Reabi(li)tar Edifícios Abandonados - Proposta para a Praça da Estação em Juiz de Fora, MG

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aa Proposta par

Marina Lima Carrara . 2015



Universidade Federal de Juiz de Fora Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

Marina Lima Carrara

REABI(LI)TAR EDIFÍCIOS ABANDONADOS: Proposta para a Praça da Estação em Juiz de Fora

Monografia apresentada ao curso de Arquitetura e Urbanismo, da Faculdade de Engenharia, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para conclusão da disciplina Trabalho Final de Graduação I. Orientador: Arq. e Urb./Prof. M. Sc Mauro Santoro Campello

Juiz de Fora 07 / 2015 II


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Dedicatória Dedico este trabalho à minha família, em especial meus pais, Angelo e Cecília, pоr acreditarem е investirem еm mim, e aоs meus amigos, que me ajudaram a crescer e a construir esse trabalho. IV


Agradecimentos

A minha família pelo apoio, amor e encorajamento. Aos meus amigos, que nunca me deixaram na mão e foram essenciais nas horas de desânimo e cansaço, me ajudando a seguir em frente e a renovar as forças entre um parágrafo e outro. À Instituição, pelo ambiente criativo e amigável que tanto contribuiu para a minha formação pessoal e acadêmica. Aos meus professores, que ao longo desses anos todos, estiveram presentes e contribuíram decisivamente para a construção dos conhecimentos que levarei daqui pra frente. Ao professor M. Sc. Mauro Santoro Campello, pelo trabalho de orientação, que me deu confiança durante os momentos de dúvida através de apoio, paciência e estímulo. Obrigada por ter aceitado fazer parte desse projeto.

V


O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. CALVINO. VI


Resumo

O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre as questões referentes à produção e utilização do espaço das cidades, culminando em uma proposta de intervenção para uma área pertencente ao centro da cidade de Juiz de Fora. No local em questão, referente ao perímetro delimitado pela Praça da Estação e seu entorno próximo, ocorreu a queda das atividades e a desvalorização da área, possuindo hoje espaços ociosos com grande potencialidade de reaproveitamento. Propõe-se utilizar esses espaços de reserva econômica voltando-se para o cumprimento das funções sociais da propriedade em um desenvolvimento mais sustentável. Portanto, “habitar” aqui insere-se num sentido mais amplo, significando não só o assentamento de moradias, mas também a consolidação de usos diversos que favoreçam a permanência equilibrada e a manutenção da vida e dinamismo da área. Este trabalho é dividido em três partes: na primeira, são apresentados os referenciais teóricos que embasam o restante da proposta, tendo em conta que a gestão das cidades é bastante complexa e envolve temas diversos. No segundo tópico, são feitas as sínteses que servirão para propulsionar o terceiro e último, que se trata da proposta projetual para Juiz de Fora.

Palavras-chave Urbanismo. Função social da propriedade. Reabilitação de zonas centrais. Patrimônio cultural.

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Sumário

Introdução.........................................................................................................................01 1. Referenciais teóricos...................................................................................................06 1.1. Sobre a cidade: forças de formação e deformação...................................................06 1.2. A cidade e a utopia: histórico das intervenções urbanas..........................................09 1.3. O patrimônio cultural e a democratização do espaço urbano...................................27 1.4. Recíproca entre direito urbano e cultura....................................................................36 2. Cidade como bem social.............................................................................................42 2.1. Construção social do lugar.........................................................................................42 2.2. O lixo insustentável e a reciclagem da cidade...........................................................51 3. Forças de degradação e recuperação.......................................................................61 3.1. Uma interpretação da história de Juiz de Fora..........................................................61 3.2. A olho nu.....................................................................................................................76 Considerações finais.......................................................................................................90 Bibliografia........................................................................................................................94

VIII


Introdução

O urbanismo brasileiro vem enfrentando, ao longo das últimas décadas, grandes desafios referentes à conformação do espaço urbano. O espaço construído é frequentemente palco de fenômenos urbanos controversos, e torna-se necessário cada vez mais nos atentarmos para esses processos de modo a tentar combater as desigualdades nas cidades, que são, por definição, espaços coletivos multiculturais e formadores de identidade. Para conseguirmos conhecer e intervir no espaço urbano de maneira consciente, se faz necessário investigarmos com atenção o mundo real, para que tenhamos uma melhor chance de conseguir decifrar o comportamento aparentemente caótico das cidades. O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre as questões referentes à produção e utilização do espaço das cidades, culminando em uma proposta de intervenção para uma área pertencente ao centro da cidade de Juiz de Fora. Nesta cidade, diferentemente do que aconteceu em outras, cujos centros históricos se tornaram decadentes e esvaziados pela migração para novas áreas, há uma visível concentração e valorização da área central, sendo o centro original da cidade o atual pólo de integração, encontro e dinamismo. Apesar de toda essa vida urbana experimentada, é perceptível um processo de degradação em boa parte da região central. A área em questão, referente ao perímetro delimitado pela Praça da Estação e seu entorno próximo, principalmente as ruas Marechal Deodoro, Halfeld e Avenida Francisco Bernardino, foi fruto do período de implantação de ferrovias na cidade de Juiz de Fora. Devido à queda das atividades e a desvalorização da área, os moradores e serviços das antigas habitações da Praça foram embora, deixando para trás espaços ociosos com grande potencialidade de reaproveitamento. O trabalho justifica-se a partir da defesa de que é necessário que a cidade tenha um coração central forte e abrangente1 capaz de gerar um complexo social, cultural e econômico. A presença de lugares despersonalizados na região central é danosa para 1

JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades, 1961, p.181.


um pleno funcionamento da cidade, e para evitar esse problema, deve-se viabilizar a reforma de imóveis, destinando construções que, vazias, oneram o setor público, degradam o espaço urbano, e não cumprem sua função social. Este trabalho é dividido em três partes: na primeira, são apresentados os referenciais teóricos que embasam o restante do trabalho, tendo em conta que a gestão das cidades é bastante complexa e envolve temas diversos. No segundo tópico, são feitas as sínteses que servirão para propulsionar o terceiro e último, que se trata da proposta projetual para um recorte da área central da área de Juiz de Fora. Em relação à primeira parte, que foca nas questões relativas ao estudo das cidades, se fez necessário, inicialmente, explicar as origens do planejamento urbano e suas repercussões, de modo a tentarmos apreender quais foram as resultantes desses processos e seus reflexos nos dias de hoje. Refletir sobre essas ideias torna-se imperativo para o planejador urbano, tendo em vista que frequentemente as defendemos sem questionamento prévio. O desenvolvimento dessa parte se deu seguindo o raciocínio de Peter Hall (1988), que defende que o planejamento urbano do século XX se iniciou a partir de uma reação contra os problemas do século XIX, sendo que nesse processo surgiram umas poucas ideias chaves que foram sendo recicladas com roupagens diferentes ao longo do tempo. Os problemas referidos pelo autor originaram-se a partir das tensões sociais e políticas relacionadas aos cortiços na Londres de 1880, e, ao longo do século seguinte, desdobraram-se em muitas outras questões. Para a realização de tal análise, foram encadeadas as ideias principais (e os indivíduos responsáveis por elas) que influenciaram de maneira permanente a conformação da teoria urbanística aceita e aplicada no meio acadêmico e pelos poderes políticos nas cidades. São elas: a “Cidade-Jardim” de Ebenezer Howard e dos “descentralizadores”; a “Ville Radieuse” de Le Corbusier; e o movimento “City Beautiful”, de Daniel Burnham. Investiga-se, também, o processo de suburbanização e do esvaziamento do centro das cidades nos pós-guerra, o que gerou uma série de iniciativas políticas e planos de “renovação urbana” que foram alvo de controversa. Tais planos, influenciados em definitivo pelas ideias-base do planejamento urbano, consideravam a cidade em caráter despersonalizado e reduzida a questões simplistas, em uma tentativa de decompor o espaço urbano e instaurar uma pretensa ordem simplificadora para ordenar as cidades. Isso gerou um crescente descontentamento por parte das pessoas, 2


demonstrando como um planejamento despersonalizado, monótono e impositivo é maléfico para as pessoas. Nos anos 60, portanto, observava-se um abismo entre as reais necessidades das comunidades e as atuações políticas, não ocorrendo uma integração entre as esferas de poder e os habitantes das cidades. Em oposição à excessiva tecnocracia implantada, surge um conjunto de conceitos que parecem ser formas de resposta mais coerentes a possibilidades de atuação nos dias de hoje, como informalidade, dinamismo, e participação popular. Logo em seguida, é feita uma análise sobre a ampliação do pensamento relativo ao patrimônio cultural e a democratização do espaço urbano, que se deu em conjunto com a evolução da visão do conceito de cidade. Para este fim, utilizaram-se Cartas Patrimoniais, documentos que, embora destituídos de valor legal dentro do ordenamento jurídico brasileiro, tornam-se referência para os órgãos legais e profissionais da área, na medida em que são decorrentes de discussões globalizadas e possuem textos em caráter de recomendação. Demonstra-se que a ampliação dos conceitos referentes ao patrimônio, documentadas pelas Cartas, acompanha reciprocamente uma nova visão sobre as cidades. A história é vista agora como sendo construída diariamente pela sociedade (defendendo-se a participação dos cidadãos em meio a essas questões), e o bem patrimonial é considerado como um conjunto de ações humanas produzidas por um grupo social de determinada cultura. Por fim, o final da primeira parte da monografia trata das questões referentes ao direito à cidade:

considerando que cultura e cidade são conceitos que caminham

juntos, indissociáveis, a cultura apresenta-se como componente intrínseco e estratégico no sistema de gestão urbana, sendo as cidades objetos e representações do Direito numa relação dialética. A cidade, produção do homem e efeito do gerenciamento coletivo é, por excelência, a cultura materializada. As diretrizes do Direito urbanístico, na contemporaneidade, devem promover a participação democrática da sociedade na governança da cidade, visando neutralizar as forças antagônicas que priorizam segmentos específicos em detrimento da coletividade. Para isso, serão abordadas as definições de “direito de propriedade”, “direito de construir“ e “função social de propriedade”. Entendendo-se que a cultura mantem e alimenta uma intrincada cadeia de relações e interesses da qual participa uma diversidade de agentes, registra-se, nessa parte do texto, os atores governamentais,

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econômicos e sociais que se projetam na cidade, presentes nas esferas do Estado, mercado e sociedade. Na segunda parte do trabalho, que trata da defesa da visão da cidade como bem social,

são

realizadas algumas conclusões sobre

as

premissas analisadas

anteriormente e é indicado o caminho a ser traçado no desenvolvimento da proposta projetual. Após o raciocínio apresentado, fica claro que o planejamento do espaço através de modelos impositivos e rígidos, desconsiderando a cultura local e as relações próprias de uma localidade, não é uma alternativa razoável para a solução das questões urbanas. A Constituição de 1988 representou uma mudança grande de paradigmas, sobretudo no tocante à propriedade. A cidade é considerada em si mesma um bem social, e a função social da propriedade deve ser o princípio ordenador da atividade urbanística. Frente à dinâmica urbana capitalista, os argumentos culturais e históricos sozinhos não bastam: o planejador urbano deve possuir as habilidades necessárias para articular negociações em todos os níveis do processo de desenvolvimento urbano. Dentro desse raciocínio, para que haja uma boa relação entre o Poder Público, o mercado e a sociedade, em uma perspectiva de planejamento integrado, diverso e saudável, deve-se considerar as necessidades de cada segmento em específico para então tentar compatibilizá-las com as demais. Em concordância com a análise de Jane Jacobs (1961), também defende-se a importância dos edifícios antigos para a cidade, que conseguem equilibrar as forças de valoração das áreas urbanas ao mesmo tempo em que geram diversidade. No último tópico da segunda parte, fala-se sobre o processo de reciclagem das cidades e dos produtos, fruto de um processo contemporâneo em que os conceitos de descartável e reciclável constituem sinal de crédito social. O excedente é visto como representativo de riqueza, e artefatos e objetos são concebidos desde sua origem para o descarte e a reciclagem, já sendo pré-concebidos como lixo. Os produtos tendem a se despersonificar cada vez mais, dentro de uma estratégia da indústria para evitar o apego e estimular cada vez mais a rede de consumo, o que também se reflete nas arquiteturas e nos espaços urbanos atuais. A arquitetura criada no presente, dentro dos princípios dos ciclos do capital e da moda, cada vez mais se assemelha em qualquer lugar do mundo, se tornando uniforme, homogênea, repetitiva e neutra cultural e esteticamente. 4


Não se aspira, como esse trabalho, se filiar às forças contraditórias que conformam o espaço físico das cidades de acordo com esses preceitos, ou seja, não é desejável para os objetivos aqui traçados contribuir para a manutenção desse ciclo do incessantemente descartável. Rejeita-se, portanto, a palavra “reciclagem” para a presente proposta de intervenção, tendo em vista a conotação ambígua que a palavra carrega. É feita, para esse fim, uma análise das expressões iniciadas pelo prefixo “re”, que são utilizadas em várias definições terminológicas referentes a preexistências. Adotou-se o termo “reabilitação” no título e na intervenção que se propõe com o presente trabalho, em alinhamento com as definições estabelecidas pelo Ministério das Cidades em relação ao “Programa de Reabilitação Urbana”. Para a instituição, reabilitar um centro urbano significa recompor suas atividades e vocações, habilitando novamente o espaço para o exercício das múltiplas funções urbanas historicamente localizadas naquela área, não excluindo a implementação de usos e funções novas que sejam compatíveis com a identidade do centro. Desta maneira, há um movimento para que haja o desenvolvimento de uma prática urbana com responsabilidade social, numa tentativa de reverter o processo de exclusão socioterritorial. Por fim, na terceira parte do trabalho, é feita uma interpretação da história de Juiz de Fora, explicitando os processos históricos e socioeconômicos que impulsionaram o desenvolvimento e a conformação espacial da cidade, bem como as relações entre a formação do espaço e os diferentes agentes conformadores do tecido urbano. A morfologia de Juiz de Fora esteve, desde o princípio, atrelada a poderes que foram moldando a cidade e caracterizando as suas especificidades urbanas, a partir da criação de alguns eixos (ou caminhos) fundamentais para sua formação e transformação. Explicitam-se, também, as relações referentes à Praça da Estação e entorno próximo, de modo a compreender a configuração atual da área. A partir disso, são elaboradas as análises que irão nortear a proposta de intervenção, utilizando-se os processos analíticos propostos por Aldo Rossi (1966) e Kevin Lynch (1966), que consideram a imagem da cidade um emaranhado complexo e profundo. Conclui-se que a Praça, área escolhida para a proposta projetual, é singular e parte indissociável do tecido urbano de Juiz de Fora, apresentando, todavia, algumas dificuldades no que diz respeito ao cumprimento de sua potencialidade total. As construções presentes no local, que é dinâmico e vital, em parte estão à 5


margem das relações que ocorrem no centro, sendo necessário reinseri-las no processo de evolução da cidade de maneira cuidadosa. Há uma significativa quantidade de edificações na Praça que são utilizadas apenas em seus pavimentos térreos para uso comercial, ficando os pavimentos superiores sem uso. Com a queda das atividades e a desvalorização dessa área, os moradores (e serviços) das antigas habitações da praça foram embora, deixando espaços ociosos com grande potencialidade de reaproveitamento. O desafio é tentar utilizar esses espaços de reserva econômica de modo a propulsionar o sucesso da área, voltando-se para o cumprimento das funções sociais da propriedade. Ao dinamizar áreas centrais já consolidadas, busca-se reduzir a segregação social e espacial, assim como melhorar as possibilidades de integração de diversas parcelas da população à economia e à vida urbana. O título desse trabalho pressupõe a inserção do uso residencial no processo de intervenção proposto para a Praça da Estação em Juiz de Fora. A promoção de habitações no centro contribui para reduzir a pressão pela expansão de fronteiras urbanas e o adensamento excessivo de bairros periféricos. Repovoando o centro das cidades e aproveitando o estoque existente, ao mesmo tempo controla-se a expansão da mancha urbanizada e recupera-se a potencialidade da área, em um desenvolvimento mais sustentável. Portanto, “habitar” aqui insere-se num sentido mais amplo, significando não só o assentamento de moradias, mas também a consolidação de usos diversos que favoreçam a permanência equilibrada e a manutenção da vida e dinamismo da área.

1. Referenciais teóricos

1.1. Sobre a cidade: forças de formação e deformação Viajando percebe-se que as diferenças desaparecem: uma cidade vai se tornando parecida com todas as cidades, os lugares alternam formas ordens distâncias, uma poeira informe invade os continentes. O seu atlas mantém intatas as diferenças: a multiplicidade de qualidades que são como as letras dos nomes. (CALVINO, 1972, p.125)

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As cidades, espaços em constante construção, são áreas cada vez mais conformadas pela dinâmica das regras do capital e da cultura especulativa. Em termos de construção e planejamento urbano, elas têm se comportado como um grande laboratório de tentativa e erro. O capital, indispensável para a gerência de uma cidade (e catalizador de mudanças drásticas) tem o poder de contribuir para o seu fracasso ou seu sucesso, podendo gerar vida ou decadência em uma localidade – a disponibilidade de capital ou não, por si só, não é o que garante boas ou más políticas urbanas, mas sim como ele se torna disponível e para qual aplicação. Decisões importantes que afetam o dia a dia dos cidadãos são tomadas, grande parte das vezes, por segmentos que se apoiam em operações lógicas e com pouca ou nenhuma relação com a realidade e o cotidiano da população. Essas manobras, que ocorrem em processos distantes (e por vezes desconhecidos) das pessoas, conforma a paisagem urbana, que, por sua vez, se torna palco de processos urbanos e sociais controversos. Se nosso objetivo enquanto cidadãos e profissionais da área de arquitetura e urbanismo for o de compreender e intervir no espaço urbano tendo conhecimento do funcionamento de tais processos, se faz necessário investigarmos o mundo real (mesmo que modestamente) para que possamos pouco a pouco decifrar o comportamento aparentemente misterioso e indomável das cidades. Uma das maneiras de se realizar isso é através da observação cuidadosa, sensível, e com baixas expectativas das cenas e acontecimentos comuns do espaço urbano, para tentar entender o que significam e quais as explicações que podem se dar para tais ações. Apesar de isso parecer uma premissa elementar, não é fácil observar as dinâmicas urbanas de perto e com a atenção devida, mas se o estudo for realizado com o cuidado necessário, pode se mostrar altamente eficaz para o planejador, o investidor e o profissional interessado. As cidades, portanto, meios ricos em experimentações, exemplos e resultados positivos e negativos de atuações de planejamento, deveriam ser aproveitadas e utilizadas plenamente como fonte de aprendizado e elaboração de teorias, ao contrário do que os especialistas da área e demais profissionais envolvidos na construção do espaço urbano têm feito: se preocupado mais com a impressão exterior e imediata do que as coisas transmitem do que com o comportamento real delas. Em grande parte das vezes, os poderes e pressões 7


conformadores do espaço urbano, ao ignorar o óbvio, ou seja, a vida real, realizam decisões absurdas e desvinculadas completamente do senso comum – tais segmentos não sabem (e/ou não tem interesse em) planejar cidades funcionais e saudáveis. Certamente a aparência das coisas e o modo como elas funcionam estão relacionados, mas não é muito benéfico focar num planejamento que considera apenas a aparência de uma cidade sem conhecer sua ordem inata e funcional, ou seja, o planejamento de como uma cidade “deveria” parecer e não como ela é. As aparências enganam, muito mais nas cidades do que em outros lugares. Sob a premissa de desenvolvimento, progresso, e melhoria da aparência de uma localidade, instauram-se pretensas ordens que menosprezam as verdadeiras lutas, vontades e opiniões dos habitantes e vivenciadores do espaço urbano. Cada vez mais nos esquecemos de que as cidades são, por excelência, espaços coletivos multiculturais e formadores de identidade, nos quais os cidadãos deveriam ter a capacidade formal de participar da construção do ambiente no qual fazem parte. Paradoxalmente, as “forças transformadoras” da cidade (ou seja, o mercado e o Poder Público) são as mesmas que mantêm seu status quo.

Figura 1: Projeto Trump Towers, 2012. Fonte: Site Operação Urbana Porto Maravilha, Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: www.portomaravilha.com.br

O arquiteto tem o duplo caráter de cidadão e potencial agente social a partir de seu trabalho como planejador (ou pelo menos deveria ter), o que gera algumas contradições instintivas: no meio acadêmico, adquirimos conhecimentos como urbanistas que parecem não proceder na vida real como alternativas válidas para um bom funcionamento da cidade, e continuamos insistindo nessas atuações sem 8


refletir sobre elas, ignorando o senso comum, o instinto do lugar, e até mesmo dados comprovados. Uma análise histórica dos processos que deram origem ao entendimento atual das cidades se fará necessária, para podermos desembaraçar algumas das confusões que, com razão, circundam em nossas cabeças. Espera-se que assim teremos capacidade de compreender a sociedade e o ambiente em que vivemos à luz de análises mais amplas, nos âmbitos histórico, sociocultural e legal.

