Narrativa - Agosto de 2018

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REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE - AGOSTO DE 2018

UM MERCADO DE HISTÓRIAS


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EXPEDIENTE Universidade Presbiteriana Mackenzie Reitor: Prof. Dr. Ing. Benedito Guimarães Aguiar Neto Vice-reitor: Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos Pró-Reitoria de Graduação e Assuntos Acadêmicos: Profa. Drª. Marili Moreira da Silva Vieira Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Paulo Batista Lopes Pró-Reitoria de Extensão e Educação Continuada: Prof. Dr. Jorge Alexandre Onoda Pessanha Diretor do Centro de Comunicação e Letras: Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte Coordenador do Curso de Jornalismo: Prof. Dr. Rafael Fonseca Santos

Revista Narrativa Professor responsável: Prof. Dr. André Cioli T. Santoro Supervisor de Publicações: Prof. Dr. José Alves Trigo Fechamento: André Santoro, Leonardo Olavo e Tainá da Silva

O conteúdo desta publicação não traduz, necessariamente, o posicionamento da Universidade Presbiteriana Mackenzie ou do Instituto Presbiteriano Mackenzie.

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SUMÁRIO

O PODER DA GRATIDÃO

17 POR ENTRE AS VÉRTEBRAS

29 O ESPÍRITO SANTO VESTE JEANS

41 QUE CARREIRA SEGUIR?

53 A DUBLAGEM É UMA ARTE?

65 A FACE OCULTA DA CONDENAÇÃO

77 UM MERCADO DE HISTÓRIAS 4 | Narrativa

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EM BUSCA DA PERFORMANCE PERFEITA

21 UM ELO SOCIAL ENTRE ITÁLIA E BRASIL

33 VESTIBULAR OU DEPRESSÃO

45 EMPREENDER NÃO É SÓ PARA GENTE GRANDE

57 DOANDO ALÉM DO POSSÍVEL

69 PAIXÃO E ASCENSÃO DA TORCIDA SÃOBENTISTA

81 SOLIDÃO NA TERCEIRA IDADE

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UM MUNDO NATURALMENTE NOVO E CRIATIVO

25 SENTIDO ITAIM

37 TRÊS VIDAS NAS CARTAS

49 REVIRAVOLTAS EM CAMPO

61 O SABOR DE UM REAL

73 A MULHER DAS BARBAS

85 UMA PARTIDA, DOIS CAMINHOS


O poder da gratidão Amanda Alves e Ana Luísa Thibes

Dirigir com o vento batendo no rosto e percorrer todos os cantos de São Paulo é um dos detalhes que faz Daniel Silva, de 43 anos, ser tão grato pelo seu trabalho. Ele trabalha como motorista do Uber há um ano e meio. O mesmo Daniel de cinco anos atrás não seria grato com tão pouco. Aquele 14 de novembro de 2013 tinha tudo para ser como todos os outros dias do ano, mas não foi. Daniel tinha saído para trabalhar, como todos os dias, mas uma pressão

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no peito o fez voltar. Quando a pressão passou para dor, o sinal de emergência tocou e Daniel dirigiu até o hospital São Cristovão, na Zona Leste de São Paulo. Ele viveu quase toda a sua vida na Mooca e, felizmente, sabia o caminho de cor. A dor fez os três minutos até o hospital se tornarem trinta horas. Não deu tempo de estacionar o carro. Enquanto a esposa aguardava o papel do estacionamento, Daniel correu para o pronto-socorro. O coração de Daniel ameaçava nunca mais bater e ele pedia ajuda. Infartou apoiado no balcão, antes mesmo que sua esposa chegasse à sala de espera. Era


quase véspera de feriado e o casal ia viajar nos dias de folga, ainda decidiam se iriam para a praia ou para o campo, mas a vida decidiu que eles passassem aquele feriado no hospital. As condições físicas de Daniel, que bebia, fumava e não se preocupava muito com a alimentação, fizeram com que ele só fosse operado quase 15 dias depois. O tempo no hospital transformou a vida daquele motorista e uma palavra mudou a sua vida: gratidão. Alguns pensadores buscaram definir em palavras o que seria a gratidão, como o fabulista grego Esopo, que a considerou “a virtude das almas nobres”. No dicionário Michaelis, gratidão é definida como a qualidade de quem é grato e como o sentimento experimentado por uma pessoa em relação a alguém que lhe concedeu algum favor, um auxílio ou benefício qualquer; agradecimento, reconhecimento. No caso de Daniel Silva, a gratidão passou a ter outro sentido. Assim como a vida. – Eu comecei a dar valor às coisas pequenas. Pequenas, não, mas que antes eu não via. As tonalidades do azul se tornaram mais bonitas, o cheiro do alecrim passou a ser mais gostoso e gargalhada da neta se tornou ainda mais valiosa desde aquela quarta-feira que quase passou e levou a sua vida. Estudos da Universidade Oxford comprovaram que a gratidão também está relacionada com a ciência. Segundo pesquisadores, ela libera dopamina, um dos neurotransmissores envolvidos no sentimento de recompensa, e eleva a serotonina, neurotransmissor do altoastral. Não é à toa que Daniel faz amizade com todos os passageiros que

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entram em seu carro. O sentimento de gratidão fez Daniel ressignificar tudo em que pensava acreditar. Seu olhar entrega que chegar perto da morte fez o senhor de cabelos brancos renascer. Em uma publicação em uma rede social, Daniel compartilha o seu amor pela neta de 11 anos. Ele relembra que, na época do susto, ela tinha seis e pediu autorização para visitar o avô. Quando ela passou pela porta, aquele senhor que chegou perto da morte não se conteve e chorou por meia hora seguida. Sua esposa até se assustou e chamou o médico para ajudar a conter. O profissional da saúde explicou que foi a emoção que ele passou e que aquilo que ele estava sentindo naquele momento era um sentimento chamado gratidão. Em 2017, o sentimento “gratidão” foi um dos mais publicados nas redes sociais. Só perdeu para “amor”. No instagram, já são mais de 18 milhões de publicações com a hashtag - que serve como legenda para milhares de brasileiros que publicarem a gratidão que sentem pela família, amigos, as belezas do dia a dia, etc. Mas também falou de grandes histórias. Uma dessas grandes histórias contadas com #gratidão foi a de Janete Cabral. A lojista sempre sonhou em ser mãe e brincou a infância inteira com suas bonecas imaginando o dia em que tivesse sua filha em seu colo. A frustração veio anos depois, quando a gravidez parecia um sonho impossível de ser realizado. Ela não conseguia engravidar e chegou perto da depressão. Todas as tentativas eram falhas e Cláudio, seu marido, tentava consolar o coração da esposa com amor – mas ela queria mais. Encontrou consolo na igreja Mundial, que virou seu refúgio aos domingos. Robert Emmons, um dos maiores pesquisadores sobre a gratidão, constatou que ser grato é um antídoto que pode ser utilizado na luta


contra a depressão. Frequentar a Igreja semanalmente tornou Janete mais grata. Meses depois, um enjoo e atraso na menstruação indicaram o que ela sempre sonhou: a gravidez. Sarah nasceu com saúde e trouxe muito amor para a vida do casal. Assim como na história de Janete, Maria Fernanda Araujo Silva e seu marido Alberto também tiveram a fé como o principal apoio. Por ser de uma família grande, ser mãe sempre foi uma ambição, um projeto de vida. Isso se intensificou depois do casamento. Sua primeira gravidez foi em 2012. Aos 3 meses de gestação, aborto espontâneo. Em 2013, a descoberta de uma segunda gravidez. Na última semana de gestação, a pior notícia: por algum motivo até hoje desconhecido, o médico não escutava mais o coração de Maria Júlia. Mesmo com a dor e o sofrimento, Maria Fernanda não deixou de sonhar com a maternidade. O casal, que já era religioso, passou a frequentar ainda mais a igreja. No segundo semestre de 2015, a terceira gravidez e uma surpresa: eram gêmeos. Hoje, Maria Gabriela e José Gabriel têm dois anos. Apesar de todas as dificuldades, a gratidão sempre prevaleceu na vida de Alberto e Maria Fernanda. A conexão do termo com a religião vem de anos. Não apenas uma, mas em todas as crenças há uma noção em ser grato. Há uma forte relação entre a fé e a gratidão, são princípios que não se desvinculam, um precisa do outro. No entanto, até aqueles que não são ligados a uma religião específica têm uma base na qual acreditam e confiam. Em alguns casos, é depois de passar por uma situação difícil ou por uma “provação” que pequenos detalhes passam a ser vistos de uma maneira diferente. Dentre todas as religiões do planeta, o budismo é a que mais se

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relaciona com a gratidão. Para eles, além de ter um sentido mais forte, o termo é visto como uma forma mais saudável de se cultivar na mente. A umbanda, uma das religiões de bases africanas com mais seguidores no Brasil, assim como as outras crenças, tem na gratidão uma das mais autênticas formas de fé. Para os adeptos da crença hinduísta, agradecer é considerado um ato de dedicação ao próximo, de fortalecimento das conexões entre o indivíduo e o universo. No cristianismo, existem dogmas que colocam a gratidão a Deus como base de toda a diferença entre aqueles tocados pela palavra de Deus e aqueles que não compreendem esses ensinamentos. Na verdade, o que prega a Igreja Católica é que a gratidão deve ser sentida pelo que já foi alcançado e não pelo que ainda está por vir. Já na religião judaica, deve-se agradecer por tudo desde o princípio. Sendo essa uma crença que iniciou de um povo que não tinha nada, eles têm a necessidade de estar sempre demonstrando que confiam Nele e em seus planejamentos para os que o seguem. A gratidão pode trazer mudanças por dentro e por fora. Aos 35 anos, Ademir Souza educador físico, pode afirmar isso. Sua vida e seu corpo puderam sentir a gratidão. O percentual baixo de gordura que evidencia os músculos mostram que Ademir dedicou anos e anos de sua vida a uma rotina saudável e regrada e que não faltou determinação para alcançar o seu objetivo. Quem vê ele carregando cerca de 140 kg de peso não imagina que seu objetivo era muito maior que alcançar o corpo ideal. Ele tinha 13 anos quando entrou pro mundo do tráfico. Estudar em uma escola pública, em uma periferia, fez o garoto se encantar pela ilegalidade. Enquanto os filhos de traficantes sonhavam com uma vida diferente da dos pais, Ademir

sonhava em ser como eles quando crescesse. Dinheiro e poder fizeram o menino não ligar para coisas com que os meninos da sua idade costumavam se importar. Aos 15 anos, ele já era um viciado em cocaína. O vício e o tráfico levaram a infância e toda ingenuidade de Ademir, que nessa altura já fazia assaltos e era considerado um criminoso. Chegou a consumir e se viciar em crack, a segunda droga mais viciante do mundo. Os efeitos da droga compensavam todos os riscos. Aos 25 anos, foi convidado para acompanhar um amigo nos treinos de musculação. Ele não era muito motivado, puxar ferro “não dava barato” como as drogas, mas começou a frequentar por se sentir bem naquele ambiente. Segundo o Neuropsicólogo Thiago Gomes, a gratidão tem uma relação única com a satisfação com a vida. O sentimento de bem-estar tem uma forte ligação com a gratidão – e vice-versa. Em alguns meses, um instrutor chamou Ademir de canto e o parabenizou pelo resultado – todos sabiam que Ademir era usuário e o instrutor disse que era difícil alguém naquelas condições conseguir resultados tão bons. O rapaz, que estava afundado no mundo das drogas, se sentiu feliz pela primeira vez sem precisar usar o crack. Aos poucos, Ademir passou a mudar as prioridades de sua vida e ressignificar a sua existência – que tinha perdido o significado aos 13 anos. A musculação passou a ganhar espaço em sua vida e o crack, as drogas, o tráfico e a criminalidade foram perdendo. Apesar da gratidão ter diferentes significados para diferentes pessoas, ela está presente no cotidiano de uma minoria que consegue apreciar os pequenos detalhes do dia a dia e agradecer por existirem. – Além de sermos gratos por coisas, devemos concentrar-nos em ser gratos em todos os momentos, sejam eles bons ou ruins – diz Ademir.


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Em busca da

performance perfeita Artur Ribeiro Eduardo Ramos

Insegurança, medo e timidez são características que toda pessoa amadora, com objetivo de demonstrar o seu trabalho ou dom em alguma arte, acaba sentindo. Essa pedra no meio do caminho é um obstáculo para se tornar um profissional artístico. Retirar esse pedregulho do seu percurso não é fácil, mas existem maneiras de conseguir. Exatamente por isso, tanto escolas de música quanto de teatro tendem a atrair pessoas com vontade de liberar esse lado mais desinibido. Contudo, a excelência nesse percurso só se dá compartilhando experiências e conhecimentos adquiridos ao longo da prática. O curso Ator O fundador do “Curso Ator” contrapõe essas percepções com a missão que criou para a escola: “Utilizar a arte cênica e o fazer teatral no processo de autoconhecimento do ser humano tornando-o autônomo, confiante, seguro, sensível e aberto para outros olhares em relação ao mundo e

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ao outro e desta forma, sermos todos agentes transformadores para uma sociedade mais justa”. O projeto foi fundado em 1996 pelo ator e diretor Gelson Tsonis, que faleceu em 2011, com o objetivo de ser uma escola de ensino prático com preço acessível para que os alunos conseguissem experimentar o gosto da atuação nos palcos. Atualmente, o curso é composto por três módulos: Iniciante, Intermediário e Avançado. No curso, o aluno ou ator aprendem todo o funcionamento do teatro, desde o posicionamento nas marcas de luz até o comportamento diante do público para o qual irá apresentar a peça ensaiada. Ao entrar na estrutura do local, observa-se que há salas de ensaio que, segundo um funcionário, têm cento e vinte metros quadrados. Dentro da escola de teatro há duas opções de refresco, tanto com o ar condicionado quanto com os ventiladores de teto, que por sinal estavam desligados. Os banheiros ou vestiários, como prefiram denominar o local íntimo, é limpo e não há nenhuma característica que diferencie do banheiro da nossa casa. Além disso, vê-se todo um sistema de áudio e vídeo, iluminação cênica e piso de madeira.


Foto: Divulgação/Curso Ator

O momento de nirvana é quando se entra em uma sala denominada “caixa preta”, contendo acessórios como óculos e chapéus e figurinos extravagantes que são utilizados para as dinâmicas em aula. Apesar de toda essa estrutura, as peças não são apresentadas nesse local. Descobre-se então uma parceria com o ‘Teatro Núcleo Experimental de Teatro (N.Ex.T)’, com capacidade para uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oitenta espectadores. As cadeiras são aquelas tradicionais, cinza e revestidas com tecido áspero. O “Curso Ator” é um ambiente coletivo no qual encontramos coordenadores, professores e alunos dos mais diversos credos religiosos, posições políticas, opções sexuais, etnias e culturas. Foi possível absorver que no momento que antecede as apresentações das peças, pessoas católicas se unem e rezam um “pai nosso”. Já as pessoas que não acreditam em um Deus, entidade ou algo do tipo, não participam e respeitam o ato dos colegas.

Foto: Divulgação/Curso Ator Foto: Divulgação/Curso Ator

O aluno de teatro Thiago Eid, com seus 36 anos, conta, com um sorriso no rosto, a importância do curso para sua vida – mesmo tendo começado a fazer parte do grupo há pouco tempo, em 2017. – De muitas maneiras o curso tem me ajudado a lidar com o dia a dia. O teatro e, mais especificamente, o método utilizado na escola, que prioriza o desenvolvimento dos laços e atuação em coletividade, são importantes suportes para as porções profissionais e pessoais da minha vida. O curso, por ser preparatório, tem peças estabelecidas que são repetidas semestralmente, e isso permite aos alunos se tornarem monitores dos iniciantes, sendo esse processo o mais interessante do ensino. – Os novatos são tímidos, claro, então criar um ambiente em que eles consigam extravasar é fundamental. Por isso nós temos os facilitadores. Que tem, como papel,

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“QUANTO MAIS SE ENTREGAM, MAIS FÁCIL É SUPERAR A TIMIDEZ ” estimular a participação e entrega dos recém-ingressados ao curso aos exercícios e laboratórios propostos. – Afinal, nós também somos alunos e isso acaba criando uma proximidade maior com os iniciantes, que acabam nos enxergando como referenciais. O resultado é que o processo para eles fica mais fácil. Muitas vezes, é aos facilitadores que se recorre em caso de dúvidas, dificuldades e, sobretudo, vergonha ao realizar os exercícios. Quanto mais se entregam, mais fácil é superar a timidez e, portanto, mais fácil é a preparação e o autoconhecimento do iniciante. Enquanto falava isso, Thiago mantinha o olhar para cima, evitando contato visual com seus colegas de trabalho. Quando questionado sobre as mudanças que o curso perpetrou na sua vida, Thiago desviou o olhar para baixo e respondeu: – Procurei o teatro como forma de extravasar os problemas e dificuldades do cotidiano, e o que vejo é uma grande melhora na minha vida. Quando contou sobre o motivo do seu ingresso no teatro, esbravejou um sorriso, e disse que foi para extravasar os problemas e dificuldades do seu cotidiano. – Pois o palco acaba funcionando como uma grande terapia. As pessoas conseguem canalizar energias ruins e frustrações.


Foto: Divulgação/Curso Ator

É válvula de escape. Falava enquanto fazia gestos para representar essas energias ruins que são eliminadas durante as apresentações. – Isso ocorre porque há uma grande trajetória por autoconhecimento neste processo. Você não consegue encarnar outro personagem, com profundidade, sem antes entender quem é você mesmo. E, para isso, inúmeras atividades são propostas, baseadas em grandes teóricos como Constantin Stanislavski, Bertolt Brecht, Viola Spolin, Rudolf Laban etc., explica Eid. Um dos alunos do curso tinha muita dificuldade em se expressar publicamente quando entrou. Murilo (pediu para não ter o sobrenome divulgado), de 17 anos, inicialmente agiu e demonstrou características de pessoas tímidas, como responder pontualmente, com a voz baixa e olhar assustado. Porém, após cinco meses, o novato mudou completamente de vida e até teve alta do tratamento psicológico. – Antes do curso, eu era um garoto sem amigos, deprimido e sem autoconfiança. Para ter uma ideia, eu tinha dificuldade de falar um simples ‘boa noite’ às pessoas. Porém, com o curso eu literalmente passei a existir e viver. Agora sou uma pessoa sorridente e finalmente consegui uma namorada, enquanto antes eu tinha extrema dificuldade de conversar com uma garota. Isso tudo mudou graças à sugestão do meu terapeuta e dos profissionais do teatro. Autoestima e teatro têm uma relação importante para as pessoas que realizam esse tipo de atividade. Muitos indivíduos conseguem superar ansiedade e depressão com o processo de desenvolvimento em uma escola de teatro. Quando perguntado sobre esse assunto em sua turma, o professor estalou os dedos e balançou a cabeça para concordar com esse tipo de correspondência. Ainda disse que cerca de 60% dos alunos foram indicados por psicólogos, e que de

Foto: Divulgação/Curso Ator Foto: Divulgação/Curso Ator

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O PALCO FUNCIONA COMO UMA EXCELENTE TERAPIA acordo com esses profissionais o palco e os exercícios funcionam com uma excelente terapia mental para o ser humano. Com relação às apresentações, Thiago fez sua estreia em dezembro do ano passado quando apresentou a peça “Cenas”, essa que gerou um grande burburinho entre os colegas de trabalho de Eid, já que todos estavam muito curiosos para ver como ele se apresentaria. O resultado foi positivo ao extremo, tanto Renata Yabusaki quanto Lori Moscatelli adoraram a apresentação, sendo que a segunda ficou totalmente emocionada, chegando a aplaudir de pé. Em junho de 2018, Thiago e sua turma têm programada a estreia da peça “A tela e a Cela”. O professor de música O mundo da música é, possivelmente, o meio mais dinâmico entre as artes, sempre se alterando e modificando seu status quo. Por exemplo, a partir do século XX dá para dividir os estilos por década, no século atual a moda não se mantém por 5 anos. Só no Brasil, de 2000 até 2017, teve-se o auge do funk carioca, do pop-rock, do sertanejo universitário e agora de um pop-funk. Visto dessa forma parece ser extremamente difícil se manter nesse mercado (e é mesmo), mas há situações que são perpétuas nesse meio e outras que sofreram mudanças tão brutais que permitem um novato se arriscar. Uma das coisas mais comuns entre músicos é o “por onde começar”.


Boa parte começa na rua, tocando principalmente covers para chamar a atenção do público, enquanto torce para ter alguém ali interessado no trabalho. Mas a maioria inicia sua jornada em bares, como a cantora e professora de canto Carol Andrade. Ela, acompanhada do marido, violonista e também professor Alex Maia, mantém a formação voz e violão, com 3 CDs lançados e shows em locais como o SESC Pompéia. Entretanto, o caminho dos dois foi bem diferente para chegar onde se encontram hoje e foi essa jornada que eles contaram no workshop “Uma voz, um violão e muitas possibilidades” apresentado na Escola de Música & Tecnologia (EM&T), onde os dois dão aula. Alex trabalhava numa agência de publicidade e andava bastante pela Rua Teodoro Sampaio, no bairro de Pinheiros, atrás de clientes para a empresa. Enquanto isso, ficava admirando os instrumentos expostos nas lojas. “Por ser filho de músico sempre tive contato com a área, e com guitarra em especial, já que era o que meu pai tocava”, conta. Nessas andanças, ele acabou encontrando um bilhete de alguém precisando de um baterista e foi atrás dessa pessoa. Com o tempo, a banda acabou sendo montada com foco no blues. Entre os integrantes, estava Carol, que na infância preferia violão, mas depois descobriu que sua paixão era cantar. – Nessa época eu estudava canto na Universidade Livre de Música (hoje, EMESP) e ainda não via a música como uma profissão consolidada. Após alguns shows em bares, a banda foi convidada para um festival, só que nenhum dos integrantes se interessou, exceto Carol e Alex. Os dois aceitaram e foram alterando também o estilo deles, indo para música popular brasileira e bossa nova. – Passei por vários estilos, comecei tocando rock, fui para o blues, a MPB, o jazz, a música erudita

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e a mistura deles é o que sou hoje, comenta Alex. Com shows em bares da região da Vila Madalena e Pinheiros, foi uma questão de tempo até a dupla chamar a atenção de alguém interessado no trabalho deles. Após certa relutância eles resolveram entrar em acordo com um americano que queria que eles gravassem um CD. – Como não tínhamos dinheiro suficiente, esse americano e os conhecidos que fizemos na noite e aos gerentes de alguns bares nos ajudaram a bancar a gravação, lançamento e divulgação do primeiro CD, “Vida Dentro” em 2005, conta Alex. Seguindo esse lançamento, Alex percebeu que estava insatisfeito em só tocar em casas noturnas, querendo mais, muito mais. – Eu ficava incomodado por não ser reconhecido, já que, geralmente, nos bares você apenas faz parte do ambiente, então é bem difícil lidar com essa situação, porque atinge o orgulho próprio. Carol também estava cansada de só fazer isso e por isso aproveitaram para seguir em frente com os CDs em shows em ambientes diferentes, sendo alguns públicos. Sobre isso, Alex faz uma crítica. – Não acho que exista uma elitização, mas sim uma segregação. O poder público determina que algumas regiões das cidades gostem mais de um gênero musical que outro. O que nós temos são cada vez mais espaços públicos fechados, empoeirados e muito artista querendo mostrar seu trabalho sem ter onde. Em 2009, iniciaram o projeto “Outras Mulheres”, que culminou no segundo CD de mesmo nome em 2013. Esse eles conseguiram até levar para o exterior fazendo shows pela Europa. E, por fim, em 2016 lançaram o álbum “Sorria”, que vem sendo usado nos shows. Uma das mudanças que Alex Maia afirmou ser das mais fundamentais está nos serviços de streaming e no crescimento do

“É NECESSÁRIO PERCEBER QUE NEM SEMPRE O PÚBLICO ESTÁ PRONTO PARA ACEITAR A ARTE” mercado independente. – Essa é a melhor parte do avanço tecnológico. Não dependemos mais das gravadoras, gravamos um disco dentro de casa, lançamos nas plataformas digitais e pronto. No dia seguinte seu disco está sendo ouvido em qualquer lugar do mundo. Apesar desses compromissos, tanto Carol quanto Alex continuam com suas aulas e, graças à experiência no assunto, fornecem dicas importantíssimas para os alunos. – Ser músico é bem complicado, porque as pessoas acham que você acorda na hora que quer e não precisa fazer nada, só que não é nem um pouco assim. Você tem que treinar muito e sempre se aprimorar –, diz Alex. – É importante saber que, se você quis tornar a música sua profissão, deve agir com profissionalismo e correr atrás –, completa Carol. Com suporte, o interesse e a coragem para ir atrás do sonho de se tornar um astro, nada consegue parar esse indivíduo, e mesmo que o reconhecimento seja futuro – e muitas vezes até pós-morte do performático –, é fundamental compreender que nem sempre o grande público está preparado para lidar com todo tipo de fenômeno artístico a todo momento. Dessa forma, o importante se torna não abaixar a cabeça, e continuar a trilhar o caminho que leva até a próxima cortina aberta.


Um mundo naturalmente novo e criativo Leonardo Mantovani e Gabriel Beleze

Domingo, seis de maio de 2018, estávamos em um pavilhão de eventos na Rua Joaquim Távora, próximo à estação Ana Rosa, na linha azul do metrô de São Paulo, no Bairro Vila Mariana. Logo na entrada, uma banquinha desperta a nossa atenção. Sentada em um estande intitulado ‘PAZ’ – Pessoas e Animais, Amizades Legais -, uma garotinha de mais ou menos sete anos de idade estava concentrada na leitura de um livro intitulado ‘Jill’. Na capa, havia uma vaquinha adorável, aparentemente feliz em um gramado verde, em frente a uma casa onde um homem aparece repousando sobre uma rede. As cores do livro eram agradáveis e as ilustrações simpáticas. Só mais tarde descobriríamos que Giovanna lia um conto sobre uma vaquinha que consegue fugir da carroceria de um caminhão que seguia a caminho do abatedouro, e após a fuga, Jill sai em busca de um novo

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lar e uma família, uma esperança para viver. Voltando à cena, a menina de cabelos castanhos escuros e ondulados não desgruda os olhos um minuto do livro. Muito atenta, ela estava sentada ao lado de um senhor mais velho – seus cabelos lisos grisalhos na altura dos ombros o entregam. Ele se dirige à menina com um sorriso no rosto: “Está gostando do livro? pergunta. Está bastante concentrada, né? A Jill é uma vaquinha muito corajosa”, diz. A garota, com seu jeito tímido, quase não corresponde à indagação, apenas vira levemente o pescoço e solta um “Uhum” em forma de afirmação. Poucas palavras, diferente de sua total concentração na leitura. O segundo integrante da cena, o senhor de cabelos brancos, é Paulo Roberto Drummond, um dramaturgo, diretor, ator, consultor e produtor de teatro. Ele é formado


em filosofia e recentemente ingressou no ramo da literatura “Sou vegano há dezesseis anos. Eu e a Marcia, minha parceira e idealizadora do projeto, fazíamos teatro e pensávamos em uma forma de fazer, propagar o ativismo com algo que a gente já trabalhasse. Então idealizamos dois projetos, um feito através da arte, de performances teatrais, e esse, que é a coletânea Paz. Já que no teatro eu estava bastante acostumado a escrever os roteiros das peças, pensei em utilizar essa habilidade na literatura. A coletânea é mais voltada para a área da educação sobre veganismo, na formação das crianças com esse pensamento”. Essa cena se passa no Encontro Vegano ‘JMA J’adores mes amis’ que é a expressão do desejo de um mundo amigo, consciente e sustentável. O evento ocorre uma vez por mês na cidade de São Paulo, sempre em um pavilhão de eventos, em diferentes regiões da cidade. Na grade da fachada, havia banners indicando o evento. Uma faixa levava os dizeres ‘PAZ PARA OS ANIMAIS (principal pedido dos veganos), ‘Go Vegan’ (seja vegano), expressão muito utilizada para incentivar à filosofia. Mais à frente, no portão que estava aberto, um cartaz sustentava a foto de uma família de galinhas e a seguinte citação de Mahatma Gandhi: “A grandeza de uma nação pode ser julgada pelo modo que seus animais são tratados”. Tais banners sintetizam a ideia base do veganismo, explícito logo de cara, para atrair os já adeptos, e também os que ainda os que possam vir a descobrir um pouco sobre a causa, e também os curiosos que transitavam por ali. Era visível uma grande quantidade variada de food trucks, banquinhas de variados produtos, desde higiene pessoal, cosméticos, até calçados. Circulamos por ali e nos deparamos com artigos e vestimentas personalizadas, com alguns dizeres ativistas, ou desenhos remetendo ao veganismo. Existia também um espaço reservado para a adoção de animais, o que casa totalmente com a proposta

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da feira. Havia a venda de outros livros também, sorvete, feira orgânica, brechó, entre outros. De volta ao stand ‘Paz’, conversávamos com Paulo. Descobrimos um pouco mais sobre o processo de produção dos livros infantis da coletânea: “Para a realização das ilustrações, abrimos um concurso na internet onde um dos requisitos para participar era que o ilustrador fosse vegano. Todos que participaram da produção dos livros deveriam ser obrigatoriamente. Dani Benite, uma jovem ilustradora venceu o concurso e desenhou os seis livros da coleção”, relatou. Em meio à conversa fomos interrompidos por Giovanna, que aplicou leves cutucões tentando chamar atenção de Paulo para poder se despedir. Os pais da garota a chamavam, ela deu um abraço no escritor, que voltou a falar após a saída da pequena: “Isso é muito gratificante”, comentou, com um sorriso largo. “A gente pensava como seria uma nova literatura voltada para o veganismo, pensávamos como seria uma história abolicionista, sem nenhuma exploração ou escravização de qualquer animal”, prosseguiu. “Mas ao mesmo tempo isso deveria vir com certa delicadeza, de uma forma suave, especialmente por ser voltado para o público infantil”. Ele ainda acrescentou que a intenção também era mostrar para os pais ou responsáveis, pessoas não veganas que há todo um sentido dentro dessa visão do ponto de vista da preservação das espécies. Os animais sentem dor, medo e têm consciência. “Isso deve ser do conhecimento de todos, e parece que a Giovanna está no caminho certo”, disse, rindo. A coletânea Paz é composta seis livros e todos eles levam o nome de um animal, protagonista da história, e trazem os conflitos das relações dos humanos com esses seres. ‘Jill’, já citado acima, teve venda avulsa esgotada. ‘Márcia’ conta a história de uma galinha que encanta uma menina no Parque Ibirapuera, em São Paulo.


Já ‘Vera’ é uma coelha que servia para entreter crianças de uma escola, ‘Gary’ narra a relação de um peixe na beira de um rio. ‘George’ conta a história de uma mulher e um peru de estimação, que tem sua convivência ameaçada e, por último, o porquinho ‘Ismael’, com aventuras do animal e de um garoto no sítio onde vivem. Os contos tratam de amizades inusitadas entre humanos e animais, proporcionando às crianças uma experiência para um olhar sensível em relação a si e ao outro, na direção de um mundo mais igualitário e compartilhado. Para Paulo Drummond, o tratamento dos animais indica um avanço. “Ao mesmo tempo que alguns consomem carnes desses animais, em alguns lugares eles são partes de famílias”. Outro fato bastante interessante é que a coleção é a primeira coleção de livros com contos veganos para crianças no Brasil, e o escritor diz ainda não ter encontrado nada parecido no mundo inteiro: “Existem alguns livros sobre veganismo para crianças, mas nunca uma coleção. Como pensar numa mudança sem a educação?”. Presente em diversos eventos do JMA, Paulo conta que ele e sua equipe sempre arrumam um tempinho durante os eventos para passar um pouquinho de conteúdo para o público: “Há um horário na feira que tiramos para contar histórias veganas para os pais, crianças e quem quiser participar. Não são as histórias dos livros, criamos uma história específica para cada feira”. Após o bate-papo, andamos bastante e exploramos a feira. Com sede e cansado, Leonardo se depara com uma barraca de sucos e decide experimentar. A especialidade era o suco verde, uma mistura de laranja, folha de couve, gengibre e água, como explicou João Paulo, o dono da venda. Havia uma preocupação com o público, mesmo a barraquinha estando lotada de clientes. A bebida

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tinha um gosto forte, mas com toque refrescante, talvez devido ao toque de gengibre da receita, que inibe o sabor das outras plantas. Depois do refresco, seguimos pela feira. Gabriel fica animado quando vê uma banquinha de manteiga, afinal, os laticínios têm sido a maior dificuldade em sua transição para o veganismo. Ele se dirige até lá. Havia vários pedacinhos de um pão integral em uma tigela, um pote redondo transparente de manteiga vegetal – seus olhos brilharam –, e um queijo feito à base de mandioquinha, que estava partido em cubinhos. “Fala, amigo! Fique a vontade para provar”, avisa o moço de barba comprida que vestia uma camiseta preta com a frase “Não é sua mãe, não é seu leite”. Ele conversava com o expositor ao lado enquanto Gabriel provava as três opções. A primeira degustação foi a combinação clássica de pão com manteiga. Gabriel achou interessante. Levando em conta que os produtos veganos nunca têm exatamente o mesmo sabor, a manteiga era realmente boa, tinha aroma e sabor muito parecidos, que também lembravam aqueles protetores labiais, afinal, a base era a própria manteiga de cacau e outros óleos vegetais, mas uma das melhores que já provou. – Quanto é a manteiga? – Doze reais. – Vou levar –, avisa Gabriel (o preço é justo, fazendo uma rápida comparação mental com os laticínios do mercado). – Aproveita, leva um pãozinho também. – Quanto sai? – Dez reais. Gabriel acha caro, mas decide levar também, por ter gostado do atendimento e sempre considerar importante dar aquela forcinha para as pessoas que se dedicam a criar opções aos veganos. – Pode escolher! Sua mão pesa quando resolve levantar o pão escolhido. Sente um

leve arrependimento. Parecia estar segurando um tijolo, tanto em formato quanto em peso. Ele decide relevar, mesmo sabendo que o dinheiro poderá lhe fazer falta ou ser gasto com algo mais interessante ali, no aglomerado de expositores. O vegetariano estrito ou quase vegano caminha mais um pouco pela feira com Leonardo. Eles constatam como realmente o universo vegano é inovador e criativo. Gabriel se depara com o tradicional sorvete italiano, que já deixou de consumir há algum tempo, por ser puro leite de vaca. A casquinha é igual ao do Mc Donald’s. Mais uma vez seus olhos brilham de emoção. Um cartaz informava: Casquinha - R$ 5,00 Sunday - R$ 10,00 – Moça, vou querer uma casquinha. – Só a casquinha? – Sandra questiona. – Sim, só. – Esse sorvete é feito com a fava da baunilha mesmo e leite vegetal, é totalmente natural, você vai sentir a diferença. O sorvete saía brilhando da máquina, todo em espiral, igualzinho ao dos fast-foods, um pouco mais amarelado, e cheio de pintinhas pretas da baunilha. Para o quase-vegano, parecia uma obra de arte. – Pode pagar para o meu filho. Seu encanto pelo sorvete é tão intenso que nem se lembra de registrar o momento. O sabor era incrível, uma sensação de estar consumindo algo realmente natural. Eles caminham mais um pouco pela exposição. A cada novo tour, nova surpresa. São tantas coisas que às vezes não é possível reparar de uma vez. Algo chama a atenção. Uma mesa com brinquedos veganos. “Hambúrguer do bem”, “Fazendinha Feliz”, parecidos com os tradicionais vendidos nas grandes lojas infantis, porém, totalmente voltados para uma educação da filosofia vegana. A dupla decide seguir pela fileira de bancas: hambúrgueres, refeições e... churros! Gabriel se rende


“COLEÇÃO DE CONTOS SEM ESCRAVIDÃO ANIMAL”

Paulo Roberto Drummond e sua coleção “PAZ”no Encontro Vegano

mais uma vez. O doce ainda é mais complicado de substituir que alimentos ’salgados’ nessa transição. Apesar de existir oferta, os preços são também um pouco caros. – Me vê um gourmet de chocolate. Havia a opção de doce de leite também. Gabriel questiona então qual a base dos dois recheios, também disponíveis em vidrinhos para venda. - O doce de leite é à base de leite de coco, já o chocolate é feito com um creme de soja, a moça diz. Ele escolhe amendoim triturado e gotas de chocolate como coberturas. Outro expositor tinha inúmeras caixinhas empilhadas, intituladas de “Carnes vegetais vegabon”. Eram tiras de carne, filé de peixe, linguiça e churrasco no cartaz com ilustrações dos produtos. Geralmente, a imitação de carnes

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divide opiniões dos veganos e até carnistas. Gabriel não costuma ser muito fã de tais produtos e fica incomodado quando a textura é muito parecida. Ele já não consume carne há pelo menos quinze anos, desde sua infância. A moça, simpática, ofereceu linguiça vegetal e ‘churrasco’, as únicas opções que haviam restado para a degustação. Estava cortada em rodelas e tiras como uma porção, ao lado um porta-palitinhos de dentes e um uma lata de lixo. Ao provar, Gabriel sente um sabor agradável, mas não sabe dizer se lembravam de as de origem animal. Leonardo também aprova os produtos. – Muito boa, mesmo. Gabriel agradece e pergunta qual é a base do filé de peixe. – São todos a base de soja, o que muda é o formato e os temperos, ela responde.

