Jornal Acontece - ed. 211 - turma 2U11 - maio de 2019

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JORNAL-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE - ANO XIX - ED. 211 - MAIO / 2019

O PÚBLICO E O PRIVADO NA CONCESSÃO DO PACAEMBU - p. 2 LEIA TAMBÉM NESTA EDIÇÃO:

OS BENEFÍCIOS DA MEDITAÇÃO - p. 4 HOSPITAL DAS CLÍNICAS COMPLETA 75 ANOS - p. 6 AS MULHERES CONQUISTAM ESPAÇO NOS ESTÁDIOS - p. 7

ELES ERGUEM AS PAREDES NAS PERIFERIAS DE S. PAULO Por Camila da Silva e Laura Donini - p. 11

MUITOS AINDA NÃO CONHECEM A LÍNGUA DE SINAIS - p. 9 O KRAV MAGÁ E A DEFESA PESSOAL - p. 10


O público e o privado A privatização do Complexo Pacaembu gera preocupação entre os usuários do clube Álvaro Guilhermino e Pedro Xavier

Quadra de tênis do Pacaembu, uma das áreas da concessão (Álvaro Guilhermino)

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privatização do Pacaembu passou finalmente de uma discussão e ideia para a realidade no dia 8 de fevereiro de 2019. Por R$ 111 milhões, o estádio foi leiloado e arrematado pelo consórcio Patrimônio-SP, formado pelas empresas Progen, de engenharia, e pelo fundo de investimentos Savona. A concessão inclui, além do estádio, o Museu do Futebol e o complexo do Pacaembu, clube onde moradores da região podem desfrutar gratuitamente de instalações como uma piscina olímpica aquecida com arquibancada para 2.500 pessoas, ginásio poliesportivo coberto com capacidade para abrigar 2.500 espectadores, ginásio de tênis com piso de saibro coberto com assento para 800 pessoas, quadra externa de tênis com arquibancada para 1.500 pessoas, quadra poliesportiva externa com iluminação, 3 pistas de cooper com 500, 600 e 860m, 2 salas de ginástica e posto médico. Uma das justificativas para a privatização (na verdade, o termo mais correto é concessão, pois depois de algumas décadas o espaço volta para o poder público) foi o prejuízo dado aos cofres públicos. Em 2017, o Pacaembu obteve uma receita de R$ 2,4 milhões,

já os gastos para a prefeitura chegaram a R$ 8,3 milhões, segundo dados do próprio edital. Alterações na utilização do espaço e das normas do clube ficam agora sujeitas às interpretações e preferências do consórcio. Entre outras mudanças, está prevista a retirada do famoso ‘tobogã’, um acesso limitado ao público (cerca de 5 horas semanais para uso gratuito, segundo a licitação), e criação de estabelecimentos no local, inclusive um hotel. Em contato com funcionários do clube, a visão mais ampla é a desinformação. Pouco se sabe, dentro do corpo de funcionários, sobre a privatização e suas possíveis consequências. O consórcio Patrimônio-SP não liberou mais informações além das da licitação. Tentamos entrar em contato com as empresas, mas não tivemos retorno. A falta de mais atualizações a respeito do futuro do clube é o que preocupa os usuários, pois desde 1990, com o governo de Paulo Maluf, o local vem sendo alvo de projetos de privatização, o que sempre foi dificultado pela mobilização dos cidadãos. O estádio, juntamente com o bairro, é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueo-

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lógico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, o que dificulta sua transferência para o setor privado, pois é necessário o cumprimento de dezenas de normas, tanto de construção, demolição e até mesmo a vinculação e acesso. O futuro incerto abre margem para preocupação dos cidadãos “Prefiro que se mantenha publico, pois é de graça e facilita o acesso. Espero que com essa privatização, o acesso ao clube continue da mesma maneira, não pode mudar”, diz José Dirceu, de 55 anos e usuário frequente do clube, que, junto com outros frequentadores, relata a preferência pela gestão pública. “Eu acho interessante não ser privatizado, mas se for privatizado eu espero que mantenham o acesso ao público”, relata Luiz Martins, de 51 anos, que ainda não sabia da transferência para o grupo privado. Em 2018 o processo foi suspenso pelo TCM (Tribunal de Contas do Município), que acatou a ação do vereador Antônio Donato (PT). Mas a ação foi derrubada no dia 29 de março de 2019.

Jornal-Laboratório dos alunos do 2o semestre do curso de Jornalismo do Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. As reportagens não representam a opinião do Instituto Presbiteriano Mackenzie, mas dos autores e entrevistados. Universidade Presbiteriana Mackenzie

Centro de Comunicação e Letras Diretor do CCL: Marcos Nepomuceno Coordenador do Curso de Jornalismo: Rafael Fonseca Supervisor de Publicações: José Alves Trigo Editor: André Santoro

Impressão: Gráfica Mackenzie Tiragem: 100 exemplares.


