EDIÇÃO 24 - 2021-2
EDIÇÃO 23 - 2021-1
REVISTA LABORATÓRIO DA DISCIPLINA GRANDE REPORTAGEM
Heróis do asfalto
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS
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Da CLT à incerteza Por Camila da Silva
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Mãe acima de tudo Por Elisa Maria Almeida Fontes dos Santos
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Um dia na Banca 27
Emoção a cada corrida
Por Álvaro Guilhermino e Igor Lima
Por Layane Queiroz e Sofia Kioko
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Heróis do asfalto Por Pablo Próspero
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Salvando Selmas Por Carolina Pani Duarte Mata e Maria Luísa Domingues
REVISTA-LABORATÓRIO DA DISCIPLINA GRANDE REPORTAGEM
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Reitor: Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos Chefe de Gabinete: Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte Pró-reitor de Controle Acadêmico: Prof. Dr. Wallace Tesch Sabaini Pró-reitor de Extensão e Cultura: Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida Pró-reitora de Graduação: Profa. Dra. Janette Brunstein Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto Pró-reitor de Planejamento e Administração: Prof. Dr. Luiz Carlos Lemos Júnior
ANO 15 - EDIÇÃO 24 - 2021-2 PERIODICIDADE SEMESTRAL CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS Diretor: Prof. Dr. Rafael Fonseca Santos CURSO DE JORNALISMO Coordenador: Prof. Dr. André Santoro SUPERVISOR DE PUBLICAÇÕES Prof. Dr. José Alves Trigo EDITORA
Profa. Dra. Patricia Paixão
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS
Da CLT à incerteza Trabalhadores de metalúrgicas de Taubaté se recordam de um passado de respeito ao trabalhador Camila da Silva Crédito/Arquivo pessoal/Isaac Carmo
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Isaac Carmo (ao microfone, à direita) em mobilização contra a saída da Volkswagen da cidade de Taubaté, no interior paulista.
apão Redondo, São Paulo. 1987. Um curso no Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), no contexto de impulsionamento da indústria brasileira, deu uma guinada na vida da família Carmo. Graças à capacitação, Iran, o mais velho entre quatro irmãos, deixava o trabalho de montagem na antiga empresa de bicicleta Monark, na Chácara Santo Antônio, em Santo Amaro (zona sul da capital paulista), para tentar uma oportunidade na gigante automotiva Volkswagen, na unidade de Taubaté,
no interior do estado. Entrar na segunda maior indústria da empresa alemã no Brasil foi o ponto de suporte financeiro e de ganhos para a família. A rotina na periferia de São Paulo daria espaço a um novo ambiente. Pouco tempo depois da ida de Iran para Taubaté, todos se mudaram para a região. Na época, o caçula Isaac havia completado 12 anos. Com mãe costureira autônoma e pai comerciante, não demorou muito para ter seu próprio posto de trabalho. “Eu lembro que meu pai falou: vou
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te dar um presente de aniversário. Vamos tirar sua carteira de trabalho.” E assim aconteceu. Com 15 anos Isaac conseguiu o primeiro emprego, como comerciante em uma loja de calçados. A vivência das vendas e o contato diário com o público desenvolveram o tino para resolver diferentes problemas, que seria tão útil no futuro. Dos anos 70 até meados dos anos 2000, muitos jovens eram movidos pelo sonho de entrar em uma grande indústria. Para as empresas, estavam ali os anos de boa rentabilidade.
ver quem poderia resolver aquelas questões. Trabalhava na linha de produção da solda de ponteio. “É ali que a roda gira.” A solda liga as rodas à carcaça do carro. Foi essa ligação que deu sentido à sua vida profissional. Com um bom trânsito entre os trabalhadores e a chefia, foi convidado por Antônio Marinho de Oliveira e Luiz Marinho para ser dirigente do Sindicato dos Trabalhadores de Taubaté (Sindmetau). Assim, integrou a equipe de cerca de 16 dirigentes da entidade. Cada um era responsável por averiguar as demandas de um setor da fábrica. Trabalhou até 2015 na Volkswagen, 18 anos entre a linha de produção, a diretoria, a vice-presidência e a presidência do sindicato, que ficava dentro da fábrica. Hoje atua em seu escritório de advocacia, como assessor jurídico da entidade. “Infelizmente, a realidade sindical do Brasil não é a que temos aqui. Isso é uma exceção.” Isaac explica que o sindicato ali se organiza dentro da fábrica, no local de trabalho, estando diretamente relacionado ao dia a dia do trabalhador e suas necessidades. Foi pela sua perseverante luta em prol dos direitos dos trabalhadores que Isaac foi reconhecido como cidadão de Taubaté. Mesmo com a quantidade de sindicatos e da posição diferenciada do Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté nas
negociações de trabalho, para ele e os demais profissionais da área o correr é contra o tempo para que o fim de direitos não seja o fim de uma vida. Isaac tem consciência de que a fase áurea que viveu na área metalúrgica há muito virou uma miragem.
A decepção de Leandro No primeiro semestre de 2021, a LG encerrou sua produção em Taubaté, a Mercedes Benz fechou uma de suas fábricas e a Sony também acabou com sua indústria no país. “Não é só o trabalhador que perde. O setor de serviços perde e a cidade deixa de arrecadar em impostos da produção da empresa. Consequentemente, é menos dinheiro na saúde, na educação, em moradia, em políticas públicas no geral. É uma boa quantidade de pessoas, de trabalhadores e famílias afetadas”, explica Leandro Monteiro, 39 anos, que soube que a Ford de Taubaté, localizada no interior de São Paulo, empresa que trabalhou durante 23 anos, estava fechando, através de uma divulgação nas redes. “Eles só falaram que não tinham mais nenhuma intenção de produzir no Brasil.” O anúncio da segunda-feira, 11 de janeiro de 2021, foi uma bombarelógio que demonstrava os indícios do que estava para acontecer. Primeiro, a diminuição de salários, depois o valor
Crédito/Arquivo pessoal/Isaac Carmo
Apesar dos balanços e desníveis entre os postos de trabalho, o desemprego ora ou outra dava as caras. Desde os governos de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, o país assistia a grandes movimentações para tornar privadas empresas públicas, com o Plano de Desestatização Nacional (PND). O movimento não alcançava apenas a região paulista. Ainda no Sudeste, mas a 760 km de Taubaté, a mineirinha cidade de Ipatinga também viu o processo de privatização acontecer a olho nu. Dentro do Vale do Aço e próximo ao Vale do Rio Doce, a Usiminas, empresa do governo, tornou-se, em 1990, uma S.A com sócios das grandes mineradoras do país, como a Gerdau e CSN. “Gerdau, Ford, Volkswagen... todo jovem naquela época esperava entrar em uma grande empresa, pelo salário, pela estabilidade e os benefícios”, relata Isaac. Foi também na Volks que seu irmão mais velho se aposentou, e Isaac, em outro setor, começou suas atividades, aos 20 anos. O caderno de escola na mão e uma caneta eram os companheiros dos horários de intervalo de Isaac na fábrica. Ele usava aquele tempo para conversar com outros funcionários da linha de produção. Entre os pedidos de férias de uns, questionamento salarial de outros, o rapaz, de pele parda, estatura baixa e voz eloquente, foi se enveredando nos direitos trabalhistas. As demandas discutidas pelos trabalhadores no dia a dia eram de responsabilidade dos líderes de cada setor, usualmente os gerentes ou supervisores. Mas, como acontece em qualquer ambiente de trabalho, quem roda e conversa com todo mundo e está a par do que acontece em diversas áreas da empresa acaba sendo procurado quando algum “B.O” acontece. Isaac começou a levar as demandas dos colegas de trabalho para o setor responsável da companhia, para
Isaac com seus pais, durante a sua formatura.
