Revista Narrativa - ed. 22

Page 1

EDIÇÃO 22 - 2021

REVISTA LABORATÓRIO DA DISCIPLINA GRANDE REPORTAGEM

NO MECANISMO DA RECICLAGEM


CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS


05

A batalha pela vida Por Caio Borges e

08

Hiperrealismo em tempos de novo coronavírus

Samuel Soares

Por Brenda Vieira e

16

Vida de mascote

19

O diário de uma aeromoça

Por Klauber Pavesi e

Por Letícia Damásio

Nem na idade da razão Por Amanda Pickler e Rebecca Gomes

Pietra Mesquita

Raí Fernandes

27

11

22

Crescer! Histórias e sonhos em uma cooperativa de reciclagem Por Daiana Rodrigues

Além do parto Por Beatriz Martins e Emily Nascimento

REVISTA-LABORATÓRIO DA DISCIPLINA GRANDE REPORTAGEM - EDIÇÃO 22 - 2021-1 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Reitor: Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos Chefe de Gabinete: Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte Pró-reitor de Controle Acadêmico: Prof. Dr. Wallace Tesch Sabaini Pró-reitor de Extensão e Cultura: Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida Pró-reitora de Graduação: Profa. Dra. Janette Brunstein Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto Pró-reitor de Planejamento e Administração: Prof. Dr. Luiz Carlos Lemos Júnior

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS Diretor: Prof. Dr. Rafael Fonseca Santos CURSO DE JORNALISMO Coordenador: Prof. Dr. André Santoro SUPERVISOR DE PUBLICAÇÕES Prof. Dr. José Alves Trigo EDITORA Profa. Dra. Patricia Paixão


CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS


A batalha pela vida Como a pandemia mudou a rotina de Alessandra, enfermeira na linha de frente contra o novo coronavírus Arquivo Pessoal/Alessandra Sanches

Por Caio Borges e Samuel Soares

V

ocê coloca o paciente em um saco fechado e entrega para os familiares que não sabem nem como ele estava... Não sabem como foi a piora, não sabem nem ao menos se quem está ali dentro é realmente o ente querido.” O depoimento de Alessandra Castilho Mansano Sanches, enfermeira que trabalha na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Geral de São Mateus, na zona leste de São Paulo, espelha a rotina de desespero de quem está na linha de frente no combate ao novo coronavírus. Rituais como este passaram a ser comuns. Nascida na capital paulista, Alessandra tem 44 anos. Metade de sua vida foi dedicada à Enfermagem. Começou a entrevista (realizada por vídeochamada, dadas as condições do momento), com um sorriso, algo que tem se tornado cada vez mais raro de se ver nos últimos tempos. A enfermeira tem cabelos castanhos, pele morena, grandes olhos e uma voz serena que destoa de tudo o que ela já viveu. Poucas pessoas enxergam a morte diariamente de perto. Alessandra é uma delas, mas nem por isso perde a expressão de felicidade. Embora o seu dia a dia seja repleto de situações estressantes e, muitas vezes tristes, ela é apaixonada pelo o que faz. “Eu sempre gostei de cuidar das pessoas”. Foi a primeira frase que saiu de sua boca

ao ser perguntada sobre o motivo de ter escolhido a profissão. Existem dias difíceis para quem trabalha na área da saúde, mas o orgulho e a felicidade de conseguir recuperar um paciente são incomparáveis. “Os momentos de morte são terríveis sim, mas você atender um paciente grave e depois ter a oportunidade de vê-lo responder é algo muito gratificante”, conta. Todos os dias Alessandra entra em seu carro que, por conta da situação em que o mundo se encontra, é utilizado somente por ela, fazendo o trajeto único de sua casa até o hospital. Ela também elegeu um par de sapatos para acompanhá-la em sua rotina. Chegando ao seu local de trabalho, entra pelo vestiário, coloca seu traje, lava as mãos, passa álcool em gel e está pronta para mais uma batalha.

5 | Narrativa

Estar na linha de frente em meio a uma das maiores pandemias da história, sem enlouquecer, não é uma tarefa fácil. Alessandra, no entanto, aparenta saber muito bem como lidar com sua saúde mental. “Eu acho que você tem que tomar cuidado para não entrar nessa paranoia, porque senão você não atende ninguém, você vai ter medo do paciente.” O motivo para não se entregar à loucura é apenas um: empatia. “Quando o paciente entra na UTI, ele, literalmente, só tem a equipe médica e de enfermagem. Não tem mais ninguém.” Cuidar das pessoas. Esse desejo acompanha Alessandra desde o começo de sua carreira e persiste sendo o combustível que faz a enfermeira levantar de sua cama


Arquivo Pessoal/Alessandra Sanches

todas as manhãs e arriscar sua vida no hospital. Ao final do dia, ela volta para o carro e segue rumo ao seu lar. Chegando em casa, deixa a bolsa no carro, caminha até a porta, larga seus sapatos por lá e vai direto para o chuveiro. Como possui dois filhos pequenos, a atenção é redobrada. A enfermeira os ensinou medidas de higiene para se protegerem do vírus e isso inclui não abraçá-la logo que ela chega em casa. Essas medidas também valem para o marido. Toma um banho e, após ter certeza de que está limpa e segura, vai abraçar a família. Depois de tudo, dorme e está preparada para mais um dia. A enfermeira conta que sempre trabalhou no olho do furacão, lidando com situações críticas, algo que não foi de sua própria escolha. “Quando você entra para o

hospital, dificilmente você vai para a área que você quer. Você vai para onde o hospital precisa. Diferente, por exemplo, de uma contratação médica.” Trabalhar em uma área diferente da qual você gostaria é um problema pequeno perto do turbilhão de empecilhos que um profissional da enfermagem encontra neste país. Isso ficou nítido quando lhe perguntamos sobre quais dificuldades que um enfermeiro precisa enfrentar. Alessandra respirou fundo e respondeu, num primeiro momento: “Diversas!” A falta de reconhecimento e o baixo salário são questões delicadas, que podem afastar qualquer pessoa da profissão. “Tem médico que costuma dizer que a gente se prostitui, e é verdade. A gente se prostitui para poder ter uma

6 | Narrativa

vida melhor. Então a gente trabalha em 2, 3 empregos. Fazemos plantão extra, para poder melhorar a renda. Um absurdo...” O amor e o alívio de ver um paciente curado justificam o esforço. Alessandra já teve mais de um emprego. Hoje trabalha somente na UTI do hospital, onde exerce sua função há 14 anos. Hospital chega a ser um eufemismo para descrever o seu local de trabalho. Com a situação descrita com tristeza pela enfermeira, a imagem que nos vem à mente é a de uma zona de guerra. Vidas são perdidas, o controle é perdido, a situação muda quando menos se espera. No momento de luta pela vida, a ausência física da família dos pacientes é uma das situações mais tristes. Isolados do mundo e deitados em uma cama, as pessoas contam com personagens como Alessandra para venceram a batalha. A força da pandemia impede as visitas. A enfermeira desabafa, com uma angústia, sobre como é a tentativa de aliviar a dor dos familiares. Uma das estratégias é fazer uma videochamada, para tentar resgatar uma esperança e levar algum conforto à família. E assim a ação tão marcante nesses tempos é repetida ao longo dos leitos, ligando para diversas famílias e dando o alívio que é possível. “A partir do momento que o paciente é internado com uma suspeita de covid ele perde totalmente o vínculo familiar. E aí você vai falar com aquela família e vê o desespero. A pessoa não tem noção de como está aquele paciente, ela não sabe que ele está intubado, ela não sabe o que é um ventilador...” A ausência de uma referência segura, quase que como um chão para pisar, maltrata Alessandra e os demais da linha de frente. E além de todo o desafio, precisam pensar em si próprios, porque estão completamente expostos, não só de maneira física, mas mental. Os que salvam também precisam ser salvos. “Muitas pessoas adoeceram


mentalmente. Você vê aquele médico que você sempre teve como sinônimo de bom profissional tão perdido quanto você. É uma situação nunca antes enfrentada. Não é fácil.” Essa é a missão dupla dos responsáveis pela saúde. Cuidar de si e cuidar do próximo. A relação com os pacientes acaba se tornando naturalmente mais forte, quando se trata de uma questão delicada, que envolve tempo, amor e dedicação. Ela acabou se apegando a alguns pacientes. O primeiro representa um momento de felicidade: foi a primeira pessoa curada do hospital. Já o segundo é uma história triste. Daniel. O nome dele é citado como se fosse alguém muito próximo à Alessandra. Mais novo do que a enfermeira, o jovem de 33 anos perdeu a batalha contra a doença. Conseguiu resistir por quase 2 meses, mas no final acabou sendo derrotado. “Foi como se a gente tivesse perdido alguém da família.” Nesse momento da nossa entrevista Alessandra desaba. Aquela memória ainda está fresca na sua cabeça. Já em prantos, prossegue: “Porque 56 dias é muita coisa, sabe? Você chegar lá, olhar esse paciente todo dia e conseguir se comunicar com ele era uma alegria. A gente chegava e dizia: ‘Bom dia, Daniel’. E ele, mesmo intubado, dava um ‘ok’, mostrando que estava tudo bem. E quando ele foi tendo a piora neurológica, a gente já percebeu que ele não conseguia responder mais...” Mesmo com tudo que tem enfrentado, Alessandra tem a opinião dividida com relação à quarentena adotada pelo governo para conter o avanço do vírus. A enfermeira lembra daqueles que precisam lutar para sobreviver em um momento de extrema dificuldade. “É muito fácil eu condenar uma situação que eu não vivo. Tem gente que não tem água para lavar a mão, tomar um banho, higienizar um alimento. Você acha que essa pessoa vai comprar máscara? Você acha que essa pessoa vai comprar álcool em gel? Não,