Depressão não é frescura A doença considerada o “mal do século” atinge cada vez mais jovens e adolescentes Ana Roxo

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depressão atinge cerca de 322 milhões de pessoas no mundo, sendo 11 milhões jovens entre 15 a 29 anos. O Brasil é o país com maior número de jovens que sofre depressão no mundo, segundo dados da OMS. A expansão é maior nos adolescentes, sendo os fatores principais o uso excessivo das redes sociais, a cobrança escolar, vestibulares, transição para a vida adulta e faculdade. Vemos aos poucos novelas, séries e filmes retratando a doença, a fim de que a população se conscientize e procure ajuda. Em entrevista com o ator Eike Duarte, que fez o primeiro personagem assumidamente com depressão da história da novela Malhação, ele conta a importância desse assunto ser mais debatido em grandes veículos e por pessoas influentes. Ele alerta: “É uma doença silenciosa, que atinge muitas pessoas que a gente convive”. E completa: “Eu acho que foi muito importante o meu personagem retratar isso na televisão brasileira, com 13 milhões de telespectadores todo dia assistindo. Muitas pessoas ligavam para perguntar mais sobre a doença, viram que era igual ao Álvaro e queriam informações sobre como se tratar”. Ele acrescenta: “Tem muita gente que de repente não aceita que tem a doença por vergonha mesmo, por medo do que as pessoas vão achar, porque alguns anos atrás depressão era vista como doença de rico, como frescura, mas ela dá em qualquer pessoa, em qualquer classe social, de qualquer tipo, temos que ficar muito alertas”. P.H., de 17 anos, estudante de cursinho, conta que o gatilho para a depressão foi o bullying sofrido, que fez com que ele passasse por 4 escolas. “No começo meus

O ator Eike Duarte em uma das cenas do seu personagem

pais não sabiam, eu não sabia que era depressão, mas eu suspeitava. Porque eu chegava em casa e queria ficar sozinho, não queria ficar perto de ninguém. E meus amigos falaram: ‘vai no médico’, eles ficaram preocupados com isso”, diz. Ao começar o tratamento, ele disse que o mais complicado foi a aceitação, fora o fato de ter que tomar 6 a 7 remédios diariamente. “Eu meio que estava me sentindo um robô, porque não entendia”, diz. Hoje ele se sente melhor e comenta sobre o processo de amadurecimento. “Eu fui na psicóloga e a gente começou a discutir sobre isso, e psiquiatra, neurologista, e estava todo mundo me apoiando, principalmente minha psicóloga, que me ajudou bastante”, diz. Até o relacionamento com a família melhorou: “Eu amadureci muito depois disso com relação com família e me sinto mais seguro”, afirma o estudante. E conclui: “Às vezes eu tenho umas recaídas, mas procuro seguir os conselhos que eu daria para outra pessoa. Você precisa amadurecer seus pensamentos. E seguir a vida, porque ela é curta e de qualquer jeito vai acabar, então você precisa viver e aproveitar o que ela tem de melhor”. A psiquiatra Cintia Pimentel, especialista em tratar jovens,

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explica como funciona a depressão no cérebro de quem sofre: “É um quadro multifatorial, ou seja, está relacionado a predisposições genéticas individuais e interações destas com o ambiente. O paciente que apresenta a doença está em intenso sofrimento psíquico, e os sintomas de tristeza, angústia, perda de prazer, pessimismo, entre outros, estão muito elevados na vida da pessoa”. Ela acrescenta: “Problemas com histórico familiar de doenças psiquiátricas, uso de substâncias psicoativas, desemprego, rompimentos afetivos, perdas de entes queridos, pobreza são fatores que podem aumentar o risco de incidência. A ausência de exposição ao sol e consequente baixos níveis de vitamina D, estilo de vida e alimentação também têm relações diretas com depressão e são fatores que aumentam a chances de a pessoa ter a doença”, diz. Ela explica que, assim como a depressão, o tratamento envolve vários fatores: “Mudança de estilo de vida, atividade física, cuidados alimentares, avaliação por um profissional médico da área, análise global da saúde do paciente e acompanhamento psicoterapêutico são medidas que se complementam e são extremamente necessárias para uma boa evolução clínica”, diz.


O silêncio que pode curar A meditação ajuda a resolver vários problemas, auxilia no convívio e até em questões profissionais

Aula de meditação no Centro de Raja Yoga Brahma Kumaris, em Perdizes Mariana Vasconcelos

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sede nacional da Brahma Kumaris (BK), localizada no bairro de Perdizes, tem como enfoque oferecer atividades que contribuam para a transformação pessoal e a renovação do mundo. A programação do local inclui meditações, cursos e palestras presenciais entre outras atividades. No dia 14 de abril, um domingo, houve uma palestra sobre depressão e como entendê-la da melhor forma possível. O palestrante falou sobre a importância de distinguir entre tristeza, que é um estado transitório, e a depressão, que dificilmente é superada sem ajuda. Enfatizou também a importância de usar recursos como a meditação para perceber se você possui recursos internos para sair de um estágio passageiro de tristeza ou se vai necessitar de apoio para isto. As sedes da Brahma Kumaris, há 40 anos meditando no Brasil,

