INCLUSÃO E PRESERVAÇÃO DE SABERES PARA O BOM VIVER
CONSELHO EDITORIAL Agenor Pacheco Sarraf (UFPA) Alzerinda de Oliveira Braga (UFPA) Amélia Maria Araújo Mesquita (UFPA) Ana Suelly Arruda Câmara Cabral (UnB) Beatriz Gama Rodrigues (UFPI) Carlos Henrique Lopes de Almeida (UFPA) Carmen Lúcia Reis Rodrigues (UFPA) Eliete de Jesus Bararuá Solano (UEPA) Elizabete de Lemos Vidal (UFPA) Esteban Reyes Celedón (UFAM) Flávio Leonel Abreu da Silveira (UFPA) Francisco Jair Cecim (UFPA) Francisco Pereira de Oliveira(UFPA) Francisco Pereira Smith Júnior (UFPA) Frederico Augusto Garcia Fernandes (UEL) Georgina Negrão Kalife Cordeiro (UFPA) Günter Karl Pressler (UFPA) Joana D’Arc de Vasconcelos Neves (UFPA) João de Jesus Paes Loureiro (UFPA) Joel Cardoso da Silva (UFPA) José Guilherme dos Santos Fernandes (UFPA) Luis Júnior Costa Saraiva (UFPA) Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões (UFPA) Maria Risolêta da Silva Julião (UFPA) Nilsa Brito Ribeiro (UNIFESSPA) Paula Tavares Pinto Paiva (UNESP) Pedro Petit Penarrocha (UFPA) Raimunda Benedita Cristina Caldas (UFPA) Regina Célia Fernandes Cruz (UFPA) Regina Helena Urias Cabreira (UTFPR) Roberta Alexandrina da Silva (UFPA) Salomão Antonio Mufarrej Hage (UFPA) Sylvia Maria Trusen (UFPA) Tabita Fernandes da Silva (UFPA) Valéria da Silva Medeiros (UFT)
RAIMUNDA BENEDITA CRISTINA CALDAS LARISSA FONTINELE DE ALENCAR FERNANDO ALVES DA SILVA JÚNIOR Organizadores
INCLUSÃO E PRESERVAÇÃO DE SABERES PARA O BOM VIVER
Copyright © dos autores Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores.
Raimunda Benedita Cristina Caldas; Larissa Fontinele de Alencar; Fernando Alves da Silva Júnior [Organizadores] Inclusão e preservação de saberes para o bom viver. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016. 497p. ISBN 978-85-7993-283-0 1. Saberes. 2. Estudos de Linguagem. 3. Formação docente. 4. Narrativas orais. 5. Autores. I. Título. CDD – 410
Capa: Hélio Márcio Pajeú Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito Revisores: Fernando Alves da Silva Júnior; Larissa Fontinele de Alencar; Raimunda Benedita Cristina Caldas
Conselho Científico da Pedro & João Editores: Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Rogério Drago (UFES/Brasil).
Pedro & João Editores www.pedroejoaoeditores.com.br 13568-878 - São Carlos – SP 2016
SUMÁRIO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGENS E SABERES NA AMAZÔNIA
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APRESENTAÇÃO
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A LINGUAGEM PRESENTE NA ESCOLAE OS conhecimentos e saberes de pescadorese marisqueiras: algumas reflexões teóricas
17
Viviane dos Santos Carvalho | Georgina Negrão Kalife Cordeiro
A NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS E A CONSTITUIÇÃO dos papéis sociais em uma aula de leitura no ensino superior
31
Maria da Conceição Azevêdo
A PEDRA DO GURUPI E A ILHA DA IARA: a quarta morada do Rei Sebastião
57
Sônia Moraes do Nascimento | Fernando Alves da Silva Júnior
A PESQUISA SOBRE PLANTAS MEDICINAIS da comunidade de Vila-Que-Era: um percurso pela terminologia e tradução
69
Márcia Saviczki Pinho | Carmen Lúcia Reis Rodrigues
A VARIAÇÃO DIATÓPICA NO DICIONÁRIO ESCOLAR
81
Brayna Conceição dos Santos Cardoso
A VARIAÇÃO PROSÓDICA NO NORTE DO BRASIL: um estudo do português falado em Mocajuba com dados do projeto AMPER-POR
97
Maria Sebastiana da Silva Costa | Regina Célia Fernandes Cruz
AS ACEPÇÕES DE SANTO NO SENSO COMUM e no dicionário terminológico
109
Aldilene Lopes de Morais
AS CICATRIZES DE MARIA: entre dores e rupturas
123
Luciana de Barros Ataide
AS VOGAIS MÉDIAS PRETÔNICAS NO PORTUGUÊS falado em Bragança (PA): análise acústica preliminar Carlos Nédson Silva Cavalcante | Regina Célia Fernandes Cruz
137
AULAS DE LÍNGUA MATERNA: músicas infanto-juvenis em diálogo com outras artes
149
Ediane Maria Guimarães Monteiro | Glayce de Fatima Fernandes da Silva | Joel Cardoso
BANQUETE: um estudo acerca da sincronia e da diacronia do termo
163
Andréia da Silva Ribeiro | Raimunda Benedita Cristina Caldas
DA IDADE MÉDIA AO SÉCULO XXI: a linguagem do maravilhoso em “Um sonho”
175
Elenilda do Rosário Costa
ENTRE O PROFANO E O SAGRADO: o dilema da santidade
187
Adriana da Silva Lopes
ESTUDOS DOS GESTOS DÊITICOS NA LINGUÍSTICA
201
Romário Duarte Sanches | Sabine Reiter
FORMAÇÃO DE PROFESSORES por meio das caravanas pedagógicas para a construção da escola bragantina
213
Luciane Silveira Rodrigues | Maria Adriana Leite | Robson de Sousa Feitosa
GÊNERO TEXTUAL ORAL ENTREVISTA de emprego: trabalhando a oralidade com os alunos da EJA
223
Gleciane da Silva Pantoja | Camilla da Silva Souza
IDENTIDADE ÉTNICA E AUTOIDENTIFICAÇÃO Tenetehára:estudo sobre aldeia Indígena Turé-Mariquita de Tomé-Açu/PA
237
Michelly Silva Machado
NO LABITINTO DA MEMÓRIA: a oralidade nas narrativas de Quintino de Lira
251
Juliana Patrízia Saldanha de Sousa
NOVAS ALTERNATIVAS DE LEITURA e inclusão na escola
265
Giselle Maria Pantoja Ribeiro | Tatiana Cristina Vasconcelos Maia
O DISCURSO SOBRE A HERESIA na formação de uma identidade cristã ortodoxa Rosana Brito da Cruz
279
O PROCESSO FORMATIVO DOCENTE e suas interfaces com os saberes locais:uma proposta de reorientação curricular em Bragança-PA
293
Maria Adriana Leite | Luciane Silveira Rodrigues
O PROCESSO DE TRADUÇÃO – DA ORALIDADE para o escrito e o gênero maravilhoso na narrativa transcrita pelos pesquisadores do programa IFNOPAP, A Cobra Grande
307
Rayniere Felipe Alvarenga de Sousa | Deyse Carla da Silva Mota | Sylvia Maria Trusen
OS DISCURSOS PRESENTES EM CARTAZES de evento de educação especial
319
Hildete Pereira dos Anjos | Ingrid Fernandes Gomes Pereira Brandão | Mírian Rosa Pereira
OS SABERES DA GENTE DO MAR: o imaginário e as experiências de vida dos pescadores da Vila do Treme, Bragança (PA)
333
Roseli da Silva Cardoso | José Guilherme dos Santos Fernandes
O TRASLADO DAS NARRATIVAS ORAIS À ESCRITA: a tradução e a performance do narrador
351
Myrcéia Carolyne Guimarães da Costa
PRODUÇÃO DE SABERES NA CONFECÇÃO de panelas de barro na comunidade de São Mateus, Taperaçu Campo, Bragança (PA)
365
Alceny Nunes de Araujo | Fernando Alves da Silva Júnior
PROJETOS DE LINGUAGENS NA EDUCAÇÃO infantil:um estudo a partir da teoria pós-crítica em educação
377
Camila Claide Oliveira de Souza | Kelry Leão Oliveira | Gilcilene Dias da Costa
QUE LINGUAGENS EDUCAM OS PEQUENINOS?: um estudo sobre as dimensões da linguagem em uma unidadede educação infantil, Belém-Pará
391
Kelry Leão Oliveira | Gilcilene Dias da Costa
TERMINOLOGIA DA PISCICULTURA NO PARÁ
405
Josué Leonardo Santos de Souza Lisboa
TERRITÓRIO INDÍGENA: a aprendizagem mediada pelos saberes tradicionais e culturais do povo Tembé Lena Cláudia dos Santos Amorim Saraiva
415
ARTE E FORMAÇÃO SOCIAL DO INDIVÍDUO: breve contextualização histórico-reflexiva da arte na sociedade contemporânea
429
Joel Cardoso
JOGOS INFANTIS: uma geografia erótica
441
Francisco Pereira Smith Júnior
UM LUGAR PARA O CINEMA NA PERIFERIA da modernidade: o caso da Amazônia na primeira metade do século XX
453
José Sena Filho
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA a partir do grafismo corporal da cultura indígena Ka’apor
465
Estelita Araújo Barros
SOBRE OS AUTORES
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGENS E SABERES NA AMAZÔNIA
O Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPLSA), em nível de Mestrado, está vinculado ao Campus Universitário de Bragança, da Universidade Federal do Pará, e tem por finalidades a formação continuada e o fomento da prática investigativa de profissionais portadores de diploma de Nível Superior que sejam capazes de atuar no ensino de Graduação e Pós-Graduação, na gestão e na intervenção cultural especializada, tendo como objetivo precípuo estudar, a partir de movimentos endógenos e exógenos, as diversas representações e práticas que perfizeram e perfazem as várias configurações das culturas da/na Amazônia, mediante a compreensão das diferentes formações discursivas, em diferentes linguagens, e suas correspondentes condições sociais e históricas de produção, tendo como objetivos fundamentais: I – investigar as diferentes formas discursivas, em diferentes linguagens, sobre e na Região Amazônica; II – mapear e compreender as imbricações epistemológicas dos saberes locais e saberes universais a partir da tensão entre as componentes internacionais, nacionais e regionais, coloniais e pós-coloniais; III – estabelecer a descentralização da produção de conhecimentos sobre a Amazônia; IV – propor estudos críticos da realidade local; V – propor práticas interdisciplinares de estudo das realidades locais; VI – fomentar propostas de coparticipação entre academia e comunidade no equacionamento de tensões e conflitos sociais e culturais. O PPLSA existe desde 2011, quando realizou sua primeira seleção, com aprovação de 12 candidatos. O Programa foi aprovado na 122ª Reunião do CTC, da Capes, com o conceito 3, o que reforça nossa motivação para alavancar este Programa, daí a necessidade de realizar eventos, como o Seminário Tradução e Interculturalidade, que possibilitem maior interação entre pesquisadores e entre a Academia e a Comunidade em geral, com a possibilidade de transferência de conhecimentos.
Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia
No Programa existe uma área de concentração – Linguagens e Saberes – e duas linhas de pesquisa: Leitura e Tradução Cultural e Memória e Saberes Interculturais. Para maiores detalhes acerca do PPLSA, acesse: http://www.pplsa.propesp.ufpa.br/.
Apresentação
Este livro reflete a preocupação premente de um programa de pós-graduação amazônico, o Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia, com os temas “tradução” e “interculturalidade”: inclusão e preservação de saberes para o bom viver, e os seus estudos sobre a Amazônia oriental. Traduzir línguas e culturas é, sem sombra de dúvidas, uma das tarefas mais difíceis para o linguista, o literato, o cientista social, e para qualquer estudioso que tenha como objeto de estudo o outro, para o que é necessário vivenciar, olhar com os olhos do outro, sentir como se estivesse na pele do outro, acertando maximamente na interpretação do modo de ser do outro. Em um país como o Brasil, com tamanha diversidade linguística e cultural, tradução e interculturalidade deveriam estar indissociáveis, como conceitos básicos e norteadores de políticas públicas voltadas para a educação, cultura, meio ambiente e saúde, principalmente. O conceito de interculturalidade, que ganha força desde o final da década de 1970 na Europa, exatamente e, entre outras disciplinas, no âmbito dos estudos linguísticos lexicográficos e aplicados ao ensino de línguas estrangeiras, e ao ensino de línguas em geral (cf. Gallisson), já apontava suas raízes no Brasil, na década de 1960, com a “Pedagogia dos Oprimidos” e os “círculos culturais”, criados por Paulo Freire. Refloresce na década de 1980, quando a história do Brasil retomava o caminho da liberdade, na voz dos movimentos sociais – indígenas, de seringueiros, de comunidades negras, entre outros –, que puderam unissonamente clamar pelo reconhecimento de seus direitos, a começar pelo direito de ter reconhecida sua identidade linguística e cultural diferenciada. O Projeto “Interação entre Cultura e Educação”, desenvolvido pela antiga Pró-Memória, foi o primeiro projeto na Nova República a abrir espaço para que as associações de bairros, associações indígenas e pró-indígenas, associações comunitárias de segmentos socioculturais representativos de
Ana Suelly Arruda Câmara Cabral Apresentação
diferentes regiões do Brasil, inclusive prefeituras e fundações culturais, desenvolvessem projetos buscando novos caminhos para uma educação diferenciada que tivesse como referência os diferentes contextos culturais do Brasil. Atualmente, a interculturalidade é conceito aplicado nos diferentes campos do conhecimento das ciências humanas, e a tradução é o mecanismo essencial para a aquisição do conhecimento sobre as culturas. A tradução e a interculturalidade têm como metas inclusão e preservação de saberes para o bom viver, como um dos pontos de valoração do papel agentivo dos detentores das culturas nos programas, projetos e ações que buscam consolidar estudos, pesquisas e ensino promotores da interface de tais conceitos. Este livro congrega um leque de vertentes representativas dos estudos de tradução e interculturalidade em que Inclusão e Preservação de Saberes para o Bom Viver convergem: a) no campo dos saberes: Viviane dos Santos Carvalho e Georgina Negrão Kalife Cordeiro oferecem um estudo sobre a relação dos saberes de pescadores e marisqueiras com a formação escolar do campoemA Linguagem presente na Escola e os Conhecimentos e Saberes de pescadores e marisqueiras: algumas reflexões teóricas; Roseli da Silva Cardoso e José Guilherme dos Santos Fernandes abordam sobre as experiências dos pescadores em Os Saberes da Gente do Mar: o imaginário e as experiências de vida dos pescadores da Vila do Treme, Bragança (PA); Alceny Nunes de Araújo e Fernando Alves da Silva Júnior põem em relevo o tema Produção de Saberes na Confecção de Panelas de barro na comunidade de São Mateus, Taperaçu Campo, Bragança (PA); nos estudos da tradução: Rayniere Felipe Alvarenga de Sousa, Deyse Carla da Silva Mota e Sylvia Maria Trusen trazem o estudo tradutório em narrativas da Amazônia no artigo O Processo de Tradução – da Oralidade para o Escrito e o gênero maravilhoso na narrativa transcrita pelos pesquisadores do programa IFNOPAP, A Cobra Grande; na mesma linha de estudos Myrcéia Carolyne Guimarães da Costa situa O Traslado das Narrativas Orais à Escrita: a tradução e a performance do narrador; Ediane Maria Guimarães Monteiro, Glayce de Fatima Fernandes da Silva e Joel Cardoso discutem
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
Ana Suelly Arruda Câmara Cabral Apresentação
no campo da linguagem nas artes em Aulas de Língua Materna: músicas infanto-juvenis em diálogo com outras artes. Nos artigos de Luciane Silveira Rodrigues, Maria Adriana Leite e Robson de Sousa Feitosa:Formação de Professores por meio das Caravanas Pedagógicas para a construção da escola bragantina e O Processo Formativo Docente e suas Interfaces com os Saberes Locais: uma proposta de reorientação curricular em Bragança-PA, de Maria Adriana Leite e Luciane Silveira Rodrigues há ênfase às relações de formação pedagógica e a conexão de saberes; no campo da educação Maria da Conceição Azevêdo propõe tratar A Negociação de Sentidos e a Constituição dos Papéis Sociais em uma aula de Leitura no Ensino Superior; Gleciane da Silva Pantoja e Camilla da Silva Souza trazem uma discussão acerca de gêneros da oralidade no texto Gênero Textual Oral Entrevista de Emprego: trabalhando a oralidade com os alunos da EJA; Giselle Maria Pantoja Ribeiro e Tatiana Cristina Vasconcelos Maia em Novas Alternativas de Leitura e inclusão na escolaabordam a leitura no contexto pedagógico. Nos quatro artigos: Projetos de Linguagens na Educação Infantil: um estudo a partir da teoria pós-crítica em educação, de Camila Claide Oliveira de Souza, Kelry Leão Oliveira e Gilcilene Dias da Costa; Que Linguagens Educam os Pequeninos?: um estudo sobre as dimensões da linguagem em uma unidade de educação infantil, Belém-Pará de Kelry Leão Oliveira e Gilcilene Dias da Costa; Os Discursos Presentes em Cartazes de evento de Educação Especial de Hildete Pereira dos Anjos, Ingrid Fernandes Gomes Pereira Brandão e Mírian Rosa Pereira e A Educação Matemática a Partir do Grafismo Corporal da Cultura Indígena Ka’apor, de Estelita Araújo Barros há discussões acerca do ensino infantil, educação especial e educação bilíngue em diferentes perspectivas com as conexões de saberes. No campo das narrativas, o texto A Pedra do Gurupi e a Ilha da Iara: a quarta morada do Rei Sebastião, de Sônia Moraes do Nascimento e Fernando Alves da Silva Júnior retratam espaços místicos nos relatos orais por moradores e pescadores de Viseu-PA; em As Cicatrizes de Maria: entre dores e rupturas, Luciana de Barros Ataide contempla estudos sobre a personagem de um conto em
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
Ana Suelly Arruda Câmara Cabral Apresentação
que se relaciona memória e silêncio na construção da identidade de uma pessoa. O artigo Da Idade Média ao Século XXI: a linguagem do maravilhoso em “Um sonho”, de Elenilda R. Costa há uma análise que considera a linguagem do maravilhoso do período medieval e sua correlação com o tempo atual. No Labirinto da Memória: a oralidade nas narrativas de Quintino de Lira, de Juliana Patrízia Saldanha de Sousa há ênfase na investigação sobre as narrativas orais de Quintino e Jogos Infantis: uma geografia erótica, de Francisco Pereira Smith Júnior propõe uma análise sobre como os narradores abordam os contos da obra. No texto Um Lugar para o Cinema na Periferia da Modernidade: o caso da Amazônia na primeira metade do século XX, José Sena Filho traz uma pesquisa sobre o espaço do cinema em duas capitais de periferia na Amazônia: Belém e Manaus. No campo dos estudos linguísticos dois artigos abordam estudos de léxicos de especialidade: A Pesquisa sobre Plantas Medicinais da comunidade de Vila-Que-Era: um percurso pela terminologia e tradução, de Márcia Saviczki Pinho e Carmen Lúcia Reis Rodrigues e Terminologia da Piscicultura no Pará, de Josué Leonardo Santos de Souza Lisboa; já no campo dos estudos acústicos, três pesquisas contemplam estudos sobre variação na região Norte: Brayna Conceição dos Santos Cardoso focaliza estudos sobre A Variação Diatópica no Dicionário Escolar; Maria Sebastiana da Silva Costa e Regina Célia Fernandes Cruz tratam no artigo A Variação Prosódica no Norte do Brasil: um estudo do português falado em Mocajuba com dados do projeto AMPER-POR e Carlos Nédson Silva Cavalcante e Regina Célia Fernandes Cruz apresentam As Vogais Médias Pretônicas no Português falado em Bragança (PA):análise acústica preliminar. No campo dos estudos de léxicos Aldilene Lopes de Morais traz As acepções de Santo no Senso Comum e no dicionário Terminológico; Andréia da Silva Ribeiro e Raimunda Benedita Cristina Caldas discutem em Banquete: um estudo acerca da sincronia e da diacronia do termo; Adriana da Silva Lopes aborda o estudo sobre o termo santo em Entre o Profano e o Sagrado: o dilema da santidade e, em uma investigação histórica, Rosana Brito da Cruz aborda os
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
Ana Suelly Arruda Câmara Cabral Apresentação
processos formadores de identidade na obra História Eclesiástica do bispo Eusébio de Cesaréia, do século IV em O Discurso sobre a Heresia na formação de uma identidade cristã ortodoxa. Ainda nos estudos linguísticos Romário Duarte Sanches e Sabine Reiter discutem no texto Estudos dos Gestos Dêiticos na Linguística; Michelly Silva Machado em Identidade Étnica e Autoidentificação Tenetehára: estudo sobre aldeia Indígena Turé-Mariquita de Tomé-Açu/PA e Lena Cláudia dos S. Amorim Saraiva no texto Território Indígena: a aprendizagem mediada pelos saberes tradicionais e culturais do povo Tembé trazem uma investigação acerca da identidade e saberes do povo Tenetehára. Aos organizadores deste livro, que reúne parte importante dos trabalhos apresentados durante o encontro Tradução e Interculturalidade:Inclusão e Preservação de Saberes para o Bom Viver, realizado na Cidade de Bragança, de 8 a 10 de dezembro de 2014, é conferido o mérito pelo pioneirismo no trato de qualidade da importância da interface dos estudos linguísticos, literários e culturais sobre culturas do noroeste Amazônico.
Profa. Dra. Ana Suelly Arruda Câmara Cabral (Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas, UnB)
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
Ana Suelly Arruda Câmara Cabral Apresentação
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
A LINGUAGEM PRESENTE NA ESCOLA e os conhecimentos e saberes de pescadores e marisqueiras: algumas reflexões teóricas Viviane dos Santos Carvalho Georgina Negrão Kalife Cordeiro Resumo: Durante muito tempo, a linguagem que prevaleceu na escola ocidental moderna foi a acadêmica, científica, de uma ciência linear, racional, fragmentada, homogênea, ligada à lógica dos colonizadores; portanto, que deslegitima os conhecimentos e saberes dos camponeses, em especial dos pescadores e marisqueiras. Estamos em processo inicial de um estudo de caso da escola do campo Raimundo Martins Filho, situada na comunidade Vila de Bacuriteua, no município de Bragança, Nordeste do Pará, cujos(as) discentes são filhos(as) de pescadores e marisqueiras, na sua quase totalidade. Pretendemos, através dessa pesquisa com viés etnográfico e da utilização de aspectos da história oral, perceber se os saberes e fazeres dos pescadores e das marisqueiras estão inseridos na prática pedagógica da referida escola; além da tentativa de contribuirmos para a valorização da identidade desses grupos pela instituição escolar estudada. Utilizaremos as técnicas da observação participante, entrevista e análise de documentos. Nesta produção escrita, propomos reflexões em torno da conexão da linguagem, seu sentidos e importância, com questões culturais e os conhecimentos da natureza, do trabalho, da vivência dos pescadores e marisqueiras; bem como, um estudo sobre a presença da escola no contexto sociocultural desses pescadores e marisqueiras, como um espaço de socialização de conhecimentos e formação de identidades. Para tanto, lançamos mãos de alguns autores: Kristeva (1969), Hoijer (1974), que abordam sobre a linguagem; Lévi-Strauss (1997), Cuche (1999), Bosi (1992) nas questões de cultura; Arroyo (2012), Munarim (2009),
Viviane dos Santos Carvalho | Georgina Negrão Kalife Cordeiro A linguagem presente na escola e os conhecimentos e saberes de pescadores
Fernandes (2006), Freire (2005) sobre educação do campo; Oliveira (1993), que se refere à linguagem e ao processo de socialização e aprendizagem; Bourdieu (2007), que expõe sobre as relações de poder e a aprendizagem da linguagem; Hall (2005) sobre questões de identidade; entre outros. A partir desse trabalho, pensamos em contribuir para desmitificar a legitimação de alguns saberes, fazeres e linguagens veiculados pela escola como únicos verdadeiros e de relevância. Palavras-chave: Linguagem. Saberes. Escola. Pescadores. Marisqueiras.
Introdução
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Entende-se por campo os “espaços de florestas, pecuária, das minas e agricultura (...) pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas” (Munarim, 2009, p. 56). Quanto às identidades, Backes e Pavan (2010, p. 3) dizem que “estão sempre articuladas com as diferenças, produzindo incessantemente diferenças”, pois “nas relações culturais (...) suas identidades são sempre ressignificadas, perturbadas pelas diferenças, porque marcadas pelas relações de poder”. Stuart Hall (2005, p. 13) também acredita numa identificação diversa do sujeito, com vários aspectos culturais, às vezes contraditórios, mas que dialogam ente si: “nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas”.
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Será que a linguagem veiculada pela instituição escolar do campo1 é significativa para o grupo sociocultural dos camponeses que a frequenta, principalmente dos pescadores e marisqueiras? Será que atende às suas necessidades, às suas crenças? Contribui para a formação de identidades2 desse grupo, de sua valorização em interação com conhecimentos, valores e práticas globais? A cultura desses camponeses é envolvida pela instituição escolar em igual relação de poder comparado às outras culturas? A escola ocidental moderna historicamente tem favorecido à linguagem e à lógica da cientificidade, calcada no racionalismo, no empirismo, no positivismo. Portanto, numa postura exclusivista de qualquer forma de expressão das tradições e dos grupos marginalizados socialmente. Há, desta maneira, a legitimação de certas culturas em detrimento de outras, inclusive na escola, em que se fortalece simbolicamente a identidade de alguns grupos socioculturais em desvantagens de outros, que possuem saberes e fazeres complexos, na
Viviane dos Santos Carvalho | Georgina Negrão Kalife Cordeiro A linguagem presente na escola e os conhecimentos e saberes de pescadores
perspectiva da ciência do “concreto”. Deste contexto excluído, fazem parte os pescadores e marisqueiras de Bacuriteua, comunidade do campo em que estamos realizando a pesquisa. Abordaremos sobre linguagem, questões culturais e os conhecimentos concretos dos pescadores e marisqueiras, em articulação com aqueles presentes na escola: espaço de socialização de conhecimentos e formação de identidades e sobre a escola do campo. Linguagem, cultura, escola e tradição: estabelecendo relações
De acordo com Bourdieu (2007, p. 8), a partir de ideias de Durkheim, os símbolos são instrumentos que contribuem para o consenso do sentido social, gera a reprodução de sua organização e regras, envolve questões morais e promove a comunicação e a socialização do conhecimento dessas regras e significados sociais. Além disso, os universos simbólicos estão presentes no “mito, língua, arte, ciência”.