1.2. A cidade e a utopia: histórico das intervenções urbanas Em todas as épocas, alguém, vendo Fedora tal como era, havia imaginado um modo de transformá-la na cidade ideal, mas enquanto construía o seu modelo em miniatura, Fedora já não era mais a mesma de antes e o que até ontem havia sido um possível futuro hoje não passava de um brinquedo numa esfera de vidro. (CALVINO, 1972, p.32)

O planejamento das cidades funde-se quase imperceptivelmente com os problemas das cidades, que, por sua vez, relacionam-se com as questões socioeconômicas, políticas e culturais de uma (ou várias) épocas. Alguns fatos históricos tendem a desobedecer uma sequência cronológica nítida, o que justifica algumas voltas que serão dadas em torno do tema central desse trabalho. “O planejamento urbano no século XX, como movimento intelectual e profissional, representa essencialmente uma reação contra os males produzidos pela cidade do século XIX [e no] planejamento urbano do século XX não há nada mais do que umas poucas ideias-chave, e que estas só fazem reecoar, reciclar-se, reconectar-se” (HALL, 1988, p. 9). Essas afirmações, que não são tão óbvias quanto possam parecer, são importantes na medida em que ajudam a explicar as origens do planejamento urbano e suas repercussões. Da primeira delas, podemos assimilar que as preocupações dos pioneiros do planejamento, no século XX, resultaram das tensões sociais e políticas e dos problemas fervilhantes dos cortiços nas cidades europeias, sentidos em grau máximo na Londres de 1880. A segunda afirmativa, referente ao século XX, declara que o planejamento urbano deste período consistiu em poucas ideias, originárias de indivíduos-chave (ou de um grupo de indivíduos) específicos, que foram os pais fundadores do “moderno” planejamento das cidades. Essas ideias, segundo a linha de pensamento sustentada por Peter Hall, foram 9


sendo retomadas com roupagens diferentes ao longo da história do século, em um processo não linear que é observável até hoje. São bem documentados e conhecidos os horrores dos problemas dos cortiços, fortemente presentes nos países industriais a partir do final do século XIX. Os cortiços eram habitações precárias de múltiplos cômodos amontoados que podiam se estender a massas de quarteirões superpovoados, em que uma enorme parcela da população, opressivamente pobre, habitava. Os indivíduos, vivendo em pobreza total, eram incapazes de mudar sua condição e ir viver em outros locais. Era habitual viver em situação de superlotação, ou seja, uma família inteira poderia ocupar um único quarto e ter que compartilhar com inúmeros outros uma única latrina, quando muito. Quando a questão começou a ser exposta, no século XIX, o problema se mostrou extremamente chocante para a sociedade de classe média e alta, inconformada com a aparente degradação moral das pessoas. Os pobres, geralmente retratados pela imprensa e pelos governos como grosseiros, animalescos, imorais e alcoólatras, eram vistos com medo pela população de classe média e alta, sendo considerados uma ameaça para a ordem da sociedade.

Figura 2: Capa da Revista Veja, edição no.1684, de 24 de janeiro de 2001. Fonte: Site Revista. Disponível em: www.veja.abril.com.br

Na visão dos políticos e encarregados das cidades nesse período, o cerne da questão era habitacional, clamando-se por uma reforma urbana urgente, o que originou políticas diversas: o “remédio” utilizado em cada país foi diferente, mas a 10


percepção do problema se manteve a mesma. Em Londres, por exemplo, para combater a “ameaça” crescente dos perigos dos cortiços, concluiu-se que as autoridades locais deveriam demolir as vastas áreas ocupadas por habitações inadequadas e realojar seus moradores, construindo novas moradias para os necessitados (a partir da instituição da Lei para a Moradia das Classes Trabalhadoras de 1885), num entendimento de que a questão da habitação era dever do Estado. Apesar da instituição da norma ter significado um avanço, pouco foi feito pelo governo londrino em primeiro momento, demorando anos para que houvesse a concretização de políticas nesse sentido. Já em Nova Iorque, a reação tomada frente aos problemas dos grandes conjuntos habitacionais (semelhantes aos dos cortiços), povoados por imigrantes pobres e população segregada econômica e racialmente, foi vista de maneira bem diferente: o problema da habitação, para eles, conectava-se a outros elementos que não de responsabilidade do Estado. Rejeitando o modelo britânico de habitação popular, deram ao empreendedor privado o poder de “encontrar” a resposta para o planejamento urbano, que passou a depender da aliança de interesses imobiliários com os cidadãos de renda média e casa própria, não tendo nada a ver com programas para realojamento do pobre. Veremos, mais a frente, como o planejamento norte-americano, em seus primórdios, foi dominado pelo Movimento City Beautiful, segregador do espaço por definição, e como isso significava planejar sem propósitos sociais.

Figura 3: Quintal de cortiços na Park Avenue em Nova Iorque por volta de 1900. Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Tenement

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Algumas considerações serão feitas a respeito das ideias e indivíduos-chave que influenciaram de maneira permanente a conformação da teoria urbanística ortodoxa, ou seja, a teoria aceita e aplicada pelo meio acadêmico e pelos poderes políticos nas cidades. Essas ideias, segundo Jacobs (1961), são tão incorporadas que a encaramos como naturais e não as questionamos, o que pode ser muito prejudicial e danoso para a cidade. Ebenezer Howard, repórter britânico da Londres do final do século XIX, se deparou com as condições precárias de vida dos pobres das cidades instalados em cortiços – ele detestava não somente os erros da cidade, mas a própria cidade. Inconformado com a situação da aglomeração de pessoas, criou um plano urbanístico que influenciou em definitivo a teoria do urbanismo até os dias de hoje: propôs a construção de um novo tipo de cidade, a Cidade-Jardim. As CidadesJardim idealizadas por Howard seriam cidadezinhas autossuficientes, com indústrias, escolas, moradias e áreas verdes

localizadas em áreas pré-

determinadas, inseridas na zona rural e rodeadas por cinturões agrícolas. Conter-seia o crescimento das cidades através de um plano, em que o conjunto da cidade e do cinturão agrícola seriam constantemente geridos pela administração pública para evitar especulações ou mudanças no uso do solo, e também impedindo o aumento da densidade (a população máxima era limitada). Desse modo, na utopia, os pobres voltariam a viver em harmonia com a natureza e a cidade. A ideia em si implicava que as pessoas deveriam obedecer ao plano maior da cidade, sem ter a possibilidade de desenvolver projetos de vida (próprios) que não fossem ao encontro do pré-determinado. O direito de possuir projetos de qualquer espécie cabia apenas ao urbanista. Foram construídas duas Cidades-Jardim na Inglaterra, Letchworth e Welwyn, e várias cidades satélite espalhadas pelo mundo baseadas em seus princípios, mas é evidente que nenhuma delas funcionou plenamente como proposto pelo idealizador. O impacto da ideia foi maior no âmbito da teoria urbana do que de fato no espaço construído. De algumas formas, Howard era contrário às cidades. Descartou, em seu plano, as características complexas e multifacetadas da vida cultural dos centros urbanos, as trocas de ideias e participação: selecionou e separou usos dentro da cidade; definiu as características físicas ideais de moradia como sendo semelhantes àquelas dos subúrbios e das cidades de pequeno porte; concebeu o planejamento 12


como uma série de ações estáticas, em que deveria se salvaguardar o plano principal a qualquer custo; deu um caráter autoritário à criação e gestão do espaço urbano. Não é necessário nos esforçarmos muito para encontrarmos exemplos desse pensamento nas cidades dos dias de hoje.

Figura 4: Site de vendas do Alphaville em Juiz de Fora, MG. Fonte: Site Alphaville. Disponível em: www.alphavillejuizdefora.com.br

No planejamento norte-americano, essa ideia se disseminou através de Patrick Geddes, que utilizou a ideia da Cidade-Jardim como ponto de partida para um modelo mais abrangente, propondo um planejamento regional em que as cidades se distribuiriam ao longo de grandes territórios de maneira esparsa com harmonia, equilíbrio e lógica. As ideias de Geddes e Howard foram adotadas nos EUA nos anos 20 pelos “descentralizadores”, um grupo de profissionais do planejamento altamente dedicados (entre eles Lewis Mumford, Clarence Stein, Henry Wright e Catharine Bauer), que defendiam a visão de descentralizar, reduzir, e

dispersar

as

grandes

cidades,

seus

habitantes

e

as

empresas.

Os

descentralizadores não só reafirmaram as ideias por trás da Cidade-Jardim como também as popularizaram, através da premissa de Howard de que o mal da cidade grande era ela própria: as características físicas de moradia (e as relações socioeconômicas) destes espaços deveriam idealmente se assemelhar àquelas das pequenas cidades, e se não fosse possível implantá-las, seria aceitável simular os aspectos almejados. A rua, símbolo da vida urbana, era vista negativamente, sendo necessário haver uma setorização de usos nas cidades para afastar as pessoas

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desse “mal”. Essas ideias, na época, se tornaram quase que inquestionáveis no urbanismo: a rua é um lugar ruim para os seres humanos; as casas devem estar afastadas dela e voltada pra dentro, para uma área verde cercada. Ruas numerosas são um desperdício e só beneficiam os especuladores imobiliários, que determinam o valor pela metragem da testada do terreno. [...] O comércio deve ser separado das residências e das áreas verdes. A demanda de mercadorias de um bairro deve ser calculada “cientificamente”, e o espaço destinado ao comércio deve ater-se a isso, e a nada mais. A presença de um número maior de pessoas é, na melhor das hipóteses, um mal necessário, e o bom planejamento urbano deve almejar pelo menos a ilusão de isolamento e privacidade, como num subúrbio. (JACOBS, 1961, p.20)

Os descentralizadores, em resumo, desprezavam as cidades antigas. “Não tinham curiosidade acerca dos sucessos das metrópoles. Interessavam-se apenas pelos fracassos, Tudo era fracasso”2. A cidade era tratada como o “caos petrificado”, local de mazelas e monstruosidades, e sua aparência era um “acidente caótico”. As ideias desse grupo foram sendo assimiladas nas escolas de arquitetura e urbanismo e nas esferas do Poder Público, e, espantosamente, acabaram incorporadas na abordagem construtiva das cidades - da mesma forma com o que aconteceu com o plano de Howard, as influências desse grupo se deram mais no campo da teoria do que no planejamento urbano físico. “As pessoas que queriam sinceramente fortalecer as cidades grandes acabaram adotando as receitas nitidamente arquitetadas para minar suas economias e destruí-las”3. Outro indivíduo-chave na história da construção das teorias de planejamento urbano, também nos anos 20, foi o arquiteto Le Corbusier, que teve a inusitada ideia de inserir esse pensamento de planejamento anticidade dentro das próprias cidades, através da criação do plano da cidade imaginária denominada “Ville Radieuse”. A cidade utópica seria composta não das habitações baixas, semelhantes às de cidades suburbanas defendidas por Howard, mas sim principalmente por arranhacéus dentro de grandes parques. A maior parte da população urbana, nesse projeto de cidade, estaria acomodada em edificações residenciais que comportariam altas densidades humanas, e sendo essas construções pronunciadamente verticalizadas, grande parte do território ficaria livre (cerca de 95 por cento do solo). Tal planejamento 2 3

JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades, 1961, p.20. JACOBS, Jane. op. cit., loc. cit.

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também determinava a desagregação das áreas da cidade, havendo separação total dos usos presentes no tecido urbano, em uma tentativa de dispersão e aparente ordenamento. As zonas desmembradas seriam conectadas por um complexo e sistematizado sistema viário que elegia o automóvel como principal meio de locomoção no tecido urbano. O planejamento de automóveis, com rodovias descoladas (simbólica e/ou fisicamente) do solo urbano, de trânsito expresso e vias arteriais de mão única, era um elemento essencial do plano, que propunha a criação de um sistema de vias assentadas hierarquicamente conforme a velocidade, a classificação e o volume de deslocamento. Como consequência dessa tentativa de manter os pedestres foras das ruas e dentro dos parques, as pessoas seriam desestimuladas a caminharem e a utilizarem meios de deslocamento alternativos (e também de exercício físico e lazer esportivo, como a bicicleta e a corrida), tendo em vista a dispersão urbana e a consequente necessidade de efetuar longas viagens entre o trabalho e o domicílio. A partir do esvaziamento do espaço público, esse modelo de cidade proposto leva os espaços urbanos a uma impessoalidade e neutralização, sendo o perigo disso, segundo Romero (2009, apud DA SILVA & ROMERO 2011, p. 6), a consequente eliminação de um valor simbólico como referência para as edificações, diminuindo o sentido de vizinhança. De acordo com a autora, nesse meio “as pessoas não se reconhecem e passam a negar os espaços que ocupam face à ausência da noção de pertencimento, resultando no abandono do espaço público e na rápida obsolescência urbana”. Nesse modelo de urbanismo gerado pela cidade pós-industrial Modernista, há uma ausência muito grande do conteúdo simbólico, do sentido socioespacial, e de identidade entre o habitante e a cidade. Visivelmente, havia uma tendência à padronização e despersonificação, numa perspectiva mecanizadora do ambiente e das pessoas E apesar disso, ironicamente, a Ville Radieuse provém diretamente da Cidade-Jardim. Le Corbusier assimilou a imagem fundamental da Cidade-Jardim, ao menos superficialmente, e empenhou-se em torná-la prática em locais densamente povoados. Definiu sua criação como uma Cidade-Jardim factível. (JACOBS, 1961, p.22)

Le Corbusier tornou os princípios superficiais da Cidade-Jardim aplicáveis a cidades densamente povoadas. Sua cidade, como obra arquitetônica, apresentava uma clareza e simplicidade impressionantes. Era muito fácil de entendê-la (e vendêla) como símbolo de um urbanismo humano, social, funcional e grandioso, 15


aparentando ser harmônica e bem ordenada. Não tão surpreendentemente, os conceitos da cidade dos sonhos de Le Corbusier foram acolhidos facilmente pelo público: a visão e simbolismo ousado propostos pelo arquiteto seduziram urbanistas, construtores, projetistas, empreiteiros, financiadores e membros do poder público, que popularizavam cada vez mais os conceitos do plano (como a superquadra, o bairro projetado, o plano imutável e gramados livres como resposta ao lazer e bem estar). A “Ville Radieuse” teve um enorme impacto em nossa sociedade, tendo sido assimilada em inúmeros projetos urbanos, desde a construção de conjuntos habitacionais até cidades inteiras: tentava-se reproduzir o sonho de Le Corbusier a qualquer custo, nem que fosse em algo superficial ou puramente estético.

Figura 5: Anúncio de prédio de apartamentos no modelo de superquadra em São Paulo, SP, 1969. Fonte: Jornal Estadão. Disponível em: acervo.estadao.com.br

Já em Chicago, no final do século XIX, um pouco antes de Howard propor sua Cidade-Jardim,

impulsionou-se

o

movimento

chamado

“City

Beautiful”,

mencionado anteriormente no texto em relação aos primórdios do planejamento 16


urbano norte-americano. O burguês das grandes cidades norte-americanas, alarmado com o distúrbio habitacional e o aparente aumento da desordem urbana, se via “obrigado” a conviver com uma crescente heterogeneidade étnica e cultural, sendo que a resposta para tal “problema”, segundo se concluiu, deveria se dar por meio da preservação da textura social urbana. Assim, “a cidade caótica, nascida de um desenvolvimento demasiado rápido e de uma mistura demasiado rica de nacionalidades, seria posta em ordem mediante a abertura de novos logradouros, a remoção dos cortiços e a ampliação dos parques” (HALL, 1988, p. 212). O movimento, encabeçado por Daniel Burnham, surgiu com inspiração nos bulevares e passeios públicos das grandes cidades europeias oitocentistas, tendo como principal modelo a ser seguido o plano de reconstrução de Paris por Haussmann. Seu princípio essencial, vago, apesar de grandioso, consistia em “devolver à cidade sua perdida harmonia visual e estética, criando, assim, o prérequisito físico para o surgimento de uma ordem social harmoniosa” (HALL, 1988, p. 212). Os planejadores do movimento tinham como meta a construção da “Cidade Monumental”, baseando-se em uma centralidade comercial, administrativa e cultural, e desconsiderando possíveis (e prováveis) expansões dessas atividades para o resto da cidade. Os edifícios seriam agrupados e separados do resto da cidade para criarem o efeito mais dramático e grandioso possível, dando ao conjunto um tratamento de unidade bem definida e esteticamente separada. Lewis Mumford, um dos descentralizadores, se referiu ao esquema de Burnham como “cosmético municipal”, ao perceber que o movimento focava apenas nas aparências, no superficial, e na arquitetura como símbolo de poder. O City Beautiful, de caráter zoneador, propunha uma segregação do espaço por definição, e isso significava planejar sem propósitos sociais. “Era planejamento de ostentação, arquitetura como teatro, projeto para causar impacto” (HALL, 1988, p. 236). A arquitetura desses centros monumentais, propostos pelo movimento, excluidores em seu intuito e impacto, não funcionaram, mas a ideia por trás do City Beautiful não foi expurgada totalmente e permaneceu tendo força por muito tempo. A ideia do “embelezamento” de partes da cidade para combater a aparência superficial de desordem, assim como a implantação de edifícios monumentais e a da separação de funções públicas e culturais em núcleos desvinculados da cidade, ainda hoje são empregados na construção do espaço urbano.

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Desse modo, “os conceitos fundiram-se harmoniosamente, quase como a Cidade-Jardim Beautiful Radieuse” (JACOBS, 1961, p.25). Tais pressupostos foram sendo gradualmente incorporados ao folclore urbano à medida que se consolidavam como intrínsecas ao ordenamento do espaço.

Figura 6: Material de divulgação dos Projetos de Reurbanização da Operação Urbana Porto Maravilha, 2012. Fonte: Site Operação Urbana Porto Maravilha, Rio de Janeiro, RJ. Disponível em: www.portomaravilha.com.br

Os problemas anteriormente mencionados referentes às questões de planejamento, nos países centrais e nos Estados Unidos, refletidos pelas propostas no campo do urbanismo, se mantiveram bastante reais até a Segunda Guerra Mundial, perdurando até muito depois. O período entre as duas guerras foi bastante significativo para o campo da arquitetura e urbanismo, impulsionando manifestações urbanísticas como as citadas. O déficit habitacional e os trabalhos de reconstrução do tecido urbano consistiram em um desafio imenso para o Estado, e os arquitetos, em meio a esse contexto, foram requisitados pelos governos para executar projetos diversos e de grande abrangência, como conjuntos habitacionais, bairros e legislações urbanas, permitindo que se pudesse explorar novas soluções arquitetônicas em uma escala extraordinária. A situação do segundo pós-guerra não foi diferente: os tecidos urbanos permaneciam feridos e devastados, sendo necessário lidar com os estragos feitos nesses espaços. Após a Segunda Guerra Mundial, programas de renovação urbana nas grandes cidades foram instituídos pelos governos locais, procurando resolver não apenas a situação dessas áreas urbanas bombardeadas, quanto das que eram consideradas “deterioradas” e “decadentes”. A presença dessas áreas urbanas esvaziadas se relacionava com outro fenômeno que ocorreu nesse interim: o 18


processo de suburbanização, preconizado por muito tempo através dos manifestos urbanísticos, que no planejamento urbano, se “fundiram e culminaram nos conceitos da “Cidade-Jardim Beautiful Radieuse””. O fenômeno, que se explicava, dentre outros fatores, por novas políticas vigentes e pelos novos modos de vida da sociedade urbana, inserida na cultura de consumo, contribuiu para uma eventual situação de esvaziamento populacional e esgotamento econômico nos centros urbanos: os governos ofereceriam ótimas condições de moradia nos subúrbios da cidade, locais onde tudo era planejado “corretamente” para o conforto. Durante esse tempo todo, a cidade viu-se transformada parte graças à reação dos legisladores e reformistas locais, parte através das forças de mercado. A cidade dispersou-se e desconcentrou-se. Novas casas, novas fábricas, foram construídas em sua periferia. Novas tecnologias de transporte – o bonde elétrico, o trem elétrico de interligação com o centro, o metrô, o ônibus – permitiram que esse processo de suburbanização se concretizasse. (HALL, 1988, p. 57)

O subúrbio, vendendo a ideia de conforto, condições dignas de moradia e qualidade de vida em ambientes afastados do “caos” central das cidades, torna-se sedutor para a classe média; os novos modos de comprar modernos, em centralidades econômicas planejadas artificialmente, como em shopping-centers, torna viável a realização de compras em locais diversos; migrações de atividades e empresas, entre outros fatores. Segundo Del Rio (1990, p. 20): Como consequência, as áreas centrais se deterioraram física, econômica e socialmente; os grupos mais abastados se instalariam em suas novas casas de subúrbio, o comércio e as atividades culturais perseguiram seu mercado, mudando para os subúrbios, os imóveis das áreas centrais passariam a apresentar alto índice de deterioro e abandono, os grupos menos favorecidos herdariam essas condições e os cortiços e guetos se formariam.