oferecem suas atividades sem taxas fixas. As atividades são conduzidas por voluntários. Fundada na Índia em 1937, a Brahma Kumaris difundiu-se para mais de 110 países em todos os continentes, tendo um amplo impacto em muitos setores, como uma ONG internacional. Seu compromisso é ajudar as pessoas a transformarem sua perspectiva em relação ao mundo, de material para espiritual. Em entrevista com Érica Rosana Berto, 38 anos, gestora de projetos em tecnologia da informação e professora voluntária da Brahma Kumaris, ela afirma: “Na minha vida toda adorei ajudar as pessoas e a meditação foi a melhor forma de ajudar.” Juliana Vilarinho de Faria, 46 anos, formada em Jornalismo, trabalha há 30 anos como professora de inglês e pratica meditação diariamente há 25 anos. É professora e coordenadora voluntária da BK em São Paulo. Ela reserva uma hora e meia de seu dia para praticar meditação e diz que nem todas as

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pessoas precisam fazer o mesmo; pois cada um tem sua rotina e estilo de vida. Por exemplo, na academia cada um tem seu ritmo. Às vezes, segundo ela, dez ou quinze minutos de meditação com qualidade já é um começo muito bom. Maria do Carmo, 72 anos veterinária aposentada, relata que a meditação preencheu e fortaleceu o conforto em sua vida. Após tantos estudos sobre religiões, a meditação foi a solução. Ela conta que perante o convívio com as pessoas em seu meio; meditar leva à tranquilidade. “Sou muito agradecida ao universo”. Ela prática a meditação em torno de quatro horas em quietude e silêncio mas também em seu dia a dia em suas compras, preparando suas refeições, no banho; ela consegue meditar também. Marcia Barreira, 50 anos, formada em psicologia. “Passei por várias religiões e sempre tive questionamentos e não me sentia confortável e a meditação me dá a sensação de estar em casa. Ela medita todos os dias, em silêncio pela manhã em torno de 40 minutos e a noite em torno de 30 minutos. A meditação é igual carregador, você precisa recarregar. Meditar possibilita experimentar luz e acessar o novo”. Em São José dos Campos, no dia 20 de abril, ocorreu um evento sobre meditação no Shopping Colinas. O principal foco era a venda de produtos relacionados à prática. Em entrevista com o responsável pelo local, Fernando Peixoto, ele relatou que a meditação é essencial para o corpo e a alma. Quando mais novo, ele relata que era hiperativo e que a técnica o ajudou a restaurar a tranquilidade. Elizabeth, de 64 anos, estava no local observando os painéis explicativos sobre meditação e contou que, em uma fase de sua vida, ela meditou com frequência, o que a ajudou com questões acadêmicas e profissionais e também no convívio com pessoas que faziam parte do seu cotidiano.


Lazer centenário Clube nos Jardins oferece atividades aos paulistanos que podem desembolsar 600 mil reais por um título Lucca Borzani

Raimundo Antunes, zelador do Paulistano

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Club Athletico Paulistano, fundado em 1900, é uma das mais tradicionais associações sociais, culturais e esportivas de São Paulo. Localizado no Jardim América, ele ocupa uma área de 41 mil m². O clube tem cerca de 4.300 associados, que participam de diversas atividades. O título custa, em média, 600 mil reais, mas é comum associados venderem os seus por quantias inferiores. Conversando com sócios, diretores, e funcionários, fica claro o quão bem faz o Club Athletico Paulistano a essas pessoas, seja na vida profissional ou pessoal. “Gosto dos eventos culturais e da academia de ginástica, fico feliz por me manter em forma”, disse Luiz Assis, sócio de 57 anos, ao ser questionado sobre o que mais gosta no espaço. Ele continua: “praticar esportes e uma alimentação saudável nos diversos

restaurantes que o Paulistano possui é tudo que eu preciso”. E conclui: “o associado tem inúmeras vantagens: comodidade pela localização no coração do Jardins e uma imensa garagem moderna com staff de seguranças. O clube tem cinema, restaurantes dos mais diversos, parque aquático e várias outras opções de lazer”. O clube ainda conta com uma segurança de primeira linha, com mais de 485 câmeras de última geração, com alta definição, visando à segurança e o bem-estar do associado. Tanto no âmbito interno quanto no externo, é muito importante manter o sócio seguro e despreocupado. Sérgio Rocha, analista de investigação de 49 anos, conta um pouco sobre como funciona o monitoramento em um clube social, e o cuidado que se deve tomar para deixar 4.300 associados tranquilos. “Minha função basicamente é inves-