É curioso e animador vermos tantas opções e soluções que o universo vegano, ainda novo, tem encontrado para se sustentar na sociedade. Muitas pessoas costumam torcer o nariz quando ouvem a expressão. Essas feiras e encontros são capazes de proporcionar ricas experiências a quem estiver disposto a conhecer ou considerar o estilo de vida. No final da tarde, aconteceu também uma roda de conversa com as ativistas Sulivam Sena e Camila Lopes Costal. Elas falaram sobre gestação com dieta vegana e alimentação para as crianças. Ao saírem do evento, Gabriel e Leonardo foram abordados por três rapazes que, curiosos, questionaram sobre o evento. Eles os aconselharam a entrar e participar e provar os inúmeros novos sabores por preços justos em comparação ao mercado.


POR ENTRE AS VÉRTEBRAS

Julia Abud e Lucas Berti

É no número 1085 da Avenida Henrique Eroles, centro velho de Mogi das Cruzes, que cada mogiano desajeitado tem, ao menos fisicamente, a chance de tomar jeito. Em uma casa Branca – do mesmo branco chapado e brilhoso da cor dos jalecos de médicos e enfermeiros – encontra-se o primeiro centro de quiropraxia da cidade. Pela discrição do lugar, é fácil crer que o pioneirismo e a estranheza do nome do que ali se faz possa levantar a sobrancelha dos

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que passam pela calçada. Coisas de cidadezinha. Pelo andar dos carros que ziguezagueiam entre ruas estreitas, que antes serviam para carroças, a cidade parece até acaipirada. Mas não dá para dizer que é um meio de mato, já que Mogi é tão metropolitana que até se acessa de trem, pela linha coral da CPTM, vindo direto da estação da Luz – uma das mais importantes do centro de São Paulo. Mas as novidades, mesmo simples, seguem impressionando quem nasce e vive ali. Também, pudera: não estando na capital, onde há um surgimento diário de estabelecimentos (por geração es-


pontânea), cidades menores e despovoadas fazem um convite a novas ideias de negócio. No caso de Caio Keidi Yoshida, quiropraxista, curandeiro de dores alheias, que se meteu a meter a mão no epicentro das vértebras de seus conterrâneos, a coisa segue esse ritmo. E esta reportagem pretende contar tudo bem alinhado. Tudo sempre teve seu misticismo Em 1845, no fim do sufoco dos revolucionários industriais e talvez no começo de pensamentos capitalistas mais ousados, um aventureiro canadense, de nome Daniel David Palmer, resolveu estalar os dedos e cruzar os mares. Palmer, nascido em Ontário, rasgou as águas geladas do pacífico até desembarcar em Davenport, Iowa, Estados Unidos. Lá, como qualquer bon vivant estrangeiro que se põe à incerteza da retomada (ou começo) de uma vida, reuniu suas habilidades mais esquisitas para pagar as contas: jardineiro, marceneiro e professor de ensino fundamental. Como não havia uma Anhembi Morumbi, como a que daria a Caio, 170 anos depois, a oportunidade de uma graduação especializada em uma área alternativa da saúde, o multifacetado imigrante do Canadá fazia o que estava ao seu alcance. A nobre arte de aprumar colunas não veio de um chamado divino ou da releitura de estudos gregos antigos. Nada disso. A poesia por trás da prática, que hoje é protegida por uma associação nacional e que movimenta cerca de 15 bilhões de dólares anualmente nos EUA, nasceu, curiosamente, de um boca a boca. Coisas de cidade pequena. Poderia facilmente ser em Mogi das Cruzes. É possível, mas não provável, que a rua onde Palmer abrira seu consultório não fosse de paralelepípedos. Mas como a clínica de Caio, posta entre duas casinhas no bairro do Alto do Ipiranga, o escritório

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peculiar do Doutor Caligari das lombares inflamadas, primeiríssimo consultório quiroprático da história, começou simples e levou a milhares reações de alívio. Nos tempos de hoje, em que as dores persistem na humanidade, Caio conta que quando seus pacientes recebem os ajustes vertebrais no sistema neuromuscular esquelético, a reação é similar. Obviamente, centenas de décadas mais tarde, com tudo cercado de estudos avançados, embasamentos teóricos e regulamentação, a quiropraxia se desvencilhou de todo o folclore de seu surgimento. E eu, em um misto de curiosidade e urgência física, topei a aventura de me deitar no divã (reclinado) para ver como é estar literalmente por dentro de uma sessão. A má notícia Nunca na vida de um repórter é possível imaginar que “entrar na pauta” seja algo ruim. A ansiedade da pré-apuração rende uma descarga de adrenalina única. E eu, até então, também jamais imaginaria que tivesse

tantas dores, falhas musculares e problemas de postura. Ao entrar por um corredor estreito até o consultório simpático do Dr. Caio, que vestia uma pólo em um tom azul um pouco mais escuro que o das paredes da saleta, vi uma mesa, duas cadeiras, uma maca, alguns certificados pendurados e uma réplica em acrílico de uma coluna humana. Minimalista. O cenário me atiçou a curiosidade. – Peso? – 73 quilos – Altura? – Um metro e oitenta. – Pressão? – Doze por oito. É sempre bem normal. – Cãibras? – Muitas. – Doenças? – Nenhuma ainda. – Sono? – Razoável. – Passa muito tempo sentado? Não achei que ficar estático, sem fazer nada, pudesse impactar no que viria a sentir pouco depois. Mas


respondi com sinceridade que minha profissão me obrigava a ficar plantado em longas horas de contato visual com uma tela. – Mais do que gostaria –, respondi. Risadas. Depois do interrogatório, recebi uma folha com o desenho de um corpo humano, frente e verso, dividido entre lotes de músculos. Era possível ver as nádegas, as coxas, a lombar, o dorso, a deltoide. Um mapa da mina completo. Fui instruído a pintar, com uma caneta (também azul), as partes em que a dor era recorrente. Enquanto me concentrava, o cachorro do vizinho não parava de latir. Pelo ruído ardido, talvez fosse um pinscher ou chihuahua. Decerto que previu o que eu estava prestes a sentir e tomou minhas dores. Rabisquei da nuca para baixo, sem medo de errar. Tingi os ombros, as costas e o cóccix como em uma aula de pintura da quarta série. Era hora de ficar de pé para a vistoria geral. Larguei a caneta e fiquei parado como um poste, tal qual um criminoso esperando o flash na delegacia. Logo de cara, sussurros nada animadores. – Pois é. Os ombros são visivelmente desnivelados. O esquerdo é um pouco mais alto. Impressionante. Nem cinco minutos em consulta e já descobria as panes no sistema. Tudo bem os incômodos e os torcicolos, mas jamais imaginaria que da avaliação sairia um veredito desses. Eu era torto e não sabia. E a sessão seguia. Preparação Tudo ali fazia parte do processo. Após a triagem decepcionante, que para meu desespero era totalmente aquém do que se espera de alguém tão jovem, começavam os rituais preparatórios. Estiquei os dois braços em movimentos circulares para

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começar a mapear e localizar as dores. Os nódulos – pequenas bolinhas nervosas que se formam com a tensão dos músculos – estavam por toda parte. Como um jardineiro atrás de raízes daninhas, Caio pressionava lentamente, mas com muita firmeza. O cachorro não parava de latir. Quando atende pessoas de idade, o especialista conta que faz uso de um ativador, já que alguns exercícios são impossíveis de serem feitos. Com o formato de uma seringa grossa, como as que recheiam bolo, o objeto dá um impacto localizado nos locais em que as subluxações precisam ser tratadas. Na antiga Devenport, onde o pai da técnica sofria com o estigma de charlatão, talvez um apetrecho desses ajudasse a dar um aspecto mais profissional à consulta. Por sorte de Caio, que esteve nos Estados Unidos há uns meses e comprou o instrumento, tudo é mais fácil hoje. Para meu azar (ou sorte), a reportagem de fôlego começava. Estava estirado na maca. Com o rosto virado para baixo entre duas barras de espuma preta que achatavam os olhos, fiquei diante do chão. Sentia mãos dedilhando o caminho da minha coluna como

se uma velha anciã cega tateasse os búzios para antever meu futuro. E que droga de destino esse. Nos dois apoios sob a minha cabeça coloquei as mãos como se segurasse um guidão. O passeio era longo. “Pelo amor de Deus, pode parar” As pernas foram as primeiras vítimas. Caio comandava a sessão magistralmente. Cada movimento era milimétrico, como um samurai desembainhando uma catana. Como eu nada podia ver, senti o toque nas panturrilhas, local das cãibras descritas durante o questionário inicial. Elas fadigavam de dor. A técnica ajudava, mas a sensação de ver a canela repuxar não era normal. Percebi que deveria ter pintado mais espaços. Pelo visto, toda a musculatura da perna não andava boa. Era falta de potássio, de exercício, de um tênis anatômico. E o bendito do cachorrinho – que certamente era inho pelo barulho estridente – seguia latindo sem intervalos. – Vou apertar, ok? Quando doer demais, pode pedir que eu paro. Não demorou dois segundos. Não importava o ponto. Pedi o fim dos apertões no mesmo


instante. Em seguida, um alívio indescritível no mesmo membro. Ao longo do tronco Ainda no início da consulta, enquanto eu ainda era questionado sobre minhas dores, fui desafiado pelo especialista a adivinhar qual era o principal motivador de problemas relacionados ao sistema muscular vertebral. Logo pensei na minha postura – sempre errada. Mas me surpreendi: o alinhamento correto do corpo é reflexo, não motivação. Segundo Yoshida, o quadro emocional é o grande campeão entre os causadores de dores crônicas. Nessa hora, houve certa identificação. Ao receber a explicação de que a tensão da cabeça enrijece e forma os pontos dolorosos, comecei a ter tudo mais claro. Era hora de ser retorcido e por isso à prova. O movimento era estranho. Até aquele momento não ouvi os estalos, tão populares entre os que já ouviram falar da quiropraxia. Caio sorri quando pergunto a respeito. “Sempre estalo tudo. Principalmente os dedos das mãos. Tomara que hoje ele não falhe”, comento, rindo. Fico intrigado ao saber que, – Dói aqui? Doía demais. Conforme todos os pontos desajustados eram encontrados, minha coluna era repuxada, esticada e sovada como uma massa borrachuda de pão. Quando o foco era encontrado, era hora de do ajuste. E então era possível ouvir a sequência de estalos. – E aqui, dói? Doía demais. Pensei em pedir para estourar o tubo da caneta e preencher o boneco inteiro. Tinha o sentimento de um ex-boxeador cheio de sequelas. Eu, no máximo, levava uma surra da rotina. – Dói nesse ponto? Doía demais. E conforme era dado o paradeiro da dor – e, principalmente, das alterações da coluna – os ajustes seguiam. Era

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necessário respirar fundo e “soltar o ar bem rápido” até o tranco. Trec. Que sensação maravilhosa. Era uma amostra do paraíso, onde o tempo passa devagar e os incômodos musculares somem. Daniel Palmer

tecnicamente, os “trecs” ruidosos são a parte menos importante na chamada manipulação articular que existe dentro do método do ajuste. Mesmo assim, fiquei ansioso pelos barulhinhos. Comecei a sentir a pressão nas costas.

ficaria orgulhoso. Seguíamos pelo trapézio. Nódulo na mira... fogo! – Aqui, dói? Doía demais. Lá fora, o latido ininterrupto ecoava pelo corredor que dava acesso à garagem e à porta da rua. Era uma manhã de domingo. Nem vi a hora passar. Tudo que sentia eram as dores momentâneas e a ansiedade para, finalmente, me ver livre daquelas que já eram minhas fieis companheiras há muito tempoww. Foi quando Caio, com um ar de satisfeito, voltou à sua cadeira atrás da mesa – como a de qualquer médico – e finalizou a sessão. Senti um misto de alívio, confusão e esperança de me livrar daqueles incômodos pintados de azul pelo meu corpo inteiro. E a semana estava só começando.


UM ELO SOCIAL ENTRE ITÁLIA E BRASIL Gabriele Salyna e Juliana Tavares

C

rianças por todos os lados. Elas têm todas as idades. Algumas organizadas em filas, outras comendo e muitas dentro das salas. As vozes das professoras e auxiliares mostram que não são só crianças que estão presentes no centro. As risadas, músicas e brincadeiras mostram a alegria e harmonia. E assim são os dias no Centro Social Brasil Vivo. Era para ser mais uma vinda comum. Um padre que chegou da Itália. Nada fora do contexto dos anos 1990. Pedro Cecchelani era diferente. Seus ideais eram maiores que apenas religião ou uma mudança de país. Pedro queria ajudar. Com o auxílio de Nassalita Assis, em setembro de 1992 fundou o Centro Social Brasil Vivo. Considerado por muitos como um lugar atípico para a criação de um centro social, Pedro deu seguimento a sua missão vinda de Roma. Uma cidade industrial foi escolhida para receber os cuidados sociais. Guarulhos, mais precisamente na região carente. A instituição para crianças e adolescentes agora disputa lugar com as fumaças de caminhões e de empresas do bairro de Cumbica. A ideia era que o centro fosse um modo de tirar crianças das ruas durante um período e no outro elas frequentassem na escola. Para que a inscrição no projeto seja feita, é necessária uma matrícula escolar. O intuito é que o Centro seja um complemento dos conhecimentos dos

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alunos. O dia começa bem cedo por lá. Sete da manhã e a equipe já está preparada para a chegada das crianças e dos adolescentes. A entrada possui dois extremos. A portaria é composta por uma porta metálica com um vidro fosco sem muitos indícios de que se trata de um ambiente escolar e acolhedor, mas essa seriedade é quebrada por uma das áreas de lazer do centro. Um parquinho colorido que já instiga as crianças a querer participar de mais um dia da rotina. O mês é abril. As dependências do centro social são enfeitadas com o tema de Páscoa. Coelhos e cenouras são espalhados por todos os cantos. Pouco a pouco os alunos vão chegando, se desacoplam das mochilas dos personagens preferidos e ocupam as salas que são temáticas e separadas por idade. As primeiras são da turma do berçário, formada de até 20 crianças, as paredes enfeitadas com fotos dos próprios alunos e atividades feitas durante o mês. Conforme as horas passam, outras atividades estão no cronograma. O café da manhã é o momento de euforia no Brasil Vivo. São bebês, são impacientes, são pequenos. O refeitório começa a ser adaptado para que os pequenos consigam comer o cardápio do dia. As cadeiras que mais parecem “bebê conforto” são a melhor opção. Os pézinhos balançando no ar mostram que estes são menores do que os outros, já que não tocam o chão. São mamadeiras, copos com bicos e os mais atrevidos tentam os copos. Além das


colheres. Eles recebem o auxílio da equipe para comer, mas mesmo assim é possível ver as risadas quando alguma comida cai fora das pequenas bocas. Passando pelo refeitório, há um grande corredor. Nele há salas e mais salas. A sala de música mostra a dedicação dos alunos ao violão. Esse que, em muitos, chega a ser maior que o tronco dos músicos-mirins, é a paixão e um novo caminho a ser seguido. A concentração das crianças em acertar as notas é visível quando o professor fala e algumas delas chegam a assustar. Aos poucos e com muita paciência, as primeiras notas em sequência começam a ser ouvidas e os olhares brilham no ritmo lento vindo das pequenas mãos em contato com as cordas. A próxima sala é a de capoeira. Seguindo os comandos do mestre, os pequenos treinam cambalhotas. O professor, um por um, os guia na realização do movimento. A primeira tentativa é a mais árdua. A segunda não parece ser tão difícil. Na terceira vez, os pequenos capoeiristas já fazem sozinhos, como se tivessem nascido para aquele momento. A sala é decorada com tambores, atabaques e berimbaus, todos em tons de areia, com detalhes em preto, amarelo, verde e vermelho. Forrado com tatames, o chão é azulado. Uma grande Bahia de Todos os Santos é construída no ambiente e a música proporciona uma viagem ao estado. Mais adiante temos a sala de dança. Street dance é o ritmo escolhido. De longe é possível escutar a batida da música e os tempos marcados pelas palmas do professor em conjunto com as batidas dos pés dos jovens dançarinos. Mesclada com meninos e meninas, a aula é recheada de risadas dos passos errados e fora do ritmo. De tênis ou meias, os dançarinos estão posicionados em uma grande fila, sem protagonismo, todos com a mesma importância. Juntos, alunos e o professor se divertem entre o ritmo das ruas de São Paulo e os saltos dos passos. No fim do corredor, um lance

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de escadas leva ao centro de juventude, o CJ. Um ambiente paralelo àquele da creche, voltado para as crianças e adolescentes de sete a catorze anos que começam a adentrar o mundo de dinamismo. Lá os adolescentes, em média 100 deles por período, têm seu lugar para brincadeiras, jogos, peça de teatro e conversas. Uma mesa de tamancobol, que se assemelha ao pebolim brasileiro, é o chamariz para aquele espaço. Há também os clássicos como, tabuleiros de dama e xadrez, mesas altas com bancos contínuos. Além dos jogos, ainda no CJ há um espaço onde estão os apetrechos das peças de teatro. O que mais chama a atenção é uma cabine mágica, na qual a professora entra para ser colocada como personagem e contar histórias aos alunos. São diversas atividades lúdicas incomuns para a idade, mas que fazem sucesso com os adolescentes. Para completar esse colorido e divertido mezanino, uma cidade-mirim está sendo projetada. O lugar será dividido para que nenhuma atividade se perca no meio da CIDADE CJ. As casas são feitas de dois materiais que facilitam muito o manuseio, caixas de ovo e madeirite. A construção é a hora de demonstrar a aptidão dos alunos pela engenharia ou arquitetura. Os jovens não precisam ser experts em cálculos. A boa vontade e a destreza de colocar a mão na massa são o que move aquele lugar. “Dinâmico” e “lúdico” são palavras-chave para o CJ. Em meio a tantas salas do Centro Social, está a turma do Jardim 2. A professora Lucileide Silva França organiza os alunos para a chamada, porém de uma maneira diferente do padrão. Como no Brasil Vivo a intenção é interagir, os pequenos ficam sentados e conforme são chamados pegam os seus nomes que estão dispostos em placas de EVA, que ficam espalhadas pela sala, e as colocam no painel central. Com isso, há uma apresentação e aproximação de quem assiste e participa desta


ação, que pode ser considerada como atividade. Dentre os alunos que participaram da chamada, Victor Hugo se destaca entre as 30 crianças da sala. Baixinho, com cabelos pretos arrepiados por um gel que já começa a perder o efeito, ele se diz parecido com o Bem 10, seu personagem favorito, um menino que tem poderes especiais e se transforma em bichos esquisitos. Ele se mostra inteirado do espaço, afinal, de acordo com a professora, o garoto está matriculado desde o berçário e segue ativo na instituição. Victor Hugo se mostra prestativo. Apesar da pouca idade, interage com todas as pessoas, quer apresentar o espaço, salas de aula, cozinhas, sala da soneca e todos os locais onde passa a manhã fazendo diversas atividades. Os pais de Victor Hugo, Edino Carvalho e Marlene Vieira, estão familiarizados com o Centro Social Brasil Vivo. Não é o primeiro filho deles que está matriculado. Eles são moradores de Guarulhos e Edino trabalha em uma mecânica em Cumbica, bem próxima ao Brasil Vivo. A fila no início do semestre dobra a esquina e, como Marlene não trabalha e já conhece a logística de matrícula, neste ano assumiu sua posição na espera por volta das 4 da manhã do dia 8 de janeiro. Não há mais a necessidade de divulgação do início da matrícula, como antes era feito pelas casas da comunidade, assim que o Padre Pedro chegou ao Brasil. A preferência é para os moradores dos arredores. No dia da matrícula, foram necessários voluntários para organizar a fila em diferentes setores: berçários, creche e CJ. O pequeno se destaca pela facilidade com a leitura. O sangue artístico já corre nas veias do corpo do menino. Victor Hugo gosta de ler e interpretar as fábulas e contos de fadas para seus amigos de sala, que ele chama de plateia. Interagindo com o baú de histórias, o artista-mirim transforma uma simples aula de contação de histórias em um espetáculo. E agradece

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os aplausos com reverências ao fim de cada apresentação.

“O SANGUE ARTÍSTICO JÁ CORRE NAS VEIAS DO CORPO DO MENINO” Lucileide, que trabalha há sete anos no Centro Social, tem um carinho maternal pelos alunos e mostra seu sorriso de aparelho no fim das pequenas peças de Victor Hugo. Orgulhosa do progresso diário, principalmente com relação à leitura dos livros, a senhora acredita que essas apresentações incentivam seus filhinhos, como ela os chama, a criarem o hábito e amor pelos livros. Outros alunos se destacam, tanto na atividade teatral como nas de desenho. Essa que é a atividade preferida de Rebecca Martins. A menina adora as cores. Ela diz que a sua preferida é amarelo. Para ela é a cor do sol e do girassol. A pequena vai à loucura quando joga todos os lápis de cor e canetinhas no chão. As folhas em branco são novas chances para a imaginação de Rebecca. Para ela, cada papel é uma enorme tela que logo será preenchida pelos rabiscos coloridos. Ela ama as flores e sempre coloca um sol no cantinho da folha. As nuvens também não podem faltar. Com azul claro, a pintora começa a fazer as pequenas marcas em formato de ondas perto do círculo amarelo. O desenho vai sendo preenchido com mais cores. Aos poucos, as florwes vão aparecendo. Elas têm cores rosa, laranja, vermelho e violeta. Na casa de sua avó há muitas

flores e é de lá que Rebecca tira a inspiração para seu desenho. Depois de alguns minutos a arte está pronta. A pequena corre para mostrar para a professora sua mais nova obra de arte. A hora do intervalo para os adolescentes é a mais querida. Falação por todos os lados, gritarias, risadas. O CJ fica cheio em poucos segundos depois do fim do aviso sonoro. É dada a largada para a interação entre os jovens de salas diferentes. Em grupos de meninos, meninas ou mistos, todos se divertem no momento de descontração. Nina Rosa, 13 anos, está sentada sozinha no chão. A menina cujo nome é a junção dos nomes das avós é tímida, conversa pouco e prefere ficar com a sua própria companhia. A movimentação em volta da mesa de pebolim começa e Nina se levanta do seu cantinho de aconchego. A passagem está aberta para a jovem até a mesa. O que todos no CJ sabem sobre ela? Nina é a maior vencedora do pebolim. Os nomes afetuosos não fazem jus ao apelido da garota na roda: demônia da mesa. As rodadas são organizadas como fase eliminatória, assim aumenta o número de competidores. Conforme vão passando as fases, a “demônia” elimina um por um de seus competidores e segue invicta na disputa. Gritos da torcida a cada chute dos bonecos na caixa, mãos na boca para roer as unhas, respirações profundas e olhos vidrados na mesa. A final do pebolim parece jogo do Brasil em Copa do Mundo. E a torcida vai à loucura com mais uma vitória da campeã, que naquele momento se torna a menina mais popular de todo o CJ e nem parece a mesma garota tímida que estava sentada sozinha. O esporte une as pessoas com uma grande facilidade. Abraços, apertos de mão e mais gritaria. Os alunos do Centro Social são todos um time só. Onde todos eles ganham. Quem encerra a comemoração de mais uma vitória de Nina é o sinal sonoro de volta às aulas. Todos se despedem


Juliana Tavares

A sala de capoeira se transforma na Baía de todos os Santos

de seus grupos, da mesa de pebolim e retornam às suas salas em poucos segundos. A aula de capoeira é retomada com ritmo baiano. Os alunos correm para tirar os sapatos, os colocam organizados no canto fora do tatame azul e logo sentam em roda. O professor coloca uma música e os alunos fecham os olhos. A ideia é que eles se acalmem da agitação do intervalo antes de começar o treino do dia. Depois de aproximadamente cinco minutos, os jovens ficam em pé em fila. Gabriel Ribeiro, 11 anos, é o capoeirista mais fanático da aula. Ele tem como ídolo de vida o professor Júnior Alves. Quer ser igual a ele. Imita suas roupas, seu gingado, suas falas, seus gestos. O garoto, que de baiano não tem nada, parece que nasceu nas areias de Salvador em encontro com o Pelourinho. Até o sotaque Gabriel quer ter. Cumprimenta seu mestre e começa a gingar, balançando como se estivesse dentro do mar. Júnior explica como serão os

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exercícios do dia e Gabriel escuta e observa atento. Os olhos do menino brilham e ele mal pisca com medo de perder alguma explicação. O primeiro momento de glória dele é quando o professor o chama para ajudá-lo a ilustrar como será o começo do movimento em dupla. Em menos de um segundo, Gabriel está preparado para ajudar seu mestre e ídolo e ser o melhor aluno daquela aula. Festas são o grande chamariz para a turma do CJ. Ninguém precisa de uma data especial no calendário para comemorar. Os professores ficam semanas organizando a Festa à Fantasia do CJ. A bagunça mais esperada pelos alunos acontece duas vezes no ano, uma vez por semestre. É o grande baile da turma jovem, onde todos podem escolher suas fantasias e músicas preferidas. Em contrapartida, as únicas exigências que as professoras Vanessa de Carvalho e Janaína Leite fazem é que os alunos se divirtam e ajudem a preparar o ambiente. Os jovens não são muito experientes no quesito decoração de

baile à fantasia, por isso descem todos afobados para a sala de informática para pesquisar sobre como fazer a melhor festa do mundo. Sentam-se em duplas e assim trocam ideias de como acham melhor organizar o espaço. O tema “neon party” foi o escolhido. É a sensação do momento. A decoração foi decidida a 20 mãos. O globo para o centro da sala foi confeccionado com papel celofane de todas as cores, uma espécie de mosaico furta-cor para iluminar o ambiente, todo coberto com tecido TNT preto. Para completar a decoração, luzes de led e bexigas neon foram coladas ao TNT. Os leds tinham vários estágios de iluminação, e o que os alunos mais gostavam era o branco que piscava. O horário da festa era a tarde, mas o espaço estava tão envelopado que os alunos se sentiam em uma festa noturna, um breu no ambiente iluminado apenas com os leds. Os alunos passam a protagonistas da festa. Vão até o camarim para colocar a fantasia da vez. Personagens da Disney são a primeira escolha das meninas, que se misturam entre Minnies e Princesas. O “squad”, como elas se apelidam, combina as fantasias. Elas não se importam em ficar iguais, até acham graça e postam em suas redes sociais. As garotas falam que fazem sucesso com os “looks” do dia. Enquanto entre os meninos a escolha é unânime. Coringa do Batman. Aquela feição marcante. Quatro cores são necessárias para montar a fantasia. A boca vermelha e o contorno do olho preto, o fundo do rosto branco e a tinta de spray verde nos cabelos. Todos querem se divertir feito uma grande família. Assim é formado o Centro Social. Lá de cima, um velhinho sentado em uma cadeira, com cabelos brancos, uma bengala nas mãos e um crucifixo no peito observa a festa com alegria. É o Padre Pedro. Naquele momento, o olhar do senhor deixa de ser religioso e volta a serw o de um menino como os outros que correm pelo pátio.


SENTIDO: ITAIM Letícia Oliveira e Marina Scherer

Uma hora e dez minutos de viagem, “agora nóis tá perto já”, informa o cobrador, “quilometragem nóis não marca não, dá uma hora e meia, duas horas o trajeto”. Um longo tempo se passa até ouvirmos o som dos pneus freando no asfalto. O ônibus de cor amarela vibrante contrasta com a manhã cinza. E, de repente, o silêncio do motor forte desligando. A fila para subir no veículo já está grande para um domingo de manhã. Mais precisamente, 9h45 de um dia que promete ser ensolarado e quente. No meio da poluição sonora e visual que ronda entre os ônibus que vêm e vão, o cheiro do saquinho de 10 pães de queijo a 1 real se espalha pelo ar. Crianças, jovens e adultos saem do veículo que acabou de chegar e se dispersam no Terminal Pedro II. Um

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casal de idosos, de mãos dadas, se ajuda para descer pelos degraus; logo atrás um homem moreno claro, com o cabelo bagunçado, camisa social aberta, sai cambaleando, o cheiro do álcool misturado ao do pão de queijo, e segue tentando se equilibrar em passos tortos; como se estivesse atrasada, a moça com sapato alto roxo desce arrumando o cabelo e retocando o batom ao mesmo tempo. E é só domingo de manhã... Pela porta da frente descem motorista e cobrador que vão rapidamente até o posto de atendimento pegar as chaves do banheiro. O caminho é relativamente longo, e em menos de dez minutos os dois percorrem quase todo o Terminal. Em uma construção à parte, se aliviam. Se não soubessem o caminho até lá, poderiam se guiar pelo cheiro desagradável característico do local. Após pouco tempo e a passos rápidos, voltam à plataforma.


Enquanto ambos batem o ponto e bebem água, a fila vai sumindo, dando lugar ao vazio do lado de fora. Nesse momento, as pessoas que estavam esperando se acomodam em seus lugares com estofamento azul. Todos conseguem se sentar. O ônibus sanfonado comporta bastante gente. 9h53, o ônibus dá partida do Terminal. É um veículo simples. Na cidade de São Paulo virou até comum ver ônibus sanfonados com extensões, entrada de USB, Wi-fi, arcondicionado… Mas esse, não. Não há nada além dos passageiros. Bastante quietos, por sinal. Não se ouve vozes, até o cobrador avisar ao motorista que ele saiu e deixou as portas abertas. “Fecha as duas aí!”, grita para que o piloto pudesse escutar. E assim segue a viagem. O barulho fica por conta forte ronco do motor, das molas da bipartição do carro, e dos tapas dados na caixa de dinheiro do cobrador avisando ao motorista que todos já desceram e que estava permitido fechar as portas. Alguns entram, poucos saem. Novas pessoas passam pelo corredor, porém nenhuma é capaz de quebrar o silêncio. Não se ouve nem um “bom dia” sequer, um “obrigado”. E não se vê um sorriso da pessoa que passa pela catraca e cruza o olhar com o do cobrador – ao que parece, esse último também não se importa. De repente, o som muda. Uma criança começa a chorar ao fundo. O grito agudo e irritante quebra a quietude que durou, pelo menos, dez minutos. Uma mulher conta as moedas de 10 centavos. Uma por uma. Ela já contou e recontou algumas vezes. Talvez esteja se confundindo na contagem com o chacoalhar do veículo, mas certamente não há quatro reais – valor para pagar a passagem – na mão dela. Alguns entram, poucos saem novamente. No sentido zona leste o trajeto é contornado pelo cheiro e

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visão histórica de São Paulo. Carros, caminhões e motos passam pelos viadutos e pontes, que são tetos de barracas de homens e mulheres em situação de rua. Muros cinza são coloridos com pichações. Os bares, ainda abertos e cheios de homens que não passaram a madrugada em casa, fazem a programação dos passageiros solitários que encostam na janela e a fazem de tela. É a televisão da vida real. O entretenimento de quem se movimenta pela cidade em um domingo de manhã. Da Radial ao Itaim Após três pontos, o ritmo monótono do ônibus é quebrado. A porta da frente se abre e na avenida Melo Freire, na altura do metrô Bresser Moóca, um pedido de espera é feito ao motorista. Com muito esforço, dois carrinhos, cada um com um cooler devidamente amarrado, um azul e outro vermelho, sobem os degraus carregados por duas senhoras que sentam na parte da frente, antes de passar pela catraca. Não há como passarem por ela, por sinal. Os itens são grandes e pesados. “Vendi tudo, glória a Deus”, declara uma das senhoras. Ela se refere ao trabalho que efetuou na manhã, na faculdade São Judas. Neusa tem 64 anos. Cabelo enrolado, um ruivo claro, quase loiro, veste uma blusa azul clara, grudada ao corpo, que até parece ser tamanho infantil. Junto a ela está Claudia, de 54 anos, rosto cansado e uma pele escura, mais enrugada que a da amiga. Ela se acomoda no assento de deficiente visual logo à frente de Neusa. É o único vago. Não é o mais confortável, mas é o disponível. Ambas estão juntas porque são vendedoras ambulantes de água, canetas, apontadores, borrachas – e tudo que estudantes precisarem – em vestibulares e concursos. Toda semana, ficam de olho no calendário dos próximos eventos na cidade e se programam para poder comparecer. Desta maneira, sustentam suas casas. As duas entram quietas e com


ar de cansadas, mas logo o silêncio é quebrado novamente. E, diga-se de passagem, não se instala mais pelo resto do caminho. É um tal de conversa pra lá e conversa pra cá que o cobrador evita olhar ao máximo. (Depois descobrimos que ele não estava acostumado com aquela linha. Estava de plantão. Em pleno domingo. A cara de bravo que fez durante toda a viagem fez sentido após essa informação). Voltando à conversa das únicas vozes que falavam no ônibus: a preparação do trabalho de Neusa e Claudia começa na segunda-feira, pesquisando onde haverá provas no final de semana e qual será o polo com mais candidatos. “Meu filho me ajuda, sabe? Ele às vezes me leva pra comprar as coisas. Ele tem carro”, comenta Neusa. No sábado, às 9 horas da noite, aprontam o almoço do dia seguinte, já prevendo que chegarão famintas após o dia de trabalho, e às 3 da madrugada acordam para começar mais um dia de luta. Se arrumam, lotam o carrinho de gelo e garrafinhas e, assim, saem para vender. Prontas para a luta. Desta vez foi na Zona Leste da cidade, mas vira e mexe vão para a Barra Funda, na Uninove e na Unip, ou até para o Brooklin, na Universidade Anhembi. Na verdade, vão para onde precisar. Paralelamente a essa conversa, pela primeira vez ouve-se um diálogo entre o cobrador e o motorista, com mais de 30 minutos de trajeto. Foram apenas duas frases quase ininteligíveis para quem não tem conhecimento da piada interna. “Você vai pra casa do Bodão?”, pergunta um deles. A resposta, acompanhada de uma boa risada, parece ser dada em alguma outra língua. Voltando para casa depois do dia de trabalho, Neusa já pensa no que deverá ser feito durante a semana: “vai ter que pular a semana toda na internet” para encontrar um concurso no próximo final de semana, como ela mesmo diz. As duas senhoras falam com orgulho do seu trabalho, e mesmo

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em meio a correria, não perdem o bom humor. Neusa começa a relembrar e contar sobre os melhores concursos para se trabalhar. Os que têm RedBull. Nesses, ela diz que pode tomar os energéticos, então fica de olho, porque depois que já está com um pouco mais de energia, o “samba começa a comer quente”. Normalmente, é no momento em que o movimento diminui e o número de pessoas em sua vendinha – que não tem nem uma barraca como estrutura – cai quando começa o concurso. Outras vezes, conta, o que é festa vira desespero quando o “rapa” passa e apavora qualquer vendedor ambulante. Fardados e rabugentos, eles têm o poder de acabar com os negócios que dariam o dinheiro necessário para uma semana, ou até um mês inteiro. Quando um informante avisa que esses policiais estão circulando, todos, velhos ou jovens, correm com tudo em mãos: carrinhos, águas, materiais… o que for. Empolgada, como se estivesse narrando uma grande aventura, ela começa a contar da vez que enganou um dos guardas. “Eu tava vendendo para uma moça e o guarda chegou. Ele mandou eu guardar as coisas e ir embora, antes que ele recolhesse tudo”. Neusa concordou com a proposta do guarda, porém foi mais ligeira que ele. Fingiu terminar os negócios naquele dia, mas “assim que ele virou as costas, eu gritei para a moça, ela virou, voltou, eu entreguei a água para ela, peguei o dinheiro e saí correndo”, encerrando sua aventura com uma gargalhada, Cláudia, mais quieta, segue ao lado, rindo e concordando: “essa daí é bagunceira”. Com os novos passageiros, que entram calados e saem mudos, a viagem é embalada apenas pelo chacoalhar do ônibus e pelas vozes das duas senhoras. De repente a monotonia é quebrada. Pela segunda e última vez, os motoristas se comunicam no trajeto. A pergunta, mais uma vez, faz parte da

piada que apenas os dois entendem, “você é primo do Bodão?”, pergunta o cobrador com o ar de deboche seguido de uma risada, ao que o motorista ri e responde: “não, você que é”. Silêncio. “Nós estamos na [avenida] Imperadores, já. Queria tanto visitar minha irmã lá no cemitério da Saudade”, Neusa deixa escapar, como um pensamento alto. “Se eu não tivesse que descer, subir e descer de novo, até iria. Vou te dizer que é uma pena eu não poder ir para lá agora”, completa com a mão esfregando o olho. Sem resposta para o momento singelo, simplesmente ficamos todos quietos, afinal, falar sobre a perda de um parente é complexo. Só quem tem a irmã morando no cemitério sabe qual é o sentimento de não poder visitá-la sempre que tiver vontade.