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Crédito/Arquivo pessoal/Leandro Monteiro
Leandro Monteiro, que trabalhou 23 anos na Ford de Taubaté, soube que a empresa estava fechando pelas redes sociais.
de participação dos lucros caindo e, na sequência, algumas demissões que eram pontuadas em razão da automatização industrial. “Qualquer telefone que tocava na empresa, todo mundo se movimentava. O pessoal brincava que aquele era o telefone do Big Brother. Quando tocava geralmente quem chegava era o chefe e falava: ‘Tudo bem, amigão? Ó, tão chamando’.” Esse chamado era o sinal claro que aquela pessoa seria desligada. Não só o metalúrgico Leandro, como todos na firma desconfiavam da continuidade das demissões, mas as articulações do Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté (Sindmetau) com a Ford e seus contratantes davam confiança que existiria transparência nas escolhas da empresa. Ali, o pai de Leandro, José Monteiro, se aposentou. Esta também era a perspectiva que Leandro e seu irmão tinham. A sequência esperada pela maior parte dos trabalhadores de todo o polo do interior industrial paulista era: entrar em uma multinacional, conseguir se especializar e crescer até a aposentadoria. O fechamento impactou Taubaté (SP), Camaçari (BA) e Horizonte (CE). Mais de 118,8 mil pessoas que tinham sua renda dentro da fábrica ou em seus arredores ficaram sem plano algum para prover
o mínimo em suas casas. Os números são do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). A empresa estadunidense estava em solo brasileiro há mais de um século. O tempo de casa fazia com que os postos de trabalho tivessem benefícios que qualquer trabalhador desejava: um bom convênio médico, vale transporte, vale refeição, participações nos lucros. Além da possibilidade de se movimentar em vários setores da empresa, havia a capacitação que era feita dentro e fora de fábrica e quase sempre a possibilidade de um orçamento maior, fazendo horas extras. Todas essas possibilidades foram esperadas e, depois, alcançadas na carreira de Leandro, motivo de orgulho para uma família que passava a herança de ‘não ficar parado’, tampouco fazer corpo mole para serviço. Ele atuou como guarda-mirim nos setores de transmissão, usinagem, motores e até mesmo coordenou uma área da logística dentro da fábrica. A possibilidade desse desenvolvimento impulsionava as equipes a não saírem dali. “Eu tive a oportunidade de conhecer também as outras linhas que eles tinham. Eles forneciam para Toyota, para Fiat, para GM.” Essa experiência aconteceu
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em uma empresa em Minas Gerais, onde palestrou pela primeira vez, representando a companhia. Outro marco foi o convite para integrar a equipe de implementação de um novo motor da Ford (na época), o Sigma. O motor ficou conhecido pelo alto padrão de desempenho, economia de combustível e emissões. Em 2014, as fábricas produziram mais de 1 milhão de peças deste modelo. No dia a dia os treinamentos de fábrica e o resultado do trabalho garantiram o respeito que ele tinha profissionalmente. Apesar disso, Leandro, hoje, lamenta, pois acabou sendo “tudo pra Ford” e nada para ele e os demais trabalhadores. Seu medo, no momento, é com relação ao futuro. Mesmo desiludido, ele lembra dos tempos bons na companhia. “Eu não vou mentir. Foi a melhor empresa que eu trabalhei. Tenho muitos amigos que atuaram em outras empresas e, quando conversávamos sobre a experiência, sobre os benefícios dentro da Ford, eu chegava à conclusão de que eu estava em uma empresa fantástica.” A vida vestindo a camisa da companhia automobilística não lhe rendeu nem mesmo o direito de receber um informe oficial sobre o fechamento da fábrica. Sinal dos tempos.
Mãe acima de tudo Condenada por tráfico de drogas e presa em plena gestação, hoje Karina reconstrói sua vida longe do filho Bruno Elisa Maria Almeida Fontes dos Santos
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Crédito/Arquivo pessoal/ Karina Dias
esde muito nova, Karina Dias, hoje com 41 anos, teve uma relação tensa com a maternidade. Filha única, nascida em São Paulo, foi criada até os 6 anos em um colégio interno. Sem notícias do pai, passou a morar com a mãe, que tinha problemas com bebida. Teve uma vida difícil dentro de casa. As agressões marcaram a infância e a adolescência. Sem um ambiente pacífico e acolhedor, acabou abandonando os estudos. A falta de apoio familiar fez com que procurasse abrigo em muitos outros lares. Foi vivendo um dia de cada vez, fazendo alguns cursos, trabalhando com telemarketing e ganhando muito pouco para sobreviver. Karina engravidou quatro vezes e, sem a presença dos pais de seus filhos, sua situação foi ficando cada vez mais complicada. “Tentei ter uma vida com uma pessoa e aí tive outro filho. Eu estava passando por uma fase muito ruim, estava grávida, morando numa garagem de favor, na casa dos outros”, recorda. À época, Karina se viu num beco sem saída e acabou decidindo aceitar um trabalho como “mula”, nome atribuído a quem realiza o transporte de drogas para o tráfico internacional. “Tive a proposta e não queria aceitar, mas depois a situação foi apertando e topei. Foi o que gerou todo esse problema.” Mulher negra de pele clara, mãe solteira, desempregada e fruto de uma família sem estrutura, Karina foi presa aos 32 anos durante a gestação do quinto filho, Bruno. Seu perfil é semelhante ao de outras mulheres que se encontram em situação de encarceramento. De acordo com dados de 2018 do
Karina Dias com Yohan, seu caçula. Com Bruno, ela nunca mais pode ter contato.
Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), 62% das detentas foram julgadas ou aguardam julgamento por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Na época, entrou na Penitenciária Feminina Sant’Ana (PFS), localizada no bairro do Carandiru, zona norte da capital paulista. Estava no momento
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final da gravidez, com sete meses e meio. Sentia muitas dores e quase não conseguia apoio, nem mesmo para o pré-natal. “Eu fui para a prisão na pior fase. Um mês e meio que fiquei lá grávida foi uma tortura”, diz, lembrando-se das péssimas condições do lugar, onde passou a maior parte dos quatro anos pelos quais foi condenada
pela Justiça. De todos os traumas que o cárcere trouxe, o mais cruel foi a forma como o Estado a tratou, em um momento que deveria ser marcado pelo acolhimento e pelo apoio. Além da violência psicológica, Karina sofreu violência obstétrica, ficando 12 horas em trabalho de parto algemada dentro da penitenciária. Ela conta que até hoje se pega pensando naquele dia. Bruno nasceu e pode ficar durante
sete meses nos braços da mãe, para ser amamentado. A companhia do filho fez Karina esquecer que estava naquele lugar insensível. Passado esse período, tudo voltou a ficar sombrio. A família do pai do bebê foi buscá-lo e Karina não teve mais contato com o filho, que hoje tem 10 anos e mora em Ribeirão Preto, no interior do estado. O tempo em que ficou presa não só a distanciou de Bruno, como dos outros rebentos. Não pode acompanhar os
Crédito/Arquivo pessoal/ Karina Dias
Karina em seu brechó, no espaço cedido pela ONG Casa Flores.