Via de regra, os planos elaborados nesse período seguiam os preceitos do chamado “Urbanismo Funcionalista”, tanto em obras arquitetônicas isoladas quanto em amplos planos urbanísticos, em uma perspectiva racionalizada por parte dos planejadores. Os planos e projetos desenvolvidos no período estavam alinhados com os paradigmas e indicações dos “CIAMs” (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna) e principalmente da “Carta de Atenas”, redigida por Le Corbusier em 1933. A Carta, exaltando a funcionalidade, prometia solucionar os problemas decorrentes do desenvolvimento da sociedade industrial do século XX através de uma nova organização espacial, fundamentada em um zoneamento 19


inflexível das funções específicas do território urbano. O objetivo disso era determinar, assim, uma nova cultura urbana encenada pelo homem moderno, firmada nas “quatro funções da cidade moderna” (habitar, trabalhar, recrear e circular) formuladas por Le Corbusier. Os aspectos da teoria do Urbanismo Funcionalista (ou Racionalista) defendida pelo arquiteto em seu manifesto foi durante muitos anos o ponto de partida para o trabalho de gerações de arquitetos do Movimento Moderno, levando até nós “o Modulor e os traçados reguladores, a redescoberta da seção áurea, a planta como elemento gerador, o tratamento das superfícies e dos volumes, a preocupação com a produção e a indústria, e aquilo a que chamou de estética da máquina” (STROETER, 1986, p.25). Seu plano virou o paradigma do urbanismo teórico e dos conceitos da “Cidade-Jardim Beautiful Radieuse”, que, nesse âmbito controlador, foram amplamente utilizados no espaço urbano. O Poder Público, atuando por meio de políticas e planos que buscavam a renovação

urbana

desses

locais,

considerava

as

cidades

em

caráter

despersonalizado, como um sistema em que partes apresentavam problemas objetiváveis, portanto, interpretados como simples problemas funcionais. Como resposta à essas supostas questões simplistas, o planejamento do espaço com enfoque racionalista e baseado em dados, resultou em propostas (por vezes desumanas) com pouca ou nenhuma relação com o cotidiano da sociedade, ignorando a pluralidade e multiplicidade sociocultural da vida urbana, o que gerou ondas de protesto em relação ao posicionamento tomado pelos planejadores. A cidade não era compreendida em sua complexidade; a tentativa era decompô-la e instaurar uma ordem simplificadora para ordenar o suposto e temido caos das cidades.

Figura 7: Material de divulgação do Movimento Ocupe Estelita, Recife, PB contra especulação imobiliária na região do Cais José Estelita, 2012. Fonte: Blog Direitos Urbanos. Disponível em: direitosurbanos.wordpress.com

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Existem vários exemplos significativos que ilustram essa questão. Nos Estados Unidos, aprovou-se nos anos 50 uma legislação que permitia que o governo pudesse adquirir compulsoriamente imóveis considerados em situação de deterioro e abandono, em políticas que ficaram conhecidas como “bulldozer” (trator), “urban removal” (remoção urbana) ou “negro removal” (remoção de negros), por seu viés preconceituoso e elitista. O governo, em posse desses bens, revendia os imóveis para empreendedores que julgassem estar de acordo com o que era “desejável” para a cidade, visando quase sempre lucros financeiros instantâneos. Por todo o mundo se implementaram políticas desse tipo, inclusive no Brasil, sendo o plano de reconstrução do Rio de Janeiro por Pereira Passos um exemplo bastante simbólico – a intervenção, justificada sob um pretexto higienista, é sentida ainda hoje no tecido da cidade, através das cicatrizes causadas pelo desmonte de morros, abertura de avenidas, e violentas remoções, dentro da perspectiva do Urbanismo Funcionalista (uma espécie de embelezamento cosmético racionalista à semelhança dos ideiais do City Beautiful).

Figura 8: início do desmonte do Morro do Castelo em 1921. Fonte: site O Globo. Disponível em: http://infograficos.oglobo.globo.com/rio/castelo-360o.html

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Figura 9: Material de divulgação da proposta da Comunidade Vila Autódromo em contraposição ao Projeto da Prefeitura do Rio de Janeiro. 2013. Fonte: Comunidade da Vila Autódromo. Disponível em: www.comunidadevilaautodromo.blogspot.com.br.

O crescente descontentamento dos habitantes em relação ao distanciamento crescente entre as decisões políticas e as necessidades dos indivíduos, representado fisicamente através dos ambientes estéreis e artificializados, como já foi dito, resultou em movimentos de protesto e manifestação. Os conflitos verificados eram justificados por desde as decisões políticas refletidas nos ambientes urbanos, até a insatisfação com a rigidez dos edifícios de “desenho total”, em que os arquitetos buscavam desenhar (e controlar) tudo nos mínimos detalhes, como é o caso do edifício da CBS em Nova Iorque, em que o arquiteto Eero Saarinen controlava até os cinzeiros a serem utilizados, segundo o estudo de Rapoport (1967 apud DEL RIO, 1990). De acordo com PALLASMAA (2011, p.28): Os processos de planejamento têm favorecido a idealização e a descorporificação [...]; os planos urbanísticos são visões extremamente idealizadas e esquematizadas vistas por meio do le regard sur plombant (a vista de cima), como definiu Jean Starobinski, ou pelo “olho da mente” de Platão.

Referindo-se ainda às relações entre arquitetura e sociedade, afirma que:

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Uma cultura que busca controlar seus cidadãos provavelmente promoverá a direção oposta de interação, saindo da individualidade da intimidade e identificação e indo para um isolamento físico e público. Uma sociedade controladora sempre é uma sociedade do olho voyeur e sádico. (PALLASMAA, 2011, p. 46)

Figura 10: cena do filme “Playtime” (1967), em que o personagem se encontra perdido em meio a um ambiente modernista desprovido de emoções, estéril e controlado. Fonte: Blog O Rato Cinéfilo. Disponível em: http://ratocine.blogspot.com.br/2012/09/playtime-1967.html

O planejamento do solo urbano em setores, dispersos e monofuncionais, em que a lógica de uso e ocupação do solo se dá através da setorização e agrupamento, não é capaz de estabelecer um diálogo com a dinâmica própria da cidade e seus respectivos lugares. Ao impor o traçado rígido de quadrícula, o modelo de planejamento racionalizante desconsidera as condicionantes particulares da natureza local, e como consequência de tal cenário, instituem-se espaços públicos desérticos e destituídos de vida social. A rua não é mais destinada para a convivência e circulação de pessoas na cidade, mas apenas para a circulação de veículos, passando, desse modo, a exercer unicamente seu aspecto funcional, não estando mais estranhada no espaço urbano como na cidade tradicional. Com isso, as atividades citadinas se voltam para o interior dos edifícios e a rua perde cada vez mais seu sentido de sociabilidade urbana, na medida em que observa-se a perda do espaço público, sua privatização, e a segregação espacial das cidades. Nesse modelo de cidade, a fragmentação e a confusão estrutural da malha urbana acarretam na desorientação. 23


Os efeitos de uma arquitetura monótona, imutável e impositiva não são nada benéficos para as pessoas, ainda mais quando há um descaso grande por parte dos planejadores em relação às pessoas e ao contexto da cidade. Não foi raro esses espaços, enquanto parte do tecido urbano, se deteriorarem e não conseguirem cumprir o objetivo que tinham proposto.

Figura 11: Demolição emblemática do conjunto habitacional Pruitt-Igoe em St. Louis. Em 1972, o governo iniciou a implosão do conjunto, que, não raro, é descrito como tendo sido um fracasso do movimento Moderno. Fonte: Blog Archive of Affinities. Disponível em: http://archiveofaffinities.tumblr.com/image/31809652999

Os Poderes Públicos e administrativos se viram pressionados a ampliar a questão democrática nas questões urbanas, inserindo a participação comunitária nos processos decisivos de planejamento (até porque, para o governo, a solução se mostrou mais economicamente viável e apelativa). Entretanto, na medida em que se consultava a opinião dos cidadãos e grupos organizados para tomadas de decisão, os processos de planejamento urbano se tornaram um pouco mais transparentes. Experiências de participação popular direta proliferaram pelo mundo, com resultados interessantes e positivos. Na Grã Bretanha, por exemplo, em 1965, criou-se uma lei que tornava obrigatória a participação popular na elaboração de planos urbanos; nos EUA em 1974, passou a ser exigida a participação de comunidades localizadas em áreas de futuros planos urbanos federais para a tomada de decisões sobre os mesmos; em Amsterdã, na Holanda, o governo implantou um sistema de repasse de

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verbas de modo que as comunidades pudessem contratar escritórios de projeto de sua própria escolha para a elaboração dos planos locais.

Figura 12: Convite à população para Audiência Pública para o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília. 2004. Fonte: SEDHAB-DF. Disponível em: www.sedhab.df.gov.br

Foi também nesse período que teóricos e técnicos começaram a se aprofundar na escala dos problemas habitacionais, sobretudo nos países em desenvolvimento. Defendia-se a potencialidade dos processos de autoconstrução, autoajuda e mutirão apoiados pelo Estado como instrumentos importantes para ajudar a solucionar o problema: a participação popular, em meio a essa questão, contribuiu para uma atitude mais democrática, já que os moradores tinham mais voz, capacidade de investimento, e flexibilidade de opinião em relação ao produto final, o que observou-se em algumas experiências interessantes no Brasil e no mundo. Em âmbito global, podemos destacar o trabalho de Jonh Turner e William Mangin, em especial o realizado junto às “barriadas” (assentamentos ilegais) em Lima, no Peru, que foi bastante influente como experiência ao demonstrar as reais possibilidades da participação popular. Os dois profissionais, ao compreender os problemas das 25


habitações de baixa renda nos países descentralizados, publicaram trabalhos sobre a questão: tais produções foram tão importantes que chegaram até mesmo a ser instrumentais para a alteração de políticas governamentais de instituições como o Banco Mundial. Turner, através da atuação acadêmica, dos trabalhos publicados, e de ativa consultoria internacional, defendia o potencial da autoconstrução e dos processos por mutirão apoiados pelo Estado. Tais procedimentos se dariam por meio das premissas básicas da institucionalização dos processos participativos no campo da habitação, (consequente) maior autonomia local, e o Estado atuando como provedor de recursos que a população por si só não conseguiria conquistar, como acesso à terra, transporte público coletivo, assistência técnica, etc. Já no Brasil destacou-se a atuação do grupo de arquitetos à frente da CODESCO (Companhia de Desenvolvimento de Comunidades), órgão do “Estado da Guanabara”4, que embora de curta existência, atestou a viabilidade dos processos participativos em urbanização de favelas (em destaque a experiência-modelo realizada na favela de Brás de Pina). Criada em 1968 durante a administração do Governador Negrão de Lima, a organização, entre outras coisas, previa ajuda técnica e financeira aos favelados para a reforma ou construção de suas casas. Nos anos 60, como vimos, percebeu-se que havia um abismo entre as reais necessidades das comunidades e as atuações políticas, não ocorrendo uma integração entre as esferas de poder (públicas e privadas) e os habitantes das cidades, sendo a falta de participação popular uma das causas de tal problemática. Em oposição à excessiva tecnocracia implementada, que tinha como objetivo ser capaz de fazer uma análise absoluta de todos os processos envolvidos nas questões urbanas, conceitos como a informalidade, dinamismo, participação comunitária e flexibilidade começaram a aparecer como formas de resposta mais coerentes com uma possibilidade de atuação real. Segundo Jacobs, sob a aparente desordem da cidade tradicional (o nefasto caos urbano que se deve combater, segundo tais planos urbanísticos), existe uma ordem surpreendente e complexa nos locais onde ela funciona livremente, que garante a manutenção de várias redes de relação entre as pessoas e os espaços. A importância da participação popular se dá na medida em que aceitamos que os cidadãos comuns já compreendem esses processos, que 4

O Estado da Guanabara, cuja composição geográfica abrangia o território do atual município do Rio de Janeiro, existiu entre 1960 e 1975 e foi criado pela Lei San Tiago Dantas de 14 de março de 1960 Essa instituição transitória deu-se em decorrência da mudança da capital para Brasília.

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ocorrem na cidade [e] não são misteriosos, passíveis da compreensão somente por especialistas. Podem ser compreendidos por quase todo o mundo. Várias pessoas comuns já os compreendem; acontece que elas não lhes deram nomes ou levaram em conta que, ao compreender esses esquemas triviais de causa e efeito, podemos também dar-lhes direção, se quisermos. (JACOBS, 1961, p. 491)

Figura 13: Moradores de Santa Teresa, ES, dão abraço simbólico em edificação histórica abandonada que prefeitura intencionava demolir para construção de uma ponte. 2015. Fonte: Gazeta On Line. Disponível em: gazetaonline.globo.com

1.3. O patrimônio cultural e a democratização do espaço urbano Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. – Mas qual a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. – A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco –, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: – Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: – Sem pedras o arco não existe. (CALVINO, 1972, p. 79)

Discussões acerca do patrimônio histórico e cultural também despontaram na década de 60, assim como cresceu o questionamento acerca da noção de progresso e desenvolvimento: estudava-se a busca por um desenvolvimento a partir de instrumentos mais apropriados (ou sustentáveis). Os conceitos vigentes de 27


“patrimônio”, até então, seguiam as premissas da “Carta de Atenas”, resultante Conferência de Atenas de 1931 (apesar da semelhança do nome, esse documento não tem relação com a Carta de Atenas mencionada anteriormente, sendo aquela de 1933 e produto do CIAM): a Carta, que foi elaborada a partir das conclusões e discussões envolvendo importantes organismos internacionais, surgiu como um documento paradigmático que consolidou a importância do conceito de preservação do patrimônio cultural para a sociedade. O documento postulava que as edificações e os centros históricos, para serem considerados como tal, deveriam possuir valor monumental, grandioso e antigo; ressalta a necessidade da atuação conjunta dos Estados na defesa do conjunto patrimonial; recomenda que “se mantenha uma utilização dos monumentos, que assegure a continuidade de sua vida, destinando-os sempre a finalidades do seu caráter histórico e artístico” e que se deve “respeitar, na construção dos edifícios, o caráter e a fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança dos monumentos antigos, cuja proximidade deve ser objeto de cuidados especiais. ” (Carta de Atenas, 1931). Além disso, também defendia a supressão de elementos que porventura pudessem vir a atrapalhar na leitura do monumento, como, por exemplo, ruídos, chaminés, publicidade e a presença abusiva de postes e fios elétricos. A Carta de Atenas conseguiu reunir num só documento indicações que resultaram de importantes reflexões que vinham sendo discutidas pelo mundo, e, com isso, vários países incluíram seus conceitos e conclusões em suas legislações federais, o que consistiu num significativo amadurecimento do campo. No caso específico do Brasil, em 1937 publicou-se o Decreto-lei nº25 e criou-se o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o SPHAN (transformado posteriormente, em 1970, em Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN, nomenclatura utilizada até hoje). Nesse contexto se instituiu o tombamento como ato administrativo e principal instrumento de proteção patrimonial, regulamentando a ação do Estado sobre os bens. A criação do órgão, assim como a de suas definições, teve influencias nítidas de passagens da Carta, e as indicações do decreto reproduziam a essência de seus conceitos. Os bens culturais que passaram a constituir o conjunto do patrimônio histórico brasileiro eram considerados dignos de valor nacional por possuírem caráter “grandioso” e “singular”. A área da conservação esteve constituída durante muito 28


tempo por um campo relativamente fechado, sendo a atribuição de valores realizada, preponderantemente, por experts, especialistas que tinham o direito de analisar edifícios decidir o que era ou não patrimônio. A maior parte dos conceitos que embasavam os “vereditos” de atribuição de valor patrimonial, dados por esse pequeno grupo técnico, derivavam do campo das artes, utilizando-se noções como as

de

“obra-prima”,

“excepcionalidade”

e

“autenticidade”.

Era

uma

visão

reducionista, que enfatizava os bens relacionados a episódios consagrados oficialmente pela historiografia nacional, em que o heroico, extraordinário e monumental era recortado de seu entorno para receber valor de símbolo do Poder Nacional. Isso acabava por desconsiderar a história sociocultural, a pluralidade de valores e as inter-relações urbanas, já que a atribuição de valor a bens desvinculados de seu contexto ignorava as manifestações da vida cotidiana.

Figura 14: Cena do Filme Mon Oncle, de Jacques Tatit. 1958. Fonte: Wikipedia. Disponível em: pt.wikipedia.org/wiki/Mon_oncle

O panorama da área, em âmbito mundial, permaneceu limitado a essas questões até quando, a partir à década de 60, novas discussões tomaram lugar e o campo ampliou-se novamente. A partir de meados dos anos 60, observou-se uma mudança desenfreada na configuração das cidades, fruto da busca crescente pelo “progresso” e pelo “moderno”. As cidades, cada vez mais vítimas de patologias como as forças de demolição/construção, do alargamento de vias e adensamento 29


descontrolado, perderam muito em ambiência e referências simbólicas. O mundo, habituado a conceber o desenvolvimento sob uma ótica unicamente construtiva, considerava a preservação de edificações de valor simbólico, arquitetônico e histórico como um retrocesso. Nesse período, novos encontros foram promovidos pela UNESCO, ampliando os conceitos de valor cultural e gerando novas diretrizes através de Cartas Patrimoniais. As Cartas Patrimoniais, documentos que possuem textos em caráter de recomendação em relação à proteção do patrimônio cultural, são produzidas em encontros internacionais, e estabelecem importantes diretrizes que, decorrente de discussões globalizadas, se tornam referência e podem vir a ser incorporadas por órgãos legais e (profissionais da área). Apesar das Cartas não possuírem valor legal dentro do nosso ordenamento jurídico, ou seja, não se equipararem às nossas normas e leis, os referidos documentos auxiliam na concepção das regras legais. O Brasil, como outros países, aceitou e incorporou legalmente conceitos provenientes de conclusões de Cartas Patrimoniais, e, por isso, não é possível desvincular uma análise do processo histórico e legal de tais instrumentos. Far-se-á necessário citar algumas dessas Cartas para um entendimento das contribuições profundas que tais mecanismos exerceram para a construção de um novo entendimento sobre a cidade, a começar pela Carta de Veneza. A carta, produzida em 1964, representou uma significativa mudança na noção de preservação defendida pela “Carta de Atenas”, superando as noções limitadas de bem arquitetônico digno de valor como a edificação monumental, isolada e independente do entorno. Afirma que “o monumento é inseparável da história de que é testemunho e do meio em que se situa” - ou seja, o meio em que o patrimônio se insere deve ser considerado integrado a ele (com isso, a proteção salvaguarda tanto o objeto quanto seu valor documental), e atribui valor a edificações modestas e não grandiosas que adquiriram valor cultural ao longo do tempo. O conceito restrito e bem delimitado de “patrimônio histórico e artístico” vai tendo suas noções gradativamente ampliadas para a definição (por vezes proteiforme) de “patrimônio cultural”. A Carta de Veneza, portanto, não demonstra apenas a ampliação dos conceitos relacionados ao campo patrimonial, mas também representa um modo novo de ver a história como sendo construída diariamente pela sociedade.

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Outro importante avanço ocorreu em 1972 com a elaboração da “Carta de Paris”, que, ao mesmo tempo em que documenta a importância da preservação do patrimônio natural e edificado, formula definições mais abrangentes sobre o conceito de patrimônio cultural. A Carta considera como bens culturais os “monumentos” (nas definições da Carta de Atenas); os “conjuntos”, “grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência”; e os “lugares notáveis, obras do homem e da natureza [...] que tenham valor universal excepcional, do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico”5. O conteúdo da Carta também demonstra uma preocupação com a inserção do patrimônio nas políticas de planejamento urbanos, pontuando diretrizes de gestão, planejamento, manutenção e proteção do patrimônio para uma efetiva atuação do Estado. A partir da afirmação de que deve-se “adotar uma política geral que vise a dar ao patrimônio cultural e natural uma função na vida da coletividade e a integrar a proteção do patrimônio nos programas de planificação geral” 6 podemos refletir que apesar de a Carta ainda manter a noção de monumento enquanto obra de valor excepcional, considera que esse patrimônio deve pertencer ou se tornar integrado à coletividade social. Em 1975, são elaboradas a “Declaração de Amsterdã” e a “Carta do Patrimônio Arquitetônico Europeu”, e, juntas, eliminam de vez a concepção vigente de patrimônio cultural expressa nas Cartas já mencionadas. A novidade nesses documentos se deu através do reconhecimento (além do reforço da importância da preservação dos conjuntos culturais) de que deve-se considerar como dignos de proteção a diversidade cultural dos povos, sendo necessário preservar as referências dessas áreas enquanto marcos simbólicos na vida das pessoas, sendo que as políticas de conservação devem implicar na integração do patrimônio na vida social. De acordo com “Carta do Patrimônio Arquitetônico Europeu ” (1975): a preservação dos conjuntos históricos favorece o harmônico equilíbrio das sociedades [e] mesmo que não disponham de edificações excepcionais, podem oferecer uma qualidade de atmosfera, produzida por obras de arte diversas e articuladas. .

Em destaque, um trecho chave da “Declaração de Amsterdã” (1975): 5 6

Carta de Paris, 1972. Carta de Paris, op.cit..

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A reabilitação dos bairros antigos deve ser concebida e realizada, tanto quanto possível, sem modificações importantes da composição social dos habitantes, e de uma maneira tal que todas as camadas da sociedade se beneficiem de uma operação financiada por fundos públicos.