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A linguagem faz parte do universo simbólico3 de todos os grupos socioculturais, a fim de promover a comunicação, expressão dos pensamentos, planejamento e a intervenção na realidade: “a linguagem é o sistema simbólico básico de todos os grupos humanos (...) A principal função é a de intercâmbio social (...) ordena o real (...) [promove] a mediação entre o sujeito e o objeto de conhecimento” (Oliveira, 1993, p. 42-43). Kristeva (1969, p. 18) também acredita que não existe nenhuma sociedade que não possua linguagem, “tal como não há sociedade sem comunicação” e que ao estudá-la, nos aproximamos “das leis específicas do trabalho simbólico”. Infere-se, desta forma, que a linguagem favorece a objetivação das culturas: seus saberes e fazeres são expressos, socializados, aprendidos, criados e recriados, a partir da sua utilização: “A existência de culturas reais implica (...) na existência de linguagem, desde que a linguagem é um pré-requisito óbvio da transmissão tradicional e desenvolvimento progressivo da cultura” (Hoijer, 1974, p. 56). Há vários significados para “cultura”, contudo, adotamos a perspectiva social e humana para sua utilização, cujo conceito científico foi inventado no século XIX, por Edward Burnett Tylor e tem ligações com questões etnológicas, por tentar compreender a diversidade humana. “Para Tylor a cultura é a expressão da totalidade da vida social do homem (...) não depende da hereditariedade biológica” (Cuche, 1999, p. 35). Para Durkheim, “os fenômenos sociais” estão ligados às questões culturais por serem “fenômenos simbólicos” (Cuche, 1999). Portanto,
Viviane dos Santos Carvalho | Georgina Negrão Kalife Cordeiro A linguagem presente na escola e os conhecimentos e saberes de pescadores
Instrumentos estão mais ligados às questões materiais de mediação, principalmente entre o ser humano e o trabalho e signo se refere a representações mentais do real, que podem ocorrer fora do tempo e do espaço em que se encontra o ser representado, possui características psicológicas (Oliveira, 1993).
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ao abordarmos sobre questões dos grupos humanos, das diferenças entre eles, implicitamente estamos tratando de questões culturais e, consequentemente, ligadas à linguagem. Tanto a cultura como a linguagem são imprescindíveis para a vivência social. A linguagem contribui para a formação de pensamentos e esses são expressos e socializados a partir dela.Encontra-se presente nas escolas, principalmente, a linguagem verbal e favorece o processo de socialização e construção de conhecimentos. Para Vygotsky, como esclarece Marta Kohl de Oliveira (1993), o processo de aprendizagem e desenvolvimento das funções psicológicas superiores do indivíduo ocorrem através da mediação de instrumentos e signos4 internalizados pelo ser humano, numa interação entre o meio físico e cultural, ao passo que este indivíduo torna-se sujeito dos acontecimentos e pode, desta forma, se inserir no contexto sociocultural do seu grupo. A linguagem é um sistema simbólico essencial para a realização desse fenômeno e a escola tem um papel importante como mediadora de signos culturais, assim como a família e o ambiente social como um todo. Iniciamos um estudo de caso na Escola Raimundo Martins Filho, considerada escola do campo, situada na comunidade Vila de Bacuriteua, no município de Bragança (PA), para investigar se os saberes e fazeres dos grupos socioculturais dos pescadores estão presentes na prática pedagógica da referida escola; através de trabalho de campo. Com o objetivo de favorecer a valorização da identidade cultural dos pescadores de Bacuriteua pela escola, apesar de sabermos que não existe pureza cultural (Said, 1993 apud Eagleton, 2011), mas alguns saberes e fazeres específicos a determinados grupos, daí a importância da relação entre conhecimentos locais e globais; entre aqueles significativos para o grupo de pescadores e os conhecimentos acadêmicos veiculados pelas instituições escolares; entre a linguagem popular e tradicional desses grupos da comunidade pesquisada e aquela utilizada nas escolas. Entretanto, como no mestrado o objeto sofre mutações no decorrer do processo, alteramos um pouco o nosso foco de estudo, ao
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estudarmos sobre as perspectivas de vida para o futuro da juventude de Bacuriteua, filhos do grupo sociocultural de pescadores, alunos do oitavo ano da Escola Raimundo Martins e ex-alunos (ou seja, da instituição que começamos o estudo de caso), a fim de percebermos a influência da cultura acadêmica escolar e a cultura da tradição dos seus pais pescadores nestes planos de vida. O fato de existirem relações desiguais de poder cultural, não significa que há uma cultura melhor que outra, mas legitimações culturais diferentes: “a antropologia cultural introduz a ideia de relatividade das culturas e de sua impossível hierarquização a priori” (Cuche, 1999, p. 48), diferente das visões etnocêntricas que põem nosso grupo como o centro de tudo e “todos os outros grupos são medidos e avaliados em relação a ele” (Cuche, 1999, p. 46). As desigualdades políticas entre as culturas perpassam pela discussão do poder simbólico. Ele envolve o discurso dos diferentes grupos socioculturais, está em todos os lugares, é subliminar e usado mais por alguns grupos para submeterem os outros aos seus interesses. Contribui paradiminuir a legitimação dos saberes e fazeres de certas culturas em prol de outras; provoca a desigualdade de poder cultural e econômica, segundo Bourdieu (2007). Os pescadores e marisqueiras possuem valores, saberes, práticas importantes, significativas e que não podem ser ignorados pela escola, em prol da legitimação do poder das culturas e classes econômicas dominantes, para que a identidade e poder desses pescadores e marisqueiras se ampliem em interação com as outras culturas. Os grupos sociais de pescadores e marisqueiras foram escolhidos como grupos socioculturais locais mediante a maioria dos discentes pertencer a esta realidade cultural (os pais e mães dos alunos desenvolvem atividades econômicas na pesca e com mariscos), além de fazer parte de uma camada da sociedade cujos conhecimentos práticos, tradicionais são excluídos das várias instituições sociais historicamente. Contudo os pescadores emarisqueiras possuem um saber da experiência de vida e da natureza e um fazer tradicionais valorosos do ponto de vista de manutenção das tradições, dos mitos, do imaginário, além do cuidado com a preservação do meio ambiente, dos valores familiares, de uma perspectiva de trabalho coletivo entre outros. Acreditamos que “no homem, não se pode dissociar cultura e natureza” (Durand, 2008, p. 16). É através do trabalho, com sua ação de transformação da natureza, que há a união entre homem e natureza, o surgimento da cultura e da história do ser humano (Oliveira, 1993). Por meio da escola Raimundo Martins Filho vislumbramos alcançar os discentes, os ex-alunos e até suas famílias dos pescadores, a fim de realizarmos entrevistas sobre suas perspectivas de vida futura,
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Viviane dos Santos Carvalho | Georgina Negrão Kalife Cordeiro A linguagem presente na escola e os conhecimentos e saberes de pescadores
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sobre vivências de trabalho, valores familiares, crenças, enfatizadas pelo grupo de pescadores e pela influência da escola em suas decisões futuras: os grupos culturais em que as crianças nascem e se desenvolvem funcionam no sentido deproduzir adultos que operam psicologicamente de uma maneira particular, de acordo com os modos culturalmente construídos de ordenar o real (Oliveira, 1993).
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Fonte: Relatório da SEMED, 2014. Etimologicamente, é uma palavra de origem indígena, que denomina a área com grande quantidade de fruto de uma árvore chamada bacurizeiro (Fonte: Projeto: Pesca: Origem, Cultura e Economia de Bacuriteua, 2013).
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A história oral, a partir de histórias particulares e dos grupos será relevante para a pesquisa. Além de aspectos da etnografia, como a presença do pesquisador em campo, na comunidade, por um tempo significativo. Sobre o contexto de nossa pesquisa, a Escola Raimundo Martins Filho faz parte da Secretaria de Educação do município de Bragança. Dentre os sete polos de educação do campo, pertence ao polo de Ajuruteua, que engloba 14 escolas5. A referida instituição escolar atende ao público de primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental, com uma turma de oitavo ano e inclui a Educação de Jovens e Adultos. Os educandos residem nas comunidades Vila de Bacuriteua, Vila do Meio, Pontinha e Vila Verde. Possui aproximadamente 486 alunos. Foi inaugurada em 2009, com o objetivo de ser uma escola modelo para educação do campo. Nela há 26 docentes (a maioria residente em Bragança). Situa-se na comunidade de Bacuriteua, no referido município. Bacuriteua6 localiza-se à margem esquerda do Rio Caeté, há aproximadamente nove quilômetros da sede, que faz parte da microrregião bragantina, no nordeste do Pará ou Amazônia Atlântica. Tanto Bacuriteua como Bragança são considerados polos pesqueiros: a pesca é um aspecto econômico importante, gerando empregos e renda, até exportação de pescado. A pesca artesanal (para subsistência) existe em pequena escala. Além da proximidade do rio, a comunidade também fica próxima ao mangue, favorecendo o extrativismo de mariscos, principalmente de caranguejos. A atividade econômica da pesca atrai pessoas de outros lugares, outros estados: há a presença de migrantes, na sua maior parte
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nordestinos, denominados pela população local de “cearenses”, mesmo que seja de outro estado. Conforme projeto encontrado na escola da pesquisa7, Bacuriteua existe há uns duzentos anos, cuja história sofre influência da construção da rodovia Bragança-Ajuruteua, que corta a comunidade ao meio. É rica de narrativas, principalmente voltadas para as águas e as matas, de expressões simbólicas, artístico-culturais e religiosas. É uma das maiores comunidades do município, com aproximadamente cinco mil habitantes8, em 2013. Sofre grande influência urbana, por estar muito próxima da cidade, tornando-se uma área de transição. A sua posição geográfica é extremamente interessante porque a torna uma espécie de entre-lugar, uma vez que está situada ao mesmo tempo nas proximidades do mundo urbano bragantino e daquela que pode ser considerada a zona rural do município. Sendo assim, este caráter de fronteira (não apenas física, mas, também, cultural) revela que a vida tanto está em diálogo constante com o imaginário urbano quanto com as paisagens com forte influência dos naturais (floresta de mangue, igarapés, campos e a costa atlântica) (Souza, 2013, p. 24).
Projeto: Pesca: Origem, Cultura e Economia de Bacuriteua, realizado pela comunidade escolar Raimundo Martins Filho, em 2013. 8 Fonte: posto de saúde da comunidade, informação retirada do Projeto: Pesca: Origem, Cultura e Economia de Bacuriteua, de 2013.
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Percebe-se uma complexa formação cultural nas relações dos moradores de Bacuriteua, por ser uma localidade que gera bons recursos econômicos, que sofre influência da zona urbana, mas que possui também no seu imaginário características do campo. Ao nos referirmos ao contexto pesquisado, este ultrapassa questões geográficas de espaço e perpassa pela discussão de territorialidade. Por isso, o tipo de escola que se defende, é a escola do campo. Ela contribui para se manter a territorialidade: “espaço de vida (...) espaço geográfico onde se realizam todas as dimensões da existência humana” (Fernandes, 2006, p. 28-29). Arroyo (2012, p. 34) defende que há uma dicotomia, uma bipolarização promovida pela escola, cuja lógica consiste em considerar aqueles que vivem no campo como ignorantes, “incultos, primitivos, até selvagens”, que precisam da escola para receberem a “luz do conhecimento”, conforme propõe o iluminismo. Portanto, há outro grupo (docentes, coordenadores, “elite cultural”) que são os
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“racionais, cultos, bem pensantes”, que planejam, coordenam, orientam, possuem a terra, o poder e o conhecimento. Desta forma, o conhecimento vivenciado nas instituições escolares não é neutro, atende a valores, ideologias, saberes, fazeres de determinados grupos socioculturais dominantes que os elaboram, como também às leis e aos estatutos escolares.
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A legitimação do poder da classe dominante ou das culturas dominantes, em busca da hegemonia de seu grupo, se processa, dessa forma, como a aceitação inconsciente dos valores, saberes e fazeres, da cultura, da linguagem dos primeiros pelas classes ou culturas dominadas. Os valores dominantes passam a ser a verdade e a referência de modo de vida, inclusive exaltam a linguagem da ciência acadêmica em detrimento daquela produzida pelos dominados. A essa situação, Bourdieu (2007) denomina de violência simbólica, tomando como referência ideias de Max Weber. Sabemos que as escolas ocidentais modernas dos países colonizados sempre favoreceram a visão do colonizador europeu em suas práticas pedagógicas: do branco, heterossexual, urbana, adultocêntrica, patriarcal e dos donos do capital. Cuche (1999), parafraseando Lévi-Strauss, defende a ideia de que os homens apresentam dificuldade de aceitar a diferença como consequência da interação direta ou indireta entre as sociedades. As instituições escolares acabam estruturando a socialização de visões e de conhecimentos distantes dos saberes e identidadeslocais, desfavorece a valorização das diferenças, por frisar a unidade, abstrata e global, numa perspectiva cultural evolucionista e de reprodução de desigualdades sociais, políticas e econômicas: “a função (...) ideológica do discurso dominante (...) tende a impor a apreensão da ordem estabelecida como natural (...) por meio da imposição mascarada (...) de sistemas de classificação e de estruturas mentais (Bourdieu, 2007, p. 14). Muitas vezes, a escola é responsável por disseminar a ideologia dominante e uma lógica da homogeneização, da exclusão da diversidade e da fragmentação, defendida pelo racionalismo,
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A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções (Bourdieu, 2007, p. 10).
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positivismo, empirismo e pelo evolucionismo, fundamentos epistemológicos tão presentes no início da escola moderna, incentivados pelo iluminismo e pelas ciências naturais: o esquema evolucionista das diferenças humanas “privilegia a unidade e minimiza a diversidade, reduzindo a uma diversidade ‘temporária’” (Cuche, 1999, p. 33). A linguagem escolar da modernidade prende-se a visões e práticas que não admitem os saberes e fazeres da “ciência concreta”, exposta por Lévi-Strauss (1997), como os conhecimentos dos pescadores e marisqueiras, ricos em mitos e rituais, em observações, análises da natureza, conforme à sua necessidade.
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A observação dos fenômenos naturais da maré, dos ciclos de reprodução das espécies de peixes e mariscos, da correnteza, dos ciclos climáticos, os saberes de conservação dos mexilhões, dos peixes, os utensílios e instrumentos criados ou adaptados para o trabalho, conhecimentos técnicos, adquiridos na vivência, os testes de situações do cotidiano, aprendidos tradicionalmente de uma geração mais nova a partir da mais antiga de pescadores e marisqueiras, através da aprendizagem por tradição, não é mais inferior do que as altas técnicas científicas com sua tecnologia de ponta: apenas é diferente. Para Lévi-Strauss (1997, p. 29), a “postura científica” de observação constante e demorada, bem como o “inventário sistemático” de inter-relações, interpretações dos fenômenos realizados pelas comunidades tradicionais acaba se constituindo na ciência do concreto, com resultados importantes: “cada uma dessas técnicas supõe séculos de observação ativa e metódica, hipóteses ousadas e controladas, a fim de rejeitá-las ou confirma-las através de experiências incansavelmente repetidas”. Além do mais, toda essa metodologia é ensinada de pai para filho ou entre parentes. A aprendizagem por tradição ocorre de forma assistemática, de maneira familiar, conforme às necessidades sociais do grupo; aquela
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(...) os mitos e os ritos oferecem como valor principal a ser preservado até hoje, de forma residual, modos de observação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem) exatamente adaptados a descobertas de tipo determinado: as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração especulativa do mundo sensível. Essa ciência do concreto devia ser, por essência, limitada a outros resultados além dos prometidos às ciências exatas e naturais, mas ela não foi menos científica, e seus resultados não foram menos reais. Assegurados dez mil anos antes dos outros, são sempre o substrato de nossa civilização (Cuche, 1999, p. 31).
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que ocorre na prática pedagógica da escola é sistematizada,porém não exclui a possibilidade de valorização e diálogo com os conhecimentos prévios, os saberes socioculturais do público que a frequenta, sua “fala”. O ensino e a aprendizagem da fala são um processo deslocado, pois ocorrem em situações diferentes daquelas em que os fatos aconteceram e ao mesmo tempo que outros elementos de aprendizagem, quando os mais jovens internalizam não apenas “os padrões da fala”, mas também “de cultura” (Hoijer, 1974). A linguagem do grupo sociocultural dos pescadores e marisqueiras é um sistema de signos e símbolos fundamentais para comunicação, mas também para otrabalho, a fim de se socializar os seus códigos ou códigos restritos (Bernstein apud Silva, 2000)9, seus conhecimentos: aqueles mais particulares, locais, sem deixar de interagir com o global. A fim de se planejar, criar instrumentos e signos de intervenção consciente na realidade: É a partir de sua experiência com o mundo objetivo e de contato com as formas culturalmente determinadas de organização do real (e com os signos fornecidos pela cultura) que os indivíduos vão construir seu sistema de signos, o qual consistirá numa espécie de “código” para decifração do mundo (Oliveira, 1993, p. 37).
Para Bernstein, conforme expõem Silva (2000), existem dois tipos de códigos: o restrito e o código elaborado. Neste último, o texto ou linguagem produzidos independem do contexto, já no código restrito, o significado da linguagem verbal depende dos aspectos sociais do grupo que a utiliza, ou seja, do contexto.
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Apesar de haver variação nos significados das palavras (a língua é viva), tendo em vista a função de produtividade da linguagem (Hoijer, 1974), os termos de um grupo cultural são significativos para esse grupo, formando seu código restrito, apesar das alterações. Nem sempre conseguimos perceber os códigos restritos de determinados grupos sociais, simplesmente por não fazermos parte do contexto cultural daquele local: para Boas “cada cultura representava uma particularidade singular” (Cuche, 1999, p. 45). É preciso, para isso, a vivência no local, como fazem os etnólogos ou os estudos etnográficos. Muitas vezes a escola não proporciona uma aprendizagem significativa, por não inserir no seu trabalho a realidade, a linguagem dos grupos socioculturais que a frequentam, como ados pescadores e
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marisqueiras (pais e mães dos discentes da Escola Raimundo Martins Filho). O significado é fundamental para a relação do indivíduo com o mundo. A união entre as “duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social e o pensamento generalizante” (Oliveira, 1993, p.48) só ocorre por meio do significado, porque ele possibilita a “mediação simbólica” entre o sujeito e a realidade, ao se constituir no “filtro” que favorece a compreensão e ação da pessoa sobre o mundo (Oliveira, 1993). Na educação popular, na educação do campo há a necessidade de se ouvir o outro, sentir a realidade, trabalhar com o outro e não para o outro, por isso de interação significativa: sua metodologia é centrada na problematização, nos temas geradores (aqueles que partem das situações-problemas da vida e do cotidiano, da comunidade) em interação com os conteúdos científicos; com a finalidade do indivíduo e do grupo tomarem consciência de sua competência como sujeito (Freire, 2005). A instituição escolar é mais um espaço de socialização do universo simbólico, principalmente do conhecimento científico e da linguagem. É imprescindível, que se leve em conta a ciência do concreto, o modo como as pessoas no seu cotidiano (no nosso caso os camponeses: pescadores e marisqueiras) compreendem a realidade, analisam problemas e utilizam metodologias para resolverem os seus problemas.
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A linguagem e conhecimentos das instituições escolares têm forte ligação com o saber de uma cultura dominante do colonizador e dos donos do capital, cuja lógica ainda é a do racionalismo e do positivismo da ciência moderna. Apesar de haver tentativas de mudanças, ainda muito teóricas e algumas ações no sentido de inserção dos saberes e fazeres do senso comum e de outros tipos de conhecimentos. Desta forma, conclui-se que os pescadores e marisqueiras podem não ter seus conhecimentos contemplados pelas instituições escolares. Vislumbra-se um tipo de linguagem, de ciência e de escola que promovam a atuação dos indivíduos excluídos como sujeitos, para que estes transformem a realidade em prol das necessidades de seu grupo sociocultural, mas que possam interagir com outras linguagens, com outras culturas; e continuem mantendo a identidade com sua cultura de origem, valorizando-a. Busca-se uma instituição escolar do campo em que os pescadores e marisqueiras possam se enxergar, principalmente pela linguagem, símbolos e
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Conclusão
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saberes que ela veicula no processo de socialização; que valorize as identidades dos grupos que a frequentam.
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A NEGOCIAÇÃO DE SENTIDOS e a constituição dos papéis sociais em uma aula de leitura no ensino superior Maria da Conceição Azevêdo Resumo: Nesta comunicação, trazemos à discussão um estudo em que analisamos o funcionamento discursivo de uma interação em sala de aula, enfocando os modos como a professora e os alunos, por meio de comportamentos verbais e não verbais, interagem reciprocamente para dar acabamento a uma interação singular, na qual os sentidos não estão dados, mas vão sendo construídos conjuntamente. Intentamos examinar de que maneira os padrões interacionais nos permitem observar a distribuição dos papéis sociais entre os participantes e as funções dos atos de linguagem praticados na cena didática, em termos de uma configuração discursiva que deriva das particularidades de um ambiente de ensino institucional. Os dados considerados na análise originaram-se de um recorte do corpus de nossa pesquisa de Mestrado, em que foram registradas em vídeo as aulas da disciplina “Produção e Compreensão de Textos II”, ministradas para uma turma do segundo período do Curso de Letras da Universidade Federal do Pará, no Campus de Bragança/PA. Selecionamos para análise um episódio didático em que a professora faz a correção de um exercício de compreensão textual. Tomando como pressuposto a concepção da natureza interacional e dialógica da linguagem (Bakhtin, 2003, 1988), fundamentamos nossa análise em dois eixos temáticos: estudos que tematizam a organização das interações e a constituição das práticas discursivas em situações de ensino e aprendizagem (Mehan, 1979; Mortimer; Scott, 2002; Geraldi, 1997); reflexões sobre os exercícios de compreensão textual (Marcuschi, 1996, 2001). O estudo nos permitiu constatar que: i) a organização das trocas discursivas entre a professora e os alunos é determinada, em grande medida, pelo formato do
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exercício, que conduz à negociação de sentidos em função das instruções contidas nas questões propostas; ii) a constituição das interações em situações de sala de aula demanda dos sujeitos a assunção de papéis convencionados institucionalmente, o que pode conduzir a uma inversão dos papéis dos participantes e das funções dos atos de linguagem. Palavras-chave: Padrões de interação. Dialogismo. Ensino superior. Aula de leitura.
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Neste artigo, pretendemos descrever e analisar o funcionamento discursivo de uma interação em sala de aula, enfocando os modos como a professora e os alunos, por meio de comportamentos verbais e não verbais, interagem reciprocamente para dar acabamento a uma interação singular, na qual os sentidos não estão dados, mas vão sendo construídos conjuntamente. Intentamos examinar, complementarmente, de que maneira os padrões interacionais nos permitemobservar a distribuição dos papéis sociais entre os participantes e as funções dos atos de linguagem praticados na cena didática, em termos de uma configuração discursiva que deriva das particularidades de um ambiente de ensino institucional. Os dados analisados constituem-se em um recorte do corpus de nossa pesquisa de mestrado (Azevêdo, 2010), na qual enfocamos as práticas de ensino da leitura e da produção de textos em aulas da disciplina Produção e Compreensão de Textos II, numa turma de segundo período do curso de Letras, habilitação Língua Portuguesa, da Universidade Federal do Pará, no município de Bragança/PA. A partir desses dados, constituídos por meio da observação e do registro, em vídeo, das aulas dessa disciplina, selecionamos, para análise, um episódio relativo à correção de questões de compreensão textual. Tomamos como pressuposto de nosso estudo a concepção da natureza interacional e dialógica da linguagem, tal como definida por Bakhtin (2003), que considera qualquer ato de enunciação como produto das relações sociais que os sujeitos estabelecem uns com os outros. Para compreender o complexo processo da comunicação verbal, é necessário considerar que a enunciação (oral ou escrita) implica sempre uma “atitude responsiva ativa” (Bakhtin, 2003, p. 290). Frente a um enunciado, o enunciatário não recebe, passivamente, os significados produzidos pelo enunciador. A atitude daquele consiste em concordar ou discordar (no todo ou em parte), completar, adaptar, preparar-se para executar, produzir outro enunciado, conforme a situação o exija. Atitude esta que ocorre durante todo o processo de
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Introdução
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participação em uma situação de enunciação.Nessa perspectiva, pensar a compreensão das significações do discurso ouvido ou lido implica entendê-la como compreensão responsiva ativa: “toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz” (ibidem, p. 290). A resposta pode se materializar em outro enunciado ou em um comportamento que, não necessariamente, vai suceder imediatamente ao enunciado que a suscitou. Especificamente em termos de enfoque teórico, fundamentamos nossa análise emestudos que tematizam a organização das interações e a constituição das práticas discursivas em situações de ensino e aprendizagem (Mehan, 1979; Mortimer; Scott, 2002; Geraldi, 1997).
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Mortimere Scott (2002, p. 1-2), em um estudo no qual introduzem uma ferramenta analítica dos modos como o professor interage com os alunos para promover a construção de significados em salas de aula de ciências, postulam que “as interações discursivas são consideradas como constituintes do processo de construção de significados”, inspirando-se nas pesquisas de base sócio histórica ou sociocultural, que concebem os significados como constitutivamente polissêmicos e polifônicos, produtos da interação social internalizados pelos sujeitos. É nessa perspectiva que os estudiosos elaboram uma estrutura analítica baseada em cinco aspectos interrelacionados, para focalizar o papel do professor em interações voltadas à produção de significados: 1) Intenções do professor; 2) Conteúdo; 3) Abordagem comunicativa; 4) Padrões de interação; 5) Intervenções do professor. Os aspectos 1 e 2 relacionam-se aos focos do ensino; os aspectos 4 e 5 referem-se às ações propriamente ditas. Já o aspecto 3trata dos tipos de abordagem adotados pelo professor, em termos dos modos como trabalha as intenções e o conteúdo do ensino em suas intervenções pedagógicas, o que resulta em diferentes padrões de interação (Mortimer, Scott, 2002, p. 5). Este aspecto interessa-nosmais particularmente, pois constitui uma das categorias de análise que adotamos. Os pesquisadores identificam quatro classes de abordagem comunicativa, definidas com base na caracterização do discurso nas interações entre professor e alunos ou entre alunos, o que lhes permitiu identificar duas dimensões: discurso dialógico ou de autoridade; discurso interativo ou não-interativo. Na primeira dimensão, os autores apresentam duas abordagens extremas: i) o discurso dialógico é definido como um tipo de abordagem em que o professor considera os
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Padrões de interação e abordagem comunicativa como categorias de análise dos discursos de sala de aula
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pontos de vista dos estudantes, assim, “mais de uma voz é considerada e há uma interanimação de ideias”; ii) o discurso de autoridade se caracteriza como uma abordagem em que o professor considera o que é dito pelo estudante “apenas do ponto de vista do discurso científico escolar”, dessa forma, é considerada apenas uma voz enão há interanimação de ideias1. Na segunda dimensão, são consideradas as interações sob o aspecto da participação dos interlocutores: i) o discurso interativo ocorre quando hámais de um participante, alternando os turnos de fala; ii) o discurso não-interativo acontece quando não háalternância de turnos, ou seja, só um participante ocupa a fala (Mortimer; Scott, 2002, p. 5). Combinando as duas dimensões, os estudiosos geram quatro classes de abordagem comunicativa, demonstradas no quadro 1 a seguir: Quadro 01: Quatro classes de abordagem comunicativa Dialógico De autoridade
Interativo Interativo/dialógico Interativo/de autoridade
Não-interativo Não-interativo/dialógico Não-interativo/de autoridade
Fonte: (Mortimer; Scott, 2002, p. 6).