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rumos das vidas deles. Em 2016 foi promulgado o Marco Legal da Primeira Infância, uma série de políticas públicas voltadas às crianças de até 6 anos, que acabou alterando o Código de Processo Penal, possibilitando ao juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar. Por decreto no mesmo ano, a Lei de Execução Penal foi alterada, proibindo o emprego de algemas em mulheres presas em trabalho de parto, seja no trajeto para o hospital ou durante a hospitalização. Nenhuma dessas leis, no entanto, beneficiaram Karina. Sem o apoio do pai de Bruno, que também esteve preso na época, Karina voltou à liberdade com as mãos vazias. A vida como egressa do sistema carcerário se tornou um desafio diário. Passou um mês na casa de uma exsogra, enquanto procurava emprego, buscando sempre por projetos voltados a egressos do sistema prisional. A primeira oportunidade que conseguiu foi pelo Programa Operação Trabalho (POT), na área de inclusão digital nos Telecentros da prefeitura, ganhando 700 reais por mês. Durante sete meses, chegou a trabalhar em dois empregos. O expediente do segundo turno de trabalho terminava uma hora da manhã. Para fechar as contas no fim do mês, acabava indo trabalhar a pé muitas vezes. No terceiro emprego que arrumou, após sua liberdade (na Dersa Desenvolvimento Rodoviário do Estado de São Paulo), sentiu na prática a discriminação. Sua chefe contou aos colegas de trabalho sobre sua condição de egressa do sistema penal. Lembra que, certo dia, uma das mulheres com quem trabalhava simulou o sumiço de um carregador e colocou a culpa nela. Mesmo com tantos desafios, aos poucos Karina foi conquistando seu próprio dinheiro. Conseguiu pagar o aluguel de uma casa e comprar alguns móveis usados e eletrodomésticos. Com o passar dos anos, o mercado de trabalho foi fechando as portas para ela, não só por ser egressa, mas por ser uma mulher com mais de 40 anos e sem
Crédito/Arquivo pessoal/ Karina Dias
escolaridade. Procurando oportunidades no centro histórico de São Paulo, na rua XV de Novembro, cadastrou-se no “Segunda Chance”, um projeto de empregabilidade para ex-detentos promovido pelo Grupo Cultural AfroReggae. Seu perfil acabou sendo passado para a ONG Casa Flores, voltada à ressocialização de mulheres egressas do sistema prisional, onde começou a trabalhar em 2019. Foi então que conseguiu colocar em prática um projeto de montar um brechó. Com o auxílio da ONG, fez um curso de costura, aprendeu a bordar e recebeu doações. No espaço da Casa Flores ela pode começar o seu brechó, vendendo roupas, calçados e acessórios pelas redes sociais e entregando nas catracas das estações de metrô. Karina nunca esqueceu do que lhe foi afastado. Ela afirma que tentou diversas vezes contato direto com Bruno, mas que a família do pai e o próprio ex-namorado não permitiram sua aproximação com o filho. Nas idas e vindas, o relacionamento com o pai do menino também foi interrompido com o cárcere. Alguns anos mais tarde, a maternidade se fez presente mais uma vez na sua história. “Eu tentei seguir minha vida com uma pessoa, mas acabei terminando. No final do relacionamento, descobri que estava grávida”, conta Karina sobre a gravidez do sexto filho. Quando Yohan completou quatro meses, ela se tornou mãe solteira novamente. Karina continua lutando para manter seu brechó e realizar o sonho de montar uma loja física. Enquanto isso não se concretiza, segue criando Yohan, sem o auxílio do pai. Seus primeiros quatro filhos, agora maiores de idade, seguiram seus próprios caminhos e não têm uma relação muito próxima com a mãe, apesar de manterem contato e se verem quando possível. Nenhum deles conhece o irmão que vive em Ribeirão Preto e é criado pelos avós paternos. No dia a dia, Karina tem uma rotina corrida como toda mãe. Há
dois anos, faz terapia pelo menos uma vez na semana para aliviar todos os fardos que carrega. Entrega amor e carinho ao filho Yohan, um garotinho de 3 anos muito extrovertido, que exige bastante dedicação e suor, e é o seu maior companheiro. Nos quatro anos que esteve privada de liberdade, buscou escrever sobre sua situação, colocando para fora seus sentimentos. Da escrita que se tornou um refúgio, nasceu a ideia do livro “Mãe de Ferro”, lançado em 2021. Nele, Karina destrincha todas as questões de ser uma mãe presa. Hoje, ela participa de palestras em
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faculdades, a convite da Defensoria Pública, para contar sua jornada e denunciar a violência do Estado. Karina é, sobretudo, mãe. Para ela, a maternidade significa dor, luta, mas também amor. “Os nascimentos de cada um dos meus filhos são os momentos mais felizes da minha vida.” Ela confessa que evita pensar no filho que lhe foi retirado dos braços. “Às vezes eu tento nem pensar muito nele, sabe? Não que eu não o ame. Eu só tento não lembrar muito pra não sofrer. Queria muito que ele estivesse aqui comigo.”
Heróis do asfalto Os garis Josivaldo e Rogério formam uma dupla dinâmica nas ruas da zona leste de São Paulo Pablo Próspero
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Crédito/Pablo Próspero
ão importa se o dia está quente, frio, ensolarado ou chuvoso. Eles estão sempre no asfalto da cidade, com seus uniformes laranja, movimentando freneticamente vassouras e puxando pelas mãos um latão sobre rodinhas, para recolher o lixo de uma metrópole marcada pela falta de consciência ambiental. Os donos da limpeza vão tomando conta das vias públicas, algumas vezes recebendo um grato “bom dia”, outras deparando-se com a indiferença dos que são incapazes de compreender a importância de seu ofício. Ofício este cujo nome deriva de um francês chamado Pedro Aleixo Gary. Foi ele que no século XIX criou a primeira empresa de limpeza do Rio de Janeiro, em um contrato firmado com a Corte Portuguesa. Seu sobrenome passou a caracterizar a profissão. O cotidiano da atividade passa bem longe do glamour parisiense. E, em tempos de pandemia, a rotina dos garis é ainda mais dificultada pelo uso de máscaras e pelo risco de contrair um vírus, que já matou, em maio de 2021, quase 400 mil brasileiros. Mesmo assim, engana-se quem pensa que não existem profissionais satisfeitos no ramo, e Josivaldo Oliveira dos Santos, que conheci numa manhã ensolarada na Avenida Conselheiro Carrão, no bairro da Vila Carrão, na zona leste da capital paulista, é um deles. Homem de 30 anos, com musculatura forte, ele logo chama a atenção pelo pingente prateado no pescoço, que contrasta com a pele negra. Nascido na cidade de Jitaúna, na Bahia, veio em 2012 para o Sudeste a fim de melhorar de vida. Outrora trabalhou como metalúrgico,
Josivaldo Oliveira dos Santos, o “espelho da família”.