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tigar qualquer incidente que ocorra dentro do clube, envolvendo sócios ou funcionários, que traga algum prejuízo patrimonial ao clube, ou financeiro ao associado. Depois disso, informo à diretoria”. Apesar do trabalho árduo, ele elogia constantemente o clube. “É um local que costumamos dizer que é a extensão da casa do associado, com muitas variedades de atividades e programas durante o dia. Há cinco anos nesta função, nunca tive nenhum problema”, diz. Outro funcionário que elogiou bastante o Paulistano foi o zelador de vestiário Raimundo Antunes Freires, de 43 anos. “Aqui é bom demais, muito legal de trabalhar, só pessoas boas ao meu redor, não tenho do que reclamar, adoro este lugar”. E continua elogiando os frequentadores: “O pessoal, os sócios, são muito legais, o ambiente é maravilhoso. É isso que a gente espera quando escolhe um local para trabalhar, que nos tratem bem, e o clube me proporciona isso. Para saber um pouco do segredo de tanto sucesso, o diretor de eventos do departamento social, Felicio Neto, abre jogo. “Buscamos sempre a felicidade do associado com eventos e atrações especiais, isso é muito importante para nós. Ano passado, trouxemos a Ivete Sangalo para cantar aqui, e obtivemos a maior arrecadação da história do clube, todos os sócios acharam incrível”. Ele ainda afirma que grande parte dos associados tem laços familiares com o clube. “A maioria é associado praticamente desde que nasceu. O clube é muito antigo, desde 1900, muitos estão aqui por conta da família, pais, avós, enfim, é um ambiente muito tradicional. A localização favorece bastante, perto de tudo, brincamos que o clube é um oásis em São Paulo, por ter piscina, sauna, academia, sem contar a quantidade de atividades que propomos”.


As bodas de brilhante do HC Complexo hospitalar da Faculdade de Medicina da USP completa 75 anos em abril Igor Lima

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mbulâncias, médicos e pacientes de todos as idades, sexo e profissões. É agitada a rotina no maior complexo hospitalar da América Latina, o Hospital das Clínicas, que completa 75 anos em 19 de abril. Fundado em 1944, a origem do complexo tem relação com o enorme crescimento da cidade de SP após a década de 1930 e também com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, inaugurada no início do século 20. Na década de 1940, surge a necessidade de se construir um hospital-escola que conseguisse atender a população paulista e, de certa forma, permitir uma maior experiência médica para os docentes de medicina. Em 1944, o HC é construído, integrado com a FMUSP e surge, nesse âmbito de crescimento demográfico, um importante centro de saúde localizado na capital paulista. Localizado na região central da cidade, o Hospital das Clínicas é um gigante. São oito institutos divididos em 14 edifícios diferentes, além de dois hospitais conveniados ao complexo (hospitais auxiliares de Suzano e Cotoxó). Muitas dessas entidades são a principal referência nacional em seu campo, como o Instituto do Coração, da Criança e o Instituto do Câncer, por exemplo. Miriam Lopes tem 64 anos e frequentou o ICESP (Instituto do Câncer do Estado de SP) há quatro anos para tratar um tumor. Para a diarista aposentada, o hospital oferece uma estrutura impossível de se encontrar em outros hospitais públicos no estado. “Geralmente, a gente só vê hospital particular com essa organização e limpeza, mas o ICESP tem tudo”, afirma a aposentada. Para Miriam, a oportunidade de ter acesso a uma boa saúde deveria ser pauta prioritária de todo governante. “Uma pena que nem todo estado tem um hospital como o HC e muita gente nem consegue fazer tratamentos de

Instituto Central do HC, o coração administrativo do complexo

saúde simples”, lamenta Miriam. Além de diversos tratamentos, o Hospital das Clínicas também oferece oportunidades de ações sociais como a doação de sangue, oferecida pela fundação Pró-Sangue. Mitzrael Albarrassim, estudante de engenharia de 22 anos, doa sangue a cada dois meses no complexo. Para o engenheiro, o ato é extremamente necessário. “Todo mundo devia ter em mente. Tem períodos em que há menos doações e sempre há necessidade de abastecimento do hemocentro. Aí, entre amigos, a gente criou esse costume, procurar sempre doar sangue”, afirma o estudante. Como forma de incentivo, a fundação criou o clube “Irmãos de Sangue”, com uma série de benefícios para pacientes que fizerem, ao menos, dez doações. “A gente está quase se tornando Irmãos de Sangue, que é um dos programas que o hospital oferece com algumas vantagens, fora os eventos de que nós já participamos. O hemocentro disponibiliza chefes culinários fazendo refeitas para a área de alimentação em algumas semanas do ano. É bem legal e acaba sendo uma maneira de reunir os ami-

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gos também”, relata Mitzrael. Os atendimentos emergenciais ou marcados também são uma característica importantíssima do complexo. Mais de 1600 atendimentos são realizados todos os dias no Prédio dos Ambulatórios, um dos institutos centrais. A cada minuto, ambulâncias das mais diversas estacionam em frente ao edifício trazendo pacientes que ficarão nos mais de 2 mil leitos disponíveis no hospital. Um outro aspecto que indica a relevância do HC é a pesquisa científica realizada no local. Segundo dados da biblioteca da FMUSP, mais de 2 mil pesquisas científicas são realizadas todos os anos entre os oito institutos que formam o conjunto. Um exemplo da efervescência científica é Euryclides de Jesus Zerbini, médico do HC que, em 1968, realizou o primeiro transplante de coração da história do país, um feito histórico. E qual o custo de um complexo tão gigante? Segundo dados da Secretaria da Fazenda, mais de 1,7 bilhão de reais foram transferidos pelo governo do Estado para o conjunto hospitalar no ano de 2018.