“VAI TER QUE PULAR A SEMANA TODA NA INTERNET” Após quase uma hora e dez de viagem, adentramos o bairro de São Miguel. As ruas são íngremes e apertadas. Ou o ônibus sobe, ou algum outro veículo desce. Perto do cemitério da Saudade, o motorista de um Fox vermelho acena para o motorista dizendo que podemos passar antes de ele descer a rua. Ufa! O acesso está mais difícil do que o normal porque diversos núcleos de torcedores do Palmeiras estão reunidos em bares de esquina e ocupam grande parte da rua. É dia de final do campeonato Paulista e a expectativa da mancha verde é grande, já que, no jogo de ida, o verdão ganhou com a vantagem de um gol. Parece que todos optaram por


Marina Scherer

Dona Neusa e Cláudia contam sobre o dia de trabalho

usar o mesmo uniforme verde e branco por um dia. Engraçado ver isso por aqui, até porque estamos relativamente perto do estádio do Corinthians, rival absoluto do time. O ônibus para por alguns segundos e alguém sobe vagarosamente, escondendo o rosto. O senhor, vestido com as mesmas cores das camisas que lotam o bairro, não tem o olho direito e carrega uma criança no colo. Aparentemente, sua deficiência física não o impede de se locomover. Ele entra, passa pela catraca e senta perto da outra criança que já chorou lá no começo da viagem. Agora sim, finalmente chegamos perto do grande muro branco do cemitério da Saudade. “É nessa rua aqui que minha irmã mora. Vira ali naquela ruazinha, aí é só descer que já tá na frente do portão dela”, disse a senhora dos coolers sobre a parente novamente. Então ela não mora dentro do cemitério, como havia ficado subentendido. É apenas perto. Que alívio.

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Uma hora e trinta de viagem. Para chegar ao destino ainda faltam 20 minutos. O tempo passa e as pessoas também. Após duas longas horas, ônibus chega ao final do trajeto. Adentramos o bairro do Itaim. Paulista, não Bibi. Até aqui, o cenário sofreu diversas alterações desde a partida do Terminal Pedro II. O ponto final não é em um lugar coberto, seguro e com garantia de que outro ônibus sairá em ‘x’ minutos. É no meio da rua. No Google Maps, estamos a uma hora de distância do metrô Artur Alvim, o mais próximo para ir de ônibus. Descemos. Estamos no meio de uma rua movimentada, no ponto que não é estruturado como os da região central da cidade. É só um bloco de madeira indicando que aqui os motoristas devem parar. Fica em uma calçada que tem cheiro de pastel. E era só domingo de manhã. À frente, além da família que vem em nossa direção e veste a blusa

acima do umbigo e o short curtinho, tem uma moradia popular do CDHU. Na calçada da frente há apenas um muro cinza com pichações que abriga o outro ponto. “Como vamos embora daqui?”, é só o que nos perguntamos neste momento. Do outro lado da rua, um casal troca carinhos e beijos enquanto espera a condução. Agora estamos sozinhas e nem o pastel de feira continua sendo um atrativo. A longa espera por um ônibus para voltar ao metrô tornou-se uma ideia angustiante ao ver o senhor que começou a nos observar bem lá na esquina. Por via das dúvidas, olhando para um lado e para outro, atravessamos e o casal aos beijos apaixonados foi interrompido. A única explicação que deram? Voltar ao mesmo ponto e esperar: “É domingo, lembrem-se. Se essa aí [van que vai sentido metrô da linha vermelha] nunca vem durante a semana, imagina hoje”. Mas ela veio. Chegou após vinte minutos. Subimos, e o senhor que estava na esquina também. Ele só queria uma carona. Foi então que, a caminho de casa, percebemos que aquelas janelas de vidro, naquele momento, haviam se tornado a nossa própria televisão (como aconteceu com aqueles primeiros passageiros que haviam saído do Terminal Pedro II). Ali, naquelas ruas, ficaram a dona Neusa (que acabou indo direto para sua própria casa e não passou na irmã para dar um “oi”), a dona Cláudia (que ia encontrar a nora para preparar o trabalho do dia seguinte), o palmeirense sem um olho (que alguma horas depois perderia o título para o time rival), as crianças que choraram (e gritaram), a senhora que contou o dinheiro (e conseguiu passar na catraca com as moedas contadas uma a uma), as pessoas que só bocejaram durante o trajeto, o cobrador (que insistiu em falar sobre o primo Bodão) e o motorista, que atravessa quatro vezes ao dia a cidade, em uma viagem que dura duas horas e rende histórias como a que você acabou de ler.


O Espírito Santo veste jeans Deisi Gois e Rafaela Frigério

“Eu vi uma perna crescer”, ele testemunha enquanto agita a mão direita vestida por uma aliança de prata de aparência pesada, fazendo-a reluzir em meio ao zum-zumzum do café lotado. O dedo indicador – aquele mesmo que há pouco surrupiava o chantilly transbordando de sua bebida – apontava vez ou outra para o alto, num gesto simbólico da manifestação do Espírito Santo. Gabriel Namorato é um jovem estudante de Publicidade e Propaganda e coordena o setor de comunicação do Dunamis Pockets, segmento do movimento cristão internacional de missões universitárias presentes em mais de 180 centros de ensino. Segundo ele, a palavra do “bom pai” chega a 20 mil pessoas todas as semanas por meio dos encontros de pregação e adoração. Seu canal no YouTube, onde publica músicas de viés religioso e debates em vídeo acerca de suas crenças e sua conduta, tem treze mil inscritos e soma quase 450 mil visualizações.

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Iniciou sua participação em 2016, após o fim abrupto de um relacionamento de longa data. Relata com boas dosagens de gírias paulistanas incorporadas ao leve sotaque de sua cidade natal, São José dos Campos, seu relacionamento com a fé cristã e com Jesus. É bem humorado e brinca sobre seu passado pouco ortodoxo, mas acredita que desde seu encontro com a espiritualidade sua vida passou a fazer mais sentido. Namorato exibe a roupa que veste enquanto descreve de maneira apaixonada seu envolvimento profissional com o movimento cristão. “Não tenho cara de missionário”, diverte-se. Começou sua carreira na agência do ramo publicitário Big Wave Media; de cultura cristã, é ela quem comanda a comunicação do Dunamis. Hoje, Gabriel executa um trabalho integral no Dunamis Pockets, onde realiza a função pastoral de liderança dos grupos junto às universidades associadas e auxilia na produção do programa semanal online C.A.M.P.U.S. “Tudo é lícito para você, mas nem tudo te convêm”.


Gabriel cita a passagem de Coríntios 6:12. Ele afirma que deixou de beber e fumar – não por uma imposição da religião, mas por uma compreensão de que essas não eram coisas que o edificavam. “Hoje em dia a minha vida é agregar o amor de Jesus”, ele narra de braços cruzados sobre a mesa. Gênesis e o (quase) novo testamento De acordo com a própria organização, o Dunamis Pockets está presente em 85 cidades. Em um evento que teve encontros durante uma semana inteira na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o Pockets Week, reuniram cerca de dois mil jovens. “Diziam ser impossível ter Deus dentro da universidade, um lugar de drogas e experimentação”, pondera um dos missionários durante sua apresentação do Dunamis Pockets no vão livre de um edifício dedicado à pesquisa do grafeno, o MackGraphe. Por volta das 18h, a multidão vibra e gritos de aleluia são ouvidos da plateia emocionada. A história da criação do Pockets é contada com toques de fábula durante os encontros. Reza a lenda que o idealizador Felipe Borges ouviu um pedido do Espírito Santo durante uma aula da faculdade para orar pelo irmão de sua professora, depois pediu uma sala para encontros e estudos bíblicos e o resto é história. Igor Siracusa, parte da liderança do Dunamis, conta a anedota para uma plateia atenta com toques de humor e com a malandragem das gírias paulistanas, mas que pouco se diferenciam dos canais evangélicos que vemos em nossa televisão. Deus cura e utiliza seus missionários para executar seus trabalhos – e é ovacionado por mais gritos de aleluia ouvidos do público. O próprio Siracusa, o qual conta com um ministério itinerante, relata que curou a perna de um homem durante uma pausa para o surf em uma missão religiosa. Existe sempre uma competição em descobrir quem

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Jovens se reúnem em encontros semanais do Dunamis Pockets na Universidade Mackenzie

operou o milagre mais inacreditável, mas não é possível saber como Deus coroa o funcionário do mês. O Pockets Week é uma espécie de Lollapalooza do movimento. Ele reúne durante uma semana os maiores nomes do movimento para louvores e apresentações musicais. A plateia realmente parece ser o mesmo público frequentador do festival de pop-rock: piercings e tatuagens, surfistas cosmopolitas e outros traços da juventude atual para a qual as instituições tradicionais talvez torcessem o nariz. Se você quer ser tocado por Deus é só se dirigir até a frente durante uma das sessões: membros do Dunamis vão até você enquanto a música entoa sobre o local – mãos para o alto, lágrimas nos olhos, músicas cantadas a plenos pulmões enquanto pulam; a catarse é coletiva. Enquanto observo de soslaio a purgação, duas garotas se aproximam e, uma em cada flanco, tocam meus ombros e costas, sinalizam entre si que estão prontas e começam a sussurrar palavras inaudíveis. Aparentemente, eu estava sendo tocada por Cristo e curada. Pouco se sabe sobre o Dunamis além das informações fornecidas pelos próprios fundadores – seu website se assemelha mais ao portal de uma agência publicitária do que ao de uma instituição religiosa. A história começou em 2008, com o missionário Téo Hayashi, que volta ao Brasil após servir cinco anos como

ministro Kingsley Fletcher Ministries, um vasto conglomerado de atividades evangélicas nos Estados Unidos liderado pelo Dr. Fletcher, coroado rei do Estado de Shai, em Gana. De volta ao Brasil, Téo começa a servir como um dos pastores na Igreja Monte Sião, na qual tornou-se pastor sênior em 2013. Concomitantemente ao início da sua jornada no Monte Sião, iniciou o Movimento Dunamis. O Dunamis se define como um movimento paraeclesiástico, ou seja, uma atividade paralela ao ambiente religioso. Comandado por sangue jovem, tem a pretensão de inserir o evangelho na cultura, principalmente do público adolescente, sem atrelar isso à igreja. Esqueça a caretice à qual as instituições religiosas ficaram marcadas: o Dunamis é descolado, cheio de ginga e prosa, mas, no fundo, reproduz diversos costumes e rituais já presentes nas agremiações mais tradicionais. Junia Hayashi, uma das líderes do movimento e esposa do fundador Téo Hayashi, comanda o Pink Punch, um ministério para mulheres que alega difundir uma visão contemporânea do papel da mulher na sociedade. Os vídeos do ministério divulgados na internet poderiam ser veiculados pelo Canal Off: a missionária defende o equilíbrio “corpo, alma e espírito”, intercalando sua fala sobre Deus com a prática de exercícios físicos. Apesar do ministério feminino, a liderança do Dunamis é esmagadoramente composta por homens.


A filosofia vem a calhar. A geração atual se mostra cada vez menos atraída pelos rituais ao estilo Edir Macedo, por isso a maquiagem do Dunamis vai bem. Ainda mantém os milagres e as adorações a uma entidade superior, porém respeita o novo Deus desta geração – a liberdade de escolha. O objetivo da entidade: despertar essa geração para que eles reproduzam os ensinamentos do seu Cristo e transformem a sociedade a sua volta. Etimologicamente, a palavra Dunamis tem sentido de energia constante. E nada mais energético do que a geração millennial. Para angariar seguidores, o Dunamis organiza uma série de eventos mirando seu público-alvo (existe uma divisão responsável apenas pelos eventos musicais organizados pelos idealizadores). Seguindo o estereótipo de estilo visual e sonoro, as bandas poderiam ser grupos indies brasileiros, mas sem falar de amores não correspondidos, noites de depressão curadas com drogas prescritas ou ilícitas e viagens alucinadas que dão origem a músicas sem sentido – aqui o tema sempre será Jesus e a jornada de fé. Em todas as apresentações a música está presente, uma boa cozinha de baixo e bateria, riffs de guitarra e um vocalista de voz mansa acompanhado pelo coro de jovens que se comportam como se a experiência fosse extra-sensorial. Uma curiosidade surge: para a geração millennial, John Lennon ainda é mais famoso que Jesus Cristo? E é claro que todo movimento precisa de um refúgio em uma fazenda para o treinamento de seus líderes. Bons ou ruins, todos eles preservam essa característica. Em 2014, a instituição adquiriu, por meio de doações de seus fiés, uma propriedade em Pariquera-Açu, a duas horas da capital paulista. Além de contribuir para o Dunamis Farm, os seguidores do grupo podem investir no missionário no qual acreditam na

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jornada, financiando seus estudos e vida missionária.

JOHN LENNON AINDA É MAIS FAMOSO QUE JESUS O testamento contemporâneo Marina Vancini, fotógrafa de 22 anos, é neta do fundador e pastor da Primeira Igreja Unida de São Mateus. “Acho que é da ‘vibe’ da Pentecostal”, ela pondera por alguns segundos, com as pernas cruzadas sobre a cadeira. O cabelo preso em um coque mal feito oculta um traço ou outro de sua expressão, mas ela carrega dois piercings no nariz a prumo que entorta enquanto pensa. Quando questionada sobre o propósito da igreja, ela diz que a religião tem a função de servidão. Ela toca no meu joelho e pergunta, de maneira retórica: mano, do que você precisa? Marina é antiga frequentadora da IBAB, Igreja Batista da Água Branca, que preza o evangelho do cotidiano, engajamento social e possui proposta mais liberal. A jovem explica sua preferência pelos conceitos de bom e ruim em vez dos de certo e errado no tocante a determinação de condutas que permeiam a experiência de cada fiel. Hoje, atende aos encontros na Hillsong Church, Igreja cristã de origem australiana. Com sede única na Vila Olímpia aberta há pouco mais de um ano, o espaço propõe uma experiência extra-sensorial durante o “louvor”, com estímulos auditivos e sonoros. “Parece uma balada, lá. Muito da hora”. “Cada um tem uma caminhada de fé, a Igreja tenta direcionar um propósito para a sua vida”, ela brada enquanto puxa um caderno da mochila. Ao lado de uma

planta arquitetônica rascunhada, Marina desenha um homenzinho de palitos; acima, um quadrado com a denominação “igreja” em letras garrafais e uma flecha até a palavra “fé”. Ela acredita que a fé de cada indivíduo depende das experiência pessoais com suas crenças, condutas e do seu relacionamento com Cristo. “Não existe religião sem fé”, diz, categórica. O apocalipse das tradições Há poucos metros do shopping Iguatemi JK, do Parque do Povo e no quarteirão de uma das mais famosas casas noturnas sertanejas de São Paulo, a Hillsong Church ocupa uma casa de eventos aos domingos com quatro sessões de 90 minutos de duração. Na entrada, um número volumoso de voluntários oferecem balas aos recém-chegados e ofertas de boas vindas. Logo quando cheguei, conheci Bruna. Ela me diz que seus dois filhos estão no espaço dedicado às crianças até 12 anos onde recebem educação bíblica por meio de brincadeiras e gincanas. Bruna, frequentadora do lugar há quatro meses, também conta que sua mãe costuma ir à Igreja Mundial do Poder de Deus, mas nunca teve coragem de acompanhá-la por receio de não se sentir à vontade. Quando os portões foram abertos, a maré de gente faz com que Bruna se perdesse na multidão, mas lá dentro, no grande salão de cadeiras enfileiradas, nos sentamos lado a lado. Esqueça qualquer imagem de uma Igreja que possa vir a sua mente: a Hillsong não era banhada a ouro, mas certamente possuía um altar afortunado. O palco com tela de cinema, as caixas de som potentes e as luzes por todos os lados não seriam capazes de anunciar o evento que estava prestes a começar. Sem aviso prévio, todos estão de pé lançando palmas sincronizadas ao ritmo eletro-pop do vídeo de apresentação da igreja enquanto outros tantos apontam seu celulares


Ceia de “pão e vinho” é servida na Hillsong Church na zona sul de São Paulo

para o palco entre gritos ansiosos pela balada gospel. No canto do “altar”, um DJ comanda a festa. Quando os músicos entram no palco e vestem seus instrumentos, a multidão dança em efervescência. Inicia-se uma contagem regressiva e todos lançam seus braços para o ar. “Vamos adorar o senhor com alegria”, o líder da banda anuncia. As luzes esverdeadas explicitam as letras na ponta da língua da multidão. Bruna avisa que posso encontrar todas as músicas no canal do Spotify da Hillsong Em Português. A informação procede. Em perfeita sincronia e ensaio, Rafael Bitencourt, o pastor Rafa, 35 anos, vocifera louvores enquanto a banda cessa a cantoria, mas não a música: – Te amo, Jesus! Jesus morreu na cruz por todos nós. Por causa de Jesus, somos santos e inculpáveis! O pastor anuncia o momento da ceia e logo voluntários vestindo camisetas com os dizeres “amar a Deus, amar às pessoas” se aproximam com pequenos copos com um líquido cor de vinho e farelos de bolacha cracker. O shot doce do suco de uva sem álcool é celebrado entre gritos de entusiasmo. Enquanto Rafael fala sob um facho de luz, seus companheiros de palco, na penumbra, saúdam sua prece de olhos fechados, punhos no ar e lábios sibilantes. Deus de glória,

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Deus eterno. Bruna, ao meu lado, está de olhos fechados com ambas as mãos sobre o peito. Com vinte minutos de atraso, um homem chega para ocupar o outro lugar ao meu lado e, em poucos minutos, já entra no ritmo da cerimônia, entoando os cortejos à banda. Segundo o pastor, trata-se de uma “atmosfera de fé inexplicável”. Ele enumera os agradecimentos dos fiéis que a Igreja recebeu na última semana – entre as graças alcançadas, uma casa própria, uma promoção no emprego e muitos batismos. Bruna confidencia entre sussurros que, no domingo anterior, houve uma cerimônia especial para consagrar alguns crentes. Pergunto-me como nunca havia ouvido sobre esse lugar, como uma sugestão de uma boate da moda que havia escapado da lista dos meus amigos. Uma contagem de tempo é anunciada pelo pastor: são 60 segundos para cumprimentar aqueles ao seu redor em uma espécie de maratona para conhecer gente nova. “Prazer, eu sou o Luiz”, o homem atrasado toma frente. Ao girar dos calcanhares, é possível perceber que, apesar da maré de jovens distribuindo beijos, abraços e apertos de mão, está ali um salão como daqueles da Universal televisionados durante madrugada –

com dois mil metros quadrados, o espaço tem gente a fugir pelos olhos. Rafa dá lugar ao pastor Pedro, jovem de vinte e poucos anos de cabelos descoloridos. No fundo, a tela de cinema revela as possibilidades para pagar o dízimo, com conta no banco Itaú para transferências bancárias. O menino de nome bíblico informa a possibilidade de se fazer a contribuição no foyer da igreja com cartões de débito e crédito. “Deus faz muito mais com seus 90%”, o pastor vocifera. Sem nenhum Pai Nosso ou Ave Maria, o pastor responsável pela pregação principal da noite invade o palco. Vestido com camiseta e calças justas, seu nome é Mário Rui Boto, 48 anos. Líder da Hillsong Church Portugal, comemora os 14 meses de existência da filial além-mar, quatro na pegada da unidade paulistana. Convida todos a se sentarem, mas antes solicita que cada um dê um high-five – um cumprimento jovem – com cinco companheiros. A pregação da noite tem como tema “Quando Deus parece atrasado”. Com seu indefectível sotaque português, Mário utiliza o bom humor e referências da cultura pop para entoar seu sermão. Sob palavras de encorajamento e saudações do público, o pastor destila uma retórica inquestionável – o poder de convencimento vem dos treinamentos teológicos, mas também de um carisma inerente a sua posição sacerdotal. “Com Deus, uma época de espera não é uma época desperdiçada”. Ao meu redor, muitos anotam as anedotas de Rui Boto no bloco de notas de seus smartphones. Logo percebo que devo ser o novo cordeiro da fazenda, porque, involuntariamente, aceno a cabeça quando todos vibram com as palavras do pastor e, quando a música recomeça, balanço meu corpo para frente e para trás no ritmo melódico. Pareço ter sido contagiada pelo poder divino ou, ao menos, persuadida pela eloquência do evangelho cristão. Então, cada um foi para a sua casa – João 7:53.


Vestibular

ou depressão? Bruna Panzan Vitória Gonçalves

Depois do que aconteceu na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) há pouco mais de um ano, alunos e professores seguem comentando o assunto. Seja em mesas de bar no fim da tarde, conversas entre as aulas, posts em redes sociais ou apenas pensamentos aleatórios ao longo do dia, se tornou comum ouvir e ler comentários sobre as tentativas de suicídio que ocorreram entre os alunos do quarto ano da instituição. Segundo um estudo publicado em 2016 pela Associação Médica Americana que envolveu mais de 129 mil estudantes de mais de 47 países, 27,2% dos alunos de medicina e 28,8% dos médicos residentes revelaram ter depressão ou sintomas da doença. Entre os estudantes, 11,1% relataram ter pensamentos suicidas. Medicina, como é de conhecimento geral, é um curso difícil e exigente, mas quando cursado na USP se

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torna pior ainda. Muitos estudaram anos e anos para estar lá, outros contaram com o fator sorte, ou destino, se preferir, e entraram direto da escola. De um jeito ou de outro, todos se esforçaram para passar no vestibular e estar onde estão. Após a euforia de ser aceito, vem o choque da realidade. Gustavo (que pediu para não ter o sobrenome revelado), 22 anos, diz: “os estudantes, durante o vestibular, já sofrem com uma grande carga de ansiedade, e muitas vezes não encontram neste ambiente o que eles esperavam e com isso vem uma frustração iminente”. Pelo menos seis tentativas de suicídio foram registradas no ano de 2017 na Universidade de São Paulo. Gustavo, além de aluno de medicina, é fundador e participante ativo da Liga contra Ansiedade da USP. Ele quer ajudar e ser ajudado, ouvir e ser ouvido. “Primeiramente, como estudante, não por ser estudante de medicina na USP, não vejo isso como um problema exclusivo deste curso e universidade”, começa a contar, já suspirando, como se


estivesse cansado de falar sobre isso. “Pelo contrário, é um problema que está em todos os ambientes, de trabalho também, até nas relações sociais”. A porcentagem de estudantes universitários com depressão é de 49,1% – quase a metade do número total de estudantes no Brasil. Em âmbito nacional, esse número é de 5,8% entre a população brasileira. Nota-se, então, o problema. “Temos na mídia, recentemente, o caso da USP, que saiu ano passado de tentativas de suicídio, o que trouxe atenção para assuntos como depressão e ansiedade no ambiente de estudo”, continua Gustavo. “Com isso, devemos usar esses exemplos como uma pequena representação do ambiente em que vivemos”. Sua feição se assemelha ao clima de tensão que as tentativas de suicídio trouxeram para uma das melhores universidades brasileiras. Ele continua: “veja bem, essa ansiedade aconteceu comigo e é natural acontecer com todo mundo”, pausa. Gustavo tem estatura mediana, cabelos cor de mel e uma voz melancólica que parece carregar uma vida inteira de conhecimentos e vivências. “Essa falta de noção da realidade e de como as coisas são de fato tem um impacto muito grande nas nossas vidas”, diz ele sobre as expectativas e frustrações do mundo universitário, ao se preparar para a aula tomando um café, como faz todos os dias. “Já utilizei do serviço do Grupo de Assistência Psicológica aos Alunos da faculdade, e isso foi muito bom para manter um nível melhor de saúde mental”, completa. “O apoio da Instituição é essencial, mas falta um maior investimento”. O GRAPAL mencionado por Gustavo foi criado para oferecer suporte confidencial aos alunos que estejam necessitando de acolhimento em saúde mental. Sobre o grupo de ajuda, ele comenta: “a universidade

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conseguiu criar esse serviço pelos psicólogos e psiquiatras disponíveis na mesma, mesmo que a demanda seja maior que a oferta”. Como um aspirante a psiquiatra, Gustavo menciona, de maneira reflexiva, aquilo que acha que deveria acontecer: “A instituição tem que oferecer um maior apoio ao aluno, isso é fato, mas as pessoas também têm que estar mais preparadas para lidar com isso, porque até pouco tempo atrás a depressão era tida como um desvio de conduta e caráter, uma fraqueza, então muita gente escondia isso”. Ele continua: “muita gente de fora também via isso e recriminava, mas isso está mudando hoje, as pessoas têm mais noção de que depressão é uma doença séria e não uma frescura, e que existe tratamento psicoterápico e farmacológico, variando de acordo com a necessidade de cada pessoa e do acesso. É comum pessoas terem acesso a um antidepressivo e não ter acompanhamento com psicólogos”. Depressão, ou transtorno depressivo maior, assim como está no dicionário, é um distúrbio mental caracterizado por tristeza persistente ou perda de interesse em atividades, prejudicando significativamente o dia a dia – no curso de medicina, alguns estudantes afirmam não ter tempo para atividades que não estejam ligadas ao mundo médico, pois as aulas vão das 8h às 18h quase todos os dias. As causas possíveis para a depressão incluem uma combinação de origens biológicas, psicológicas e sociais de angústia. A sensação persistente de tristeza ou perda de interesse que caracteriza a depressão pode levar a uma variedade de sintomas físicos e comportamentais. Estes podem incluir alterações no sono, apetite, nível de energia, concentração, comportamento diário ou autoestima. A depressão também pode ser associada a pensamentos suicidas, assim como visto nos alunos do quarto ano da medicina USP.


Medicina, como é de conhecimento comum, é um curso difícil. Soma-se isso ao fato de seus alunos serem jovens em amadurecimento, enfrentando a entrada numa profissão que tem contato direto com o sofrimento humano. Gustavo complementa: “Isso tudo leva a uma maior predisposição à depressão”. Ao se preparar para mais um dia de aula no ambiente pelo qual tanto lutou, o estudante reflete sobre a imagem perfeita de um sonho realizado, imagem essa que pode ser a própria causa da fragilização de sua saúde mental e de seus colegas. “De um minuto para o outro, você passa a ser médico, a ter um carimbo na mão, e o peso dessa responsabilidade também assusta”. No Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, fundado pelos estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 1913, os alunos se reúnem para discutir diversas questões, o que tornou o local outro campo de debate sobre a saúde mental e emocional. Nas paredes, encontram-se frases e desenhos a tinta feitos pelos próprios alunos. Mensagens de apoio como “Não deixe seu colega sofrer calado”, “Depressão não é frescura” e “Você está realmente bem hoje?” formam um conjunto de reflexões seguido por “Estamos todos juntos”. Os alunos encontram em si mesmos o apoio necessário para continuar tentando e não desistir. “Sentimos constantemente a necessidade de estarmos cem por cento preparados para nos tornarmos médicos bons, mas não temos uma preparação tão impecável oferecida a nós, somos jovens e ainda temos dúvidas que muitas vezes são recebidas com deboche”, desabafa Nádia. O ambiente competitivo também não ajuda. “A competição não acabou no vestibular. Apesar de adultos, alguns de nós ainda temos a necessidade de se mostrar melhores que os outros custe o que custar”,

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reflete Gustavo com as amigas, que concordam com um aceno de cabeça. Gustavo, cujo irmão, Willian, também cursa Medicina na Universidade de São Paulo, fez dois anos de cursinho para conseguir entrar no curso e na faculdade que tanto queria, Nádia fez quatro e Rebecca fez três. Os três concordam que o estresse começou no último ano do ensino médio, em suas primeiras tentativas prestando vestibular. “Não me lembro da última vez que não me senti pressionado, exausto e estressado”, suspira Gustavo. Apesar de intenso, o comentário do colega foi completamente entendido pelas amigas, que aparentavam passar pelo mesmo. “Eu sabia que seria diferente da minha rotina de antes da faculdade, e não esperava que cinco horas de aula ou mais, sem intervalos, me causaria tanto desgaste psicológico, mas causou; e as obrigações não acabam quando você chega em casa e seu dever não é apenas passar em uma prova, mas sim se preparar para ser um bom médico, o que não é pouca responsabilidade”, explica Rebecca.

sim porque é realmente necessário e importante”, lembra Nádia. Após a discussão diária sobre saúde mental, problemas internos da universidade e bate-papo, a turma se despede com um até logo para seus respectivos compromissos dentro da universidade.

“NÃO SOBRA TEMPO, NEM ENERGIA PARA VIDA SOCIAL”

De fato nota-se que esses alunos estão sofrendo por inúmeros motivos e não estão sendo preparados direito para lidar com isso. “É difícil pensar sobre quem tem a responsabilidade de cuidar da saúde mental dos estudantes, mas após algumas reflexões é impossível negar que é papel da instituição analisar e trabalhar a maneira que tratam as situações e os alunos”, reflete Gustavo. Sabe-se que, no leque de distúrbios psicológicos, a depressão é a com maior taxa de eficácia no tratamento. Não é possível afirmar que existe uma cura definitiva, mas com o avanço da psicoterapia e dos medicamentos os sintomas são na maioria das vezes facilmente controlados. Talvez, com o devido acompanhamento, os futuros alunos desse curso tão prestigiado não precisem passar pelos níveis de estresse relatados pelos três amigos.

“Passamos mais de 12 horas por dia consumindo e recebendo informação, e depois disso não sobra tempo nem energia para uma vida social, um descanso, um hobbie, uma atividade física; e sabe-se que não tem como levar uma vida saudável sem pelo menos um desses componentes”, completa Gustavo. “O desgaste psicológico pode também vir do fato de que não somos mantidos aqui todo esse tempo por tortura, mas

Às 19 horas, Gustavo chega na república em que mora com Nádia, uma outra colega de turma e um amigo médico residente. A primeira coisa a ser feita é jogar a mochila no chão, seguido de se jogar na cama. Lá ele fica por no mínimo 30 minutos descansando até decidir o que fará com o resto do dia e com a pouca energia que lhe sobra. O sono é grande, mas ainda são 19 horas. “Tenho que descobrir o que jantar”, diz, antes de abrir um armário na cozinha, tirando um pacote de macarrão instantâneo de dentro. “Hmmm, banquete de galinha caipira”, diz. Após o jantar, vem o tão esperado banho, seguido pelos remédios e novamente – ou finalmente – a cama, para que amanhã possa acordar com um pouco mais de energia que o dia anterior.


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TRÊS VIDAS NAS CARTAS Beatriz Medeiros

E

m uma tarde chuvosa de terça-feira, no seu aniversário de 13 anos, a mãe de Júlia Aguiar trazia um presente para ela, um baralho cigano. Ela não fazia a mínima ideia de que isso iria transformar a vida dela totalmente. Antes era uma menina rebelde, roqueira, gostava de bandas independentes e era totalmente o oposto do seu “eu” de hoje. Júlia conta que levou aquilo como um brinquedo: “eu jogava como se fosse o baralho da sacura”. Sacura é um desenho japonês, que tinha um baralho místico, com

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interpretações da cultura japonesa. Como iniciante ela “treinou” as simbologias e começou a jogar apenas para familiares e amigos mais próximos, que se sentiram abertos a essa nova “experiência”, até porque não sabia se estava fazendo ao certo o uso das cartas, pois tinha apenas lido as instruções que vinham com o baralho e algumas coisas em livros que achava na biblioteca pública. Uma curiosidade de Júlia ao aprender os significados das cartas quando pequena era que ela abria o baralho, criava uma história com os símbolos, fazia os seus próprios signifi-


outras profissões, só que o tarô requer um algo a mais, como por exemplo, uma espiritualidade maior e uma mente aberta para todos os tipos de clientes.

cados e só depois olhava as instruções do baralho, como funcionava o jogo e tudo mais. Desde então, o tarô começou a ganhar uma presença maior na vida dela pelas pessoas que voltavam para dar um feedback do que ela tinha falado, dizendo que ela tinha acertado alguns dados ou “previsões” e ela começou a partir daí. Aos 16 anos, Júlia viu que estava dando certo, então começou a jogar na escola e para os clientes antigos e fieis também, cobrando apenas 35 reais, que com a numerologia, que ela mesma fez, dava 8, o número da prosperidade. Com a ajuda de pessoas que olhavam de fora a futura taróloga, ela foi ganhando outros tipos de baralho e assim foi aprendendo esses outros baralhos, que tinham um significado, às vezes melhor, maior, de outro ângulo ou visão. Aos 18, fez um curso, por conta própria, de runas, que é a arte do uso de alfabetos rúnicos para obter respostas, como um oráculo, com símbolos em pequenas pedras. Ela riscou as próprias runas nas pedras e começou a utilizar juntamente com o tarô, para quem tinha dúvidas específicas e queria obter outras respostas. Agora cobrando 80 reais a consulta, prezando sempre o número 8 na vida dela. Mas também por troca de favores, uma tatuagem por tarô, uma massagem por tarô e assim por diante. A profissão de taróloga é acessível para qualquer um, mas antes de começar a trabalhar, a pessoa tem que aprender, estudar, como todas as

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A história do tarô Ela começa na Europa, mais precisamente na Itália, onde surgiram as primeiras manifestações de um jogo com 78 cartas. Existe, no entanto, um ponto de concordância entre a maior parte dos estudiosos: alguns imaginam que se trataria de alguma manifestação ingênua de “cultura popular” ou de “folclore”. Ao contrário, a teoria das 40 cartas numeradas, bem como as evocações simbólicas dos trunfos, permitem associações surpreendentes

com inúmeras outras linguagens simbólicas. Existem inúmeros tipos de baralhos, denominados em diversas culturas e ao mesmo tempo interligadas entre si, o egípcio, cigano, da natureza, das bruxas etc., e dependendo do tipo, você tem um determinado significado e número de cartas. Ler cartas não pode mais ser confundido com magia, superstição, brincadeira, misticismo, adivinhação ou amarrações. Por isso, o tarólogo é quem interpreta os símbolos das cartas de Tarô para responder perguntas de seus clientes. O começo no telemarketing Aos 20 anos, Júlia entrou em uma empresa de telemarketing de tarô, da qual, por confidencialidade, alega não poder revelar o nome. Ela

jogava para os clientes da empresa, mas também obtinha os seus próprios clientes. Nesse trabalho, o nome dela tinha que ser substituído por um “nome artístico”, então a partir de agora ela será chamada de Jasmin Aradia. Para obter mais e mais clientes, ela acabou conciliando a tecnologia com o seu trabalho. Nos horários livres que Jasmin tinha, ela jogava pelo Whatsapp, que foi uma forma que ela encontrou de ter mais clientes e do cliente não ficar esperando ela ter um horário livre na agenda. Também mandando arquivos por email e redes sociais, tudo em prol da rapidez e da proximidade com os clientes. Hoje em dia ela diz trabalhar somente com Whatsapp. Com a grande demanda de clientes e com os estágios da faculdade de psicologia que ela cursa atualmente, ela fez algumas contas e percebeu que dava para viver somente de tarô, como profissão autônoma, até sua carreira de psicóloga estar estruturada, mas nunca deixando o tarô, sua grande paixão e sua vocação, de lado. Atualmente quase todas as suas consultas estão concentradas no Whatsapp, pela correria do dia a dia e também pela falta de tempo. Jasmin mantém as consultas presenciais somente para os clientes mais antigos, familiares e amigos mais próximos que estão sempre com ela. Agora com média de 70 a 90 clientes por mês, ela concilia a loucura do dia a dia com as consultas e seu curso de psicologia na faculdade.