cromando peças, com banho de níquel. “O trabalho era puxado e arriscado, por causa dos produtos químicos. Pra piorar, pagava muito pouco”, relata. Foi aí que pensou em tentar uma vaga de gari na terra da garoa. Em 2018 tomou posse do uniforme laranja e passou a integrar o time do Amlurb (Autoridade Municipal de Limpeza Urbana). “Gosto muito de trabalhar na limpeza, porque é um serviço que, pelo menos, paga um salário digno pra gente”, afirma. Como
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valoriza seu trabalho, procura enfatizar, de forma leve e bem à vontade, que sempre tenta “fazer o melhor”. Josivaldo teve uma infância dura no Nordeste, trabalhando desde os 9 anos de idade. Um ano antes, quando tinha 8, o pai abandonou sua mãe, que se viu sozinha com ele e mais seis irmãos. Desde então começou a atuar em roças e, com a escassez de emprego, decidiu vir embora para a cidade grande. Com muito esforço e força de
Crédito/Pablo Próspero
A dupla Josivaldo e Rogério: dispostos e alegres, os amigos se sentem gratos por conseguirem construir suas vidas trabalhando na limpeza urbana.
vontade, conseguiu comprar seu terreninho e construir sua casa junto com a esposa. “Só Alegria, Graças a Deus!”, expressa sobre a conquista, segurando uma enxada nas mãos, com um tímido semblante de contentamento. O gari baiano se sente grato com a posição que conquistou. Isso porque, como ele mesmo diz, quer ser “o espelho da família”. “Eu gosto de mostrar para os meus irmãos que é possível levar uma vida digna trabalhando, quero que eles possam aprender alguma coisa comigo.” Como bom filho, nunca gostou de desobedecer a mãe, Dona Analice Oliveira dos Santos, hoje com 54 anos. Evita chegar atrasado no trabalho ou cometer algum deslize, pois sabe que sua progenitora o tem como um exemplo. “Minha mãe me vê como um filho que venceu.” Entre os companheiros de labuta,
é chamado de “major”, apelido que caracteriza seu perfil de funcionário responsável. Logo que chega no trabalho, por volta das 5h30 da manhã, checa todas as ferramentas que ele e os outros trabalhadores vão precisar para mais um dia nas ruas. “Por pior que esteja o tempo e por mais que a função seja repetitiva e cansativa, saio de casa motivado”, afirma. O gari acorda sempre às 3h30 da madrugada. Evangélico, dá crédito a Deus por tudo o que tem. “Tá na bíblia! O homem viverá do seu próprio suor, então eu tenho isso como obrigação.” O versículo “tende fé e bom ânimo” é citado por ele como motivação para vencer as dificuldades do dia a dia. “Quando eu volto para casa já sei que no outro dia, com a graça de Deus, eu tenho que retornar pra tudo aquilo de novo”, diz Josivaldo.
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Ele não considera difícil a função de gari. Diz que o segredo é saber fazer o trampo com gratidão e aí tudo fica mais leve. Durante nossa conversa, debaixo de um sol escaldante e ao som de motosserras que cortavam os gramados dos canteiros da via pública, muitos outros garis nos rodeavam, sem demonstrar receio ou curiosidade. Era a entrevista rolando e o trabalho braçal e mútuo correndo sem parar. A luta para atingir a meta e no final do dia ser merecedor dos quase 50 reais diários parecia ser mais importante que prestar atenção em um jornalista. Josivaldo afirma que a máscara, exigida como medida profilática para evitar a contaminação da Covid-19, torna sua atividade muitas vezes sufocante, mas reconhece sua importância, e segue a usando rigorosamente, assim como respeita
De personalidade forte, sem papas na língua, possui muitas histórias vividas na rua. Certa vez discutiu com uma mulher no metrô que desprezou um colega de profissão. A mulher se levantou por um gari ter sentado ao seu lado. Sem perder tempo, o sergipano questionou: - Por que você agiu assim? - Agiu como? Só por que levantei? - Você é melhor do que ele por acaso? Você trabalharia limpando a cidade?” - Jamais! - disse a mulher. Resolveu, então, deixar a mulher com sua ignorância. Apesar de situações dessa natureza, ele também é grato por estar na função, pela oportunidade que teve na capital paulista. “Pra mim não tem lugar melhor no mundo, eu agradeço
a Deus todo o dia de estar aqui em São Paulo, que é o coração do Brasil, fazendo o que eu faço.” No passado já sentiu fome. Graças à profissão de gari, conseguiu sair da extrema pobreza. Hoje Rogério tem casa própria, carro na garagem e, em breve, vai trocar de automóvel. Ele e Josivaldo formam uma dupla de bastante sintonia. Enquanto um junta as folhas o outro abre a boca do saco de lixo. Um empurra o carrinho de mão, com o latão, e o outro vai atrás com as ferramentas. “É uma dupla dinâmica”, comenta, suado com o calor. Depois de mais de 50 minutos de conversa, me despeço dos dois. Olho para trás e vejo, no acinzentado da cidade, os dinâmicos super heróis do asfalto, com seu uniforme laranja, prosseguindo em sua digna missão.
Crédito/Pablo Próspero
todas as outras medidas de higienização, tanto no trabalho como em casa. Ao falar sobre as peculiaridades de seu trabalho, destaca que seu serviço exige extrema atenção, para evitar acidentes. Só em São Paulo nove pessoas são atropeladas diariamente, e esse número, durante o período da pandemia, teve um aumento de 40%, segundo pesquisa de 2021 do Infosiga, instituto do governo do estado, gerenciado pelo Detran e pelo Programa Respeito à Vida. Josivaldo faz de tudo para não entrar na estatística. “Em questão de segundos, se não prestar atenção, você pode sofrer um acidente grave. Pode vir um carro e te atropelar.” Major é tido como o brincalhão da turma. “Gosto de fazer resenha, dar muita risada e por apelidos. Quando a gente tá fazendo uma brincadeira sadia, isso é uma comunhão, né?”, comenta, cercado pelos amigos que fazem parte de sua jornada diária, dentre eles Rogério Pereira dos Santos, 44 anos. Rogério afirma, com seu forte sotaque nordestino, que é “paulista de coração”. Chegou em São Paulo no auge do recém-criado “Plano Real”, em 1994, vindo de Sergipe. Também exmetalúrgico, saiu do ramo, porque estava incomodado com o salário que recebia. Pressionou o patrão por aumento e acabou sendo demitido, o que lhe fez ficar dois anos desempregado. Foi encaminhado para a área de limpeza há três anos, através do irmão que há 30 atua no setor. Assim como Josivaldo, começou a trabalhar criança, aos 10. “Hoje os caras têm emprego e não dão valor”, diz, com indignação. E complementa: “Sabe como é, peão...Eu venho de um lugar em que a única opção é trabalhar”. Em terras paulistanas desde os 17 anos, ele diz que São Paulo dá oportunidade para todos. “É só querer! Para o cara que é preguiçoso, o serviço sempre vai ser ruim!”, afirma, em tom de protesto Rogério, dizendo não se conformar ao ver a geração mais nova reclamar de trabalho. Rogério chegou em São Paulo sozinho, mas só trouxe a esposa quatro meses depois para, juntos, construírem uma família. Diferente de Josivaldo, que não tem filhos, ele tem uma menina.