Feminismo nas arquibancadas Movimentos de torcedoras lutam para conquistar espaço para as mulheres dentro dos estádios Elisa Fontes

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ma torcedora do Santos ouviu “você está aqui e está sujeita a isso”, após ser assediada no estádio por um rapaz que a apalpava na arquibancada e ela pedir para que ele parasse, exigindo respeito. Esse é um dos casos que ainda ocorrem muito dentro do mundo do futebol. A presença de mulheres nos estádios é cada vez mais significativa, e essa luta tem se tornado a pauta de muitos coletivos ligados à paixão por um clube e pelo esporte. Em São Paulo, os quatro grandes clubes já têm grupos com o objetivo de encorajar mulheres a frequentar mais o estádio e buscar a liberdade de participar da festa que o futebol promove sem ter que pedir respeito. O “São Pra Elas” reúne torcedoras do tricolor paulista na ida ao estádio do Morumbi. O “Movimento Bancada das Sereias” está presente nos jogos dos Santos, seja na Vila Belmiro ou no Pacaembu, assim como o grupo que forma as “Verdonnas”, que apoia o Palmeiras no Allianz Parque. O “Movimento Alvinegras”, criado por corinthianas no final de 2018, surgiu com um grupo pequeno de amigas que passaram a frequentar a Arena Corinthians e foi por inspiração no grupo do clube rival, as “Verdonnas”, que decidiram se organizar em um coletivo e divulgaram o movimento pelas redes sociais. Foi dessa forma que uma das administradoras, Fernanda Dias, de 20 anos, soube do movimento e entrou dois dias depois da criação. “Hoje temos 13 grupos no WhatsApp, alguns são mais gerais do coletivo e os outros dividimos em interior, baixada e as zonas de São Paulo. No Facebook, temos mais de 3.000 integrantes em um grupo, só com seis meses de Movimento”, ela conta. É comum que torcedoras deixem de ir ao estádio por falta de companhia, por medo de estarem sozinhas nesse deslocamento e por se

Patrícia e Fernanda no encontro para assistir ao jogo do Corinthians em Itaquera

sentirem desmotivadas em assistir à partida sozinha. Nesse sentido, Fernanda diz que as “Alvinegras” tentam justamente quebrar essas barreiras. Ao se referir ao caso da santista assediada, disse: “Somente pelo fato de sermos mulheres e estarmos ali ocupando as arquibancadas, alguns acham que têm o direito de fazer o que quiserem, mas, da mesma forma que eles estão ali para apoiar o time, nós também estamos”. O grupo facilitou a ida, tanto de Fernanda quanto das outras integrantes, de presenciarem mais as partidas e inclusive ir pela primeira vez a um jogo. Patrícia Rocha, de 16 anos, é corinthiana, mora em Taboão da Serra e conta que foi assim que conseguiu acompanhar mais o time, e agora sua mãe fica mais tranquila e até mesmo participa. “Somos bem cuidadosas, orientamos e mantemos contato com cada uma, principalmente nos dias de clássicos. Pedimos que o grupo faça o possível para não se expor no caminho até a Arena, e só quando chegar no local combinado colocar a camisa do Corinthians, para evitar problemas, pois muitas moram longe”, diz Fernanda. A relação com as torcedoras de movimentos dos clubes rivais é muito respeitosa. “Temos amizade,

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não existe intriga, pois é uma mesma causa, não o mesmo amor, pois são times diferentes, mas temos o mesmo intuito”, diz Fernanda. Entretanto, ela e Patrícia contam que as mulheres das torcidas organizadas rivais poderiam ter mais respeito entre si. “Na nossa torcida, ainda nos respeitam, o que falta mesmo é a mulher ter mais liberdade”, completa. “Acontece de reproduzir o machismo. Fico indignada pelas coisas que passamos todos os dias. Hoje temos muito mais voz do que há quatro anos. Existe muito mais movimento feminista, mas pensar que mulheres desrespeitam outras mulheres por causa de time é triste”, comenta Patrícia. O movimento não tem uma parceria oficial com o time do Corinthians, que investe na campanha #RespeitaasMinas, mas as “Alvinegras” sempre são mencionadas no Twitter. Os encontros também acontecem quando os jogos são fora da Arena, na zona leste, e elas marcam presença nos jogos dos times feminino e sub-20. “Fui em quase todos os jogos do Paulistão e pensei: esperei 19 anos para começar a frequentar estádio e realizei esse sonho! As meninas sentem-se apoiadas e somos uma família. É gratificante e me deixa muito feliz”, diz Fernanda.