Além do tarô, Jasmin, uma grande aprendiz de todas as práticas de coisas do mundo místico e religioso, aprendeu e faz numerologia, radiestesia e reiki. E coloca tudo isso em prática de acordo com as características e demandas de cada cliente. Curiosidades na empresa Na empresa onde trabalhou, Jasmin conta como era o dia a dia dos tarólogos. A rotina era normal, como em qualquer operação de telemarketing, com jornada de seis horas por dia, seis dias por semana e folgas apenas aos domingos. A empresa registra os funcionários de acordo com a CLT e todos têm direitos trabalhistas. E os funcionários ganham uma comissão, além do salário fixo de 1.200 reais e a comissão de 10% do valor das ligações. Existem muitos sites que fazem o trabalho que a empresa faz, mas sem um atendimento personalizado. Já na empresa de Jasmin, o trabalho é presencial, com os “oraculistas” em seus boxes individuais.

“COM 11 ANOS PASSOU POR PROBLEMAS DE DEPRESSÃO”

Uma curiosidade da empresa é que ela é de ordem francesa, onde é comum esse tipo de telemarketing. E após dois anos a companhia dá a opção de fazer o home office, mas aqui no Brasil esse método não foi

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implantado ainda. A empresa já tinha os clientes fixos e os tarólogos basicamente ficam aguardando o telefone tocar. E como funcionam essas consultas? Segundo Jasmin, o cliente pode perguntar sobre qualquer questão de sua vida pessoal. Na empresa não há apenas tarô, mas também profissionais que jogam búzios, que mexem com radiestesia, que abrem mapa astral e vários tipos de oráculos. O cliente pagava a consulta por minuto: após dez minutos de “graça”, voltava para a central e ali era feita a cobrança em um pacote mensal, com um tempo determinado para ser utilizado com quantos oraculistas ele deseje falar. O cantinho das tarólogas Cada profissional tem uma sala de acrílico em que todos podem ver o que está acontecendo e qual jogo está sendo praticado. Cada sala tem uma mesa, dois armários pequenos no canto, um computador com fone e microfone para atender as ligações e um abajur para os atendimentos noturnos. Além das salas, no fumódromo, na copa e nos corredores há um monitor com o nome de todos, para ver quem está em atendimento. Jasmin conta que o ideal é que cada atendente fique em sua sala para não perder nenhuma ligação ou cliente. A empresa contava com atendimentos noturnos e trabalhava em um esquema de 24 horas, mas a fraca demanda da madrugada fez com que os donos revisassem esse plantão e retirassem o turno adicional. Além dos clientes que querem jogar cartas e/ou ter outros tipos de atendimento, citados acima, Jasmin conta que tinha muitos clientes ricos, com poder, e todos com muitos com problemas psicológicos, que queriam apenas conversar com alguém e acabavam parando naquele tipo de telemarketing. Seu curso de psicologia, nesses casos, sempre foi de muita utilidade.

Jasmin conheceu grandes amigas e influenciadoras na empresa onde trabalhou. São elas Sandra Bechara e Leonardo Apollo, tarólogos autônomos que, assim como Jasmin, começaram cedo a amar o mundo do tarô. A história de Sandra Bechara Desde pequena ela já gostava e queria participar do mundo dos oráculos. Começou a mergulhar fundo nas pesquisas para se tornar uma profissional da área. Sandra conta que, no começo, jogava para si mesma, e que começou a jogar para fora quando perdeu um ente próximo e querido. Isso fez com que ela se aprofundasse mais e mais nas cartas para tentar descobrir alguma coisa do seu destino. Sandra era da área corporativa e não sabia que sua vida iria mudar radicalmente com o tarô. “Minha professora de tarô sempre dizia que eu iria trabalhar e me sustentar com o tarô, mas eu sempre desacreditei por conta da minha carreira”, conta ela. Aos poucos, quando foi se especializando no tarô, no baralho cigano e na borra de café, tentou ajudar outras pessoas com os seus conhecimentos. Até que o destino acabou fazendo com que ela entrasse no site da empresa e trabalhasse lá, onde está até hoje. Ela lida muito com mulheres, especialmente com aquelas que buscam o autoconhecimento ou querem um companheiro ou companheira. Hoje ela trabalha para uma empresa de tarô, que é a mesma de Jasmin, só que com características pessoais diferentes. Ela diz que depois de 23 anos trabalhando na área financeira, se encontrou como taróloga e no ambiente em que trabalha, onde não há tantas cobranças. A história de Apollo Leonardo Apollo também começou muito cedo com esse amor pelo tarô. Com 11 anos passou por problemas de depressão precoce, e o tarô, segundo ele, o ajudou a retomar a essência perdida com a doença.


Beatriz Medeiros

Jasmin em sua mesa de tarô lendo as cartas

Hoje ele faz faculdade de psicologia. E seu TCC é sobre a ciência do tarô. Leonardo começou a trabalhar de forma autônoma com o tarô, com 15 anos, mas sem muito sucesso, por conta do preconceito em relação à prática, muito associada a mulheres, especialmente as mais velhas. Mas ele batalhou bastante para conquistar seu espaço e começou a atender em domicilio. Ele diz que é necessário um preparo muito grande para ingressar nessa profissão, como todas as outras, mas no tarô há o preparo psicológico, emocional, a forma adequada de passar determinadas informações para

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os clientes e, claro, toda a preparação e estudo das cartas e domínio das mesmas. Para Apollo, o tarô entrou na vida dele como personalidade. Ele conta que de forma autônoma o processo é um pouco mais delicado. Por anos ele teve que conquistar os clientes e assim foi formando a sua agenda fixa de clientes, por indicações, com ajuda de amigos e familiares no boca a boca. Também ajudaram bastante o índice de acertos, a pontualidade e o vínculo emocional com os clientes. Com 18 anos ele entrou na empresa em que trabalha até hoje. Com muitos estudos sobre o tarô, ele também tira cartas por meio

das redes sociais, assim como Jasmin. É um negócio paralelo para ganhar um dinheiro a mais e ter os seus clientes antigos e fieis junto de si. Ele acredita que o tarô é uma bênção e um demônio ao mesmo tempo, e diz que o praticante deve tomar cuidado para não cair na mesmice, ter cuidado com o que fala e como interpreta as cartas. O tarô possibilitou que um menino de 20 anos sustente sua família, que uma jovem de 22 anos viva bem com a renda que recebe e que uma mulher de 30 anos sustente sua filha e sua casa somente com as cartas. Também possibilitou que uma dona de casa, desempregada hà vinte anos, tivesse uma profissão.


Júlia Leite

A

escolha da faculdade é uma fase repleta de sentimentos, angústias, desesperos, pressões familiares, ansiedade e muita curiosidade. E em muitos casos, a definição de qual profissão seguir se torna um grande erro. Uma jovem estudante de direito do primeiro semestre de uma universidade particular custa a acreditar que este seja seu caminho para uma carreira profissional extraordinária. Aléxia Souza, com apenas 17 anos, foi obrigada a entrar na faculdade logo após o ensino médio por questões familiares. Com

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QUE CARREIRA SEGUIR?

uma rotina comum a de jovens estudantes de escola pública, chegava em casa na hora do almoço com seu irmão gêmeo e ambos ficavam em casa sem grandes responsabilidades. A mãe, Valdirene, prestou concurso público aos 17 anos e hoje tem uma vida profissional e financeira estável. E sempre quis que Aléxia e seu irmão cursasem o ensino superior. Apesar disso, antes mesmo de a garota terminar o colégio, Valdirene conseguiu que seus filhos fizessem um estágio no Fórum em que trabalha atualmente. Mesmo antes de terminarem o período de estágio, Aléxia já sentia a pressão de sua mãe para que ingressasse na universidade, no


própria pesquisar cursos e universidades e chegou à conclusão de que essa seria a melhor formação para ser bem sucedido financeiramente. Após passar no vestibular, Felipe estava mais do que ansioso pelo primeiro semestre de faculdade, sentimento que foi logo jogado no lixo quando percebeu ali não era seu lugar.

curso de direito. Esta menina, que durante muitos anos de sua vida usou aparelho nos dentes, ao longo do tempo foi se interessando pelo campo da odontologia, sobre o qual fala com brilho nos olhos até hoje. Entretanto, resolveu seguir a orientação que, de certa forma, havia sido escolhida pela mãe. Afinal, seria até mais fácil para conseguir um emprego, como diz Valdirene. Hoje a jovem, com menos de seis meses de curso de direito, já trabalha na Corregedoria de São Paulo e sente a felicidade e orgulho de sua mãe, apesar de ela não expressar o mesmo sentimento ao falar sobre isto. Sua rotina é cansativa. Aléxia acorda às oito da manhã para aprontar as coisas para passar o dia. Faz o almoço, porque sua mãe sai para trabalhar, para ela própria e para seu irmão, Enrique. Na correria, arruma os livros da faculdade, sem deixar pra trás, é claro, o mais importante de todos, o Vade Mecum, uma espécie de compilação de leis que todos os alunos de Direito carregam sob o braço. Além da vocação, há um outro enigma a ser desvendado pelos jovens: a questão financeira. Seguir a carreira com a qual se identifica é algo muito positivo, mas há a dúvida sobre ser ou não recompensado financeiramente naquela profissão. Felipe se formou na escola aos 17 anos e já decidiu cursar engenharia mecânica em uma universidade no interior de São Paulo. Ele, que não sabia para onde ir durante o ensino médio, decidiu por conta

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O caminho certo As dificuldades de um curso de exatas fizeram com que Felipe se visse em um beco sem saída. Ele disse a si mesmo que havia a necessidade de mudar aquele caminho que tinha decido traçar, e foi então que trancou a faculdade no meio do semestre e decidiu voltar para a casa de seus

pais, dizendo que no meio do ano prestaria outros vestibulares. Chegou a procurar psicólogos e fez alguns testes vocacionais para que pudesse se encontrar em algo que realmente correspondesse aos seus anseios, não apenas em sua vida financeira. Felipe vive hoje com mais tranquilidade: ele se achou no curso de pedagogia e, após algum tempo, diz que não se vê atuando em outro campo. Sua rotina é puxada, e não faz muito tempo que seus pais decidiram mudar-se para Atibaia, no interior do estado de São Paulo. Porém, antes disso, a matrícula na faculdade na grande São Paulo já tinha sido feita, e ele mesmo se convenceu de que não mudaria novamente. Ganhou um carro para que tudo ficasse mais fácil e prático, já está até estagiando em uma escola próxima da faculdade, e vai e volta todos os dias para a cidade em que mora com os pais atualmente. Ele conta sua história e se orgulha de ver que está cada vez mais

próximo de uma conquista profissional e acadêmica. A tomada de decisão A decisão sobre qual profissão seguir é um grande peso nas costas dos jovens estudantes, Mas ingressar com pouca idade no na universidade também tem seus pontos positivos. Entre eles, perceber que aquele curso não é o ideal e partir para outro, ou fazer cursos técnicos simultaneamente à faculdade, cursar o que gosta e depois ir para uma segunda graduação... Enfim, a mudança de gostos e opiniões é uma constante nos dias de hoje. O Portal Educacional realizou uma pesquisa que indicou que 54% dos estudantes do último ano do ensino médio ainda não decidiram qual carreira seguir. O maior foco dos jovens é o processo de estudos para passar no vestibular, mas pensar no que cursar na faculdade não faz parte do processo de formação acadêmica. A idealização de alguns cursos específicos, como engenharia naval (para quem gosta de velejar), medicina (para quem gosta de estudar muito) ou administração (para quem não sabe o que fazer na faculdade) são justificativas sem base ou fundamento, e como esta é uma grande decisão, escolhas equivocadas fazem parte do maior índice de desistência dos cursos superiores. Atualmente, cerca de 40% de estudantes se encaixam nesse quesito, segundo o Portal


Educacional. A escolha perfeita Manuella se diz muito “pé no chão” sobre as decisões que toma em sua vida, e com sua carreira profissional não foi diferente. Aos 21 anos, 2018 já é seu quarto ano de cursinho focado na área de medicina, com uma vida escolar cheia de notas acima de oito e com diversos cursos extracurriculares, Ela enche toda a família de orgulho. Passou sua vida em um colégio particular na zona leste da cidade de São Paulo sempre sabendo que seu destino profissional era ser médica, e até hoje não desistiu. Ela acorda às cinco da manhã todos os dias, muito antes do horário em que seus pais levantam para trabalhar, se arruma para que às 5h30 esteja saindo de casa e indo para o ponto de ônibus com o destino final para o metrô. Mas por que sair de casa tão cedo? Segundo ela, a sua sala do cursinho tem mais de 300 alunos, então ela precisa chegar cedo para conseguir um bom lugar e assim prestar atenção na aula e se dedicar totalmente. O seu dia é basicamente estudar: a aula começa às sete da manhã e acaba às 12h30. Como o curso é voltado para passar em vestibulares de medicina, as aulas são mais intensas. Ao terminar o estudo no período da manhã, Manuella sai para almoçar com alguns amigos. Algumas vezes leva marmita, em outras prefere comer em algum restaurante nos arredores do cursinho. A segunda parte do dia da estudante é basicamente a mesma coisa. Mais aulas, fisica, química, biologia, gramática e por aí vai. Às 18h30 acabam as aulas do cursinho, mas a jovem ainda fica até por volta de 22h na sala de estudos para rever todos os conceitos vistos naquele dia e ainda desenvolver os exercícios das matérias. Assim, logo após um longo dia, Manuella volta para casa pelo mesmo percurso, anda até a estação de metrô mais próxima, desce perto de sua casa e seu pai a busca, de carro. Os finais de semana também

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são voltados totalmente para o estudo. Quando Manuella não passa o sábado todo dentro da sala de estudos do cursinho, está em casa, dentro do seu quarto, refazendo exercícios e aplicando conceitos. Ela também assiste a muitas videoaulas na internet, e diz que é um ótimo auxílio quando algum conteúdo ficou vago durante a explicação do professor. Aos domingos ela reserva o almoço para passar um tempo com a família, mas isso não dura muito. Logo após almoçar, fica algumas horas com seus familiares e já volta para sua escrivaninha de madeira, repleta de livros e cadernos, e mergulha no estudo novamente. Indecisão é uma palavra frequente no vocabulário dos jovens que irão ingressar na faculdade. Além de todas as questões já discutidas, existe um outro elemento que causa dúvidas nos estudantes, pois atualmente o tempo é feito de mudanças rápidas e inesperadas, ou seja, há profissões que hoje estão em grande ascensão mas que daqui há alguns anos não significarão nada. Existe também o fato de que algumas profissões na verdade nem

“PORTANTO, A UNIVERSIDADE NÃO DEVE SER O ANELO DE TODO ESTUDANTE” existem, cargos no mercado de trabalho que serão desenvolvidos ao longo do tempo, conforme essas mesmas mudanças forem acontecendo. A vocação profissional Maria Rosa Moreira, 38 anos, é orientadora vocacional e já lançou alguns livros sobre carreira profissional e comportamento. Ao começar a falar sobre a difícil decisão da escolha da carreira profissional, Maria fez uso de uma palavra de grande valor na hora da escolha, o autoconhecimento. Ela disse que afirma com todas as letras

que o primeiro passo a ser dados por estes jovens, acertadamente, é se conhecer, “O jovem deve se perguntar: ‘em que eu sou bom? E, mesmo sendo bom, é isso que quero fazer pelo resto da existência?. Essa carreira atende ao meu propósito de vida? O que eu valorizo: autorrealização, fama, prestígio, poder, dinheiro?”. Ao longo de sua carreira profissional, a orientadora já ouviu diversos casos e todos com suas únicas características mas que, de alguma maneira, se conectam. “Nem sempre a carreira que conduz à autorrealização caminha paralelamente à valorização social ou ao retorno financeiro”, é a frase que Maria diz mais usar para conversar com os estudantes. Ela justifica a utilização destas palavras, e explica que, a melhor escolha é aquela que trará prazer intelectual e autovalorização, já que as profissões se modificam ao longo do tempo, elas mudam de lugar em uma constante, hoje ela pode estar em ascensão, mas daqui há alguns anos ela pode perder totalmente sua visibilidade no mercado profissional. A especialista diz existir uma último critério para tomar esta decisão, o temperamento de uma pessoa, “Existem quatro temperamentos universais. No Brasil, o temperamento predominante na população encaminha as pessoas, naturalmente, para áreas técnicas e empreendedorismo. Portanto, a universidade não deve ser o anelo de todo estudante”. Os vinte e poucos Ana Luiza tem 22 anos e está no seguno curso da graduação. Sempre foi uma pessoa muito ativa, desde pequena tinha compromissos todos os dias, desde aulas de inglês e natação até cursos técnicos. A rotina desta jovem não está muito diferente nos dias de hoje. A correria é até maior do que quando era mais nova, afinal, o dia começa 5h20 para ela. Formada em administração, Ana trabalha em um escritório na Faria Lima, porém mora no Ipiranga,


Gabrielle Lambert

“DESDE QUANDO EU TINHA 15 ANOS SABIA QUE MEU LUGAR NÃO ERA ALI. EU SEMPRE QUIS MORAR AQUI”

Física e matemática sendo estudadas ao mesmo tempo

então o dia precisa começar cedo para ela. Na correria de sair de casa antes das seis horas da manhã para que seja possível chegar ao trabalho até 07h30, mas sua jornada profissional só se inica às 8h. Ela diz que gosta de chegar mais cedo, só pelo simples fato de adiantar o trabalho deixado no dia anterior. A correria só para na hora do almoço, 12h. Ela tem uma hora e meia para comer e descansar um pouco. “Eu tenho ansiedade, o fato de eu ter sido muito ativa toda a minha vida me tornou uma pessoa hiperativa e ansiosa, por isso não ligo de viver nessa correria, é o que me move na verdade”, diz a administradora. Logo após esse pequeno

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intervalo, Ana volta para o escritório e continua com seu trabalho. O horário do seu expediente é até às 17h. Depois de dar a hora finalizar o dia, ela na verdade termina apenas uma parte de seu dia. Um pouco mais de uma hora depois de sair do seu local de trabalho começa sua segunda jornada. Ela não passa em casa, deixa tudo dentro do carro para não perder tempo. As segundas e quartas-feiras ela vai para academia e faz algumas aulas em específico, como pilates e dança, segundo ela “A atividade física renova suas energias, apesar de ser cansativo, é uma maneira de aliviar todo o estresse acumulado durante o dia”. No final, ela chega em casa, toma sua banho e descansa

para o dia seguinte. O curso escolhido como segunda graduação foi filsofia. Apesar de não parecer que há matérias em comum, o curso de administração ajudou a eliminar algumas matérias nesta segunda faculdade, sendo assim, não são todos os dias em que Ana precisa ir para a universidade. Terça, quinta e sexta são os dias ela precisa ir para assistir às aulas. “Meus pais moram no interior de São Paulo e desde quando eu tinha uns 15 anos sabia que ali não era o meu lugar. Eu sempre quis morar aqui”. A estudante mora na grande São Paulo desde que começou sua primeira faculdade. O motivo de morar na zona sul é porque a casa é da sua família, mas é próxima ai metrô e, portanto, não tinha dificuldades para ir e vir. Aos sábados, acorda cedo e vai para o curso de línguas. Ana é formada em inglês e espanhol e agora faz francês em uma escola perto da sua casa. Logo depois, ela almoça, pega o carro e vai até sua cidade natal, visita seus pais a cada 15 dias. “Eu gosto daqui, de sair com meus amigos, ir pro bar, relaxar, dar umas boas risadas, mas não abro mão de estar com a minha família, é saudade mesmo”, diz Ana Luiza. Os finais de semana, são para o descanso da correria da semana, mas também para estudar o conteúdo da faculdade.


EMPREENDER NÃO EMPREENDER É SÓ PARA NÃO GENTE É SÓ PARA GENTE GRANDE

Gabriela Berman e Mariana Melro

L

etícia Vaz, uma loira de cabelos curtos com apenas 21 anos de idade, já conquistou 58 mil seguidores na conta da sua própria marca de roupa, a LV Store. Além disso, na última coleção alcançou, em dois dias, 7 mil pedidos em seu site de e-commerce. A morena de olhos castanhos Rafaella Torneri, também com 21 anosw, é uma das sócias da loja de roupa Guardaroba. A marca tem mais de 30 mil seguidores e já é reconhecida entre as influenciadoras digitais. A.L.U.F, marca da ruiva belenense Ana Luisa Fernandes, de 22 anos, conta com uma proposta diferente. Suas peças são feitas a mão e suas vendas são feitas exclusivamente pelo Instagram. O site, por enquanto, é apenas ilustrativo, mas a tendência é transformá-lo em um e-commerce. Dentre os 1,1 mil jovens brasileiros consultados por um estudo feito pela Fundação Estudar, foi constatado que 69,8% pensam em abrir o próprio negócio, enquanto 8,8% já são empreendedores.

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“Lembro que a primeira peça que fiz foi um cropped, ou blusa curta Estava muito em alta, mas não tinha no Brasil, só nos EUA”, diz Letícia. Em um sábado comum, daqueles que ela costumava trabalhar na confecção de roupas infantis de sua mãe, ela passou a manhã pensando na roupa ideal para ir em uma festa à noite com as amigas enquanto manuseava cortes de tecidos. “Quer saber, vou fazer um cropped para usar esta noite”. Ela conta com entusiasmo e orgulho que usou de molde a própria blusa que vestia, tirou as medidas e costurou na overlock (tipo de máquina que, além da costura, faz também o acabamento), porque não dominava a costura na máquina reta. Para a surpresa da empreendedora, o cropped fez tanto sucesso entre os convidados da festa que naquele momento ela se viu tomada de encomendas da blusa que, até então, era despretensiosa. Ela não tinha, à época, noção de que seu negócio começava ali. Letícia mostra a peça confeccionada. Era uma blusa curta e básica, e em meio a risadas conta que havia sido costurada sem muito acaba-


Estoque Guardaroba

mento. Ela olha para o cropped que segura e depois para arara de roupas de sua atual coleção e não esconde a satisfação com a sua evolução. “Eu sempre sonhei em ter uma marca, mas nunca uma marca de roupa, sabia desde criança que queria ter meu próprio negócio. Sempre fui o tipo de pessoa que vendia tudo o que podia”, diz Rafaella Torneri. Enquanto falava que montava bijuterias e em período de festas juninas fazia pipocas para vender no prédio em que morava, sorria e olhava fixamente um ponto como se estivesse voltando a viver aquele tempo. Com esse espírito empreendedor, a jovem e sua irmã, uma das três donas da marca, começaram a vender produtos da Avon, já que sempre queriam estar nesse meio de vendas. Contudo, até aquele momento aquilo não era algo totalmente satisfatório para as irmãs. Ainda na escola, Rafaella, com a sua melhor amiga, a terceira sócia da Guardaroba, tiveram a ideia de comprar camisetas e revendê-las. “Começamos a comprar e revender bem na época em que estourou o Instagram e todo mundo começou a usar. Assim fizemos um perfil para mostrar as peças que estávamos vendendo”, explicou Rafaella, enquanto respondia alguns e-mails referentes a marca. A dona da A.L.U.F, Ana Luisa, não esconde que sua vontade sempre foi empreender: “Sempre quis liderar minhas ideias e tenho muitas, a marca não foi algo que planejei exatamente no tempo em que ela nasceu, mas já tinha

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Leticia e seus funcionários na LV

planos de criá-la no futuro”. Como qualquer jovem, Ana tinha várias indecisões quanto à sua carreira, mas a que sempre rodeava seus pensamentos era de se tornar estilista. Enquanto explicava seus desejos profissionais quando mais nova, afirmou, com tom sarcástico: “Com o tempo fui achando que não era isso que eu queria, mas olha eu aqui hoje”. A A.L.U.F surgiu de seu trabalho de conclusão de curso. Naquele momento a empreendedora conseguiu organizar tudo com que queria trabalhar, o objeto de estudo, a forma de utilizar os materiais e a imagem da marca. Ela ressalta ainda que o resultado veio após muito esforço e trabalho. Sobre o nome da LV Store, não há segredo algum, pois ele remete às iniciais de Leticia Vaz. O sobrenome Torneri, de Rafaella, não esconde sua descendência italiana. Guardaroba (guarda-roupa em italiano) foi a ideia que as donas da loja tiveram para nomear a marca. A sigla ALUF, escolha do nome da marca de Ana Luisa, é tão autoral quanto a confecção de suas peças, que são costuradas a mão por ela mesma. A dona da LV Store nasceu em São Paulo, mas aos oito anos mudou-se para Bragança Paulista. Essa mudança foi fruto de uma decisão de seus pais, que buscavam mais segurança para ela e seus irmãos. Mas a garota ainda sonhava em fazer faculdade em São Paulo, precisamente o curso de Jornalismo na Instituição Cásper Líbero. Ela lembra que quando passeava pela Avenida Paulista aos

cinco anos e se deparava com o prédio da TV Gazeta, onde fica a sede da universidade, e já tinha a certeza que estudaria ali. Leticia conquistou esse sonho de menina, mas um pouco mais tarde ele teve que ser rompido. Com a criação da marca, o crescimento da LV Store fez com que a jovem abrisse mão da sua faculdade para se dedicar de corpo e alma ao seu empreendimento. Nascida e crescida na cidade de São Paulo, Rafaella mora na zona norte da capital. Como desde criança a jovem sempre almejou administrar e ser dona do seu próprio negócio, nunca teve dúvidas do curso que faria na faculdade: Administração de Empresas. Esse era um curso que, para ela, unia e sustentava todos os requisitos para alcançar seu objetivo. A morena optou pela Faculdade Getúlio Vargas, que em sua opinião era a melhor e a mais reconhecida na área. Começou a estudar no período matutino, mas por conta da alta demanda e compromissos da Guardaroba em horário comercial, decidiu transferir suas aulas para a noite. Ana Luisa mora hoje em São Paulo, mas já passou por outros estados. Nasceu em Belém do Pará, onde morou até os três anos. Em seguida, mudou-se para Niterói, no Rio de Janeiro. Lá foi criada e viveu até os seus 17 anos. Com o objetivo de construir uma nova vida, decidiu residir em São Paulo, onde se encontram maiores oportunidades de estudo. E foi nessa cidade que optou por fazer o curso de Design de Moda


na Fundação (FAAP).

Alvares

Penteado

Rotina Às seis da manhã toca o despertador de Leticia e a primeira coisa que a loira faz, ainda na cama, é checar suas redes sociais pessoais e da loja. Uma hora mais tarde, Rafaella acorda, toma seu café da manhã e vai praticar exercício físico. Às sete horas, Ana Luisa desperta, olha seus e-mails e os responde para adiantar e resolver algumas pendências do dia anterior. Quando o dia de Letícia é corrido, repleto de tarefas com inúmeras demandas da marca, a jovem dorme em um quarto que construiu dentro de escritório da loja. Quando dorme em casa procura chegar ao trabalho o mais cedo possível. Depois de tomar seu café da manhã, pega o seu carro e ao som de músicas animadas percorre uma distância de 5 quilômetros até a sede da LV Store. Pela manhã responde os e-mails, checa as encomendas que precisam ser levadas ao correio e, junto com sua auxiliar, pega as caixas pretas com slogan branco da LV Store e embala as peças. Entre esses afazeres, Letícia conversa, brinca e dá risada com as funcionárias da marca. Elas demonstram serem íntimas umas das outras, o que faz o ambiente em que elas trabalham ser mais harmonioso e leve. Depois de um treino intenso, a tendência do dia de Rafaella é ser ainda mais agitado. Às dez da manhã a empreendedora vai com sua irmã ao Brás, lugar em São Paulo onde existe um vasto comércio de itens de costura, para comprar os tecidos das confecções. Ela perde tempo no trânsito da cidade, o que altera um pouco seu humor, mas tenta se distrair dentro do carro enquanto conversa com a sua irmã sobre ideias de novas modelagens. Ela costuma demorar aproximadamente duas horas para resolver essa parte dos tecidos, depois vai para o escritório da Guardaroba, que também fica na Zona Norte da cidade, a três minutos de distância de sua casa. Lá Rafaella

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almoça e permanece até o horário de sua aula. A ALUF tem a proposta de confeccionar as roupas e os acessórios artesanalmente. Na parte da manhã, Ana Luisa faz cerâmicas para compor suas peças e testar novas modelagens nos manequins espalhados pelo espaço onde exerce seu trabalho. Além disso, no período matutino, a ruiva faz reuniões com o pessoal da comunicação e do desenvolvimento para pautar novas metas, solucionar problemas e pensar em melhorias. À tarde, Letícia aprova as novas modelagens que foram costuradas, organiza o estoque e responde mais e-mails. Ela não sossega enquanto não vê o andamento das tarefas do dia tendo êxito. Anda de um lado para o outro, atende o telefone, liga para fornecedores, conversa com os funcionários, digita em seu notebook, posta nas redes sociais da marca e aprova as peças que terminaram de ser costuradas. É perceptível na postura de Letícia o seu cansaço, mas isso não interfere na qualidade e no gosto que faz o seu trabalho.

ACREDITO NA ROUPA COMO UM OBJETO, UMA ESCULTURA Depois que Rafaella almoça, já tem uma agenda programada a ser seguida. Faz posts publicitários para as redes sociais da marca, encomenda os sacos de tecido especialmente desenvolvidos para embalagens da Guardaroba e responder e-mails. Ela conversa muito com as suas sócias

e as três debatem sobre todas as responsabilidades que envolvem a marca. Juntas aprovam modelagem, tecido, caimento e preços. Rafaella é a mais centrada de todas e, na forma como se expressa, demonstra ter os pés no chão. Ana aproveita a parte da tarde para focar no calendário, planejamentos e eventos. Ela se preocupa com cada detalhe, com cada compromisso, procura ser extremamente pontual, já que afirma se aborrecer com atrasos. É conhecida entre os que trabalham com ela na A.L.U.F como uma pessoa sistemática. Enquanto organiza as planilhas, responde mensagens no Instagram, anota inspirações e conversa com a área do financeiro. No fim do dia, pesquisa tendências, folheia revistas de moda e finaliza algumas cerâmicas que ficaram secando. Enquanto Letícia se preocupa em produzir peças com modelagens mais complexas e estilizadas, em lançar coleções com peças e tecidos como cropped e lurex, que estão em alta, Rafaella desenvolve roupas atemporais, que podem ser usadas sempre, independentemente da tendência atual. A ideia é fazer peças básicas, para que todo tipo de mulher possa usar. Elas variam entre cores preto e o branco, dessa forma a criatividade para a composição do look pode ser diferenciado. Já Ana Luisa aposta em uma confecção com tons pastel. Suas peças são feitas utilizando técnicas como tear, tricô e feltragem. “Acredito na roupa como objeto, em uma escultura, em tecido vestível que nasce de um desejo criativo como forma de autoterapia, agregando um significado ao corpo. Um objeto feito de materiais que buscam o menor impacto negativo ambiental e social, feito 100% a partir de fornecedores brasileiros”. As Peças Para a produção das roupas da LV Store, Letícia conta que se inspira em blogueiras que segue no Instagram,


Mariana Melro

Sala principal do escritório da marca Guardaroba

especialmente as de fora do Brasil. A loira mostra pela rede social da marca quais são as seguidoras que ela acompanha dia e noite, ao mesmo tempo os likes nas fotos de looks da confecção bombam. “Eu vejo sites, revistas, internet e acabo abstraindo isso para me inspirar. É meio absurdo, mas enquanto sonho tenho ideias de novas peças e para mim a única explicação é que como eu convivo tanto nesse universo, eu sempre estou buscando novos conceitos e principalmente sem perder a minha originalidade”, explica a dona do e-commerce LV Store. Na Guardaroba as ideias surgem em conjunto entre as sócias e elas só se concretizam se forem do gosto de todas. Além do que a Rafaella vê nas redes sociais, ela e as donas da marca buscam se inspirar de outras maneiras. “A maioria das ideias que temos acontece em viagens”, diz a empreendedora. O painel de fotos que compõe uma das paredes do escritório mostra os inúmeros lugares que a morena já visitou. “Estamos

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sempre explorando novos países e nos inspiramos nas lojas internacionais que conhecemos. Eu viajo muito, principalmente nas férias, sempre que dá faço intercâmbio também, e é nesses momentos que vamos pensando em novas confecções. A gente é bem ligada à moda e às tendências internacionais”. Em contrapartida, Ana Luisa busca outras finalidades em suas ideias para a A.L.U.F. Simbiose entre arte, psicologia e moda: é assim que a belenense procura se inspirar para a produção de suas peças. “Temos conceitos abstratos ligados a sentimentos e sensações, e principalmente o trabalho de arteterapia da Nise da Silveira, uma psiquiatra brasileira. É nesses segmentos que as inspirações surgem para criação dos modelos”, conta a jovem com erudição. São 10 funcionários entre 40 e 45 anos que Letícia comanda no escritório da marca, incluindo cortadeira, costureira, atendente,

embalador e estoquista. A casa em que a jovem fez a sede da LV é dividida em alguns setores. Na sala principal existem quatro máquinas de costura que permanecem ligadas a todo vapor o dia inteiro. Outro cômodo interessante é a sala onde ficam os estoques das peças, que são organizadas em prateleiras de aramados em colunas de uma a cinco e fileiras com as letras de A a J para facilitar a procura. Rafaella optou por um espaço mais compacto, já que apenas ela e as outras sócias ficam no escritório. Como as meninas não tinham noção de modelagem, de costura e dessa parte de desenvolvimento das peças, elas terceirizam esse processo do trabalho. Rafaella não nega o suporte e a ajuda de seus pais. “Minha mãe sempre que precisa vai ao escritório para ajudar a embrulhar os pedidos. Como é publicitária, faz algumas artes para o site ou para posts publicitários. Meu pai trabalha ao lado de uma agência dos Correios, então todos os dias ele envia para nós as encomendas para nossas clientes”. A A.L.U.F conta com fornecedores dos materiais que ela utiliza para desenvolver suas peças, mas é a Ana quem produz toda a parte criativa. Ela desenha, busca os melhores tecidos e cria a modelagem. Nos últimos meses encontrou pessoas nas quais confia para cuidar da parte de marketing e atendimento ao cliente. Apesar de todos os êxitos que as garotas tiveram e as conquistas que ainda estão tendo com o empreendimento, passaram por dificuldades por serem jovens para enfrentar tantas responsabilidades. Leticia perdeu 10 quilos com a loucura da loja. Rafaella e suas sócias sofreram para conseguir entender esse universo das confecções e Ana teve que ir atrás de fornecedores inúmeras vezes até achar quem as ajudassem exatamente do jeito que queria. Mas as três iniciativas seguem ativas. E as empreendedoras mostram que é possível tocar seus negócios em tempos de crise. E com maturidade de gente grande.