Houve, portanto, um grande salto no que diz respeito ao entendimento das questões da cidade, na medida em que considera-se que o espaço urbano construído está consolidado na história e no imaginário da sociedade, o que faz com que os cidadãos tomem consciência de uma “história e destino comuns”, ou seja, a partir do pressuposto de que a sociedade está em constante fluxo de construção (e desconstrução), a preservação passa a ser tratada como um modo de permitir a busca e reconhecimento da identidade de uma sociedade. Diz também que é dever comum da sociedade proteger a cidade dos perigos que a ameaça, “negligência e deterioração, demolição deliberada, novas construções em desarmonia e circulação excessiva”. A Carta ainda observa que as novas construções somadas ao espaço urbano devem ser de “arquitetura contemporânea de alta qualidade”, assegurando uma melhor integração espacial no ambiente urbano, e evitando, assim, grandes desarmonias.

Figura 15: Cena do curta “Nada Levarei Quando Morrer, Aqueles que me Devem Cobrarei no Inferno”, filmado no Pelourinho pré-reformas em 1979, de Miguel Branco. 1985. Fonte: Inhotim. Disponível em: www.inhotim.org.br

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O documento fala da importância crucial da participação popular na elaboração de programas e projetos, num conceito de “conservação integrada”: “conclama à responsabilidade os poderes locais e apela para a participação dos cidadãos” (Declaração de Amsterdã, 1975). Para permitir essa participação popular, a sociedade deveria participar de uma sensibilização prática à cultura por meio do poder público: seriam dados instrumentos para a conscientização do valor histórico e arquitetônico das edificações a serem conservadas, assim como seriam fornecidos as informações referentes aos “regulamentos” da área. A legislação e as medidas de proteção adotadas para a preservação de conjuntos históricos, portanto, deveriam integrar a participação de todos: poderes públicos, privado, e sociedade civil - como está postulado na Carta Europeia do Patrimônio Arquitetônico, “a participação de todos é indispensável ao sucesso da conservação integrada”. Assim, aceita-se uma multiplicidade de interlocutores e de atores responsáveis pelas decisões referentes ao patrimônio, em contrapartida ao que acontecia anteriormente, em que as decisões eram tomadas exclusivamente por “especialistas” da área. Por fim, a Declaração de Amsterdã fala da importância do “reaproveitamento” e utilização de edifícios antigos em contraposição à demolição e reconstrução: A reabilitação de um conjunto que faça parte do patrimônio arquitetônico não é uma operação necessariamente mais onerosa que a de uma construção nova, realizada sobre uma infra-estrutura existente, ou a construção de um conjunto sobre um sítio não urbanizado. É conveniente, portanto, quando se comparam os custos equivalentes desses três procedimentos, cujas conseqüências sociais são diferentes, não omitir o custo social. Isto interessa não somente aos proprietários e aos locatários, mas também aos artesãos, aos comerciantes e aos empresários estabelecidos no local, que asseguram a vida e a conservação do bairro em bom estado. (Declaração de Amsterdã, 1975)

A “Recomendação de Nairobi”, de 1976, complementa os preceitos trabalhados na Declaração de Amsterdã, referindo-se à salvaguarda dos conjuntos históricos e sua função na vida contemporânea, considerados “elementos fundamentais na planificação das áreas urbanas e do planejamento físico-territorial”. A recomendação enfatiza ainda a importância de se salvaguardar os conjuntos históricos e sua “ambiência”, entendida como ”o quadro natural ou construído que influi na percepção estática ou dinâmica desses conjuntos, ou a eles se vincula de maneira imediata no espaço, ou por laços sociais, econômicos ou culturais.” – nesse âmbito, o conjunto patrimonial e sua ambiência constituem um legado insubstituível para a sociedade, sendo 33


um todo coerente cujo equilíbrio e caráter específico dependem da síntese dos elementos que o compõem e que compreendem tanto as atividades humanas como as construções, a estrutura espacial e as zonas circundantes. Dessa maneira, todos os elementos válidos, incluídas as atividades humanas, desde as mais modestas, têm, em relação ao conjunto, uma significação que é preciso respeitar. (Recomendação de Nairobi, 1976)

O documento expressa a preocupação com os perigos da uniformização e da despersonalização da cidade nos tempos atuais, "considerando que, no mundo inteiro, sob pretexto de expansão ou de modernização, destruições que ignoram o que destroem e reconstruções irracionais e inadequadas ocasionam grave prejuízo” (Recomendação de Nairobi, 1976), e que, diante dos grandes riscos de deterioração e de desaparecimento, os Poderes Públicos devem agir prontamente junto ao patrimônio cultural urbano, tentando sempre, através de políticas e determinações, salvaguardar os conjuntos históricos ou tradicionais e sua ambiência, adaptando-os às exigências da vida contemporânea. Em relação ao conflito existente entre o trânsito de automóveis e a densidade do tecido urbano (e as características arquitetônicas), existente em grande parte dos conjuntos históricos ou tradicionais, as municipalidades deveriam tentar encontrar soluções para esse problema procurando favorecer o trânsito de pedestres, estudando com cautela a localização e acessos a estacionamentos, e incorporando redes de transporte de qualidade que possam facilitar a circulação dos pedestres. Em relação às medidas técnicas a serem tomadas por profissionais para a realização de uma investigação de conjuntos urbanos, a recomendação é de que são necessários estudos pormenorizados dos dados e das estruturas sociais, econômicas, culturais e técnicas, assim como do contexto urbano ou regional mais amplo. Esses estudos deveriam abranger, se possível, dados demográficos e uma análise das atividades econômicas, sociais e culturais, os modos de vida e as relações sociais, os problemas fundiários, infraestrutura urbana, o estado do sistema viário, as redes de comunicação e as interrelações recíprocas da zona protegida com as zonas circundadas. (Recomendação de Nairobi, 1976)

Desse modo, ressalta o papel das pessoas como formadores do espaço das cidades e peças principais no entendimento das inter-relações urbanas, assim como o da importância das metodologias e pesquisas de caráter sociológico para a compreensão e apreensão do espaço construído. Há uma visível preocupação em se respeitar as características próprias dos locais que possuem valor cultural, sendo necessário um estudo aprofundado e cuidadoso para conhecer o espaço vivenciado, 34


de modo que as atuações profissionais em tais conjuntos devem respeitar e ir de encontro do caráter específico da área: Seria, portanto, essencial manter as funções apropriadas existentes [...] e criar outras novas que, para serem viáveis a longo prazo, deveriam ser compatíveis com o contexto econômico e social, urbano, regional ou nacional em que se inserem. [...] Essas funções teriam que se adaptar às necessidades sociais, culturais e econômicas dos habitantes, sem contrariar o caráter específico do conjunto em questão. (Recomendação de Nairobi, 1976)

A Constituição Brasileira de 1988, que considera e incorpora as diretrizes das Cartas de Preservação em suas normatizações, alçou o patrimônio cultural à condição de norma constitucional, afirmando o bem patrimonial construído como um conjunto de ações humanas produzidas por um grupo social de determinada cultura, referencial de identidade. Sepultou de vez a concepção de patrimônio ligado à excepcionalidade, e os territórios deixam de ser tratados apenas a partir do critério da monumentalidade, sendo também documentos e práticas sociais – desse modo, é dever do Estado proteger a memória social e a qualidade de vida da população. Essa nova concepção significa uma evolução imensa no estudo do patrimônio cultural em comparação com a que foi instituída no Decreto-lei n°25 (1937). Segundo a interpretação de Rugani (2002), nesse momento, o termo patrimônio passa a ter uma conotação muito mais pública do que privada, onde os possuidores do bem são identificados como um grupo (comunidade, nação, humanidade) e não tanto quanto proprietários privados. Essa apropriação coletiva significa algumas restrições e controles sobre os direitos dos indivíduos em relação ao patrimônio. Nos anos 90, no Brasil e no mundo, a atuação no campo da proteção patrimonial cultural se deu aceitando os conceitos expressos nas Cartas Patrimoniais, em que as políticas públicas e questões culturais surgem como inseparáveis do conjunto urbano protegido. Houve, portanto, tanto no meio técnico o quanto no legal uma consolidação dessa significação de conceitos, com a incorporação dos conhecimentos produzidos nesses registros. As conclusões das Cartas se mantém atuais, sendo suas diretrizes extremamente úteis para a compreensão não só dos aspectos do patrimônio cultural, mas também dos das cidades como um todo.

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Figura 16: Intervenção realizada em área de edificação demolida na rua Fradique Coutinho em São Paulo, pela artista Flávia Mielnik, 2013. Fonte: Blog da Flávia Mielnik. Disponível em: flaviamielnik.blogspot.com.br

1.4. Recíproca entre direito urbano e cultura na origem da cidade dos justos [...] está oculta, por sua vez, uma semente maligna; a certeza e o orgulho de serem justos — e de sê-lo mais do que tantos outros que dizem ser mais justos do que os justos –, fermentando rancores, rivalidades, teimosias, e o natural desejo de represália contra os injustos se contamina pelo anseio de estar em seu lugar e fazer o mesmo que eles. [...] Pelo meu discurso, pode-se tirar a conclusão de que a verdadeira Berenice é uma sucessão no tempo de cidades diferentes, alternadamente justas e injustas. Mas o que eu queria observar é outra coisa: que todas as futuras Berenices já estão presentes neste instante, contidas uma dentro da outra, apertadas espremidas inseparáveis. (CALVINO, 1972, p.147)

A cultura, materializada na cidade pela forma do homem de se apropriar do 36


espaço, é refletida pelo traçado das vias, na formação e apropriação de marcos simbólicos, na construção de edifícios e da estética urbana. Cultura e cidade são conceitos que caminham juntos, indissociáveis – a trama das cidades reflete a cultura, que pode refletir-se harmônica ou conflituosa. A cidade, como produção do homem e efeito do gerenciamento coletivo, representa os valores e a estrutura da sociedade, com as forças de hierarquia ou equilíbrio, inclusão ou marginalização. É, por excelência, a dimensão da cultura espacializada, e, portanto, cenário das relações humanas, dos relacionamentos e modos de vida. Essas razões justificam por que a cultura deve ser tratada como elemento conformador da cidade física, sendo ela definida e definidora do espaço através de relações sociais, econômicas e urbanísticas. A cultura é componente intrínseco e estratégico no sistema de gestão urbana, sendo as cidades objetos e representações do Direito, numa relação dialética. Tendo em vista as forças conflituosas, de interesses escusos, presentes na cidade, que agem longe de nossa compreensão e alcance, o domínio legal do Direito deve encontrar formas de neutralizar essas forças egoístas e antagônicas, priorizando o coletivo e não um segmento em especial e suas necessidades particulares. As atribuições do Direito urbanístico moderno, como entidade social, devem fornecer para os cidadãos bases sólidas de proteção de seus interesses em relação a áreas urbanas debilitadas, e promovendo a participação democrática da sociedade na governança da cidade. Para entender como isso pode se desdobrar, outros conceitos importantes, referentes à Constituição brasileira e ao Estatuto das Cidades, deverão ser abordados sob a ótica da jurisprudência: as definições de “direito de propriedade”, “direito de construir”, e o que se define por “função social de propriedade”. Como vimos, com o desenvolvimento das cidades ao longo do tempo, mudouse o pensamento sobre as políticas urbanas, acompanhando a contribuição das discussões acerca do patrimônio cultural. A atividade urbanística, uma das funções do Poder Público, deve se pautar em normas que visam a comodidade dos cidadãos e mudanças positivas para a cidade. Segundo o Art. 182 do Capítulo 2 da Constituição Federal Brasileira, “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes”. A execução dessa política urbana está prevista na 37


Lei 10.257 (Estatuto das Cidades), que estabelece “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos”. Um ponto crucial para o entendimento das cidades pode ser inferido desse decreto: a cidade tem um papel social a cumprir, e, por consequência, qualquer propriedade assentada no solo urbano deve possuir uma função social a ser compatibilizada com as necessidades da cidade. “A função social de propriedade” é um

instrumento

que,

conjugado

com

os

demais

existentes7

(limitações,

desapropriações, plano diretor...), possibilita a obtenção de uma nova ordem social e econômica que realize o desenvolvimento com responsabilidade social. As funções sociais da cidade, pormenorizadas na lei, são o trabalho, lazer, circulação e habitação. Esse conceito tem sido incluído em todas as constituições brasileiras desde a Constituição de 1934. No Código Civil de 1916 (Lei 3.071), revogado em 2002 (por meio da Lei 10.406 que institui o Novo Código Civil), os direitos de propriedade imobiliária eram concebidos de maneira individualista e quase absoluta. Os limites e decisões relacionados ao aproveitamento e uso da propriedade

eram quase que

exclusivamente determinados pelos interesses individuais do proprietário, que não precisava necessariamente satisfazer interesse social algum. A propriedade, nesse âmbito, é tratada como mercadoria a partir do seu valor econômico de troca, em uma postura liberal que permite que as forças de mercado ajam

livremente nas

determinações do uso do solo e acesso à terra, possibilitando a maximização dos lucros e aproveitamento de seus recursos. Mesmo que essa ideologia privatista ainda domine grande parte da área, tem sido possível uma afirmação gradual da noção de função social de propriedade. O conceito de função social de propriedade está ligado ao reconhecimento dos direitos de propriedade e de construir. Há uma dificuldade em separar os dois conceitos: as posições adotadas em cada país divergem entre si (na Itália e em Portugal, por exemplo, a edificabilidade não é considerada faculdade do proprietário, sendo o direito de construir tratado como concessão do Poder Público). Direito de construir, de acordo com a definição da nossa legislação (Art. 1.299 do Novo Código Civil Brasileiro), é a propriedade de o proprietário poder “levantar em seu terreno as 7

Tais instrumentos estão especificados no Art. 4° do Capítulo 2 da Lei 10.257.

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construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos”. O direito de construir é faculdade inerente ao direito de propriedade, ou seja, o proprietário do solo tem a possibilidade de construir o que quiser, desde que não conflite com as limitações administrativas (dentro da definição legal de função social). O que se observa é que a função social da propriedade não é uma simples vinculação obrigacional: ela constitui o próprio fundamento jurídico de propriedade. A função social constitui um princípio ordenador da propriedade privada, e também o fundamento da atribuição, reconhecimento e garantia desse direito, ao incidir sobre ela mesma. O ramo do Direito urbanístico voltando-se para o seu objeto central – a cidade, tomada não apenas na perspectiva de sua ordenação territorial, mas também na de sua dimensão social, na sua multifária constituição como espaço de vivência coletiva e lugar de todos, e por força de sua redenção ética, como bem de fruição de seus habitantes –, vem consolidando um núcleo de normas cada vez mais complexas e demandando a especialização de métodos e princípios e a releitura de institutos tradicionais. Desse modo, o ramo evolui da compreensão de imposições urbanísticas do velho direito luso-brasileiro, passando pelas noções de ordem e estética, pela regulação das condições do acesso ao espaço urbano e de apropriação deste, até chegar ao campo de cogitações de sustentabilidade social, econômica e ambiental da cidade sob inspiração democrática. (PIRES, 2002)

Em face dessa visão, o Direito urbanístico registra sob seu foco as múltiplas dimensões da cidade: a física, a dinâmica, a sociológica e a simbólica. Essas camadas são apreendidas por meio de uma estrutura organizacional única, indissociáveis entre si, sendo necessário a interpretação para a percepção de um desses estratos em meio aos outros. A dimensão física é entendida como a expressão da ordenação territorial da cidade, envolvendo seus traçados, arruamentos, ocupações e configurações; a dinâmica, como a trama urbana na lógica da mobilidade funcional, essencialmente como palco de produção econômica; a sociológica, como espaço da representação da conformação ou estratificação social, ou seja, da expressão das relações sociais e de cidadania; e a simbólica, como dado de cultura e valor transcendente da materialidade, sendo base para a fruição dos valores urbanos por meio do espírito e dos sentidos – é a cidade como espaço de evocação e de seus símbolos como elementos de construção da memória por meio da interpretação. 39


A cidade simbólica é a que se relaciona com os esforços do Direito urbanístico em relação à preservação do patrimônio cultural, sendo a cidade expressão poética de suas formas: “a supracidade edificada na memória de seus viventes; a cidade intuída ou revelada por seus marcos referenciais e pela interpretação de sua linguagem; a cidade das utopias representadas por múltiplos ícones” (PIRES, 2002). O tema, na visão do Direito, traz à tona a relação entre cidade física e simbólica, envolvendo a gestão do patrimônio cultural e invocando as outras dimensões do tratamento da cidade (física, dinâmica e sociológica).

Figura 17: Charge do ilustrador Paulo Cavalcante, sem data. Fonte: Blog do Cavalcante - Ilustrações. Disponível em: cavalcante-ilustracao.blogspot.com.br

Dentro da ótica das múltiplas dimensões representativas do ambiente urbano, assim registrada pelo Direito urbanístico, ao mesmo tempo em que se observa a construtividade da cultura e da cidade verificamos também forças de destruição: há uma contradição recíproca entre as forças de formação e deformação da cidade. Essas práticas contraditórias, como a dos processos especulativos, atuam de maneira legal (sendo legitimadas tanto por providências casuísticas, quanto por processos que descumprem a lei e por algum motivo, intencional ou não, são tolerados pelas instâncias legais) e ilegal, em processos marginais. Em virtude dessas forças de efetiva formação e deformação, pode-se registrar os atores 40


governamentais, econômicos e sociais que se projetam na cidade, cada um em sua esfera: o Estado, o mercado, e a sociedade. A cidade mantém uma complexa cadeia de produção de bens e serviços, de consumos desses, de relações e interesses, da qual participa uma diversidade de agentes, sendo certo que a cultura alimenta essa cadeia, de forma mais ou menos substantiva, de acordo com o grau de importância a ela atribuído pela sociedade e pelo Estado, da articulação intersetorial, do compartilhamento entre o público e o privado e da adequação e da integração dos instrumentos de gestão. (PIRES, 2002)

O Estado e o Poder Público, protagonistas importantes entre as forças que coordenam a cidade (especialmente por serem responsáveis pela definição das normas urbanísticas, planejamento e criação de serviços), se desmembram em meio a política, o Direito, e o aparelho de gestão. Em grande parte das vezes, o Estado nada reage em relação às contradições urbanas, o que impede mudanças mais significativas e profundas. No plano político, a presença de opiniões discordantes é um grande empecilho para a formação de consenso sobre bases coerentes para um planejamento e ordenamento urbano proveitoso, e em relação à aplicação de normas, o Estado se mostra impotente e obsoleto. O Direito, por sua vez, não consegue aplicar normas que consigam gerar mudanças estruturais e

alterar o

status quo da ordem social, apesar de exercer um papel fundamental na construção da cidade e na preservação da cidade cultural. O mercado é um poderoso agente de construção da cidade, principalmente em razão do domínio que tem sobre o acesso ao solo, o que o torna possuidor da hegemonia do espaço urbano. O segmento conforma a cidade de acordo com as vontades intrínsecas de particulares, segundo as regras do capital, e se não for conduzido pelo Estado e pela sociedade por meio de pautas precisas e acertadas, tende a deslanchar como detentor do direito de conformação e desfiguração da paisagem urbana. Em relação ao patrimônio, o mercado, acostumado com a garantia de sua prevalência na ordem da compra e venda de terras, apresenta-se como uma ameaça física à ordem das relações humanas e culturais no espaço. A cultura especulativa usa do discurso do uso e ocupação do solo tendo como base o discurso da propriedade privada A sociedade conforma a instância que é mais afetada pelos impactos causados pelas determinações dos outros agentes. É o agente do ambiente urbano mais relevante em relação à construção do espaço, e sua principal destinatária. Por 41


isso, é necessário intensificar e estimular cada vez mais a participação do cidadão em meio aos processos do Poder Público, para que a lei se torne gradativamente menos impositiva e mais consensual e integradora. Torna-se imperativo que a sociedade deixe de ser agente passivo da construção do espaço urbano para ser agente ativo de mudanças através da contribuição coletiva. É preciso fazer logo a advertência de que, se a sociedade se mostra inepta como agente de construção e controle da cidade ou confusa em relação à realidade urbana que deseja, o mercado, de lógica invariável, estará cada vez mais apto a capitalizar as fragilidades da sociedade e do Estado (Judiciário, Legislativo e Executivo) e de outras esferas discursivas, como a imprensa e a academia. (PIRES, 2002)

A coletividade e o Poder Público devem projetar e configurar a cidade por meio de leis provenientes de processos horizontais e participativos, em que haja consenso democrático, interdisciplinaridade e integração entre (e dentro) de instituições. É visível que o Direito avançou muito em relação ao seu papel de agente social, expandindo seu foco e perspectiva transdisciplinar em relação as múltiplas faces da cidade, porém se observa que na prática, para que a potencialidade dos instrumentos legais garantidos pela Constituição possa ser plenamente exercida, deve-se romper a neutralidade do Direito diante do quadro de exclusão social e segregação espacial das cidades. Para que a paisagem urbana possa evoluir de maneira equilibrada, não predominando apenas os interesses imediatos de apenas um segmento, as responsabilidades de orientação, gerenciamento, planejamento e transformação dos espaços urbanos devem caber, de forma compartilhada, a sociedade e seus representantes, em nível do Poder Público.