Rogério Pereira dos Santos: “Eu “ venho de um lugar em que a única opção é trabalhar”.
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Um dia na Banca 27 Seu Luiz e dona Ângela falam sobre sua rotina como feirantes há mais de 30 anos Álvaro Guilhermino e Igor Lima
Crédito/Álvaro Guilhermino
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Ãngela e Luiz à frente da Banca 27, na feira da rua Gustavo Rico, em São José dos Campos: a rotina puxada ficou ainda mais desafiadora na pandemia. pandemia.
os sábados, por volta das 10h, a rua Gustavo Rico Toro, na zona leste de São José dos Campos, no interior paulista, é tomada por um oceano de pessoas. Famílias andando de mãos dadas, homens e mulheres sozinhos, com sacolas, e muitas senhorinhas e donas de casa, empurrando ávida ou lentamente seus carrinhos, aventuram-se em um labirinto de barracas, buscando frutas, legumes, verduras e outros tipos de alimento, como peixes e carnes. Gritos, com informes de promoção e brincadeiras, tentam chamar a atenção dos passantes, atraindo-os para as barracas. Mas o palco para esse cenário começa a ser montado bem antes. Os
primeiros vendedores da feira, que é bastante tradicional no local, chegam de madrugada, quando o sol ainda não surgiu. Por volta das 6h30, quase todas as bancas estão montadas, menos a 27. Um casal, em cima de caixotes, tenta ajeitar, com muito esforço, o toldo da barraca, para proteger as verduras e hortaliças do sol. Ângela e Luiz Ramos atuam como feirantes há 20 anos. Com 50 e 56 anos de idade, respectivamente, usam máscaras no rosto, para minimizar os riscos de contaminação com o vírus da Covid-19. Diferentemente de outros vendedores, não possuem funcionários. “Esses últimos dois anos têm sido muito difíceis, está tudo muito debilitado. Já tivemos empregados, mas hoje não dá
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mais”, desabafa Luiz. A falta de ajudantes explica o atraso do casal em relação a outros vendedores. Moradores do Bairro do Limoeiro, na zona oeste da cidade, o casal acorda às 2h, com o intuito de organizar os preparativos e partir para a feira às 4h. Essa rotina é repetida quatro vezes por semana, já que eles levam a Banca 27 para outras regiões. Ângela não esconde as dificuldades da rotina puxada, que ficou ainda mais desafiadora na pandemia: “Eu não tenho folga não. Quando não estou nas feiras, fico produzindo máscaras, para ajudar na renda. Pensa que é fácil? Não é qualquer um que encara esse negócio. Tem que ter muita força de vontade”. Uma Kombi, “paga com 24 vezes
Crédito/Álvaro Guilhermino
parcelas de R$ 800”, segundo Luiz, é utilizada para transportar os alimentos e itens que formam a barraca. As hortaliças, como as alface e couves, são plantadas pelo próprio casal e os legumes são comprados toda semana no Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo). Às 7h, a feira abre oficialmente, mas grande parte da clientela chega algum tempo depois. “Feira geralmente é assim. Começa a ficar mais cheia a partir das 8h. Quando se aproxima das 11h já vai perdendo movimento. Depois, só vem um ou outro cliente. Claro que depende muito do local, né?” Em um breve olhar panorâmico, é possível identificar que uma quantidade pequena das barracas é destinada à venda de legumes e verduras. A Banca 27 é a menor delas, mas é visitada pelos mais diversos tipos de clientes. Desde uma velhinha que vem perguntando os preços do rabanete até um jovem casal à procura de legumes. São pessoas atraídas pelas hortaliças de produção própria e livres de qualquer tipo de agrotóxico. Para Luiz, o sucesso da banca passa também pelo tratamento oferecido à clientela. “Não é a banca grande que vende, o que vende é a gente conversar com o pessoal de forma simpática, dando atenção, entendeu? Dar um desconto de R$0,50 também faz a diferença”, explica o feirante. Na Banca 27, o valor escrito para os legumes e verduras dificilmente condiz com o cobrado. Os R$ 2,20 da alface se tornam R$ 2,00, os R$ 7,90 do pimentão amarelo se transformam em R$7,50 e o quilo da ervilha, que custa R$20,00, passa a ser R$19,70. Nem sempre o rendimento do casal veio das feiras livres. Ângela trabalhou por muitos anos em uma cozinha industrial, o que lhe rendeu dotes culinários que, segundo ela, são muito elogiados até hoje. Luiz era funcionário da tradicional Johnson & Johnson, empresa especializada em itens farmacêuticos, utensílios
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médicos e produtos pessoais de higiene. “Quando eu e ele perdemos nossos empregos, resolvemos vir para a feira, pois já havia na nossa família uma experiência nesse ramo”, afirma Ângela, enquanto lava alguns pés de alface, numa pequena bacia verde. O almoço do casal parece mais café da manhã: bolo de fubá e uma garrafa de café com leite. Eles dão pequenas mordidas e goles rápidos, enquanto atendem aos clientes. “Almoço mesmo só às quatro da tarde, quando a gente chega em casa”, diz Luiz, com um pequeno copo descartável, sujo do café que acabara de tomar. De repente, surge na barraca um personagem conhecido nas redondezas: Maninho Cem Por Cento, ex-vereador, membro do partido Solidariedade. Maninho aproveita a feira para distribuir gratuitamente o “Jornal do Maninho”, que fala sobre política, prestação de serviço, sorteios, notícias, aniversariantes do mês e que, segundo o próprio editor do impresso, está “cem por cento ao lado da comunidade’’. Mas Ângela e Luiz não têm tempo para ler as ações de Maninho. Guardam o jornal, que vai ser usado, horas depois (no fim da feira), como forro para as verduras e
os legumes, organizados na Kombi da família. Durante a jornada de trabalho, Ângela comenta sobre os filhos (um homem e uma mulher, já adultos) e sobre o relacionamento com Luiz. Em 2020 eles comemoraram bodas de pérolas. “Tínhamos 19, 20 anos, quando nos conhecemos. Engravidei antes do casamento. Nos casamos para ter a nossa filha. Ela vai fazer 31 anos agora em abril e eu vou fazer 31 anos de casada com o Luiz, no próximo 11 de novembro.” Ao 12h, já é possível observar que a feira está mais vazia e as barracas menos abastecidas. Os funcionários das outras bancas começam a guardar os produtos restantes dentro de caixas, levando-os para carros e vans. Assim como no início do dia de trabalho, Ângela e Luiz demoram mais para desmontar seu posto de trabalho, enquanto nas barracas vizinhas um empregado é responsável pelo caixa, outro se encarrega de organizar os produtos no cesto e um terceiro leva as caixas para dentro do caminhão. Depois de Luiz ajeitar todos os produtos na van, chega o momento mais cansativo do dia: tirar o toldo da barraca e colocá-lo no veículo. A
Crédito/Álvaro Guilhermino
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baixa estatura do casal faz com que eles tenham que usar um cabo de vassoura para tirar o pesado toldo. Pingando de suor, eles se queixam: “Tá vendo só? E tem gente que diz que trabalhar em feira é fácil...”. Ângela e Luiz se esquecem de uma sacola com algumas unidades de alface, que não serão vendidas por terem algumas imperfeições. Nesse instante, chega um menino, de aproximadamente 10 anos, usando uma regata azul, com o escudo do Capitão América, e uma bermuda cor de creme. — Posso pegar essas alfaces para alimentar meu coelho – pergunta o garoto. — Não dá. Eu vou dar essas alfaces para as galinhas lá de casa – responde Ângela. Finalmente tudo está organizado dentro da Kombi. Por volta das 15h, a rua Gustavo Rico Toro, já começa a voltar a ter seu aspecto comum dos dias em que não hospeda a feira. Ângela e Luiz voltarão a ser feirantes na próxima madrugada, só que em outro endereço. Nos despedimos para que o casal possa ter o merecido descanso.
