na ASEB de Braga em múltiplas atividades, pela generosa atenção com que leu o nosso trabalho e nos aconselhou na difícil tarefa da sua revisão. JCB/MCB


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