Arquivo Pessoal/Alessandra Sanches

mas quando ela for comprar o quilo de batata dela, se na portinha tiver alguém com um álcool em gel espirrando, ela vai passar na mão. Então vamos tentar fazer o possível. Não dá para tentar exigir tudo da mesma maneira de todo mundo. A gente não tem essa igualdade na sociedade, não adianta.” Mais uma vez colocando-se no lugar do outro, Alessandra encerra a entrevista com um recado aos brasileiros:

7 | Narrativa

“Tentem se proteger. Porque quando você se protege, você protege o outro. É uma doença muito triste, porque a gente não sabe como lidar com ela. É um fim muito triste, porque você não tem a chance de se despedir. Mas também não deixe de viver, porque não adianta se trancar em casa, com medo de tudo. Tem gente que está pegando o vírus em casa. Então meu conselho é: protejam-se, mas não deixem de viver”.


em tempos de novo coronavírus Fãs de reality show mantêm devoção pelo programa e seus participantes Arquivo pessoal/ Gabriela dos Santos

8 | Narrativa

Por Brenda Vieira e Pietra Mesquita

O

quarto vazio parecia estar mais cheio do que nunca. De tensão. De competitividade. De medo. De alguma forma o silêncio dizia respeito a uma euforia que se abrigava no coração de uma fã. Gabriela dos Santos, 24 anos, estava sentada em sua cama com os olhos vidrados na TV, como se estivesse assistindo a um jogo de Copa do Mundo. A cena poderia ser facilmente comparada a um filme, em que todos da cidade voltam o seu olhar para a TV. Em “O Show de Truman”, longa de 1998, dirigido por Peter Weir, somos apresentados a uma sociedade imersa no prazer de assistir a um desconhecido descobrindo o mundo, fazendo escolhas e vivendo uma realidade muito parecida à vida real, mas totalmente fabricada, cercada por câmeras. Naquela noite, o Big Brother Brasil havia alcançado uma marca histórica. Um bilhão e meio de votos registrados no que foi considerado o maior paredão da história do reality. Não só no Brasil, mas em todas as edições do programa ao redor do mundo. O clima era de jogo de futebol, dos bons, dos grandes. Um clássico.


Arquivo pessoal/ Gabriela dos Santos

– Caramba, meu! – disse irritada, acreditando que aquele seria o último dia de sua participante favorita no reality. A edição era atípica por dois motivos. O primeiro deles era sua formatação. Dessa vez a casa não contava apenas com anônimos. Havia famosos e influenciadores digitais. Assim, a casa ficou dividida entre “pipoca” e “camarote” em sua primeira semana e ganhou mais engajamento que a última edição do programa em 2019. O segundo motivo era o fato de BBB ser o único reality show sendo exibido na TV aberta, enquanto os governos dos estados pediam para que as pessoas ficassem em casa. A quarentena causada pelo novo coronavírus fazia a situação ser ainda mais intensa. “Pão e circo” e “alienação” era o que diziam alguns internautas no Twitter e no Facebook, referindo-se ao entretenimento em

meio à pandemia. Gabriela não se importa. Acredita que Big Brother Brasil não é só um alívio para o momento. Defende que o programa faz as pessoas refletirem sobre questões sociais importantes. “Pra mim, o BBB é reflexo do que acontece na nossa sociedade hoje. Conseguimos refletir muito sobre, por exemplo, atitudes abusivas de homens, como o machismo, e sobre o racismo. Essa edição do BBB tem sido uma escola nesse sentido.” Naquela noite de terça-feira, 31 de maio, estava cansada por ter passado o dia inteiro votando para se certificar de que sua participante favorita ficaria na casa. Os mutirões organizados por fã clubes (dos quais é membro na internet) dividiram lugar com o trabalho que passou a ser home office e as brigas que comprou para defender a influencer Manu Gavassi. Durante a edição era impossível

9 | Narrativa

votar. Ela tentava, testava o notebook e o celular quase que ao mesmo tempo. Era proibido parar para curtir o programa daquela noite, porque até que Tiago Leifert batesse o martelo nada estava ganho. E a guerra precisava ser lutada. A atriz Bruna Marquezine também parecia estar ao lado de Gabriela. A torcida do Flamengo, contra elas. Os dois protagonistas do paredão eram Manu Gavassi e Felipe Prior, e, aos poucos, o que era apenas um reality se transformou em uma guerra virtual. Os jogadores Gabigol e Richardson convocaram todos os fãs e torcedores a ajudarem Prior a ficar. Para dar uma força na votação, prometeram sortear uma camisa de futebol autografada, caso Manu fosse eliminada. Do outro lado a cantora Iza, Lucas Silveira da Banda Fresno e Bruno Gagliasso anunciaram torcida para Manu. O paredão tomou proporções


tão grandes que o veículo Midia Ninja e o Movimento Brasil Livre usaram a oportunidade também como zona de guerra e se posicionaram #ForaPrior e #ForaManu, respectivamente. Apesar de desejar que Manu ficasse, Gabriela não sentia que isso seria possível, uma vez que tantas pessoas famosas declararam apoio a Felipe. Continuava votando, os dedos já doíam por tantas horas abrindo muitas abas na internet para dar o maior número de votos possível por segundo. O encantamento da sociedade pósmoderna pela realidade simulada em programas como realities shows já foi estudado e teorizado pelo sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard, que criou o conceito de simulacro e hiperrealidade. Eram essas versões “melhoradas” da realidade, criadas para a fuga de uma realidade não tão atrativa assim, que Baudrillard denunciava. A psicóloga Priscila Felipini, 55 anos, descreve o fator psicológico por trás da fixação que os fãs de reality show sentem ao acompanhar os programas. “Antes nós tínhamos as novelas e as pessoas mais velhas se identificavam com os personagens, como se fossem amigos íntimos. Agora nos realities essa identificação fica ainda mais forte por serem pessoas comuns ou artistas colocados em situações cotidianas”, diz. “O BBB desse ano, por exemplo, virou um tipo de série de TV. Existe um voyeurismo em todo esse espetáculo. Ver o que se passa dentro de quatro paredes com outras pessoas e ver suas mazelas retratadas nos outros trazem algum senso de realização”, afirma. – Gente, acho que a Manu sai. – avisou Gabi em um dos muitos grupos do WhatsApp destinados ao BBB. O motivo pelo qual ela decidiu lutar de coração pela participante é justamente essa identificação. Em seu perfil do Instagram, Gabriela encarna uma parte de si que considera

influencer. A design de cosméticos tem um canal no YouTube há quatro anos e posta periodicamente vídeos sobre lifestyle e beleza. Por isso, a primeira torcida dela foi para Bianca Andrade (Boca Rosa), a blogueira que por muito tempo a inspirou. No entanto, a participante acabou sendo uma decepção no Big Brother. Gabriela gosta da sinceridade e, ao mesmo tempo, do estilo de Manu Gavassi e Rafa Kalimann. E a importância que ela deu para o paredão é por conta dos seus ideais, já que Felipe Prior representa tudo o que ela acha errado em alguém e Manu tudo o que ela deseja ser. O resultado No Ceará Joaquim Kildare, 16 anos, também aproveitava os últimos momentos de votação para salvar sua participante favorita. O estudante acompanha Big Brother Brasil desde os 5 anos de idade. O seu perfil no Twitter é dedicado exclusivamente ao programa e, quando questionado sobre o motivo de tanta paixão, afirma que se trata de uma conexão com os participantes e com a torcida aqui fora: “Eu me identifico muito com os meus favoritos e com a torcida. Na verdade, BBB pra mim é uma verdadeira família. Eu fui muito bem recebido por todos e agora, sempre que chega gente nova, nós damos muito amor. E também quando nossos participantes favoritos saem, criamos uma relação muito forte com eles nas redes sociais”. “Votação encerrada”, Tiago Leifert avisou. Ao olhar para a tela de celular, Gabi ficou feliz ao perceber que ao menos havia conseguido dar um último voto. Respirou fundo e bebeu um pouco de água que tinha deixado na cabeceira de sua cama para que não precisasse sair do quarto na reta final da votação. Os comerciais nunca foram tão longos e cada segundo nunca pareceu tão doloroso, como uma verdadeira tortura que a emissora estava fazendo