Emoção a cada corrida Os prazeres e desafios enfrentados por Luciane Costa, motorista dos aplicativos Uber e 99 Layane Queiroz e Sofia Kioko
Crédito/Árquivo pessoal/Luciane Costa
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Luciane Costa durante uma de suas corridas. Ela já teve, dentre seus passageiros, uma gestante pronta para dar à luz e um assediador.
e repente, um chamado inusitado:
— Moça, você pode vir o mais rápido possível? A minha esposa tá tendo neném!” A princípio Luciane pensou que fosse uma pegadinha ou, até mesmo,
uma tentativa de assalto disfarçada de pedido de socorro. A vida de um motorista de aplicativo em uma grande metrópole como São Paulo exige permanente cuidado e desconfiança, ainda mais no caso das condutoras mulheres. Mesmo tensa, resolveu atender o chamado e, ao chegar em Osasco, município vizinho à capital paulista,
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constatou que a situação era real. Ativou o modo “socorrista” e correu o mais rápido que pode para o hospital. “Foi legal! Não nasceu no carro, deu tempo de chegar lá. Duas vezes já dei uma de ambulância”, lembra, sorrindo. Luciane Costa é casada, tem 45 anos e um dia comum para ela começa às 5h da matina. Às 6h, a motorista já está no carro e, de corrida em corrida, só para
Crédito/Árquivo pessoal/Luciane Costa
de rodar às 11h. Às vezes no Carrefour, às vezes no Extra, mas é sempre em um estacionamento de um grande supermercado que acontece o horário de almoço. Um lugar seguro para deixar o carro, um banheiro limpinho e um tempo para apreciar com calma a marmita preparada naquela manhã. Uma garrafa de água, às vezes um chá, uma fruta e legumes cozidos. Por alguns momentos seu Ford Ka se transforma em um restaurante. Uma da tarde e é hora de voltar ao trabalho. Dessa vez o expediente vai até as 18h. A Uber, empresa para a qual Luciana presta serviços, impede que seus condutores trabalhem mais do que 12 horas por dia. “Antigamente, uns oito meses atrás, os motoristas viravam à noite, faziam 18 horas direto. Hoje não pode mais. Quando está dando dez horas no volante a Uber já te avisa que tá chegando o horário de fazer uma pausa. Agora a 99 não. Na 99 é diretão”, explica. Ambos os aplicativos estão ligados, tanto o Uber quanto o 99. Luciane escuta um toque e logo em seguida o outro. A Uber indica uma corrida da Barra Funda até Pinheiros. Já na 99 a proposta é um percurso da Barra Funda ao Aeroporto Internacional de Guarulhos. “Aí eu dou uma olhadinha rápida e pego a viagem mais longa que, pra mim, é melhor.” Os ganhos em uma corrida são de acordo com o tempo e a distância de cada uma delas. Mais precisamente R$1,12 por km e R$0,15 por minuto na Uber Brasil, e R$1,09 por km e R$0,20 por minuto na 99. Porém, nas quartas-feiras a rotina é diferente. Motivo? O rodízio de carros da cidade de São Paulo. Nesse dia da semana veículos com placas que terminam em 5 ou 6 são impedidos de circular na capital entre as 07h00 e as 10h00 e entre as 17h00 e as 20h00. Impedidos de rodar, carro e motorista, então, fazem programas diferentes: uma ida ao dentista, ao supermercado ou simplesmente ficar na calçada da casa de Luciane, que vira um lavarápido improvisado.
Luciane também tem clientes que costumam contratar corridas para transportar seus animais.
Na quinta-feira tudo volta ao normal. O dia passa voando e o relógio marca 17h42. Luciane está prestes a terminar o seu expediente, quando aparece uma corrida. Da Vila Madalena a Pinheiros, passageiro homem, pagamento no cartão. A motorista torce para não pegar um passageiro mandão. “Tem homem que tem um hábito péssimo. Ele começa a falar por cima do Waze.” — Boa tarde! — Boa tarde. — Rua dos Pinheiros, 1037. Certo? — Certo! — Posso seguir o Waze? — Pode sim! Alguns minutos depois: — Aí, não! Não entra aí não! Entra à esquerda. O sinal fecha. — Prefere me direcionar ou eu sigo o Waze? Porque duas informações acabam me confundindo, sabe? — Não, não! Pode seguir seu GPS. Motorista e passageiro voltam ao
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silêncio. — Não entra na próxima não, pode seguir em frente. — Você não falou que eu podia seguir o Waze? Ou eu sigo você ou eu sigo ele. Para Luciane, a situação é reflexo do machismo existente na nossa sociedade. “A maioria deles faz isso. Eles são acostumados a achar que podem mandar na gente. Mas não mandam não.” Quando começou a trabalhar na área, seu traje era resumido a uma calça, uma camiseta e um tênis. “Usava um Keds ou allstarzinho básico.” Vestidos ou saias não eram sequer cogitados. Com o tempo, ocasionalmente, Luciane passou a se permitir usar vestidos com o comprimento na altura do joelho, mas ainda evita roupas brancas ou que deixem o busto muito amostra. “Se for um vestido, uso uma malha mais grossa para não ficar marcando muito o corpo. Às vezes dá vontade até de ir com um vestidinho um pouco mais fino, mas aí eu já penso que tem os engraçadinhos, então temos que evitar”, conta a motorista. E continua: “A gente sabe muito bem
como alguns homens são. Quando a gente é simpática, eles acham que estamos dando bola”. Estar dentro do próprio carro realizando um trabalho que já conhece de cor e salteado pode parecer uma coisa segura, mas nem sempre é assim. Ser motorista de aplicativo é permitir que indivíduos completamente estranhos dividam esse espaço com você. Intrusos que nem sempre estão ali com boas intenções: “Uma vez eu peguei um rapaz pra deixar lá para o lado da Barra Funda, no Centro de Tradição Nordestina. Ele cismou que queria que eu ficasse com ele lá”. — Não! Você tá confundindo as coisas. Eu sou motorista! — Ah, mas eu pago a sua noite. — Então, se você tá a fim de pagar alguém pra ficar lá no Centro de Tradição Nordestina, a gente passa pela Av. São João e você pega uma prostituta. Eu não sou prostituta, eu sou motorista de aplicativo. Tem diferença! Já que você tá a fim de pagar alguém, então você paga alguém que presta esse trabalho. Silêncio no carro.