Identidade teatral Arte pode trazer melhorias na personalidade dos jovens Bruna Altenfelder

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teatro é reconhecido como uma arte que traz muitos benefícios e conhecimentos para os jovens. É uma forma de se expressar, com o objetivo de transmitir emoções, ou sua mensagem, à plateia. É onde cada um pode ser quem quiser, interpretar o que quiser, ultrapassando as linhas da criatividade ao incorporar um personagem. O paulistano Bruno Bossio, 28 anos, já é muito influente na Escola de Teatro Paula Castro. Formado em artes cênicas, o professor conta um pouco sobre o prazer que sente em dar aulas: “Um dos meus maiores prazeres é poder colocar em prática minhas crenças e minha pesquisa particular sobre ação física e expressão corporal. Também é um prazer ajudar outra pessoa a entender as potencialidades dela, porque antes de querer transformar alguém eu costumo explorar na pessoa tudo o que ela já tem e que pode e deve ser usado em cena. É muito bom ver diferentes pessoas se realizando”. Bruno ressalta a importância de praticar teatro: “Ele ajuda as pessoas a se tornarem mais confiantes, seguras com relação aos outros e a si mesmas. Atuar pode aperfeiçoar habilidades ocultas, e ainda contribuir diretamente na evolução da personalidade. Outro fator muito importante é o de se relacionar com diversas pessoas de todos os tipos e fortalecer suas relações sociais”. As aulas são bem imprevisíveis. Cerca de 10 a 15 pessoas em uma mesma sala, todas com o mesmo objetivo: ser quem elas quiserem ser. Os alunos são pegos de surpresa, e nunca sabem o que será realmente feito. Assim, as reações de cada um são diferentes, os deixando sempre preparados para qualquer situação, e para saber lidar com o improviso. Todo início de aula são

Bruno Bossio e seus alunos durante uma aula do teatro Paula Castro

realizados exercícios de libertação corporal, que servem para deixá-los mais à vontade. Orlando Soares, 22 anos, aluno da escola, fala sobre sua experiência: “o teatro me fez uma pessoa muito mais aberta, mais sincera e com capacidade de expressão maior do que a de antes. Sou muito mais confiante para conversar sobre qualquer assunto, tanto com relação ao que sei quanto ao “falar” em si, tonalidade e gesticulação”. Perguntei a Orlando como ele se sente em suas aulas. “Tem dias em que o teatro acaba exercendo a função de tirar as más energias de mim. Tem dias que estou ansioso, elétrico e as aulas acabam sendo mais tranquilas. Então, cada aula, por mais engraçado e curioso que seja, acaba me deixando são, sabe?”. Ele também comenta que começou a fazer teatro com o objetivo de melhorar muitos aspectos na vida pessoal e acadêmica. Com relação à autoestima, não há expressão melhor que o teatro. Atuar pode aperfeiçoar habilidades ocultas, e ainda contribuir diretamente na evolução da personalidade. Em minha visita à Escola

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Paula Castro, tive a oportunidade de conhecer todos os tipos de pessoas, com idades muito distintas, e ainda mais com relação às suas características. Participei da aula dos “teens”, que, apesar do nome, é reservada aos alunos entre 15 e 22 anos. Pude notar que algumas pessoas aparentavam ser fechadas em seu próprio mundo, tímidas, reclusas, mas era apenas uma máscara dentro do contexto em que se encontravam. No desenvolvimento da aula, vi que cada um tinha uma presença interessante, criando sua própria identidade, conseguindo se destacar de outras pessoas mesmo sem saber. Jovens costumam ser mais sensíveis quanto à transição dessa identidade. Conseguem ser voláteis, mas ao mesmo tempo moldáveis. Elas criam um perfil para suas inseguranças após passar pelo teatro, como se estivessem se adaptando e criando armas para enfrentá-las. Ao fim da aula, eles sentam em um círculo e fazem uma reflexão, apontando quais foram os principais pontos, dificuldades e o que trouxe satisfação.


Falando com as mãos A língua de sinais é deixada de lado no país que a tornou oficial Layane Queiroz

Roseli Gonçalves faz o sinal de “direitos” em Libras

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o dia 24 de abril é comemorado o Dia Nacional da Língua Brasileira de Sinais, também conhecida como Libras, que, embora tenha se tornado a segunda língua oficial do país, em 2002, atualmente não é uma linguagem conhecida, ou mesmo acessível, para grande parte da população. O principal meio de comunicação para pessoas surdas ou deficientes auditivas ainda é desconhecido por muitos, o que pode limitar de forma drástica suas vidas. Roseli Gonçalves, de 53 anos, assessora da Secretaria Municipal de Educação, é formada em Pedagogia com Habilitação em Deficiência da Audiocomunicação (EDAC) e conta sobre o início da adaptação da linguagem no país: “A partir do segundo ano do curso eu tinha aulas específicas da área da surdez, mas na época a metodologia de ensino era o oralismo, ou seja, o surdo tinha que aprender a falar e ler os lábios. No terceiro ano, fiz um curso de Libras com uma fonoaudióloga. Era uma coisa muito nova e vista com estranheza e desconfiança”. Amanda Carvalho, de 23 anos, começou a estudar Libras aos