10 | Narrativa

com aqueles que assistiam. Gabi se levantou, inquieta, e enviou mais algumas mensagens a amigas em seus grupos de BBB. - Gente, socorro. Não é possível que esse garoto não vá sair! – reclamou, indignada. “Voltamos! Vamos lá dar o resultado para eles.” Novamente, Leifert parecia o mensageiro da morte. Enquanto o apresentador fazia o discurso de eliminação, as mãos de Gabriela se juntaram em frente à boca e o silêncio mais uma vez tomou conta do quarto. O coração batia forte e a respiração ficava mais pesada para conseguir acompanhar o nervosismo. Se alguém entrasse no quarto poderia achar até mesmo que ela estava fazendo uma prece. Então, quando Tiago conta quem é o eliminado da semana, um salto tira Gabriela do chão e os gritos saem de seus pulmões fazendo o quarto se tornar um estrondoso estádio de futebol. Nem a torcida do Flamengo pode tirar Manu Gavassi. “Felipe Prior, você está eliminado”, sentenciou Leifert. - ELA FICOU! ELA FICOU! ELA FICOU! A mãe apareceu no quarto, gritando tão alto quanto Gabriela, mas apenas para pedir silêncio. Apesar disso, em outros apartamentos do condomínio em que Gabriela mora, no centro de Santo André (município do ABC Paulista), havia pessoas que também gritavam. Algumas, de alegria. Outras, de raiva. Por um momento, os problemas do mundo, como o aumento de casos de covid-19, pareciam silenciados. Lutar para manter o participante preferido dava aos fãs do reality a sensação de autonomia em meio ao caos. Para Gabriela, a edição 2020 do programa era tão companhia quanto sua família. Ela acompanhava os participantes todos os dias pelo payper-view e, após o final do programa, teve, assim como muitos brasileiros, de lidar com o mundo em colapso.


Nem na idade da razão A batalha do casal de idosos Maria e Wagner Salvático para se locomover em São Paulo Amanda Pickler e Rebecca Gomes

Por Amanda Pickler e Rebecca Gomes Terça-feira, dia da consulta do doutor da medicina chinesa. Dona Maria acorda com a dor de um remorso na barriga: a bisteca da noite anterior. Seu corpo, com 71 anos de vivência, não é mais o mesmo. Ainda assim ela se levanta rápido e começa a se aprontar. Veste uma bermuda preta e uma blusa florida que transita entre o verde das folhas e o lilás das pétalas. Por fim, assenta o cabelo curto e cacheado com um arco trançado de couro marrom que se camufla entre suas madeixas escuras, sem um único fio de cabelo branco aparente. Veste as sandálias e, então, apoia-se em sua bengala amiga, caminhando a passos lentos até a cozinha. O medo de não poder sair de casa pelas broncas de seu estômago atinge sua mente. Mas logo lembra do conselho do doutor: “Pega a batata, rala e depois coa num pano”. - Mas ralá cansa... Nada que um liquidificador não possa resolver. E, apesar de burlar o trabalhoso processo da cura pela batata, o remédio caseiro funciona sem demora e Dona Maria pode finalmente comer seu habitual desjejum: três bolachas e um café preto bem amargo. Nunca gostou de doce, nem mesmo quando criança. Depois de alimentada, faz suas orações e só então passa a cortar as

11 | Narrativa


Amanda Pickler e Rebecca Gomes

frutas que vão na marmita da neta que mora na casa dos avós desde que nasceu. Antes da aposentadoria de Seu Wagner, também cortava as frutas que iam na marmita do marido. Dona Maria se orgulha de ainda conseguir fazer a faxina da casa. Só não limpa os armários, porque são muito altos. O que está muito embaixo também não dá. Esfregar está fora de mão, dói a coluna. Mas deixa claro que, hoje em dia, só limpa quando está com vontade. - Não sou mais a escrava da casa! – diz, soltando uma risada que ressoa no corpo, fazendo sacudir-se por inteiro, dando de ombros. Seu Wagner também se arruma para acompanhar a esposa à consulta das nove horas. Ele é magro e alto. O oposto da esposa que, por conta de sua coluna encurvada, aparenta ser mais baixa do que o seu 1m60 de altura. Seu Wagner tem sobrenome italiano, mas cara de alemão. Seus cabelos brancos e ralos, conquistados após 78 anos de vida, acentuam ainda mais os olhos claros e a pele branca. Ele veste uma camisa listrada de manga curta e uma calça jeans cinza, que tenta se moldar sem vitória em sua perna magra e

fina. Nos pés, calça uma sandália de couro marrom que combina com a sandália de tirinhas marrom da mulher. Diferentemente de Dona Maria, que não gosta de comer muito pela manhã, ele se esbalda na canjica que ela preparou pensando no marido. - O problema dele é sono! – explica Dona Maria. A agitação da mente do Seu Wagner não o deixa dormir, então ele resolveu se render aos milagres da medicina chinesa. Normalmente, depois dos afazeres do começo de um novo dia, Seu Wagner e Dona Maria partiriam para seu passatempo favorito: o caçapalavras. Ela na mesa da cozinha. Ele na mesa do pátio. Ela no aconchego de quatro paredes. Ele na liberdade do ar livre. Só que hoje é terça-feira, dia da consulta do doutor da medicina chinesa. Eles saem logo cedo de casa, em torno de 7h30, e se direcionam ao ponto de ônibus perto da padaria Barbotti. Segunda e quarta também são dias do doutor. Dias sagrados, reservados para se deslocarem de sua casa na Freguesia do Ó até Caieiras, cidade onde se encontra o consultório do tão falado Gilberto.

Começa a viagem Foi a irmã de Dona Maria quem recomendou o tal doutor. Ela, por acaso, mora em Caieiras. Dona Maria, que sentia muitas dores por conta de sua fibromialgia – e o peso de idade, não recusou o conselho, mesmo estando há duros 25 quilômetros de sua casa. Doutor Gilberto é filho de um chinês com uma baiana e, de todos os filhos do casal, foi o único que tomou a origem milenar como profissão. Dona Maria tem orgulho quando lhe perguntam sobre a tal medicina chinesa, tem orgulho da agulha não descartável especial que carrega na bolsa com a qual o médico injeta seus remédios. Aliás, remédios não. O doutor não acredita em remédios. Remédios são drogas. E, como toda droga, podem até fazer sentir bem, mas fazem “um danado de mal”. - Toma pra uma coisa, prejudica outra – ela diz. As consultas não são baratas, mas não importa. Já são seis meses de tratamento. Para ela não é fácil andar na rua desnivelada.


Amanda Pickler e Rebecca Gomes


- O joelho dói, sabe, fia? – queixase, andando devagar. Já Seu Wagner não se acerta nos passos lentos da mulher. Anda sempre na frente, como que abrindo espaço para a esposa passar. De vez em quando, ele para e espera Dona Maria, para logo em seguida tocar em frente, como um soldado que escolta seu comandante. Ele é esguio. Ela é baixinha. Como uma versão moderna de Dom Quixote e Sancho Pança. De segunda a quarta-feira é a mesma coisa. Ela e o Seu Wagner pegam o ônibus 189L lotado, na esperança de que alguma alma bondosa dê espaço para eles se sentarem. Dona Maria tem duas placas e cinco pinos na coluna. Depois de alguns olhares de dó, uma moça, aparentando seus 30 e poucos anos, finalmente se levanta do banco preferencial, cedendo o lugar. Dona Maria sorri em gratidão e, então, pendura sua bengala na frente de seu assento apertado, onde é obrigada a dobrar o joelho desgastado. Seu Wagner entra tranquilo. Acostumado com a lotação paulistana, pega ônibus cheio desde os 15 anos. Dona Maria conta que ele sempre passa a catraca normalmente. São dois opostos. Ela é calma. Ele não. - Parece até que é jovem. O Wa é hiperativo! No começo ele sofreu ao se aposentar, coitado. – afirma a esposa preocupada. A aposentadoria de seu Wagner só chegou de fato há um ano e meio. Trabalhou com gosto durante 57 anos na mesma firma. Acontece que quando chegou a hora de se aposentar, combinou com o patrão de continuar trabalhando mesmo assim e, dessa maneira, mais alguns anos se passaram. Foi só aos 77 anos, quando a vista desgastada começou a afetar, que Seu Wagner se viu forçado a parar. Acordou toda a vida às 4h20. Pegava sua marmita com as frutas cortadas pela mulher e saia de casa às quinze pras cinco, rumo a Barueri, município da Região Metropolitana de São Paulo,

onde se encontrava o escritório. Durante 57 anos, levou a mesma vida, com os mesmos horários e a mesma rotina. De repente, não tinha mais nenhuma obrigação. Foi então que a insônia apareceu. - Aê, fone e carregador! – grita um vendedor ambulante. - Aí, seis é dez! Seis é dez! Seis é dez! – grita uma outra vendedora. Seu Wagner e Dona Maria já estão acostumados com o típico fundo sonoro dos vagões da CPTM (Companhia Paulista de Trens metropolitanos). Os dois entram no trem e logo se sentam lado a lado. Dessa vez o vagão está vazio, mas sabem que a volta será diferente. - A estação da Lapa é sempre a mais cheia. Você não entra no trem, eles te colocam! – Dona Maria conta com se fosse segredo. O descaso das pessoas é o que mais a incomoda. Seu Wagner relembra de certa vez em que estava no metrô e um homem conversava ao celular. Aparentemente era aniversário da mãe, já que o filho falava: “Ô, mãe! A senhora tá bem? Meus parabéns, viu?” A maneira com que desejava os parabéns era afetuosa e dava a entender que o rapaz respeitava muito sua mãe. No entanto, possivelmente por alguma ansiedade interna, o atencioso filho possuía uma perna inquieta que o levava a chutar, talvez sem se dar conta, a canela de Seu Wagner. O marido de Dona Maria ri, achando graça da ironia de sua parábola. Seu Wagner não acredita que a cidade esteja preparada para acolher os idosos. - As calçadas de São Paulo são cruéis, cheias de buracos e desníveis. – comenta. Muitas vezes ele e Dona Maria preferem andar nas beiradas das ruas, mas os jovens impacientes não entendem. Buzinam e gritam para