2. Cidade como bem social

2.1. Construção social do lugar [...] é inútil determinar se Zenóbia deva ser classificada entre as cidades felizes ou infelizes. Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias, mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os

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desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados. (CALVINO, 1972, p. 14)

Diante das análises anteriores, fica evidente que o planejamento do espaço através de modelos impositivos e rígidos perdeu sentido como alternativa razoável para a solução das questões urbanas: a prática de planejamento dos anos 60, no geral, ignorou as preocupações vitais para um desenvolvimento de qualidade das cidades, como a inserção de uma obra em seu contexto urbano, o respeito às características inerentes às morfologias e a paisagem, e as inter-relações entre elementos urbanos e usuários. Em contrapartida às definições defendidas por esse modelo de planejamento urbano, novos conceitos mais adequados à criação de um espaço urbano menos discorde vão ganhando força.

Figura 18: Infográfico do Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (Lei n°16.050, de 30 de julho de 2014). Disponível em: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wpcontent/uploads/2015/01/Plano-Diretor-Estrat%C3%A9gico-Lei-n%C2%BA-16.050-de-31-de-julho-de2014-Estrat%C3%A9gias-ilustradas.pdf

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No Brasil, é notável que a Constituição de 1988 representou uma superação grande ao que era definido anteriormente na Constituição de 1934, principalmente no tocante à propriedade. A cidade é em si mesma um bem social, e a função social da propriedade deve ser o princípio ordenador da atuação urbanística. A política urbana deve ser vocacionada para a ordenação de um efetivo desenvolvimento das funções sociais, saindo do progressismo estático e dirigindo-se a um progresso político-social.

Figura 19: Ilustração do Plano Diretor Estratégico de São Paulo Ilustrado, 2014. Fonte: Gestão Urbana SP. Disponível em: gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br

A gestão do ambiente urbano é bastante complexa e envolve os campos do direito, planejamento urbano, economia e política. Para que haja uma preservação dos interesses e das relações culturais essenciais ao tecido urbano, refletidas na cidade através das dimensões física, dinâmica, sociológica e simbólica, deve-se buscar a implementação de uma legislação urbana que seja capaz de expressar os reais anseios da coletividade. Frente à dinâmica urbana capitalista, os argumentos culturais e históricos sozinhos não bastam. Em relação às intervenções em áreas urbanas, sobretudo as de interesse cultural e identitário, a administração municipal deve direcioná-las e regulamentá-las considerando a cidade como um todo, evitando ações pontuais, e sabendo aliar o planejamento à questão financeira. Os agentes privados são importantíssimos nesse processo, sendo dever dos poderes públicos conduzir suas atuações de modo a colocar os interesses da coletividade como prioridade, evitando, assim, a mercadificação das regiões urbanas. Intervenções superficiais que consideram 44


somente os aspectos aparentes e estéticos do espaço urbano não conseguem manter a vitalidade da região. O planejador urbano deve se comportar como um promotor imobiliário consciente, possuidor das habilidades necessárias para articular negociações em todos os níveis do processo de desenvolvimento urbano, em especial, as que envolvem os aspectos determinantes da implantação e sucesso real de um projeto. Se quisermos intervir no ambiente urbano buscando um desenvolvimento harmônico, devemos, antes de qualquer coisa, compreender o funcionamento das múltiplas instituições que detêm o poder sobre a conformação da cidade – a apreensão desses grupos intrínsecos ao processo de planejamento, sobretudo os pertencentes às esferas política e econômica, nos permite ter uma melhor chance de elaborar projetos operativos a médio e longo prazo. Para isso, é necessário que descartemos a ideia de que a incorporação dos processos políticos e do mercado capitalista como inerentes ao processo projetual seria negativa para a obra do planejador, sendo possível produzir arquitetonicamente resultados significativos tanto do ponto de vista prático como do artístico. Não é mais possível ignorar os processos imobiliários e especulativos na construção da cidade: um raciocínio desses geraria um distanciamento da situação real e da capacidade de aceitação do objeto a ser inserido no ambiente urbano (assim como aconteceu com as utopias). As mesmas instituições que são consideradas vilãs do planejamento urbano são as que têm a maior potencialidade de se tornarem as beneméritas. A principal responsabilidade do urbanismo e do planejamento urbano é desenvolver cidades convenientes para que uma grande variedade de planos, ideias e oportunidades fora do âmbito formal da ação pública floresçam, juntamente com o florescimento dos empreendimentos públicos. As regiões da cidade devem ser locais social e economicamente propícios para atrair a diversidade. Para que haja uma boa articulação entre o Poder Público, o mercado e a sociedade, em uma perspectiva de planejamento integrado, diverso e saudável, deve-se considerar as necessidades de cada segmento em específico para assim tentar compatibilizá-las com as demais. Um desenvolvimento que busque tais características deve ser sustentável, no sentido de ser o resultado de esforços para o estabelecimento de uma sociedade harmoniosa baseada em princípios de igualdade e justiça nas relações sociais. Um urbanismo sustentável, contrapondo-se 45


frente aos processos capitalistas de produção e reprodução urbana, deve procurar resgatar o regionalismo cultural e histórico das localidades urbanas, reconhecendo as particularidades e valorizando as relações interpessoais e humanas do cidadão com seu lugar, história e cultura. Uma sociedade participativa e consciente de seu papel como formadora do espaço é indispensável para um planejamento desse tipo. O planejamento urbano deve buscar conciliar aspectos antes fragmentados, para que em um pensamento integrado completo, consiga promover uma cidade socialmente mais justa. Em uma situação de intervenção urbana, o Poder Público, trabalhando em conjunto com os outros segmentos, precisa ser capaz de cumprir uma considerável quantidade de resoluções para que haja uma boa dinâmica urbana. Para que isso aconteça, em vista disso, as municipalidades devem implantar ligações físicas com a área em evidência, implementar e fortalecer acessos e usos públicos em torno do projeto para consolidar os espaços das ruas, maximizar as oportunidades econômicas e a consequente arrecadação de impostos, incentivar os usos mistos no entorno, manter as atividades (que apresentam um bom e dinâmico funcionamento) existentes, e proteger o caráter cultural da região em destaque. Em relação à sociedade, é necessário que haja por parte dos demais segmentos, tais como a municipalidade e os poderes privados, uma relação de respeito, sobretudo em relação aos moradores tradicionais das diversas localidades presentes nas cidades. É necessário também empenhar-se para que se mantenham os usos e atividades diversificados existentes no espaço urbano sem que haja conflito com o residencial, assim como a manutenção e o fortalecimento das interrelações presentes dentro das comunidades, a promoção de melhorias estruturais, e a criação de áreas de uso público de qualidade. Finalmente, o mercado e o empresário precisam buscar ao máximo o aproveitamento da área em potencial da qual tem posse, promover um empreendimento de quitação rápida e segura, buscar margens de lucro aceitáveis, manter uma boa imagem junto à clientela e a comunidade local, e, em especial, não conflitar com o Poder Público. O desafio é justamente esse: saber conciliar as necessidades de cada grupo e não deixar nenhum segmento predominar e conformar o espaço apenas de acordo com as suas exigências em detrimento das vontades da comunidade. É necessário, 46


portanto, saber desenvolver sabiamente uma vida urbana genuína e aumentar a força da economia urbana: é um engano negar o fato de que nós, habitantes das cidades do século XXI, somos seres urbanos vivendo em uma economia urbana. Entretanto, deve-se fazer uma observação importante: ao buscar um bom planejamento, não basta que os administradores de várias áreas conheçam serviços e/ou técnicas específicas: o que eles precisam conhecer, e a fundo, são lugares específicos. Não há conhecimento que substitua o conhecimento do local no planejamento. É impossível conhecer uma cidade grande por inteiro, e a partir de sua suposta compreensão, propor medidas viáveis e com o detalhamento necessário para orientar operações construtivas e evitar atuações gratuitas, destrutivas. Os planejadores podem acreditar que lidam com a cidade globalmente, vendo o quadro como um todo, mas na verdade, pela natureza do trabalho, a tarefa se mostra hercúlea para qualquer profissional. Voltando à premissa de que aliado ao argumento sociocultural para a defesa de uma maior participação (e empoderamento) da comunidade devem-se unir as argumentações político-financeiras: segundo a análise de Jacobs (1961), as cidades precisam tanto de prédios antigos que é dificílimo conceber espaços urbanos com vitalidade sem eles (os prédios antigos aqui referidos não são necessariamente os bens tombados ou obras grandiosas, mas sim uma boa porção de prédios antigos simples, comuns, de baixo valor, incluindo edifícios deteriorados). Os prédios antigos equilibram as forças de valorização e desvalorização: se em uma área da cidade houver apenas prédios novos, as pessoas e serviços que ali se instalarão serão apenas as que conseguirem arcar com o custo da construção e posse de novos edifícios. Os altos custos de edificações novas muitas vezes suprimem a possibilidade de instalação de serviços e pessoas em áreas da cidade, o que é uma perda grande para a dinamização e geração de vitalidade no espaço: a prosperidade da diversidade econômica em qualquer lugar da cidade pressupõe uma mistura de empresas de rendimentos altos, médios e baixos, sendo que as construções antigas se comportam como catalisadoras de segurança e diversidade.

Esse raciocínio

retoma o entendimento da “Declaração de Amsterdã (mencionada anteriormente), que frisa a relevância do reaproveitamento e reutilização de edifícios antigos como forma de equilibrar as forças contraditórias atuantes no espaço urbano, ao afirmar que intervenções construtivas em bases existentes podem ser mais vantajosas economicamente para o empreendedor do que construções novas. 47


Jacobs (1961) defende também que uma área urbana não fracassa por ser velha, ao contrário: a área é velha por ter fracassado. Por alguma razão ou por uma série delas, os moradores e proprietários dos comércios ali existentes ao longo do tempo se tornaram incapazes de bancar novas construções ou reformas. Essas áreas não conseguiram conter os moradores que foram embora por livre escolha, e também não conseguiram atrair moradores novos, apresentando uma falta de atrativos e oportunidades para induzir a permanência. Em alguns casos, essas áreas podem ser tão improdutivas economicamente que as empresas capazes de fazer sucesso ali não tem nenhum interesse em se instalar no local porque sabem que nessas áreas não lucrarão o suficiente. Uma região bem sucedida apresenta-se constantemente em obras, tendo alguns dos seus edifícios antigos substituídos por novos (ou reformados, equivalendo em valor a um novo). Portanto, com o passar do tempo, cria-se uma mescla heterogênea de edificações de várias idades, tipos e rendimentos, em um processo altamente dinâmico. Os efeitos do tempo sobre a economia transforma o espaço de maneira lenta (porém drástica): o espaço construído que um dia foi essencial em determinado local da cidade, em outro período pode-se tornar inútil e ultrapassado. Em oposição a isso, bairros construídos integralmente em um só momento histórico mudam pouco fisicamente ao longo dos anos: tais locais, produtos de planejamento e/ou de valorização momentânea da área, demonstram uma incapacidade surpreendente de se atualizar-se e revitalizar-se, sendo as modificações físicas encaradas como deterioração. Podemos constatar, nas cidades, a presença de inúmeros exemplos de regiões decadentes construídas na mesma época, que, fisicamente homogêneos, outrora podem até ter sido áreas elegantes da cidade. Nas cidades, o valor econômico dos prédios antigos é insubstituível por ser criado pelo tempo: esse pré-requisito econômico da diversidade é processual, gradativo e único. Dentro dessa análise, é visto que constatar adaptações de velhos espaços para novos usos em uma localidade é extremamente agradável e salutar, principalmente se essas modificações puderem ser vistas ao longo das calçadas pelos pedestres (despertando curiosidade e avivando o interesse pelo local). Essas “pequenas” transformações demonstram que nessas regiões há vitalidade e variedade de serviços que atendem às necessidades das pessoas, e podem se dar através de inúmeros exemplos: uma antiga farmácia que virou gráfica, um cartório 48


que virou mercearia, um açougue que virou loja de roupas, a garagem de um edifício que virou loja de móveis usados, uma casa que virou sorveteria, uma sapataria que virou bar, etc. O ambiente multifuncional e plural, que favorece o contato humano e uma maior circulação de pedestres, apresenta-se como um atrativo para as pessoas, que são estimuladas pela diversidade e curiosidade, e é a partir dessa relação entre o cidadão e o lugar que surge o vínculo socioespacial e o sentimento de pertencimento do lugar. Em meio a isso, as residências e demais usos devem estar mescladas, estabelecendo-se a diversidade sobre a monotonia. A degradação urbana está ligada à imposição de espaços monofuncionais, havendo uma tendência de esses espaços se tornarem rígidos e vazios. Têm se realizado transformações nas cidades hoje em dia que cada vez mais utilizam a cultura como estratégia principal de requalificação de espaços degradados, e é preciso fazer uma observação importante sobre isso: a mercantilização da cidade e dos aspectos urbanos é um acontecimento de longa duração (consequência do domínio das forças do mercado e das forças neo-liberais nas cidades), porém a mercantilização da cidade enquanto objeto cultural é um fenômeno mais recente. Existe uma tendência em transformar partes da cidade em “espaços culturais” para intensificar a mercantilização de seus usos em vistas da maximização de lucros, por meio de propostas supostamente preservacionistas para os centros culturais, que acabam se tornando receptáculos de turistas. Simultaneamente à democratização do campo patrimonial, por vezes ocorre sua transformação em mercadoria, inserindo-se na lógica de uma “indústria-cultural” que tem como objetivo tornar o bem patrimonial em um “produto-cultural” de consumo, através da idealização pura e simples do passado e da criação de cenários históricos estáticos. O “congelamento” de áreas de valor histórico-cultural e a patrimonialização desenfreada, desconsiderando as dinâmicas humanas que ali existem, fazem com que esses espaços urbanos públicos corram o risco de se tornarem cenários desprovidos de sentido e de pessoas, criando simulacros e podendo levar à gentrificação8. A associação entre o cenário urbano histórico e consumo cultural, entretenimento e turismo, muitas vezes faz com que as intervenções urbanas em áreas antigas se transformem em uma espécie de “shopping espontâneo” para o 8

Gentrificação pode ser definida como sendo a substituição de uma população de classe social mais baixa que ocupava uma determinada área da cidade por outra, de maior poder aquisitivo, configurando uma mudança na estrutura social urbana.

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consumo de visitantes (GOMES, 2011, p.138). Finalmente, após a colocação de todos esses aspectos a serem considerados, se faz necessário mencionar, em relação ao contexto recente brasileiro, a Conferência Nacional das Cidades, um evento de responsabilidade do M inistério das Cidades com o apoio do ConCidades9 que vêm ocorrendo desde 2003. Tais encontros promovem a formação de redes de difusão de informações sobre a função social da propriedade e fortificam o Conselho das Cidades, que atua como o articulador das propostas aprovadas nas plenárias do evento. A Conferência, a partir da inferência de que as cidades brasileiras vêm sendo produzidas, ao longo dos anos, sem um ordenamento que pudesse assegurar qualidade de vida para os cidadãos e sustentabilidade para o crescimento futuro com bem estar e felicidade para todos, entende que os cidadãos devem promover esta mudança. Sendo a participação social uma forma de afirmação da democracia, (como legitimado pela Constituição de 1988), as conferências constituem um espaço em que a sociedade tem a oportunidade de protagonizar na elaboração e avaliação das políticas públicas, o que é uma oportunidade significativa de participação política. As conferências visam a construção de uma nova relação entre o Estado e a sociedade civil organizada, de modo que as políticas públicas sejam formuladas através do diálogo com a sociedade e em meio a mediações democráticas. O processo de urbanização nas cidades brasileiras construiu cidades caracterizadas pela fragmentação do espaço e pela exclusão territorial e social, e por isso se faz necessário que se universalize o acesso às políticas urbanas. Ao todo, foram realizadas cinco Conferências das Cidades, sendo que todas elas tiveram em sua pauta o Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano10 (SNDU) instrumento (ainda não implementado) concebido para promover a reversão desse quadro e pensar a cidade integrada e não fragmentada. Sua edição mais recente, que se deu em 2013 (5ª Conferência Nacional das Cidades “Quem muda a cidade somos nós: Reforma Urbana já), teve como objetivos principais propor a interlocução entre autoridades e gestores públicos com os diversos segmentos da 9

O Conselho das Cidades (ConCidades), criado no ano de 2004, é um órgão colegiado de natureza deliberativa e consultiva, integrante da estrutura do Ministério das Cidades. É uma instância de negociação em que os atores sociais participam do processo de tomada de decisão sobre as políticas executadas pelo Ministério das Cidades em diversas áreas, visando a construção de políticas públicas que favoreçam o acesso a todos os cidadãos, tendo sempre como referência as deliberações advindas das Conferências Nacionais das Cidades. 10 Cf. Texto aprovado na plenária da 5ª Conferência Nacional das Cidades.

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sociedade sobre assuntos relacionados à política e desenvolvimento urbano, sensibilizar e mobilizar a sociedade brasileira para o estabelecimento de estratégias para enfrentar os problemas existentes nas cidades e propiciar a participação popular de diversos segmentos da sociedade. A atualidade desses temas, sendo discutidas em escala nacional e em âmbito governamental, reafirma o quão importante são essas questões. O Poder Público, com essas conferências, procura avançar na discussão e na implantação de instrumentos de planejamento urbano, buscando um desenvolvimento urbano sustentável, com redução de desigualdades sociais, e que consiga efetivar as funções sociais da cidade e da propriedade. A cidade é uma construção social, e no campo do planejamento, é preciso vê-la como tal para conseguir atuar sobre ela de maneira saudável e consistente.

2.2. O lixo insustentável e a reciclagem da cidade Nas calçadas, envoltos em límpidos sacos plásticos, os restos da Leônia de ontem aguardam a carroça do lixeiro [...]. Mais do que pelas coisas que todos os dias são fabricadas vendidas compradas, a opulência de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para dar lugar as novas. Tanto que se pergunta se a verdadeira paíxão de Leônia é de fato, como dizem, o prazer das coisas novas e diferentes, e não o ato de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente. [...] uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém quer mais pensar nelas. Ninguém se pergunta pra onde os lixeiros levam os seus carregamentos: para fora da cidade, sem dúvida; mas todos os anos a cidade se expande e os depósitos de lixo devem recuar pra mais longe [...]. Talvez o mundo inteiro, além dos confins de Leônia, seja recoberto por crateras de imundície, cada uma com uma metrópole no centro em ininterrupta erupção. (CALVINO, 1972, p.105106)

O urbanismo brasileiro vem enfrentando nas últimas décadas o desafio de criar ferramentas para deselitizar as propostas urbanísticas que lidam com a dicotomia entre espaço construído e comunidade, instituídos de forma segregadora e tendenciosa (DA SILVA & ROMERO, 2011). O projeto urbano sustentável deve associar a história, o sociocultural e o legal às esferas de sustentabilidade econômica e ambiental, vislumbrando sempre a inclusão igualitária das comunidades e do cidadão. Para combater as desigualdades nas cidades, que afetam sistematicamente grupos específicos de pessoas (seja devido a gênero, renda, etnia, origem social ou 51


modo de vida), deve-se buscar uma sustentabilidade11 aliada à equidade social, sendo isso fundamental para que haja justiça distributiva nas cidades. Em concordância com a argumentação de Koury (2015), entende-se que enquanto a sustentabilidade volta-se para o futuro, a partir da projeção de uma justiça social através da manutenção e aplicação de um sistema, a equidade direciona-se para os problemas do presente e das camadas sociais mais prejudicadas pelo sistema. Uma das características mais relevantes desse raciocínio, que apresenta a sustentabilidade e a equidade como condicionais desejáveis para a construção das cidades, é a capacidade de reintegrar pessoas e comunidades através do reconhecimento das contribuições dos indivíduos para determinada coletividade. Na busca pela implementação de processos sustentáveis na área da construção, a redução do consumo de recursos materiais, assim como a racionalização dos processos construtivos e a redução dos desperdícios, se faz necessária, de modo a tentar minimizar os impactos ambientais produzidos nesses processos. Essa lógica deve vir acompanhada de uma reflexão acerca dos conceitos de “reutilização” e “reciclagem” – para evitar ambiguidades, será necessário aprofundar as questões referentes aos termos. A estética do descartável e da reciclagem, segundo Corrêa (2011), que antes atingia apenas produtos e objetos, estendeu-se às obras de arte, edifícios, monumentos, áreas inteiras da cidade e até mesmo aos corpos humanos, numa ideia incongruente de que tudo é infinitamente reciclável, apesar de termos consciência da finitude dos recursos. Se antes os produtos de pouca durabilidade e qualidade eram destinados às classes mais pobres e com menor poder aquisitivo, atualmente o conceito de descartável e reciclável constituem sinal de crédito social, sendo incorporados na nossa cultura de maneira definitiva. O lixo, agora visto como representativo de riqueza, significa excedente, esbanjamento e extravagância (em contrapartida às comunidades pobres, tradicionais e antigas, que se mantém através da subsistência e da parcimônia).

11

Por “sustentabilidade”, termo já definido anteriormente, entende-se como sendo o resultado de esforços para o estabelecimento de uma sociedade harmoniosa baseada em princípios de igualdade e justiça nas relações sociais. Segundo Romero (2007 apud DA SILVA & ROMERO) “[...] cidade sustentável é o assentamento humano constituído por uma sociedade com consciência de seu papel de agente transformador dos espaços e cuja relação não se dá pela razão natureza-objeto e sim por uma ação sinérgica entre prudência ecológica, eficiência energética e equidade socioespacial”.