Os autores alertam que, na prática, qualquer interação pode conter aspectos das funções dialógica e de autoridade, simultaneamente. Segundo eles, essa dimensão baseou-se, inicialmente, na distinção estabelecida por Bakhtin (1981) entre discurso de autoridade e discurso internamente persuasivo e na noção de dualismo funcional de textos num sistema cultural, elaborada por Lotman (1988). Mortimer e Scott não negam o princípio dialógico da linguagem, considerando as funções dialógica e de autoridade como categorias que permitem a análise das interações de sala de aula, portanto, definidas em termos de sua utilização para fins de pesquisa.
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Outro aspecto que nos interessa, como categoria para a análise proposta, são os padrões de interação. Esses padrões são utilizados para examinar as formas como se distribuem os turnos de fala entre professor e alunos ou entre alunos, nas pesquisas que investigam as trocas discursivas em salas de aula e suas implicações para uma melhor compreensão sobre o que efetivamente ocorre nesse tipo particular de interação. Em sua investigação sobre a organização social da interação entre professor e alunos numa escola elementar, sob uma abordagem denominada etnografia constitutiva, Mehan (1979) utiliza o padrão triádico I-R-A (Iniciação do professor, Resposta do aluno e Avaliação do professor) para descrever as aulas como situações de interação
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constituídas de uma organização sequencial e hierárquica. Em aulas centradas no professor, esse tipo de padrão costuma ser predominante, mas não necessariamente exclusivo. Há padrões variados, identificados a partir de outras pesquisas, tal como demonstram Mortimer, Scott (2002, p. 6), que se referem a cadeias não triádicas do tipo I-R-P-R-P... ou I-R-F-R-F..., em que P corresponde a uma ação discursiva do professor que visa motivar o prosseguimento da fala pelo aluno, podendo ocorrer na forma de uma intervenção curta, com repetição de parte da fala do aluno, e F corresponde ao feedback do professor visando uma melhor elaboração da fala por parte do aluno. Segundo Tourinho e Silva (2008, p. 69), esses padrões “podem constituir cadeias fechadas, quando finalizadas por uma avaliação do professor (I-R-F-R-F-A), ou abertas, quando não ocorre talavaliação (I-R-F-R-FR-)”.Consideramos que, no caso das cadeias fechadas, ocorre o que Mehan (1979, p. 54-55) descreve como sequências estendidas de interação, em que a “resposta esperada não aparece sempre imediatamente depois de um ato de iniciação”. Podem ocorrer respostas consideradas incorretas, incompletas, ou respostas ao invés de reações, o que levaria a uma sequência extensa de interação entre professor e alunos, até que a resposta adequada seja obtida. Tourinho e Silva (2008, p. 69) aponta ainda a existência de outros tipos de padrão, como aqueles em que a iniciação é realizada pelos próprios alunos e as situações de interação entre professor e alunos cuja complexidade não pode ser relacionada a padrões determinados de iniciação e respostas, cuja ocorrência denomina genericamente como “trocas verbais”. Para identificar os diferentes padrões de interação, é necessário categorizar cada turno de fala, ou parte dele, já que, em várias situações, um turno de fala pode conter a avaliação de uma sequência discursiva anterior e a iniciação de uma nova sequência, como alerta Tourinho e Silva (2008). Mehan (1979, p. 44-46), ao analisara chamada “instructionalphase” das aulas, chega a quatro tipos de iniciação: 1) iniciação de escolha, em que aquele que inicia solicita que o seu interlocutor concorde ou discorde, ou ainda selecione um item dentre os indicados na iniciação; 2) iniciação de produto, quando o iniciador solicita “uma resposta factual, ou seja, um nome, um lugar, uma data, uma cor”; 3) iniciação de processo, em que é solicitado ao interlocutor que exponha sua opinião ou interpretação a respeito de algo; 4) iniciação de metaprocesso, na qual o interlocutor é instado a refletir sobre o processo de estabelecer conexões entre as iniciações e as respostas, em outros termos, o interlocutor é levado a formular os fundamentos do seu raciocínio, os modos como ele chegou à resposta.
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Em seu estudo, Mehan (1979, p. 50) conclui que a cada tipo de iniciação corresponde regularmente um tipo de resposta, assim, temse:resposta de escolha, de produto, de processo e de metaprocesso. Porém, nas situações de interação em sala de aula,nem sempre um tipo de iniciação gera, obrigatoriamente, uma resposta equivalente. Por exemplo, eventualmente, os alunos podem formular uma resposta de produto a uma iniciação de escolha. As categorias de abordagem comunicativa e de padrões interacionais nos serão úteis como ferramentas para analisar uma situação de sala de aula voltada para a correção de questões de compreensão textual, que apresentamos a seguir. O contexto didático
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Durante a coleta dos dados as disciplinas estavam sendo ofertadas em blocos, ou seja, uma disciplina por vez. Assim, havia aulas de segunda a sábado, sendo cada encontro diário correspondente a 4 aulas. O termo “episódio” é uma adaptação proposta por estudiosos do campo do ensino de ciências, a partir da noção de evento, tal como concebida pelos etnógrafos interacionais: “um episódio é definido como um conjunto coerente de ações e significados produzidos pelos participantes em interação, que tem um início e um fim claros e que pode ser facilmente discernido dos eventos precedente e subseqüente. Normalmente, esse conjunto distinto é também caracterizado por uma função específica no fluxo do discurso” (Mortimer; Massicame; Buty; Tiberghien, 2005, p. 03). Trata-se de uma atividade que consta na obra Resumo (Machado; Lousada; Abreu-Tardelli, 2004), um dos volumes de uma coleção
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Em nossa pesquisa de Mestrado, realizamos o registro das aulas da disciplina Produção e Compreensão de Textos II, ministrada auma turma quecursavao segundo período da Licenciatura em Letras com habilitação em Língua Portuguesa, no turno noturno. Conforme Projeto Pedagógico do Curso vigente na época, o enfoque dessa disciplina incide sobre as atividades de leitura e produção de textos argumentativos, como continuidade do nível I da mesma disciplina, voltada à fundamentação teórica básicasobre os processos de recepção/produção textual. Com uma carga horária de 68h, a disciplina ocorreu entre os dias 19 de novembro e 05 de dezembro de 20082. O episódio3 considerado nesse estudose compõe de um conjunto de atividades em torno da correção de um exercício de compreensão textual baseado na leitura prévia do artigo de opinião intitulado “Cultura da paz”4, conjunto esse recortado das aulasregistradas nas
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noites de 27 e 28 de novembro. Devido à limitação própria a um trabalho como este, optamos por enfocar as sequências discursivas que constituem a segunda parte do episódio em questão, ocorrida na aula de 28 de novembro. Nesta noite, a professora dá continuidade à correção do exercício, iniciando pela quarta questão. Elaboramos um quadro que permite a visualização geraldas sequências discursivas que constituíram esta segunda parte do episódio, cuja transcrição é constituída de 269 turnos, correspondentes a 39 minutos daquela aula registrados em vídeo. Vejamos quais as sequências discursivas que conformam essa segunda parte do episódio: Quadro 02: Sequências discursivas que constituem o episódio “correção de exercício de compreensão” Sequência Título Turnos 1 Organizando a turma e retomando a correção 1 a 16 das questões 2 Corrigindo a questão 4 – itens “b” e “c” 16 a 54 3 Corrigindo a questão 5 55 a 89 4 Corrigindo a questão 6 90 a 104 5 Corrigindo a questão 7 104 a 143 6 Corrigindo a questão 8 – itens “a” a “f” 143 a 270
Tendo em vista a longa extensão de algumas das sequências discursivas, optamos por descrever de forma abrangente cada uma e, nos casos em que consideramos aspectos de maior relevância para nosso estudo, apresentaremos alguns excertos ilustrativos e os analisaremos em maiores detalhes.
direcionada à leitura e produção de textos técnicos e acadêmicos. Fora reproduzida para os alunos a seção 5, que contém um exercício de leitura voltado à compreensão global do texto (p. 33-39).
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Na sequência discursiva inicial – turnos 1 a 16, a professora organiza a turma para a retomada da correção do exercício, a partir da quarta questão. Os comandos desta e das questões seguintes do exercício exploram a compreensão global do conteúdo do texto lido, focalizando sua orientação argumentativa. Na sequência 2 – turnos 16 a 54 – o foco é a questão 4, cujo comando apresenta-se dividido em três itens: “a”, “b” e “c”. Após constatar, com os alunos, que o item “a” já fora corrigido em aula
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A correção do exercício de compreensão: “a senhora tá falando... a senhora é professora”
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A2: "dê os exemplos que o autor dá para comprovar... que o fato é verdadeiro" ((lendo comando do item “b” da quarta questão)) P: sim... o autor constata o fato... e dá exemplos para mostrar que o fato a que ele se refere é verdadeiro... quais foram os exemplos que vocês... conseguiram... extrair do texto?... dois segundos pra vocês se localizarem Als: ((risos)) A4: o filme ( ) P: estamos na letra b da quarta questão A4: o filme (de arnoldschwarzenegger) P: é A5: banqueiros... militares P: isso está no primeiro parágrafo... não é?... sim... quais são? no primeiro parágrafo do texto... quais são?... o primeiro exemplo que ele dá... depois ( ) A3: é a letra b? P: vocês acham que:: que:: a lógica dos dinossauros... Als: [é:: P: [já é um exemplo que ele está dando? Als: é:: é verdade P: já é um exemplo? A5: não... não é não P: ainda não é um exemplo... vamos ver aqui os exemplos que ele dá pra CULTUra de hoje... não é?... a cultura A2: "praticamente em todos os países as festas nacionais... e seus heróis são ligados a feitos... de guerra" ((sorri)) P: é... isso aqui é o exemplo da cultura dominante ho::je né?... sim... claro... que os éh:: as festas nacionais... em quase todos os países os heróis estão ligados a quê?... a feitos de guerra e de::? Als: violência P: esse aí é o primeiro exemplo que ele dá... segundo exemplo?... A3: o filme P: segundo exemplo? A4: o filme P: é... mas ele... quando ele chega a dar o exemplo "bem simbolizado nos filmes"... ele está se referindo a que... a que os
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anterior e rememorar a resposta, a professora solicita que uma aluna leia o item “b”: ENTÃO a letra B... a letra b denise... por favor(turno 16). Em seguida, ela procura ouvir dos alunos suas respostas: (1)
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Vemos que a tríade I-R-A não predomina, ocorrendo em bem poucas trocas discursivas, como ocorre, por exemplo, entre os turnos 33 a 35. Por sua vez, a ocorrência de sequências estendidas de
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MEIOS de comunicação também... os meios de comunicação que nos... LEVAM... a a:: promovem na verdade um grau intenso... essa cultura da violência... e os/o exemplo que ele dá são os filmes do::... o "exterminador do futuro" do arnoldschwarzenegger né?... então os filmes aí como exemplo de que a CULTURA éhéh dominante também promove a violência é um segundo exemplo... né?... o terceiro exemplo?... há um terceiro exemplo?... qual é? A6: os processos de:: socialização? A7: ( ) P: processos? A6: processos de sociali/socialização formal e informal? P: ele dá um exemplo... ele dá um exemplo antes né? que ele fala A6: "nessa cultura o militar o banqueiro e o especulador valem mais que do que o poeta"? P: exatamente... isto é um outro exemplo que ele dá né?... ele se reporta a a:: a CULTUra que é promovida... uma cultura da violência... MOStra que que em termos de profissões "o militar o banqueiro o especulador valem mais do que o poeta o filósofo e o santo"... é um outro exemplo... aLÉM... do primeiro exemplo que ele dá... o primeiro foi... as festas né? os heróis estão ligados também... à cultura da violência... então vejam que são TRÊS EXEMPLOS que ele dá... de que pra sustentar... pra comprovar aquele fato ( ) é verdadeiro né?... éh:: agora... a:: A LETRA C... a letra c diz assim "levante a questão que o autor vai discutir a partir da constatação desse fato"... qual foi a questão que vocês encontraram?... constatou o fato... exemplificou... e vai fazer uma questão A3: "é possível su:: superar ou" A2: "é possível superar ou controlar a violência?" P: como? Als: "é possível superar ou controlar a violência?" P: justamente... é esta a questão que o autor... que o autor levanta né?... é isso mesmo... alguém con/alguém discorda?... porque... é interessante quem quem fez uma ou/deu uma resposta?... quem... pensou diferente... é bom falar pra discutirmos... isso é que gera... na verdade o:: o entendimento... para não ficar algo muito passivo assim né?... mas todos concordam com isso não é? [...]
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interação é bem mais frequente, com uma complexidade que não podemos reduzir a único um tipo de padrão interacional. As iniciações são predominantementede produto, como ocorre nos turnos 18, 25, 37 e 39, por exemplo. Há também algumas iniciações de escolha, como constatamos nos turnos 27 e 29. Interessanos destacar que as iniciações do tipo produto ou são fruto das questões do exercício, em seu formato original, relidas no momento da correção, ou são motivadas por este formato, assim, a professora, para levar os alunos à identificação das respostas consideradas adequadas, utiliza iniciações semelhantes às próprias questões da atividade. O que nos parece ocorrer nessa segunda sequência do episódio sãotrocas verbais extensas entre a professora e os alunos, provavelmente motivadas pela sua preocupação de que a turma identifique as respostas “corretas” para as questões propostas no exercício. Isso talvez explique o fato de que a docente, enquanto não ouve, dos alunos, as respostas que espera, utiliza várias estratégias de indução após respostas incorretas ou incompletas, como percebemos,por exemplo, nos turnos 25, 27, 29, 46; derepetição, ilustradas nos turnos 31 e 39; e de simplificação, como vemos no turno 35 (Mehan, 1979, p. 55). Chamou-nos a atenção, particularmente, o modo como a professora conclui a correção da quarta questão, no turno 53. Ela elabora uma iniciação de escolha voltada para uma pergunta do exercício do tipo produto. Ora, a resposta é identificada sem muita dificuldade pelos alunos (turnos 49, 50 e 52), pois está inscrita de forma bem objetiva no conteúdo do texto lido.Então, o que teria levado a docente a produzir tal tipo de iniciação? Como o conteúdo de sua fala no turno 53 indicia, ela está preocupada em tornar sua aula mais participativa. O uso da primeira pessoa do plural e a convocação para que aqueles que por ventura tivessem respondido diferentemente se expressassem nos parece ser uma tentativa da professora de imprimir à aula um dialogismo que, no entanto, nesse momento em particular, não é coerente com o formato da questão do exercício, cuja resposta está inscrita objetivamente no texto, bastando ser identificada, portanto, não há o que discutir, não há sobre o que opinar. Assim, embora o discurso da docente pareça apontar para uma efetiva participação dos alunos na discussão a respeito do texto, em direção a uma enunciação dialógica, fica evidente quepredominao discursointerativo/de autoridade, já que há bastante interação, mas a fala dela é de autoridade, pois ela conduz a turma a um ponto de vista específico, as respostas consideradas “corretas”, por isso mesmo, em alguns momentos, ignora respostas incompletas ou simplesmente por estar fora da ordem em que são elencadas no texto lido, como ocorre com asintervenções de A4 no excerto (1), acima (turnos 20 e 22).
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Também na sequência 3 – turnos 55 a 89 – temos uma distribuição das trocas discursivas bem semelhante à anterior. A professora se volta para a quinta questão do exercício, na qual é solicitado que se identifique “que respostas são dadas a esta pergunta por Freud e pelo próprio autor?” (turno 55), utilizando predominantemente iniciações de produto. Os padrões interacionais apresentam uma complexidadeque torna difícil inclui-los em um formato mais específico, sendo que ocorre um padrão I-R-A inicial (turnos 55, 56 e 57), seguido de iniciações da professora e ausência ou incompletude de respostas por parte dos estudantes, o que leva a trocas verbais que não constituem padrões definidos. A questão 5retoma e complementa a quarta questão. Lembremos que o objetivo do exercício é obter uma compreensão global do texto lido, a partir da identificaçãoda estrutura mais geral da argumentação construída pelo autor. As questões se voltam, pois, para essa estrutura da argumentação, tal como montada no texto pelo seu produtor.Ocorre que os alunos identificam, sem nenhuma dificuldade, a resposta à primeira parte da questão, ou seja, a resposta dada por Freud à pergunta “é possível superar ou controlar a violência?”. Eles respondem, em coro: “é impossível aos homens controlar totalmente o instinto de morte” (turno 56). Diferentemente, a segunda parte da resposta, isto é, qual seria a resposta dada pelo próprio autor do texto, não é prontamente identificada pelos estudantes. A professora, a fim de conduzi-los, utiliza várias estratégias de indução após respostas incompletas e de repetição, tal como ocorre nestes exemplos: “é porque na verdade éh:: a resposta talvez não esteja... EXPLÍCITA como a resposta do Freud tá” (turno 76), “essa aí é uma... é uma... uma possível resposta do autor né?... (ela está) ( ) indireta mas é... APONTA... pra uma resposta (deste autor) a essa questão... mas há uma ou/a... essa... esta é uma... e há uma outra possibilidade também de encontrar a resposta do autor... quem achou?” (turno 80).Quando, finalmente, os alunos chegam à resposta esperada, ela avalia positivamente, repetindo parte da fala deles: “i::sso... ‘a essa cultura da violência HÁ QUE SE OPOR a cultura da paz... hoje ela é imperativa’... ( ) outro momento... é possível perceber que o autor está dizendo... que dá para controlar... a violência...” (turno 82). A sequência discursiva 4 – turnos 90 a 104 –, em que a docente corrige a sexta questão do exercício, mantém uma organização sequencial e hierárquica que se diferencia das anteriores pelo fato de que as iniciações de produto, produzidas por elaem consonância com o formato da própria questão, obtêm respostas rápidas por parte dos alunos, o que implica a não necessidade de uso de estratégias para complementação ou adequação de respostas por parte da professora.
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P: então agora nós temos o sétimo parágrafo... diz "releia o"... aliás "o SEXTO parágrafo... e responda"... ((lê o enunciado da sétima questão)) "quais são os argumentos usados pelo autor... para justificar sua afirmação de que a CONSTRUÇÃO da cultura da paz é absolutamente necessária?"... ((lê a letra a da sétima questão)) ele diz que é necessária né?... ele ci/a cultura da paz É NECESSÁRIA... ele usa argumentos pra isso... quais são os argumentos?... uma coisa é dizer... que algo é possível... outra coisa é dizer que algo é nece:: necessário... A9: ( ) "ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o projeto da paz ou conheceremos no limite o destino dos dinossauros"... ((lê trecho do sexto parágrafo)) mais ou menos ( ) P: êh eu vou só repetir aqui a questão... ele está ê/o autor o/aqui ele está querendo... os os argumentos... que justificam... que o autor usa pra justificar que a CULTUra da paz É necessária... sim dorilene... pois não A9: ah não... não é... ( ) pensei assim... "ou limitamos a violência e fazemos prevalecer o projeto da paz"... eu coloquei assim P: ainda ( ) isto ainda não diz que é necessária ( ) vamos lá A2: seria::... ( ) essa violência:: éh:: (iria) "impossibilitar a continuidade do projeto humano"? P: isto ( ) por que que é NECESSÁRIA essa cultura da paz é... é urgente é necessária por quê?... um argumento é este... qual denise? A2: é:: essa cultura iria "impossibilitar a continuidade do projeto humano”... "ameaçar toda a biosfera eimpossibilitar a continuidade do projeto humano" P: essa é uma razão... se não... se não se controlar essa violência o projeto humano vai... (pelo ralo né?) mas tem um OUTRO argumento... que o autor [utiliza... A10: [(aqui no final) "cada um estabelece como projeto pessoal e coletivo a paz enquanto método e enquanto meta"
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Nesse momento, o padrão interacional predominante é o I-R-A, ocorrendo apenas uma iniciação formulada por um aluno. Quanto à abordagem comunicativa, também nas sequências 3 e 4 o discurso é interativo, localizando-se mais próximo da dimensão de autoridade, pelas razões já apontadas. Vejamos agora a sequência 5 – turnos 104 a 143, da qual destacamos o excerto abaixo. Trata-se de uma sequência extensa, em vários aspectos semelhante às sequências 2 e 3. A docente volta-se para a correção da sétima questão do exercício. (2)
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P: isto aí éh... ainda... já é mais ou menos a proposta do autor né?... a conclusão que o autor [quer levar... A10: [já está no final do parágrafo P: quer levar ao leitor... mas assim a questão dos argumentos que mostram que é NECESSÁRIA a cultura da paz... um é porque se não fizermos a nossa [parte... A12: [( ) se não tiver se não tiver ( ) P: o projeto humano desaparece não é? A12: se não houver a paz... ( ) vamos morrer igual aos dinossauros P: é a mesma:: é o mesmo argumento... justamente... o argumento que a denise acabou de levantar... é A2: é necessário porque ela está [ameaçando ( ) A13: [professora:: P: é ((respondendo a A2)) A13: "o pacto social mínimo sem o qual regredimos... a níveis de barbárie"? P: o adriano está levantando aqui olha... éhéh onde... onde está? você encontrou esse argumento onde?... em qual parágrafo? A13: segunda linha P: na segunda linha do:: A13: sexto parágrafo P: SEXto parágrafo... voltemos aí ao sexto parágrafo... a segunda linha... olhem só o que o autor diz... no QUINTO... no quinto ele diz... "a essa cultura da violência... HÁ QUE SE OPOR a cultura da paz... hoje ela é IM-PE-RATIVA"... ou seja... extremamente... necessária não é?... e ele começa dizendo olhe... "é imperativa" por quê?... "porque as forças de destruição estão ameaçando por todas as partes... o pacto... social"... né? aí continua... "mínimo sem o qual regredimos a níveis de barbárie"... este é o argumento que diz... o pacto social está ameaçado... A14: ( ) sem a união [ou então ( ) P: [é... ou... nos unimos pra fazer a paz ou então... então esse é um argumento né?... o pacto social está ameaçado... o segundo é aquele que a:: que já foi levantado por vocês... o projeto humano... também vai (pelo ralo) vai ser destruído... então são DOIS argumentos... ENTENDERAM a diferença entre... o que é dizer alguma coisa ser necessária... e argumentar para que algo seja necessário?... e argumentar pra que/de... para o fato de que algo é:: é possível... de que algo é possível... é diferente né?... entenderam essa diferença?...
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Essa sequência discursiva apresenta-se, no seu conjunto,bastante complexa, com padrões interativos não fixos, mas, apesar disso, sua organização se estrutura em cadeias fechadas, pois à medida que a professora vai conduzindo os alunos à identificação das respostas adequadas, ela vai finalizando com uma avaliação. Para ilustrar sua organização interativa, demonstramos, no excerto (2), as duas cadeias discursivas iniciais. Temos uma primeira cadeia entre os turnos 104 e 112,em que a docente, após ouvir uma resposta que considera inadequada (turno 105), usa a estratégiada repetição (turno 106), mas um aluno volta a insistir com a mesma resposta(turno 107), levando-a a produzir uma avaliação negativa e, no mesmo turno, partir para nova iniciação, incitando a turma na busca da resposta adequada(turno 108). No turno seguinte, uma aluna aponta outra resposta, embora, insegura, a enuncie em forma de pergunta(turno 109), ao que a professora, além de avaliar positivamente, incita a estudante a repeti-la, para que fique claramente institucionalizada perante a turma (turno 110) e, após a sua repetição (turno 111), ainda produz nova avaliação positiva e, simultaneamente, profere nova iniciação (turno 112). Entre os turnos 112 e 131, uma nova cadeia discursiva vai se produzindo, mais extensa e mais complexa que a primeira, com novas estratégias por parte da professora, sempre voltadas para a obtenção da resposta adequada e apenas finalizada quando isso ocorre, com uma avaliação positiva em que ela busca tornar essa resposta conhecida por todos.Os alunos, apesar de, em geral, reagirem apenas quando incitados pela professora, nesse momento parecem mais ativos, fornecendo-lhe respostas possíveis, num movimento de negociação em que, às vezes inseguros, elaboram suas intervenções em forma de pergunta, como ocorre no turno 124. Essa atitude dos estudantes está em consonância com o discurso interativo/de autoridade que se evidencia na abordagem utilizada pela docente. A sequência 6, a mais extensa – turnos 143 a 270 –, é exemplar dos modos como a professoraprioriza em sua ação didática a identificação e confirmação de respostasjá conhecidas por ela. Seu esforço em fazer os alunos encontrarem as respostas “corretas”acaba por estruturar as trocas discursivas, produzindo sequências que, apesar de se organizar em padrões interativos que, na maioria das vezes, não apresentam fixidez, havendo muitas intervenções dos alunos, são estruturadas de modo que a turma chegue às respostas que ela quer, após o que se dá a sua avaliação e, assim, a professora vai dando acabamento às trocas verbais. Constituem-se, dessa forma, cadeias sucessivas, estruturadas por turnos que se organizam topicamente em torno de cada item da questão que vai sendo discutido.