14 | Narrativa

que saiam da rua e andem na calçada. Foi assim que Dona Maria quebrou a mão. Estava perto de casa, indo para a igreja, quando tropeçou no pavimento mal colocado e acabou por cair em cima de sua mão. Espatifou seu osso. Três moças a socorreram. - Não dorme, senhora. A ambulância já tá vindo. Tenta não dormir. – disse uma das transeuntes, que parou para ajudá-la. Sua pressão baixou e o mal-estar era perceptível. As vozes ecoavam de longe, era como um sonho mal feito. A moça do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) acompanhava por telefone, mas a ambulância não aparecia. Foi então que o filho da vizinha, reconhecendo Dona Maria, correu para chamar a mãe que, sem demora, pegou o carro e a levou para o Hospital Penteado. E a ambulância até hoje nunca se viu. - Às vezes é melhor chamar os bombeiros. Eles vêm mais rápido! – Dona Maria solta a dica. - Se ela ainda estivesse indo pra farra! Mas não, era pra Igreja. – Seu Wagner ri da desgraça. E ainda acrescenta que, se pudesse, colocava corrimão em toda a cidade a fim de evitar outra queda da esposa. Dona Maria se anima com a conversa, que às vezes parece um partilhar entre dois combatentes, comparando seus ferimentos de guerra. Ela relembra do dia em que o marido sumiu, após sair para uma consulta médica. Demorou tanto para voltar que uma angústia passou a crescer no peito da esposa. Acontece que Seu Wagner tinha passado mal no ônibus. - Calma, senhor. Alguém chama a ambulância! – um passageiro gritou. A ambulância não veio. A cobradora, compadecida, mandou todo mundo descer e levou ele para


casa. - Ela tentou socorrer, mas o prontosocorro não. – conta. Dona Maria também desabafa sobre o dia em que um menino a empurrou para que ela entrasse mais rápido no metrô. Ou de quando o motorista do ônibus freou impiedosamente, fazendo com que ela batesse a boca no ferro, machucando seu maxilar. Ou do fato de quase ninguém ceder lugar para o Seu Wagner. Ela para um instante e perde o olhar no horizonte. Então envolve uma das mãos sobre seu pulso, com um ar de resignação. Em Caieiras, o casal desce do trem e atravessa a longa plataforma. Fora da estação, precisam passar por cima do trilho. Dona Maria se apoia na bengala que a ajuda a se equilibrar. Seu Wagner, como sempre, abre caminho pela frente. Conheceram-se nos anos 1960. Maria trabalhava em um mercadinho

e o irmão de Wagner morava quase ao lado. Uma semana antes, haviam demolido uma casa antiga, fazendo a maior sujeira no telhado do tal irmão. Passado o trilho do trem, deparam-se com uma escada digna de Aparecida do Norte, o único acesso até a rua desejada. Seu Wagner, sem titubear, pega a bengala de Dona Maria e faz-se o apoio da esposa, subindo degrau por degrau. Wagner foi lá então ajudar o irmão a limpar as telhas. O sol naquele dia era forte, a garganta logo secou. No fim da íngreme escadaria, ainda há trajeto pela frente. Uma rua desnivelada e uma subida cansativa. Para matar a sede, correu lá no mercadinho para comprar um refrigerante, o mercadinho que a Maria trabalhava. Wagner sempre gostou de doce, desde quando era criança. O jovem de olhos claros e rosto de James Dean logo chamou a atenção de Maria que em um suspiro

15 | Narrativa

perguntou para o colega ao lado: “Quem é aquele?” Depois da subida tortuosa, finalmente chegam à Rua Padre Aquiles Silvestre e no número 234 se encontra, ao fim de uma rampa, uma casinha laranja com portão verde. Seu Wagner abre o portão, deixando Dona Maria passar. Os dois sobem juntos a última rampa, chegando enfim ao consultório do doutor da medicina chinesa. Não demorou muito para os dois começarem a namorar. Maria gostava de andar na garupa da moto de Wagner, mas ficou feliz quando trocaram a moto pelo sofá. Hoje, comemoram 52 anos de casados. Antes de deixarmos o casal nas mãos do bom doutor, perguntamos sobre como é envelhecer, ao que Dona Maria responde: - O melhor de ser idoso é ter chegado nessa idade. Eu tô bem. Eu falo que a vida é linda. O chato são as dores.


Vida de Os momentos de glória e a rotina de Severino Bianchi, que atua como mascote da torcida do São Paulo Futebol Clube Por Klauber Pavesi e Raí Fernandes Arquivo Pessoal/ Severino Bianchi

A

quele 20 de dezembro de 2005 amanheceu diferente para Severino. Às 6 horas da manhã ele começou a organizar seu grande dia. Com a esposa, iniciou a jornada ajudando na distribuição das bandeirinhas para a recepção do seu time de coração na volta da conquista do Campeonato Mundial. Saiu de casa para receber a delegação do São Paulo, no aeroporto de Guarulhos. Uma festa esperava todos os jogadores, após terem conquistado o mundo pela

terceira vez. Sua missão era acompanhar o time campeão em cima de um trio elétrico até o Estádio do Morumbi, algo que, se não fosse em uma carreata, levaria no máximo duas horas, mas, como havia milhares de pessoas para comemorar e gritar “é campeão” pelas ruas de São Paulo, o percorrer do trajeto demorou aproximadamente 14 horas. Marginal lotada. O trio seguia para a “casa” do tricolor paulista ao som da música Poeira, de Ivete Sangalo. “Durante o percurso, começou a

16 | Narrativa

muvuca. Havia muitos carros buzinando, acompanhando o trio. Os motoristas dos veículos que estavam do outro lado da Marginal [do Tietê] estavam todos parados olhando. Quando passamos pela Avenida Ipiranga e o viaduto do Chá, eu conseguia ver as pessoas nas varandas e janelas dos prédios olhando o que estava acontecendo. Inesquecível!”, lembra. Severino estava lá em cima, fantasiado de Santo Paulo, junto com os jogadores, compartilhando a emoção


com os atletas. O momento foi de tanto êxtase que ele não consegue se lembrar de muita coisa. Mas uma imagem não lhe sai da cabeça: um homem que seguiu o trio elétrico do aeroporto até o estádio, correndo e comemorando. Severino usava a cabeça do mascote que não é nada leve. De vez em quando, tinha que tirar o ornamento e tomar uma água. Mas para ele esse esforço valeu a pena, já que se tratava de uma oportunidade única, em um momento histórico. Por trás do mascote Muitas pessoas que acompanham o futebol veem os mascotes dos seus clubes na beira do gramado, apoiando e incentivando os torcedores, mas o que poucos sabem é a verdadeira identidade de quem está embaixo da fantasia. Severino Bianchi, 53, trabalha para o São Paulo Futebol Clube há mais de 20 anos. Atualmente a maioria dos clubes de futebol tem seus mascotes, mas isso não era tão comum quando ele começou. Os times não sabiam se a torcida aceitaria bem a presença dos personagens. O São Paulo foi uma das primeiras equipes a criar o seu mascote e colocar uma pessoa fantasiada nos dias de jogos para animar a torcida. De quarentena e com seu trabalho suspenso por conta do novo coronavírus, o mascote do São Paulo topou fazer uma entrevista via telefone. Ele disse que seu dia a dia está muito difícil sem poder atuar no estádio. O futebol é a sua grande paixão. Severino começou como motoboy no clube Paulista em 2000 e, por ser bem simpático e brincalhão, era chamado para fazer brincadeiras no intervalo das partidas: “Eu sempre fui muito engraçado e o pessoal me chamava no campo pra fazer brincadeiras, como fingir que ia chutar um pênalti e cair”, recorda. Em 2002, a partir de uma ação de marketing, o São Paulo resolveu criar um mascote, o Santo Paulo. “Eu fui a primeira pessoa que eles pensaram pra ser o mascote. Foi assim que comecei.” Sua estreia aconteceu em um