REVIRAVOLTAS EM CAMPO Alan Mendes e Nicholas Montini

O gol. Quase aos 48 minutos do primeiro tempo, Tréllez invade a área de Cássio, chuta cruzado e vê a bola sobrar para o camisa 7 do São Paulo Futebol Clube, Nenê, chegar de trás e tomar a frente do zagueiro. Por alguns instantes, pela tensão e expectativa, é quase possível ouvir a respiração de cada um dos 43 mil torcedores que foram ao Morumbi naquela tarde de domingo. Uma respiração em específico: a de Matheus Bosco, torcedor apaixonado do clube que parou de cantar por alguns raros segundos para observar o restante da jogada. Tudo parecia em câmera lenta, o goleiro caído no chão desesperado para se levantar, a bola desfilando até a entrada da área e os dois jogadores rivais correndo para ver quem alcançava primeiro a redonda. A tensão não era simplesmente por ser um clássico contra o Corinthians em uma semifinal de campeonato paulista. Era muito mais do que isso. Era a expectativa do torcedor tricolor em vencer um clássico contra o Timão após 20 anos de tabu sem ganhar em mata-mata. Além disso, esse

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era o quarto clássico do ano. Em todos os outros três o São Paulo saiu como derrotado. Sem contar os 12 anos de seca do clube sem ganhar um paulistão e outros 11 sem chegar a uma final do campeonato. Não era qualquer jogo. Matheus sabia disso. Duas horas e meia antes de começar a partida ele já se preparava, e de nada vive o torcedor de futebol se não for por suas superstições pré, pós e durante o jogo. A camisa e cueca da sorte já estavam separadas, assim como o cereal e o achocolatado toddy colocados na caneca do clube. É imprescindível que esses itens estejam prontos e, caso não estejam, com certeza a culpa de uma eventual derrota será a falta dos mesmos. Quando Nenê finalmente alcança a bola e acerta uma chapa nela, estufando a rede do Corinthians, a euforia toma conta do estádio. Uma chuva de bebidas começa a cair, um mar de gente pulando, se abraçando, gritando e comemorando aquele momento que faz tudo valer a pena, todas as dificuldades de acesso, a camisa da sorte suada que nem foi lavada no dia anterior ao jogo, toda a tensão vivida


minutos antes na partida e, claro, o calor. Fazia um calor de quase 30 graus no Morumbi. Minutos antes de adentrar o estádio, Matheus não resistiu e utilizou a torneira localizada na rampa de acesso à arquibancada para molhar seu chapéu e refrescar a cabeça. A água escorria pelo seu rosto e molhava a gola de sua camisa. O torcedor tem um mantra ao subir para as arquibancadas: bater com as duas mãos em uma barra de concreto e só depois ir para o lugar onde assiste todos os jogos do São Paulo. Não importa o resultado da partida, Matheus sempre bate suas mãos no concreto, e vai continuar fazendo isso até não pisar mais no Estádio do Morumbi. Mesmo tendo molhado o boné e o pescoço antes do início do jogo, Matheus decide comprar um copo de água mineral por 5 reais. Um preço alto, mas que no momento era imprescindível para combater o forte calor e hidratar a garganta após as cantorias. Divide a bebida com seu irmão Leonardo, o “Leo Tricolor”, que desde pequeno vai aos jogos do São Paulo no Morumbi e agora, com 14 anos, pretende viajar para outras cidades com seu irmão mais velho para sentir a emoção de ser “visitante” em um jogo de futebol. Primeiro tempo com poucas chances criadas, um cruzamento ou outro de ambos os times que fazem Matheus prender a respiração. Até que o gol, marcado no finalzinho da primeira etapa por Nenê, alivia toda a tensão que havia no rosto suado e fechado dos torcedores. A alegria e os cantos tomam conta do estádio. A festa tricolor tinha começado. O segundo tempo se inicia com muita agonia e pouca unha por parte de Matheus, que não parava de roer seus dedos um minuto sequer. Bola para cá, bola para lá e nenhuma chance muito clara para ambos os times. O tempo passa. O sol de quase 30 graus começa a perder força, assim como os cânticos da torcida do São

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Paulo, que estava mais apreensiva do que nunca. Os técnicos começam a fazer alterações para buscar um melhor resultado na partida, mas pelo ritmo lento dos jogadores em campo, o placar de 1 x 0 do primeiro tempo a favor dos são-paulinos não ia mudar. Cada segundo era interminável, era notória a desconfiança da torcida tricolor com o placar mínimo. Matheus deixa de roer unha e voltar a cantar, apoiando o time do coração em um dos momentos mais decisivos do jogo. O cronômetro marcava 35 do segundo tempo e esse últimos 10 minutos custariam a eternidade para cada torcedor presente no Morumbi – todos da equipe anfitriã, devido à restrição de torcidas adversárias em clássicos realizados em São Paulo. Chutões para todos os lados. A defesa do São Paulo se doando ao máximo para o rival não estragar a festa da torcida são-paulina, que se mostrou muito bipolar durante toda a partida. Em alguns momentos do jogo, dava a impressão que o barulho vindo da arquibancada ecoava por todo a Zona Sul de SP, mas com toda a pressão e importância da partida, as vezes os são-paulinos ficavam mais contidos, apenas olhando para o lindo céu azul que começava a escurecer. Em alguns momentos era possível perceber o pedido de ajuda aos céus do torcedor tricolor. De repente, a Torcida Independente explode e começa a cantar o hino do São Paulo faltando cinco minutos para terminar o jogo. Todo o restante do estádio acompanha a organizada e o Morumbi começa a tremer. Parecia final de Copa do Mundo, a energia de Matheus contagiou todos em volta. Era algo inacreditável. E tudo deu certo para lado tricolor. Fim de jogo. Vitória do São Paulo por 1 x 0 sobre o Corinthians no primeiro jogo da semifinal do Campeonato Paulista. O estádio começa a esvaziar, mas a força vindo do fundo da alma dos torcedores do

São Paulo para continuar cantando e provocando o Corinthians nos corredores e arredores do Morumbi era inesgotável. É incrível como mesmo após cantar e pular por 96 minutos, o torcedor, entusiasmado com o resultado, puxa forças da alma para continuar cantando no caminho de casa. Se não tinha voz, agora canta. Se não tinha pernas, agora pula. Matheus inicia o seu trajeto para casa depois de um dos jogos mais marcantes de sua vida. Antes de andar por toda Avenida Giovanni Gronchi, umas das principais vias de acesso e saída do Estádio Cícero Pompeu de Toledo, decide comprar uma pizza de 10 reais logo na saída do portão 6, metade muçarela e metade calabresa. O preço condizia com o visual e o sabor da pizza. Testemunhamos o sabor não muito agradável do queijo e da carne de porco. Por isso, Matheus decidiu não comer alguns pedaços para evitar um possível problema do


estômago. Após a parada para saciar a fome, Matheus espera qualquer ônibus que o deixe perto da estação de metrô Faria Lima, umas das mais acessíveis para quem vai ao ou vem do Morumbi, uma vez que a estação que fica aproximadamente a 500 metros do estádio são-paulino está atrasada e prejudica o acesso dos torcedores. A volta para casa é uma longa jornada na vida de quem frequenta o estádio. Com exceção dos moradores do bairro, todos aqueles que vão ao Cícero Pompeu de Toledo têm outra partida voltando para casa. Dessa vez contra o cansaço e a preguiça. O jogo em Itaquera A torcida chega ao estádio empolgada. Os mais eufóricos cercam Itaquera cantando e batendo palmas. Os mais contidos estalam os dedos e mordem os lábios. Os mais religiosos batem no peito e rezam para São Jorge. Mas todos, sem exceção, gritam o famoso “Vai Corinthians”. A organizada “Gaviões da Fiel” surge de uma só vez, com todos os integrantes cantando ao mesmo tempo. Uma maneira de impor respeito e mostrar para todo o estádio que eles chegaram. A partir daí a festa começa de verdade. O torcedor comum faz bonito pela paixão, pela emoção. A organizada faz bonito com baterias, assovios, palmas e coreografias ao mesmo tempo. Não foi treinado. É a quantidade de jogos que esses mesmo torcedores comparecem juntos que dá o entrosamento necessário para que voz e movimento não percam a sincronia. O jogo começa e o bandeirão sobe. Nada se pode ver nos primeiros 5 minutos de jogo. Tudo pela beleza do espetáculo e das arquibancadas. O barulho é ensurdecedor. Talvez pela acústica das novas arenas, o som da torcida percorre um mesmo caminho por todos os lados, cujo o fim é o gramado da Arena Corinthians. É diferente. Obviamente que

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a paixão do torcedor são-paulino é a mesma que a do torcedor corintiano. Mas o fiel torcedor tende a demonstrar muito mais seus sentimentos durante a partida. Gritos de “Vai, Corinthians”, pulos de ansiedade, xingamentos por lances bobos e claros para arbitragem (apenas para não ficar calado) movem o torcedor. Gabriel Mileu e João Paulo Greco são mais dois loucos do bando (como os corintianos gostam de se chamar). Mas talvez sejam loucos mesmo. Os dois foram em nada mais, nada menos que todos os jogos do time como mandante no campeonato. Talvez expondo dessa maneira, não mostre exatamente o tamanho da loucura desses jovens. O “Timão”, contando com esse jogo, foi mandante em oito jogos (no Pacaembu e na Arena Corinthians) e disputou outras três partidas no estádio Paulo Machado de Carvalho (Pacaembu) como visitante. Mileu e João foram nessas 11 partidas, sendo que em duas como infiltrados na torcida do Santos. Ninguém segurava a empolgação dos meninos. Tiraram a camisa, balançaram, gritaram, pularam e ficaram roucos. Segundo eles, “é tudo pelo Corinthians, cada torcedor importa”. O jogo só acaba quando o juiz apita A vantagem do São Paulo para a partida da volta, em Itaquera, na Zona Leste de SP, não era grande, mas justa. Apenas 1 a 0 para uma equipe que nunca ganhou no estádio do Corinthians deixava o torcedor são-paulino com a esperança de levar a decisão pelas penalidades, já aceitando o fato de que o Tricolor levaria um gol, pelo menos. Mas o futebol não é uma ciência exata, e o sentimento muda constantemente durante uma mesma partida. Quando o relógio da Arena Corinthians encostou nos 47 do segundo tempo e o placar do jogo continuava 0 a 0, era o fiel torcedor corintiano que precisava de um

milagre. Era possível encontrar alguns “fiéis” se dirigindo para a saída do estádio, talvez não acreditando na equipe. Mas qualquer bola parada no fim faz o torcedor voltar para a cadeira e acreditar. Mas, novamente, o jogo só acaba quando o juiz apita. Talvez esse último lance da partida represente muito bem o que o futebol é para o brasileiro. Além de tática, técnica, amor e rivalidade, o futebol é esperança, é acreditar até o fim. Quando o chute de Clayson rebateu em Jucilei e decolou para a linha de fundo, o cenário estava muito claro. Não importava quantas vezes Arboleda, Jucilei e Militão tenham afastado o perigo durante os 90 minutos de jogo, essa era a bola mais importante de todas. As armas corintianas estavam bem claras, os zagueiros Balbuena e Pedro Henrique, sempre muito fortes na bola aérea, já se ajeitavam entre os defensores tricolores e, para um time não tão alto quanto o do Timão, eles tinham atenção redobrada. Ao contrário do que normalmente acontece, a torcida não ficou em silêncio, mas também não cantavam a uma só voz. Era um misto de incentivos, cantorias, palmas e rezas para o último lance do jogo. O mesmo Clayson que chutou a bola da origem do escanteio correu para cobrá-lo. Não havia muito tempo no relógio, então a preparação para a cobrança foi feita rapidamente. O baixinho ajeitou a redonda, olhou para a área e soltou o cruzamento. A bola não foi muito longe, faltavam alguns metros para chegar nos grandões corintianos que na área se encontravam, mas felizmente para uns e infelizmente para outros, o tiro foi certeiro. Rodriguinho, com 1,74m de altura, subiu no meio de todos os grandalhões e com uma cabeçada certeira fez o gol da reviravolta corintiana. A bola quicou no gramado e morreu na bochecha da rede, sem nenhuma chance para o goleiro Sidão.


Arquivo pessoal: Gabriel Mileu

“CADA TORCEDOR IMPORTA”

Mileu e João durante o intervalo da partida

O agregado estava empatado, e a partida seria decidida nos pênaltis. Haja coração! Não existe torcedor no mundo que fique tranquilo nas penalidades. A ansiedade pela cobrança e, principalmente, a eternidade que demora a batida dos jogadores faz o coração sair pela boca. Cássio (1,95m), goleiro do Corinthians, e Sidão (1,89m), goleiro do São Paulo, não carregam tanto peso nas costas. Se salvarem seus respectivos times, serão heróis. Se não pegarem nada, não serão linchados como os jogadores que perderem as cobranças. Claro que cada goleiro quer levar seu time à final, mas os protagonistas sempre serão os cobradores. Mas não demorou muito para eles aparecerem. Após quatro cobranças, duas de cada equipe, os goleiros já tinham uma defesa para cada um. Isso aumentava a pressão nos próximos batedores e deixava a torcida realmente preocupada.

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A cada bola na rede e a cada defesa do goleiro Cássio a torcida corintiana vibrava como um gol. A tensão era tanta que gritar era a única maneira de aliviar a tensão por pelo menos alguns segundos. Todos os cobradores acertaram após as defesas iniciais dos arqueiros, deixando o placar empatado em 4 a 4. Nesse momento, muitos torcedores colocaram as mãos no rosto. Alguns deixavam uma brecha entre os dedos para assistir ao restante, outros não queriam nem ver. Muitos viraram de costas e vibravam, ou não, a partir da reação dos outros ao seu redor. Nas “cobranças alternadas”, como são chamadas as cobranças a partir do sexto pênalti, o silêncio fazia barulho nas arquibancadas. Danilo, veterano, pegou a bola com uma calma inexplicável. Com uma chapa forte no centro do gol, marcou para a equipe alvinegra, 5 a 4. Era a vez do São Paulo. Liziero, novato, pegou a bola, respirou fundo e ajeitou a bola na marca enquanto o goleiro corintiano

se mantinha em pé bem próximo do cobrador. Nesse instante, Mileu olhou para os céus e fez o sinal da cruz três vezes, apelando para São Jorge e todos as outras entidades divinas. Ele não foi o único. João também estava em um momento mais particular e religioso. Beijava o crucifixo que carrega no peito há anos em todos os jogos, presente de seu já falecido avô. Um chute forte, no canto, mas para um goleiro de seleção de 1,95m, não era inalcançável. Cássio estica o braço direito e com a ponta dos dedos toca na redonda, ela carinhosamente beija o travessão e vai para fora. O Corinthians mais uma vez está na final do campeonato paulista e o Tricolor não consegue, mais uma vez, eliminar o Timão de um mata-mata. O tabu continua. A torcida em êxtase. Todos se abraçam, conhecidos ou não. Uma estátua de São Jorge carregada por um torcedor era acariciada e beijada por todos que passavam por ela e o hino do Corinthians fazia a trilha sonora do momento. A felicidade era tanta que o hino era cantado de olhos fechados, como andar de montanha russa com os olhos vendados. João estava ensandecido, o torcedor se encontrava em três fileiras para frente de onde assistiu toda a partida, abraçando e comemorando com desconhecidos. A volta para casa nem foi sentida. Comentários sobre o jogo e sobre a final contra o Palmeiras faziam o tempo passar voando. Mileu e João fizeram uma pausa para recarregar as energias na rede de fast food McDonald´s na Avenida Higienópolis, perto de suas residências. Seus sorrisos os acompanharam por todo o trajeto.


A DUBLAGEM É UMA ARTE? Thalita felipe de Almeida

A dublagem começou no Brasil em 10 de janeiro de 1937, com as gravações efetuadas pelo estúdio CineLab em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Não eram apenas os atores que ficavam no estúdio de gravação, mas também os radialistas que trabalhavam em equipe no estúdio. Um dos maiores dubladores do Brasil, que acabou iniciando a dublagem brasileira, foi Hebert Richers. Ele começou a aprender cada vez mais sobre a dublagem em Hollywood, visitando os estúdios de seu colega Walt Disney e trazendo

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algumas técnicas da dublagem para o Brasil, mas foi nas décadas de 1940 e 1950 que os filmes começaram a ter o direito de serem redublados. E o crescimento da televisão alavancou a dublagem em filmes, desenhos e seriados. A potiguar Zodja Pereira, de 71 anos, iniciou a sua carreira na teledramaturgia fazendo a personagem Emília, do Sítio do Picapau Amarelo, e tornou-se uma das mais antigas e renomadas dubladoras do Brasil. Ela começou a sua carreira na dublagem por volta de 1978. Nesse período ela não era reconhecida pela dublagem e outros atores também não, pois a técnica não era aceita entre os próprios artistas.


Zodja não gostava da dublagem pois não a via isto como uma arte. “Os artistas gostam de se expor, mas na dublagem não tem como o artista aparecer porque se utiliza apenas a fala por trás de outra pessoa, e além disto um dublador nunca foi reconhecido como um dublador, pois não existe essa profissão, existe apenas um artista que sabe dublar”, diz. Com o passar dos anos ela começou a se apaixonar cada vez mais pela dublagem e perceber o teor artístico do que fazia, porque o profissional tem que fazer uma atuação por meio da voz enquanto dá uma nova vida ao personagem, sem tirar a sua essência. Quando fui ao estúdio, esperava me encontrar a dubladora Andressa Bodê e acabei sendo recepcionada por Zodia, a proprietária do estúdio, uma senhora totalmente alto-astral, baixinha, de cabelos grisalhos, sorriso estampado no rosto e muito receptiva. Naquele momento ela estava resolvendo algumas questões relativas ao seu estúdio. No corredor havia vários cartazes de filmes. Andressa Bodê chega ao estúdio me pedindo desculpas pelo atraso, porém sempre com um sorriso em seu rosto. Pergunto a elas como se sentem na dublagem e ambas dizem que são bastante inseguras, apesar de transparecerem bastante confiança no momento em que estão atuando. É como se elas se transformassem nas personagens. Ambas dizem que é normal sentir insegurança, pois elas não conhecem os personagens que vão fazer e só ficam sabendo do roteiro no momento em que entram no estúdio, e isso acaba gerando um nervosismo inicial. Uma das dificuldades enfrentadas por Zodja desde o início de sua carreira dublando é não ser aceita por alguns dubladores. Por criticar a falta de ética de seus colegas de trabalho, que se gravam no momento em que estão dublando, expondo conteúdos privados como cenas e trechos dublados nas redes sociais antes mesmo de serem divulgados,

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ou apenas postam diversos vídeos dublando um personagem que deve se manter em sigilo até a divulgação do filme, série etc. Zodja foi casada com Gilberto Baroli, que também foi um dublador renomado. Um dos seus filhos, nascido em 21 de junho de 1976, também se tornou um grande dublador. No desenho animado Cavaleiros do Zodíaco, Mãe e filho dublaram personagens da série, que ficou famosa entre os fãs. A dublagem do desenho foi tão bem feita que os dubladores começaram a ficar reconhecidos. Zodja conta como as pessoas começaram a admirar seus trabalhos como dubladores: foi quando, em um evento de anime, vários fãs levaram pôsteres e livros e, ao reconhecê-los como dubladores da série, automaticamente tornaram-se fãs deles, pedindo autógrafos em livros sobre os personagens. A primeira dublagem de Zodja foi em um desenho animado chamado “A Turma do Charlie Brown”. Sua personagem era a Márcia. Ela também dublou personagens em “Machineman”, “Jiraiya”, “O Incrível Ninja” e “Policial de Aço Jiban” (os últimos 3 episódios foram gravados na DuBrasil). A maioria dos personagens foram de séries japonesas. Andressa é uma mulher de pele clara, olhos marcantes e cabelos pretos ondulados. Começamos a conversar sobre como começou o amor pela dublagem e ela me conta que sempre gostou de brincar com a própria voz. Quando era criança dava vozes aos brinquedos que vinham com o Kinder Ovo e fazia diversas apresentações teatrais, utilizando diversas vozes e até mesmo copiando cenas de filmes e desenhos animados que assistia na TV. Quando entrou no estúdio de dublagem pela primeira vez, começou a observar o ambiente: havia um microfone, a bancada, o monitor, os equipamentos técnicos, além das paredes, que eram azuis, amarelas e verdes e o cheiro de lustra-móveis de lavanda. Isso foi diferente de qualquer


desejo, ideia ou pensamento que ela pudesse imaginar, e estar ali, naquele lugar foi extraordinário. Não planejava começar na dublagem naquele momento em que entrou em um estúdio pela primeira vez. O propósito era fazer graduação e se profissionalizar no teatro. A dublagem ficaria para depois de ela se formar. Quando começou a dublar pela primeira vez sentiu uma mistura de sentimentos que foram de medo e alegria. Ao entrar na sala para gravar, percebeu que precisaria deum banco para alcançar o microfone, devido à sua baixa estatura. Quando chegou o momento do “gravando”, seu coração batia com força, a ponto de poder senti-lo em sua garganta. Com o passar do tempo, enfrentou alguns desafios ligados a novos trabalhos, novos colegas e novos diretores. Experiências que, com o tempo e dedicação, passaram a ficar mais leves. Andressa tem um dia bem atarefado. Acorda bem cedo com o seu marido, em seguida vão tomar café da manhã juntos e ela começa a sua rotina de exercícios de concentração, que são efetuados com uma boa leitura. Assiste a algumas videoaulas e logo em seguida começa a organizar a sua agenda, indo depois para alguns estúdios de dublagem. Existem dias em que ela tem aulas para dar, seja de teatro ou de dublagem e, com isso, organiza seu cotidiano e enriquece seu portfólio. Sua voz é tranquila e suave, apesar de ser bastante agitada e ficar sempre movimentando os pés enquanto está sentada na cadeira do estúdio, me mostrando como “funciona” o mundo da dublagem. Tive, com ela, a oportunidade de dublar pela primeira vez. Na hora que comecei a dublar senti um nervosismo leve, amplificado após o “gravando”. Mas Andressa passa tranquilidade e segurança, não deixando de lado o bom humor. Ela descreve alguns personagens que marcaram a sua carreira e destaca que gostou muito

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de dublar a atriz Elle Fanning em “Trambo”. Outra personagem que a marcou foi Tara, do seriado “The Walking Dead”. Dublou essa personagem há muitos anos e diz que é incrível ver o crescimento de Tara na série. Seu primeiro protagonista foi Nicolas, da série animada “Aprendiz de Papai Noel”, que dublou para a Cartoon Network – nesse caso, ela diz que estava no lugar certo e na hora certa para fazer o teste e passar na seleção de dubladores. Seu colega de trabalho é Guilherme Marquez, de 1,74m de altura, olhos e cabelos castanhoescuros, barba bem feita e voz imponente. Ele fala sobre a sua experiência com a dublagem e diz que cresceu acompanhando séries, desenhos e filmes pela TV. Acabou criando um interesse por aquele mundo de vozes e, desde cedo, teve vontade de participar daquilo, mas deixou passar. Depois de adulto o desejo bateu forte de novo, então decidiu ir atrás e conseguiu realizar o seu sonho. Mas dublar, segundo ele, é sempre desafiante porque não se sabe com antecedência o que vai fazer, então tudo é sempre um desafio novo e há pouco tempo para entender e reproduzir em estúdio. Mas o maior desafio mesmo é começar na profissão e se manter. O início é penoso, desgastante, cansativo. Quem persiste e tem talento fica no mercado. Guilherme fala sobre a sua primeira experiência dublando um personagem: “É incrível e apavorante ao mesmo tempo, pois a primeira vez é sempre complicada, não nos encontramos de primeira e não se tem muita noção de estar fazendo o certo. Mas pensar depois “caraca, eu fiz isso, finalmente” é uma sensação maravilhosa”. Existe frustração no ramo da dublagem, como em qualquer outro universo proficcional. Pode ser um trabalho que se queira muito fazer, mas para o qual o dublador não foi escolhido, um trabalho em que se é substituído por qualquer motivo

que seja, um trabalho executado com absoluto carinho, mas não é bem recebido. Guilherme já passou por tudo isso, mas felizmente foram momentos raros nesses 10 anos em que está na dublagem. Para ele, a maior importância que descobriu foi a da acessibilidade. Com as redes sociais, recebe muitas mensagens de fãs de dublagem e as que mais lhe tocaram pessoalmente são as dos deficientes visuais, agradecendo por fazer com que eles consigam acompanhar as séries do momento ou o filme que acabou de ser lançado. Ele acha que essa é a maior importância e responsabilidade da dublagem e, por isso, é obrigatório fazer o trabalho direito sempre. Enquanto tomava o seu café, ele comentou que ser diretor e dublador da mesma série pode ser injusto. Caso uma pessoa deseje dublar aquele personagem em que o diretor esteja dublando ou até mesmo quando um diretor se autodirige pode-se obter algumas falhas na dublagem, pois não há a visão de outra pessoa. Os personagens mais marcantes dublados por Guilherme foram o Ranger Dourado de “Power Rangers Super Samurai”, James Van Der Beek em “CSI Cyber” e Christoph Waltz em “Grandes Olhos”. Cada um desses trabalhos, entre muitos outros, marcou uma fase importante de crescimento profissional. Recentemente ele dirigiu a dublagem da 7ª temporada de Game of Thrones, que foi outro momento incrível de crescimento e realização profissional. Na vida de Guilherme não há rotina. Para ele, cada dia é de um jeito, com trabalho em estúdios diferentes, em horários diferentes, com desafios diferentes, ou dias em que não há nada para fazer. Todos esses dubladores deram aula para a Maria Catarina, uma jovem estudante de jornalismo de cabelos curtos, ondulados e pretos. Cheia de personalidade, ela acabou se formando recentemente no curso de dublagem. Enquanto conversávamos na praça de


alimentação da universidade sobre as experiências que ela teve com a dublagem, seus olhos ficavam maiores e mais iluminados, demonstrando sua paixão pelo mundo da dublagem, do qual agora ela faz parte. Todas as pessoas que desejam se profissionalizar na dublagem precisam ser atores ou atrizes formados, ou seja, é necessário obter o registro profissional e, a partir desse momento, investir nesse ramo. É interessante conhecer a forma como Maria Catarina entrou no caminho da dublagem. Apesar de estar formada, não se considera ainda

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uma dubladora. Ela conhecia muito pouco sobre o mundo das vozes, mas em 2015 fez um curso de locução para jornalistas e aprendeu um pouco sobre dublagem. Isso desencadeou nela a vontade de trabalhar com áudio. Sua mãe, conhecedora de seu interesse por dublagem, foi uma grande incentivadora. A primeira vez que dublou sentiu uma insegurança que a tomou como nunca havia antes, a ponto de travar. Hoje tem muita admiração por essa profissão, porque a pessoa que dubla precisa ser um excelente ator para dublar.

Uma das maiores dificuldades encontradas por ela enquanto tinha as aulas de dublagem era o fato de a pessoa chegar cansada e ter que dublar um personagem extremamente animado. Ela diz que é complicado quando você tem que estar em sincronia com o personagem que está na tela, pois a energia tem que ser a mesma para que o trabalho seja perfeito. Maria Catarina planeja fazer diversos trabalhos e se desenvolver nesse ramo. Futuramente, deseja dublar personagens renomados com base em seu esforço.


DOANDO ALÉM DO POSSÍVEL Vito Santos

Eram oito da noite de uma gelada terça-feira típica do inverno da capital paulista, mas esse ano o frio chegou mais cedo, pois ainda estamos no outono. Aproximava-me de um posto Shell na esquina da Rua Vitorino Carmilo com a Rua Lopes de Oliveira, no bairro de Campos Elíseos, região central de São Paulo. Era ali que havia marcado de encontrar Andrea Plud, organizadora do grupo Anjos da Cidade. No primeiro momento não a encontrei, mas pude conhecer dois “anjos”: Armando Grisi e Marcia Ricco. Ele

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era um participante antigo do grupo e que havia se afastado por problemas de saúde e estava voltando depois de um ano. Quem o trazia de volta era sua amiga Marcia, que participava pela primeira vez. Depois de um tempo chega a pessoa responsável por todo trabalho e organização, Andrea. Ela estava atrasada, tinha passado na casa de uma participante para buscar o alimento que seria entregue nesta noite. Infelizmente a cozinheira da noite não pode ir, mas ela preparou algo especial. Em vez do tradicional arroz, feijão e carne moída entregue pelo grupo toda terça-feira, nesta noite seria macarrão com carne moída, especialidade da casa.


Andrea já havia chegado, mas ainda não poderíamos sair. Apesar de boa parte do grupo estar reunido no ponto de encontro, tínhamos de esperar Cindy Plud, filha da “chefe” e uma espécie de “general” do grupo. Acostumada desde criança com esse mundo de ajudar o próximo, atua com naturalidade e leveza durante o trabalho. Enquanto ela não chegava, os novatos recebiam as informações gerais de como agir durante o trabalho e o que é necessário para conseguir ajudar pessoas de mundos tão distantes. Eu achava que seria apenas entregar o máximo de alimentos possíveis e assim o trabalho estaria bem realizado, mas estava enganado, é preciso mais do que isso. Um dos segredos do sucesso do grupo está no algo a mais: além dos alimentos, roupas e acessórios também entregamos nosso tempo para eles, que muitas vezes acaba sendo tão importante quanto as doações. O atraso não atrapalhou o inicio do trabalho. Enquanto estávamos reunidos encontramos Cinthia, uma ex-moradora de rua transexual e que conseguiu há pouco a guarda de seu filho de cinco anos. Mesmo com um lugar para dormir ela pede ajuda para Andrea e o grupo entrega o primeiro kit da noite: uma marmita de macarrão com carne moída, suco de caixinha, banana e um doce. Conversando com Armando, ele me conta um pouco mais da história da “general”. Ele diz que ela começou a fazer isso há vinte anos. No começo pegava o carro

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do pai escondido, buscava feijoada no restaurante e entregava pela cidade. Mesmo sem estrutura, fazia o que podia para ajudar aqueles que precisavam. Ele continua dizendo que ela nunca viveu no conforto, se doava o máximo para poder ajudar. Depois que criou o hábito e o grupo do “Anjos da cidade”, nada impede que ela vá, mesmo que seja sozinha. A noite passava e nada do terceiro carro que sairia na noite. Já estava tudo separado nos outros dois carros quando finalmente Cindy chega e nos organizamos em uma roda antes de sair. Nessa conversa descobrimos algo que encontramos nos jornais, mas que é difícil de ouvir. Um morador de rua que era frequentemente ajudado pelo grupo faleceu na madrugada de domingo para segunda. Causa da morte: frio. Algo que muitas vezes passa despercebido e que pode ser solucionado com tanta facilidade acaba sendo um dos maiores problemas para quem está nessa situação, principalmente nesta época do ano. A Entrega Após essa notícia, partimos. Entro no carro com mais quatro “anjos”, Andrea no banco do motorista, Armando no banco do passageiro, Fábio no banco de trás ao lado direito, Marcia no meio e eu na esquerda. A primeira parada seria na esquina da Priscila. Encontramos uma senhora que já mora na rua há alguns anos. Com ela existe apenas uma regra: homens não podem se aproximar. A senhora que guarda tudo que é dela embaixo de um saco preto e entra nele para dormir tem suas peculiaridades. Nessa primeira parada eu e todos os homens somos orientados a permanecer no carro enquanto as mulheres realizam o trabalho. Depois desse primeiro momento vamos em direção ao beco, uma rua sem saída, como o próprio nome sugere, em que vivem quatro moradores já conhecidos pelos

frequentadores do Anjos. O primeiro com quem eu tenho contato é o Bahia. Em pouco tempo de conversa já conheço a origem de seu apelido: ele morava em Arraial d´Ajuda, uma praia da Bahia perto de Porto Seguro. Nesse primeiro contato com ele, procuro dar a atenção que descobri ser tão importante. Nesse momento ele conta sobre como surfava quando morava com sua família e as demais coisas que fazia em sua terra. Um pouco depois descubro o motivo de ele estar vivendo nessas condições e tão longe de sua casa: diferenças com seu pai. Após sentir que desapontou seu pai, Bahia decidiu vir para São Paulo por não ter coragem de encarar sua família. Apesar disso, ele parece encarar a vida com otimismo. Enquanto falava com Bahia percebo uma roda de pessoas em volta de outro morador no fim da rua. Estavam todos ouvindo o que Henrique tinha pra dizer. E ele tinha muito a contar. Vindo do Rio de Janeiro, deixou pra trás dois filhos e veio parar na terra da garoa por conta do vício em drogas. Algo estranho para alguém que falava com tanta lucidez e que diz querer deixar a barba crescer por conta do estilo, mesmo morando na rua. Ao longo da conversa a lucidez volta e ele diz que não abandonou os filhos de qualquer jeito na cidade natal. O carioca sabia todas as informações dos filhos e olhava para eles mesmo estando longe. Após saber tanto sobre ele, es-


tava na hora de os Anjos entrarem em ação. Cindy, a filha de Andrea, disse: “Se você quiser, eu te coloco em ônibus agora”. Fernando não acreditou no primeiro momento, mas a “dúvida” não durou mais do que dois segundos. Ele logo aceitou e não pegou nada que tinha em seu canto, apenas se despediu dos colegas de rua e disse que ia encontrar seus filhos de novo. Após isso parte do grupo se separou para cuidar do caso de Fernando enquanto o resto seguia a missão naquela noite. A determinação de Andrea parece ter sido transmitida geneticamente para Cindy. Criada nesse meio das boas ações, ela é uma estudante de direito. Demonstrou tanta qualidade em seu trabalho que assumiu um cargo incomum para alguém de sua idade em uma multinacional. Acontece que não era aquilo que ela queria pra sua vida. Mesmo ganhando três vezes menos do que poderia, decidiu voltar para a ONG que faz trabalhos sociais junto ao grupo dos Anjos. Claro que esse acontecimento encheu sua mãe de orgulho. A noite ainda estava apenas no começo. Ao meu lado estava Carlinhos, mas com ele eu não conseguir ter muito contato, pois o morador de rua não saiu de baixo de sua carroça e percebi que ele tinha muitas dificuldades. Mais para frente descobri que havia pedido para que o grupo pudesse interná-lo em uma clinica de reabilitação. Andrea, do jeito que é, tratou logo de cuidar desse caso. Entramos mais uma vez no carro e seguimos pelas ruas da região central da capital paulista enquanto o frio só aumentava. No caminho, Andrea nos conta uma história enquanto guia o carro em seu trajeto tradicional de toda terça-feira. Há duas semanas ela havia encontrado em senhora que dormia em uma caixa de papelão. Seu nome era Tereza. Quando conversou com ela ficou sabendo que a senhora de 72 anos perdeu o seu cartão de benefício e por isso não

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conseguia retirar o dinheiro que a ajudaria. Andrea disse de prontidão que estava em busca de espaço na sua agenda para resolver a situação dela. Apesar de conversar com os anjos de primeira viagem no caminho, a nossa guia e dona de todo projeto não tira os olhos do caminho, pois a qualquer momento poderia aparecer alguém que precisasse da ajuda naquela fria noite de terça. Isso começa acontecer com certa frequência. Quanto mais mergulhamos na região central de São Paulo, mais observamos que aumenta o número de pessoas que vivem nas ruas e precisam da nossa ajuda. Mas nesses casos mais esporádicos o trabalho tem que ser rápido. Uma ação que se assemelha muito a um “pit-stop” de uma equipe de Fórmula 1. Só que nesse caso não estamos querendo o primeiro lugar no pódio, nossa prioridade é atingir o maior número de pessoas. O trabalho segue quando somos pegos de surpresa com um grito: “quer uma marmita, amigo?”. Sim, era Andrea mais um vez ajudando um homem que passava com a sua carroça. Agimos rápido mais uma vez e seguimos em frente. Enfim entramos em uma rua tranquila, ao fim da qual havia uma caixa embaixo de um poste de iluminação. E lá estava Tereza.