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Essa lógica contraditória está arraigada na cultura contemporânea, em que os artefatos e objetos são concebidos desde sua origem para o descarte e a reciclagem (ou seja, são também concebidos como lixo). A dinâmica dessas relações, que afetam desde produtos eletrônicos até grandes áreas urbanas, faz parte da cultura capitalista: quanto menos durável um produto for (ou quanto mais obsoleto ele se tornar), mais vezes o consumidor se verá obrigado a adquirir novos produtos, mantendo o funcionamento intenso do mercado e continuando o ciclo de consumo. Os conceitos de “obsolescência programada” e “obsolescência percebida” se referem a essas ocorrências: enquanto o primeiro se refere ao processo de se desenhar, fabricar ou projetar um produto com a intenção deliberada de que seja útil e funcional apenas por um tempo muito limitado (de modo que os consumidores estarão sempre esperando produtos melhores), o segundo se refere ao processo em que as coisas tornam-se lixo somente porque perdem as propriedades estéticas que as qualificavam anteriormente. As indústrias utilizam-se de vários artifícios para induzir a obsolescência programada. Ao adquirir um celular novo, por exemplo, não demorará muito para que a empresa que o fabricou pare de produzir as peças de reposição e torne as entradas e conexões incompatíveis com os novos objetos, aplicativos e equipamentos12. Do mesmo modo, na obsolescência percebida, uma peça de roupa da moda, por exemplo, tende a perder seu valor rapidamente apenas por não mais ter a aparência e design necessários para a sua aceitação social momentânea, fazendo com que um produto perfeitamente funcional e útil tenha seu tempo de utilização reduzido por ter a aparência de “obsoleto”. Nas sociedades ricas e emergentes, em meio a cultura de massa, os produtos se despersonalizam cada vez mais, dentro de uma estratégia da indústria para evitar o apego a eles e assim estimular cada vez mais a rede de consumo. Essa incessante busca pelo novo faz com que a “arquitetura criada no presente se pareça em qualquer cidade do mundo: pela uniformidade, homogeneidade, repetição e neutralidade cultural e estética ditada por princípios arquitetônicos submetidos aos ciclos do capital e da moda” (CORRÊA, 2011, p.68). A Recomendação de Nairobi de 1976, já citada anteriormente, já fazia uma crítica ao perigo da despersonalização e massificação das

12

No documentário “The Light Bulb Conspiracy” (2010), que relata o histórico da introdução do conceito de “obsolescência programada” na indústria, são mostrados alguns exemplos dessa política atualmente validada por várias empresas e áreas de negócio. Em uma das passagens do documentário, descobre-se que uma multinacional fabricante de impressoras implantava um chip em seus produtos que registrava o número de impressões feitas pela máquina, e quando o contador de páginas chegava a um limite pré-estabelecido pela empresa, a impressora era bloqueada e parava de funcionar.

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cidades, produto desse fenômeno da acelerada obsolescência, efemeridade e reciclagem das obras de arte, arquitetura e áreas da cidade.

Figura 20: cena do filme “Playtime” (1967). Fonte: Blog Only the Cinema. Disponível em: http://seul-lecinema.blogspot.com.br/2009/03/films-i-love-21-play-time-jacques-tati.html

A definição de Augé (1992) para os “lugares” e os “não-lugares” também ajudam a clarificar esse tema. Para o autor, o conceito de “lugar” (antropológico por definição) é definido como necessariamente identitário, relacional e histórico – é o espaço existencial, lugar de uma experiência de relação com o mundo. Um espaço que não possua essas características é o que ele chama de “não-lugar”, constituindo locais que não são espaços antropológicos e que não integram os lugares antigos, inseridos “num mundo da individualidade solitária, da passagem, do provisório e do efêmero”13. Os lugares antropológicos criam o “social orgânico” enquanto os não-lugares criam “contratualidade solitária”, a partir da falta de presença de uma relação estável entre identidade e história. “O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas solidão e semelhança”14. A arquitetura que interessa para os investidores e especuladores do capital, sendo utilizada nas metrópoles, elege como princípios de concepção de projeto a estandardização, a flexibilidade (que permite reconfigurações imediatas do espaço pela vontade do investidor) e a homogeneização. Os espaços passam por um processo de esvaziamento de significado relacional do mesmo modo em que os produtos são despersonalizados pelas empresas para incitar o desapego. 13

AUGÉ, Marc. Não-Lugares – Introdução a uma antropologia da sobremodernidade., 1992, p.70.

14

Ibid., p. 88.

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Nesse âmbito, não são muitas as iniciativas arquitetônicas atuais que consideram, em seu projeto, os valores e aspectos ambientais e culturais do local.

Figura 21: Charge do cartunista Santiago para o Jornal Extra Classe, 2009. Fonte: Jornal Extra Classe. Disponível em: www.extraclasse.org.br

Em relação aos edifícios antigos, ao receberem esses princípios de flexibilização, adaptação ou reciclagem, estes frequentemente mudam de função e uso e se transformam em espaços cujas novas funções seriam impensáveis na época de sua concepção, correndo o possível risco de se tornarem irreconhecíveis, mascarando a própria história e não mais conseguindo gerar sentimentos de pertencimento por parte das pessoas. Os bens antigos não podem estar fadados a uma reciclabilidade extenuante e impensada, transformando-se em resíduos históricos. A fim de evitar esse tipo de ação, devem ser estimuladas práticas relacionadas à readequação de imóveis (e conjuntos) em função de usos, exigências e necessidades adequados com o momento presente. Pensar em readequar antigos edifícios, em situação de negligência, para moradia ou equipamentos de uso social, é uma opção tecnicamente viável e mais responsável do ponto de vista socioambiental, o que possibilitaria o aproveitamento dos suportes de infraestrutura existentes e uma validação dos valores do lugar. Entre o abandono total 55


de edifícios esvaziados e a museificação absoluta, entre as necessidades reais da comunidade e as propostas de marketing para o turismo, devem ser realizadas as ações de restauro e de reutilização criteriosa. As propostas de planejamento devem estar situadas numa reflexão do tempo presente para tentar compreender e atuar conscientemente frente às situações ocasionadas pelo universo (ir)real do consumo e pela produção do espaço, numa época em que o ideal é de reciclagem contínua e de desenvolvimento e progresso incessante. De acordo com a análise de Corrêa (2011, p.86), em relação à arquitetura e o urbanismo, existem pelo menos três posturas técnicas, artísticas e éticas relacionadas ao tema atualmente: a primeira é aquela realizada por profissionais (como Rem Koolhaas) que se alinham com a configuração espacial dos novos valores da cultura de massas, do efêmero e do transitório, se filiando plenamente com as forças e dinâmicas contraditórias; a segunda, é a adotada pelos arquitetos que vêm explorando as possibilidades de uso de materiais não convencionais, como pneus, plástico de garrafa e papel (como Shigeru Ban); e, por fim, a postura dos profissionais (como Peter Zumthor) que reafirmam o valor da permanência e do lugar antropológico, da cultura e da identidade. Não se aspira, com esse trabalho, se filiar às forças contraditórias conformadoras do espaço físico das cidades, ou seja, não é desejável contribuir para a manutenção desse ciclo da cultura do incessantemente descartável. Diante desse raciocínio, estaria justificado, portanto, a recusa nesse trabalho da adoção do termo “reciclagem” para se referir a uma intervenção em edifícios/áreas subutilizadas de interesse cultural, tendo em vista a carga ambígua de significados que essa palavra carrega na contemporaneidade.

Assim sendo, se fará útil pormenorizar outras terminologias

empregadas em relação ao espaço urbano para justificar a escolha realizada e as intenções projetuais. Assim como acontece na palavra “reciclagem”, o prefixo “re” é empregado em várias definições terminológicas referentes a preexistências: renovação, reabilitação, regeneração, requalificação, restauração, recuperação, entre outras. Segundo Vasconcellos & Mello (2003), o “re” é uma estratégia que considera (ou finge considerar) a inclusão do tempo na análise do espaço, sem, contudo, explicitar os significados de tais conceitos e as metodologias para que sejam empregadas. Essas imprecisões de definição fazem com que essas palavras sejam utilizadas 56


indiscriminadamente (grande parte das vezes através de modismos), tornando clara a importância do uso adequado dessas terminologias: a aplicação de uma nomenclatura não deve ser utilizada ao acaso, como tem sido feito exaustivamente, mas sua história e processo de integração no campo da arquitetura e urbanismo devem ser levados em consideração para que os termos tornem-se instrumentos importantes na compreensão e na ação que estarão influenciando (PASQUOTTO, 2010, p. 147). Para isso deveremos tentar desembaraçar o significado dessas palavras à luz de análises mais atuais. As expressões iniciadas pelo prefixo “re” começaram a ser definidas e utilizadas a partir do século XIX com o surgimento dos primeiros planos de “Renovação Urbana” que tem como exemplo clássico a reforma de Paris realizada por Haussmann (cujo modelo de atuação foi reproduzido no Brasil e no resto do mundo). Contudo, foi após a Segunda Guerra Mundial que o termo começou a ser amplamente utilizado, sobretudo nas grandes áreas das cidades remanescentes de bombardeios e/ou consideradas abandonadas e degradadas (no processo já explicitado no item 1.1 do trabalho). As políticas públicas de “renovação” visavam a “reposição completa de grandes áreas do tecido urbano consolidado, principalmente aquelas dos antigos centros” (DEL RIO, 1990, p.19). As políticas do período, como vimos, se dava aliada aos princípios dos CIAMs e da Carta de Atenas (1933) pelo Urbanismo Racionalista, e nesse entendimento, podemos interpretá-las como a “substituição pura e simples das estruturas físicas existentes como condição apriorística da adaptação das cidades herdadas às ‘necessidades da vida moderna”15. A crítica maior a esse modelo de atuação se dá quando percebemos que a demolição de estruturas existentes numa área urbana e sua consequente substituição por novas edificações, provavelmente pertencentes a um novo padrão urbano, visando atribuir uma nova estrutura funcional à área, ocorre de maneira quase sempre elitista e impessoal. Passando por cima de tudo (e de todos), desrespeita-se, assim, as relações históricas e socioculturais presentes na região, promovendo a construção de edificações que em muitas vezes nada se relacionam com a paisagem urbana e com a identidade dos cidadãos. Além disso, alinhado ao pensamento de Jacobs (1961), vimos como levantar áreas inteiras da cidade de uma só vez é nocivo para um desenvolvimento adequado de diversidade urbana.

15

PORTAS (1986, apud PASQUOTTO 2010, p. 144)

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O termo “revitalização” teve sua origem a partir da década de 60, a partir da revisão dos princípios do Urbanismo Racionalista e a ampliação dos conceitos relativos aos monumentos históricos com a Carta de Veneza. O tecido urbano histórico agora é merecedor de valoração, o que faz com que o período de demolições, próprio do Urbanismo Racionalista, vá ficando pra trás. Em consonância com esses ideais, na “revitalização” realizam-se ações que tentam dar novas funções e formas às arquiteturas e contextos urbanos estabelecidos, que sejam, entretanto, capazes de respeitar o entorno e os valores identitários, culturais e históricos presentes no local. O conceito de “revitalização” se põe como um termo abrangente, sendo o conjunto de “operações destinadas a relançar a vida econômica e social de uma parte da cidade em decadência” (Carta de Lisboa, 1995). Nos anos 90, o termo passa a ser questionado, tendo em conta que as intervenções realizadas sob essa nomenclatura não eram sempre bem sucedidas: não era raro expulsarem a população residente, o comércio e as atividades particulares do local (o que é controverso, pois ao pé da letra, o termo deveria ser utilizado para espaços urbanos onde não há mais vida). Tornou-se impreterível encontrar outros termos (e modos de atuação) que se adequassem melhor às necessidades atuais. Assim, vários novos termos foram sendo utilizados (frequentemente de maneira vaga), como recomposição, reciclagem, reinvestimento e regeneração. Por “requalificação” entende-se toda uma gama de serviços que vai desde a reinserção em vazios urbanos até grandes obras urbanísticas16. Segundo o Ministério das Cidades, são as ações destinadas a dar melhores condições a uma área que se encontre degradada, sendo que a qualificação do espaço é buscada por meio de uma “integração às necessidades contemporâneas”. Em geral, para que isso ocorra, as propostas buscam aumentar a atratividade e competitividade na área, tentando torná-la propícia para convergências econômicas17. A “restauração”, na Carta de Lisboa, é um termo que define as obras especializadas e minunciosas, realizadas por profissionais, que têm por objetivo a consolidação e a conservação do bem patrimonial. Resumidamente, pode ser definida como o processo de recomposição do edifício da maneira como historicamente ele se

16

MIRANDA, M. P.; ARAÚJO, G. M. & ASKAR, J. A. Mestres e conselheiros: Manual de atuação dos agentes do Patrimônio Cultural, 2009, p.166. 17 Cf. Material de apoio do curso a distância de autoinstrução - Reabilitação Urbana com foco em Áreas Centrais.

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constitui (respeitando seu processo histórico intrínseco). É uma intervenção direta sobre o objeto, visando manter sua integridade material, assegurar a conservação e a proteção de seu valor cultural e sua transmissão ao futuro18. Já o termo “reabilitação urbana”, um dos mais utilizados no novo milênio, em sua origem carrega o significado de reestabelecimento de direitos: “na jurisprudência é a ação de recuperar a estima e a consideração”19. O termo é considerado por alguns autores o que mais pressupõe a preservação do ambiente construído e ocupado – as ações de “reabilitação” compõem um processo integrado de recuperação das áreas urbanas, implicando tanto no restauro de edifícios quanto em intervenção sobre o tecido urbano no sentido de tornar a área dinâmica. A palavra ainda tem sido empregada como maneira de buscar um desenvolvimento urbano sustentável20. O termo “reabilitação” surge em 1975 na Declaração de Amsterdã como uma consideração essencial a ser observada pelos planejadores urbanos. Apesar de surgir como uma estratégia de reabilitação de bairros antigos, o uso do termo pode ser aplicado a áreas mais novas, mas que possuam os mesmos problemas, tais como degradação urbana e edilícia e conflitos sociais. A Carta de Lisboa explica o termo como sendo uma estratégia de gestão urbana para “requalificar” a cidade através de intervenções destinadas a valorizar as potencialidades sociais, econômicas e funcionais a fim de melhorar a qualidade de vida das populações existentes e mantendo a identidade do lugar (Na Carta de Lisboa, o significado de “requalificação” e “reabilitação” confundem-se). Para o Manual de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais do Ministério das Cidades (2008) reabilitar um centro urbano significa recompor (através de políticas públicas e de incentivos à iniciativas privadas) suas atividades e vocações, habilitando novamente o espaço para o exercício das múltiplas funções urbanas historicamente localizadas naquela área. A partir de alguns critérios21, o governo privilegia o apoio à municípios que adotem a reabilitação urbana como estratégia prioritária de desenvolvimento por meio de seleções públicas. Desta maneira, há um movimento para que haja o desenvolvimento de uma prática urbana com

18

MIRANDA, M. P.; ARAÚJO, G. M. & ASKAR, J. A. op. cit, p. 167. CHOAY & MERLIN (1988, apud VASCONCELLOS & MELLO 2003, p. 61) 20 VALENTIM (2007, apud PASQUOTTO, p.147). 21 Cf. Manual da Sistemática do Programa do Programa de Reabilitação Urbana. 19

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responsabilidade social, numa tentativa de reverter o processo de exclusão socioterritorial. A reflexão justifica a escolha do termo “reabilitação” no título e na intervenção que se propõe para o presente trabalho. A Reabilitação Urbana pressupõe o estabelecimento de relações harmônicas entre usos existentes e novos, assegurando a manutenção da estrutura urbana e a conservação das principais características arquitetônicas dos edifícios. Esse tipo de atuação tem como princípio a negociação e participação entre Poder Público, mercado e sociedade. As áreas urbanas centrais podem ser definidas como sendo referência (cultural e simbólica) para a população da cidade por serem (ou terem sido) núcleos de convergência de fluxos, usos e atividades múltiplas, polarizando a oferta de serviços e empregos não só apenas para a população local, mas para a região. O conceito de “centralidade” está mais ligado ao de um espaço de “convergência” do que a uma centralidade geográfica. As centralidades gozam de certo privilégio justamente por terem recebido investimentos do Poder Público (e do mercado) para atender à demandas socioeconômicas. Desse modo, em algum momento de sua história, as áreas urbanas centrais antigas se tornaram locais privilegiados por terem ganho construções,

infraestrutura

e

equipamentos

urbanos,

que

impactaram

no

ordenamento do território. O centro é uma construção coletiva, e tendo em vista todo o capital social e econômico ali aplicado ao longo da história de uma cidade, se porventura essas localidades se tornarem abandonadas e negligenciadas, deve-se tentar ao máximo contornar a situação para não perderem-se os investimentos realizados. Os centros, entretanto, ao longo da história têm sido abandonados, descaracterizados e mal aproveitados, o que é ocasionado por diversos motivos. Uma das razões que contribuem para tanto é o rápido crescimento do tecido urbano, que, frequentemente, levam ao aparecimento de novas centralidades, que “competem”, sobretudo do ponto de vista econômico, com o centro tradicional. Essas áreas também são comumente objetos de intervenções incoerentes (tais como as ações de Renovação Urbana), implantadas a partir da vontade de poderes afastados da realidade da sociedade, podendo predominar a construção de edifícios de escala, uso e tipo desproporcionais à vida local. Assim, em grande parte das 60


cidades, mesmo após terem sido empreendidos enormes quantidades de investimentos, existe um incontável número de imóveis desocupados, invadidos, obsoletos, mal cuidados e descaracterizados. Nota-se que essas áreas centrais são intensamente usadas, sobretudo durante o dia, quando as atividades de comércio e serviço proporcionam um fluxo ativo de pessoas circulando no local (OLIVEIRA, 2010). A realização de um plano de reabilitação em uma área urbana central, cujo objetivo é enfrentar os problemas de degradação urbana relacionados ao abandono de territórios consolidados e/ou com infraestrutura subaproveitada, empenhando-se no cumprimento da função social de propriedade, deve estar inserida dentro de um amplo contexto de planejamento urbano. O termo “reabilitação” tem a conotação de restituição de direitos, e é exatamente isso o que está sendo defendido: um processo integrado e sustentável de atuação no tecido urbano constituído das cidades.

3. Forças de degradação e recuperação

3.1. Uma interpretação da história de Juiz de Fora [...] algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos. É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões-postais não representam a Maurília do passado mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília. (CALVINO, 1972, p.30-31)

A cidade de Juiz de Fora, que atualmente possui uma população aproximada de mais de 550 mil habitantes22, pode ser definida como uma cidade de porte médio, que, assim como muitas outras, é governada diariamente pelas forças do capital no que concerne a sua composição espacial urbana. Está geograficamente situada no sudeste de Minas Gerais no Vale do Rio Paraibuna, localização que, como veremos adiante, foi fundamental para o florescimento da cidade. 22

Segundo a projeção do IBGE de 2010 para o ano de 2014.

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A necessidade de conhecermos o meio em que estamos inseridos e de nos posicionarmos dentro de um conjunto maior de fatores é uma das premissas fundamentais para tentar superar as adversidades existentes no local. Para isso, faremos uma análise resumida dos processos históricos e socioeconômicos que levaram ao surgimento e ao desenvolvimento do município, bem como as relações entre a formação do espaço e os diferentes agentes conformadores do tecido urbano de Juiz de Fora, que será objeto de estudo e proposta de intervenção. Veremos como a morfologia de Juiz de Fora esteve, desde o princípio, atrelada a poderes que foram gradualmente moldando a cidade e caracterizando as suas especificidades urbanas. A história da cidade de Juiz de Fora está diretamente ligada a alguns eixos (ou caminhos), que foram fundamentais para sua formação e transformação, sendo eles o Caminho Novo, a Estrada Nova do Paraibuna, a Rodovia Companhia União e Indústria, e a Estrada de Ferro (ou Ferrovia Dom Pedro II). A implantação desses eixos no espaço é importante para a compreensão da trajetória urbana da cidade, sendo necessário atentarmo-nos para o entendimento de tais processos. A descoberta de ouro, em Minas Gerais, levou à construção de caminhos que ligavam as áreas mineradoras, no interior do estado, até o litoral, para o transporte desse artigo valioso. Um desses trajetos construídos foi o “Caminho Novo”, que, concluído em 1709, ligava a região das minas (partindo de Borda do Campo, atual cidade de Barbacena) ao porto do Rio de Janeiro. Para estimular a ocupação da região, a Coroa concedeu sesmarias23 ao longo do Caminho, e desse modo, foram surgindo povoações em torno dos ranchos e fazendas plantadas pelos sesmeiros. Entre as terras parceladas, estava a do “Juiz de Fora” (um antigo cargo ocupado por magistrado nomeado pelo Governo Geral) Luís Fortes Bustamante de Sá, que construiu uma fazenda em sua propriedade. A partir de 1840, com o fim do ciclo do ouro e o avanço da cafeicultura, esta nova atividade foi se consolidando ao redor da área, o que reverberou diretamente na evolução urbana da localidade e transformou-a em principal núcleo urbano da região. O ciclo do café em Minas Gerais, assim como em São Paulo, tem como uma de suas características marcantes a ideia de modernização dos barões de café, que se traduziu em investimentos industriais e financeiros, repercutindo, desta forma, na urbanização das

23

Sistema de concessão de terras utilizado na época.