São Paulo x Santos. No começo, o personagem não foi muito bem aceito pela torcida organizada do clube, a Independente: “Nas costas da minha fantasia estava o número 0800 do Sócio Torcedor e eles consideravam que aquilo poderia acabar em algo contra eles”, diz, explicando a imagem de violência que recai sobre as torcidas organizadas. Hoje em dia a relação é extremamente saudável. Com o passar do tempo, a torcida percebeu que quem ganhava com isso era o São Paulo e somente isso importava. Outro fato curioso e quase trágico na trajetória de Severino aconteceu em 2012, na final da Sul-Americana entre São Paulo x Tigres da Argentina. Ele estava animando a torcida tricolor, quando, de repente, um homem se jogou das arquibancadas mais altas do estádio e caiu no fosso. Severino achou que ele tinha morrido e foi ver, mas, quando chegou lá, o homem levantou todo machucado, o abraçou e roubou a cabeça de mascote que Severino estava usando. Depois Severinho conseguiu recuperar o acessório. “Levei um susto, fui correndo para acudir e, quando cheguei lá, ele me abraçou e começou a me chamar pelo meu nome mesmo. Depois ele foi levado de lá e não sei mais o que aconteceu. Quando voltei para o campo, todo mundo achava que eu tinha participado da briga dos jogadores que tinha ocorrido nos vestiários.” Severino diz que sua função e seu caráter vão totalmente de encontro com idéias agressivas. Ele defende a harmonia e a felicidade, por isso trabalha como mascote. Em todos esses anos, fez um amigo mais que especial: Rogério Ceni ex-goleiro e ídolo do São Paulo. Severino comenta que a relação com o arqueiro tricolor era sensacional e que ganhava presentes do amigo. “Sempre que o Rogério me via em campo ele ia lá me cumprimentar. Em 2007, quando o São Paulo conquistou o título do Campeonato Brasileiro, tinha vários mascotes no campo e o Rogério foi indo de um em um, perguntando se era eu. Ele sempre me chamava pra ir na

17 | Narrativa

casa dele.” O carinho era mútuo. Severino comenta que tem um “mini museu” do Rogério na sua casa: “O Rogério costumava me dar suas camisas e luvas. Com o tempo, fui fazendo um museu aqui em casa só dele. A camisa mais recente foi a do Fortaleza que ele está treinando agora. É muito bom vê-lo feliz lá.” Recentemente ocorreu o um episódio de assédio envolvendo o mascote do Atlético Mineiro e uma jogadora profissional do clube, na reapresentação do time. A torcida lotou o estádio para receber as jogadoras, e, de primeira, a atitude não foi reparada com a importância necessária. Com a exposição do fato na internet, diversas pessoas começaram a comentar que a situação foi imprópria. O ocorrido repercutiu muito mal e o clube acabou afastando o mascote. Para Severino, o mascote precisa ter um comportamento ético e respeitoso. Tem que ter consciência de que representa o clube. “Você é um personagem e simboliza o time. Acho que ele foi muito mal no que fez. Tem que passar alegria para a torcida e ter atitudes que levantem o astral das pessoas que estão ali”, comenta. Além do papel de mascote, Severino exerce outras funções no clube, dentre elas coordenar as crianças das escolinhas de futebol do São Paulo. Ele acompanha quando vão levar as crianças no estádio para entrar com os jogadores. Nos dias de jogo no Morumbi, comenta que é tudo uma correria só: “Chego sempre antes para ajudar as escolinhas que vêm pra entrar com os jogadores. Deixo as crianças no camarote e vou vestir a roupa pra entrar em campo antes do jogo e agitar a torcida. Depois, fico a partida inteira na beira do campo”. Quando ocorrem jogos fora de São Paulo, ele viaja com o time e tem uma técnica pra ajudar a melhorar o ambiente nos estádios. “Eu fiz uma faixa escrita ‘Paz no futebol’ e sempre tiro uma foto com o mascote do outro time. A gente troca as camisas no intervalo. O estádio aplaude essa atitude, que é pra trazer um


ambiente mais legal pro futebol.” A primeira viagem internacional de Severino foi para os Estados Unidos em 2017. Ele conta que foi muito marcante viajar para um lugar diferente, representando o time de coração. “É algo totalmente diferente, a recepção foi incrível e todo mundo parava pra tirar fotos comigo. Cheguei até a entrar na quadra em um jogo da NBA. Foi uma experiência única! Só teve um problema que foi o idioma, pois todo mundo falava alguma coisa pra mim e eu não entendia nada.” Em julho de 2019, ocorreu a Copa América no Brasil e Severino foi o representante do mascote em São Paulo. A figura selecionada para representar era uma capivara e, como era um torneio em nível internacional, a preparação acaba sendo mais delicada. Por isso a organização optou por separar por estado, evitando assim viagens consecutivas, longas e cansativas, podendo também dar oportunidade para as pessoas dos lugares de origem. “Foi muito marcante, fui pra vários lugares de São Paulo promovendo o campeonato, além de fazer diversas matérias para TV. A gente começou de manhã cedinho no metrô de São Paulo e fomos em diversos pontos turísticos da cidade. No final a gente gravou na beira do Rio Tietê, porque falaram que era onde a capivara morava. Eu fiquei gritando: ‘Não quero ficar aqui. Eu quero shopping, quero shopping’. Todo mundo que estava lá ficou dando risada.” Mesmo usando uma fantasia, ele comenta que o pessoal consegue descobrir sua identidade e já aconteceu muitas vezes dele ser reconhecido na rua, quando não está vestindo o traje do mascote. “Não sei como eles conseguem descobrir! Fico muito tímido e envergonhado, quando isso acontece.” Severino aguarda ansiosamente o retorno do futebol no Brasil. Enquanto fica em casa, pensa na torcida e em como vai fazer para alegrar de novo os seguidores do seu time, principalmente depois de um momento muito complicado para todos.

18 | Narrativa


O diário de uma aeromoça A rotina pré e pós-pandemia da comissária de bordo Bernadeth Aquino Por Letícia Damásio O dia dela começa enquanto a escuridão da noite reina em Calgary, cidade localizada na província de Alberta, no Canadá. Às 3 da manhã, Bernadeth Aquino, uma das várias aeromoças que trabalham na companhia WestJet, desperta em sua cama e veste seu uniforme de cor escura, que deve estar sempre em perfeito estado.

Mas voltemos para a rotina. Quando se trabalha no primeiro voo do dia, às 5 da manhã, nenhuma alma viva entrou no avião ainda e a checagem de segurança é necessária. Os funcionários que trabalharão no voo precisam ter certeza de

que ninguém mexeu nos itens de segurança e primeiros socorros. Esse procedimento é de longe o mais importante. Ainda antes de tudo começar, os cintos de segurança também precisam ser checados, é claro, um por um. “Não há nada pior do que Bernadeth Aquino/ Arquivo Pessoal

Com 27 anos, mas aparência de quem acabou de fazer 20, tem sobrancelhas e olhos escuros, que são um tanto puxados, por conta de sua origem filipina. Sua estatura, não muito alta, é suficiente para exercer a profissão. Depois de ter certeza de que seu blazer e sua calça social estão em perfeita ordem, Bernadeth, ou simplesmente Berna, tenta disfarçar um pouco o cansaço e as marcas da insônia, com um corretivo leve, e prende cuidadosamente seus fios de cabelo, puxados para um tom castanho, em um rabo de cavalo ou em um coque, que precisa estar alinhado, sem fiozinhos soltos. No universo da aviação, quando se é escalado para o turno da manhã, o avião já está te esperando antes mesmo que você chegue ao aeroporto. Parece uma bela carona para outra cidade, não é mesmo? Mesmo que seja a trabalho, talvez nada se compare à sensação de estar sobrevoando as nuvens em um objeto de metal. Isso é pura ciência!