5 anos de idade e conta: “Eu estudava em uma escola especial, só com alunos surdos. As professoras me ensinaram em Libras, aí aprendi, mas não tudo. Até hoje estou aprendendo mais”. A estrutura gramatical dessa linguagem não é a mesma que a língua portuguesa possui, e a tradução literal entre a primeira e a segunda se chama Português Sinalizado. “Eu tive muita dificuldade de ler, porque não conhecia muito bem as palavras e o que significam”, diz a jovem. Na linguagem de sinais o verbo, por exemplo, não muda de acordo com o tempo. No começo da frase é usado um sinal especifico para cada tempo, enquanto o verbo permanece estável. “Nas línguas orais-auditivas existem as palavras e nas línguas de sinais também existem os itens lexicais, que recebem o nome de sinais. A diferença está na sua modalidade de articulação, que é visual-espacial”, conta Roseli, que atuou como professora por 25 anos. As configurações de mãos, pontos de articulação, movimentos e expressões corporais e faciais constituem a execução dessa comunicação. Atualmente, a utilização de bonecos virtuais tem se tornado comum em traduções online para Li-

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bras, como forma de deixar os conteúdos mais acessíveis. A Prefeitura de São Paulo tem o Hugo, que converte todos os textos dos sites das secretarias para a linguagem de sinais. “Os avatares não são eficientes. Eles traduzem palavra por palavra e não é assim que é feito quando utilizamos a Libras. Eles não têm expressões faciais e corporais que são fundamentais para a compreensão da comunicação da língua de sinais”, explica Roseli, e acrescenta: “Claro que é uma iniciativa boa e uma tentativa de acessibilidade comunicacional, mas não é eficiente. O ideal é a tradução feita por uma janela de Libras com um tamanho grande e um Intérprete fluente”. Para Amanda, os aplicativos de mensagem são importantes no dia-a-dia, mas ela não tem a mesma opinião a respeito de outras tentativas de acessibilidade. “Eu não uso aplicativos que traduzem em libras. Quando eu não entendo eu pesquiso no Google”, diz. O currículo do ensino fundamental e médio na rede pública não inclui o curso de Libras e poucas instituições privadas oferecem essa opção. “Eu era a única surda e todos alunos ouvintes”, conta Amanda sobre sua experiência na escola. “Estudei em uma escola profissionalizante, e aprendi mais porque tinha intérprete, mas na outra escola não aprendi muito”, diz. A inclusão de intérpretes é importante para garantir o acesso à educação dos alunos surdos e o ensino da linguagem proporciona um maior aprendizado para eles, assim como capacita os demais alunos. No dia 12 de abril, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que determina o fim de diversos conselhos sociais. O ato afeta diretamente o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Conade, tornando a inserção do ensino de Libras nas escolas um sonho cada vez mais distante. “É um retrocesso e um descaso. Lamentável”, afirma Roseli.


A segurança é a defesa Conheça o Krav Magá: a técnica que ajuda as mulheres a lutar contra a violência Carol Duarte e Sofia Kioko

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número de feminicídios no Brasil entre os dois últimos anos assusta: uma mulher é morta a cada 2 horas e a cada 11 minutos uma é estuprada. Em 2019, o primeiro semestre do ano já foi marcado por 126 mulheres vítimas de feminicídio (dados de abril) e, em 71% dos casos, o suspeito é sempre o companheiro. A luta enfrentada por essas mulheres não é só um campo de batalha brutal dentro de suas próprias residências, mas também nas ruas e no dia-a-dia. Com base nesses dados, procuramos entender um pouco mais uma técnica de defesa pessoal que tem ajudado as mulheres a se defender de agressões: o Krav Magá. “Não se trata de uma arte marcial. Ele surgiu muito pela necessidade e realidade do momento. As lutas clássicas viraram esportes, então elas têm regras, mas na rua não há regras”, diz o instrutor Adriano Rais, 35 anos da academia Krav Magá Tatuapé, que fica no bairro de mesmo nome, na zona leste de São Paulo. Adriano completa: “Imi Lichtenfend, criador do Krav Magá, se baseou na `não regra`, pois a única regra é voltar vivo pra casa. É violento? Não, a rua é violenta, a luta não torna ninguém violento, pois ela não muda a personalidade, pelo contrário. O Krav Magá é uma resposta para violência que existe na rua”. O instrutor pratica há dez anos a luta israelense. Dentro do tatame dá para sentir ao máximo a realidade em casos que podem vir acontecer no cotidiano. E as técnicas aprendidas durante a aula levam à razão lógica do momento. Nada é decorado, tudo não passa de treinamento e respeito aos fundamentos de segurança. Você nunca espera o que está por

Simone Ferreira em seu treino: um dos objetivos é garantir proteção no cotidiano

vir ou até que ponto terá que reagir ao conflito. 30% a 40% dos frequentadores da academia são mulheres. A porcentagem é baixa comparada à quantidade de alunos do sexo masculino durante os treinos. Mesmo assim, Simone Ferreira Viana Roxo, 50 anos, uma das praticantes do Krav Magá, alega que o número cresceu comparando com os últimos sete anos. “A explosão de casos de estupro nos metrôs e de assédio nos ônibus trouxe mais mulheres. Mas não vejo isso só para nós, a condição de se defender. Mesmo que imaginemos apenas homens lutando. Quando a pessoa tem essa consciência, começa a enxergar um pouquinho mais disso, a gente não precisa de força. Aprender a se defender é mais importante do que atacar”, diz ela. “Uma das frases do Imi é: seja bom o suficiente para evitar o conflito, uma pessoa normal não quer buscar conflito, mas às vezes o conflito acontece e não tem o que fazer, você tem que se defen-