ELA DORMIA EM UMA CAIXA QUE PARECIA UM BERÇO

Os dois carros pararam em frente e começamos a tentar confortar aquela mulher que estava em uma situação inimaginável por muitos. Ela dormia em uma caixa de papelão que parecia um berço. Começamos forrando a parte de baixo da caixa em que ela estava com os cobertores para que ela não sentisse tanto o frio que chegava. Continuamos a cuidar da forte mulher. Kit-higiene, tapa-olhos, marmita, banana, goiaba e roupas de frio. Entregamos tudo que pudesse ajudá-la. Por mais que falássemos com ela, “vira pra cá”, “vem mais aqui”, “quer mais um pouco”, ela entendia tudo, mas em momento algum abriu a boca e disse algo. Como se estivesse envergonhada. Mal sabe dona Tereza que ela merece muito mais. Nesse momento, no vaivém entre o carro e a calçada, pude perceber que um de nós se afasta do grupo. Era Armando Grisi. Mesmo já sendo um frequentador e ter voltado após um ano, casos como o de Tereza ainda comovem o experiente homem. Mas mesmo com toda essa comoção a noite não pode parar, pois ainda havia muitas pessoas na rua para que pudéssemos ajudar a ter pelo menos uma noite mais tranquila de sono. Continuamos. Paramos mais uma vez de forma inesperada. De novo aos gritos de Andrea oferecendo a marmita. Começamos a entregar o que temos quando percebo estamos atraindo a atenção de mais moradores de rua que querem a comida. Entregamos a comida, mas não só isso. Ao longo da noite vou percebendo que quanto mais falamos com eles, mais eles ficam soltos e interagem conosco. Quando entramos no carro Andrea faz mais uma observação. Ela chama a atenção para como eles param onde estão e começam a refeição. É claro, essa é a primeira de muitas refeições de muitos. Mais uma vez no carro, nos aproximávamos da estação de metrô Marechal Deodoro, onde seria a nossa última parada. Ainda havia cerca de vinte marmitas no carro, algumas rou-


Anjos da Cidade amparando um morador de rua

pas e muitas bananas e sucos. Paramos o carro em uma rua paralela, descemos e vamos com os engradados na mão. Só voltaríamos depois que tudo acabasse. Chegando lá era difícil manter a atenção em um ponto, pois diversos moradores se aglomeravam a nossa volta. Logo percebi que não íamos demorar muito. Um pouco afastada do grupo, há uma jovem deitada em sua cama. Vou até ela, entrego uma marmita, suco e um cobertor, ela agradece mas continua com uma aparência de desconforto. Insisto na conversa e ela diz que não consegue se mexer muito, pois havia acabado de passar por uma cirurgia e por isso tinha que ficar parada. Quando retorno para junto do grupo, já não temos quase nada. De minha parte posso falar em todos os sentidos, pois não distribuí apenas alguns itens que havia no carro. A vontade de se doar de corpo e alma

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surge e o trabalho flui naturalmente. Andrea, enfim, pede para que nos reuníssemos e voltássemos para o ponto de encontro, onde iríamos nos despedir e encerrar os trabalhos naquela noite. Afinal, já passava das 11 e meia da noite e muitos tinham que ir embora. Quando chegamos ao ponto de encontro Andrea pede para que o grupo forme uma roda. Ela fala um pouco sobre a noite em que ajudamos, agradece a todos e por fim pede para que cada um resuma em uma palavra a experiência nessa noite. Não conseguia pensar em outra palavra que não fosse “especial”. Armando conta algumas experiências ruins que já viveu com o grupo. “Já houve algumas pessoas que chegaram a ligar para a polícia por falarem que estávamos tumultuando em frente a sua casa”. Ele continuou: “Alguns acham errado esse nosso

trabalho, dizem que estamos incentivando essas pessoas a ficarem na rua, como se elas tivessem escolha”. O número de moradores que vivem nessas condições em São Paulo é um dos maiores problemas da capital paulista. De acordo com o último censo da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, em 2015, há 15.905 pessoas vivendo em condições desumanas na capital do estado. Segundo o mesmo censo, 8.570 vivem em abrigos e 7.335 vivem pelas ruas. Mas se engana quem pensa que aqueles que vivem em abrigos estão em condições melhores. Andrea conta que os abrigos não são preparados como deveria. Para ela o estado faz muito pouco para essas pessoas, e quando faz, não faz direito. Ao final Andrea avisa que Fernando já estava na rodoviária e dali partiria para encontrar seus filhos. Realmente pude perceber que esse trabalho tem impacto na vida das pessoas, seja naquela que recebeu sua marmita e o cobertor ou para Fernando, que tem a chance de recomeçar com a sua família. O fato de o grupo ser dispensado não significava que a noite havia acabado. Ela ainda ia voltar para o beco e ver a situação de Carlinhos, pois tinha que cuidar da internação dele. Andrea realmente não parava nunca. Após um tempo em contato com integrantes do grupo, percebo que a situação de Dona Tereza já havia sido resolvida. Ela conseguiu recuperar o beneficio após a ajuda do grupo e, finalmente, tinha o seu lugar para morar.


O SABOR DE UM REAL Caroline Meyer Diana Cheng

Os relógios da cidade marcam 10h40. O centro de São Paulo ferve, não só pelo tempo ensolarado e seco que marca o fim do verão e o começo do outono, como também pelo movimento nas ruas. A 500 metros do Largo Santa Cecília, um dos 53 restaurantes do Bom Prato, localizado no bairro Campos Elíseos, vibra com a correria dos funcionários e o tilintar dos talheres, compostos apenas por garfos e facas. Colheres? Não tem. Sua distribuição passou a ser controlada porque muitos usuários de drogas se aproveitavam do utensílio para dissolver pedras de crack. Dentro do amplo salão, capaz de abrigar até 169 pessoas, uma conversa ou outra se junta à cacofonia dos pratos sendo raspados, mas só quando rola alguma troca de olhares. E todos olham para baixo, as bocas já abertas para receber a próxima garfada. Em ação há mais de uma década, o Programa Bom Prato foi criado para garantir o sustento básico da população por meio de um prato de comida a um preço acessível. A

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quantidade calórica é uma preocupação à parte: existe um cálculo para que todos os pratos tenham em torno de 1200 calorias – quantidade considerada mínima para sustentar o ser humano. A unidade em Campos Elíseos é uma das três localizadas no centro da capital, que ainda conta com outras dezessete espalhadas por toda a cidade. Apesar das contas públicas do governo sempre estarem na corda bamba, nunca faltou comida para a iniciativa, também muito usada, por sinal, na propaganda eleitoral dos candidatos. No ritmo da comida Em movimentos praticamente orquestrados, os pratos eram servidos em escala fabril. O cronômetro invisível apitava: nove refeições completas montadas por minuto. Num piscar de olhos a comida já estava ali, pronta. Por dia, eram 200 quilos de arroz, 65 de feijão e pelo menos 200 de carne (leia-se: frango, boi, porco


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Caroline Meyer

ou qualquer outro tipo de proteína animal). O número passava da casa dos trezentos se fosse frango. Tal quantidade de alimento resultava em mais de 1.900 refeições servidas em média. O arroz era despejado no prato, assim como uma escumadeira de macarrão, servida logo em seguida. O feijão também fazia parte da saga. Quando esta parecia ter acabado, dois pedaços de frango deslizavam sobre o prato, caindo e espirrando o caldo marrom para além dos limites da bandeja – sempre da cor laranja, que todos conheciam como sendo a da porção maior. Apenas segundos se passaram, e a refeição estava pronta para ser apreciada; ou melhor, simplesmente devorada. A fila não parava de crescer: moradores de rua se misturavam entre trabalhadores e idosos que esperavam ansiosamente para passar pelo portão gradeado do restaurante. Nas mãos, as moedas de um real que pagariam pela refeição do dia. Todos estavam lá pelos mais diversos motivos: uns porque moravam ou trabalhavam por perto, outros pela comodidade. Dona Ilza, mulher de baixo porte, encarava-nos por cima dos óculos pequenos. Meio surda, tinha pouco mais de 60 anos. Tornou-se frequentadora assídua do lugar, já que morava num pequeno apartamento dividido com outras pessoas, o que não deixava muito espaço para cozinhar. Ilza, senhorinha sorridente, menos quando furavam a fila, gostava da comida que o Bom Prato servia, exceto quando tinha dobradinha no cardápio, uma iguaria que, assim como ela, muitos não apreciavam. Questionada sobre os dias da semana em que aparecia para almoçar, Ilza nos respondeu, mantendo a pose: – Quarta-feira eu não venho. É dia de feijoada e eu não posso comer por ordem do médico. Seus óculos escorregavam até a ponta do nariz e o alvoroço no ambiente a impedia de ouvir

Refeitório do restaurante lotado de pessoas durante o almoço

as perguntas, mas não tinha importância: Ilza continuou sorrindo como sempre. De imprevistos se faz a vida Ilza e dona Sônia assemelhavam-se em muitos aspectos. Ambas eram baixinhas e abertas para a conversa logo no primeiro contato visual, com a diferença de que a primeira tinha dificuldade em ouvir e a segunda mancava um pouco, provavelmente por um problema de longo prazo na perna. Sônia era uma cabeça mais baixa do que nós, mas seu queixo se erguia firme e os olhos não vacilavam. Quando parava para conversar com a gente, as manchinhas escuras que contornavam seu rosto se tornavam ainda mais evidentes. A senhora de 59 anos não frequentava o Bom Prato com regularidade. Só quando “o Patrão” a dispensava do trabalho, o que, para surpresa dela, aconteceu nesse dia. – E quando o dinheiro dá, né? – completou. Não era possível saber se Sônia estava fazendo uma piada ou se a moeda realmente faltava em alguns dias. “O Patrão”, dizia ela, era um homem influente, muito próximo dos políticos brasileiros. Estimulada pelo cargo do chefe, dona Sônia não deixaria passar a oportunidade de dar o seu pitaco: – Tanto dinheiro roubado da gente… E ninguém vai preso. Vocês acham que eles vão? Não vão, não!

Quando percebeu que havia atingido seu limite justificado de exaltação, Sônia procurou dar um novo rumo à conversa a fim de poupar o coração agitado. Transformaramse em possíveis diálogos o presente de casamento da sobrinha – um ferro de passar roupa que a idosa pretendia comprar nesse dia –, e a comida do restaurante. O paladar da velha senhora, por mais que estivesse habituado às refeições do Bom Prato, corria para longe de algumas exceções, como a farofa misturada com ovos mexidos, pedaços de linguiça calabresa e alho-poró. A combinação, pelo que Sônia dava a entender, não fazia bem à saúde dela. Sônia era suscetível a convulsões. Tomava remédio todos os dias, embora nem sempre fosse o medicamento ideal. Passava mal com facilidade, informação que não condizia com o bom humor do momento. Foi então que, sem mais nem menos, um dos vinte e dois funcionários da unidade compartilhou conosco a dificuldade da irmã, que também sofria do mesmo problema. O auxiliar-geral do restaurante não pediu licença e muito menos se apresentou. Dona Sônia não parecia aborrecida, já que não via tal atitude como falta de educação. Essas “intromissões” eram comuns. No Bom Prato Campos Elíseos, dispensavam-se cordialidades, pois tudo – até mesmo os afetos – ficava subentendido. Marcos, também auxiliar-


geral do restaurante, encontrava-se concentrado na movimentação, já habitual para ele. Usando uma versão mais simples das máscaras com que os médicos estão sempre trabalhando, abaixada até o queixo para poder respirar melhor o ar, quente e pesado por conta da comida – porém, sempre limpo, surpreendendo a quem pudesse pensar que o local carecia de higiene –, parecia alheio às palavras de Sônia. Bastou a fila andar e nos aproximarmos dele para que sua boca se retorcesse, formando o mais tímido dos sorrisos. Marcos era alto e esguio, dono de um nariz imponente e uma expressão fechada. Vestia branco da cabeça aos pés, assim como os demais auxiliares da unidade. De longe, parecia transmitir uma mensagem clara: “Não me provoque”. Mas bastava puxar conversa com ele para que suas feições se tornassem mais brandas e sua vontade em oferecer ajuda chegasse ao conhecimento de todos. Ao nos cumprimentar com um movimento de cabeça, Marcos conseguiu cuspir um “Olá, estão bem?” e sorrir para a Sônia no meio do processo. Estava prestes a voltar à posição rígida de antes quando viu que o serviço o chamava. Ser auxiliar era assim: ter de correr para endireitar as bandejas, muitas ainda em uso, e resgatar os pães desprezados pelos clientes. Enquanto uns só esperavam para agarrar a bandeja, João, um senhor de 79 anos, limpava seu prato. De postura reta, camisa listrada bem passada e chapéu panamá preto, passava-se por um verdadeiro “gentleman”. Como se lhe estivesse faltando algo para completar o visual, uma pasta transversal tapava o lado direito da barriga. Agora sim se achava bem apresentado. A aparência imaculada não durou muito. Surpreendendo a nós, que escolhemos sentar à sua frente, deixou cair o garfo e pegou um dos ossos do porco – era dia de feijoada –

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com as mãos. Levou o pedaço à boca para que os dentes fizessem o trabalho. De pouquinho em pouquinho, conseguiu raspar toda a carne restante, triturando a pele e engolindo os últimos pelos sobreviventes do animal. Havia grãos de arroz grudados em seus dedos, fato que não o incomodou. João era a prova de que coisas inusitadas sempre aconteciam no Bom Prato. Viúvo havia pouco mais de um ano, o idoso não esperava encontrar uma nova namorada. Mas encontrou. E justo no estabelecimento, em meio ao ritmo frenético característico do serviço criado pelo Governo do Estado de São Paulo, implantado pela primeira vez no ano 2000. Prestes a chegar à casa dos oitenta, João nem titubeou ao ouvir a palavra “casamento”. Pretendia oficializar a relação e se casar pela segunda vez. O que atrasava a concretização do seu desejo era um documento que estava para chegar de Pernambuco. João, como uma boa parcela da humanidade, acreditava em destino. Disse que tudo na vida era uma questão de colocar as decisões nas mãos de Deus. E foi o que fez com a namorada: – Pedi pra Deus escolher. De quatro pretendentes, Ele me escolheu uma. Foi com segurança – e uma dose de orgulho – que João não apenas disse, como também repetiu a mesma frase até se dar por satisfeito. Levantou de um pulo e foi embora, carregando uma bandeja consideravelmente mais leve até os baldes de lixo, onde os ossos recémmanuseados pelo idoso se somariam ao mar de comida despejada. Outra vez mais Sentados num canto, focados em cada garfada do prato que se encontrava na frente deles, estavam João Batista e Luiz Carlos. O primeiro era um senhor de bastante idade; em muito lembrava aqueles personagens dos tempos bíblicos pela barba branca

e comprida que tampava metade do rosto. Seu Batista, como preferia ser chamado, vinha todos os dias para comer. Gostava da comida, mas ressaltou que o bom tempero parecia ser uma peculiaridade da unidade dos Campos Elíseos: – Eu costumava ir na do Parque Dom Pedro e não era gostoso. Tinha muitos moradores de rua também, e eu não gostava disso – salientou o senhor, sem notar que o canto dos fios brancos de sua barba estava sujo do molho vermelho que acompanhava a carne. Bem ao lado de Seu Batista se achava Luiz Carlos – um rapaz de 41 anos, moreno, um pouco calvo e com alguns pelos de barba perdidos pelo rosto. Era gari e trabalhava nas redondezas limpando toda a área perto do Bom Prato, incluindo a Cracolândia e os entornos da Alameda Glete. – Por isso eu almoço e janto aqui. O jantar é melhor porque é menos cheio – comentou o gari, destacando a preferência no momento em que estava prestes a sair da mesa. Diferente de muitos que passavam por ali, Luiz Carlos simplesmente deu de ombros e não quis o suco de frutas, bebida que acompanhava o prato. Também não deu muita bola para a goiaba, que estava sendo servida como sobremesa. – Está verde! – era a reclamação de muitos nesse dia. As frutas, bem como as verduras servidas, vinham de doações do CEAGESP. Carla, supervisora de nutrição da unidade, explicou que, normalmente, os alimentos doados eram aqueles que o banco de alimentos tinha em maior quantidade, por isso não estavam sempre maduros. Jovem, baixinha e morena, Carla possuía cabelos encaracolados que quase nunca apareciam, pois tinham sua rebeldia domada pela touca que todos os funcionários eram obrigados a usar. Recentemente formada pela Uninove, era ela a encarregada da preparação do cardápio,


Diana Cheng

Entrada do Bom Prato Campos Elíseos durante o horário de pico

bem como dos cuidados no manuseio da comida. As folhas que chegavam todo dia eram lavadas em pias profundas, ao passo que a quantidade surpreendente de arroz e feijão era preparada em verdadeiros caldeirões industriais. O caldeirão maior estava ocupado pelo arroz, que podia ser cozinhado de uma só vez. Já a panela média ficava para o preparo do feijão, etapa dividida em dois tempos na qual se fazia hora para o caldo engrossar. De fato, os caldeirões eram as estrelas da cozinha – por isso se encontravam no centro. Amplo e predominantemente branco, o espaço possuía acoplado às paredes um quadro pardo. Nele estavam pregados alguns papéis, plastificados e nãoplastificados, que traziam informações sobre o cardápio mensal do almoço e do jantar da unidade. Este vinha sempre da matriz responsável e sofria modificações diárias de acordo com as doações recebidas. O chão da cozinha era de um piso bege discreto. Achava-se na maior parte do tempo úmido, em muito devido ao vapor que não parava de sair dos caldeirões. Próximo de onde eram cozidos os alimentos, havia um corredor na lateral que levava a uma antessala usada como despensa. O jovem casal Érica e Rômulo também passava diariamente pelo Bom Prato. A aparência bem cuidada escondia

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a realidade dos dois: desempregados, jogaram a sorte ao léu e se tornaram catadores de rua. Governados pela incerteza, eles contavam cada grama de latinha recolhida para garantir a próxima refeição. – Ontem a gente quase não

“ME DÁ UM TROCADO PRA COMER NO BOM PRATO? FALTAM 25 CENTAVOS” jantou – contou a mulher de 41 anos, em um tom melancólico. – A quantidade de alumínio que a gente tinha conseguido só pagava o jantar de um. Foi aí que o Rômulo, para nossa sorte, deu a ideia de catarmos papelão também. Em um tom inconformado, a moça tentava se acostumar com a nova realidade e afirmou que é muito difícil depender de doações para manter a boa higiene:

– Por mais estranho que pareça, a gente toma banho no banheiro de um banco que tem aqui perto. Eles dão uns mil litros. Dá para tomar banho sossegado. Antes de ser uma moradora de rua, Érica trabalhava como atendente de padaria e Rômulo como pedreiro. A padaria onde ela trabalhava fechou e a obra da qual ele fazia parte foi concluída. Estatisticamente falando, Érica e Rômulo são apenas mais duas pessoas que integram os 13,2% de desempregados no estado (dados divulgados pelo IBGE em novembro de 2017). Os dois continuavam procurando trabalho, mas tentaram justificar a falta de sorte: – Ninguém vai querer dar emprego para uma pessoa com roupa rasgada – afirmou a mulher, enquanto segurava a lateral de um moletom velho e esgarçado que possuía um pequeno rasgo destampado pelos remendos nos cantos. Olhares do “submundo” Rostos vistos pelos outros como sem identidade, apenas um conjunto de faces que existem para preencher a nossa visão, povoam o cenário da selva de pedra. Mesmo que possa incomodar, a desigualdade recaída sobre essas pessoas sempre bate na nossa porta. Quando estiver prestes a embarcar em uma viagem, tentando passar uma borracha em toda a realidade que não é visível aos olhos, uma dessas figuras há de tombar por seu caminho, num cruzamento de farol da Avenida Tiradentes em direção ao Terminal Tietê de São Paulo. Ele, um morador de rua, vai parar e dizer: – Me dá um trocado para eu comer no Bom Prato que tem aqui perto. Faltam só vinte e cinco centavos. Então o troco do café tomado há pouco cumprirá uma missão nobre: irá garantir o almoço daquele que vive à sombra da incerteza sobre a próxima refeição.


A FACE OCULTA Gabriela Egea Isabelle Ferreira

DA CONDENAÇÃO

Em um domingo ensolarado propício a um almoço em família no conforto do lar, visitamos um lugar onde a realidade é totalmente oposta. O Centro de Detenção Provisório 1 de Chácara Belém – CDP 1 –, inaugurado em 2000, localiza-se na Grande São Paulo e tem capacidade para 853 pessoas, no entanto, atualmente, abriga 1523, sendo uma das dez unidades que se encontram em situação crítica. Os 41 CDPs que se localizam no Estado estão com 125,97% acima da capacidade permitida. O espaço em frente ao CDP 1 encontrava-se lotado de familiares dos detentos, uniformizados, compondo uma maré de diversas cores, seguindo as restrições de vestimenta propostas pelo Centro. Enquanto a fila avançava, as últimas pessoas entravam em destaque.

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Avistamos duas senhoras com par de sandálias Ipanema. Uma com saia de comprimento até o joelho e uma blusa estampada com flores em tons de vermelho: a aposentada Ana Maria do Carmo, 62 anos. A outra, Lucia Conceição da Silva Gomes, 51 anos, empregada doméstica, vestia calça legging preta e camiseta listrada em laranja, amarelo e branco. Aos prantos ao visitar pela primeira vez a penitenciária, Dona Ana, com olhos fundos e emocionalmente esgotada, constantemente se perguntava por que Deus havia colocado seu filho, Pedro Lucas do Carmo, conhecido como Alemão na cadeia, de 26 anos – que aguardava audiência por estelionatário – na situação presente.


“114 e 115, entra” Com tom seco, o agente penitenciário pronuncia a senha para Lucia e Dona Ana entrarem para a visita. Começa então o processo do cadastro. Donaw Ana, ainda desolada, passa pela primeira fila e entrega o RG com as mãos trêmulas para a identificação. Lucia, como de costume, cumprimenta Paulo e Zé e já agiliza seu processo, seguindo direto para a terceira fila, revista dos alimentos. Aguardando na segunda fila, e agora sem companhia, Dona Ana é chamada para tirar a foto e gravar a digital para a realização da carteira de visitas e assim segue para a terceira fila, onde passa tranquilamente mas se desespera ao saber que a última espera seria para a revista íntima, e então, com a voz baixa, diz: “Nunca achei que precisaria de autorização e hora marcada pra abraçar meu filho”. Três salas disponíveis, portas com madeira escura velha e no meio uma identificação falhada

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dos números. Lucia já havia passado enquanto Dona Ana segue para a terceira porta e pede privacidade para que possa ver seu filho. O julgamento Com 407.309 número de vagas nas penitenciárias e 686.594 presos, o Brasil ostenta o título de terceira maior população carcerária do mundo. Sendo 55% jovens de 18 a 29 anos, e grande parte residindo no estado de São Paulo. Seiscentos e oitenta e seis mil. Esse é o número que o Brasil carrega de população carcerária em 2018. Seiscentos e oitenta e seis mil. Esse é o número de pessoas por quem os familiares sofrem. Seiscentos e oitenta e seis mil. Esse é o número de mães que são condenadas com seus filhos. Dando continuidade à nossa visita, agora sem Dona Ana ou Lucia, nos encaminharam para o detector de metais. Sem celulares e apenas com um bloco de notas, seguimos para um corredor de parede azul escuro, luzes falhas e grades enferrujadas com uma distância padronizada entre elas, em que cada uma das entradas encaminha-se para um raio – quadra onde os presos passam o intervalo e esperam as visitas. Ao entrar no terceiro raio, onde ocorrem as visitas, Dona Ana, aos prantos, abraçava seu filho e Lucia, conformada, conversava com outros familiares e mães, das quais nos apresentou Sônia Lucia dos Santos, que visitava seu filho Erik, 21 anos – conhecido na cadeia como Boy –, preso por formação de quadrilha, aliciamento de menor, assalto a mão armada e flagrante. Sônia, dona de casa, de 55 anos, estava com cabelo preso, blusa lisa azul, calça moletom e chinelos havaianas. Timidamente, contava sobre seu filho e afirmava a vergonha que sentia por estar lá e todo o preconceito que vivia entre seus familiares e amigos por Erik estar preso.

Fotos: Gabriela Egea

Já Lucia, habituada à rotina de seu filho, Marcio Gomes, conhecido como Cabrito, de 19 anos – cumprindo sua pena há um ano por assalto a mão armada, tráfico de drogas e flagrante – consolava Dona Ana dizendo que Deus tinha algo maior preparado para a família dela e ainda abençoaria muito a vida depois de todo o sofrimento percorrido. Em todo o país, há cerca de 686 mil presos sob a vigilância de 98 mil agentes penitenciários, tendo em média sete detentos para cada agente. De acordo com levantamento feito pelo portal G1, 19 estados brasileiros descumprem limite recomendado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Os dados também apontam que, em cinco anos, pelo menos 594 agentes ficaram feridos nas prisões; nove morreram. Carcereiros reclamam, constantemente, da falta de investimentos e relatam o medo rotineiro.

Cartas enviadas por Erik para a família

Cartão de Visitas à penitenciária

Depósitos de dívidas feitas por Erik

Faixada da CDP Chácara Belém 2


De acordo com o ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por conta da dificuldade no mercado de trabalho e pelo grande preconceito de que são vítimas, sete a cada dez ex-detentos acabam retornando ao crime. O Brasil, por sinal, tem uma das maiores taxas de reincidência do mundo, chegando a 70%. “Não sei onde eu errei” Anotando seu número celular no bloco de notas, Sônia se despediu para que concluísse a visitação e com o tempo restrito. Por ser um momento de intimidade entre os presos e visitantes, os guardas pediram para que nos retirássemos. “Sempre fico pensando no que poderia ter feito para melhorar isso, será que não fui presente na vida dele? Será que dei muita liberdade pra ele? Mimei demais? Não sei onde eu errei.”, lamentava Sônia, enchendo os olhos de lágrimas ao falar sobre Erik. O rapaz concluiu seus estudos com 17 anos e, por indecisão na escolha do curso superior, optou por trabalhar na empresa de seu pai, mas saía com grande frequência para beber e ficar com os amigos mesmo durante a semana, o que desagradava a Sônia, que, apesar disso, nunca negou a liberdade ao seu filho. Em uma noite como as outras, Erik, aos 20 anos, avisou que sairia com os amigos novamente, mas não retornou para casa durante três dias seguidos, algo que gerou preocupação em seus pais. Ao pensar que havia ocorrido um acidente, seu pai, Juarez Marques, parou em alguns postos policiais localizados na rodovia Dutra, procurando alguma ocorrência com o carro de seu filho, mas sem sucesso, optando por acionar o seguro do carro como roubo, para alertar a polícia. Minutos depois do ocorrido, seus pais foram avisados de que o carro havia passado por um radar e concederam permissão para que os policiais parassem o veículo. Pouco

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antes de serem abordados, duas mulheres que estavam no ponto de ônibus fizeram sinal para a viatura e se queixaram de que tinham acabado de ser assaltadas pelo mesmo carro onde se encontravam Erik, Mateus, de 16 anos, Leonardo, 17 e Nicolas, 18. Sônia e Juarez encontram seu filho no local onde foram abordados pelos policiais, que haviam explicado a situação, e ao ver Erik sentado no chão e algemado, Sonia ficou incrédula e nos contou como foi o primeiro diálogo com o seu filho após o ocorrido, destacando que essa seria uma conversa que jamais esquecerá. – Por que fez isso comigo meu filho? – Desculpa, mamãe. – Por que assaltou essas moças? Isso foi por drogas? – Desculpa, mãe. Pai, tira ela daqui. – disse Erik olhando fixamente para o seu pai e logo em seguida sendo puxado e carregado para o camburão pelos policiais. Ao chegar à delegacia, apreenderam o veículo e arma – de brinquedo – usada durante o assalto e liberaram os dois menores de idade que participaram do crime, enquanto o outro indivíduo – que já estava cumprindo pena e saiu para o indulto de Natal) – culpou Erik de todo o ocorrido, sendo sentenciado a oito anos de prisão. Estudos comprovam que atualmente, no sistema prisional do país, a cada três presos, dois são negros –mulheres ou homens – compondo um total de 67% de população negra no atual cenário carcerário, com 31% de brancos e 1% de etnia amarela. Quanto ao grau de escolaridade das pessoas privadas de liberdade, grande parte possui ensino fundamental incompleto, totalizando 53%, 12% têm o fundamental completo, 11% o ensino médio incompleto, 7% o médio completo e 6% são analfabetos. Os tipos mais comuns de crimes são roubo qualificado, roubo simples, furto qualificado, homicídio qualificado, homicídio

simples, violência doméstica, tráfico de drogas, associação para o tráfico e tráfico internacional de drogas. Respiro da esperança No mesmo dia em que Erik havia sido detido, Sônia passou a noite em claro na delegacia esperando o que iria acontecer com seu filho, e com esperança de que todo o terror iria ser esclarecido e finalizado e ele voltaria para casa, assim como havia ocorrido com os dois menores de idade. Após todo o acontecido, Sônia nos falou do processo para habituar-se à visitação de seu filho e como foi difícil para seu marido aceitar a prisão depois de ter investido tanto na formação do rapaz – com ensino de qualidade, carro próprio, viagens, roupas e tudo mais que Erik pedia. Para ela, a dificuldade era ainda maior. Durante a semana – entre segunda-feira e quarta-feira –, Sônia separa alguns produtos que são entregues na penitenciária para uso semanal do filho. O “jumbo” , como é chamado, é composto de itens de valor permitidos pelas penitenciárias – produtos de higiene pessoal, comidas industrializadas, cigarros, isqueiro tipo BIC, roupas e diversos outros. Nos horários definidos para a entrega não há visitação. Aos finais de semana o cheiro de pão fresquinho e frango gratinado no queijo reina pela casa. Sônia acorda às sete da manhã e já prepara o fricassê de frango e pão recheado para Erik, únicos dias em que é permitido levar comidas diferenciadas. “Quando eu cozinho o prato preferido dele, é o único jeito que consigo me sentir próxima e sei que ele tem um pouco do meu carinho com ele. Quero que ele sempre saiba que mesmo com tudo isso que está acontecendo com a nossa família ele vai ter o nosso apoio sempre. Ele nunca deixou de ser meu filho”. Sônia tira os acessórios,


“NUNCA ACHEI QUE PRECISARIA DE AUTORIZAÇÃO E HORA MARCADA PRA ABRAÇAR MEU FILHO”

Carta enviada por Erik no dia das mães

aliança, brincos, pulseiras e veste a roupa – top, camisa lisa de cores sólidas, uma calça de moletom, nada com tecido jeans e havaianas – definida pelas regras da prisão, separa toda a comida em, no máximo, até três potes, pega os documentos e até mesmo cigarro para seu filho e segue novamente a caminho da cadeia. Esse mesmo caminho de todos os finais de semana e alguns dias durante a semana é o momento em que a tristeza atinge Sônia, quando ela pensa em todas as restrições e dificuldade apenas para ver seu

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filho. “Não consigo me acostumar com isso. Sempre penso até quando isso vai durar, sempre via um futuro maravilhoso para o meu filho e acabei aqui, passando por todas essas proibições e levando todo esse tempo só para vê-lo. O ruim é que sei que ele não vai mudar dentro desse lugar, que só piora as pessoas”, Apenas três em cada 10 presos que trabalham exercem a atividade fora do estabelecimento prisional, e apenas uma em cada dez detentos realiza alguma atividade educacional no país.

Além dos problemas educacionais e trabalhistas para detentos e ex-detentos, ou seja, a falta de oferta de estudo e de trabalho nos presídios, devido ao grande preconceito e baixo investimento nesses segmentos para a inserção do presidiário na sociedade, a infraestrutura precária do sistema carcerário brasileiro e os maustratos também afetam as pessoas privadas de liberdade em vários quesitos, tanto na saúde física como psicológica. E há poucos tratamentos disponíveis para isso nas cadeias. A Câmara Federal iniciou, no ano de 2008, a Comissão Parlamentar de Inquérito que tinha como principal objetivo pesquisar e identificar os principais problemas do atual sistema penitenciário do Brasil, buscando soluções para obter melhorias de dados e problemas que se agravavam. Com oito meses de implementação do projeto e diligências, a CPI constatou inúmeros problemas em 102 presídios de 18 estados. Sendo afirmado pelo relator da CPI, deputado Domingos Dutra, a inexistência de um sistema carcerário no país, mas sim um inferno.