19 | Narrativa


Bernadeth Aquino/ Arquivo Pessoal

estar sentado em um avião e na hora da decolagem perceber que o seu cinto não fecha. É angustiante”, afirma Bernadeth. Ao olhar os assentos, é preciso conferir se todos eles têm o manual de segurança no bolso frontal. Os coletes salva-vidas e as lanternas também devem estar a bordo, caso seja necessário realizar uma evacuação. Quando uma tripulação não encontra a outra, toda a segurança precisa ser feita novamente, com a devida atenção e os cuidados necessários. “Nunca se sabe se alguém entrou no avião e estragou tudo que fizemos antes”, diz Berna. Porém há uma exceção: no turno do meio do dia, apenas a troca de tripulação acontece. E só quando está tudo certo, o embarque pode começar. Em aviões pequenos como o de Berna, só entram em cena dois comissários de bordo. E nessa hora a escolha de quem vai liderar e quem vai assumir a p2, ou seja, a posição dois, é feita. “A líder está lá na frente, sempre com um sorriso, cumprimentando cada um dos passageiros. E a p2 prepara os cookies, pretzels, álcool e as outras comidas”, explica. Após a acomodação dos passageiros e fechamento das portas e compartimentos, a parte mais sociável começa. O taxeamento (deslocamento da aeronave na pista) acontece enquanto a líder anuncia as informações básicas do voo, como destino e clima local. Depois disso, as medidas de segurança são repassadas às pessoas de forma clara e visual. Antes da decolagem, mais uma verificação de segurança é feita. As mesas de alimentação precisam estar completamente fechadas e os cintos afivelados. “A parte principal de um voo é o taxeamento, porque há outros aviões em movimento na pista. Então é preciso assegurar que tudo esteja

realmente correto”, explica Berna. O meio do voo é marcado, principalmente, pela hora de servir a comida. Às vezes esse momento pode gerar algumas lembranças um tanto desconfortáveis para os comissários. “Algumas pessoas não são tão educadas. Estamos ali para garantir que o voo seja bom para todos, mas o respeito também é muito importante”, pontua, ao lembrar de algumas situações em que foi desrespeitada. “Lembro que uma vez um homem, um pouco mais velho que eu, começou a puxar assunto. Nada estava estranho até ele começar a fazer pequenas insinuações sobre meu cronograma pós-voo”. Bernadeth afirma que os relatos de assédio ou desrespeito são comuns entre suas amigas da área, mas muitos deles são ‘abafados’ pelo medo de uma possível demissão. Aproximadamente dez minutos antes do pouso, a líder anuncia que o fim do voo está próximo. Depois disso, mais uma segunda checagem de cabine é feita para ter certeza de que ninguém está sem o cinto ou no banheiro. As mesas devem estar na posição adequada. Após um pouso bem-sucedido, há, geralmente, mais quatro voos à espera dos comissários, ao longo de todo o dia. Então o ciclo

20 | Narrativa

aqui descrito se repete. Uma guinada Ao abandonar seu emprego em uma das lojas da Apple, Bernadeth sentiu que devia mudar de área. Formada em Sistemas da Comunicação pelo Instituto de Tecnologia do Sul de Alberta (na sigla em inglês SAIT), passou um certo tempo tentando descobrir o que queria fazer da vida. Até que, ao esbarrar em uma propaganda de convocação de novos comissários de bordo da WestJet, tomou a decisão que viraria sua vida de cabeça para baixo: fazer sua inscrição em um programa de treinamento da companhia aérea. Quando as semanas de treinamento começaram, muito conhecimento era adquirido, mas, por ser um período bem desgastante, a aeromoça acabou passando por algumas crises de ansiedade. O nervosismo de não estar conseguindo se sentir realizada após largar seu emprego estável também era um problema constante. As intermináveis madrugadas de estudo permitiram que ela fosse vitoriosa na prova. “Nada foi fácil. Eu passava muito tempo acordada estudando. Pensei em desistir, mas eu tinha em


mente que queria uma mudança na minha vida”, lembra.

Bernadeth Aquino/ Arquivo Pessoal

Mesmo depois de cinco semanas puxadas de treinamento, percebeu que só aprenderia sobre a rotina da profissão no primeiro dia de trabalho. No voo inaugural, os novos comissários da WestJet são escalados em duplas e um comissário mais experiente está presente para se passar por um passageiro. Era o meio do inverno, quando o tão esperado primeiro dia de trabalho de Bernadeth chegou. “Entramos no aeroporto às 4 da manhã e eu acho que o meu celular marcava 20 graus negativos. Eu estava com pressa e super nervosa”, lembra. Como sua parceira de voo, Shantal, falava inglês e francês, Berna preferiu assumir o posto de p2 e deixar a tradução dos anúncios para a outra aeromoça. Como o primeiro voo dos novos comissários não sai de Calgary e sim de Winnipeg, que fica na província de Manitoba, Berna pegou uma ‘carona’ nessa aeronave que estava no aeroporto de sua cidade. “Shantal não parava de falar. Eu pretendia usar as 3 horas de voo para dormir, mas isso não aconteceu e eu só fiquei ainda mais nervosa”, diz Berna. Ao chegar em Winnipeg, Berna e sua parceira conversaram com os pilotos de seu voo inaugural e as notícias não eram nada boas. O avião estava com um problema de manutenção e haveria um atraso de três horas, e é claro que o estresse só aumentava naquele momento. Passadas duas horas, as aeromoças descobriram que aquele dia seria mais longo do que pensavam. O voo atrasaria mais algumas horas. Ao serem mandadas para um hotel próximo ao aeroporto, Bernadeth teve um merecido, porém curto, descanso de duas horas até a sua volta para o aeroporto, para finalmente operar seu primeiro voo.

“Eu estava com tanto medo, afinal, as pessoas já estavam estressadas depois de tanto esperar”, recorda, com um certo desconforto. Mesmo com todos os problemas, tudo acabou saindo como deveria. Passado um ano de seu primeiro voo, Berna se vê fora da correria dos aeroportos. Seus uniformes que antes eram lavados constantemente e guardados com muita delicadeza, agora se encontram no fundo do armário. Com a chegada do novo coronavírus (que teve seu surgimento em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, na China), grande parte do setor da aviação em todo mundo foi paralisada. Mais da metade dos funcionários de sua companhia aérea foram mandados para casa por tempo indeterminado. Aqueles burburinhos em diferentes línguas que eram ouvidos por todo terminal de embarque, agora são substituídos pelos sons dos

21 | Narrativa

vídeos dos amigos da aeromoça no feed do Instagram e pelas músicas das dancinhas coreografadas do Tik Tok. Para uma pessoa que é simplesmente apaixonada por viagens e que quase nunca parava em casa, as horas de descanso se tornaram praticamente intermináveis. Após impor o período de quarentena e as medidas de prevenção, o Canadá, começou a afrouxar as regras de isolamento, com a reabertura dos parques nacionais no primeiro de dia de junho de 2020, o que foi definitivamente um dos pontos altos destes últimos quatro meses vividos pela aeromoça. Berna pode reencontrar alguns amigos, sair um pouco do vício das redes sociais e até se aventurar um pouco mais, na medida do permitido, é claro. “Mesmo sem viajar, ainda posso aproveitar a beleza de nossos parques com alguns amigos. E isso é um alívio.”


Histórias e sonhos em uma cooperativa de reciclagem Daiana Rodrigues

22 | Narrativa


Por Daiana Rodrigues

E

m um galpão grande e abafado, pessoas pegam e jogam lixo para todos os lados. Além das que estão na esteira, outras se encontram nas prensas ou guardando os fardos a serem vendidos. Com caminhões chegando a todo momento, alguns desabafam: - Meu Deus! Onde vai caber tudo isso? Mas nada de parar o serviço. Ali tempo é dinheiro. Esse é o cenário da Cooperativa de Reciclagem Crescer, que fica na região da Lapa, zona oeste de São Paulo. Todos os dias os cooperados separam cerca de oito toneladas de lixo. É brincadeira? Nesse dia, 10 de março de 2020, até mesmo o coordenador, o senhor Jair do Amaral, está assustado: - Hoje vai ser rock’n roll! Era enorme a quantidade de material a ser separado. Mesmo assim, ninguém se abala ou é desmotivado. Nem mesmo a grávida de sete meses que está na esteira de

triagem, a Gleice Kelly. A morena bonita, que ostenta um barrigão, tem cabelo encaracolado e semblante suave. Ela trabalha tranquilamente, apesar de já estar com 7 meses da gravidez. Reclamar? Nem uma única vez. Muito pelo contrário. Fazia o trabalho bem feito, dava risada e conversava com as outras pessoas da esteira. É assim que funciona lá. Em uma esteira de 100 metros, cada pessoa pega seu respectivo resíduo e o separa em grandes sacos, os quais posteriormente serão realocados e prensados. Pausa para o almoço. Já era meio dia. Todos foram buscar suas marmitas e se sentaram nas cadeiras e sofás em torno de uma grande mesa. Eles comem e descansam em um espaço separado a poucos metros do ambiente de trabalho. Alguns se alimentavam sozinhos, pensavam na vida ou mexiam no celular. Outros aproveitavam para colocar o papo em dia. Foi ali que conheci o Zé, a Fátima e o Átila. A Maria de Fátima, ou mais conhecida como “Mainha”, é uma senhora de 61 anos. De aparência bem cuidada, pele lisinha, sobrancelhas

bem-feitas, não aparenta a idade que tem. Até porque tem toda uma disposição e garra para trabalhar. Logo se percebe que ela é chamada de “mainha” não só por conta da idade, mas por toda a bagagem de vida que a permite dar bons conselhos e frases motivadoras. Tive a sorte de ser motivada por ela, logo depois de comentar que tinha medo do desemprego após a faculdade. O José Carlos, mais chamado de “Zé”, é um homem de 53 anos alto, forte, de cabelo curto branco e aparência simpática. Foi também uma das primeiras pessoas que conheci. Do Rio Grande do Norte veio parar aqui, em São Paulo. Embora o objetivo fosse passar apenas 15 dias na cidade e resolver alguns problemas, acabou ficando por cinco anos. Não sei se as outras pessoas da rodinha sabiam disso, mas todos caíram na risada. Diz que vai voltar para a sua terra, mas, como não arrumaram ninguém pra ficar no seu lugar na cooperativa, ainda não conseguiu voltar. Não tem pressa. Gosta de São Paulo e foi aqui que encontrou a cooperativa que, na sua opinião, é um lugar bom Daiana Rodrigues