à Barra Funda. Lá é feita a higienização interna do carro e é recebido o material necessário para que a motorista e os passageiros se mantenham seguros durante as viagens. “Quando eles fazem a higienização é usada uma espuma seca. Não sei se é de ozônio... Ela fica dentro do carro por 30 minutos. Não tem cheiro nem nada e mata o vírus”, explica. Para os condutores e condutoras que moram em outras cidades existe a possibilidade de realizar a compra desses materiais e enviar o recibo às respectivas empresas, para o valor ser reembolsado. “Nisso daí o aplicativo está dando bastante apoio pra gente“, diz. Com muitas pessoas trabalhando em esquema de home office, as corridas diminuíram, impactando na renda da motorista. “A maioria das pessoas está trabalhando em casa. Então aquele público que eu pegava das 6h até as 9h caiu de 60% a 70%”, lamenta. Apesar de todos os desafios, Luciane é feliz com sua rotina. Ela também transporta pets, a pedido de alguns clientes. “Por 25 anos eu trabalhei na parte financeira de algumas empresas. É uma função na qual você fica sozinha praticamente. É você e seu computador trancados numa sala. Hoje não. Hoje eu posso conversar com as pessoas. E eu converso o dia inteiro. Se a pessoa falar bom dia, pronto! Já era, coitada. Eu converso muito. É bem legal, bem gostoso.”
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— Agora, eu vou parar um pouquinho mais na frente, num posto de combustível. Você vai descer do meu carro. — É, mas eu paguei a corrida pra ir até lá. — Você pagou a corrida pra ir até lá, só que eu não tenho mais como continuar com essa corrida. Eu vou parar e ainda vou te fazer o favor de parar num lugar seguro, pra você não correr o risco de ser assaltado. Na verdade, eu deveria deixar você aqui na Marginal, você tem que aprender a respeitar as pessoas.
conta.” Estar sempre alerta faz parte do trabalho. Chega a ser exaustivo, porque é preciso estar sob permanente tensão. Mas são ossos do ofício. Desde julho de 2020, a empresa 99 passou a permitir que seus motoristas utilizem câmeras durante as viagens. “A gente tem que ter alguns cuidados. Colocar um rastreador no carro. Agora na 99 a gente pode por uma câmera, deixar sempre o celular compartilhando a sua localização em tempo real”, conta. A motorista também comenta algumas táticas particulares para o dia a dia, como não entrar em vielas, ruas sem saída ou embarque em áreas de risco e, quando não tem essa opção, busca entrar com o carro em marcha ré, caso precise sair rápido do local. Mas, sempre que pode, prefere não arriscar. “Se é um embarque desse tipo e é um passageiro que já tem uma nota ruim e que ainda vai pagar com dinheiro, eu não pago para ver. Eu já cancelo de cara.” O ano de 2020 chegou e com ele o mundo precisou aderir a uma nova realidade. A pandemia da Covid-19 alterou hábitos e na área do transporte não foi diferente. “O álcool tem que ficar o tempo todo, ele fica no console para estar à vontade para os passageiros.” A nova rotina inclui o agendamento com um dia de antecedência e a ida uma vez por semana a uma base da 99, em Santo Amaro, ou da Uber, próxima
O carro parou no posto de combustível e o intruso desceu do automóvel. Luciane encerrou a corrida e comunicou a Uber sobre o ocorrido. “A empresa falou que iria entrar em contato com ele, que ia bloquear a
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Salvando Selmas Vinda de uma família acostumada a acolher vítimas de violência doméstica, Josiane fundou uma ONG direcionada a essa missão Carolina Pani Duarte Mata e Maria Luísa Domingues
Crédito/Arquivo Pessoal/ Josiane da Silva Bernardes
J
osiane nunca se esquece da pergunta que ouviu da coleguinha Selma, quando as duas tinham apenas 8 anos de idade.
— O japonês da loja passa a mão nos seus seios quando você vai lá? Era o abuso sexual se fazendo presente na infância das meninas. Depois da fala de Selma, Jô foi rapidamente contar para seus pais o que havia escutado. Eles debateram sobre a melhor maneira de resolver
a questão e pensaram em optar pela violência. “Queriam matar o sujeito, mas, no final, ele acabou fugindo de volta para o Japão”, relembra. Hoje, mais de 30 anos depois, a advogada e assistente social Josiane da Silva Bernardes se pergunta quantas outras mulheres vivenciaram situações como aquela, sem se darem conta de que estavam sendo violentadas ou sem terem um canal de diálogo e apoio em casa. “Quantas outras Selmas existem por aí?” A história de Joseane começa no
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interior da Bahia, em Jacobina, cidade pequena fundada nos princípios do século XVII e conhecida como a “Cidade do Ouro”. O município ganhou essa alcunha por conta de grandes descobertas de minas que atraiam pessoas de diversos lugares do país. Foi lá que em 1949, no dia 7 de julho, nasceu José Pereira da Silva, filho de uma família pobre. Quando era apenas um menino, por volta dos 7 anos, foi entregue para outra família, ou melhor, foi “resgatado”, como diz Jô. “Afinal, no
interior não tem essa de ser adotado”, explica. A mãe de José conheceu uma pessoa e se apaixonou, mas seus sete filhos não eram aceitos no casamento e foram sendo dados para outras famílias. Em seu novo lar, José Pereira também não recebeu amor. Não podia dormir dentro de casa. Sua cama acabava sendo um forno de pão, localizado na área externa. Com a fixa ideia de se libertar daquela situação, alistou-se no Exército, no “Tiro de Guerra”. Aos 20 anos encontrou o amor através de um amigo que também estava alistado e lhe apresentou Carmosina Andrade Silva, que se tornou sua esposa, mãe de seus quatro filhos: Carmem Lúcia, Joseane, Elisângela e José Sérgio. Em 1969, com a primeira filha de
meses nos braços, os recém-casados decidiram começar uma nova jornada. Migraram para São Paulo, na região de Itaquera, zona leste da capital. O bairro, antigamente habitado por índios, era formado por duas grandes fazendas que pertenciam à ordem dos Carmelitas, do Rio de Janeiro. Elas foram vendidas e a região ficou empobrecida, sem qualquer infraestrutura. Havia somente pedras jogadas no chão de terra. Com o tempo, o local foi se desenvolvendo, com construções de capelas, casas, escolas e comércios. Foi em Itaquera, em um terreno com outras quatro casas, que Seu José fincou suas raízes e Jô, um ano depois, nasceu. Anos mais tarde ela veria o pai chegar alcoolizado e derrapando pelos tapetes, aos tropeços.
— Eu não quero mais esses tapetes aqui! — Joseane imita o pai falando bravo. Sua casa “era a mais feia do bairro”. Tinha dois cômodos, parede geminada (os vizinhos podiam ouvir tudo o que acontecia lá dentro), chão feito com cimento queimado e telha de Brasilit. Foi ali que ela passou 26 anos de sua vida. “É muito interessante a cena do chão vermelho, do banheiro fora de casa, de frente para a rua. Hoje, eu vejo como é importante para uma pessoa a privacidade. A mangueira no imenso quintal e o poço onde as crianças se reuniam eram o nosso divertimento.” Mas se engana quem pensa que por causa do vício Seu José era um homem ruim. “Ele tinha tudo pra ser um homem errado, mas não foi assim”,
Crédito/Arquivo Pessoal/ Josiane da Silva Bernardes
O pai José Pereira e os irmãos de Josiane: “Ele tinha tudo pra ser um homem errado, mas não foi assim”.