Pedro Sanches

PAIXÃO E ASCENSÃO DA TORCIDA SÃO-BENTISTA Leonardo Nonis e Pedro Sanches

Às margens do Rio Sorocaba, o canto dos pássaros já é ouvido pelos sorocabanos e os primeiros sinais do clarão da aurora são notados por olhos espalhados pela cidade inteira. O barulho das janelas se abrindo na manhã daquele sábado de verão era diferente de um dia comum. Não era simplesmente para comprar o pão fresquinho do padeiro, mas muitos sorocabanos já esatvam acordados, esperando o jogo do clube da cidade. O Esporte Clube São Bento jogaria naquele dia contra a Ponte Preta de Campinas, válido pelo Campeonato Paulista de 2018. pós mais de cem anos com muitos altos e baixos, o Esporte Clube São Bento, hoje, está entre a elite dos quarenta melhores times do país. O time que em 1905 nasceu nos pátios das fabricas de chapéus Souza Pereira, em Sorocaba,

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cidade a cerca de 100 quilômetros da capital do estado, foi inicialmente batizado como Club Athletico Chapeleiros. O futebol nascendo nas fábricas era muito comum no interior de São Paulo, ainda mais em Sorocaba, que sempre foi um centro industrial muito forte. Desde lá o time sofreu com muitos altos e baixos, mas resistiu bem às fases ruins. Com 21 anos, Vinicius Meneghel, torcedor fanático do São Bento, após uma semana de trabalho duro na administração da pousada de sua família, levanta-se um pouco mais tarde que o comum para o começo de mais um dia. Logo que acorda, fuma um cigarro sentado em uma cadeira de praia azul na sacada de seu apartamento, com uma bela vista para a cidade. Após sua higiene pessoal, veste a camisa alviceleste, acende uma vela e faz uma oração em frente ao porta-retrato com a foto de seu falecido pai, Ronaldo, que também era torcedor do São Bento. Vinicius,


Pedro Sanches

Senhor Veltu vendendo água dentro do estádio

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três décadas. Ele vende doces antes de a partida começar e copos de água durante o jogo, mas afirmou já ter vendido de tudo (pastéis, churros, refrigerantes). Além de muito tempo junto ao São Bento, assume ser são bentista desde muito novo. Desde a sua data de fundação até o ano de 1953, o Sport Club São Bento disputou apenas o Campeonato de Futebol Amador Municipal, onde apenas times não profissionais participavam; entre eles São Paulo Athletic, EC Guarany, CA Votorantim, Estrada de Ferro Sorocabana Futebol Clube, entre outros. Considerado até 1933, o futebol amador era nomeado assim, pois, devido a uma lei, não era permitido ceder a seus participantes nenhum tipo de bônus pelo feito, sendo apenas um esporte educacional. No dia 10 de junho de 1953, no Campeonato Paulista da Segunda Divisão, o São Bento estreia na categoria do futebol profissional derrotando a Ferroviária de Araraquara por 4 a 2. Após alguns anos, o clube chegou à tão sonhada primeira divisão do Campeonato Paulista, na qual ficou por 29 anos (1962 até 1991). Com muitos altos e baixos, o time conseguiu se estabilizar novamente na elite do futebol paulista em 2014. Apita o árbitro e a partida tem início no Estádio Municipal Walter Ribeiro, popularmente conhecido como CIC. Muitos olhos voltados para os gramados, apreensivos para que o time vença a partida, torcedores tomam conta da maioria das

Pedro Sanches

sua mãe Marcia e seu irmão Mauricio se comunicam muito pouco durante o dia, mas assim que o assunto São Bento surge os três não economizam nas palavras. As lembranças da trajetória do time nos últimos dez anos são as mais evidentes. A família se recorda da ascensão do clube e curte demasiadamente o momento. No ano de 2014 o clube conseguia seu acesso para a Série A1 do Campeonato Paulista, e desse momento em diante o crescimento foi constante. Em 2016, após ser um dos quatro primeiros colocados no Campeonato Paulista, o Esporte Clube São Bento conquistou uma vaga no Campeonato Brasileiro Série D, onde novamente o clube, após uma boa campanha, subiu de divisão. Em 2017 o clube não se saiu muito bem no Campeonato Paulista, porém, no Brasileirão, repetiu o feito de conquistar o acesso para a Série B, onde joga atualmente – até meados de maio, o time ainda não havia sofrido nenhuma derrota. A partida está perto de começar. Ao redor do Estádio Municipal Walter Ribeiro notase a aglomeração de torcedores do São Bento. Os portões ainda não se abriram e a torcida ocupa grande parte das ruas e principalmente de uma loja de conveniência em um posto de esquina. No meio de muita conversa e risadas encontra-se João Veltu, com sua cesta de doces aguardando o início do jogo. João é funcionário do clube, para o qual trabalha há quase

arquibancadas de concreto. A cantoria quase ensurdecedora das organizadas praticamente ofusca o cochichar dos torcedores comuns ali presentes. A Torcida Sangue Azul, conhecida como TUSA, é a que mais se destaca, com gritos de guerra e músicas para apoiar o time. O São Bento se encontra muito confiante neste jogo, já que, nas rodadas anteriores, havia vencido o São Paulo e o Corinthians. Aos 12 minutos do primeiro tempo, consegue-se ouvir um grito familiar. João Veltu já estava dentro do estádio e não estava vendendo doces. Naquele momento, sua caixa térmica de água ocupava seu ombro esquerdo. Vinicius e João são os dois opostos da torcida do “Bentão”, como é popularmente chamado. No momento em que um curte o seu momento de lazer, o outro está ganhando a vida. E ambos unidos pelo sentimento de paixão pelo São Bento. Os dois acreditam que algo indiscutível é que o time, após a contratação do técnico Paulo Roberto, se encaixou e vem jogando muito bem. Veltu se emociona ao falar sobre a diferença da torcida de antigamente para os dias atuais. “Antigamente só se via o CIC lotado em jogos importantes ou contra times grandes. Hoje em dia todo jogo tem no mínimo seis mil de público É lindo! O São Bento finalmente está recebendo a importância que merece”. Já Vinicius acredita que muitos torcedores nunca estão lá em momentos ruins, apenas em momentos bons do clube. Sentese até um certo desprezo quando


Foto - Pedro Sanches

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com um prego enferrujado na ponta. Com o jogo em andamento, aos vinte e oito minutos do primeiro tempo, o jogador da Ponte Preta João Victor Lima Gomes comete uma falta duríssima e acaba sendo expulso do jogo. A torcida delira com a expulsão do adversário, mas sabe que o jogo continuaria acirrado. Aos trinta e quatro minutos, ainda do primeiro tempo, Diogo Oliveira, no meio da grande área, recebe a bola e estufa as redes para que toda a angústia do torcedor amenizasse. Os pulos de alegria e o cantarolar da torcida aumentam com o momento mais

“GENTE DE TUTANO TRICOTANDO O BALÃO” importante e emocionante do futebol, o gol, que se estendeu até o final da primeira etapa. O São Bento sabia que aquele jogo não era tarefa fácil. Até porque o o passe de Crispim e fez o segundo gol do bentão. O berreiro foi ainda mais alto. A torcida sabia que estava muito próxima da vitória no clássico. O atual técnico do São Bento, Paulo Roberto Santos, é um

Foto de Divulgação

Meneghel usa o termo “modinhas”. Antes dos anos 1970, o Esporte Clube São Bento era o único time profissional que não tinha hino oficial. Foi então, em 1979, que o presidente do clube naquela época, Laor Rodrigues, oficializou uma canção que falava do time como o hino oficial. A música composta por Ulderico Amêndola e reproduzida pela orquestra de Aloisio Pontes ganhou facilmente a torcida e é até hoje o hino oficial. Mas muitos torcedores não conhecem o seu real significado, já que na letra original Ulderico não facilitou muito. “Gente de tutano tricotando o balão” e “na emoção mais alta da porfia” são alguns dos versos. A torcida Beneditina sonha com o acesso à Série A do Campeonato Brasileiro, mas a grande maioria tem a convicção que esse é um objetivo deveras complicado. “Com tantos acessos seguidos, até surge uma certa empolgação, mas sabemos que é muito difícil”, afirma o torcedor de 57 anos Marcos Nanuk enquanto seus olhos não desgrudam do campo. Mas a torcida dá sinais de que vai apoiar o time até o fim. No meio da torcida nota-se um ponto azul celeste andando pelas escadas. É o mascote do São Bento. O pássaro Azulão, como é conhecido, tem as mesmas cores do uniforme do clube e, principalmente, características que definem muito bem a sua trajetória no futebol. Ele prega a paz no futebol mesmo segurando em sua “asa” esquerda um porrete de madeira

ex-jogador de futebol com passagens por times como Sampaio Correa, Moto Clube, América Football Clube e até o Botafogo do Rio de Janeiro. Porém, durante todos esses anos, o seu maior triunfo foi como técnico de futebol, quando recebeu o título de “Luxemburgo do interior”, por ter muito sucesso com clubes de menor expressão. A mente do time na atualidade se mistura com a juventude de alguns e a experiência de outros jogadores, para que a conexão perfeita seja feita. Em 2015 o Esporte Clube São Bento vivia uma fase muito ruim, quando, por falta de pontuação, o clube estava prestes a ser rebaixado para a Série A3 do Campeonato Paulista de futebol. Foi quando Paulo Roberto surgiu como uma luz no fim do túnel, não só salvando o clube do rebaixamento quase certo, mas também levando-os para uma grandiosa ascensão. Em determinado momento do jogo, a torcida se inflama e o coro começa: “Cavalo Matador, Cavalo Matador, Cavalo Matador”. O técnico acabava de colocar em campo o jogador de numero 22, Anderson Cavalo, que é ovacionado pelo público. Anderson Cavalo fala que essa energia da torcida é o que move ele a jogar cada vez melhor e o que alavancou o time em direção a categorias superiores. Ele também se mostra confiante para a temporada. Acredita que o clube pode colher bons frutos da Série B, e talvez até conseguir um acesso inédito para a Série A, mesmo precisando melhorar


Pedro Sanches

alguns fatores for a do campo. O jogador é muito querido pela torcida, que sempre está empurrando e aguardando seus gols de cabeça, de fora da área, e como o apelido mesmo já diz, matando o jogo. No dia 25 de maio de 1962 o Esporte Clube São Bento enfrentou o lendário Santos de Pelé, quando na ocasião ficou no empate por 3 x 3 no Estádio Humberto Reale. O clube na época era temido e batia de frente com grandes equipes paulistas. Com o tempo, o estádio acabou ficando pequeno e destratado pela sua má localização e pouca popularidade. Foi então que em 1978, no dia 14 de outubro, o Centro de Integração Comunitário Walter Ribeiro foi inaugurado com o jogo São Bento x São Paulo (placar final 0 x 1). Para não deixar o antigo alçapão sorocabano para trás, o clube o utiliza na atualidade

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como centro de treinamento. O CIC tem uma capacidade de 13.772 pessoas em sua lotação máxima. O estádio é constituído por quatro setores, arquibancadas superiores, arquibancadas inferiores, cadeiras e arquibancada em forma de ferradura. O estádio municipal recebeu esse nome em homenagem ao ex-jornalista Walter Ribeiro, que foi vice-presidente da Associação dos Cronistas Esportivos de Sorocaba. Para a infelicidade de jogadores e torcedores do bentão, Aaron Ibilola, aos quarenta e dois minutos do segundo tempo, marcou um golaço a favor do time da Ponte Preta e deixou o CIC calado. As feições preocupadas retornaram na maioria dos rostos ali presentes. O terço já havia sido tirado do bolso de um senhor de idade que estava na arquibancada. Vinicius Meneghel novamente pega

sua carteira de cigarros e acende um com o isqueiro bic amarelo. Foram exatos três minutos de muita tensão para que Anderson Cavalo resolvesse balançar as redes com um belo cabeceio após um escanteio. A torcida vai à loucura. Lagrimas de alívio são derramas, o cigarro ainda não acabado de Vinicius é derrubado no chão e o grito sai naturalmente. Até o velho João teve de deixar sua caixa térmica para comemorar com a torcida. O árbitro aponta o centro de campo e o jogo acaba. Após 27 anos, o clube sorocabano havia vencido o time da Ponte Preta e isso era como uma dádiva a todos os são bentistas. Na saída do estádio, a multidão de pessoas executava o hino do clube com muito fervor. Vinicius, ainda muito contente, se dirige até o seu carro, onde um flanelinha estava observando. Quando o sujeito pediu dinheiro por olhar o carro, Vinicius entregou uma nota de 10 reais e comentou: “só porque o bentão ganhou, hein?”. Os dois dão risada do momento e Meneghel retorna a sua casa. Com um sorriso no rosto, o jovem parece estar muito feliz com sua vida e com o momento do time. “Isso é bem melhor do que sonhei. Quando estávamos na Série A2 do Campeonato Paulista ninguém acreditava no potencial do time, e havia boatos até de que o clube fecharia”. Já era noite quando Vinicius chegou ao seu apartamento e seus familiares estavam dormindo. Para não incomodar, entrou pela porta da cozinha, com cautela, atravessou por toda a casa e entrou no seu quarto. Antes de se recolher, pegou uma cerveja gelada no frigobar do seu quarto, acendeu mais um cigarro e sentou novamente em sua cadeira de praia. Pensativo e alegre, derramou uma lagrima tímida. O silêncio era quase absoluto. Vinicius levantou de sua cadeira, apagou a bituca de cigarro em um cinzeiro bordô e deitou-se na cama que estava quase escondida sob páginas de jornais e bandeiras de seu clube de coração.


A MULHER

DAS BARBAS

Leonardo Olavo e Victória Johanna

Se o senso comum fosse uma pessoa, esse alguém jamais acertaria a razão pela qual Christina Perin engata a primeira marcha e dá partida em seu Corsinha verde escuro todas as manhãs, de segunda a sexta. Ao observar, de longe, uma figura séria, de 57 anos, com trajes, postura e corte de cabelo sóbrios, o senhor senso comum afirmaria que Christina presta serviços para um banco, um escritório de advocacia ou, talvez, uma imobiliária. Sempre movido a convicções rasas, seriamente enganado estaria o senhor senso comum. As prolíferas barbearias “vintage” (nome chique para uma coisa nova que imita uma coisa velha) que hoje dominam São Paulo exibem em seu interior características particulares. Venda de hambúrgueres, bares com cerveja artesanal e mesas de bilhar integram o novo perfil desse segmento, que antes contentava-se apenas com a navalha, o bom profissional, a cadeira e o cliente. Os cuidados pósbarba promovidos pelos novos barbeiros também expressam essa transformação no espaço. Cera “matte”, pomada a base de água, shampoo mentolado para barba e lavagem a seco são uma constante nas prateleiras desses lugares. E é aí que Christina entra, literalmente. Ela trabalha como vendedora para a J. Cosmetics, uma empresa que importa e distribui os produtos que alimentam a nova febre paulistana. No miolo da Berrini, região onde mora, Christina

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acende o primeiro cigarro e leva a chave de seu Corsinha à ignição para aventurar-se nesse universo que tanto destoa de sua personalidade. A lista do dia é grande e, antes de chegar ao primeiro cliente, ela esbraveja ao passar por uma barbearia com a qual não conseguiu fechar negócio. – Essa aí não compra com a gente, só vende cera vagabunda –, revela, esbaforida, por conta do carro sem direção hidráulica. Ocupar o banco do passageiro do Corsa verde é como estar num supletivo de redes de cabeleireiros e barbearias. A apostila desse supletivo inclui matérias como: – Aquela barbearia é do marido da Juju Salimeni. – Ihhh, o dono desse lugar é caloteiro. – Esse salão tava pagando caro no aluguel, tentou economizar mudando pra um lugar sem movimento e agora tá pagando ainda mais caro. O conteúdo da conversa vai transcorrendo conforme o Corsinha circula pela zona sul da cidade. Ao passar por determinado local, a condutora do veículo aponta o indicador e repassa suas informações privilegiadas. Debaixo de uma placa que anuncia a proximidade com a hípica, Christina relembra o susto que havia tomado na madrugada anterior. Passaram um trote para sua casa forjando o sequestro de sua filha. Depois de uma ligação pra confirmar que a garota estava em segurança, no apartamento em que mora com o marido na Vila Olímpia, Christina pôde


recuperar-se, rindo de uma brincadeira de seu genro. O rapaz perguntou se ela queria que eles fossem até lá e, inclusive, se ofereceu para assar uma carne, às 4 horas da manhã. O início de uma rotina A primeira parada do dia foi numa papelaria abarrotada de objetos à venda. O lugar contava com varais para que os materiais, brinquedos e quinquilharias coubessem no perímetro limitado. Com as cópias dos documentos que precisava tirar em mãos, Christina ironizou o japonês que a havia atendido. O oriental, de tão avarento, preferiu trocar uma nota de 20 reais a dar um desconto de 5 centavos nas cópias. – Mão de vaca, deu seis e trinta, eu tinha seis e vinte e cinco trocados e o danado não aceitou. O inconformismo permaneceu na constatação de um trânsito lento e doloroso. O Corsa se movimentava um pouco mais devagar do que um jogador amarrando os cadarços antes de uma cobrança de lateral enquanto seu time vence a partida por um a zero. Christina saca, então, o segundo tubinho de nicotina de seu maço de Dunhill. O tempo para terminar o cigarro sincroniza com a chegada ao primeiro salão. O lugar ficava “do lado de cá”, que é como a vendedora se

referia ao bairro do Brooklin. O cabeleireiro reclamou do aumento no preço dos produtos. A alta na tabela foi justificada por ela sob o pretexto de que as ordens teriam vindo do fabricante, em Portugal. Em seguida, com cara de interrogação, Rodrigo, o gerente reclamão, fora confrontado por um enérgico “quer ou não?” lançado por Christina. Resignado, o rapaz se saiu com um “deixa aí, vai”. De volta para o Corsinha, a elegante senhora comemorou seu triunfo sobre o pobre rapaz e ainda revelou que ordem nenhuma teria saído dos lusitanos: – Às vezes eu tiro umas coisas da minha cabeça mesmo –, confessou. Daí em diante sua imagem preliminar de mulher sisuda já havia se perdido em meio a seu jeito jocoso de enfrentar o trajeto, que estava sendo o tempo todo supervisionado pelo olhar severo de um sol escaldante. Na verdade, a alta nos preços havia sido determinada pela dona da importadora por uma questão contratual. Muitas barbearias, para vender os produtos da marca, pedem benefícios como aventais com logo, capas de corte de cabelo e mostruário gratuito, tudo isso em quantidades elevadas. Como não há cafezinho de graça, a empresa ajusta o déficit

Fotos:Victtória Johanna

No banco do corsa, Christina analisa as demandas do dia

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subindo o preço dos produtos. Febre das barbearias A vendedora aproveita para explicar seu ponto de vista apocalíptico sobre o futuro desse boom das barbearias. Para ela, daqui a pouco tempo, o fenômeno será interrompido por um desgaste decorrente da própria saturação, como aconteceu com a onda de paletas mexicanas, que saíram de moda rapidamente. Para validar sua projeção sobre o destino desse segmento no Brasil, ela ainda explica que a Europa já viveu essa febre de produtos e estabelecimentos dedicados à estética masculina e que hoje, no entanto, o que restou disso por lá foi um grande número de barbearias falidas e três redes grandes, em funcionamento, monopolizando o mercado. Na contramão da visão pouco otimista da mulher do ramo está um recente estudo promovido pelo Instituto de Pesquisa Qualibert, que classifica o homem brasileiro como “supervaidoso”. De acordo com órgão, a demanda de produtos e serviços que atendam a estética do homem brasileiro tende a crescer. Terceiro cigarro. Segunda barbearia, a Comendador. – Esse não vai com a minha cara, quer ver que ele não vai querer nada? –, adianta Christina. Atrás do balcão, o rapaz carrancudo revelou que estaria vendendo outra marca. A mais provável razão pelo rompimento com os serviços seria a amizade do dono do lugar com o vendedor que ocupava a posição assumida por Christina na J. Cosmetics. Adalberto, o antigo vendedor, fora demitido por ter sido flagrado solicitando que o pagamento pelos produtos que vendia fosse depositado em sua própria conta. Beto tinha um bom relacionamento com o dono dessa barbearia e, por isso, a marca de produtos que agora estava sendo vendida ali também era a nova empregadora do antigo funcionário transgressor.


A sede da J. Cosmetics fica em Osasco. O esquema de vendas é por território: cada vendedor tem sua região. Por uma questão logística, Christina prefere atuar nas proximidades de sua casa. A zona sul, antes do flagra de roubo e do contrato com a dona do Corsinha, era território de Beto. Vira e mexe, a vendedora esbarra em resquícios de seu antecessor. Entre a herança indesejável de Beto estão recorrentes falcatruas que geraram descontentamento dos salões com a marca e parcerias consolidadas, como no caso da Comendador. As duas situações atrapalham as vendas de Christina. Derrota e dobradinha de cigarro. Uma dupla inconveniente passa a atormentá-la ainda mais naquele momento: fome e vontade de fazer xixi. Christina dirige para o “lado de lá”, nomenclatura usada por ela para designar os bairros de Moema, Campo Belo e Itaim. “Do lado de lá”, os aviões voam baixo e o barulho das turbinas revela a pouca distância que separava o Corsinha do Aeroporto de Congonhas. Passado banhado a ouro Perto dali, um McDonald’s cessou a irritação provocada pelo dueto inconveniente. O ar imperialista da rede de fast food serviu de fio condutor para Christina contar sobre o período em que morou em Dallas, no ano de 1994. A experiência texana puxou o assunto de viagens e Christina só não desenrolou um pergaminho porque sabia de cor os destinos por onde já havia passado. Cinco continentes e dezenas de países. Ficou claro que seu padrão de vida era elevado na época. Ricardo, o marido de Christina, cobria a parte logística de eventos de grande porte. As Copas do Mundo da Itália, França e Brasil foram o carro-chefe da atuação da empresa, que cuidava de alojamento, transporte de imprensa e materiais, emergências médicas e imprevistos circunstanciais. Ainda no banco do McDonals’s, Christina relembra que já

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Christina conduzindo o volante sem direção hidraúlica pelas ruas da Zona Sul

ajudou em uma das responsabilidades da empresa, cozinhando para um funcionário do SBT, que havia tido uma úlcera, durante a cobertura de um evento. A grana do trabalho de Ricardo era o suficiente para bancar uma vida luxuosa. Mas a época das “vacas gordas” foi interrompida porque o rapaz preferiu aceitar a demissão a se mudar com a empresa para longe de onde morava com a família. Fora da lanchonete, mais uma bateria de tragadas no quinto Dunhill do dia. Na Rodovia dos Bandeirantes, ao passar pela mais famosa casa de prostituição de São Paulo, o Bahamas, a vendedora, bufou, inclinou-se para a esquerda e contou que dias antes, no episódio da prisão de Lula, o lugar distribuiu cerveja gratuita e promoveu uma festa a céu aberto. – Uma palhaçada, parecia micareta, o Brasil tá indo para o buraco –, sentenciou, perplexa. Uma barbearia havia sido recém-inaugurada naquele trecho. Christina inspecionou o interior e avaliou o lugar como um cliente em potencial. Realizou uma breve apresentação de produtos e deixou o mostruário para recolher a deliberação da gerência uma semana mais tarde. Saiu de lá segura, defendendo que o trio de barbeiros com o qual conversou teria ficado impressionado com fragrância e qualidade dos produtos. Explicou ainda que tem o feeling necessário para determinar se um

cliente vai ou não fechar negócio, além de contar com uma rede de contatos poderosa. – Os barbeiros trocam indicações, ali é tudo uma corja –, brincou. O ramo dos rapazes da “corja”, como satirizou Christina, tem apresentado números que apontam para uma inegável alta rentabilidade nos negócios. Nos últimos três anos, a maior rede de barbearias do Brasil, a Barbearia VIP, cresceu mais de 500%. Com 26 lojas em operação e mais 14 sendo planejadas, o comércio foi indicado para concorrer ao prêmio de melhores franquias do Brasil pela revista Pequenas Empresas Grandes Negócios, da Editora Globo. O corsa faz uma “paradinha” Sexto cigarro. O Corsa começa a exibir detalhes que à primeira vista passam batidos. O tapete do motorista tem uma imagem do TazMania, um dos personagens mais enérgicos dos desenhos animados. Há também, no molho de chaves, um chaveiro de bolinha preta, feito numa dessas texturas que imploram para serem apertadas. Enquanto o chaveiro se movimenta num vaivém pendular, cerceando a ignição, Christina relembra que fará uma cirurgia na quinta-feira. O procedimento corrigirá uma disfunção que faz com que sua visão fique embaçada. O fato vem a sua memória por conta de uma


“QUANTO MAIS HOMEM BARBADO, MELHOR PRA MIM!” O colírio, motivo da rápida passada em casa, causa mais irritação do que alívio, a princípio. Após um momento de desconforto, o remédio dá indícios de que está funcionando. Do volante, Christina analisa um grupo de jovens sentado numa praça perto de sua casa. Após uma rápida ressonância na panelinha, constata: – Fugiram tudo da escola!

Christina Perin conferindo o estoque a ser entregue aos estabelecimentos

tentativa frustrada de ler um anúncio do outro lado da Avenida Ibirapuera. O fato altera o itinerário do momento e uma outra apresentação em salão é postergada para uma rápida passada em sua casa, onde estava um colírio que ameniza sua dificuldade na visão. Em frente a uma Lotérica, uma nova face de Christina surge. A vendedora conta, com mais um cigarro na boca, que detesta apostas, muito embora não consiga fugir delas. Ricardo é apostador assíduo da LotoFácil. Devoto de Nossa Senhora Aparecida, o marido da maior financiadora de Dunhills de São Paulo recorre à sua padroeira no intuito de levar a melhor nos jogos. Os bilhetes são postos embaixo de uma estátua da figura religiosa, que fica na sala da casa deles. De fato, a casa impecável abriga duas santas, a de Ricardo e a

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padroeira de Christina, Santa Clara. A estátua de Nossa Senhora sob um montinho de bilhetes da Loteria não é uma grande peculiaridade. A santinha da Lotofácil parece comum quando comparada ao Peugeot estacionado na garagem, que redefine o conceito de atípico. Trata-se do modelo 206 da marca de carros francesa, na cor branca, um pouco amarelado por conta do tempo de garagem. A característica do automóvel que furta a atenção de quem passa pela garagem é lataria toda decorada em tinta verde de canetinha por uma criança de seis anos. A netinha do casal espalhou pelo carro desenhos de galinhas, sol, coração, pessoas e uma casa. Defensora da liberdade criativa, a avó da artista afirma que precisa mudar o carro de lado, porque a esquerda da lataria branca ainda estava preservada e, em sua opinião, enfadonha.

Última parada A ida à barbearia seguinte, a última do dia, tinha como justificativa o recolhimento de produtos deixados para consignação. A J. Cosmetics diverge de outras distribuidoras com seu modelo de negócios que oferece a possibilidade de deixar mercadorias que, caso não sejam vendidas, também não são cobradas, apenas retiradas. Para Christina essa opção é excelente, já que agrada seus clientes, que no fim das contas acabam vendendo grande parte do que é colocado em consignação. A retirada de produtos nessa barbearia foi menor do que o esperado e, portanto, o faturamento também a surpreendeu. Cigarro comemorativo. Em seguida, duas ligações em seu celular e mais dois pedidos grandes. Foram R$ 1.458,00 em produtos vendidos em um só dia. A onda dessa ramificação de mercado pode até passar, mas enquanto não passa, Christina assegura: – Sou casada e fiel, mas quanto mais homem barbado no mundo, melhor pra mim!


UM MERCADO DE HISTÓRIAS Marília Martins Tainá da Silva

Em uma travessa da Avenida Senador Queiroz, na Rua Barão de Duprat, centro de São Paulo, encontra-se o Mercado Municipal Kinjo Yamato Cantareira – o primeiro mercado municipal da cidade. O local é cercado por um dos maiores centros comerciais do país, a Rua 25 de Março. Ao seu lado, o Mercado Municipal Paulistano. Ambos atraem milhares de pessoas todos os dias em busca de preços baixos e uma gama variada de hortifrútis.

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Seja de ônibus, a pé, de carro ou de metrô, o destino é sempre o mesmo daqueles que levantam todos os dias na madrugada para abrir pontualmente o seu estande às 3h da manhã – o horário de funcionamento se estende até as 15h. O nome do mercado é uma homenagem ao primeiro imigrante japonês a se formar em odontologia no Brasil, segundo informações do site da Prefeitura de São Paulo. Em 2007, o lugar passou por uma reforma no piso e nas estruturas, e hoje é um empreendimento que oferece comércio de hortifrúti, além de especiarias genuinamente japonesas.


Uns se aventuram a chegar ao local de trabalho logo quando o dia inicia-se, à meia-noite, outros ganham mais algumas horas de sono e abrem às 7h (apesar de o horário de funcionamento ser de 3h às 15h, cada comerciante faz a sua própria rotina). A entrega de mercadorias para os vendedores acontece às terças, quintas e sábados. Com uma estrutura mais acanhada que o vizinho, o famoso Mercadão, vemos em seu interior inúmeros feirantes ocupando os seus devidos postos. As caixas de hortaliças começam a ser abertas e em breve os produtos vindos em sua maioria do CEAGESP (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo) serão expostos para uma clientela fiel. Para manter as bancas, o estabelecimento cobra de cada proprietário uma taxa para participar da associação do Mercado, que ajuda na limpeza, segurança e bem-estar do local, e também para a taxa para prefeitura da cidade de São Paulo, que ajuda a manter a infraestrutura de mais de 80 anos. A maioria dos trabalhadores do local é composta por descendentes de japoneses, isso graças à grande quantidade de imigrantes que lá comercializavam frutas, legumes e verduras trazidos das colheitas e que eram vendidos de maneira informal.

Variedades de pimentas da banca do Seu Santo

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Era o “Mercado Caipira” ou a “25 de março dos produtos hortifrútis”. A variedade de produtos salta aos olhos. É possível ir de uma ponta a outra e encontrar temperos, frutas, peixes, aves e alguns quiosques de lanches. Ao seguir com a caminhada nota-se a existência de quatro entradas e também banheiros femininos e masculinos. A primeira impressão que se tem é de como é possível haver tantas barracas em um espaço como aquele. Os estandes são bem próximos uns aos outros, fato este que além de tornar o caminho para os clientes mais fácil também possibilita um maior contato entre os vendedores, que acabam por conhecer até os boxes mais distantes. Banca Tamashiro A história do mercado por vezes confunde-se com a de muitos dos donos das barracas. Como no caso de Sérgio Tamashiro, 57 anos, vendedor de tomates, cebolas e limões. Seu pai nasceu em Lins, no interior de São Paulo. Filho de imigrante japonês, chegou a trabalhar no início do CAC (Cooperativa Agrícola de Cotia), como era conhecido o Mercado Kinjo Yamato. Durante 18 anos Sérgio trabalhou no Japão com autopeças, retornou em 2010 e já está há sete anos cuidando da banca. Em 2016 seu pai faleceu, e a responsabilidade por

Fotos: Marília Martins

cuidar do box passou a ser sua, visto que sua madrasta tem quase 80 anos. Ele conta ainda que seu pai trabalhou até os 85 anos de idade no mercado e sempre foi tomateiro. Sua ligação com a tradição japonesa se faz presente até na hora de comprar a mercadoria. “Tem que saber comprar, não comprar em exagero. Alguns não levam em conta o clima, as questões políticas, e acham que vão vender e só compram”, diz. Apesar de ter trabalhado no Japão, Sérgio não pensa em voltar. Devido a sua idade, já não conseguiria bons trabalhos. Ele também conta que nunca pensou em ter a cidadania japonesa. “Eu não abandono a família, para mim isso não é certo”. Enquanto contava a sua história, o vendedor descascava cebolas e sua madrasta almoçava ao seu lado no fundo do estande. Banca da Irene A Banca da Irene existe desde 1964 no mercado Kinjo, e também deixa sua marca diária em posts em sua página oficial no Facebook. Ela já tem quase 100 curtidas e serve para a publicação de diversos produtos novos que recebe durante a semana e curiosidades dos legumes e frutas de sua banca genuinamente japonesa. As bancas costumam ser passadas entre pessoas da mesma família. Há mais de 25 anos trabalhando de segunda a sábado, a senhora de 60 anos não aparenta a idade que tem. De baixa estatura, com poucos cabelos brancos e de fala bem suave, Irene conta que a maioria das pessoas que a procuram para conversar são estudantes de gastronomia, e não de jornalismo. A banca recebe legumes e frutas a cada três dias, e uma de suas especialidades é o inhame. O espaço ocupado por dona Irene é o dobro da dos colegas de trabalho. Além dos vegetais, ela vende água de coco geladinha para refrescar nos dias mais quentes. Às seis horas da manhã, ela


já está organizando seus legumes coloridos e suas frutas fresquinhas para a chegada do público fiel que faz compras com ela há anos. Como sua residência é perto dali, Irene Tamazato vai caminhando até o mercado pela manhã e fica até as 15h batalhando para vender o máximo possível, juntamente com mais dois ajudantes que trabalham com ela. Bananas Premium Miyashita Meio dia é o horário de almoço para a maioria dos funcionários da Banca Premium Miyashita. Aline, uma das proprietárias do negócio, é nora do fundador da banca, que tem como carros-chefes variados tipos de bananas que vêm de diversos lugares do Brasil. Segundo Aline, a terra da banana é Registro, cidade localizada a 191 km de São Paulo. Ela conta que a maior parte da fruta vem de lá. Outra parte vem da região Sul, que também é um pólo produtor da fruta. Há muito tempo no ramo das frutas, ela explica que gerencia os negócios da família durantes as manhãs e o sogro e o marido durante a tarde. “Esse horário de trabalho é muito bom, pois não tenho problemas em casa”, conta aos risos, se referindo ao fato que não passa muito tempo com o marido, então a chances de ter discussões de relacionamentos são mínimas. Uma das funcionárias de Aline é dona Silvia, que está há mais de 6 anos prestando serviços para a família Miyashita. Ela relata que é muito legal trabalhar com eles e que o ambiente é muito agradável e receptivo, pois normalmente são os mesmo clientes que aparecem durantes a semana para fazer compras. “A mercadoria chega duas vezes na semana, e aqui não passa da validade, não. Vendemos tantas bananas que nem dá tempo de ficar ruim. Eu divido tudo que recebo entre as três bancas e não tem erro, vendo quase tudo no tempo certo”, disse Aline, empolgada com o seu trabalho.

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Dependendo do dia da semana, o estabelecimento abre à meia noite para receber o produto fresco e novo para amanhecer com o melhor resultado para o cliente.

“ELES ME AJUDAM A PAGAR AS CONTAS NO FINAL DO MÊS”

Banca Maria da Batata Maria Kagamita, uma senhora que constantemente fica sentada no cantinho de sua banca, é de poucas palavras. Mas isso tem um motivo: a crise que assola o país nos últimos anos afetou muito seu empreendimento no mercado. Ela relata que sempre trabalhou sozinha em sua banca, e que está ali há mais de 15 anos ganhando a vida de forma honesta e simples, fazendo seus próprios horários. “Já cheguei a vender em média 12 sacos de batata por dia, cinco sacos de cebola e cinco caixas de tomate. Eu tinha de tudo, pimentão, cenoura, pepino, hoje não, sobrevivo apenas

vendendo quatro sacos de batata por dia”, conta Maria, observando os três estandes vazios, que costumavam ser cheio de legumes há alguns anos. A senhora de 56 anos, conhecida no mercado como Maria das Batatas, pega ônibus todos os dias para chegar até o trabalho. Moradora de São Miguel Paulista, bairro do extremo leste da capital paulista, relata que abria a banca às 3 da manhã nos bons tempos. Hoje ela abre às 7h devido ao baixo movimento. “A lei aqui no Mercado é: quanto mais variedade você tem, mais você vende. A concorrência é grande, o mercadinho já foi mais cheio, e já tivemos uma clientela fixa para cada banca”. Ela conta seu ponto de vista pelo que observa das vendas dos colegas das bancas que ficam ao seu redor. Nascida no interior de São Paulo, em Tupã, Maria chegou na capital paulista aos 12 anos com a família que abriu a banca das batatas. O estabelecimento foi herdado de sua família. Com os três tipos de batata, Dona Maria relata que vende muito para donos de restaurantes, que utilizam seu produto e sabem da boa qualidade. “Eles me ajudam a pagar as contas no final do mês”. Seu Santo Pimentas Amigos há mais de 50 anos,

Banca da Irene vende legumes e verduras todos os dias


“LEVA ESSA AQUI QUE É FRAQUINHA, FRAQUINHA”

Estandes de verduras ficam lado a lado no mercado Kinjo Yamato

seu Santo e seu Mário são duas pessoas que são a marca registrada do Mercado Kinjo Yamato. Por onde você passa, os donos das bancas sabem quem eles são. A banca mais colorida e ardida do mercado é como seria descrita a Banca do Santo. São inúmeros tipos de pimentas. Segundo os donos há para todos os públicos, de crianças a idosos, e para todos os paladares, dos mais suaves aos mais radicais. Algumas são mais doces e quase inofensivas, já outras são apenas pimentas de cheiro. Há também as três pimentas mais ardidas do mundo, que só os mais corajosos experimentam. De jeito bem humorado, Santo Rodrigues, 79 anos, e Mário Utyma, 65, oferecem as iguarias aos clientes que se aproximam: “Na minha experiência você tem boa ardência, pode experimentar e não vai te fazer mal”, diz seu Santo. Após algumas risadas, adentramos o interior

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da barraca e passamos a escutar mais sobre cada uma das pimentas. Santo é o mais brincalhão dos dois, mas isso não torna Mário introvertido. Cada um traz o seu toque na venda das pimentas, os seus produtos são vendidos por quilo e algumas por gramas. Um dos clientes revela que foi enganado pelos vendedores. “Na última vez o senhor me enganou, você me disse ‘leva essa aqui que era fraquinha, fraquinha’, mas não era. Seu Santo rapidamente responde perguntando ao seu Mário: “Então você está na banca errada! Papai, a gente fala isso fraquinha, fraquinha?”, seu Mário só diz “a gente fala que é doce”. Conhecidos em todo o mercado, os vendedores conseguiram conquistar ao longo de muitos anos uma clientela fiel. Como no caso de Marco Aurélio, que veio de Ribeirão Preto buscar algumas ardidinhas.