23 | Narrativa


de trabalhar, já que é um ambiente familiar. - Tenho até medo de não me acostumar lá mais” – confessa. Enquanto conversava com Zé, o Átila da Silva, um moço de 23 anos, curioso e ligeiro, me perguntou: - E você? Já nasceu no berço ou teve que lutar muito para chegar onde chegou? Foi uma baita pergunta, afinal, onde já se viu perguntar da vida dos outros sem ao menos eles saberem um pouco da minha. Então respondi que nasci na cidade de Mogi-Guaçu, interior de São Paulo, e, em busca de uma oportunidade, eu e minha família viemos parar na capital paulista. Logo depois, perguntou se eu tinha terminado os estudos e o que eu fazia. Respondi que estava fazendo faculdade de Jornalismo. E ele logo indagou: - Por que não Direito? Dei risada, pois essa é uma questão muito comum para aqueles que escolhem a carreira de jornalista para a vida. Ele acrescentou: - Se eu fosse fazer faculdade, não faria Jornalismo não. Comentei que entrei para a vida de jornalista em um período ruim, já que Bolsonaro está no governo e não gosta dessa profissão. Mainha logo respondeu: - Vai passar, tudo passa. E mais uma vez me senti reconfortada. Não sei o que tem nas palavras dela, mas sinto uma calma interior após ouvi-las. Que sorte tem a cooperativa em ter Maria de Fátima ali. Átila, baiano, chegou até a cooperativa, porque passava por dificuldades onde morava na Bahia. Veio para São Paulo para se ajeitar na vida e mora sozinho em uma comunidade. Diz que vai terminar os estudos e fazer um curso, talvez de padeiro, ainda não sabe. Mas afirma que quando quer uma coisa, consegue. É determinado para a vida. Mais uma “pedra preciosa” da Cooperativa Crescer.

De volta ao batente Uma da tarde. O horário de almoço acabou e as máquinas voltaram a ter vida novamente. Todos em seus devidos postos. Escolhi, então, ficar com a Emanuele Costa, chamada de Manu, e a Morgana Pereira, que estavam no começo da esteira conversando e dando risada. Manu, uma das mais jovens da cooperativa, com 20 anos, é uma das mais esforçadas. - Manu está na empolgação do começo - me falaram depois. Ela ajuda em vários setores, até no recebimento dos caminhões, coisa que nem todos fazem. Diz que a cooperativa é um dos lugares que tem mais história pra contar, como o seu primeiro dia, quando encontrou três tablets no lixo. Levou-os para consertar e os ganhou de “presente”. No final me contou que quer prestar concurso para ser bombeira e que devia correr para isso, pois há uma idade limite para entrar. A cooperativa não é um lugar apenas de “tratamento de materiais recicláveis”. É um berço de sonhos. Cada um tem seu objetivo de vida e, por meio do lixo, querem conseguir atingi-lo. Embora o nome da cooperativa seja uma junção de siglas, CRESCER representa exatamente as pessoas que estão ali. Todas querem crescer e lutam por isso. Morgana, de 30 anos, é uma morena de cabelo curtinho encaracolado, corajosa e meiga. Me disse que não tem medo de morrer, mas de perder a família, quando perguntei o que mais temia na vida. Por isso, luta para construir o próprio negócio e dar o melhor para sua filha. Assim que terminar de rebocar sua “casinha” vai começar um negócio. Ela quer abrir um ateliê de mosaicos de madeira. Esse é o sonho de Morgana. Pelo brilho que vi em seus olhos, uma grande empreendedora está por surgir. Um sonho inusitado

24 | Narrativa

No primeiro dia de minha visita, a encontrei deitada no sofá dormindo. O espaço era só dela, e ninguém a perturbava, apenas o alarme de fim de almoço. Mas antes de retornarem ao trabalho, perguntei para Mainha quantos meses Gleice estava e ela me respondeu que eram sete. Logo depois emendou observando a moça, de 29 anos, dormir: - Não sei até quando ela vai aguentar. Já na minha segunda visita, dia 17 de março, ela estava acordada no horário de almoço e animada. Após comer, ficou deitada com o barrigão de fora e me mostrou como seu bebê chutava a sua barriga. E chutava com força a ponto de marcar os pezinhos na pele. E ela dava risada. Conversa vai, conversa vem, Gleice conta que, na verdade, queria trabalhar no necrotério. Fiquei chocada ao ouvi-la. Quando perguntamos qual é o sonho de alguém ou a profissão que a pessoa quer seguir, não imaginamos que o interlocutor deseja lidar com mortos. Disse que fez um curso de Auxiliar de Necropsia, mas “passaram a perna” nela e não conseguiu o certificado. Por conta disso, não consegue trabalhar na área. Mas ainda vai conseguir fazer outro curso e trabalhar no necrotério que, para ela, não é nada assustador. - Temos que ter medo dos vivos e não dos mortos – diz. E tenho que concordar com ela, afinal, é a realidade. No dia em que conversamos o novo coronavírus já estava em São Paulo (foi bem no início da chegada do vírus ao Brasil). O transporte público começava a se tornar arriscado. Perguntei a Jair como faríamos em relação as minhas visitas e ele respondeu: - Sendo bem sincero, não venha mais. E foi aí que tudo começou a mudar para mim e para o Jair, a Fátima, o Átila, a Morgana, o Zé, a


Daiana Rodrigues

25 | Narrativa


Gleice e todos os funcionários da cooperativa. A cooperativa Crescer fechou as portas para evitar de colocar os funcionários em contato com o vírus que poderia estar no lixo. Perdi um pouco do contato com Gleice, já que ela, assim como muitas mulheres na quarentena, passou a ter diversas atividades para fazer em casa, como limpeza, cuidar dos filhos e fazer comida. A internet? Não ajudou muito, apesar de estarmos no século XXI. Uma vez perguntei por WhatsApp se ela tinha medo de pegar o coronavírus e ela respondeu tranquilamente: - Eu não. Eu creio no senhor Jesus. No dia 14 de junho finalmente conseguimos conversar novamente, dessa vez por vídeochamada. No começo da conversa ela já dizia: - Olha, aqui é escuro viu? De fundo, o filho mais velho, o Nicola dos Santos, de 7 anos, provavelmente assistia à TV, como era agora a rotina dele. Além do encontro ser por vídeochamada, dessa vez Gleice não tinha um barrigão, pois o bebê Ítalo dos Santos já estava com 20 dias desde o nascimento. Gleice explicou como estava passando a quarentena e se

sustentando, já que vive sozinha com os filhos. Tem medo do futuro, pois o mês de junho é o último que os cooperados recebem o auxílio do Governo. E julho? Julho vai depender da abertura da cooperativa, que é incerta. Sem wi-fi em casa, Nicola não consegue ter as aulas em EAD (ensino a distância). Por conta disso, Gleice tem que se virar para explicar a matéria para ele. Porém, não sendo um acaso da vida, Nicola recebeu apostilas com conteúdos até da 3ª série, sendo que está na 1ª. Como que fica a situação então? Gleice não sabe. A escola também não sabe. E o governo muito menos. - Não sei abaixar, mãe. interrompe Nicola. - Aprende! - diz a mãe. Assim como Gleice é uma mulher independente, Nicola aprende desde cedo a ser também. O pai não está lá para ensiná-lo a viver. Sumiu quando ele nasceu. Ele já até perguntou do pai, mas Gleice responde: - Eu sou seu pai e sua mãe. Sou os dois. O namorado atual, e pai de Ítalo, diz que quer morar junto com Gleice, mas ela fica com o pé atrás.

Tem medo de se casar com uma pessoa e algo acontecer com o filho mais velho. É complicado você colocar qualquer pessoa na sua casa – diz. Em seguida, responde ao receber uma ligação: - Oh nega, pera aí. Chamada de vídeo de volta. Gleice conta que seu sonho é fazer faculdade e dar um conforto para seus filhos, pois, assim como ela quer se graduar, os filhos um dia vão querer. Curso de Necropsia ou Enfermagem. Gosta da área da saúde. [Reconectando] Pergunto se não é um problema falar do assunto de seu ex, sendo que o filho está no mesmo ambiente. Ela dá risada e diz: - Fica em paz, ele está vendo desenho. [Reconectando] Gleice diz que sua bateria está acabando e a internet do celular ruim. [Reconectando] Logo depois a chamada caiu e o papo acabou. Mais um ponto recorrente na pandemia do novo coronavírus. Esperei a bateria do celular de Gleice recarregar e depois nos despedimos pela vídeochamada.