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cidades por eles escolhidas para seus investimentos ABDALLA, 2000, p. 5)

(PIRES apud

Nesse contexto, “Juiz de Fora é escolhida não apenas [para ser] a cidade dos investimentos do café, mas para a realização da utopia urbana dos barões de café da Zona da Mata mineira” (ABDALLA, 2000, p. 7). Esse momento econômico repercute na estruturação de Juiz de Fora, sendo a atividade cafeicultora responsável pelo capital de investimento que permitiu que a cidade se tornasse a principal economia mineira do período (e posteriormente, uma cidade de caráter industrial).

Figura 22: Desenho de Juiz de Fora traçado por Halfeld em 1855. Fonte: Arquivo Histórico da Cidade de Juiz de Fora apud SANTOS & SANTOS, 2011.

Em 1836, o engenheiro Henrique Halfeld foi contratado pelo governo mineiro para melhorar o caminho entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro (então sede da Corte), o que resultou na construção da Estrada do Paraibuna. A partir do traçado da Estrada, começou-se a formar o arraial de Santo Antônio do Paraibuna, que cresceu próximo à pousada-fazenda do Juiz de Fora. Em 1850, o povoado foi elevado à categoria de vila, e com isso, a malha urbana da região foi se constituindo a partir de um traçado de ruas elaborado por Halfeld. O engenheiro apropriou-se fisicamente de um trecho da Estrada do Paraibuna e designoua como a principal rua da localidade, a Rua Direita (atual Avenida Barão do Rio Branco), que veio a se tornar o principal eixo viário de desenvolvimento do centro da cidade. As demais ruas são desenhadas em perpendicular à Estrada ou paralelas a ela, funcionando como eixo gerador da malha urbana, definida por grandes quadras com 63


regularidade e planejamento (COLCHETE FILHO; MARANGON & FONSECA, 2010, p. 7). Ao longo da Rua Direita, concentrava-se o conjunto urbano da cidade, onde se localizavam a Igreja, as repartições públicas e a praça central da cidade (o atual Parque Halfeld), além de ser o local escolhido pela elite para a construção de seus ricos sobrados.

Figura 23: Vista da Avenida Rio Branco no início do século XX. Fonte: Tribuna de Minas apud SANTOS & SANTOS, 2011.

A elevação da Vila de Santo Antônio do Paraibuna à categoria de cidade, em 1856, contou com várias iniciativas para comemorar o fato, e dentre elas, destaca-se a abertura das ruas a partir da malha definida pela Rua Direita: perpendicularmente, foram criadas as ruas Imperial, da Califórnia e do Cano (atuais ruas Marechal Deodoro, Halfeld e Sampaio), e no sentido paralelo, as ruas Santo Antônio (ainda com esse nome) e Formosa (atual Rua Batista de Oliveira) (PASSAGLIA, 1982). Outro elemento estruturador essencial na formação do traçado da cidade foi o eixo criado a partir da construção da Estrada União Indústria (hoje, Avenida Getúlio Vargas), a partir da instalação da sede da companhia de mesmo nome no município. Essa estrada, inaugurada em 1861, que ligava Juiz de Fora a Petrópolis (encurtando o caminho entre Minas e a Corte), foi incentivada pelo Comendador Mariano Procópio. Seu desenho foi orientado pelo curso do Rio Paraibuna e passava pelo que até então era considerada a periferia da área urbanizada da cidade, possibilitando uma expansão natural e desenvolvimento industrial do local, com a construção de galpões e indústrias ao longo de sua extensão e nos arredores. 64


Formou-se aí a Praça ou Largo da União e Indústria, hoje Praça do Riachuelo, e a cidade, assim, cada vez mais se consolidava como um importante entreposto comercial e econômico da Zona da Mata Mineira. Observa-se também que o tecido urbano foi se estabelecendo com influência de padrões higienistas, a partir da malha ortogonal sobreposta aos dois eixos conformadores da cidade – a Rua Direita e a Estrada União e Indústria. Além disso, ocorriam iniciativas de embelezamento por parte da Câmara Municipal, numa tentativa de seguir os padrões europeus de urbanização (SANTOS & SANTOS, 2011). Previu-se também, nesse período, a construção da Avenida do Córrego da Independência, indo da Rua Direita à atual Praça Presidente Antônio Carlos (o que só foi concretizado em 1970). Por fim, o último dos eixos mencionados, a Ferrovia Dom Pedro II, em 1875, é implantada na cidade (no sentido leste - oeste), afirmando sua importância como polo econômico e centro ferroviário de Minas Gerais. A inserção da Estação Ferroviária de Juiz de Fora permitiu a construção do Largo da Estação, e firmou as ruas Halfeld e Marechal Deodoro como eixos vitais para o centro do município. Com o capital acumulado a partir do desenvolvimento da lavoura cafeeira, o eixo ferroviário se expande e a cidade recebe também a Estrada de Ferro Leopoldina, que atravessa o território urbano no sentido norte – sudeste. A implantação da ferrovia, próxima às margens do Rio Paraibuna, afirmou o avanço tecnológico do município sobre a sinuosidade do Rio. A cidade, já bastante avançada em termos tecnológicos para o período, em 1881 já possuía bondes à tração animal em linhas que serviam o transporte da Rua Direita à Estação (passando a ter bondes elétricos em 1906). A partir desse período, também se instalou em Juiz de Fora a primeira casa bancária de Minas e a Escola do Comércio, o que reafirmava seu papel como entreposto comercial, de produção e político. Impulsionando ainda mais seu futuro progresso industrial, em 1888, foi construída a primeira usina hidroelétrica do país, a Usina de Marmelos, que por iniciativa do industrial Bernardo Mascarenhas, possibilitou a iluminação da cidade e a geração de energia elétrica. Mascarenhas contribuiu em definitivo para a transformação da cidade em polo industrial, ao construir as instalações da fábrica de tecelagens Mascarenhas e Morrit Cia. na Estrada União e Indústria. Na época, a fábrica de tecidos estava localizada em um ponto periférico da malha urbana, junto 65


ao desaguadouro do Córrego da Independência, trazendo crescimento para essa área da cidade. Nessa mesma área se instalou a Alfândega Ferroviária, em 1893, cujo pátio frontal definiu o Largo da Alfândega (atual Praça do Canhão).

Figura 24: Av. Rio Branco próximo a rua Halfeld (arquivo de Ramon Brandão). Destaque para os bondes e a iluminação pública. Fonte: Blog Acervo Maria do Resguardo.

Figura 25: Estrada União Indústria e a usina de Marmelos ao fundo. Fonte: Blog Acervo Maria do Resguardo. Disponível em: http://www.mariadoresguardo.com.br/2010/01/ponte-americana-estradauniao-industria.html

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A cidade, no auge da modernização, encontrava-se em um momento único de sua história. O enorme progresso industrial, propulsionado pela eletricidade e a modernização dos equipamentos urbanos, levou Rui Barbosa a denominar a cidade como a “Manchester Mineira” (termo relembrado até os dias de hoje pelo moradores da cidade). Juiz de Fora era considerada a cidade mais moderna do estado, sendo que não havia outra localidade “a que ela se equiparasse sob qualquer aspecto, principalmente sob o aspecto industrial” (OLIVEIRA apud SANTOS & SANTOS). Mesmo dentro desse quadro de prosperidade, a partir da década de 1920, uma queda significativa das atividades comerciais e o declínio da economia cafeeira contribuíram para o fim desse período, e Juiz de Fora encontrou-se no limite das suas potencialidades desenvolvidas – a queda dos negócios de exportação levou a cidade a viver um período de estagnação econômica. No período militar, entretanto, a cidade de Juiz de Fora volta a ter impulsos industrializantes, com a instalação da Siderúrgica Mendes Júnior (atualmente Belgo Mineira), da Companhia Paraibuna de Metais, e, mais recentemente, da montadora Mercedes Bens. Apesar disso, a cidade, ao longo dos anos, foi se transformando de centro comercial atacadista para um pólo prestador de serviços. O atual centro da cidade permanece em seu local original. Observamos que os eixos mencionados, norteadores da formação do espaço urbano, ainda hoje conservam as características de locais importantes de concentração de fluxos, serviços e equipamentos, desempenhando um papel fundamental na organização espacial da cidade. Atualmente, a Avenida Rio Branco (antiga Rua Direita) e a Avenida Getúlio Vargas (Estrada União e Indústria) são utilizadas como principais referências de caracterização do espaço urbano, definindo as regiões norte/sul, cidade alta/centro, parte alta/baixa, etc. Esses dois eixos, juntamente da Avenida Independência, originada a partir da canalização e utilização do Córrego Independência, formam em conjunto o chamado “triângulo central” do centro da cidade, o que é, de acordo com Abdalla (2000, p.10) considerado o coração vivo da cidade de Juiz de Fora, não apenas o lugar central do nascimento da cidade, isto é, este é o lugar onde a vida urbana ocorre e é possível observar o cidadão local, o cotidiano urbano, a cultura da cidade, a sociedade, os debates e problemas regionais, enfim, é o lugar onde a cidade expõe as suas próprias coisas.

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Figura 26: Mapa do Triângulo Central de Juiz de Fora. Fonte: Google Earth, 2015, editado pelo autor.

Embora tenham surgido outras centralidades na cidade, o centro original da cidade é ainda o pólo de integração, encontro e dinamismo, sendo rico em referências simbólicas que fazem parte do imaginário das pessoas. Isso reforça a vocação original do centro tradicional, voltado para os usos de comércio, lazer, habitacional e de serviços, que atraem um fluxo grande e diversificado de pessoas. Em Juiz de Fora, diferentemente do que aconteceu em outras cidades cujos centros históricos se tornaram decadentes e esvaziados pela migração para novas áreas, há uma visível concentração e valorização do centro. Em Juiz de Fora, o espaço urbano público central é caracterizado por uma intrincada trama de espaços públicos (praças, galerias, calçadões) que favorecem uma grande variedade de usos. O elevado número de estabelecimentos comerciais e serviços nas ruas do centro garantem um uso intenso durante os horários comerciais. O comércio de rua, que oferece preços menores e maior concorrência em relação aos shoppings, por exemplo, favorece a manutenção da vitalidade nesses espaços, além de propiciar espaços de encontro e integração. Essa diversidade complexa e densa é o que garante uma sustentação mútua complexa 68


entre as relações econômicas e sociais. Essas ruas “divertidas”, em que o ir e vir de estranhos são um trunfo para a manutenção da conformação espacial, a curiosidade do transeunte torna a rua bem provida de olhos e aviva o espaço. Apesar de toda essa vida urbana experimentada, é perceptível um processo de degradação em boa parte da área central, o que será abordado a seguir. Defendendo aqui que a cidade precisa de um coração central forte e abrangente 24, necessário para a geração de um complexo social, cultural e econômico, a presença de lugares despersonalizados pontilhados na região central é danoso para um pleno funcionamento da cidade. Nossa dificuldade maior hoje é alojar as pessoas nas regiões urbanas e evitar os estragos causados por zonas apáticas e desassistidas25. Nos deteremos, aqui, no núcleo conformado pela Praça Doutor João Penido e seu entorno próximo, principalmente as ruas Marechal Deodoro, Halfeld e Avenida Francisco Bernardino. A atual Praça Doutor João Penido, popularmente conhecida como Praça da Estação (nome que será preferido nesse trabalho devido ao apelo que representa para a cidade), como já vimos, foi fruto do período de implantação de ferrovias na cidade de Juiz de Fora.

Figura 27: Mapa das vias do entorno da Praça da Estação. Fonte: Google Earth, 2015, editado pelo autor. 24 25

JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades, 1961, p.181. Ibid., p. 242.

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Em 1877, a Câmara de Juiz de Fora comprou o terreno referente à praça da estação e suas proximidades para a construção da linha férrea, objetivando facilitar ainda mais o transporte da produção cafeeira, inaugurando também o prédio da Estação Central. Em 1898, a área em questão recebe o nome de Doutor João Penido, e o estabelecimento da Estação Ferroviária na área no mesmo ano impulsiona notavelmente o comércio das ruas Halfeld e Marechal. A Praça da Estação, localizada na área conhecida pela população da cidade como a “parte baixa” do centro (onde o comércio, o serviço e as linhas de ônibus urbano, em sua maioria, atendem à população de menor poder aquisitivo em relação à “parte alta”26), até o inicio do século passado era marcada por inundações constantes do Rio Paraibuna. Em razão de suas cheias cíclicas e da possibilidade iminente de alagamento, anteriormente à retificação do Paraibuna27, havia uma desvalorização dos terrenos no local.

Figura 28: Praça da Estação, enchente de 1906. Fonte: Blog Acervo Maria do Resguardo. Disponível em: http://www.mariadoresguardo.com.br/2011/08/praca-da-estacao-enchente-de-1906.html

O “Largo da Estação”, diferentemente de outros espaços urbanizados da história de Juiz de Fora que se instituíram diretamente a partir da trama conformada pelo principal (e primeiro) eixo da cidade, a Rua Direita/Avenida Rio Branco, foi orientado pela linha dos trilhos da ferrovia e pelas ruas Halfeld e Marechal Deodoro resultando em uma forma espacial triangular. A implantação da Ferrovia ocasionou 26

A divisão imaginária entre a “parte alta” e a “parte baixa” do centro se dá a partir do eixo conformado pela Avenida Getúlio Vargas. Essas áreas são referidas pela população de Juiz de Fora comumente por meio desses termos. 27 A partir do Plano de Defesa contra as inundações em Juiz de Fora implementado em 1915, e o Plano de Bacia do Córrego Yung em 1920.

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no surgimento de novas ruas, e a linha férrea gradativamente consolidou-se como uma das vias principais da cidade, sendo responsável por levar e trazer produtos (e pessoas) das cidades distantes, representando o contato com outras realidades. A partir dessa nova estrutura implantada, a Praça da Estação vai ganhando uma grande importância: nessa área da cidade, que surgiu a partir do eixo criado pela Ferrovia Dom Pedro II, se localizou todo um sistema de serviço e comércio para atender o fluxo da demanda na escala regional, principalmente para a população de baixa renda, localizando-se aí, habitações proletárias, cortiços, oficinas e indústrias de pequeno e médio portes. (PASSAGLIA, 1982, p. 63). Á área também se consolidou como um dos setores mais expressivos da cidade (arquitetônica e plasticamente), e tendo desempenhado esse

papel de

localidade agregadora devido ao sistema ferroviário implantado, possui em seu entorno um acervo de edifícios históricos bastante importantes para a cidade. O ecletismo se inseriu aqui a partir da contribuição dos imigrantes europeus, sendo emblemático do período da transição da economia juiz-forana em que os costumes de uma sociedade agrária vão sendo sobrepujados pelos novos modos de pensar de uma sociedade industrial28. Essa contribuição também pode se afirmar em relação ao Art Déco, construído aqui aproximadamente a partir de 1940 através de um intercâmbio cada vez maior entre o Brasil e a Europa. A arquitetura, relacionando-se intrinsecamente com as mudanças socioeconômicas que se concretizavam nas primeiras décadas do século XX, ajudava na visibilidade do que estava acontecendo no período. As novas construções que circundavam a Praça da Estação e as ruas que nela culminavam, Halfeld e Marechal Deodoro, formaram um conjunto, que com a simplificação das linhas e racionalização das formas, marcava uma nova época, em contraponto ao tempo baseado na economia cafeeira e dos belos sobrados da Avenida Rio Branco. Havendo um deslocamento visível das atividades concentradas no núcleo de povoamento original para esse novo centro. Havia uma grande concentração de hotéis na Rua Halfeld em virtude de sua proximidade à Ferrovia, onde havia o ir e vir constante de viajantes. A Rua Halfeld, vista com glamour e sendo frequentada pela “boa sociedade”

(além de consolidada como o centro

político da cidade devido à sua proximidade com a Câmara Municipal), se 28

GENOVEZ, Patrícia Falco et al. Núcleo Histórico e Arquitetônico das ruas Halfeld e Marechal Deodoro - Parte Baixa, 1998, p. 21-22.

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contrapunha à Marechal Deodoro, local mais procurado pelas classes mais baixas. A parte baixa desta via era considerada uma área pobre, e as construções que lá se estabeleceram, embora simbólicas do progresso e da modernização, verticalizavam a paisagem, o que gerou um estranhamento por parte dos habitantes de Juiz de Fora, acostumados aos palacetes que relembravam os tempos áureos dos fazendeiros29. O espaço inicial da Praça configurou-se como um ambiente de encontros, propiciado pelo grande fluxo de pessoas provenientes da estação. Devido a este aglomerado de pessoas, o paisagismo inicial da praça não possuía muito detalhes, com vegetação de baixo porte e poucos arbustos, além da demarcação do centro da praça com a presença do busto de seu fundador (transferido posteriormente para o Parque Halfeld). Tomando como base o levantamento de planta cadastral realizando pela Prefeitura de Juiz de Fora em 194530, constata-se que nesse período a praça já não possuía mais os canteiros de sua concepção inicial, e o ajardinamento ficou restringido à arborização em alameda. Segundo relatos de antigos moradores, neste período a Praça era frequentada

durante dia e noite, tendo em vista o grande

fascínio que o trem exercia na população, que gostava de ir ver o mesmo passar. O comércio também recebia grande destaque devido à carga e descarga e ao intenso transporte de passageiros. A partir do modelo desenvolvimentista adotado pelo governo brasileiro a partir de 1960, incentivando a indústria automobilística e encerrando os investimentos no transporte ferroviário, a área começa a perder a sua importância. Com esse declínio, a movimentação de pessoas na Praça diminui, e as características da região começam a se modificar. Por exemplo, os hotéis ali instalados, que atendiam a um público vinculado à ferrovia, passam a atender novos clientes, e o comércio passa a fornecer produtos mais simples. A substituição dos bondes pelas linhas de ônibus fez com que os habitantes mudassem seus hábitos, tendo agora um transporte mais rápido e que chegava à

29

Ibid., p. 26. Entre 1945 e 1950 a Prefeitura cadastrou todo o centro da cidade. (JÚNIOR, Vítor Hugo Vidal Rangel. Parque Halfeld e Praça da Estação, Juiz de Fora – MG: Uma leitura histórica, paisagística e urbanística, 2009, p.41.) 30

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áreas distantes do centro da cidade, levando a população a transitar fora do perímetro da Praça. O movimento de pessoas, portanto, deslocou-se, passando a concentrar-se mais nas Avenidas Getúlio Vargas e Barão do Rio Branco, e isso marginalizou não apenas o comércio da área da Estação, mas também os próprios moradores e transeuntes da parte baixa das ruas Halfeld e Marechal Deodoro. O local, assim, começa a enfrentar problemas relacionados à insuficiência de mobiliário, falta de segurança e iluminação inadequada, passando por uma série de projetos de reforma do espaço a partir do ano de 2003. O projeto de reforma, elaborado pelos arquitetos Frederico B. Halfeld e Christiane P. Travassos, reafirmava o espaço como predominantemente de passagem, não sendo incluído nenhum equipamento destinado ao lazer. Adicionalmente à colocação de postes de iluminação, bancos e lixeiras, construiu-se um canteiro elevado na Avenida Francisco Bernardino para evitar que os pedestres atravessem a via fora da faixa própria, direcionando o fluxo da travessia e tornando-a mais segura. Tentando não sobrepujar a Praça em relação ao entorno histórico, não se plantou nenhuma árvore nova e manteve-se as demais com a copa baixa, de modo a não atrapalhar a visão dos demais edifícios. Atualmente observa-se que a praça permanece consolidada como espaço de passagem, sendo que algumas atividades de lazer se dão esporadicamente com a montagem de palcos temporários para a realização de comícios políticos e eventos culturais promovidos pela Prefeitura.

Figura 29: Foto da Praça da Estação, edificação com segundo andar esvaziada, 2015. Fonte: acervo do autor.

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Figura 30: Foto da Praça da Estação, edificações com e sem uso, 2015. Fonte: acervo do autor.

Figura 31:Foto da Praça da Estação, da edificação da antiga estação, 2015. Fonte: acervo do autor.

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Entretanto, a proximidade da Praça em relação ao edifício Shopping Solar Center, situado na Avenida Brasil, que funciona externamente como um terminal rodoviário de ônibus intermunicipais, resgata um pouco do caráter original de transporte de pessoas oportunizado pela Ferrovia. Observa-se que apesar de estar desvinculado fisicamente da Praça, separando-se desta pelo obstáculo imposto pela linha do trem, o edifício tem uma relação importante com a área – as pessoas que pegam ônibus no Shopping Solar circulam pela Praça enquanto esperam a chegada dos transportes. O fluxo de movimento de passagem observado na Praça, portanto, está relacionado ao serviço de transportes próximo.

Figura 32: Solar Shopping Center, 2014. Fonte: acervo do autor.

Podemos afirmar que o centro da cidade de Juiz de Fora permaneceu contido em seus eixos de desenvolvimento, mantendo a posição de seus traçados e crescendo segundo a direção de fatos mais antigos. De acordo com Rossi (1966, p.57), a forma da cidade é sempre a forma de um tempo da cidade, e existem vários tempos presentes na conformação física do tecido urbano. Todos esses acontecimentos que propulsionaram o desenvolvimento de Juiz de Fora são uma parte inexprimível da cidade, constituindo ela própria.