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P: a letra d... "assinale a frase que melhor ex::PRIme e generaliza os dois primeiros argumentos... que sustentam a ideia de que é possível construir uma cultura da paz" ((lendo enunciado da questão))... em uma dessas três aí a:: estão generalizados os dois primeiros argumentos... A13: ( ) "o ser humano tem... geneticamente condições biológicas que favorecem... a socialização a cooperação... e a criação... diferentemente [dos animais" ((lê a segunda alternativa)) A15: [botei a terceira P: alguém... [alguém ( ) A15: [botei a terceira Als: a terceira P: a terceira?... vamos ver... a terceira se refere a quê?... unicamente?... ["o ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza... e influir na marcha da evolução" ((lendo a terceira alternativa)) Als: ["o ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza... e influir na marcha da evolução" ((lendo em coro, junto com a professora)) P: voltem lá no texto... tá?... pra vocês terem certeza disso... ele ele está dizendo... está pedindo a frase que sintetiza os DOIS primeiros... argumentos... vejam vocês... tirem a dúvida vocês mesmos... ((os alunos ficam em silêncio por alguns segundos)) já?... onde estão os argumentos na verdade?... estão
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Nessa sequência, a professora corrige a oitava questão, que se subdivide em seis itens, indicados com as letras “a”, “b”, “c”, “d”, “e” e “f”. O item “a” contém uma pergunta direta, para identificação de conteúdo objetivamente inscrito no texto, sendo que os seguintes constituem questões de múltipla escolha, relativas a argumentos usados pelo produtor do texto lido. Os alunos apontam, sem dificuldade, as respostas para o primeiro, o segundo e o terceiro itens, produzindo-se, nas trocas de turnos iniciais, uma tríade I-R-A (turnos 143, 144 e 145), um padrão I-R-P-R-A (turnos 145, 146, 147, 148, 149) e um padrão IR-F-I-R-A (turnos 149 a 153). Lembremos que alguns turnos de fala da professora apresentam, juntos, um feedbackou avaliação mais a iniciação de nova cadeia interativa. A complexidade da sequência dá-se a partir do momento em que a docente passa à correção do item “d”, para o qual os alunos apontam respostas diferentes. Destacamosum excerto que ilustra a tensão produzida pela necessidade da professora de que a turmaentre em consenso sobre a resposta “certa” para esse item, vejamos: (3)
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no sétimo e no oitavo parágrafos não é isso?... quero uma justificativa... uma resposta e uma justificativa... [...] A12: "o ser humano é o único ser que pode intervir nos processos da natureza... e INFLUIR na marcha da evolução" P: mas este é... esse é o primeiro argumento no texto?... na verdade... a/percebam que a pergunta aqui... é pra que vocês percebam a ordenação de argumentos... qual o primeiro argumento? qual o segundo? qual o terceiro?... voltem para o sétimo e oitavo parágrafos... eu insisto... CHEGUEM A ESTA RESPOSTA A12: ( ) (é um por cento de carga genética) ( ) diferencia o primata [lá do:: P: [exatamente... ah:: então o primeiro não é este aí... nem o segundo né?... PARECE-ME QUE... este que vocês estão insistindo... que "o ser humano é o único ser que pode interVIR... nos processos da natureza e influir na marcha da evolução"... parece-me ser o:: é... já é o último argumento... não é o primeiro nem é o segundo... então... veja parece boba a pergunta... de quem ela/do autor que elaborou isso aqui... parece boba mas não é... é pra que vocês percebam... que há uma ordenação... o oo escritor... o autor fez o texto e eLENca um primeiro argumento... um segundo... um terceiro argumento... tá? A16: (na verdade) isso aqui pra poder ( ) né? P: e vô/e pra que vocês percebam isso... a maneira que o autor está arquitetando a sua argumentação A16: na verdade ele ( ) P: como se fosse o argumento::... né?... mais forte... então veja só... QUAL SERIA então das três alternativas?... gostaria de ouvir... ( ) ter mais certeza... é a:: Als: primeira P: a primeira?... "o ser humano tem um por cento de carga genética que o separa dos primatas"... veja bem olha... olha a pergunta... "assinale a frase que melhor exprime e generaliza os DOIS primeiros argumentos"... Als: é a segunda P: é a segunda alternativa... é... a segunda alternativa A12: ( ) a segunda completa a primeira P: mui/é a segunda... A SEGUNDA... "O SER HUMANO TEM... geneticamen::te... condições bioló::gicas que favorecem a socialização... a cooperação e a criação... DIFERENTEMENTE dos animais"... mas estão convencidos disso?... de que/volta é só voltar ao parágrafo... voltem ao
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O excerto (3) apresenta, diferentemente do que ocorre no início da sequência, maior complexidade em relação aos padrões interativos. Na verdade, os turnos 153 a 197 constituem uma sequência estendida, bastante longa, com várias intervenções dos alunos apontando
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parágrafo... olhe o que diz o sétimo parágrafo... atentem pra isso por favor... e veja... prestem atenção aqui... "ONDE buscar as inspirações para a cultura da paz?... MAIS que imperativos voluntarísticos... é o próprio processo antropogênico a nos fornecer indicações objetivas e seGURAS"... aí... "a singularidade do um por cento de carga genética que nos separam dos ã/dos primatas superiores... reside no fato de que NÓ::S... à distinção deles... somos seres sociais e::... cooperativos... ao lado de estruturas de agressividade... temos capacidade de afetividade... compaixão solidariedade e amorização"... vejam que... voltem agora na:: na primeira frase... NA PRIMEIRA FRASE diz assim... "o ser humano tem um por cento de carga genética que o separa dos primatas superiores"... não está completa... não generaliza generaliza?... Als: não P: não... mas a outra diz assim... "o ser humano tem geneticamente condições biológicas"... aí quando fala de geneticamente... e lá no fim diz... "diferentemente dos animais"... e entre ele diz assim... "condições biológicas que favorecem a socialização a cooperação e a criação"... ele está sintetizando aqui... os dois... argumentos... A17: (exatamente) P: mas estão convencidos disso? A17: estamos sim P: deu pra... agora com o texto deu pra::?... Als: compreender P: vejam que o último só consegue... éhéh... abarcar... o terceiro argumento... né? "o ser humano é o único ser que pode intervir"... é o terceiro argumento (apenas)... não os dois primeiros... certo?... tudo bem?... há contestações? A17: não P: se houver vocês podem fazer... pra que... pra que a gente ( ) progrida e cresça A5: a senhora tá falando A16: professora? P: sim ( ) ((respondendo a A16)) A5: a senhora tá falando A18: a senhora tá falando... a senhora é professora
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possíveis respostas e várias estratégias da professora em direção a um consenso a cerca daquela que seria a “correta”. O mais curioso em relação a essa cadeia discursiva é o fato de que, logo após a iniciação produzida pela docente quando lê o item “d”, no turno 153, a resposta esperada é enunciada por um aluno, no turno seguinte: trata-se da segunda alternativa. No entanto,uma aluna enuncia outra alternativa, a terceira, no turno 155, o que leva a professora a ignorar a primeira intervenção, provavelmente por entender que a resposta não era consenso e,no turno 156, solicitar outras possibilidades. Ocorre que a mesma aluna repete seu enunciado (turno 157), ao qual outros fazem coro (turno 158). Isso faz com que a docente procure conduzir a turmaa um consenso, utilizando, para isso,a estratégia de repetição (turno 159). Mas não funciona, pois aparentemente os alunos, ao ouvi-la repetir a terceira alternativa, entendem que esta seria a resposta correta, já que fazem coro com ela, ao repetir o enunciado (turno 160). Então, a professora recorre à estratégia deindução, com uma iniciação de processo (turno 161). A situação se complexifica, pois mesmo com essa estratégia, outro aluno insiste em repetir a terceira alternativa (turno 169). Ela então, recorre, mais energicamente, à estratégia da indução (turno 170). Segue-se uma negociação, com intervenções de alguns alunos e uso de estratégias de repetição e simplificação por parte da professora (turnos 171 a 176). Os alunos, devido à insistência dela e por já ter enunciado a segunda e a terceira alternativas, apelam para a primeira (turno 177), levando-a a produzir um feedback (turno 178) que denota uma avaliação negativa. Tentam mais uma vez, enunciando a segunda alternativa (turno 179), desta vez, finalmente, avaliada positivamente pela docente (turno 180). Não satisfeita ainda, mesmo após a avaliação, que normalmente finaliza as cadeias discursivas na organização das sequências, ela se esforça em deixar evidente para a turma ser esta mesma a resposta adequada, produzindo explicações detalhadas, em que relê trechos do texto e produz iniciações de escolha, questionando os alunos para ter certeza de que todos concordam com a seleção da segunda alternativa (turnos 182, 184, 186, 188 e 190). Nesse momento em que a cadeia de troca de turnos em torno da correção do item “d” parece estar sendo concluída, alguns alunos produzem enunciados que deixam evidente, por um lado, a tensão produzida pela extensa negociação, por outro lado, a assimetria própria a interações institucionais (turno 197). Interessante que, diferentemente do que acontece na maior parte do episódio, em que os turnos de fala dos alunos costumam ter a função de responder às questões do exercício e às iniciações da professora, em vários momentos dessa sequência os estudantes intervêm de forma mais intensa, contribuindo não só com respostas,
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P: VAMOS ARGUMENTAR AQUI PRA CHEGAR A UM ACORDO... vê/veja bem... o segundo diz assim "levar o leitor a CONStruir um projeto pessoal... e coletivo para colaborar com a paz no mundo"... em algum momento você percebe o autor ( ) éh:: conduzindo pra isso? A15: não P: adriana está dizendo que sim... adriana... por favor... ( ) onde é? A7: "cada um... estabelece como projeto pessoal e coletivo... a paz enquanto metódo e enquanto método... meta... paz que resulta dos valores da cooperação... do cuidado... da compaixão e da amorosidade vividos cotiã/cotidianamente" ((lê o último período do último parágrafo)) P: o autor... o autor faz menção a isso né?... veja... ah mas não só nesse ponto... veja no... bom... eu quero que vocês argumentem também... vamos argumentar para a outra... outra sentença... vejam que o ca/o parágrafo nove INTEIRO...
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mas também com comentários e iniciações. Apesar disso, a despeito da natureza interativa, por ser bastante controlado pela docente, o discurso situa-se na dimensão de autoridade. Entre os turnos 198 e 217, temos uma troca de turnos entre a professora e um aluno em particular, interessado em discutir a respeito do próprio ato de compreensão textual. Após essa digressão, a professora retoma a correção da oitava questão do exercício, tratando dos itens “e” e “f”, numa cadeia discursiva que vai do turno 218 ao270.A correção do item “e” é bem rápida, pois os alunos chegam à resposta esperada sem dificuldade e sem discussão. Temos, entre os turnos 218 a 222, o seguinte padrão interativo: I-R-I-R-A. Já a correção do item “f” apresenta-se mais complexado ponto de vista dos padrões interacionais, sem uma regularidade, constituindo uma sequência estendida bastante longa, que vai do turno 222 ao 270. Nesse momento do episódio, a professora modifica a maneira como vinha corrigindo até então, e, ao invés de solicitar as respostas dos alunos, passa a ler, uma por uma, as alternativas, à medida que vai sondando deles o que acham, usando iniciações de escolha.Os alunos vão respondendo às iniciações, até que ela chega à última alternativa, para a qual alguns alunos parecem se inclinar positivamente, mas sem chegar a um consenso definitivo. Isso ocorre entre os turnos 222 a 235. Ela passa a usar, então, a estratégia da indução, procurando conduzir à turma à percepção de qual alternativa seria a mais adequada. Vejamos um excerto que ilustra a tensão que se forma durante a negociação entre professora e alunos: (4)
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OLHE o que o parágrafo NOVE enfatiza... [olhe "há A12: [ele só... ei professora... ele só vai... ele só vai (o leitor) só vai "construir um projeto pessoal e coletivo para colaborar"... se ele tiver CONSCIÊNCIA... de que a paz é necessária... se ele é consciente então ele VAI procurar ( ) ah eu sou... pessoalmente e coletivamente... se eu não tiver consciência ( ) POU... vai dizer "não sei... não tenho consciência disso"... eu tenho que ser consciente pra poder... P: tá A12: haver um argumento ( ) ((o aluno se levanta, vai em direção à porta)) P: tá... claudio veja bem... não... pode ( ) mas olha só... isso é sê/isso é o seu argumento... mas vamos... nós temos que ter ancoragem no texto né?... e nos anco/nós vamos ainda falando deste texto... do au/nesse autor... então veja bem... olhe só... éh... o segundo na segunda:: na lê/na segunda frase... "levar o leitor a construir um projeto PEssoal e coletivo para colaborar com a paz no mundo"... e o último "levar o leitor a se CONSCIENTIZAR de que a paz é possível"... por que vocês imaginam que este nono parágrafo foi construído dando exemplos de pessoas... enquanto pessoas indivíduos... promovem a paz?... quer ver vejam bem... olha só... analisa bem o parágrafo... não é que eu esteja... forçando vocês a a a:: mas assim... pra nós olharmos melhor o texto... olha só... "HÁ MUITO que filósofos da estatura de martinheidegger... resgatando uma antiga tradição que remonta aos tempos de césar augusto... VEEM no cuidado a essência do ser humano... sem cuidado ele não vive nem sobrevive... tudo precisa de cuidado para continuar a existir... cuidado representa uma relação amorosa para com a realidade... onde vige CUIDADO de uns para com os outros... desaparece o medo... origem secreta de toda a violência como analisou freud... a cultura da paz começa quando se CULTIVA a memória... e o exemplo de figuras que representam o cuidado e a DIMENSÃO... e a vivência da dimensão de generosidade que nos HABITA"... aí "como gandhi... dom hélder câmara... e luther king e outros... IMPORTA fazermos as revoluções MOLECULARES... começando por nós mesmos... CADA UM estabelece como projeto pessoal e coletivo a paz... enquanto método e enquanto meta... paz que resulta de valores de cooperação do cuidado da compaixão e da amorosidade vividos cotidianamente" ((lendo o último parágrafo do texto))... A17: é a d ((refere-se à quarta alternativa)) A12: então ( ) se eu me conscientizar A16: eu acho que é a d ((também referindo-se à quarta
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Tal como já demonstrado em (3), o excerto (4) é exemplar da complexidade que a sequência 6 apresenta, em termos das trocas discursivas. Ficam nítidos os modos como a professora busca conduzir os alunos às respostas “corretas”, o que estrutura as trocas discursivas, em que os padrões interativos não apresentam uma regularidade. Nesse excerto, de forma semelhanteao que vimos no anterior, há várias intervenções dos alunos, que produzem comentários e iniciações.
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alternativa)) A12: eu acho que eu tô com a razão... ou alguém discorda de mim eu vou até embora ( ) ((fala em tom de brincadeira e sai da sala)) ((risos de alguns alunos)) P: não claudio por favor... ((sorri)) estamos aqui éh:: discutindo... seria... então vejam bem... vocês percebem que o autor vai... ONDE O AUTOR PODERIA PARAR?... EM QUE PONTO DO TEXTO já estaria suficiente de ele quisesse... conscientizar apenas de que a:: a cultura da paz é possível?... até onde é... onde é que ele argumenta né? A16: acho que só a partir do exemplo não é? P: é a partir dos exemplos... veja que ele caminha MAIS... para mostrar pra... nos mostrar exemplos de pessoas... exemplos de indivíduos né?... que viveram essa esse cuidado a que ele está se referindo... então... por essas por essas razões que eu estou apresentando ( ) eu... particularmente A16: começa por aí ( ) P: é é:: usando esses argumentos... vejam que [o o:: que A16: ( ) [a antiga roma né?... (até hoje né?) P: é... ele começa lá desses exemplos... até culminar num num:: em exemplos mais recentes pra nós... que são essas figuras não é?... dom hélder câmara marthinluther king... e:: e gandhi... todo mundo conhece a história de gandhi né?... (mahatma gandhi)... tá... então vejam bem... ele traz esses exemplos DE PESSOAS... né verdade?... então vejam bem... que o autor poderia se o se o... se a intenção fosse mesmo... tra/apenas conscientizar de que a paz é possível já... [poderia parar A16: [já tinha ( ) P: né?... teria ma/apenas mostrado que é possível... mas veja que ele vai ( ) então... parece-me... aqui eu eu... meu olhar enquanto leitora di/diria o seguinte... que a conclusão mais geral é dos/de fato é "levar o leitor a construir um projeto PESSOAL e coletivo pra colaborar com a paz no mundo" ((refere-se à segunda alternativa))
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Entretanto, diferentemente do que ocorre nas outras cadeias discursivas que compõem essa sequência, temos uma cadeia aberta, pois não há uma avaliação final da professora que dê acabamento às trocas verbais em torno do item discutido. À medida que a discussão com os alunos se prolonga, ela produz alguns feedbacks, como ocorre nos turnos 239 e 241, usa várias estratégias de induçãoe de repetição, como vemos nos turnos 235, 237, 243, 248, mas não conseguimos identificar claramente um momento em que se dê uma finalização da discussão por meio de uma avaliação. Consideramos que isso se dá pelo formato que assumem as trocas verbais nesse ponto da sequência, em que os alunos intervêm de maneira mais intensa, inclusive ocorrendo de um aluno se opor abertamente à posição da professora (nos turnos 240 e 247), reclamando a autoria do discurso. Quando A12 se opõe à professora, percebemos, claramente, que sua compreensão responsiva ativa constrói-se na direção de uma contestação, atitude não muito comum ao longo do episódio. Assim, embora haja bastante negociação, o que torna o discurso eminentemente interativo, e haja predisposição ao diálogo, como a fala da professora sugere no início do excerto (turno 235),o encerramento da discussão é feito com uma tomada de posição relativa a sua identidade de“leitora” mais experiente (turno 256). Essa tomada de posição, marcada pelo uso da primeira pessoa do singular, deixa entrever, claramente, a predominância do discurso de autoridade, e já havia sido “ensaiada” pela docente em um turno anterior(turno 250).A presença do marcador discursivo “então”, que introduz os dois enunciados, denotando conclusão, é um indício da ação discursiva da professora que encaminha a discussão em torno da resposta adequada ao item “f” para seu fechamento. Seguem-se algumas trocas de turnos com alguns alunos, mas na direção de um consenso já estabelecido.
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Ao discutir a dinâmica do diálogo em situações de sala de aula, Geraldi (1997, p. 154) afirma que“pela participação em processos semelhantes em ocasiões anteriores, alunos e professora sabem, desde a preparação, o propósito da conversação”.Mehan (1979) diz algo semelhante, ao referir-se ao fato de que os alunos vão adquirindo, ao longo do tempo, competência para se apropriar dos padrões interativos que se instauram em sala de aula, respondendo, no timing preciso e na forma adequada, às elicitações do professor. Isso parece bem evidente no episódio analisado, ao observarmos os modos como os estudantes reagemàs iniciações da professora. Atentos ao movimento discursivo engendrado na interação e acostumados com o uso das iniciações e das
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Considerações finais
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estratégias interativas na condução de situações de ensinoaprendizagem, os alunos, quando questionados, procuram sempre corresponder às expectativas da professora. A análise do episódio, apesar de não exaustivo, parece-nos corroborar a posição de Geraldi (1997, p. 156), segundo a qual “no diálogo de sala de aula invertem-se papéis e funções dos atos linguísticos praticados”. A forma como a docente conduz o diálogo permite-nos apontar a presença de uma característica comum às trocas discursivas que se instauram em contextos de educação institucional. Temos, nessa aula, a correção de um exercício de compreensão textual para o qual os alunos foram orientados a responder em uma aula anterior. Sua condução pela professora sugere que o objetivo da interação didática é a aferição das respostas dadas, que são comparadas às respostas que deveriam ser dadas, ou seja, aquelas que ela espera que os alunos deem. Destacamos aí o papel da professora, a quem é dada, institucionalmente, a autoridade para gerir a interação, assim, é a ela que compete a função de fixar o direito à palavra, a pertinência e a legitimidade das intervenções dos alunos (Cf. Legrand-Gelber, apud GERALDI, 1997, p. 237-238). Essa análise se coaduna com algumas conclusões a que chega Geraldi (Op. cit.), quanto à inversão dos papéis dos participantes e das funções dos atos de linguagem, a partir da análise de diálogos escolares semelhantes ao recorte aqui apresentado. Vejamos:
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Nesse sentido, ocorrem situações nas quais os estudantes enunciam, inseguros, respostas possíveis às questões do exercício, formulando-as em forma de pergunta, pois já sabem que, em situações de correção, em geral, só são avaliados positivamente quando apontam a resposta esperada pela professora, e é isso o que efetivamente acontece. Eles sabem que a professora já conhece as respostas “corretas” e vai avaliar suas intervenções com base nelas. Por isso mesmo ocorre que, em boa parte do episódio analisado, quando as respostas são divergentes, os alunos não insistem em argumentar a favor de suas ideias, apenas vão enunciando outras possibilidades, até chegar à resposta esperada, como ilustra muito bem o excerto (1). É a
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No discurso de sala de aula, é o inverso o que ocorre: pergunta quem sabe já a resposta (...), ou quem o interlocutor (aluno) imagina que já sabe a resposta. Sua ação linguística de responder é, então, marcada por essa situação: suas respostas serão “candidatas” à resposta certa, cabendo a quem perguntou (o professor) o poder de avaliar a resposta dada. (Geraldi, 1997, p. 157, grifos do autor).
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voz da professora que está autorizada a avaliar a pertinência e adequação dos enunciados dos estudantes, e, embora haja intensa interação entre ela e os alunos ao longo da correção do exercício, é patente a predominância do discurso de autoridade, pois é ela quem controla as trocas discursivas e elege as respostas adequadas, que, por sua vez, remetem ao texto, à voz do autor. Geraldi (1997, p. 156), analisando interações semelhantes, embora em um contexto educacional distinto, remete a uma consequência um tanto quanto negativa desse tipo de conversação que se instaura em sala de aula: “a participação em diálogos como estes, na medida em que vivenciados pelos alunos, vai-lhes ensinando: só se responde quando se tem a resposta que a professora quer”. No entanto, também ocorrem, nesse episódio, algumas tentativas de subversão da autoridade e da autoria monológica do exercício. Alguns alunos, ao longo da correção, vão produzindo comentários, duas alunas denunciam a monologia e a assimetria da interaçãoe um outro chega a se opor abertamente a uma resposta considerada correta pela professora. Não queremos com essa análise sugerir que quaisquer respostas deveriam ser aceitas, apenas para garantir a instauração do diálogo. Obviamente há respostas adequadas, coerentes com o conteúdo do texto, e que, por isso mesmo, devem ser consideradas como parâmetro para a correção. O que nos parece ficar evidente é o fato de que o próprio formato do exercício pressupõe não um debate de ideias, mas a identificação da estrutura argumentativa geral do texto fornecido para leitura e compreensão. Não se trata, pois, a nosso ver, de mera escolha de dada abordagem comunicativa pela professora:o formato do exercício, com questões que se caracterizam como verificação de leitura, conduz a uma busca de respostas identificáveis a partir da observação do arcabouço estrutural do texto, e não a uma discussão a respeito do conteúdo do texto. Isso provavelmente é um fator preponderante para explicar a predominância do discurso de autoridade. Outro aspecto a destacar está relacionado aos padrões interativos ou a ausência de uma regularidade desses padrões no episódio em análise. As poucas situações em que o padrão I-R-A ou padrões semelhantes ao I-R-F-R-F-A ocorrem são aquelas nas quais os alunos identificam sem muita dificuldade as respostas adequadas, não havendo, portanto, negociação mais extensa. Já as situações (frequentes) em que não conseguimos identificar padrões regulares, ocorrendo sequências estendidas de interação, algumas bem longas, com bastante negociação, são exatamente aquelas em que os alunos
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não apontam logo as respostas adequadas, exigindo da professora o uso de estratégias variadas em direção a um consenso. Em suma, a análise permite constataro quão complexo é o diálogo em contextos de educação institucional, quando consideramos os papéis dos sujeitos que aí interagem, na (re)construção de significados e na (re)produção de discursos (próprios e alheios). Por isso mesmo, se torna urgente e necessário o aprofundamento das investigações sobre o que efetivamente acontece quando professor e alunos interagem em situações de ensino e aprendizagem, sobre quais tipos de discurso são mais ou menos frequentes e quais os modos como os professores conduzem os processos de construção de significados por parte dos alunos. Só a partir de uma compreensão mais apurada das interações em sala de aula, teremos condições de contribuir para a busca da eficácia nos processos de ensino e de aprendizagem, tanto no âmbito da formação inicial quanto na formação continuada de professores. Contribuir, enfim, para uma efetiva profissionalização docente.
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AZEVÊDO, Maria da Conceição. Os gêneros argumentativos como instrumentos didáticos nas práticas de leitura e escrita no curso de Letras da UFPA – Campus de Bragança. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Letras e Comunicação, Curso de Mestrado em Letras, Belém, 2010. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. MACHADO, Anna Rachel (coord.); LOUSADA, Eliane Gouvêa; ABREU-TARDELLI, Lília Santos. Resumo. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Exercícios de compreensão ou copiação nos manuais de ensino de língua?. Em Aberto, Brasília, ano 16, n. 69, jan./mar., 1996, p. 64-82. Disponível em: <emaberto.inep.gov. br/index.php/emaberto/article/viewFile/1039/941>. Acesso em: 26 jun. 2012. MEHAN, Hugh. Learning lessons: social organization in the classroom. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1979. MORTIMER, E. F.; MASSICAME, T.; BUTY, C.; TIBERGHIEN, A. Uma metodologia de análise e comparação entre as dinâmicas discursivas de salas de aulas de ciências utilizando software e sistema de categorização de dados em vídeo: Parte 1, dados quantitativos. Atas do V ENPEC, 2005.
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Referências
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Disponível em: <http://www.nutes.ufrj.br/abrapec/venpec/conteudo/ oralarea7.htm>. Acesso em: 29 jul. 2013. MORTIMER, Eduardo F., SCOTT, Phil H. Atividade discursiva nas salas de aula de ciências: uma ferramenta sociocultural para analisar e planejar o ensino. Investigações em Ensino de Ciências. Porto Alegre, nº 3, 2002, p. 7-18. TOURINHO E SILVA, Adjane da Costa. Estratégias enunciativas em salas de aula de Química: contrastando professores de estilos diferentes. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Belo Horizonte, 2008.