“Esses dois aqui, meninas, são duas jóias raras do mercado, perguntem qualquer coisa sobre pimenta que eles vão saber contar”, ele nos disse, vendo que estávamos com uma máquina fotográfica e um bloquinho de notas na mão. Uma curiosidade interessante foi quando experimentamos a segunda pimenta mais ardida do mundo. Apesar de quase chorarmos de tão ardida que aquela pequena mordida foi, aprendemos mais uma com aqueles dois senhores icônicos que cruzaram o nosso caminho naquela manhã de terça-feira ensolarada. A maioria das pessoas que comem pimenta e acha ardida correm para tomar água. Mas os dois nos ensinaram que há duas melhores saídas para isso: bala de hortelã e leite gelado. Sim, segundo seu Santo e seu Mário, para curar a ardência esse é o melhor caminho a seguir. Seu Santo contou e mostrou todo orgulhoso que já saiu em programas de televisão, jornais e revista com as suas pimentas. “Olha aqui esse livrinho que eu tenho de quando a Claudete Troiano veio fazer uma matéria sobre meus produtos. Até a Ana Maria Braga já veio me conhecer, ou melhor, as vermelhinhas ardidas”, ele diz, com os olhos brilhando e mostrando as fotos. Todos os dias a rotina de carga e descarga de mercadorias se repete no centro de São Paulo, seja no Kinjo Yamato ou no mercadão ao lado. São incontáveis toneladas de alimentos que são dispostas nas barracas à espera de clientes exigentes em busca do melhor preço e produto.


SOLIDÃO NA TERCEIRA IDADE Nayane Baldacci e Talita Ferreira

O município de Osasco, localizado na região oeste de São Paulo, é conhecido pelo famoso cachorro-quente do calçadão da rua Antonio Agu. O hot dog pode ser servido na mão ou no prato de isopor e custa de 2,50 a 7 reais, dependendo do recheio e da localização da barraquinha. A cidade tem também uma grande variedade de comércios no calçadão principal. Quem passa pelas ruas de Osasco, mais precisamente na rua Julia Fernandes Lyria, número 22, não imagina que ali, naquela rua florida com casas bonitas e vizinhos sorridentes, reside uma senhora de origem humilde e solitária. Zoraide Rodrigues chegou à cidade com quatro anos, aos 13, começou a trabalhar devido à situação financeira de sua família, e com 21 anos engravidou do seu primeiro e

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único esposo, Joaquim Rodrigues, já falecido, o qual lhe deu quatro filhos. A única mulher, Rosa, e os três homens, Aparecido, Edson e Djalma. Hoje, aos 81 anos, a senhora não aparenta ter a idade que tem. Dona Zoraide esbanja vitalidade e maturidade. Carismática, ela procura sorrir para esconder a dor da perda do marido, que morreu novo, com 39 anos, além de a tristeza de morar sozinha. A única casa térrea do quintal é a de Dona Zoirade, que teve de ser adaptada, já que as dificuldades viraram rotina. As limitações fizeram com que a solitária senhora diminuísse seus passos e logo viesse a fraquejar. Com a ajuda de um andador, ela dá os seus pequenos passos, assim como de uma criança que está aprendendo a andar. Para ela, as caminhadas no quintal são uma superação. “Saio de casa para ir apenas


Separadas por Zonas Do outro lado da cidade, na zona leste de São Paulo, conhecemos dona Nair, que se diz também uma senhora sozinha. Carioca, nascida na cidade de Lídice, no Rio de Janeiro, ela lamenta a perda da mãe, que ao dar à luz veio a falecer. A mulher dos cabelos tingidos de loiro, sotaque puxado para o “r”, nos conta um episódio marcante de sua adolescência. “Quando fiz quinze anos o meu pai me mandou com o meu irmão Doraci para morar com a minha avó em São Paulo’’. Foi aqui, em Sampa, que Nair recomeçou sua vida, estudou até a quarta série, aprendeu a ler e a escrever. Deslumbrada com a beleza

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de São Paulo, Nair se encantou com a cidade, mas nem tudo foi um mar de rosas. Nova e com responsabilidades, não teve tempo para explorar as maravilhas da cidade, foi logo arrumar um emprego para ajudar nas despesas na casa da avó, na qual morou quando criança. Ao lembrar de sua trajetória de vida, ali mesmo na sala simples, onde se reúne as vezes com os netos, dona Nair se emociona. O quadro fixado na parede de fundo branco chama a atenção. A foto de um senhor de olhos verdes ilustra a saudade de seu companheiro, já falecido. “Meu velho era trabalhador, percorria as ruas de São Paulo como motorista de ônibus”. O falecido Sebastião, ou Tião, tem sua imagem espalhada pela casa. Cada quadro, tanto na parede quanto na rack onde se apoia a TV, carrega a imagem do amor da vida de dona Nair. Seu relacionamento com Tião gerou dois filhos, Fernando Vanderlei e a caçula Silvana Aparecida. A filha de dona Nair entra na roda de conversa e diz que a mãe é “puxa saco” do filho mais velho. Nair procura agradar os dois lados, e diz gostar de todos, sem exceção. Sobre a origem dos nomes dados aos filhos, Nair diz ter registrado seu filho com o nome Fernando pois seu pai se chama Fernando Coelho. Silvana foi registrada como Aparecida em devoção à padroeira do Brasil. Como todos os dias, ela acorda às cinco da manhã para preparar seu café. Sozinha, ela conversa na cozinha consigo mesma, já que não tem ninguém para papear. Assustada, se surpreende com nossa chegada e nos convida para tomar um café, servido em um jogo de xícaras brancas de porcelana, acompanhado de um bolo delicioso de limão. Após nos deliciarmos com a iguaria, dona Nair, preocupada, pergunta: “Filhas, vocês gostaram do café? É simples, mas é de coração. É sempre um prazer poder tomar café na companhia de outra pessoa”. O horário do café é o mesmo dos filhos e dos netos de dona Nair, que acordam cedo para se arrumar

Nayane Baldacci

ao hospital”, diz a senhora. Além de sua residência, Zoraide divide o espaço com mais quatro casas no quintal, uma para cada filho. Mesmo com a presença de noras, netos e filhos, Zoraide diz se sentir sozinha. A correria do dia-a-dia, o cansaço e as obrigações domésticas alimentam a solidão. Seus filhos não têm tempo para visitar a mãe e, por isso, acabam gritando da cozinha, “Bença, mãe, Bença vó, Bença bisa”. Assim são os cumprimentos de seus familiares durante a semana. Na sala de estar, pode-se notar um pequeno púlpito de cor vinho encostado no canto da parede da casa de Dona Zoraide. O objeto é um entre muitos símbolos de religiosidade espalhados pela residência. A bíblia aberta sobre o púlpito, no Salmo 91, traz uma reflexão e uma palavra de conforto para a senhora, que procura refúgio no livro sagrado. “Jesus é meu verdadeiro amigo, ele me ouve, me traz uma palavra de conforto e de amor”, diz. Assim como a ponte de Osasco, que separa o centro dos bairros, a história de Zoraide e Dona Nair também é dividida. Separadas por zonas, as duas coincidem por serem velhas senhoras solitárias, cada uma em sua região, com trajetórias de vidas diferentes, mas vivenciando o mesmo dilema, a solidão.

Dona Nair em sua residência

para cumprir as tarefas diárias, como a escola e o trabalho. Diferente de dona Zoraide, Nair consegue fazer suas obrigações sem nenhuma limitação. Ela arruma a casa, lava a louça, arruma o quarto e depois caminha até o quintal para varrer o chão coberto de folhas. Limpar o quintal é uma brecha para dona Nair, pois as vizinhas aparecem em frente ao portão para puxar conversa. Sobre sua amiga Maria: “quando eu a vejo, vou logo puxar assunto, como fica a maior parte sozinha, procuro uma companhia na rua, já que meus filhos e netos me veem pouco”. A ausência constante dos filhos fez com que dona Nair procurasse outras companhia. Além de Maria, ela papeia com alguma frequência com João, Mirian e os demais vizinhos. Além das amizades da rua, Nair frequenta o baile da terceira idade, onde tem outros amigos.


Compondo a porcentagem de idosos que moram sozinhos, Nair e Zoraide mostram que os motivos podem ser diversos. As causas nem sempre são as mesmas. O idoso pode morar sozinho pois perdeu o companheiro de vida, por querer liberdade ou pela distância, entre outros fatores. Mas o principal deles talvez seja demográfico: segundo o IBGE, os brasileiros, em média, vivem cada vez mais. Uma pesquisa do Instituto aponta que, em 2015, cerca de 10,4 milhões de pessoas moravam sozinhas no Brasil – não necessariamente idosos. Os dados mostram que, em uma década, o país teve um aumento de 4,4 milhões nesse grupo, que segundo o IBGE é chamado de “arranjos unipessoais”, com ocupação de um único morador por residência, como no caso de Nair e Zoraide. Da Bahia para São Paulo Baiano, Carlos Alberto nasceu em Tancredo Neves, um bairro periférico de Salvador. Com 11 anos perdeu a mãe, que sofreu um ataque cardíaco. Depois disso, Carlos, junto de seus dois irmãos, Raimundo e Branco, foram morar com o pai. Aos 26 anos, veio para a cidade do trabalho, São Paulo. Encantado com o cotidiano agitado dos paulistanos e com as oportunidades de trabalho, Carlos não perdeu tempo, saiu às ruas, indo em porta em porta à procura de uma ocupação remunerada. “Na época não se tinha essa praticidade como se tem hoje, antigamente os currículos eram entregues diretamente na empresa”, diz Carlos. Hoje, com a tecnologia em alta, os currículos são enviados via e-mail ou feitos por meio inscrições em sites de vagas de empregos. A vaga que ele conseguiu foi de cozinheiro na antiga Febem, atualmente chamada de Fundação Casa.

conheceu sua esposa na época, Fátima do Santos. O relacionamento surgiu dentro da Febem do Brás, onde ambos trabalhavam. O relacionamento durou 25 anos, idade de Thiago, filho único do casal. Após o termino do casamento, Alberto passou a morar sozinho, e depois de um ano veio um susto. 15 de outubro de 2017, 10 horas da manhã, rua Ota, 71, Jardim Popular, zona leste de São Paulo. Depois de diversas ligações frustradas de Thiago para o seu pai, nos deslocamos até o nosso destino, a casa de Carlos. Na porta, algo diferente: a chave estava trancada do lado de dentro da casa, “Aquele dia era plantão do meu pai, era para ele estar no Hospital do servidor, mas não estava”. No quarto, a cena de horror. Nu e deitado no chão coberto de sangue, Carlos Aberto agonizava e aparentava tentar pedir ajuda. Thiago deu um grito e, em seguida, pediu socorro aos bombeiros pelo telefone. “Gostaria de pedir ajuda à equipe medica ou de um bombeiro, acabei de encontrar meu pai no chão, ele está inconsciente com pouca pulsação”. 10 minutos depois, o socorro chegou. Mas as escadas do quintal da casa de aluguel onde seu Carlos morava impediam o acesso até o quarto onde ele se encontrava junto de seu filho. Sentado na cama, segurando as mãos do Pai, Thiago lamenta: “Eu deveria ter morado com você, pai, e agora, como vai ser? ”. Com a chegada dos bombeiros no quarto, Thiago seguiu as instruções: “Vamos segurálo, peço que coloque uma roupa nele”, disse o bombeiro Amilton. Depois de ser vestido, os bombeiros levaram Carlos até o hospital. Como a escada impediu a passagem da maca, a solução foi leva-lo em um lençol. Foi assim que ocorreu o regate de Carlos, homem sorridente, baixinho invocado, mas querido por todos.

Amor do Cárcere Em meio ao ambiente hostil da criminalidade, Carlos Alberto

Entre a vida e a morte Socorrido, Carlos é levado diretamente para o Hospital

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Municipal Doutor Alexandre Zaio, também conhecido como Nhocuné. Ali começou a luta contra o tempo. O corredor lotado de enfermos impedia a entrada dos familiares, que, preocupados, buscavam saber sobre o quadro de seu Carlos. Na sala de choque havia mais de 10 pessoas, todas em estado grave. Havia baleados, vítimas de facadas. E Carlos com um suposto AVC. Após uma bateria de exames para saber o quadro do Careca, apelido dado por seu filho Thiago, chega uma junta médica e confirma que seu pai, Carlos teve um AVC hemorrágico. Desamparado, seu filho coloca as mãos sobre cabeça e começa a chorar. “Por que, Deus, justo com ele, uma pessoa tão boa? ”. Uma cirurgia no cérebro que demorou mais de 4 horas colocava seu Carlos entre a vida e a morte no Hospital Municipal do Servidor Público, na região central de São Paulo. Carlos passou no corredor com a cabeça enfaixada e ainda desacordado. Paciente, o neurocirurgião que o acompanhou e cuidou do caso explicou: “Ele pode sobreviver ou não, vai depender do quadro clínico após a cirurgia. Quem tiver alguma pergunta que faça”. O silêncio dos familiares, e do único filho de seu Carlos, mostrava a dor de saber que poderiam acordar com uma boa ou uma má notícia. Dois meses se passaram, e mesmo desenganado pelo os médicos seu Carlos lutou e ainda luta para recomeçar uma nova história. A voz que relatava as vivências se calou. Entubado durante sua recuperação, seu Carlos perdeu a voz que cantava Zeca Pagodinho, mas não perdeu o sorriso que continua encantando todos aqueles que se preocuparam com ele em um momento tão difícil. Com a ajuda de seu filho, seu Carlos toca a vida como pode. Mesmo com o lado direito do corpo paralisado, Careca procura, por meio de fisioterapia e fonoaudiologia retomar suas atividades diárias. Seu porta-voz, Thiago, descreve


Talita Ferreira

“QUE COISA MAIS LINDA, MAS MORRO DE MEDO DE ENTRAR NA ÁGUA!”

como foi a vida de seu Carlos nos últimos anos, “Além da solidão, meu pai lamentava o fim do casamento, e por isso se entregou à bebida alcoólica, pois beber era a única forma de esquecer os problemas e de sua única companhia, a solidão”. Seu filho diz que sempre está presente, e que fazia o possível para visitar o pai, mas que tinha que cumprir outras obrigações, já que morava com sua mãe, Fátima. Carlos está entre os idosos que optaram por morar sozinhos. Os dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS) apontam os idosos como maioria entre os que vivem sozinhos. Em 2015, representavam 44% com 60 anos ou mais. Em 2005, eram 40%. Esse fenômeno não se restringe ao Brasil. E mesmo em nações civilizadas, como o Japão, os idosos sofrem com o abandono – recentemente, algumas notícias trouxeram a informação de que idosos daquele país estavam cometendo pequenos delitos, como roubar produtos em supermercados, para serem presos e terem algum conforto e companhia. No Brasil, é claro, ninguém se atreveria a cometer essa insanidade, dadas as condições de nossas prisões. Segundo a psicóloga Ana Ferreira, formada pela PUC- SP, há

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diversos fatores que explicam esse cenário. “Um senhor ou senhora na terceira idade optam por morar sozinho por ter uma condição financeira razoável, pela liberdade ou pela independência do próprio idoso”, diz. Seu Carlos entra na lista dos idosos solitários. Antes do AVC, ele comentou que o término do casamento foi o que o levou ir morar sozinho, mas ressalta que mais do que a separação, ele teria suas vantagens de morar sozinho, como a liberdade. Era um domingo ensolarado, Dona Nair acordou às cinco da manhã, fez sua oração como de costume, agradecendo a Deus por mais um dia de vida. Esperta, ela já vai ao banheiro, escova os dentes rapidinho, passa um pente no cabelo e depois desce a escada de sua casa para preparar um café bem reforçado antes de ir à igreja. Por volta das 10h40 da manhã, vai para a missa, mas antes veste seu melhor traje do guarda-roupa, que está entre a lista dos preferidos, com sua cor favorita, vermelho. Depois de cinco minutos decisivos, dona Nair veste uma calça jeans, passa um batom rosa e borrifa um perfume para finalizar. Após sua volta da igreja, marcamos um café da tarde na casa

de Dona Nair. Durante um papo de comadres, perguntamos o que faz a senhora ter a pele tão jovial. Em resposta: “ O segredo está na pomada chamada rugol. Antes de dormir eu passo um pouco e depois, pela manhã, passo mais um pouco. Morar sozinha e não ter ninguém não é sinônimo de desleixo, tento levar a vida com mais leveza e vaidade”, diz. Um céu, um sol, e um mar Dona Zoirade, a senhora da cidade do cachorro-quente, mostra um pouco de sua rotina. Em passeio com os netos, a senhora conhece o temido mar. Com medo e apreensiva, ela diz: “Meu Deus! Que coisa mais linda, não imaginava a perfeição desse lugar, mas eu morro de medo de entrar na água”. Lisonjeada, agradece: “Obrigada a vocês, meus netos, que tiraram um tempo para realizar meu sonho”. Com a cadeira de roda na areia, os netos improvisam e colocam a avó em um banquinho, e a levam até a beira do mar. No mar salgado da praia do Bonete, em Ilhabela, a senhora reclama da temperatura da água, mas não deixa que isso atrapalhe sua diversão. “Sei que quando esse momento acabar irei para a minha casa, e que lá continuarei convivendo com a solidão, mas quero aproveitar esse sol, essa areia clarinha, esse churrasco como se fosse o último”.


UMA PARTIDA, DOIS CAMINHOS Bruno Paganini e Vítor Correa

Apita o árbitro, bola rolando no estádio Maria Felizarda, na zona sul de São Paulo. Em campo, de azul, o Grêmio Esportivo, e de vermelho, o Águia Azul, em partida válida pelo campeonato de várzea. Cercado de prédios, o estádio Maria Felizarda é acanhado, com grama sintética. A torcida pequena, ainda tímida, marcada, principalmente, por familiares dos atletas que têm um sonho em comum, ser jogador de futebol. O primeiro toque na bola é do jogador do Grêmio, Gabriel, camisa número 6, que tenta um lançamento ao ataque, mas a bola se perde na linha de fundo. Gabriel, hoje jogando como lateral esquerdo, está preparado mais uma vez para mostrar seu talento dentro de campo e a partir desse amistoso contra o Águia Azul conseguir dar mais um passo na sua vida rumo a se tornar um jogador profissional. Gabriel Alves, 18 anos, é um dos zagueiros prodígios do futebol de base. Detentor das qualidades de ser

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ambidestro, jogar em várias posições na defesa e ter um bom porte físico com seus 1,85cm de altura, ele conta que desde pequeno gosta de jogar futebol. Gabriel recebe do volante a bola pela lateral esquerda, consegue fintar o marcador, manda na área e a zaga rebate o perigo. A bola é do goleiro adversário e toma contra-ataque, o 10 consegue passar por Robinho – amigo de Gabriel desde a infância – corta o lateral direito e quando está pronto para chutar recebe a falta do zagueiro. Parece que o 10 ainda não entrara no jogo. Seu pai na arquibancada comenta com as pessoas mais próximas que ele sofrera uma lesão em seu último jogo. Seu irmão Guilherme Alves, 22 anos, estudante de engenharia de produção, quando jogava bola sofreu uma entrada criminosa e ficou afastado por cinco meses do campo. Quando Gabriel ia aos treinos de seu irmão, os amigos dele sempre ficavam alegres, pois sempre mostrou potencial, mesmo antigamente sendo atacante já demonstrava habilidade. Aos nove anos, Gabriel jogava futsal, como atacante, e após dois anos seu pai, Adilson, o levou ao


Gabriel em ação: habilidade nos gramados

Grêmio Esportivo Campo Grande, perto da estação Jurubatuba da linha 9 - Esmeralda, na zona sul da cidade de São Paulo. E tudo era diversão, apenas a pura inocência do garoto com a bola. 15 min 1T: hora de refletir O relógio marca quinze minutos do primeiro tempo, o jogo fica truncado, com muitas faltas e Gabriel está sempre livre pela esquerda. Ele sabe a hora certa de atacar. O goleiro lança até Gabriel, que avança com a bola, tabela com Robinho, cruza na área para o centroavante cabecear e ela passa muito perto do gol. Gabriel é um dos mais experientes do time, sua responsabilidade aumentou. Todavia, com o passar do tempo, a maturidade veio e a diversão passou a virar responsabilidade. Quando tinha 13 anos, Gabriel começou sua carreira no campo pelo Grêmio Osasco, conhecido agora como Audax, e no futsal pelo Banespa. O garoto levou as duas atividades a sério e após seis meses foi transferido para o Red Bull Brasil, onde conta nunca ter visto uma infraestrutura tão completa. “Lá tínhamos de tudo, a infraestrutura era muito boa, desde os treinos com o gramado perfeito, os cones, o material, o uniforme que tinha o patrocínio, eles davam até energético”.

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Dos gramados às tribunas Vinte e cinco minutos do primeiro tempo, pode-se observar que o jogo é bem estudado, os atacantes não conseguem ter bons aproveitamentos, a bola chega mascada para o chute.

“QUANDO TINHA 14 ANOS QUERIA MUITO SER JOGADOR. FIZ DE TUDO PARA ISSO ACONTECER” E por falar em atacantes, a alguns quilômetros do estádio, o estudante de Tecnologia da Informação Júlio Cesar Gregio, 21 anos, tinha o mesmo sonho de Gabriel há anos, mas não teve a mesma sorte. Lembra até hoje desde o momento em que seu despertador toca em seu celular até o último botão fechado de sua camisa social para começar mais um

dia em seu estágio, pois daqui a dois semestres terminará sua graduação. Júlio conta que começou a jogar bola aos nove anos e que seus pais sempre o apoiaram nessa jornada, na qual se realizou com 14, quando começou a jogar em clubes como Indiano e Banespa, que formam muitos jogadores para outras equipes maiores da cidade, como São Paulo, Corinthians e Palmeiras. “Quando tinha 14 anos queria muito ser jogador. Fiz de tudo para isso acontecer”. Enquanto come o omelete e toma o suco de laranja preparados por sua mãe, conhecida como Nil – que sempre foi a nutricionista da família –, o garoto conta que o esporte ainda está nele e que gosta de manter a boa forma. Júlio procura ao máximo manter o físico atlético. “Tento me cuidar, não como antes, né, mas tento, vou à academia, às vezes, faço exercícios. Acordo às 5 da manhã para malhar”. Desde aquele tempo Júlio não parou de evoluir no futebol. Ele conta que depois desses clubes fez peneira para entrar no Osasco Audax. No ano de 2015, Gabriel foi para o Nacional Atlético Clube, localizado na zona Oeste de São Paulo. Teve bom proveito no Nacional, mas queria crescer no mundo futebolístico. Após o Nacional ficou seis meses no Esporte Clube Água Santa, mas não


Gabriel jogando na várzea

conseguiu ser aproveitado e desde 2017 está no Clube Atlético Juventus. O longo caminho até o gol Gabriel, aos 35 minutos do primeiro tempo, recebe a bola no meio, consegue tocar para o atacante da ponta, que busca espaço na defesa adversária, mas perde a bola para o lateral direito. Ele troca passes no meio até o camisa 11, onde encontra um buraco na defesa, prepara o chute e com um carrinho salvador Gabriel consegue cortar o arremate do atacante e a bola sai pela lateral. Quando chegou ao clube da Juventus, Gabriel tinha um dia extenso. Sua rotina, agora, é a seguinte: acorda às 6h30, toma um café reforçado, mas sem dietas especiais, passeia com seu cachorro Beethoven – nome dado por sua tia – anda até a estação Jurubatuba da CPTM, faz baldeação na estação Pinheiros, linha 4-Amarela do metrô, e finaliza sua jornada na estação Vila Prudente, linha 2-Verde. Mesmo tendo um caminho melhor de ônibus, pela Avenida 23 de Maio, Centro Cultural, Paraíso e por fim Vila Prudente, diz que as duas alternativas são válidas. Ainda tomando seu desjejum, entre uma garfada e outra, Júlio conta a sua experiência no Audax. “Eram 200 garotos para duas vagas. Passamos eu e mais um goleiro”. Quando ele relembra os tempos de futebolista,

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seus olhos parecem estar confortáveis com a situação, mas com aquela gota de saudades. Mesmo tendo uma rotina diferente, mais corrida, com estágio de manhã e faculdade à noite, Júlio não se mostra totalmente insatisfeito.

“ERAM 200 GAROTOS PARA DUAS VAGAS. PASSAMOS EU E MAIS UM GOLEIRO” Gabriel está afastado no Juventus, pois seu treinador mudou e cinco jogadores nascidos no ano 2000 não foram relacionados para a disputa do campeonato paulista. Nessa semana não faz muita coisa na parte matutina de seu dia, às vezes ele corre, treina e joga videogame. “Eu não gosto de ficar muito parado, prefiro gastar energia, corro, faço exercícios como flexão, abdominal e jogo aos finais de semana na várzea perto da

minha casa, onde sempre joguei quando criança”. Nos finais de semana precisa se poupar para não ter nenhuma lesão e tentar procurar um novo clube onde consiga jogar. Antes saía em um horário de pico do condomínio Monte Carmelo, casa 9, até o ponto para esperar a perua Jd. Apura 607A-10, descer na Avenida das Nações Unidas e ir para a estação. Agora prefere desfrutar de seu lazer, tomando um Açaí, vendido em uma loja a três minutos de sua residência, sair com os amigos e ficar em casa descansando. No final do primeiro tempo, especificamente aos 45 minutos, o árbitro não dá os acréscimos devido às poucas faltas, contudo antes do intervalo o meio-campista do Grêmio Esportivo tem a posse de bola, passa por dois marcadores, olha o ângulo direito do gol livre, chuta e comemora por antecipação, com a esperança que a bola vai entrar. Mas o goleiro faz uma linda defesa e, no rebote, o zagueiro da um chutão para o ataque. Em seguida o juiz apita, final de primeiro tempo! Hora do refresco O futebol lhe proporcionou momentos bons e ruins. Gabriel conta que no Red Bull, com seu antigo treinador, viveu ricas experiências de evolução como pessoa e atleta. “Ele sempre me chamava de meigo porque eu tinha técnica, mas nunca saía jogando quando estava de


Vitor Correa

no Água Santa e no Grêmio Esportivo Mauense. Gabriel conta que alguns treinadores e pessoas do clube não mostram aquela atenção em outros clubes. O maior caso foi na Portuguesa. “Eu tinha me contundido, torcido o tornozelo, agonizando de dor e ninguém veio me ajudar, meu pai teve que me tirar de campo, aí depois disso eu mudei de clube”.

Mesmo em casa. Gabriel não abandona o futebol

volante, e que era para eu tentar ter mais confiança”. Quando ele mostrou sua habilidade com a esquerda não foi diferente. “Ô, meigo, não sabia que tinha essa habilidade, isso, confiança, moleque, vai pra cima deles, sai jogando que você sabe fazer isso”. Após ter sua confiança aumentada pelo treinador, foi aprimorando até hoje na Juventus. “Eu aprendi muita coisa com o treinador na Juventus também, eu tinha que ser cascudo, não aliviar e ter a técnica”. Dentro do futebol moderno, ele se espelha em Sergio Ramos, zagueiro do Real Madrid, e Thiago Silva, zagueiro do francês PSG. Para se tornar um bom jogador, mostra o valor de quem o ajudou na vida. “Sou muito grato a todos eles, porque sempre evoluí em todos os aspectos, tanto na defesa quanto no ataque, mais e mais”. Segundo tempo Apita o árbitro, bola rolando novamente. A equipe do Águia Azul ataca ferozmente pela ponta em que

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Gabriel defende. O ponta camisa 7, por aquele lado, consegue passar pelo lateral esquerdo, cruza na área e o centroavante adversário, não muito rápido, consegue chutar para o gol, e o goleiro faz linda defesa, jogando para escanteio. O time do Águia Azul não consegue fazer o gol no escanteio. Aos quinze do segundo tempo, o goleiro sai jogando com Gabriel pela ponta esquerda, e ele avança para o ataque como se fosse seu último gás, já que sente um desconforto no pé esquerdo. Adianta a bola pela ponta esquerda, passa para Robinho, que dribla dois marcadores, visualiza o camisa 9 livre e o aciona. Ele fica cara a cara com seu marcador, respira, olha para o lado, quando de repente vê Robinho passando veloz e devolve a bola para o companheiro de time bater no canto esquerdo do goleiro para abrir o placar. 1 X 0 para o Grêmio Esportivo. Em alguns clubes Gabriel não teve muito sucesso, como na Associação Portuguesa de Desportos,

“ERAM 200 GAROTOS PARA DUAS VAGAS. PASSAMOS EU E MAIS UM GOLEIRO” E mesmo o Juventus, pelo qual ele tem imenso carinho, está deixando Gabriel de lado com mais cinco garotos com pendências de contratos e sem jogar. Seu pai, Adilson, conta que irá resolver essa situação, pois ele não pode ficar sem jogar e, não entrando em acordo, ele está livre para assinar com outros clubes o passe que tem da Federação Paulista de Futebol. O treinador paizão Com a etapa final, seu pai Adilson grita para o filho: “estamos nos vinte e cinco!”. Gabriel parece nem ouvi-lo e se concentra apenas no jogo. A equipe do Águia vai ao ataque, o meio-campista habilidoso tabela com o camisa 7, consegue chegar dentro da área, olha o 9 passando e, de frente para o gol, um feito histórico acontece e ele chuta... para fora! Olha para a grama e parece enxergar o pior


pesadelo diante de seus olhos. Indo para seu trabalho entre uma esquina e outra, Júlio relembra um jogo válido pelo Campeonato Paulista da categoria sub-15. Recorda-se de um momento em que percebeu que o futebol não era mais o esporte limpo, válido de sua máxima admiração e que os fortes financeiramente com ótimos empresários detinham o poder de minerva sobre escalações e outros fatores. “Quando nós perdemos para o Palmeiras, percebi que o futebol não era para mim. O futebol tem muita sujeira”.

“QUANDO NÓS PERDEMOS PARA O PALMEIRAS, PERCEBI QUE O FUTEBOL NÃO ERA PARA MIM. O FUTEBOL TEM MUITA SUJEIRA” Como Júlio dissera anteriormente, o futebol é um meio muito sujo. Gabriel concorda, com ressalvas. “Tem jogador que você olha e fala, como esse cara tá aqui, mesmo sendo esforçado, sabe. Tem jogador que atrapalha o treino, a gente vê que é esquema, essas coisas, tem empresário”. Gabriel não tem empresário, mas acha que na base é mais forte. Mas não pensa em abandonar o esporte que tanto ama. “O futebol é uma coisa

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diferente, não é só chutar uma bola como falam. É você treinar, atingir o máximo do seu corpo, conhecer as estratégias... é amor mesmo pelo esporte”.

“O FUTEBOL É UMA COISA DIFERENTE, NÃO É SÓ CHUTAR UMA BOLA”

35 min 2T: olha a chance... Aos 35 do segundo tempo, o Grêmio Esportivo apenas observa seu adversário jogar demonstrando cansaço e pouco fôlego restante. Gabriel fica atrás e, junto aos companheiros de defesa, aguenta a pressão do Águia Azul. Agora é a vez do camisa 11 ter uma falta para bater, o goleiro arruma a barreira e a cada grito seus companheiros protegem aquele gol como se fosse sua família sem deixar nenhum mal acontecer. O camisa 11 olha a posição do goleiro e

Gabriel petecando a bola em seu quintal

parece saber onde vai colocar a bola. Ele se prepara e no apito do juiz manda no canto esquerdo do goleiro por cima do terceiro homem da barreira. Uma cobrança perfeita. O gol de empate. Enquanto espera os próximos capítulos, se vai ou não para outro clube, Gabriel conta um detalhe importante de sua carreira e concentra seu tempo após o anoitecer no cursinho, seu plano “B”.

“EU SEMPRE FUI BOM EM QUÍMICA, , AÍ RESOLVI PRESTAR FARMÁCIA” “Eu sempre fui bom em química, queria algo ligado com a matéria, aí resolvi prestar farmácia, mas não tenho uma outra profissão e educação física apenas se um dia eu virar técnico ou algo do tipo”, diz ele, ao contar um pouco sobre sua vida


acadêmica. “Faço aqui na zona sul, essa é a carreira que eu quero seguir caso o futebol não dê certo, mas se Deus quiser, eu vou ser jogador profissional”. Minutos finais Júlio chega na Schneider Eletric, empresa em que faz estágio, onde ficará até as 16 horas. A melhor hora de seu dia é a de almoço, pois aproveita trinta dos sessenta minutos que tem para tirar aquela “pestana”. Apesar de Júlio não querer ser mais jogador pela corrupção no futebol, tentou encontrar outra profissão que o agradava. “Mesmo não sendo mais jogador, ainda amo esse esporte”. Seu amor pelo futebol é grande, como vemos em seu carinho pelo curso que finalizara em breve. Júlio se despede depois de um dia cheio no estágio, assim sua chegada à faculdade será como todas as outras. Mas às sextas ainda bate bola com os amigos, assim mata saudades da época de jogador. O dia do garoto não acaba tão cedo. O resto de tarde é reservado para o treino de futebol na atlética de sua

universidade, localizada na zona norte de São Paulo, trajeto bem distante visto que mora e trabalha na zona sul paulistana.

“NESTA TEMPORADA CONSEGUIMOS TRÊS NOVOS JOGADORES QUE JÁ JOGARAM PELA FEDERAÇÃO” O jogo fica eletrizante, passes efetivos de lá e cá, os goleiros cansados e trabalhando muito. Gabriel apenas assiste nesses 45 do segundo tempo o jogo rolar na

Gabriel no amistoso jogando de lateral esquerdo

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parte do meio de campo para frente. Vê seu amigo Robinho passar por dois marcadores, encontra na ponta o camisa 11 livre, cruza na área e a partir de uma jogada improvável o zagueiro aparece para cabecear e com um estalo bem alto a bola bate na trave, saindo pela linha de fundo. Júlio trocara o uniforme pela camisa social, as chuteiras pelos sapatos de couro e cadarços. Mas o espírito futebolístico continua nele. Treina futebol duas vezes na semana para disputar o campeonato entre as universidades. Com um sorriso largo, elogiou o time. “Para esta temporada conseguimos três novos jogadores que inclusive já jogaram pela federação”. Apita o árbitro, é fim de jogo! A face de cada garoto em campo buscando seu espaço perante milhares de outros jogadores é de doação, o suor escorrendo em suas testas, o ar atravessando todo seu corpo e saindo como um suspiro de tristeza pelo empate, mas a alegria de se fazer o que ama não tem preço. Estão prontos para a próxima partida e para avançar com os seus sonhos em busca de se tornarem jogadores profissionais.


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