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3.2. A olho nu A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. (CALVINO, 1972, p. 14).

Neste capítulo do trabalho, serão utilizados os processos analíticos propostos por Aldo Rossi (1966) e Kevin Lynch (1966), que considerando a imagem da cidade um processo complexo e profundo, servirão aqui como metodologia. A cidade, por esses autores, é vista como uma grande obra, identificável na forma e no espaço, podendo ser apreendida através de seus trechos, que são seus diversos momentos. Para facilitar o entendimento das relações do território, será escolhida uma áreaestudo, ou seja, uma abstração a respeito do espaço da cidade que serve para definir com mais precisão um determinado fenômeno – o fato aqui analisado é o processo de decadência, conceito que será melhor definido posteriormente. A “área-estudo” é o entorno urbano mínimo a que nos referimos quando estudamos um fato urbano de natureza mais complexa, podendo ser definida ou descrita recorrendo-se a elementos da área urbana tomada em seu conjunto, como por exemplo, o sistema viário. Rossi (1966, p.62) sugere que é importante operar sobre um pedaço da cidade definido por características precisas, o que nos oferece melhores critérios de análise. Considerando que a cidade é um complexo emaranhado de relações físicas e sociais, que não pode ser reduzida à soma geográfica de partes, analisar os espaços urbanos através da proximidade de fatos históricos estabelecidos e características torna-se um método mais eficiente. Segundo a Lei n°6910/86 que dispõe sobre o ordenamento do uso e ocupação do solo no Município de Juiz de Fora, a área da parte baixa do centro está classificada, em sua maior parte, como Zona Comercial IV. As relações entre número de pavimentos e os modelos de ocupação se dão a partir da análise abaixo:

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Figura 33: Mapa de zoneamento e fluxos, 2015. Fonte: Mapa da Prefeitura, JF em CAD, editado pelo autor.

Figura 34: Quadro de Zoneamento e Modelos de Ocupação da Lei 6910/86, anexos 6 e 8. Fonte: JF Legis.

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Figura 35: Mapa de gabaritos, 2015. Fonte: Mapa da Prefeitura, JF em CAD, editado pelo autor.

No caso do perímetro conformado pela parte baixa do centro (definido pela linha imaginária da Avenida Getúlio Vargas), temos uma área-estudo definida por características comuns, coincidindo com acontecimentos urbanos consolidados. A conformação do traçado das vias, da linha férrea, e do rio Paraibuna, são elementos que ajudam a explicar o caráter local. Dentro deste conceito, o “bairro”31 é caracterizado por uma certa paisagem urbana, por um certo conteúdo social e por uma função. Uma mudança num destes elementos é suficiente para fixar o limite do bairro. O centro da cidade de Juiz de Fora se caracteriza por uma grande massa edificada com diversificação de usos - se concentram ali atividades de interesse público, comércio, lazer, serviços e cultura, o que configura, assim, um polo receptor de grande fluxo de pessoas de toda a cidade e dos municípios vizinhos.

31

ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade, 1966, p.70.

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Figura 36: Mapa de usos, 2015. Fonte: Mapa da Prefeitura, JF em CAD, editado pelo autor.

Figura 37: Mapa de usos, 2015. Fonte: Mapa da Prefeitura, JF em CAD, editado pelo autor.

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Torna-se visível, através dos mapas, como a região modificou-se ao longo do tempo. Na parte baixa do centro, antigamente zona periférica da cidade, se instituíam expressivamente os usos industriais e residencial, e a Estação Ferroviária, que caracterizava-se como zona de transporte de cargas e pessoas, configurou a inserção tanto da zona hoteleira em seu entorno imediato, quanto dos corredores de comércio e serviços contidos nas ruas Halfeld e Marechal Deodoro. Atualmente, as relações da área são outras (porém decorrentes das originais): a atividade hoteleira, tão intensa no passado, reduziu-se, e o uso do transporte de pessoas, possibilitado pela Ferrovia, não se perdeu totalmente, em vistas da presença do terminal de ônibus localizado ao lado do Shopping Solar Center. A área central, antes predominantemente residencial, agora é majoritariamente uma mescla dos usos, e o antigo polo industrial, em parte, se tornou uma área de cultura e lazer, com a transformação da Fábrica de Tecelagem Bernardo Mascarenhas em Centro Cultural. Torna-se claro através do mapeamento realizado a grande presença de uso misto na região, predominando em algumas áreas o uso comercial ou de serviços. A Praça da Estação, apesar de não configurar-se propriamente como uma área verde, foi assim definida por motivos de diferenciação do restante do conjunto. Há uma escassez de arborização nas vias desse recorte do centro, de modo que a Praça da Estação e a Praça Presidente Antônio Carlos (ligada ao Espaço Cultural Bernardo Mascarenhas) podem ser consideradas áreas de respiro. Os usos predominantes no perímetro da Praça são os mistos e comerciais. Os “elementos primários” são o conjunto de elementos que funcionaram como núcleos de agregação, participando da evolução da cidade no tempo de maneira permanente e identificando-se como fatos constituintes da mesma. São o que Rossi (1966, p. 115) classifica como atividades fixas – num sentido mais geral, aqueles elementos capazes de acelerar o processo de urbanização. Como exemplo de elementos primários na zona analisada podemos citar a Estrada de Ferro e a Estação Central, e a Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas, pioneira no setor industrial. Ambos os elementos funcionaram como impulsionadores e direcionadores do crescimento urbano, sendo que a presença da Estação, como vimos, acabou por concentrar nesta área grande número de lojas e hotéis, levando ao adensamento da malha urbana em toda a área compreendida pelo “triângulo central”. As vias, segundo Lynch (1960, p. 54) são canais de circulação ao longo dos quais o observador se 80


locomove, observando-as à medida que se locomove por elas, sendo, para muitas pessoas, o elemento predominante na imagem da cidade. Já as “permanências”32 contam o que a cidade foi na medida em que se destacam no espaço urbano atual. Essas persistências podem ser detectadas pelos traçados da cidade, pelos sinais físicos do passado e pelos monumentos. Podem ser classificadas como patológicas (quando não acompanham o desenvolvimento da cidade) ou propulsoras (quando auxiliam no crescimento urbano). As permanências pontuam toda a área-estudo, algumas sendo, a nosso ver, patológicas, estando à margem do desenvolvimento. Algumas das permanências existentes ganharam novos usos para acompanhar a evolução da cidade.

Figura 38: Mapa de bens culturais, 2015. Fonte: Mapa da Prefeitura, JF em CAD, editado pelo autor. 32

ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade, 1966, p.49 et. seq.

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Os bens imóveis tombados na área central estão assinalados no mapeamento acima. É curioso notar que apesar de o conjunto edificado da área da Estação estar claramente inserido dentro de uma área conformada pelos mesmos processos de evolução história e urbana, há uma edificação do perímetro que ainda não é tombada (o edifício da esquina da Rua Paulo de Frontim com a Halfeld). Hoje, na esquina da Avenida Francisco Bernardino com a Rua Halfeld, funciona um estacionamento, sendo sua construção mais recente do que as outras do entorno

Figura 39: Praça da Estação em 1980. À esquerda, a edificação existente onde hoje localiza-se o estacionamento; e na direita, o Edifício Rio de Janeiro, que não é tombado. Fonte: Blog Acervo Maria do Resguardo. Disponível em: http://www.mariadoresguardo.com.br/2012/04/praca-joao-pessoaestacao-marco-de-1980.html

Todavia, nesse trabalho, optou-se por considerar o conjunto dos edifícios do conjunto da Praça (incluindo a própria) como patrimônios/permanências (podendo ser estas patológicas ou não), acreditando não ser desejável atribuir neste momento valores diferentes aos edifícios da estrutura edificada do local sem uma análise mais aprofundada.

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Figura 40: Fábrica de Tecelagem Bernardo Mascarenhas antigamente e hoje, Centro Cultural. Exemplo de elemento primário e permanência propulsora, que ganhou novos usos para se adaptar aos novos requisitos. Fontes: Blog Acervo Maria do Resguardo e site da UFJF. Disponível em: http://www.mariadoresguardo.com.br/2013/04/fabrica-de-fiacao-e-tecelagem-bernardo.html e http://www.ufjf.br/pesquisatelejornalismo/2013/05/29/jornalismo-multiplataformajuiz-de-fora-completa163-anos/

Figura 41: o Hotel Avenida é um exemplo de permanência que pode ser considerada patológica, com o segundo piso deteriorado e sem utilização. Fontes: Blog Acervo Maria do Resguardo e acervo do autor. Disponível em: http://www.mariadoresguardo.com.br/2010/08/rua-halfeld-com-paulo-de-frontinem.html

Figura 42: O Hotel Renascença é um exemplo de permanência que conservou a mesma utilização desde as origens. Apresenta-se como resquício da época em que a ferrovia se conformava como principal elemento primário da cidade, direcionando o processo de urbanização. Fontes: Blog Acervo Maria do Resguardo e acervo do autor. Disponível em: http://www.mariadoresguardo.com.br/2010/07/grande-hotel-renaissance-em-1915-do.html

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Por “zonas de decadência”33 entende-se os grupos de edifícios que sobreviveram à dinâmica de uso do solo seguida pelo ambiente circunstante. Podem ser uma rua ou um bairro inteiro que não seguem, pois, suas vidas, representando durante um longo tempo ilhas em relação ao desenvolvimento geral. Elas atestam os diversos tempos da cidade e simultaneamente se caracterizam como grandes áreas de reserva, profundamente ligadas à capacidade de mobilidade da cidade no tempo. Observamos essa característica na Praça da Estação, onde coexistem edifícios parcialmente vazios e negligenciados com o resto do ambiente construído.

Figura 43: Mapa de permanências subutilizadas, reservas econômicas e localização da Praça de Estação e área de influência, 2015. Fonte: Mapa da Prefeitura, JF em CAD, editado pelo autor.

Através de pesquisas realizadas em campo e de consultas junto à Prefeitura de Juiz de Fora, descobriu-se que na região conformada pela parte baixa das Ruas Marechal Deodoro e Halfeld, apenas duas edificações estão parcialmente sem uso, estando o piso térreo ocupado por usos comerciais. É digno de nota que essa situação é temporária, tendo em vista a grande rotatividade de usos que ocorre nessas vias. 33

ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade, 1966, p. 136.

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Nota-se, portanto, que na área da Praça da Estação há uma maior concentração de edifícios subutilizados, e sendo eles permanências definidas por características coesas, faz mais sentido, para os fins a que o trabalho se destina, intervir nessa área.

Figura 44: Charges Minhoca & Superarquiteto em “Arqueologia da Segregação Urbana” de Carolina Antonucci, Fernanda Portela, Naiara Amorim, Marina Carrara e Tomáz Guimarães, 2013. Fonte: acervo do autor. Disponível em: issuu.com/minhocaesuperarquiteto

O desenho acima mostra esquematicamente a presença dos “vazios urbanos” e áreas de reserva econômica com potencial construído pouco aproveitado. Aceita-se aqui a conceituação de vazios urbanos dada pelo Manual Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais do Ministério das Cidades: os vazios urbanos consistem em espaços abandonados ou subutilizados localizados dentro da malha urbana consolidada em uma área caracterizada por uma grande densidade de edifícios edificados. Esses vazios podem ser zonas industriais subutilizadas, armazéns e depósitos industriais desocupados, edifícios centrais abandonados ou corredores e pátios ferroviários desativados.

Os Vazios 02 e 03, são, respectivamente, um centro de quadra não aproveitado e um estacionamento, que dentro das dinâmicas do capital e do mercado imobiliário, constituem áreas de reserva para uma possível consolidação de novas edificações. Em localidades com rica diversidade, os estacionamentos podem ser empreendimentos inadequados e prejudiciais para as dinâmicas da área (não por sua natureza, mas porque

em

certas

localidades

não

são

apropriados

devido

à

escala

do

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empreendimento), empobrecendo o espaço na medida em que frequentemente são dominantes na visualidade do entorno urbano34.

Figura 45: Estacionamento da esquina da Rua Hafeld com a Avenida Francisco Bernardino, 2014. Fonte: acervo do autor.

Os “patrimônios abandonados” (Vazios 04, 05 e 06) da Praça são aqueles utilizados apenas nos pavimentos térreos para o comércio, apresentando espaço ocioso nos pavimentos superiores – o mesmo acontece com o Vazio 08, o edifício Shopping Solar Center, que tem praticamente todo o seu pavimento superior desocupado. Esses vazios, portanto, se encaixam na definição do Manual para edifícios centrais abandonados (sendo os três primeiros patrimônios, e o último não). A presença desses vazios, sobretudo a dos prédios abandonados ou pouco utilizados se relaciona ao que Jacobs (1961, p. 254) conceitua como “usos econômicos decadentes”, que são usos que não contribuem em nada para o bem-estar geral, a atratividade da área ou a concentração de pessoas, sem dar retorno social algum. No edifício da Estação, o Vazio 07, também há a presença de uma construção esvaziada, sendo melhor classificado como pertencente a um corredor ferroviário desativado, assim como o Vazio 01, que é uma área residual mal aproveitada conformada pela linha do trem. A existência do Vazio Residual 01 pode ser explicada a partir do conceito de limites de Lynch (1990, p. 52): segundo o autor, são geralmente as fronteiras entre dois tipos de áreas, quebrando continuidades lineares. Numa ampliação do conceito de fronteira podemos entendê-las como o perímetro de uma área “comum”

34

JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades, 1961, p. 258.

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da cidade, sendo as linhas férreas um exemplo clássico do termo35. A área imediata próxima à ferrovia (e as regiões dos arredores) costuma sofrer mais com o passar do tempo. “As zonas desvalorizadas e decadentes que encontramos ao lado das linhas férreas nas cidades parecem afetar tudo o que se encontre dentro delas, à exceção das construções que realmente fazem uso da própria ferrovia e de suas margens” (JACOBS, 1961, p. 286).

Figura 46: A Avenida Getúlio Vargas funciona como limite físico para uma divisão imaginária entre parte alta e parte baixa do centro. Foto de 2014. Fonte: acervo do autor.

Figura 47: A ferrovia e o rio Paraibuna demarcam o fim do centro, na parte baixa, 2014. Fonte: acervo do autor. 35

JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades, 1961, p. 285 et. seq.

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Figura 48: Praça da Estação, 2014. Fonte: acervo do autor.

A Praça da Estação, de acordo com Lynch (1960, p.52) pode ser classificada entre os “pontos nodais”, que são focos estratégicos nos quais o observador pode entrar, sendo estes, tipicamente, conexões de vias, praças, ou concentrações de algum elemento. “Marcos”, ainda segundo o autor, são elementos físicos de escala variável, que se tornam pontos de referência ao observador, externos a ele, e cuja principal característica física é a singularidade.

Figura 49: Torre da Estação Ferroviária, 2015. Fonte: acervo do autor.

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Figura 50: Croquis de vistas da Praça da Estação - indicação dos usos e vazios nas permanências. Fonte: desenho e edição do autor.

A Praça, área escolhida para a proposta projetual, é singular e parte indissociável do tecido urbano de Juiz de Fora. A região, inserida dentro de uma área maior, de contexto comum e consolidado (o centro), apresenta algumas dificuldades no que diz respeito ao cumprimento de sua potencialidade total. As construções presentes no local, que é dinâmico e vital, em parte são permanências patológicas, sendo necessário reinseri-las no processo de evolução da cidade de 89


maneira cuidadosa. Apresentando áreas de reserva econômica, o desafio é saber utilizar esses espaços de modo a propulsionar o sucesso da área, voltando-se para o cumprimento das funções sociais da propriedade.

Figura 51: Croqui de vista da Praça da Estação - indicação dos usos e vazios nas permanências. Fonte: desenho e edição do autor

É evidente que a gama de problemas existentes no local envolvem também as questões do tráfego viário e a falta de movimento durante a noite, que são questões a serem estudadas posteriormente. Para isso, é necessário que se incluam novos usos potenciais, aumentando a presença de pessoas nos horários do dia em que o local mais precisa delas para manter o movimento e equilibrar a utilização. É importante lembrar que a inserção destes usos deve sempre combinar com o perfil da localidade especificada, de modo a não conflitar nem substituir as atividades atuais. Busca-se provocar uma destruição física mínima concomitantemente a uma melhora visual máxima.

Considerações Finais Do caráter dos habitantes de Ândria, duas virtudes merecem ser recordadas: a confiança em si mesmos e a prudência. Convictos de que cada inovação na cidade influi no desenho do céu, antes de qualquer decisão calculam os riscos e as vantagens para eles e para o resto das cidades e dos mundos. (CALVINO, 1972, p.137)

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Há uma significativa quantidade de edificações na Praça que são utilizadas apenas em seus pavimentos térreos para uso comercial, ficando os pavimentos superiores sem uso. Com a queda das atividades e a desvalorização dessa área, os moradores (e serviços) das antigas habitações da praça foram embora, deixando espaços ociosos com grande potencialidade de reaproveitamento. Ao dinamizar áreas centrais já consolidadas, busca-se reduzir a segregação social e espacial, assim como melhorar as possibilidades de integração de diversas parcelas da população à economia e à vida urbana. Podemos tomar, como exemplo, o caso de Belém, no Pará. Na área do Centro Histórico da cidade ocorreu um processo de substituição das atividades comerciais tradicionais, predominando hoje o comércio mais informal. A área central sofreu com a evasão da população, de modo que as edificações que antigamente eram de uso misto (residencial e comercial) passaram a abrigar hoje apenas o comércio no térreo. Assim como ocorre em Juiz de Fora, esse esvaziamento da área fora do horário comercial e nos fins de semana contribui para a sensação de insegurança que muitos frequentadores apontam. Esses processos se refletem na degradação das edificações que compõem o conjunto edificado, sobretudo nas que possuem valor de patrimônio cultural. Partes do centro de Belém apresentam problemas graves, como os de infraestrutura, poluição visual e sonora, degradação ambiental e desordem no trânsito, o que não faz com que o local deixe de ter um grande dinamismo comercial e turístico de características populares. É uma área, portanto, que apesar das dificuldades, apresenta grande potencial para cumprir um papel social maior dentro da cidade. Dentro desse contexto, vários projetos para a reabilitação do centro de Belém foram sendo desenvolvidos nos últimos anos, e apesar de observar-se algum avanço, ainda resta muito a fazer. Segundo o Manual Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais do Ministério das Cidades, lá ainda são necessárias ações mais integradas e de cunho econômico, social, cultural e turístico, e “principalmente medidas que favoreçam o retorno habitacional, visando a uma atuação duradoura e compatível com esse espaço urbano multifuncional e socialmente diversificado”. Morar no centro se torna uma opção que ressurge – promover a reforma de partes desses imóveis centrais e destiná-los para pessoas é permitir a inclusão de 91


um grupo de pessoas na cidade formal, consolidada, bem provida de infraestrutura, e próxima de locais de trabalho. Essa lógica da recuperação do estoque imobiliário construído se opõe à prática da construção nova como única forma de provisão habitacional, seja pelo setor privado ou por programas públicos de habitação. A promoção de habitações no centro contribui para reduzir a pressão pela expansão de fronteiras urbanas e o adensamento excessivo de bairros periféricos. Repovoando o centro das cidades e aproveitando o estoque existente, ao mesmo tempo

controla-se

a

expansão

da

mancha

urbanizada

e

recupera-se

a

potencialidade da área, em um desenvolvimento mais sustentável. A recuperação do estoque imobiliário subutilizado permite afirmar o uso residencial com a permanência e a atração de diversas classes sociais, incluindo as de baixa renda. O título desse trabalho, “Reabi(li)tar edifícios abandonados”, pressupõe a inserção do uso residencial (reabitar) no processo de intervenção proposto para a Praça da Estação em Juiz de Fora. Entretanto, “habitar” aqui insere-se num sentido mais amplo, significando não só o assentamento de moradias, mas também a consolidação de usos diversos que favoreçam a permanência equilibrada e a manutenção da vida e dinamismo da área. Numa área movimentada, onde se catalisou uma diversidade abundante, a inserção do uso residencial não constitui um problema: são locais que já comportam uma estrutura de apoio capaz de receber o uso. Reabilitar pressupõe, portanto, a não exclusão da implantação de usos e funções novas que sejam compatíveis com a identidade do centro. A recuperação da área-estudo escolhida envolve múltiplos aspectos, entre eles os econômicos, políticos, de inclusão social, qualidade de vida, moradia, lazer, cultura, entre outros. Para a proposição do plano de reabilitação para o local, pressupõe-se um aprofundamento ainda maior nas questões relativas ás pré-existências do local, tendo em vista que apenas com esse trabalho não se esgotou o tema (que é de grande amplitude). A ideia por trás de um plano desses, para a Praça da Estação, é a de estimular a ocupação diversificada (sobretudo o uso habitacional) através da utilização dos imóveis ociosos, da readequação dos espaços públicos, da legislação urbana, dos equipamentos, e do aproveitamento dos grandes vazios urbanos remanescentes da área ferroviária.

92


Viabilizar a reforma de imóveis em centros de cidades, destinando imóveis, que, vazios, oneram o setor público, degradam o espaço urbano e portanto, não cumprem sua função social, é uma tarefa extremamente complexa, mas necessária.

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