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A PEDRA DO GURUPI E A ILHA DA IARA: a quarta morada do Rei Sebastião Sônia Moraes do Nascimento Fernando Alves da Silva Júnior
Resumo: O presente trabalho visa apresentar uma breve descrição da presença do sebastianismo na cidade de Viseu-PA, especificamente na Pedra do Gurupi e na Ilha da Iara, dois espaços que podem ser considerados místicos. A pesquisa tem por base as narrativas orais de moradores e pescadores locais. Acerca das figuras sobrenaturais, analisou-se as narrativas a partir dos estudos realizados por Heraldo Maués, que os denomina simplesmente como “encantados” (...) “aqueles que se apresentam sob forma de animais aquáticos, nos rios e igarapés Oiara, estes sob forma humana, no Mangal ou Caruana os que incorporam nos pajés” (Maués, 1995, p. 190). A pesquisa inicial vislumbrou estas entidades a fim de entender os eventos que ocorriam entre a Pedra e a Ilha, e as manifestações que ainda ocorrem, como descrito por Cascudo (2010, p. 229), de que neste local “é crença, entre os povos (...) [que] nas noites de luar, ouve-se distintamente, lá embaixo, um rumor de vozes humanas e de repiques de sinos”, crença esta confirmada pelos narradores, de que este lugar é o reino de “Bastião”. Sendo assim, Maués considera três locais como morada deste soberano português, “a primeira delas é a ilha de Maiandeua, no município de Maracanã, onde se situam a praia e o lago da princesa, que é a filha do rei (...). A segunda é a ilha de Fortaleza, no município de São João de Pirabas, onde existe a ‘pedra do rei Sabá’ e o ‘coração da princesa’ (...) O mesmo acontece com a ilha dos Lençóis, no litoral do Maranhão, esta é a terceira morada do rei Sebastião” (Maués, 2005, p. 264). Tendo em vista a forte crença de que a Pedra do Gurupi e a Ilha da Iara trocavam de lugares até serem “benzidas” por um padre, e que ainda há relatos de pescadores e curandeiros
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Neste artigo, acerca do sebastianismo na Pedra do Gurupi e na Ilha da Iara, pretendemos apresentar a quarta morada do Rei Sebastião tendo em vista a proposta de Maué (2005) da existência de alguns espaços próprios do Rei Encantado no litoral Norte brasileiro. Para tanto, o trabalho requereu pesquisas de campo metodologicamente voltadas para a etnografia, Brandão (2007), Oliveira (2006) e Geertz (1989, 2009) e para a história oral, Alberti (2005), pois a gravação com alguns moradores do município de Viseu (PA) foi imprescindível, tendo em vista os poucos trabalhos realizados sobre a Pedra e a Ilha. A pedra do Gurupi é uma formação rochosa situada no ponto de intersecção do Rio Gurupi com o oceano Atlântico. A Ilha da Iara ou Irara, por sua vez, localiza-se no leito do Rio Gurupi, por conta de sua proximidade com o município de Viseu, hoje ela é habitada por algumas famílias. Ferreira (2013, p. 48), ao mencionar as “tradições populares” do município de Viseu, expõe que a Ilha da Iara trocava constantemente de lugar com a Pedra do Gurupi, fenômeno que foi interrompido pelo padre Vigário da Paróquia quando este as banhou com água benta, único recurso, segundo a crendice local, possível de cessar tal movimento. Essa explicação motivou os moradores locais a creditarem ao padre o equívoco de benzê-las justamente quando estavam em locais não naturais, ou seja, justifica hoje a Pedra do Gurupi ocupar o espaço que antigamente era próprio da Ilha da Iara. Nas pesquisas de campo, não encontramos registro ou relato que nomeassem o padre que benzeu a Pedra e a Ilha, no entanto, é de comum acordo que foi o padre vigário que “benzeu” “banhou a pedra com água benta”, o “Padre Cabano”, segundo nos informou seu Josias de Viseu. No entanto, a relação desse Vigário com Viseu, de acordo com nossas pesquisas bibliográficas, inexiste. No entanto, seu Raimundo narrou que o encontro desse religioso com a Pedra e a Ilha “faz cento e poucos anos” ou mesmo ocorreu “noutro tempo”. Por isso concluímos que a relação desse vigário com Viseu é menos desconhecida que lendária. O senhor Jardel explica que:
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de Viseu afirmando a presença do rei Sebastião nesses espaços, sendo que a ilha pertence à filha do rei encoberto e a pedra o seu lócus privilegiado de aparição, neste trabalho defende-se que a Pedra do Gurupi e a Ilha da Iara correspondem à quarta morado do Rei Sebastião. Palavras-chave: Sebastianismo. Quarta Morada. Pedra do Gurupi. Ilha da Iara.
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Meu avô contava que os negros fugiram de lá dos quilombolas e vieram numa canoa pequena aí chegaram aí na ilha da Iara eles enterraram o ouro. Quando fugiram de lá eles roubaram, aí quando chegaram aí enterraram o ouro, aí o Rei veio atrás não achou o ouro, amaldiçoou o ouro era por isso que a ilha da Iara se deslocava com a Pedra. Aí quando veio o padre aí levaram ele lá ele foi benzeu a ilha da Iara. Aí nunca mais se trocou. Isso é o que eles falam.
O senhor Jardel é muito claro ao explicar que a motivação do trânsito ente Ilha e Pedra se deu por intervenção do Rei Sebastião, motivado pelo enterramento de ouro pelos negros na Ilha da Iara, conhecida em Viseu como filha do Rei. O que se embrinca na história da Pedra é um poço encantado situado em algum espaço da Ilha, cuja pessoa que encontrar uma corrente e conseguir puxá-la, por uma lado será recompensado com o ouro lá enterrado e, por outro, amaldiçoará toda a redondeza de Viseu, pois o mundo encantado virá à tona.
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Santos (2009, p. 62-64) explica a crença nas lendas sebastianistas da seguinte forma: “dois fatos podem ser apontados como principais motivadores do afloramento do Sebastianismo em Portugal. Um deles, a relativa decadência em que se encontrava o império, [...]”. Outro motivador, segundo a autora, foi a “morte do jovem rei de Portugal, D. Sebastião em guerra contra os mouros”. E “as esperanças portuguesas no futuro foram depositadas em torno da figura de Dom Sebastião” ficando conhecido como o “desejado”. O Rei “acreditando na predestinação de Portugal e na sua própria para comandar o exército vitorioso e estabelecer o grande Império Cristão, sob a ‘Vontade Divina’” partiu para o Marrocos a fim de expandir o império português, “a derrota tornou-se inevitável, vindo a correr praticamente, um holocausto do exercito português” (Santos, 2009, p. 65). Deste acontecimento surgem duas versões acerca do rei morto em combate, a primeira explica que o corpo do Rei foi entregue a Portugal como símbolo da derrota do povo lusitano e, segundo, que o corpo do Rei jamais fora encontrado, ou seja, um corpo que não foi reavido justifica o encantamento do Rei, motivo para a disseminação do sebastianismo. Desta feita, Portugal difundiu “a crença de que D. Sebastião não morrera” e tal prerrogativa se espalhou por todas as colônias portuguesas. O Sebastianismo, segundo Santos (2009, p. 65), se fragmentou sem, no entanto, perder sua essência, adequou-se aos
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História do Rei Sebastião
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Outro local que manifesta situações semelhantes às descritas pelo senhor Milton, é exposto por Patrícia Souza (1999, p. 32-38) acerca da Ilha de Maiandeua, Maracanã (PA), ao assegurar que:
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É que que quando foi seis horas da manhã lá vem o cavaleiro por riba da água, tha, tha, tha... agarrou no barco dele e disse o barco vai pra São Luiz, vai pra São Luís, o que é o carregamento? E disseram já tá comprometido ou esta disposto a venda? Não está disposto a venda? Eu compro toda a mercadoria. Você compra? Compro, pode soltar tudo ai (dentro d’água?). É dentro da agua é. Soltaram lá a mercadoria . Ele perguntou quem tem coragem de buscar o dinheiro comigo, ah! Aí não, Aí não, aí o cozinheiro, e que eu não me lembro do nome do cozinheiro. O cozinheiro disse que tinha coragem de ir. Então monte aqui na garupa do cavalo. Ele montou, ele disse: O barco pode ir, pode sair esperar ele, que ele vai por terra, tá certo. Saíram. Mandou fechar os olhos. Fechou os olhos quando pensou que chegou lá palácio pai d’égua a estiva estava lá tudo forma de canoinha, muito bonita lá na cidade, muito bonita e aí só que não deram comer pra ele. Ele não comeu. Chega conta o dinheiro pra ele e disse eu vou lhe levar pra São Luiz, você vai ficar lá na Doca visa bem o barco. Aí você trepa por o leme do barco, da embarcação e aí o cara foi levar ele lá. Parece que o barco atracou e ele embarcou. Aí ele começou a tomar uma aqui outra ali e publicou que ele tinha ido noLençol e as notíciascorre aí na cidade. Mandaram ir, aí as autoridades mandaram chamar ele. Você foi noLençol? Fui. Você foi e viu o Rei Sebastião? Vi. Vamos aqui, pegaram e levaram ele para um quarto onde tinha retrato de gente de todo jeito. Qual e deles, o Rei Sebastião. Olhou e disse,aqui ele não está, doutor ele não tá aqui. Então você não foi noLençol que ele tá aí no meio dos outros. Não aqui não, levaram pra outro quarto tinha dois retratos, Rei Sebastião e o retrato de Jesus Cristo. Efoi olhou e disse e disse é aquele ali. E você foi lá. Aí foi fuzilar ele. Eles têm medo de desencantar o Lençol, porque se desencantar o Lençol, o Lençol sobe e São Luis vai pro lugar dele. É isso. Isso que é o medo dele, tem medo de desencantar o Lençol que é uma capital, o Lençol é São Luise São Luis se encantar. Então eles fazem toda a procura eliminar aquela pessoa e de primeiro eles procuram muito jeito desencantar (Silva, Milton Monteiro, Viseu-PA, 11 set. 2013).
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novos espaços. Tendo como base essa fragmentação, em Viseu, o senhor Milton relata o seguinte evento com o Rei Encantado:
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Mayandeua, a cidade encantada que ficava no fundo do lago, hoje conhecido como “lago da princesa” e prossegue afirmando que “a princesa encantada do Mayandeua seria filha de Dom Sebastião e teria certa vez aparecido a três pescadores pedindo para ser desencantada (...) Se a princesa chegasse a ser desencantada, ocorreria uma inversão: a cidade dos encantados viria a tona e outras cidades, como Belém do Pará afundariam. Trata-se de uma ideia messiânica claramente associada ao sebastianismo português.”
Assim, na Amazônia Oriental, o Rei Sebastião é encoberto por praias e pedras, como a Pedra do Gurupi (Viseu), a Pedra do Rei Sabá (São João de Pirabas), Maiandeua (Ilha de Algodoal no município de Maracanã) e Ilha dos Lençóis. O rei Sebastião “só poderia estar encoberto num lugar ermo, também escondido, fruto do sobrenatural. Seria uma ilha encoberta”, isso porque o “encoberto vive retirado numa ilha que também é encoberta. Essa ilha encantada, invisível, impossível de localizar de maneira definitiva, e que não figura em nenhum mapa, surge contudo das brumas diante dos navios em apuro”, desse modo, o “sebastianismo é filho das ilhas” (Silva, 2010, p. 102-103).
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O sebastianismo, segundo Pereira (2008, p. 149), ocorre no Brasil em virtude da presença das encantarias, como exemplo dos “filhos do rei Sebastião” na ilha dos Lençóis, Maranhão. Essa “ilha é considerada uma ilha encantada, enquanto lugar privilegiado para a morada de El Rei Dom Sebastião”. Ainda de acordo com Pereira (2008, p. 152-153), percebemos que “o mito do sebastianismo possui grande força naquela região, estando metamorfoseado na lenda do ‘touro encantado’”. Acredita-se que tal crença não esteja presente somente na crendice do povo maranhense, mas em toda “população do litoral Norte” e suas raízes históricas, segundo Braga (2001, p. 21), ligam-se ao “messianismo português [que] é resultante da convergência de três correntes: duas corrente de natureza eminentemente religiosa (judaísmo e cristianismo) e uma corrente política” e aqueles que prosperarão, mediante as profecias de um rei que ressaltaria o prestígio político de Portugal, serão “os dois grandes ‘profetas’ Gonçalo Anes, o sapateiro de Trancoso, e o jesuíta Antônio Vieira” (Braga, 2001, p. 22). No Brasil, o sebastianismo pode ser percebido tanto na religiosidade do catolicismo, no denominado culto a São Sebastião,
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O Rei Sebastião no Nordeste Paraense
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apesar de alguns afirmarem que as duas entidades não são a mesma pessoa mesmo com o culto de aniversário coincidir, vinte de janeiro. Essa data é explícita nas trovas de Gonçalo Anes Bandarra1, o qual ressalta que o aniversário de dom Sebastião, rei de Portugal, corresponde ao dia da festividade de São Sebastião no Brasil. Essa festividade em Carutapera (MA), cidade vizinha de Viseu, dura dez dias, isto é, termina no dia vinte e dois de janeiro. A respeito dessa data, é digno de nota o que sugere Maués (1990, p. 102) acerca da festividade de São Sebastião (Oxossi) na Umbanda, uma entidade encantada. Essas divindades, grosso modo, são estabelecidas pela “corrente-do-fundo [que se trata de] uma doença provocada por uma categoria específica de encantados, caruanas”, entidades comuns nos terreiros de pajelança de Viseu. Vejamos o que a pajé viseuense diz acerca desse momento: Aqui no terreiro ela (Erundina) já baixou uma vez, numa filha de santo minha mas é Mariana, Jarina, a Erundina quase a gente não ouve falar, mas é Mariana que ela sempre vem nos terreiros. Tem natural cada uma desce né, porque aqui no meu terreiro elas só vêm, né, doutrinam e vão embora. [...] eu não sou muito fundada na historia de Mariana, Jarina, só sei que elas são filhas do Rei Sebastião, dizem que são três maresias encantadas lá na praia do lençol, né, e Jarina é encantada, numa delas, eu acho que todas três né, porque são três irmãs, são três maresias (Pajé Deusa, Viseu-PA, 14 set. 2013).
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veio pra Serra do Piriá levou uma caboquinha lá da serra pra mulher dele, era sobrinha de papai, Antônia, ela era bem novinha, passou uns dias apareceu um, um, um, ela se atoou lá passou um negócio dum, se incorporou um negócio de espírito nela, se incorporou nela, aí ela falou, era Rei Bastião, falou e disse dizendo pra ela que era falando nela mesma que pra papai cavar um poço (...) que ia dá agua boa lá que depois que Mais acerca desse “profeta” verificar Silva (1993, p. 13) e Santos (2009, p. 69).
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Pela voz de outro narrador é permitido entender um pouco mais sobre essa figura emblemática da religiosidade popular quando o senhor Manoel Ademir diz que, caso o “Rei Bastião” se agrade da pessoa, ele aparece para colocar o vulgo no caminho mais seguro de suas decisões. Na narrativa contada por este narrador ele afirma que o irmão dele
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o papai encaixotasse tudinho, tampasse, zelasse (Manoel Ademir, Viseu/PA, 11 set. 2013).
Em tal fala ressoa as observações de Maués (1990, p. 103) quando o autor afirma que a “motivação do agente é o ‘agrado’, isto é, o caruana escolhe aquela pessoa, por gostar dela, para poder manifestar-se. A pessoa não pode resistir por si mesma” e, diante de tal narrativa, a personagem do senhor Manoel evidentemente era escolhida pelo encantado, o que podemos conferir quando ele relata que seu pai, residente na praia da Ilha da Iara, recebeu um “intimado” de um caruana, ele poderia ali morar com a ressalva de que não promovesse festa, ou qualquer atividade sui generis que gerasse movimentação desordenada na ilha. Ele não cumpriu as deliberações do encantado e, com isso, eventos naturais inesplicáveis ocorreram durante a realização de uma festa, o narrador nos explica melhor acerca desse caso:
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Compreendemos que esse evento não esperado ocorreu devido a presença do rei encantado da Pedra do Gurupi que rege também a praia da Ilha da Iara, confirmando a presença desses encantados, seres invisíveis que se apresentam durante os rituais incorporados no “pajé” (isto é, o xamã). Maués (2005, p. 264) explica também quais são as três principais moradas do rei Sebastião no Norte brasileiro: a primeira é a Ilha de Maiandeua, posto que na ilha de Algodoal (Maracanã/PA) “se situam a praia e o lago da princesa, que é a filha do rei”; a segunda é a Ilha de Fortaleza (São João de Pirabas/PA) “onde existe a ‘pedra do rei Sabá’ e o ‘coração da princesa’”; e, por fim, o antropólogo cita que “o mesmo acontece com a ilha dos Lençóis, no litoral do Maranhão, que é menos referida ainda na região do Salgado: esta é a terceira morada do rei Sebastião”. Acrescentamos que a quarta morada do rei Sebastião é a Pedra do Gurupi que, igualmente às demais citadas por Maués, é
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Meus irmãos foram bater pra Fernandes Belo buscar uma aparelhagem, mandaram chamar times. Quando foi dia seis de setembro, a maré já tava lançando grande, quando foi de tarde a maré veio descendo foi cavando uma barreira grande, do tamanho que tinha a rua da praia, foi crescendo a barreira, por dentro da terra, chegou perto da linha de casa, no dia seguinte, quando foi de noite que teve a festa a maré veio chegando derrubando na frente todinho, foi jogando uma contra as outras e foi prejuízo, não tem mais nem uma ponta de terra. Então, e a casa dela, e a casa dela caiu porque derrubemos a casa dela, da, da, dessa que se atoava (Manoel Ademir, Viseu/PA, 11 set. 2013).
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contígua a uma ilha encantada habitada por uma princesa, conhecida localmente como a filha do rei. O Sebastianismo na Pedra do Gurupi A relação atribuída ao envolvimento mítico entre a Pedra do Gurupi e da Ilha da Iara também é observável em Cascudo (2001, p. 279), para ele, Iara é o “nome convencional e literário da mãe-d’água, ig, água; iara, senhora”. Mas adiante, observando o vocábulo mãed’água, compreende-se “por mãe-d’água a sereia europeia, alva, loura, meio peixe, cantando para atrair o namorado, que morre afogado querendo acompanhá-la para bodas no fundo das águas” (Cascudo, 2001, p. 348). Neste contexto, observa-se que nas águas há seres encantados que povoam o imaginário Amazônico e a Iara, enquanto a senhora das águas, se assemelha a Iemanjá, “rainha do mar” entidade presente nos ambientes de umbanda. Reiterando as teorias acerca das cidades submersas, a lenda da Iara, encontra-se seres encantados que “vivem no fundo das águas brasileiras, cidades castigadas no seu orgulho. Em certos momentos as vozes de seus encantos habitantes ressoam em cantos, atravessando os ares sons de clarins, rufos de tambor, gritos aclamações” (Cascudo, 2010, p. 229). É digno de nota o que diz o pesquisador potiguar do folclore brasileiro a respeito da mais bela história de cidades submersas na Amazônia, a da foz do rio Gurupi, a famosa morada do rei Sebastião no Pará, ou seja, a Pedra do Gurupi:
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Pode-se acrescentar que, ainda segundo alguns entrevistados, neste lugar ouve-se galo cantar, boi berrar, cavalo relinchar etc. Segundo seu Raimundo Ferreira (Viseu/PA, 09 set. 2013), ele não viu, mas ouviu, como tantos outros, esses “movimentos” audíveis e perceptível e, também, o pescador que por essas bandas do rio Gurupi se aventurar, arrisca-se a ser atraído pelo Rei Sebastião e ser por ele incorporado. Essa “possessão” serve para comunicar aos praianos as determinações do Rei Encantado, ou seja, as condições de permanência
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A mais bela lenda da cidade encantada é Amazônia. Na foz do rio Gurupi, 9 milhas da cidade de Viseu, no Pará, existe um grande rochedo, em que se cava uma profunda gruta. É crença entre os povos que ali sobre o rochedo, houve uma cidade, que foi por uma inundação arrastada para o fundo do rio: nas noites claras de luar, ouve-se distintamente, lá embaixo, um rumor de vozes humanas e repiques de sinos.
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no local, caso os pescadores agradem o rei, ele indica os locais propícios de água potável e peixe fácil. Portanto, como preconiza Ferreira (2013, p. 48), esses barulhos não são perceptíveis a todos, “não se consegue identificar e nem todas as pessoas são capazes de enxergar os riscos e rabiscos”, conscientizando o ideário local sobre aqueles que afirmam ter algo de especial com relação ao misticismo e que aqueles que não respeitam esta crença tendem a ser punidos, impedidos de usufruirem da pesca nas encostas da pedra ou serem acometidos por enfermidades, sendo uma constante para aqueles que agridem tanto a Pedra do Gurupi quanto a Ilha da Iara. Nesse viés, as histórias que circundam essas entidades, são excelentes modeladores sociais contra a predação ambiental nas águas de Viseu (PA). Ouve-se contar em Viseu que era comum a Pedra do Gurupi trocar de lugar com a Ilha da Iara. Observamos esse ressoar de vozes, principalmente nas falas do senhor Raimundo, da Pajé Deusa e do senhor José Maria que, entre outras informações, dizem: [...] ia assim, vamos dizer assim, hoje é segunda, né? Aí tinha sinal, quando a Pedra estava lá no lugar dela, aí começava aparecer um vento. É bem forte a aí a Ilha ia, quando espantava que não se mudava. A Pedra vinha pra cá e a Ilha ía pra lá. E verdade que quando a, a, a, pe... comé a Ilha ía pra lá era motindade de vento. Era bem pouquinho, era,era não tinha vento, bem pouco e uma Ilha no meio do oceano daquele, agora quando a Pedra se mudava nesse dia ninguém num podia andar no meio de Viseu. Aquela maresia tudo quanto não prestava (Borges, Raimundo Ferreira, Viseu-PA, 9 set. 2013).
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[...] É, é, é, essa Pedra ela tem um mistério e essa Ilha também tinha um mistério e este mistério, é que a Pedra se mudava pro lugar da Ilha e a Ilha se mudava pro lugar da Pedra. Só que existia um certo Reino Encantado. Quando descobriram o segredo que essa Pedra desse reinado a Pedra não saiu mais
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[...] Eu ouvia quando era muito era inverno chovia, chovia, se ouvia estrondo da pedra, a minha avó que era índia, ela contava pra gente, que realmente essa Pedra se mudava de lugar que inclusive veio o padre pra benzer a Pedra por que um dia amanhecia num lugar no outro dia amanhecia no outro, mudava justamente aqui nesse rio Gurupi que se trocava era a Ilha da Iara que você fala com a Pedra do Gurupi (Pajé Deusa, Viseu-PA, 14 set. 2013).
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de lá e é época de lua cheia que se trocava, a Ilha ía pro lugar da Pedra e a Pedra vem prolugar daIlha (Gonçalves, José Maria, Viseu-PA, 07 set. 2013).
São este os eventos que denunciam a presença do Rei Sebastião no município de Viseu, apresentando uma morada que serve, sobremodo, para explicar esse modo singular da população local em criar sentido para os fenômenos que os surpreendem, mas também para determinar os modos de se relacionar com os espaços naturais, uma vez que é sob o prisma do Rei que o morador local encara a pesca ou utiliza os ambientes naturais, o que deixa manifesto uma relação com o outro, desse modo, o sebastianismo é, aos nossos olhos, sobremodo um conceito que deixa subjacente uma relação de respeito com o espaço que se habita.
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Referências
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ADEMIR, Manoel. Pescador aposentado, 86 anos. Entrevista concedida a Sônia Moraes do NASCIMENTO. Rua Bom futuro, S/N. Bairro: Mangueirão, Viseu-PA 11 set. 2013. Gravação digital 45’0’ estéreo. BORGES, Raimundo Ferreira, Aposentado. 84 anos. Entrevista concedida a Sônia Moraes do NASCIMENTO. Rua oito de Maio S/n, Mangueirão, Viseu-PA 9 set. 2013. Gravação 44’26’ estéreo. FERREIRA, Raimundo. Pescador. 35 anos. Entrevista concedida a Sônia Moraes do NASCIMENTO. Rua Nova s/n, Bairro Alto, Viseu-PA, 09 dez. 2013.Gravação digital 54’0’ estéreo. GONÇALVES, José Maria, Pescador, 53 anos. Entrevista concedida a Sônia Moraes do NASCIMENTO. Rua Principal, Chapada, Viseu-PA, 07 set. 2013. Gravação 8’2’ estéreo. PAJÉ DEUSA, Autônomo e balauê no terreiro Zé Raimundo Boji, 35 anos. Entrevista concedida a Sonia Moraes do NASCIMENTO. Travessa L, Bairro: Piçarreira, Viseu-PA, 14 set. 2013. Gravação digital 5’34’ estéreo.
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Entrevistas
Márcia Saviczki Pinho | Carmen Lúcia Reis Rodrigues A pesquisa sobre plantas medicinais
A PESQUISA SOBRE PLANTAS MEDICINAIS da comunidade de Vila-Que-Era: um percurso pela Terminologia e Tradução
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Resumo: o termo plantas medicinais já nos alude sua significação, devido nossa cultura ainda preservar muitos traços tradicionais. Na literatura botânica, há uma grande gama de autores que procuraram defini-la. Para Campelo e Ramalho (1989) “Planta medicinal é aquela que contém um ou mais princípio ativo que lhe confere atividades terapêuticas”. Este trabalho, a ser desenvolvido no âmbito da Terminologia e Tradução, tem por finalidade – a partir de uma amostra de corpus de pesquisa do projeto “Saberes que curam: uma incursão sobre a tradução dos nomes de plantas da comunidade da Vila-Que-Era (PA)” – traduzir os conhecimentos tradicionais, em relação ao poder de cura, por meio do estudo do léxico específico das plantas medicinais nos falares populares de Vila-Que-Era. A Terminologia é um ramo de estudos da linguística voltada ao estudo dos termos específicos de uma área também específica (Krieger; Finatto, 2004). A Tradução refere-se ao transporte e à ressignificação de um texto, ou termos específicos de uma língua ou cultura de partida para outra de chegada (Larrossa, 1996). A terminologia, neste trabalho, tem como meta embasar o estudo dos termos específicos, neste caso, sobre as plantas medicinais e a Tradução permitirá compreender a atribuição da finalidade a um dado termo, no âmbito da cura. Portanto, o foco deste trabalho é o estudo dos termos das plantas medicinais a partir de aportes teóricos e metodológicos da Terminologia e da Tradução. Para a constituição desse corpus foram selecionadas duas informantes visitadas e entrevistadas no período do segundo semestre de 2013 ao primeiro semestre de 2014. Os dados foram coletados através de equipamentos audiovisuais e transcritos segundo Fávero
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Márcia Saviczki Pinho Carmen Lúcia Reis Rodrigues
Márcia Saviczki Pinho | Carmen Lúcia Reis Rodrigues A pesquisa sobre plantas medicinais
(1999) com o auxílio dos programas Toolbox e Listen N Write. A pesquisa revelou, por meio do material coletado, até o presente momento, que as plantas medicinais são utilizadas na comunidade para curarem os malefícios tanto do corpo, como da alma. Palavras-chave: Terminologia. Tradução. Plantas Medicinais. Conhecimentos tradicionais. Vila-Que-Era (PA).
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Não há nenhuma novidade quando se fala do interesse da humanidade pelas plantas medicinais. Durante séculos, e até milênios, o homem construiu um cabedal de conhecimentos em torno das plantas, selecionando-as de acordo com as suas funções e finalidades em suas vidas. Desde a antiguidade até nossos dias, o homem preserva o costume de recorrer a tais conhecimentos sobre as plantas para curarse.Assim, ao tratardo termo plantasmedicinais percebe-seque há inúmeros objetivos e interesses em seu estudo,dada a amplitude de saberes e práticas embutidos no nome de cada planta. O interesse em compreender tais saberes e práticas foi uma das razões que impulsionaram o desenvolvimento da dissertação de mestrado (em andamento) “Saberes que curam: uma incursão sobre a tradução dos nomes de plantas de Vila-Que-Era, da região Bragantina (PA)”. Esse estudo tem como meta a construção de um glossário sobre essas plantas e está centrado nas áreas de conhecimento Terminologia e Tradução. Sendo assim, o trabalho, ora apresentado, tem por finalidade apresentar a referida pesquisa, por meio de uma amostra do corpus já coletado. Para tanto, inicialmente, serão mencionadas definições de “plantas medicinais” atribuídas por alguns autores da área, e também pelas duas moradoras de Vila-Que-Era, selecionadas para a pesquisa. Em seguida, serão apresentadas algumas considerações a respeito da interface da Terminologia com a Tradução. Posteriormente, será feita uma breve abordagem teórica a respeito da terminologia e das unidades terminológicas. Na sequência, será apresentada a descrição e constituição das fichas terminológicas usadas na organização dos dados, a fim de se proceder à construção do glossário. Por fim, serão listados, em um quadro, os nomes de plantas medicinais identificados, até então, dividindo-os em duas grandes categorias.