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der. Em Oito de cada 10 dos casos em que o bandido diz ‘vem comigo’ a pessoa acaba morta ou estuprada. A minha função é ensinar que, se você decidiu reagir, deve fazer isso do melhor jeito possível, sobrevivendo”, diz Adriano. Para as mulheres que não são integradas a esse mundo da defesa pessoal parece uma realidade paralela o pensamento de se defender de um homem de 100 kg, apenas uma brincadeira ou uma imaginação impossível de se realizar. Mas é possível. Vimos mulheres bem graduadas durante a aula lutarem com três homens muito mais altos e pesados, mostrando que é possível se defender. “É frustrante ter que convencer as mulheres da importância daquilo para elas. Usamos vários meios para convencê-las, como depoimentos de meninas que passaram por situações críticas como estupro e assédio. A gente mostra para ela que outras mulheres sofreram a mesma coisa, mostra que existe um caminho”, completa Adriano.


Arquitetos da “quebrada” Um retrato dos profissionais que constroem lares nas periferias de São Paulo Camila da Silva e Laura Donini

Derivaldo (à esquerda) e Severino em uma de suas construções

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pedreiros, que fazem papel de arquitetos e engenheiros quando trabalham por conta própria. Severino Rodrigues da Cruz, de 62 anos, é um deles. Ele veio da Paraíba e trabalha com construção civil há 20 anos no Jardim Fortaleza, região periférica de Guarulhos, local onde também mora. “Foi na base da necessidade”. Severino definiu dessa forma seu primeiro contato com a profissão, que aconteceu ao construir sua própria casa. Depois de vir para São Paulo para tentar estudar, o que não foi possível, ele precisou adquirir essas habilidades. Então com 13 anos, ele morava no trabalho e somente depois de dois anos conseguiu comprar um terreno para ter sua própria moradia. A formação e habilidade com os cálculos necessários para as obras nasceram da troca de conhecimento com os pedreiros da região. Com mais experiência, eles repassaram os estudos adquiridos durante muito tempo na produção das obras. “Quando eu comecei, lembro que não sabia nem usar o esquadro. Sempre tinha alguém para me instruir”, lembra. Para as obras é necessário saber quantos metros tem aquele espaço e calcular a quantidade de material que precisa ser usado. Mesmo variando de lugar para lugar, alguns “insights” são próprios dessa área, Severino trabalha com obras há 20 anos como no assentamento dos pisos. “A

o rádio, um pagode. No chão, muito sol, areia e tijolo. O trabalho começa cedo. “Bater a laje”, como se chama o processo de montar a estrutura da casa com as ferragens, leva tempo. As contas precisam ser exatas para garantir a sustentação da obra. Os pedreiros das quebradas são os responsáveis por todo esse processo. São eles que constroem os lares de mais de 8 milhões de pessoas, número que corresponde aos moradores de favelas da região metropolitana de São Paulo, segundo o IBGE. Muitas pessoas estão acostumadas a pensar em arquitetos formados quando se fala de construção civil. Mas esquecem que existem os

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argamassa é um bom exemplo: geralmente o profissional sabe que, na sua base, ela leva 12 latas de areia, uma de cimento e duas de cal”, explica. Além do ensino, a coletividade também perpassa a economia local. Os materiais de construção necessários para o trabalho são todos comprados na loja do bairro. E os ajudantes que trabalham com os pedreiros são todos moradores do local. “Isso é importante para o meu próprio trabalho. Tudo que construí aqui foi no ‘boca a boca’, na indicação”, conta. O trabalho desses profissionais requer a confiança dos moradores, que saem para o serviço e deixam esse espaço na mão dos pedreiros, o que rende bons frutos. Com o “boca a boca”, o trabalho deles é divulgado pelos moradores, e assim eles conseguem seu sustento. Esse “networking” dentro da periferia fez com que Severino construísse cerca de 20 casas no bairro. Ter um emprego formal, ou a carteira registrada, não é uma realidade para todos, logo os empregos dentro do bairro são frutos de conquistas dos trabalhadores locais para a geração de trabalho e renda. Na região norte do estado de São Paulo, a escala de empregos formais é menor que um para cada habitante, de acordo com os dados do Mapa de Desigualdade da Rede Nossa São Paulo (2017). Derivaldo do Espírito Santo, de 48 anos, natural da Bahia é um dos profissionais que atuam dentro do bairro. A profissão foi passada de geração para geração. O emprego CLT, com carteira assinada, garantiu por um tempo a estabilidade, mas hoje ele se vira com o trabalho “por conta”, que requer uma organização pessoal, até para a garantia dos seus próprios direitos. Duas das providências citadas por Derivaldo e Severino na organização do trabalho foram a abertura de empresas do tipo MEI (microempreendedor individual) e o pagamento do INSS.


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