Daiana Rodrigues

26 | Narrativa


A dor além do parto Histórias de mulheres que foram vítimas da violência obstétrica Por Beatriz Martins e Emily Nascimento

O ambiente não combinava nem um pouco com o que Giselle sentia. As paredes brancas, com cortinas em tom pastel bege, as camas de ferro claro e os lençóis, travesseiros e monitores brancos pareciam estar estrategicamente ali para dar a sensação de tranquilidade, mas no peito daquela mãe reinava o desespero. No canto, havia uma cadeira de rodinhas. Essa, ao

contrário, era preta, e se destacava por seu tom, diante da sala que parecia uma nuvem. Assim como Giselle, aquela cadeira parecia não pertencer ao lugar. Quando se fala sobre ser mãe todos pensamos em sentimentos bons como amor e carinho. Raramente lembramos de dor. Mas, para muitas mulheres, um momento que era para ter sido completamente mágico ficou marcado por essa sensação. Giselle Souza, confeiteira, sabe bem disso, pois um dos dias mais importantes de sua vida, o nascimento da filha

Ana Beatrice, se transformou em uma lembrança dolorosa. Conhecida pelos amigos e familiares por sua alegria e alto astral, Giselle é daquelas pessoas que preenchem ambientes, que deixam situações mais leves, independentemente de quais sejam. De autoestima inabalável, a loira não se deixa levar pelas críticas, principalmente as relacionadas ao seu peso. “Só vou me preocupar com isso, caso afete a minha saúde. Sou gordinha sim, sedentária nunca”, diz. Giselle Souza/ Arquivo Pessoal

27 | Narrativa


Porém, em um momento tão crucial de sua vida, sua alegria contagiante e sua autoconfiança deram espaço para a tristeza e a insegurança. O que era para ter sido um sonho, quase se tornou um pesadelo. Naquele dia, a mamãe de segunda viagem acordou com fortes dores no abdômen, e, como já havia passado por uma gravidez, sabia o que significava. Sua filha estava chegando, mais uma princesinha para iluminar a casa. Por volta das 8h da manhã acordou seu marido, João, para que juntos pudessem ir à maternidade. O motorista de ônibus pegou a bolsa que ele e a esposa haviam preparado para a bebê, deixando a outra filha, Beatriz, na época com 6 anos, na casa da avó Lenilza. Partiram rumo à maternidade. “Me mandaram embora, mesmo estando morrendo de dor. Quando cheguei em casa, o tampão saiu”, relembra. Giselle voltou para o hospital, que a mandou embora novamente, mas dessa vez ela não obedeceu. “Já tinha passado por um parto, sabia muito bem que as dores não iam embora”, explica. Antes de ser internada, rodeou o enorme prédio do hospital por horas, sempre pedindo atendimento, e várias vezes teve seu pedido negado. Somente quando atingiu cinco dedos de dilatação a atenderam. Então veio o alívio, mas por pouco tempo. Os abusos no Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, estavam apenas começando. “Foi uma novela. Fiquei no soro por mais de 10 horas. Estava com tanta dor que nem pensava em nada. Tudo isso antes de falarem da cesárea”. A Lei nº 435/2019, de São Paulo, garante à gestante a escolha do tipo de parto, desde 2019. Mas não é isso que se vê nos hospitais. O parto normal, ou “humanizado”, é priorizado, mesmo quando a cesariana se faz necessária. Após um longo período de espera, e muito

Giselle Souza/ Arquivo Pessoal

sofrimento, Giselle foi encaminhada para um banheiro pequeno, para tomar banho para a cirurgia de cesariana. Sem ajuda, começou a se lavar, mas percebeu que suas pernas não fechavam. “Quando coloquei a minha mão, para ver o que estava acontecendo, a cabeça da criança já estava saindo. Comecei a gritar falando que minha filha estava nascendo, mas as enfermeiras não acreditaram: - Nunca, mãe! Você ficou 10 horas no soro e não saiu dos 5 dedos de dilatação - elas falavam. Depois de muito insistir, uma enfermeira foi averiguar e percebeu que a mulher estava dizendo a verdade. A bebê estava com a cabeça toda para fora, sendo segurada pela mãe debaixo da água do chuveiro. O desespero se instaurou. Começou uma correria. Tudo que Giselle via eram vários jalecos brancos vindo em sua direção, mas ela não se preocupava com nenhum deles, somente com sua filha, que só não caiu, porque seus ombros estavam presos. Fizeram o parto, que acabou sendo normal, na sala de preparo mesmo. Subiram em sua barriga, cada perna sendo segurada por um

28 | Narrativa

médico, pois a criança havia travado. “Foi a pior dor da minha vida. Não podia mais fazer cesárea e nem corte local, pois a cabeça já estava para fora”, relatou. Mesmo passando por essa situação, Giselle Souza decidiu não processar o hospital. “Minha filha ficou bem. Isso que importa”. A situação vivida por ela é mais comum do que se imagina nos hospitais, tanto públicos como particulares, e ainda há casos piores. O nome dado a esse tipo de tratamento no parto, ou com mulheres grávidas em geral, é violência obstétrica. Cicatrizes na memória Foi o que também passou Wilda Aparecida, que prefere ser chamada de Tita. A baiana, que está em São Paulo desde os 16 anos, sempre foi bem assertiva e tem fama de sensata na família. Sendo a quarta filha de dez irmãos, quando ela fala, até mesmo os mais velhos escutam com atenção. Sua aparência frágil, baixinha e magra não revela a personalidade forte e corajosa da dona de casa, que enfrentou uma gravidez de risco aos 42 anos, para dar uma irmã a sua filha mais velha Isabela, que sempre quis uma caçula para brincar. Tita


Wilda Aparecida/

Arquivo Pessoal

comigo?”, lembra. Muito chateada, após sair do hospital ela não contou isso a ninguém, só o que importava no momento era que Gabriela estava bem. Porém, depois de uma semana, começou a sentir dores muito fortes na área genital. Mesmo que muitas mulheres lhe falassem que era comum, ela sabia que havia algo errado, tinha sangramentos quase todos os dias e as dores ficavam a cada dia mais insuportáveis. Decidiu ir ao posto de saúde. Qual não foi sua surpresa quando descobriu que aquela enfermeira, além de ter lhe deixado um trauma psicológico, também deixou um físico. Havia uma gaze na entrada de seu útero, impedindo o sangue de descer totalmente, o que resultou em uma infecção. “A médica que tirou disse que era um absurdo, que eu deveria processar o hospital, pois aquilo era muito perigoso, mas minha filha estava bem e eu estava muito assustada e com dor, então resolvi deixar pra lá”.

foi extrememente cuidadosa em toda a sua segunda gravidez, tão desejada. Mas o momento do parto da caçula Gabriela não saiu como planejado. “O médico precisou fazer o cortinho para a bebê sair”. O corte a que ela se refere é a episiotomia, realizada em 56% dos partos normais no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde em 2014, mesmo que a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) seja de apenas 10%. Tudo corria bem até que duas enfermeiras chegaram para fechar o corte. Tita mantinha seus olhos pequenos e castanhos atentos, mas estava olhando para cima, onde havia uma lâmpada. A luz era muito forte, então fechou os olhos para proteger a visão. Com a ausência do incômodo da luz, a conversa das enfermeiras se tornou o foco de sua atenção e começou a ouvir o que falavam.

- Nossa, olha que desastre que está aqui. - disse uma delas, com um tom debochado. A outra enfermeira não respondeu. Tita então começou a se preocupar e perguntou se estava tudo bem, mas a enfermeira respondeu grosseiramente. “Ela começou a costurar com muita força e grosseria, chegou até a me chamar de idiota, quando eu perguntei o que estava acontecendo”. Mesmo sempre falando o que pensa, naquele momento Tita se calou, assustada com o que aquela mulher poderia fazer em seu corpo. Uma das enfermeiras, talvez chocada com a atitude da colega, se afastou, mas a outra a chamou de volta. - Vem me ajudar para acabar logo essa porcaria. - disse. “Eu não acreditei. Pensei: meu Deus, ela realmente está fazendo isso

29 | Narrativa

Tita teve que fazer tratamento para a infecção por vários dias e sentiu muita dificuldade, pois, além das dores, tinha que lidar com um bebê sem ajuda. Hoje, com 53 anos, quando perguntada sobre o que ela pensa do atendimento que teve, conta que é algo que ainda a machuca muito, um trauma para a vida toda. “Suportei porque minha filha já tinha nascido e tinha ocorrido tudo bem, eu estava feliz por isso, mas ela foi uma profissional que eu nem tenho nome para qualificar... Nunca vou me esquecer da forma como ela me tratou”, diz sentida. A segunda gravidez era um momento muito importante para ela e sua família, mas que acabou deixando uma cicatriz em sua memória. “São situações que acontecem muito em maternidades. São profissionais que estudaram pra respeitar, amar e cuidar, mas agem totalmente diferente disso”, conclui.


CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.