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Introdução
Márcia Saviczki Pinho | Carmen Lúcia Reis Rodrigues A pesquisa sobre plantas medicinais
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Cf. mais adiante, item “Fichas terminológicas das plantas medicinais da comunidade de Vila-Que-Era”.
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O termo “plantas medicinais” já nos induz a compreender a construção de seu significado. No entanto, é importante justificar sua acepção em termos científicos. A comprovação desse termo nos estudos terminológicos dá-se pelo fato de se encontrar,repetidas vezes, a associação dessas palavras ora no singular, ora no plural, no domínio específico da botânica. E por mais que as definições dadas pelos diferentes teóricos diferenciem em suas abordagens, sempre se encontram em pontos fundamentais, ou seja, no conteúdo que especifica seu conceito. Na literatura botânica, seguindo uma linha cronológica temporal, vários autores procuraram definir o que seria planta medicinal. Para Campelo e Ramalho (1989, p. 67) “Planta medicinal é aquela que contém um ou mais princípio ativo que lhe confere atividades terapêuticas”; Barlemet, na mesma linha de pensamento, a define como“toda e qualquer planta que atue de maneira benéfica no combate ou minimização de qualquer malefício no organismo humano” (Apud.Martins et.al., 1995, p. 22); e Foglio (2006, p. 2) completa a ideia dos outros autores, já que, para ela,“pode-se considerar como planta medicinal aquela planta administrada sob qualquerforma e por alguma via ao homem, exercendo algum tipo de ação farmacológica”. Porém, para este estudo, é muito importante compreender como os moradores da Vila-Que-Era definem plantas medicinais. Para as informantes, selecionadas1 para amostra da pesquisa, plantas medicinais referem-se às plantas destinadas a curarem enfermidades tanto do corpo físico como da alma,conforme revelam os relatoslevantados nas entrevistas. Para a primeira informante, plantas medicinais “são essas aqui caseiras que eu uso... elas servem para muitas doenças... serve para derrame... serve para infecção, para cisto, para dor de ouvido, para dor de cabeça, para paralítico andar... então são esses que são remédiospara mim, né?”. Já para a segunda informante, “erva medicinal é aquela erva que tu precisa para fazer qualquer uma coisa... para banho... ou paratomar... ou para passar no corpo... essa queé a erva medicinal... eu entendo assim, né?”.Nesse último relato, tem-se a alusão às plantas como forma de cura para problemas físicos, como também espirituais, ou seja, da alma, pois a palavra “banho”, no relato acima, refere-se aos banhos de cheiro com finalidade de espantar “mal olhado” ou outros malefícios dessa natureza.
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O que são Plantas Medicinais?
Márcia Saviczki Pinho | Carmen Lúcia Reis Rodrigues A pesquisa sobre plantas medicinais
A partir dessa explanação, fica claro que tanto para os teóricos quanto para os moradores, plantas medicinais são os vegetais destinados a curarem as enfermidades do corpo e, em particular, para os moradores de Vila-Que-Era, as plantas também são úteis para as enfermidades da alma. Terminologia e Tradução: uma relação necessária
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La tradución, por tanto, es inherente a la comprensión humana, y hay tradución de una lengua a otra, de un momento a otro de la misma lengua, de un grupo de hablantes a otro y, en el límite de cualquer texto (oral o escrito) a su receptor. Leer es traduzir. Interpretar es traduzir. (op. cit., p. 38)
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Sabe-se que a Terminologia caracteriza-se como uma área de natureza interdisciplinar. Assim, segundo Sonneveld (Apud Dias, 2000, p. 90), “a disciplina terminologia congrega conhecimentos oriundos de diferentes ciências, como a informática (engenharia do conhecimento e inteligência artificial), a linguística (semântica, lexicologia e tradução), as ciências da documentação e classificação, a conceptologia e nomenclatura”. De acordo com as palavras de Lara (2004, p. 234), a Terminologia“dá suporte a várias disciplinas no estudo dos conceitos e sua representação em linguagens de especialidade”. Quanto a isso, considera-se que uma das disciplinas em que se percebe a contribuição da Terminologia é a Tradução, pois, ao traduzir textos técnicos, científicos e especializados, o tradutor deve, necessariamente, ter conhecimento da área do texto que traduz, e, sobretudo, da terminologia usada no texto em questão (Barros, 2006, p. 23). A expressão “tradução” é nova no mundo das ciências, e mais recente ainda é o termo tradução cultural. No início dos estudos da tradução, entendia-se por tradução apenas a passagem textual de uma língua a outra. Com a evolução desses estudos, observou-se que não se traduz apenas uma língua a outra, pois, ao fazermos isso, indiscutivelmente, ocorre a tradução em sentido mais amplo, ou seja, a passagem de uma cultura para o conhecimento da outra.Para Larrosa (1996, p.301), isso ocorre porque “toda tradución, como toda comunicacíon y toda lectura es al mismo tempo transporte y transformación”.No processo de traduzir, transportamos o léxico de uma língua de partida, transformando-o, quer dizer, resignificando-o na língua de chegada.A compreensão de tradução como transporte e transformação parte da concepção de tradução de Larrosa. Segundo ele:
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Contribuições como esta propiciaram o alargamento do termo “traduzir”, possibilitando hoje falarmos de tradução cultural. Para Burke e Hsia (2009, p. 14) “a expressão ‘tradução cultural’ foi originalmente cunhada por antropólogos do círculo de Edward EvanPritchard, para descrever o que ocorre em encontros culturais quando cada lado tenta compreender as ações do outro”. Lages (2007) chama a atenção para a importância da tarefa árdua do tradutor, denominando-a até de melancólica.O tradutor deve trabalhar com todo o tipo de equivalências, correspondências, e paralelos entre as duas línguas/culturas. Essa tarefa requer uma agudeza de percepção que ultrapassa a da maioria dos mortais. O trabalho da tradução acaba por se tornar impossível para aquele que pretenda encontrar a pureza da tradução. Em outras palavras, a tradução é sempre parcial, já que nunca irá traduzir plenamente, e sempre ficará um resquício para se traduzir, algo que escapa dos sentidos do tradutor. Quando nos remetemos ao binômio “Terminologia e Tradução”, cabe ressaltar que Krieger e Finato (2004) salientam a precisão do papel do tradutor nesta empreitada. Para as autoras (p. 68), “ao tradutor interessa um manejo terminológico competente, expresso pela adequada seleção, na língua de trabalho, dos termos equivalentes àqueles utilizados pelos especialistas na língua original”. Para isso, é necessário que esse profissional conheça e acesse repertórios terminológicos utilizados nas comunicações especializadas tanto nas relações culturais interlínguas como monolíngues. Segundo elas, as palavras desse binômio não se equivalem, têm funções e papéis diferentes, além de constituírem campos teóricos e práticos diferentes; a Terminologia tem como foco central o termo específico e a Tradução o complexo processo tradutório. No processo de tradução, portanto, a Terminologia funciona como base de apoio, contribuindo com esclarecimentos teóricos linguísticos fundamentais para a elaboração de produtos terminográficos. Para Krieger e Finato (2004, p.70), “a maior colaboração que a disciplina terminológica pode oferecer aos tradutores é a de auxiliá-los a compreender a natureza, o estatuto, a constituição e o funcionamento dos termos técnico-científicos”. Portanto, Terminologia e Tradução são áreas de conhecimentos que não se equivalem, mas essa interface é necessária quando se propõe a tradução de termos específicos de uma cultura. Nessa tarefa, as competências de ambas devem estar associadas ao tradutor.
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Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
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International Standardization Organization.
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Krieger e Finato (2004) afirmam que o estudo da Terminologia, iniciado por Wüster, teve seu desenvolvimento sob várias óticas, tornando-se difícil, até certo ponto a unicidade conceitual. Para uns, trata-se de um “conjunto de termos de um determinado domínio”; para outros, “visam descrever as unidades terminológicas”; e, por fim, cabedestacar que, para alguns estudiosos, a Terminologia é uma ciência e, para outros, é uma disciplina científica. No entanto, para a pesquisa sobre as plantas medicinais de VilaQue-Era, a definição apresentada por Costaresponde às questões investigadas em torno do termo estudado, pois, para essa autora,a terminologia “é uma disciplina no seio da Linguística que estuda o comportamento das unidades terminológicas, recorrendo aos contextos e, de forma mais abrangente, aos textos em que ocorrem” (Costa, 2001, p. 6 apud Maia, 2010, p. 3). O estudo das unidades terminológicas denota não só as análises das características linguísticas como também das extralinguísticas envolvidas na comunicação das relações humanas no âmbito das especialidades. “A unidade terminológica é, simultaneamente, elemento constitutivo da produção do saber, quanto componente linguístico, cujas propriedades favorecem a univocidade da comunicação especializada”, conforme asseveram Krieger e Finatto (2004, p. 75). Sendo assim, é importante esclarecer que termos “são signos que encontram sua funcionalidade nas linguagens de especialidades, de acordo com a dinâmica das línguas: são entidades variantes, porque fazem parte de situações comunicativas distintas” (Faulstich, 1998, p. 62). Barros (2004, p. 40) afirma que termo “é uma unidade lexical com conteúdo específico de um domínio específico”. Os processos de formação dos termos ocorrem pelo mesmo viés canônico de formação de novas palavras: atender às necessidades urgentes de uma dada cultura ou uma área, neste caso, específica. E, os fenômenos mais comuns nos domínios de especialidades, segundo Alves (2006), são “a derivação, tanto sufixal como prefixal, e a composição”. Segundo Barros (2004, p. 75), o termo pode constituir-se de um único lexema ou de uma sequência lexemática, tendo em vista sua estrutura morfossintática e léxico-semântica. A autora apresenta ainda a classificação da ISO2 1087, que agrupa os termos em simples – “constituído de um só radical, com ou sem afixos” – ou complexo –
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Terminologia e os sintagmas terminológicos
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“constituído de dois ou mais radicais, aos quais podem se acrescentar outros elementos”.Essa classificação pode ser visualizada no corpus referente às plantas medicinais de Vila-Que-Era, em que identificamos termos simples, como ‘malvarisco’, e complexos, como ‘tajá de pena’, por exemplo. Barros (2004) afirma ainda que cada área de especialidade tem sua organização interna de constituição de nomes. A botânica, por exemplo, área estudada no momento, adota regras precisas na criação de nomes científicos das plantas. A autora explica que a nomenclatura dessa ciência é binominal e se organiza de maneira sistemática: classe, ordem, família, gênero, espécie, e, quando houver, subespécie ou variedade. Na pesquisa, ora em andamento –que visa à construção de um glossário dos nomes de plantas medicinais de Vila-Que-Era –, cada um dos nomes terá um conjunto de informações específicas, segundo o que for identificado a partir dos relatos das informantes, colaboradoras da pesquisa. Para isso, os dados estão sendo organizados em fichas terminológicas, conforme a explicação abaixo. Fichas terminológicas das plantas medicinais da comunidade de Vila-Que-Era
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1 - Malvarisco s m hortelã grandebotânica “cozinha a folha dele e tira o sumo quando tá com problema de surdura, né? Aí derrama assim dentro do ouvido com um pouco de banha de galinha no suco dele aqui... e derrama dentro do ouvido para lavar o ouvido” M.N.F.S., M. S. P. 14/07/2014 2 - Tajá de pena s m botânica “ele serve também para... negócio de feitiçopara fazer banho para remédio” I. M. S., M. S. P. 15/07/2014.
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Para a construção do glossário, cada planta recebe uma ficha terminológica individual, onde são registradas todas as informações coletadas,referentes a cada planta, seguindo um modelo padrão apresentado na Revista Brasileira de Plantas Medicinais (2011). A ficha terminológica apresenta, para cada tipo de planta, as seguintes informações: a entrada, ou seja, o nome da planta, seguido da categoria gramatical, gênero e variantes, isto é, as variações de nomes para a mesma espécie; a definição dada pelo informante, e as notas (nome do informante, autor, redator, representados pelas iniciais e a data de coleta).A partir das informações contidas nas fichas, será organizado o glossário com os nomes das plantas retirados do corpus coletado. Por exemplo:
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Para a realização desta pesquisa,foram selecionadas duas informantes para o levantamento dos dados. A primeira é M. N. F. S., 62 anos, nascida e residente, até hoje, na comunidade Vila-Que-Era. A segunda informante é I. M. S., 71 anos. Ela também é natural de VilaQue-Era, no entanto, por alguns anos morou na cidade de Bragança. Apesar de não se reconhecer como curadora, é conhecida desta forma pelos moradores da comunidade. Entretanto, admite possuir o dom de receitar remédios, tanto para o corpo físico como para a alma, para todos que a procuram. O trabalho de coleta do material, junto às informantes, tem-se realizado por meio de entrevistas sobre os usos e finalidades das plantas consideradas úteis para o tratamento de doenças.Essas entrevistas são registradas com o auxílio de equipamentos audiovisuais, e transcritas segundo Fávero (1999), para, a partir daí, se proceder à identificação e organização dos dados nas fichas terminológicas, conforme mencionado acima.Embora se pretenda ampliar o corpusde análise, nas próximas pesquisas de campo, já é possível dividir os dados em duas grandes categorias, como será visto, no quadro abaixo, na seção seguinte. O corpus de análise: as plantas medicinais e os conhecimentos tradicionais
Enfermidades da Alma
Algodão preto Arruda Asafroa Abacate Babosa Begonha
Bem-vem-cá Cipó puçá Cipó cabí Cobra jararaca Cumacá Cundué
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Enfermidades do Corpo
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Para Van Seters (2008, p. 21), “a tradição é uma categoria ampla que abarca não só as formas verbais transmitidas do passado, mas também modos de ação e comportamento”. Assim, os conhecimentos em torno das plantas medicinais podem ser considerados conhecimentos tradicionais por possuírem essas características. Portanto, cada termo do léxico específico das plantas medicinais carrega uma carga semântica específica e tradicional da Vila-Que-Era, construída secularmente. Ao longo dos tempos, a população da comunidade foi selecionando as plantas de acordo com suas finalidades, identificando quais curam as enfermidades do corpo e quais curam as enfermidades da alma, como podemos observar no quadro abaixo.
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Note-se que o conjunto de dados fornecido pelas duas informantes,M. N. F. S. e I. M. S., aqui apresentados, compreendem 55 (cinquenta e cinco) plantas medicinais, das quais 29 (vinte e nove) possuem a finalidade de curar as enfermidades do corpo e 26 (vinte e seis)destinam-se à cura de enfermidades da alma. É importante mencionarque, de acordo com os relatos de M. N. F. S., esta curadora adquiriu os conhecimentos em torno do uso e finalidades das plantas medicinais a partir de sua vivência, das experiências que a vida lhe impôs e dos conhecimentos adquiridos através do diálogo, da conversa com os mais experientes, ou seja, com os curadores. Porém, I. M. S.,mesmo não se intitulando curadora, embora a comunidade a veja desta forma, conforme já dito anteriormente, afirma que não aprendeu com ninguém o poder de cura das plantas, e diz ter nascido com o dom de conhecer e receitar o uso das plantas medicinais às pessoas que a procuram. Assim, M. N. F. S. e I. M. S. podem ser consideradas arquivos de genealogia, por demonstrarem possuir um capital intelectual, que, para Almeida (2008),se configura em conhecimentos adquiridos mediantes relações sociais com suas tensões ou entre sistemas de relações sociais. E, esse capital intelectual é o que fundamenta o conceito de arquivo,
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Chama-dinheiro Espada-de-Angô Jacarezinho Jibóia da misteriosa Jiboinha Joan D’arc Jurema Liro (1) Liro (2) Onça Orisa Orquídea Pau-de-Angola Rosa Sangue-de-Cristo Tajá sete facadas Tajá de pena Vai-e-volta Vence-tudo Piquinina
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Carrapicho Coramina Coramina da pintadinha Chicória Esturáqui Favaca Goiaba araçá Hortelã de dor Hortelã grande Incenso de Nossa Senhora Mangueira Manjericão Malvarisco Mirra Romã Sabugueiro São Raimundo Samambaia Trevo Verga morta Verônica Vique Perpétua
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que, por conseguinte, denomina-se genealogia por ser transmitido tradicionalmente de geração a geração, através da oralidade. Conclusão Ao longo deste trabalho, foram feitasalgumas consideraçõesa respeito da pesquisa sobre o léxico referente às plantas com propriedades terapêuticas,que está sendo realizada na localidade de Vila-Que-Era, na cidade de Bragança-Pa. Destaca-se ainda, nesta exposição, a responsabilidade do trabalho de traduzir conhecimentos tradicionais que envolvem termos específicos, na interface Terminologia e Tradução. É muito importante, no trabalho de tradução cultural, dessa natureza, procurar conhecer a intimidade do outro, seu modo de agir e pensar, além de conhecer, em aspectos teóricos, a estruturação e a lógica da formação dos termos, para que se possa, então, estudá-los com mais profundidade. Ao término deste trabalho,cabe ressaltar que a comunidade de Vila-Que-Era tem uma estreita relação com as plantas medicinais. A população representada pelas informantes, ao longo dos tempos, selecionou as plantas, atribuindo-lhes suas finalidades de acordo com seus usos e necessidades, a partir da ciência empírica. Além disso, é notóriotambém que cada termo específico, ou seja, cada nome de planta carrega em si conhecimentos tradicionais construídos nas relações sociais, em que os curadores e os mais antigos repassam esses conhecimentos a todos que desejarem. A pesquisa revelou, principalmente, que as plantas medicinais são utilizadas na comunidade para a cura dos malefícios tanto do corpo, como da alma.
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Márcia Saviczki Pinho | Carmen Lúcia Reis Rodrigues A pesquisa sobre plantas medicinais
Márcia Saviczki Pinho | Carmen Lúcia Reis Rodrigues A pesquisa sobre plantas medicinais
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Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
A VARIAÇÃO DIATÓPICA no dicionário escolar
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Resumo: O presente trabalho intitulado A variação diatópica no dicionário escolar tem como objetivo principal analisar o tratamento da variação diatópica nos dicionários escolares dos acervos 3 e 4, selecionados na última edição do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD/2012). Para a realização desta pesquisa selecionamos uma amostra representativa de quatro dicionários, a saber: Caldas Aulete Minidicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Dicionário Escolar Aurélio Júnior da Língua Portuguesa, Dicionário Houaiss Conciso e Dicionário da Língua Portuguesa Evanildo Bechara, através destes dicionários verificamos como a variação diatópica é apresentada nas estruturas megaestruturais, macroestruturais e microestruturais. Também, elaboramos um questionário aplicado a professores e alunos de escolas públicas e particulares, a fim de verificar suas atitudes acerca do uso dos dicionários em sala de aula, tendo como finalidade saber se o dicionário é utilizado; como é utilizado; em que situações faz-se o uso; as atitudes do usuário; se os verbetes que constam nas obras representam arealidade sociocultural dos usuários e seus anseios inerentes a esta temática. A pesquisa aqui delineada adota como pressupostos teóricos as contribuições advindas dos estudos em Metalexicografia (Lexicografia Teórica) e Geografia Linguística, ciências estas que nos fornecem suporte para avaliar e refletir como os lexicógrafos inserem a variação linguística em um importante instrumento didático, o dicionário escolar, que deve ter como função principalregistrar a língua em uso, representando o repertório linguístico e sociocultural de seu usuário. Palavras-chave: Dicionário Escolar. Metalexicografia. Variação Diatópica.
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Brayna Conceição dos Santos Cardoso
Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
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Esta pesquisa analisa o tratamento da variação diatópica nos dicionários escolares dos tipos 3 e 4, avaliados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Trata-se de um trabalho inserido na área da Metalexicografia, ramo da Lexicografia que trata dos estudos teóricos acerca da elaboração do dicionário escolar. No Brasil, o dicionário escolar recebeu destaque através das políticas implantadas pelo Ministério da Educação (MEC), primeiramente os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN), incentivaram o uso do dicionário escolar como apoio didático fundamental no processo de ensino-aprendizagem de língua materna; outro fator relevante foi à distribuição gratuita nas escolas públicas através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Considerando o dicionário escolar um importante instrumento para o ensino de língua e a variação linguística, fenômenos de grande ocorrência no Português Brasileiro, esta pesquisa tem por interesse saber como a variação linguística, mais especificamente, a variação diatópica é tratada nos dicionários escolares dos tipos 3 e 4, avaliados no último edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD/2012). Quanto a seleção dos tipos 3 e 4 do PNLD, estes foram escolhidos em detrimento ao nível de amadurecimento escolar dos consulentes, no que concerne, a temática envolvida em nossos estudos. Dos noves dicionários aprovados para compor os acervos, escolhemos uma amostra representativa de quatro dicionários, sendo dois dicionários representantes do acervo 3 de uso recomendado para os ciclos finais do ensino fundamental e dois dicionários para representar o acervo 4, com uso voltado aos alunos do ensino médio. A saber, selecionamos os seguintes dicionários: Caldas Aulete Minidicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa (2011), Aurélio Júnior Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (2011), Dicionário Houaiss Conciso (2011) e Dicionário da Língua Portuguesa Evanildo Bechara (2011). Tomando como base os aspectos que compõem a megaestrutura, a macroestrutura e a microestrutura dos dicionários,verificaremos através das marcas de uso, a forma como a variação linguística, mais especificamente a variação diatópica, é abordada nos dicionários escolares. Tendo em vista ainda, a lacunade estudos metalexicográficos a propósitoda utilização dos dicionários escolares, especialmente daqueles indicados no PNLD/2012, daremos um breve enfoque sobre a postura dos alunos e professores diante da questão da variação lexical
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Introdução
Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
no dicionário, levando em conta seu uso como ferramenta pedagógica, estímulo ao uso e procedência à consulta. A presente pesquisa encontra-se estruturada em quatro seções, a saber: a primeira seção trata do Quadro Teórico. A segunda seção tece as considerações sobre o Dicionário Escolar. A terceira seção apresenta o Contexto e os Instrumentos da Pesquisa. A quarta seção demonstra a análise e discussão dos dados da pesquisa. Linguística
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O quadro teórico desta pesquisa concentra-se nos estudos inerentes ao léxico tomando como base a Lexicografia,a Lexicologia, a Geografia Linguística e a Metalexicografia. Tais ciências possuem o mesmo objeto de pesquisa, a lexia, procedendo ao seu recorte de acordo com os modelos teóricos e métodos de análises específicos adotados. As pesquisas realizadas no âmbito da Lexicologia e Lexicografia detêm-se nos constantes processos de atualização da língua e na descrição linguística dos fenômenos que acarretam essas mudanças. Ao se descrever as línguas, se analisa e documenta o léxico de uma comunidade linguística proporcionando a manutenção do patrimônio linguístico e sociocultural desses falantes. A Lexicologia estuda o léxico geral de uma língua natural, descreve as palavras de uma dada língua ocupando-se das estruturas e regularidades dentro da totalidade do léxico,podendo apresentar-se tanto em discursos individuais quanto coletivos. Através da estruturação e categorização lexical e gramatical que abarcam o universo das palavras, a Lexicologia visa explicar de forma mais adequada possível o funcionamento do léxico de seu falante. Para Lehmann; Martin-Berthet (1998), compete à Lexicologia estabelecer a lista de unidades que constituem o léxico e descrever as relações entre essas unidades, uma vez que, o léxico não é simplesmente o repositório das unidades lexicais e de suas idiossincrasias, mas antes um componente da gramática que, apesar de suas particularidades, apresenta regularidades próprias e estruturação específicas. A Lexicografia trata dos problemas teóricos e práticos que dão subsídio para a elaboração de dicionários, Hernández (1989) apresenta os dois ramos em que a Lexicografia é dividida, a Lexicografia Prática e a Lexicografia Teórica ou Metalexicografia. Tais ramos apresentam diferenças singulares, a Lexicografia prática debruça-se na confecção da obra, através da recolha de corpus,
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Geografia
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Lexicografia, Lexicologia, Metalexicografia
Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
o modo de concepção e as tomadas de decisões de como descrever a língua. Já à Metalexicografia, compete o domínio teórico, o qual leva em consideração o conteúdo dos dicionários; o estabelecimento das estruturas lexicográficas; a crítica aos dicionários, tomando como parâmetro a forma de proceder em seu uso. A Geografia Linguística é compreendida como um ramo da Dialetologia, tendo por foco o estudo da variação linguística no espaço geográfico, através do método de investigação geolinguístico que objetiva recolher, sistematizar, analisar e interpretar traços linguísticos dos falares regionais sejam eles cultos ou populares, urbanos ou rurais, pertencentes a regiões desenvolvidas ou subdesenvolvidas. A Metalexicografia é uma ciência que apresenta o dicionário como seu objeto de estudo contemplando os seguintes campos de ação, proposto por Dapena (2002,apudPontes, 2009, p. 20), são eles: história da lexicografia; teoria da organização do trabalho lexicográfico; princípios da lexicografia monolíngue e plurilíngue; estudo crítico dos dicionários; reflexões sobre a tipologia dos dicionários; teoria do texto lexicográfico e reflexões sobre a metodologia de elaboração do dicionário: recolha dos dados, processamento dos dados, uso de ferramentas para a sua produção. Neste trabalho, a metalexicografia é entendida como a análise teórica que visa fornecer subsídios conceituais e técnicos no que concerne às obras lexicográficas. A finalidade da Metalexicografia consiste em [...] fazer a crítica de obras lexicográficas escolares existentes com o intuito de gerar reflexão linguística e metodológica sobre o próprio objeto de estudo, o dicionário escolar, específico por seu público-alvo, configuração gráfica, discurso lexicográfico e finalidade pedagógica (Gomes, 2007, p. 77).
O dicionário é uma obra duplamente estruturada, apresenta uma sequência vertical de itens, as entradas, as quais geralmente aparecem
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O dicionário escolar
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Segundo ainda o que preconiza a autora, os trabalhos metalexicográficos no Brasil são poucos, o que leva a crer a necessidade de estudos nessa área, pois cada vez mais surgem demandas de pesquisas sobre o dicionário escolar, sejam elas, a respeito da história, dos métodos, dos destinatários, bem como suas múltiplas possibilidades didáticas como instrumento para o aprendizado de línguas ou como veículo para a interação comunicativa.
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dispostas em ordem alfabética, e um conjunto de informações sobre elas formando o verbete. Seguindo tal perspectiva, os dicionários configuram-se a partir de seu objetivo maior, ou seja, a descrição e registro sistemático do léxico representativo de uma língua. Biderman (1984, p.28) postula que: O dicionário é um instrumento cultural que remete tanto à língua como à cultura. O lexicógrafo descreve ambas – língua e cultura – como um todo pancrônico, embora se situe numa perspectiva sincrônica. Um dicionário é constituído de entradas léxicas que ora se reportam a um termo da língua, ora a um elemento da cultura. A entrada tem como seu eixo básico a definição da palavra em epígrafe. Essa definição nada mais é do que uma perífrase metalinguística da palavra posta como entrada.