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Crédito/Arquivo Pessoal/ Josiane da Silva Bernardes
destaca Jô. Quarenta anos depois de ter sido abandonado pela mãe na Bahia, ele a recebeu de braços abertos em casa para cuidar de sua tuberculose até seus últimos dias. Também foi pelo bom coração do pai que Joseane viu, quando ainda era uma menina, as primeiras vítimas de violência doméstica sendo acolhidas dentro de sua casa. “Sabe aquela música ‘Esse cara sou eu’, do Roberto Carlos? Ele era o cara”, diz Joseane, com orgulho e olhar saudoso. Mas antes de seguir o exemplo do pai na acolhida a mulheres agredidas, Joseane atendeu o desejo dele e tornouse advogada. Concluiu a faculdade de Direito, apresentando o diploma ao pai em seu leito de morte. Ele faleceu com cirrose, aos 42 anos. Era um homem simples, que teve uma vida muito difícil e memorável. Ajudou mulheres que provavelmente estariam mortas em uma época em que não se falava muito sobre isso; cada problema era resolvido dentro de casa. As mulheres que não sabiam para onde ir, viam na casa da família de Seu José um refúgio e a espingarda que ele mantinha era também uma maneira de garantir a segurança.
Tina, “a primeira” Cheiro de eucalipto e de sangue. Como dois odores tão distintos estavam em uma mesma pessoa? No calor de uma noite paulistana, em que muitas famílias jantam e conversam tranquilamente, dona Tina corria desesperada pela rua. Vagando ensanguentada, avistou a única casa que não tinha portão e resolveu tentar a sorte lá. Encontrou abrigo, amor e proteção. Na casa “mais feia da rua”, como diz Jô, Tina encontrou tudo o que precisava. — Esta mulher foi atropelada, pai? — perguntou Jô. Com a inocência típica de sua pouca idade, a menina não conseguia entender o que tinha acontecido
Acima: Josiane abraçando o pai. Abaixo: Josiane com a mãe Carmosina Andrade Silva..
com aquela mulher negra que tantas vezes lhe oferecerá água em um copo limpíssimo de alumínio. Procurando acalmar a situação, Seu José preferiu afastar a filha, enquanto a mãe levou a vizinha ao banheiro para tentar resgatar o pouco de dignidade que lhe restava. “Cuidar da mulher é algo tão
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simples, mas as pessoas não têm essa noção”, diz Jô, hoje, ao se lembrar do ocorrido. Bem, a mãe de Jô teve. Ofereceu roupas suas para Tina poder se trocar, peças que Jô nunca esquecerá. “Uma saia toda estampada de fundo preto com rosas e folhagem verde. Além disso, deu uma blusa sem nenhuma estampa.”
A mulher do açougueiro A madrugada é o período do dia em que crimes contra mulheres são frequentes. Ninguém ouve o pedido de socorro. É o som da moto, o som do carro, o som do pancadão. A pandemia intensificou a violência doméstica. O isolamento trancafiou as vítimas com monstros. Para piorar, costuma imperar o silêncio daqueles que sabem que o abuso acontece, mas preferem se omitir, com a ideia de que “em briga de marido e mulher não se deve meter a colher”. Felizmente existem pessoas como Joseane, que fundou em 01 de agosto de 2010 a organização não-governamental Mulher Reviva. Jô vai em direção a qualquer uma que necessita de ajuda, não importa a hora ou a circunstância. “Você já ouviu o som de uma faca furando a mesa?” — pergunta Jô, demonstrando o barulho ao bater a ponta de uma caneta contra a mesa em que está seu notebook. O som crec, crec, crec arrepia a alma... “Eram 23h30 da noite e uma mulher me ligou pedindo ajuda.”
Crédito/Arquivo Pessoal/ Josiane da Silva Bernardes
Tina foi o início de uma história de cuidados com mulheres que sofrem de violência doméstica. Mudou não só a vida de Seu José e da esposa, que passaram a abrigar muitas outras vítimas, mas a de Joseane que mais tarde passaria a se dedicar a isso. Depois de Tina, a casa com dois cômodos chegou a abrigar mais de dez pessoas simultaneamente. Mesmo com pouco espaço, o cuidado e o carinho eram enormes. O foco era a recuperação das mulheres. Hoje, quando volta ao seu antigo bairro, Joseane não consegue deixar de visitar a mulher que foi a razão de tudo. O marido de Tina não está mais vivo, foi atropelado quase na esquina de casa por um caminhão. Assim, ela pôde voltar ao seu bairro, às suas origens. O cheiro de eucalipto de Tina, por conta do jardim bem cuidado por ela, mantém-se vivo na memória de Joseane.
Hoje Josiane comanda a ONG “Mulher Reviva”, no Jardim Nélia, na zona leste de São Paulo.
Um açougueiro apavorava sua mulher, com aquele crec, crec, crec perturbador. Jô atravessou São Paulo, sem conseguir esquecer o insistente e maldito barulho que tinha ouvido no telefone. A cidade estava dormindo. “Eu vou esquartejar você. Eu vou desossar você da mesma forma que eu desosso carne”, ameaçava. Na ligação que recebeu, Jô também pode ouvir o choro da mulher implorando por ajuda, porque não era só ela que seria desossada como carne em uma tábua de cozinha. Sua filha cadeirante também estava na mira. “Ele vai matá-la, esse homem vai matá-la”, pensava, sentindo o malestar da ansiedade percorrer seu corpo. Uma hora a separava daquela vítima, isso se não tivesse trânsito. Joseane temia não chegar a tempo antes de uma desgraça ocorrer. O que fazer? A polícia provavelmente demoraria a chegar também. E o barulho da faca continuava… Pensou rápido e pediu à moça o telefone do síndico. De acordo com a Lei nº 5.540/2020, é obrigatório que condomínios residenciais e comerciais denunciem casos de violência doméstica em suas dependências.
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Já era tarde quando Jô ligou para o funcionário, no entanto, quem atendeu foi a mulher dele. Clamando por ajuda, Joseane foi recebida de uma triste maneira: aos xingamentos a mulher do síndico afirmou que não queria saber do caso. “Aqui acontece barraco o tempo inteiro. O que eu quero saber é por que você está ligando para o meu marido a essa hora?”, afirmou a mulher com ciúmes. Sem esperança e entendendo que a situação no prédio piorava a cada minuto, Joseane optou pela polícia. O açougueiro foi preso em flagrante. A violência, embora psicológica, o levou a sua nova moradia: o presídio do Tremembé, no interior do estado. Jô voltou para o lar, para terminar suas poucas horas de sono. Sentia-se aliviada de saber que o agressor estava preso, mas veio a tristeza por saber que outras tantas mulheres podiam estar sofrendo violência, naquele exato momento, sem poder pedir ajuda. Mas a assistente social não deixa esse sentimento vencer. À frente do Mulher Reviva, ela segue disposta a contribuir com sua gota d´água. Um feminicídio evitado é uma grande vitória.
CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS 24 | Narrativa