Os dicionários são instrumentos que documentam a língua de um povo, para Arroyo (2000), “um dicionário é, por natureza, produto poliédrico, porque são múltiplos os pontos de vista sob os quais se pode descrevê-lo”, sendo concebidos como produto histórico, social, ideológico, temporal, pedagógico e linguístico. Dentre os conceitos atribuídos ao dicionário é de fundamental importância levar em consideração seu caráter didático como bem pontua Krieger (2003, p. 70-71)
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Ao observarmos a variedade dos dicionários, percebemos que cada tipo de obra visa a um público-alvo determinado, seja em função da faixa etária ou do grau de conhecimento acerca da língua. Esses fatores refletem na composição de uma organização lexicográfica diferenciada, levando em consideração as necessidades dos usuários a que se destinam.Quanto à sua organização estrutural, o dicionário escolar apresenta características externas, nas quais podemos elencar as
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Entre tantas possibilidades, os denominados “dicionários de língua”, a mais prototípica das obras lexicográficas, ajudam a ler, a escrever, e a expressar-se bem, oferecendo-lhe informações sistematizadas sobre o léxico, seus usos e sentidos. Junto a isso, permitem-lhe saber da existência de alguma palavra, de como é escrita ou pronunciada e, por vezes, ainda o auxiliam a conhecer a origem dos vocábulos. Por tudo que contém, o dicionário é um lugar privilegiado de lições sobre a língua. Ao ser consultado, cumpre com sua missão didática, que está associada ao papel de código normativo, padrão referencial dos usos e sentidos das unidades lexicais de um idioma, que todo dicionário de língua desempenha.
Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
Este estudo tem o propósito de analisar o tratamento da variação diatópica em uma amostra de quatrodicionários escolares pertencentes
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Contexto e instrumentos da pesquisa
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indicações de autoria e edição; finalidades e usuários; corpus repertoriado. E, características internas inerentes às técnicas lexicográficas empregadas no dicionário, tais como: redação das definições, marcação de palavras levando em conta o aspecto geográfico, estilo, área de conhecimento e as funções dos exemplos. De posse das características destacadas, o dicionário escolar encontra-se dividido em quatro estruturas básicas: a megaestrutura, a macroestrutura, a medioestrutura e a microestrutura. A megaestrutura abrange a estrutura geral da obra, trata de todas as partes que compõem um dicionário, estão inseridas nessa organização, as páginas iniciais, o corpo do dicionário e as páginas finais. Desse modo, Pontes (2009) afirma que, os dicionários apresentam os seguintes textos, a saber: textos anteriores (textos inseridos na capa, folha de rosto, orelhas, prefácio, guia de uso); interiores (a nomenclatura ou corpo do dicionário) e os posteriores (em alguns dicionários a contenção de apêndices que incluem resumo de gramática, lista de pesos e medidas, abreviaturas e bibliografia). A macroestrutura é o conjunto total de palavras-entradas de uma obra, ou seja, a quantidade de entradas que formam o dicionário. Fazem parte da macroestrutura os aspectos concernentes à seleção do léxico, ordenação das entradas (dispostas em ordem alfabética), quantidade do conteúdo, entre outros aspectos concernentes às palavras-entradas. A medioestrutura representa os vários meios de fazer referências no dicionário, elementos são utilizados para cumprir a função de precisar as remissivas adotadas, a exemplo temos: cf. (confronte/conferir), v. (ver/veja) e suas possíveis variações. A microestrutura consiste em conjunto de paradigmas (informações) ordenados e estruturados, dispostos horizontalmenteapós a palavra-entrada, dentro de cada verbete, apresenta dados em torno da palavra evidenciada. A microestrutura é formada basicamente pela cabeça do verbete, acepção, definição, informações sintáticas, rubrica, marca de uso, exemplo e abonação. Vislumbrar a estrutura do dicionário escolar é fator relevante para a construção dessa pesquisa, uma vez que, a variação linguística será analisada nos dicionários escolares avaliados pelo PNLD/2012, através dos aspectos megaestruturais, macroestruturais e microestruturais.
Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
ao acervo 3 e 4, avaliados no último edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD/2012). Por se tratar de um levantamento de dados exaustivos, uma vez que detectamos de forma sistemática a presença das marcas de uso que indicam a variação diatópica em cada dicionário, obtemos um corpus extenso baseado no fator presença da marca de uso no verbete, para procedermos às análises megaestruturais, macroestrurais e microestruturais. A escolha em analisar a variação diatópica no dicionário escolar deve-se ao fato de impor uma visão que leva em consideração aspectos linguísticos, sociais e políticos. A temática selecionada ocorreu em virtude da necessidade de estudos sobre a variação linguística no dicionário escolar, visto que esse instrumento obtêm o estatuto de documentar a língua de um povo em toda sua diversidade. A justificativa para a composição deste corpus é atribuída pelo fato dos dicionários terem passado por um processo de avaliação institucional realizada pelo MEC, o que conferiu a obra lexicográfica o caráter de dicionário escolar. E ainda, pelo fato de pertencer aos acervos 3 e 4, níveis mais propensos a variação linguística, devido ao grau de amadurecimento escolar do usuário. Para a pesquisa a amostra é composta por quatro dicionários descritos na presente tabela.
Série
Verbete
Marca de Uso Diatópica
CAMC
3
6º ao 9º ano (EF)
31.000
2.227
DEAJ
3
6º ao 9º ano (EF)
30.373
1.892
DHC
4
1º ao 3º ano (EM)
41.243
1.619
DEB
4
1º ao 3º ano (EM)
51.210
2.655
Nos dicionários expostos, o foco centra-se em selecionar os verbetes que apresentam variação diatópica, através das marcas de uso, para proceder às análises nos aspectos megaestrututrais, macroestruturais e microestruturais dos dicionários escolares. Quanto à aplicação do questionário, optamos em utilizar este instrumento para obtermos informações sobre os hábitos, atitudes, habilidades e conhecimento dos participantes em relação ao uso do dicionário e ao processo de consulta. Sendo assim, formulamos um questionário com nove perguntas adaptadas a alunos e professores, de escolas públicas e particulares, a fim de saber se os dicionários
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Tipo
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Tabela 1: Amostra dos dicionários analisados Dicionário
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escolares representam a realidade sociocultural e os anseios de seus consulentes. No questionário constam perguntas relacionadas à distribuição dos dicionários escolares enviados pelo PNLD, as necessidades de uso tanto no dia a dia quanto na sala de aula, os dicionários mais conhecidos pelo público-alvo, à procedência de consulta se é maior no meio eletrônico ou no formato impresso, as situações em que o dicionário é utilizado, se há instruções para o uso, se representa a realidade regional ou é lacunar, e a importância da variação lexical nesses instrumentos didáticos. O questionário foi aplicado a oito informantes, sendo quatro participantes inclusos no perfil referente ao acervo 3 e quatro participantesrepresentando o perfil do acervo 4 do PNLD. Para tanto, os informantes correspondem a seguinte estratificação demonstrada na tabela abaixo.
Acervo Acervo 3
Acervo 4
Tabela 2: Estratificação dos informantes Escola Nível de Aluno Escolaridade Escola Ens. Aluno Pública Fundamental 1 Escola Ens. Aluno Particular Fundamental 2 Escola Ens. Médio Aluno Pública 3 Escola Ens. Médio Aluno Particular 4
Professor Professor 1 Professor 2 Professor 3 Professor 4
O parâmetro principal para a escolha dos informantes é corresponder as características dos dicionários pertencentes aos acervos 3 e 4. Isto é, para o acervo 3, os informantes devem ser alunos ou professores do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e para o acervo 4, os informantes devem ser alunos ou professores do 1º ao 3º ano do ensino médio. A aplicação do questionário é importante para detectarmos o grau de utilidade do dicionário no percurso escolar do consulente.
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Nesta seção temos como propósito analisar através dos dicionárioso tratamento da variação diatópica nos aspectos megaestruturais, macroestruturais e microestruturais que compõem os
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Análise e discussão dos dados
Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
dicionários, pois é nessas estruturas que podemos encontrar as formas de tratamento e inserção da variação linguística em um dicionário. A Variação Diatópica na Megaestrutura dos Dicionários Na megaestrutura dos dicionários identificamos por meio dos textos iniciais e finais, como a variação linguística é abordada nos textos que norteiam o uso do dicionário e a forma como a variação diatópica é evidenciada. Os quatro dicionários analisados não mencionam como a variação linguística é abordada dentro do dicionário escolar. No que concerne à variação diatópica todos os dicionários exibem apenas seções que indicam os regionalismos, as marcas de uso são especificadas através de siglas que denominam marcas indicadoras de regiões, estados, brasileirismos e transnacionais. Quadro 01: Megaestrutura dos Dicionários Escolares. ‘
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Nesse aspecto, os dicionários convergem quanto ao tratamento da variação diatópica, todos apresentam a mesma forma de evidenciar o enquadre geográfico, ou seja, designam os mesmos tipos de marcação. Há de ressaltar, todavia, que as marcações não apresentam uma uniformidade, comparando os dicionários existem marcas presentes em uns e que não se apresentam em outros, este fato pode ser percebido no detalhamento exposto na megaestrutura de cada dicionário, no quadro acima.
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Fonte: Cardoso (2014, adaptado dos dicionários)
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Namacroestruturados dicionários sob análisenos detemos em evidenciar os aspectos que compõem as entradas dos dicionários escolares. Os objetivos para essa estrutura tem por foco analisar os critérios de escolha dos itens lexicais que compõem o verbete e os critérios para as lexias receberem a marca de uso diatópica. Referente aos critérios de escolha da palavra-entrada, verificamos que estes aspectos não são mencionados nos quatro dicionários analisados, o lexicógrafo não define os critérios que o levaram a escolher a entrada para compor o verbete. Quanto aos critérios que definem o recebimento de uma marca diatópica, apenas o Caldas Aulete menciona que é por essa palavra não pertencer à língua comum, os outros três dicionários não esboçam posicionamento, no que compete a aplicação dessas marcas a palavra não há uma uniformidade, uma mesma palavra pode receber uma marca diatópica diferente para a palavra que possui o mesmo valor semântico se fizermos comparações entre os dicionários. Salientamos que a escolha do repertório lexical é de extrema importância, pois se o consulente ao pesquisar um dicionário conhecer apenas uma entrada e o dicionário não fornecer as demais variantes, logo o consulente não encontrará o que pesquisa e por consequência não conhecerá o uso dessa lexia em outros espaços geográficos. Por isso é necessário fazer com que o dicionário seja um instrumento didático mais próximo do seu usuário e para isso compete ao trabalho do lexicógrafo adequar a obra para realidade escolar e sociocultural do aluno. Porém, o observado nessas obras didáticas é que o percurso da atividade lexicográfica no Brasil é marcado por repetições, Pontes (2009) afirma que, as novas obras tomam como base as já existentes, compilando seus dados de forma a adaptá-los ou ampliá-los em alguns campos, apenas dando nuances de modificações, contudo as mudanças não são significativas, uma vez que não originam novas informações ao material lexicográfico. Desse modo surge a necessidade de corpora dicionarística adequada ao público alvo, pois é devido ao aproveitamento de mecanismos desta natureza, queé atribuída à macroestrutura dos dicionários uma maior garantia de representatividade dos usos efetivos do português brasileiro contemporâneo.
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A Variação Diatópica na Macroestrutura dos Dicionários
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Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
A Variação Diatópica na Microestrutura dos Dicionários Nos aspectos microestruturais, nossa análise toma como base a proposta de Oliveira (1999), com algumas adaptações, a fim de evidenciar quantitativamente os grupos que as marcas de uso pertencem, a fiabilidade dessas marcações e o grupo mais produtivo. Os grupos apresentam-se divididos em: Marca Diatópica Indicadora de Brasileirismo, Marca Diatópica Indicadora de Região, Marca Diatópica Indicadora de Estado e Marca Diatópica Indicadora de Brasileirismo, Região e Estado (simultaneamente). Na análise das quatro obras, a variação diatópica no dicionário escolar tem maior expressividade através da marca de uso brasileirismo, como podemos perceber através dos dados. No entanto, marcar uma palavra como brasileirismo em um dicionário que tem por função registrar o português brasileiro contemporâneo, causa uma noção espacial muito vaga ao consulente. Gráfico 01: Marca diatópica indicadora de brasileirismo.
4.000
Variação Diatópica
2.000 0
89
94
94% 83%
CAMC DEAJ DHC
Brasileirismo
DEB
Abaixo apresentamos os exemplos de brasileirismos nos dicionários analisados: Fig. 01: Marca diatópica indicadora de brasileirismo no CAMC.
Fonte: Aulete (2011, p. 135)
Fonte: Ferreira (2011, p. 126)
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Fig. 02:Marca diatópica indicadora de brasileirismo no DEAJ
Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
Fig.03:Marca diatópica indicadora de brasileirismo no DHC
Fonte: Houaiss (2011, p. 856) Fig. 04:Marca diatópica indicadora de brasileirismo no DEB 1,
Fonte: Bechara (2011, p. 1151)
Para tanto, é necessário que o lexicógrafo tenha acesso aos trabalhos científicos de descrição e documentação lexical, produzidos nas academias desse país. Também é pertinente que aproveitem o método proposto pela Geografia Linguística, a fim de que possam elaborar dicionários escolares baseado em corpus, e assim, marcar os usos que indicam a variação linguística com legitimidade. Desse modo, quando o consulente proceder a consulta nas variadas obras disponíveis pelo MEC, pertencentes aos acervos 3 e 4, ele encontre a marcação que indica adequadamente a procedência da marca. Em relação ao tratamento da variação diatópica entre acervos, ou seja, comparando o tratamento da variação diatópica em um dicionário de nível 3 com um de nível 4, identifica-se o mesmo tipo de tratamento independente do nível escolar do usuário.
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O questionário apresenta nove perguntas adaptadas a alunos e professores de escolas públicas e particulares, com o objetivo de saber se o dicionário é utilizado, como é utilizado, em que situações faz-se o uso, as atitudes do usuário, se os verbetes que constam nas obras representam a sua realidade sociocultural e seus anseios inerentes a esta temática. Por meio da aplicação do questionário detectamos que, na escola pública em que a pesquisa foi realizada os dicionários disponibilizados pelo PNLD não chegaram às mãos de seus destinatários (alunos/professores), quando necessário o uso eles utilizam o pequeno acervo de suas bibliotecas ou os alunos que tem trazem de suas casas, os alunos da escola particular trazem o dicionário de suas casas quando o uso se faz necessário.
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O Questionário
Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
Quanto à questão de uso vislumbramos que os professores repassam aos alunos instruções do senso comum, do tipo, as palavras são apresentadas em ordem alfabética; a classe gramatical a que a palavra pertence; o vocábulo procurado pelo consulente aparece sempre em destaque; ou seja, o dicionário não é explorado pelo professor e nem pelo aluno, falta a estes um suporte lexicográfico adequado para o manuseio dos dicionários escolares. O que foi visto, é que os dicionários são mais utilizados para tirar dúvidas, principalmente no que concerne a ortografia das palavras. Ratificou-se também, por meio do questionário a necessidade de lexias que abarquem o repertório sociocultural de seus usuários, alunos e professores concordam que o dicionário escolar necessita ser reformulado para representar a língua falada no dia-a-dia, para assim buscar aprimorar os conhecimentos sobre a sua cultura e as demais, a fim de ampliar o repertório lexical.
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Nesta pesquisa analisamos quatro dicionários, avaliados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD/2012), dois dicionários pertencentes ao acervo 3 e dois ao acervo 4, respectivamente: Caldas Aulete Minidicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa (2011), Aurélio Júnior Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (2011), Dicionário Houaiss Conciso (2011) e Dicionário da Língua Portuguesa Evanildo Bechara (2011). Nossa proposição teve como enfoque a análise da variação diatópica nos aspectos megaestruturais, macroestruturais e microestruturais em cada dicionário. No aspecto megaestrural, vislumbramos a necessidade de um tópico que trate sobre a variação linguística de modo geral na composição dos textos introdutórios, a fim de mostrar a forma como cada variação linguística deve ser exposta nos dicionários escolares, também deve ser destinada uma seção para explicar a função das marcas de uso dentro de cada dicionário. Já nos aspectos macroestruturais, avaliamos que o modo como à variação diatópica é tratada necessita ser reavaliada, pois os dicionários escolares carecem de um trabalho lexicográfico baseado em corpus, que confira a validade dos usos, referente às suas reais características geográficas. Os aspectos microestruturais refletem a influência abordada na macroestrutura, uma vez que, nos dicionários analisados as marcações não provêm de fontes que conferem fiabilidade a marca diatópica, e por este fator, observou-se na análise o maior índice de marcação nas
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Considerações finais
Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
marcas diatópicas indicadoras de brasileirismo em detrimento aos outros tipos de marcas diatópicas. Quanto à política implantada pelo PNLD,a inclusão dos dicionários no ambiente escolarfez surgir um produto específico, o dicionário escolar, destinado a um público-alvo determinado e com um perfil voltado para esse fim.Todavia, para construir um perfil de dicionários escolares brasileiros baseados em usos, discussões sobre o perfil linguístico e sociocultural dos dicionários devem ser reelaborados. Ressaltamos que, o PNLD 2012 foi um avanço, no entanto, acrescentamos a pertinência de contribuições que tornem o material lexicográfico mais funcional e próximo de seus usuários. Para tanto, os estudos na área da Lexicografia, tanto teórica quanto prática devem adquirir maior espaço no âmbito acadêmico, para quepossa qualificar o futuro professor e posteriormente, esse professor possa ensinar seu aluno a fazer o uso eficiente do dicionário escolar. Tomando como base as considerações expostas, pretendemos divulgar aos acadêmicos da área e as pessoas que detêm interesse, os estudos metalexicográficos, ainda pouco conhecidos e realizados em âmbito acadêmico nacional.
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ARROYO, C. G. La Lexicografia. Bracelona: Grupo Santillana de Editores S.A., 2000. AULETE, C. Minidicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. BECHARA, E. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. BIDERMAN, M. T. C.O dicionário padrão da língua. São Paulo: Alfa, 1984, p. 27-43. CARDOSO, B. C. S.A Variação Diatópica no Dicionário Escolar. Dissertação de Mestrado em Linguística (em Andamento). Belém: UFPA, 2014. GOMES, P.V.N. O processo de aquisição lexical na infância e a metalexicografia do dicionário escolar. Tese de Doutorado em Linguística. Brasília: UNB, 2007. HERNÁNDEZ, H. Los diccionarios de orientación escolar: contribuición al estudio de la lexicografía monolíngüe española. Tubigen: Niemeyer, 1989. HOUAISS, I. A. (Org.). Dicionário Houaiss Conciso. São Paulo: Moderna, 2011.
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Referências
Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
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Brayna Conceição dos Santos Cardoso A variação diatópica no dicionário escolar
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Maria Sebastiana da Silva Costa | Regina Célia Fernandes Cruz A variação prosódica no norte do Brasil: um estudo do português falado
A VARIAÇÃO PROSÓDICA NO NORTE DO BRASIL: um estudo do português falado em Mocajuba com dados do projeto AMPER-POR
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Resumo: Este trabalho apresenta os primeiros resultados obtidos com os dados do corpus formado, em nível de Dissertação de Mestrado (Costa, em andamento), da variedade linguística do português de Mocajuba (PA). Esta pesquisa, vinculada ao projeto Atlas Prosódico Multimédia do Norte do Brasil (AMPER-Norte),objetiva caracterizar a variação prosódica dialetal do português falado em Mocajuba (PA). Analisam-se aqui os dados relativos aos informantes do sexo feminino, nível Médio de escolaridade (BF53) e nível Superior (BF55). Para o presente estudo consideram-se apenas os dados fornecidos para as frases com sintagmas nominais simples contendo 10 vogais, a saber: O pássaro gosta do pássaro (pwp), O Renato gosta do Renato (twt) e O bisavôgosta do bisavô(kwk). Todas as frases foram analisadas nas duas modalidades (declarativa e interrogativa total) investigadas pelo projeto AMPERNORTE. A análise acústica foi feita a partir das medidas acústicas das vogais de 36 enunciados, 18 de cada sexo, a mesmasofreu seis etapas de tratamento: a) codificação e; b) isolamento das repetições em arquivos de áudios individuais c) segmentação fonética no programa PRAAT 5.0; d) aplicação do script praat para gerar os arquivos TXT com as medidas dos parâmetros acústicos ; e) seleção das três melhores repetições e; f) aplicação da interface Matlab para se obter as médias dos parâmetros das três melhores repetições. Analisaram-se particularmente os parâmetros acústicos de frequência fundamental (semitons), duração (ms) e intensidade (dB). Os resultados mostraram que F0 éum parâmetro relevante na distinção das duas modalidades alvo, pois nos dados de ambos os sexos observou-se um movimento de pinça na sílaba tônica
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Maria Sebastiana da Silva Costa Regina Célia Fernandes Cruz
Maria Sebastiana da Silva Costa | Regina Célia Fernandes Cruz A variação prosódica no norte do Brasil: um estudo do português falado
do vocábulo ocupando o núcleo do sintagma nominal final, resultado de um movimento descendente das declarativas e ascendentes para as interrogativas. Nestas mesmas sílabas, a duração registrou uma variação proporcionalmente inversa e significativa considerando tanto a diferença de escolaridade quanto o acento. A intensidade não foi um parâmetro acústico significativo. Palavras-chave: Prosódia. Análise Acústica. Projeto AMPER.
1
Atlas MultimédiaProsódique de L’ Espace Roman. O projeto AMPER podeserconsultado no endereçoeletrônico: <http://pfonetica.web.ua.pt/>.
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Compreende-se que o estudo da prosódia vem sendo vislumbrado nas últimas décadas, ao passo que jáse observa um considerável número de pesquisas linguísticas na área de caracterização das estruturas prosódicas. Dentre esses estudos, em específico, encontra-se o presente trabalho que possui como interesse caracterizar o falar da região do Norte do Brasil, mais precisamente a variação prosódica dialetal dos mocajubenses. A presente pesquisa está inserida ao projeto AMPER-NORTE que objetiva a elaboração de um Atlas Prosódico Dialetal da Região Norte do Brasil. O referido projeto fora aprovado em abril de 2007, a convite da professora, Lurdes de Castro Moutinho, da universidade de Aveiro (Portugal), o mesmo passou a integrar o projeto maior AMPER-POR1. Os trabalhos realizados, na região Norte, por pesquisadores da UFPA conta com as seguintes localidades: a Ilha de Mosqueiro (Guimarães, 2013), a cidade de Belém (Santos Jr., 2008; Brito, 2014), a cidade de Bragança (Castilho, 2009), a cidade de Cametá (Santo, 2012), a cidade de Abaetetuba (Remédios, 2014), a cidade de Curralinho (Freitas, 2013), a cidade de Baião (Lemos, 2015), a cidade de Mocajuba (Costa, 2015) e a cidade de Santarém (Lima, em andamento). Além dessas localidades, o projeto játem previsto a formação de corpora nas localidades de Óbidos e de Breves. Todas os trabalhos acima mencionados possuem o objetivo em comum de criar e organizar o mapa dialetal do português do Norte do Brasil. Dessa maneira, não obstante, o objetivo maior, aqui, écaracterizar a variação prosódica dialetal do português falado no município de Mocajuba (PA) (Costa, 2015); assim como constituir um corpus prosódico com amostras dialetais do português falado no município; disponibilizar o corpuson-line; e proceder a uma análise
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Introdução
Maria Sebastiana da Silva Costa | Regina Célia Fernandes Cruz A variação prosódica no norte do Brasil: um estudo do português falado
instrumental dos aspectos prosódicos (acento e entoação) do português falado no município. Para a realização deste trabalho utilizou-se a metodologia previamente estabelecida pelo projeto AMPER-POR. O corpus total éconstituído com uma amostra de fala de seis informantes. Porém, apresentam-se, aqui, resultados obtidos com os dados de dois informantes do gênero feminino que compõem o corpus desta pesquisa: nível Médio (BF53) e o nível Superior (BF55). Assim sendo, o referido trabalho está dividido nas seguintes seções: primeiro busca-se conceituar os termos Prosódia, Acento e Entoação; posteriormente procura-se explicar a metodologiado projeto AMPER-NORTE, no qual é descrito de que forma foi constituído e organizado o corpus, o perfil dos informantes, a coleta de dados, em seguida, será detalhado sobre os passos adotados para o tratamento dos dados. E por último apresenta-se a análise acústica feita a partir dos resultados obtidos com gráficos comparativos do Excel. Nesta fase foi descrito o comportamento de cada parâmetro acústico entoacional, na sílaba tônica do último vocábulo dos sintagmas com modalidades frasais declarativa e interrogativa.
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Este trabalho substancia-se em análises de parâmetros acústicos, como frequência fundamental, duração e intensidade, com enfoque na Prosódia, Pauta Acentual do Português e Entoação. Dessa forma, o presente trabalho estáembasado em teorias estudadas por autores que contemplam tais conceitos, entre eles: Abraçado, Coimbra e Moutinho (2007), Araújo (2007), Cavaliere (2005), Martinet (1978), Netto (2007), teóricos estes que buscam estudar a prosódia a partir de aspectos fonéticos e fonológicos a fim de caracterizá-la. Cavaliere (2005) define que a Prosódia não éuma ciência que se ocupa dos estudos articulatórios dos sons, mas dos traços a eles inerentes na configuração da cadeia sonora; ou seja, o momento da constituição da palavra, dentre os quais estão o acento, a intensidade, a duração, a entonação, entre outros. Na visão de Cavaliere (2005), Prosódia estáatrelada aos aspectos fonéticos e fonológicos suprassegmentais, portanto éde seu domínio o estudo da entoação, que estáconsequentemente atrelado às curvas de F0; a quantidade expressa pela duração e a energia que se propaga na intensidade. Neste último parâmetro, concentra-se a maior quantidade de energia presente na produção da fala e esta proeminência échamada acento. Segundo Abraçado, Coimbra e Moutinho (2007), o acento entoacional do português éuma característica prosódica, semelhante às
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Definição de prosódia, acento e entoação
Maria Sebastiana da Silva Costa | Regina Célia Fernandes Cruz A variação prosódica no norte do Brasil: um estudo do português falado
demais línguas românicas. As autoras afirmam que o acento desempenha funções de natureza distintiva no nível lexical ou supralexical. Em específico, no nível lexical, cada palavra, possui um acento tônico e o mesmo recai em uma das três últimas sílabas do vocábulo. Netto (2007) corrobora que o acento tem função distintiva na Língua Portuguesa, diferenciando palavras estruturalmente idênticas como observado no famoso exemplo sábia, sabia e sabiá. Neste caso, o deslocamento do acento serve para gerar distinção semanticamente significativa, diferenciando, respectivamente, o adjetivo, do verbo e do substantivo e ao ouvinte éconsentido, então, diferenciar as palavras no proferir delas. Os acentos etoacionais, portanto, marcam os pontos proeminentes dos sintagmas, estes por sua vez vão formando as curvas entoacionais, formadas por contornos altos e baixos, as quais dá-se o nome de tons altos e baixos, produzindo, então, contornos específicos das alturas do som. Assim sendo, a entoação estádiretamente relacionada às articulações físicas em que as palavras são produzidas, pois os locutores utilizam-se de diferentes movimentos melódicos para certos fins diferenciativos, no que concerne a sua entoação. Na fala de Cavaliere (2005), denomina-se entoação, o grau de elevação e abaixamento do tom vocal no ato de enunciação, quando se fala, automaticamente escolhe-se o tom vocal que seráaplicado a cada som, de acordo com as conveniências da comunicação. Dessa forma, a entoação pode variar de locutor para locutor, de comunidade para comunidade. A fala, por ser de cunho heterogêneo e variável, caracteriza-se como a identidade social e geográfica de um indivíduo ou de uma comunidade; e a entoação, por ser uma característica suprassegmental da fala, também éde cunho individual, variável e heterogêneo.
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Adotaram-se, no presente estudo, todos os procedimentos metodológicos determinados pela coordenação geral do projeto AMPER, e como um dos objetivos do projeto compreende uma análise contrastiva dos dialetos estudados, o corpus gravado éformado por seis repetições de 102 frases do corpus de base do projeto para a Língua Portuguesa. Cada um dos elementos constituintes das frases possui uma imagem correspondente, uma vez que não épermitido nenhum contato dos informantes com as frases escritas. No momento da coleta de dados, a cada informante foram pedidas seis repetições da série de frases do corpus (em ordem aleatória), ao todo são geradas 612 repetições, sendo selecionadas para
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Metodologia
Maria Sebastiana da Silva Costa | Regina Célia Fernandes Cruz A variação prosódica no norte do Brasil: um estudo do português falado
análise acústica as três melhores repetições, a fim de serem estabelecidas médias dos diversos parâmetros acústicos: duração, F0 e intensidade. Sintaticamente, as frases são montadas de forma a apresentar Sujeito–Verbo–Complemento (SVC). Com relação àentoação, elas são concebidas de modo a contemplar as modalidades declarativas e interrogativas globais; portanto, as frases que são utilizadas nas gravações são do tipo SVC e suas expansões com a inclusão de Sintagmas Preposicionais. Quanto àestrutura sintática, todas as frases possuem apenas: 1) quatro personagens: Renato, pássaro, bisavôe capataz; 2) três sintagmas adjetivais: nadador, bêbado e pateta; 3) três sintagmas preposicionais indicadores de lugar: de Mônaco, de Veneza e de Salvador; e 4) um único verbo: gostar. Conforme determina o projeto geral, para a seleção dos informantes foram levados em consideração os seguintes critérios: 1) faixa etária (acima de 30 anos); 2) escolaridade (fundamental, médio e superior); 3) tempo de residência na localidade (nativos do local). A partir desses critérios, foram selecionados seis informantes (três homens e três mulheres), que participaram da coleta de dados; trata-se, portanto, de uma amostra estratificada. Localidade
Escolaridade
Sexo
Código
Feminino
BF51
Masculino
BF52
Feminino
BF53
Masculino
BF54
Feminino
BF55
Masculino
BF56
Ensino Fundamental
Mocajuba
Ensino Médio
Ensino Superior
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Cada informante recebe um código de acordo com o sistema de notação adotado pela coordenação do projeto AMPER-POR, ressaltase que este trabalho, no momento, consta da análise dos dados de apenas dois, dos seis informantes que compõem o corpora desta pesquisa, ambos do gênero feminino, a saber: (BF53) do Ensino Médio e (BF55) do Ensino superior, conforme destacado no quadro acima.
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Quadro 1 –Codificação dos informantes do município de Mocajuba segundo suas características sociais.
Maria Sebastiana da Silva Costa | Regina Célia Fernandes Cruz A variação prosódica no norte do Brasil: um estudo do português falado
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Para efetivar a pesquisa em Mocajuba, contou-se com a ajuda de familiares desta pesquisadora que moram no munícipio para a seleção dos informantes. A gravação dos dados foi feita com gravador profissional digital PMD660 Marant e um microfone Shure dinâmico e de cabeça para a captura do áudio. A taxa de amostragem de cada sinal éde 44.100 Hz, 16 bits, sinal mono. Faz-se importante ressaltar que os informantes não tiveram contato nenhum com as frases escritas, apenas com a visualização de slides exibidos com o auxílio de um notebook Sony Vaio, por meio do programa Power Point. Para a variedade linguística de Mocajuba, estásendo utilizado o corpus ampliado do Projeto AMPER-POR de 102 frases. Os informantes produziram seis repetições da série de frases (em ordem aleatória), totalizando 612 frases. O material gravado sofreu, então, seis etapas de tratamento: a) codificação das repetições; b) isolamento das repetições em arquivos de áudio individuais; c) segmentação vocálica dos sinais selecionados no programa PRAAT 5.0; d) aplicação do script praat; e) seleção das três melhores repetições e; f) aplicação da interface Matlab para se obter as médias dos parâmetros das três melhores repetições. Na segmentação fonética, utilizamos o programa PRAAT e estabeleceu-se a escala de pitch. O script praat foi aplicado a cada uma das repetições de cada frase do corpus. A aplicação desse script gerou um arquivo.TXT contendo as medidas dos parâmetros acústicos frequência fundamental, duração e intensidade das vogais de cada repetição. Antes de se proceder àanálise acústica no interface Matlab, foram selecionadas as três melhores repetições de cada frase em termos de qualidade sonora e de similaridade de distribuição de vogais plenas (v) e elididas (f). A aplicação do interface Matlab forneceu a média dos parâmetros físicos –F0, duração e intensidade –em um arquivo fono.txt das três repetições de cada frase e das duas modalidades. O interface gerou mais outros arquivos em formato de imagem contendo gráficos das médias de F0, duração e intensidade de cada modalidade individualmente, assim como gráficos comparativos de ambas as modalidades. O interface gerou igualmente arquivos TON contendo uma síntese de cada modalidade sem a parte segmental. Para o presente artigo foram selecionados dois informantes do gênero feminino com idade entre 30 a 47 anos. A descrição dos resultados deu-se pela análise dos parâmetros acústicos da F0 (frequência fundamental), ms (duração) e dB (intensidade). Os dados obtidos resultaram da repetição de 36 frases, sendo 18 afirmativas e 18
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Formação e organização do corpus de Mocajuba (PA)
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interrogativas totais. As frases foram escolhidas de modo a contemplar as três pautas acentuais, apresentando um total de 12 oxítonas, 12 paroxítonas e 12 proparoxítonas. A frase oxítona ékwk (O bisavôgosta do bisavô), a paroxítona étwt (O Renato gosta do Renato), a proparoxítona pwp (O pássaro gosta do pássaro). Tais resultados são gerados pelo aplicativo Matlab, que gera também as figuras de F0, ms e dB, como jámencionado anteriormente. Análise dos resultados Os resultados obtidos correspondem a uma análise feita a partir dos dados de dois informantes do gênero feminino, com níveis Médio e Superior de escolaridade. Para a análise de F0, ressalta-se que foram utilizados valores de semitons, a fim de melhor comparar as variáveis de sexo. Os gráficos abaixo correspondem a sintagmas nominais simples, com 10 vogais. As análises, respaldam-se no núcleo acentual do sintagma nominal final das frases, pelo qual se busca comparar as variáveis de sexo, tomando como base os parâmetros acústicos da F0, ms e dB, nas frases afirmativas e interrogativas totais, em diferentes vocábulos e as pautas acentuais oxítona, paroxítona e proparoxítona.
90 80
60
pr… pr… pr… an… an… an… pe… pe… pe… últi… últi… últi…
70
pássaro _AF_M pássaro _Q_M pássaro _AF_S pássaro _Q_S Renato _AF_M
Gráfico 1: Pauta acentual Oxítona, representada pelas cores vermelhas, a frase ékwk (O bisavôgosta do bisavô); a pauta acentual Paroxítona, representada pelas cores verdes, a frase étwt (O Renato gosta do Renato); a pauta acentual Proparoxítona, representada pelas cores azuis, a frase épwp (O pássaro gosta do pássaro), a cor fraca (escolaridade superior), a cor forte (escolaridade médio), as linhas plenas (afirmativas) e as linhas tracejadas (interrogativas).
Assim, o gráfico acima faz uma comparação da F0, entre as variáveis de sexo, sendo as frases em escopo, compostas de sintagma nominais simples: “O bisavôgosta do bisavô”(kwk), com núcleo
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F0
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SEMITONS
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oxítono, “bisavô”; “O Renato gosta do Renato”(twt), com núcleo paroxítono, Renato; a frase épwp “O pássaro gosta do pássaro”(pwp), com núcleo proparoxítono, pássaro. Abaixo segue o gráfico comparativo de F0. Épossível observar no gráfico acima que as curvas de F0, no último sintagma nominal da frase, realiza com dificuldade o movimento padrão de ascendência e descendência em vocábulo proparoxítono, na fala do informante de nível Médio de escolaridade. Nas curvas referentes ao vocábulo paroxítono e oxítono, em ambos os níveis de escolaridade, nota-se, claramente o movimento de ascendência e descendência na sílaba tônica do vocábulo alvo. Nestas últimas pautas as curvas assumem um pico entoacional, na sílaba pretônica nas afirmativas, sofrendo uma queda na sílaba tônica. Jánas interrogativas os movimentos das curvas sofrem uma inversão, resultando em um movimento em formato de pinça, na sílaba tônica doúltimo vocábulo, fato este que ocorre de forma mais notável na sílaba tônica do vocábulo oxítono.
ms 160 pássaro_antep enúltima
120 80
Renato_penúlt ima
40
bisavô_última
0 AF_S
Q_S
Gráfico 2: As colunas representadas pelas cores vermelhas representam as medidas acústicas da sílaba tônica do vocábulo oxítono, “bisavô”, de verde, a sílaba tônica do vocábulo paroxítono,“Renato” e azul, a sílaba tônica do vocábulo proparoxítonas, “pássaro”; os dois primeiros grupos de colunas referentes ao nível Médio de escolaridade e dois últimos grupos referentes ao nível Superior de escolaridade; as siglas AF, correspondem as frases afirmativas e Q as interrogativas.
As medidas de duração observadas no gráfico acima denotam uma inversão de valores referentes as pautas acentuais e nível de
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Q_M
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AF_M
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escolaridade, nas duas modalidades frasais. Notou-se que nos valores referentes aos vocábulos da sentença afirmativa, no ensino médio de escolaridade, as paroxítonas registraram medidas menos elevadas que as oxítonas, porém os valores das afirmativas de ensino superior de escolaridade denotaram que as paroxítonas registraram valores maiores que as oxítonas, ressalte-se que a mesma inversão de valores levandose em consideração as pautas ocorreu nos vocábulos das sentenças interrogativas nos dois níveis de ensino.
db
70 53
pássaro_antep enúltima
35
Renato_penúl tima
18
bisavô_última
0 AF_M
Q_M
AF_S
Q_S
Gráfico 3: As colunas representadas pelas cores vermelhas representam as medidas acústicas da sílaba tônica do vocábulo oxítono, “bisavô”, de verde, a sílaba tônica do vocábulo paroxítono, “Renato” e azul, a sílaba tônica do vocábulo proparoxítonas, “pássaro”; os dois primeiros grupos de colunas referentes ao nível Médio de escolaridade e dois últimos grupos referentes ao nível Superior de escolaridade; as siglas AF, correspondem as frases afirmativas e Q as interrogativas.
No gráfico acima, referente às medidas de intensidade, não foi possível notar uma distinção significativa, de forma que os valores apresentam medidas muito próximas, quase sem distinção.
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A partir de uma observação das análises dos gráficos, referentes aos dados relativos aos informantes do nível Médio (BF53) e Superior (BF55) de escolaridade, nos gêneros femininos, concluiu-se, inicialmente, que os parâmetros físicos acústicos, frequência fundamental (F0) e duração são complementares na distinção entre as modalidades afirmativa e interrogativa total, na variedade do português falado em Mocajuba (PA), não apresentando distinção no parâmetro de intensidade.
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Considerações Finais
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O parâmetro acústico de F0 denotou distinção relevante, pelo movimento de pinça, que ocorre preferencialmente na sílaba tônica, do vocábulo-alvo, nominal, nas pautas acentuais, paroxítona e oxítona nos dois níveis de ensino, Médio e Superior. No que se refere ao parâmetro acústico duração (ms), uma comparação feita entre as diferentes modalidades de frases afirmativa e interrogativa total, com as diferentes pautas acentuais: paroxítona e oxítona mostram que as pautas acentuais e nível de escolaridade registram valores inversamente proporcionais. Dessa forma, confirmando-se como um parâmetro distintivo e complementar a F0. No parâmetro acústico de intensidade, os dados comparativos não denotaram distinção significativa entre as diferentes modalidades de frases, afirmativa e interrogativa total e as diferentes pautas acentuais. Logo, fica comprovado, inicialmente, que apenas os parâmetros acústicos de F0 e ms, na fala feminina são fatores determinantes de distinção nas modalidades frasais, afirmativa e interrogativa total, desta pesquisa, referente àvariedade falada em Mocajuba.
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ABRAÇADO, J.; COIMBRA, R. L.; MOUTINHO, L. C. Relação entre acento e entoação numa variedade do PB: análise de caso de um falante do Rio de Janeiro. In: Moutinho, L. C.; Coimbra, R. L. (org.). I Jornadas Científicas AMPER-POR. Aveiro: Atlas, 2007. ALMEIDA, M.M.S. O acento segundo Fernão de Oliveira. In: ARAÚJO, Gabriel Antunes de (org.). O acento em Português: abordagens fonológicas. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BRITO, Camila. Atlas Prosódico Multimédia do Português do Norte do Brasil –AMPER-POR: variedade lingüística da zona rural de Belém (PA), Belém: UFPA/ILC/FALE, 2012 (Iniciação Científica). CAMPOS, Benedita do Socorro. Alteamento das vogais médias pretônicas no português falado em Mocajuba –PA: uma abordagem variacionista. Belém: UFPA/CML, 2008. (Dissertação de Mestrado em Linguística. CASTILHO, Francinete Carvalho. Formação de Corpora para o Atlas Dialetal Prosódico Multimídia do Norte do Brasil: Variedade Linguística de Bragança (PA).Bragança: UFPA/Campus de Bragança/Faculdade de Letras, 2009. (Trabalho de Conclusão de Curso em Letras). CAVALIERE, R.S. Pontos essenciais em Fonética e Fonologia. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
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Referências
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Aldilene Lopes de Morais As acepções de santo no senso comum e no dicionário terminilógico
AS ACEPÇÕES DE SANTO no senso comum e no dicionário terminológico Aldilene Lopes de Morais Resumo:O presente trabalho levanta as diversas acepções do termo santo, portanto considerado a partir dos estudos terminológicos, inserido nos estudos de léxicos de especialidade. Nesta abordagem são utilizados os conceitos teóricos de Krieger e Finatto (2004), para as quais o termo está atrelado às línguas técnicas, ou seja, as línguas de especialidade. Nesta perspectiva, estudaremos como se dá o processo de tradução do termo para as inúmeras situações comunicacionais que ele está inserido. No acompanhamento do enfoque da tradução adotamosBurke e Hsia (2009) para que se possa analisar por meio da mudança de significado a tradução de um campo para outro, visto o termo enquanto parte do universo cultural, os processos de significação também serão refletidos de determinados aspectos de uma cultura para outra. Veremos que a tradução não se dá apenas entre línguas, mas esse processo acontece entre culturas diferentes. Nossa pesquisa se detém em pesquisas em dicionários e também em teóricos que argumentam sobre o termo santo nas religiões cristãs. Assim, Moraldi (1999) e Eliade (2010) serão os principais teóricos que servirão como base para nossa pesquisa no campo das leituras religiosas. Palavras-chave: Terminologia. Santo. Língua de Especialidade.
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O presente trabalho tem como meta fazer uma investigaçãodo termo santo, considerando o fato de que um termo faz parte do léxico de especialidade. Assim, será imprescindível entendermos como a terminologia estuda o comportamento dos termos dentro das línguas de especialidade. Para essas ponderações teremos como aporte teórico o
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Introdução
Aldilene Lopes de Morais As acepções de santo no senso comum e no dicionário terminilógico
de Krieger e Finatto (2004). As autoras explicam-nos que o termo está atrelado às línguas técnicas, ou seja, as línguas de especialidade. Outro ponto tratado em nosso trabalho diz respeito à relação entre tradução e terminologia para as quaisas autoras mencionadas pontuam que em ambas alguns pontos convergem. A tradução é feita quando há uma mudança de significado de um campo para outro (Sobral, 2008). Quando há uma troca cultural ocorre um processo de significação de determinados aspectos de uma cultura para outra. Veremos que a tradução não se dá apenas entre línguas, mas esse processo acontece entre culturas diferentes, conforme acompanharemos em Burke e Hsia (2009). Mencionaremos também como alguns estudiosos contemplam o uso do termo ‘santo’ no âmbito religioso, mostrando que elese relaciona com algo que configura pureza, separação e integridade, sempre relacionadas a uma pessoa e a um ambiente (Moraldi, 1999) e (Eliade, 2010). O levantamento do termo nos dicionários, tanto de cunho religioso, quanto nos dicionários do léxico geral oportunizaram discorrer por várias interpretações. Por fim, a visão no campo religioso não cristãotambém se aponta relação com o termo santo, visto que o utilizando em suas cerimônias, adquirindo uma significação diferente da que é usada nas religiões cristãs. No Candomblé o termo santo assume uma acepção distinta da que frequentemente conhecemos, o “santo” não será mais atribuído a alguém puro, benigno e separado, nem terá uma concepção de sacralização, como conferimos em Eliade (2010). No entanto, o santo é normalmente usado para designar uma entidade – muitasvezes essas entidades são denominadas de espíritos – quese apropriam de uma determinada pessoa no ritual de Candomblé. No dicionário do léxico geral de línguas, no chamado senso comum, o termo santo frequentemente é agregado a expressões idiomáticas, carregando uma carga semântica divergente do que é concebida nos dicionários religiosos.
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Antes de adentrarmos nas definições encontradas nos dicionários terminológicos a respeito do termo santo,faz-se necessário entendermos que o nosso estudo não está centrado no léxico comum, mas em um léxico de especialidade, o qual está interligado às comunicações técnicas. Para entendermos como os termos se comportam nas línguas de especialidade, é imprescindível apreendermos como se configura a Terminologia. Para tal, teremos como principal aporte teórico a terminologia em Krieger e Finatto
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Terminologia: algumas considerações
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(2004), que discutem de forma meticulosa a respeito da terminologia no que concerne ao seu arcabouço teórico e prático. Segundo Krieger e Finatto (2004, p. 17) o “léxico temático” tem a função de imprimir “conteúdos próprios de cada área”. Nessa perspectiva, as autoras asseveram-nos que a Terminologia como uma ciência, tem um objeto de estudo delimitado, cunhado de “termo técnico científico”.Algo que é fundamental para as comunicações profissionais, de forma que a terminologia ajuda na univocidade dessas comunicações. Sobre essa importância as autoras asseveram-nos que:
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No decorrer de nossas investigações a respeito do termo santo percebemos que suas definições, a princípio, estão arraigadas à tradição cristã, isto é, ao universo religioso. Nos textos canônicos, ao pesquisarmos sua definição, assim como sua aplicação em inúmeras referências bíblicas, percebemos que há um forte cunho sacro. Fator que só é compreensível no contexto textual. O termo não é independente, isto é, não tem sentido quando se encontra isoladamente, ele sempre está atrelado a um contexto. Para Krieger e Finatto (2004, p. 106) o texto é considerado como “habitat natural das terminologias”. Buscando as diversas conotações do termo santo, verificou-se que, de acordo com o contexto, ele pode adquirir uma carga semântica divergente da atribuída do universo cristão. Há momentos em que se denomina alguém desanto para ironizar determinadas pessoas e situações. Temos como exemplo a expressão: santo do pau oco, em que é direcionado para alguém que finge ser uma pessoa que não é. Dessa forma, podemos ressaltar que santo não se restringe apenas ao campo religioso. Havendo a possiblidade de vislumbrarmos sua presença em diversas situações comunicacionais. Fator preponderante para entendermos que a terminologia não é fechada apenas em um campo científico, pois ela é polissêmica. Podemos apreender que o termo enquanto conhecimento está interligado às diversas áreas
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A funcionalidade operada pelo léxico especializado na transmissão de conhecimentos, na transferência de aparatos tecnológicos, bem como nas relações contratuais faz com que, cada vez mais, a Terminologia assuma relevância na e para a sociedade atual, cujos paradigmas de desenvolvimento estão intimamente relacionados ao processo de economia globalizada e ao acelerado desenvolvimento científico e tecnológico. Alinham-se ao mesmo paradigma, a organização e divulgação da informação, condições que favorecem o comércio e as relações internacionais. (Krieger; Finatto, 2004, p. 18).
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científicas, de forma que o conhecimento é perpassado pela linguagem, em que a mesma abarca uma diversidade de saberes.As autoras acrescentam ainda que “a Terminologia é um campo de conhecimento que vem intensificando os estudos sobre a constituição e o comportamento dos termos, compreendendo desde sua gênese até o exame de suas relações nas mais distintas áreas do conhecimento científico e técnico” (Krieger; Finatto, 2004, p. 22). Tendo em vista que a terminologia deve ser vislumbrada levando-se em consideração o contexto comunicacional em que se insere, faz-se necessário entendermos a relação que essa ciência tem com o campo da tradução. Terminologia e traduação A tradução é um tema bastante discutido quando falamos de terminologia. Há muitas discussõesem torno desses dois campos. Muitos autores defendem a confluência entre elas. Kriegere Finatto (2004, p. 113) ressaltam a ideia de que a terminologia e a tradução são campos que apresentam convergências, mas é preciso ter claro a noção de que elas têm desígnios de atuação específicos, cuja função não permite que elassuperponham-se. O principal motivo que impulsiona o crescente diálogo entre essas disciplinas está centrado nos termos técnicos científicos. De acordo com Krieger e Finatto
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Tratar a tradução significa verificar que esse campo tem diversas ramificações. Existem aqueles que estudam a tradução em línguas, outros vislumbram a tradução em seus aspectos culturais. Burke e Hsia (2009) asseguram-nos que esses dois ramos científicos estão conectados, defendendo o diálogo entre tradução cultural e tradução de línguas, pois as trocas culturais que aconteceram ao longo da História envolviam o processo de tradução. Tendo em vista a relação entre a tradução e as línguas de especialidade, é relevante pontuarmos sua importância para a
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é em relação a essa tipologia textual que se efetua a chamada tradução técnica ou especializada. A esse respeito, alguns autores, considerando a existência de comunicações profissionais, como ocorre no âmbito científico, jurídico, administrativo, econômico, entre outros, preferem falar da tradução de textos especializados já que “toda tradução (literária, audiovisual, etc.) é especializada no sentido de que requer determinados conhecimentos e habilidades especiais” (Albir, 2001 apudKrieger;Finatto, 2004, p. 66).
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sociedade na qual estamos inseridos.Vivemos em um mundo cada vez mais informatizado e globalizado, imbuído de grandes interesses comerciais e profissionais. Assim, há um empenho cada vez maior por tradutores em áreas especializadas. Por isso, ocorre uma enorme busca para o campo da “tradução técnica”, afirma-nos Krieger e Finatto (2004, p. 66). Essa ideia converge com o que Burke e Hsia (2009, p. 15) afirma, pois traduzir “implica negociação”. A negociação não ocorre em sentido comercial, pois nesse contexto tem uma proximidade com o diálogo de ideias e, por sua vez, leva à inevitável mudança de significado. A tradução analisada em nosso trabalho ocorre quando o termo santo, que é algo cunhado no mundo religioso, passa por um processo de tradução para as demais áreas, como o senso comum e até mesmo entre as religiões. Levando em consideração todas essas informações, iremos nos direcionar para o estudo do termo santo e seus diversos significados,tanto em teóricos quefazem menção ao termo santo, como em dicionários. Veremos também como as religiões que não pertencem ao Cristianismo utilizam o termo santo. O termo santo: o que dizem alguns teóricos Moraldi (1999, p. 12) na obra Evangelhos Apócrifos, esclarecenos que santo esteve ligado semanticamente à palavra cânon.Asseveranos que o termo relacionava-se à origem do termo cânon nos primórdios do cristianismo. Para o autor:
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Percebemos que cânon também relaciona-seà palavra apócrifo, estabelecendo uma relação de oposição entre ambas. São considerados apócrifos “os escritos que não foram canonizados pela Igreja”. Essa é uma definição recente. Anteriormente eram cunhados de livros ‘não canônicos’, ‘duvidosos’, ‘contestados’, “livros que não podem ser lidos nas igrejas” (Moraldi, 1999, p. 12). Percebemos assim, que a origem do termo santo tendo como base sua relação com a palavra cânon tem fortes traços com a sacralização de determinado objeto, nesse caso, os textos bíblicos. Convergindo com essa mesma ideia Eliade(2010) em O Sagrado e o Profano: a essência das religiõesesclarece-nos que a palavra
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(...) na Igreja primitiva o cânon era a norma em conformidade com a qual eram julgadas todas as coisas; canonizar equivalia a reconhecer como parte integrante dessa norma, e, para os cristãos dos primeiros séculos, o adjetivo canônico significava, na prática, santo, divino, sem erro importante.
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sagrado é algo que está intimamente ligado com o termo santo.Em muitas situações, sagrado é usado como sinônimo de santo. Considerase sagrado determinado lugar, objeto ou pessoa, quando ele é visto como santo, separado, purificado e digno de ser adorado.Ao sacralizar o espaço, o ser humano tende a fazer algumas separações, elegendo determinados espaços como sagrados ou santos e o que se desvirtua dessa conjuntura é visto como profano. Outro aspectoque Eliade(2010) ressalta concerne ao fato do homem religioso associar os espaços santos como o centro do mundo, em que a sacralização do ambiente se faz sempre tendo como ponto de referência o “centro do mundo”. Esse ambiente pode ser considerado como sagrado de acordo com a cultura de cada povo. O termo santo esteve presente na vida do homem religioso desde os tempos mais primitivos.O homem que vive totalmente direcionado para as coisas divinas busca sacralizar e santificar o Mundo. A natureza é vista como um local em que o divino se faz presente, não havendo espaço para a dessacralização. Eliade (2010, p. 76) apresentanos a China, mostrando-nos que a natureza na prefiguração dos jardins é um lugar por excelência para encontrar-se um lugar santo. Observa-se que a presença de um “lugar santo” torna-se algo recorrente nas exposições de Eliade(2010) ao se referir ao homem religioso e à sacralização do espaço e do Mundo. A partir destas acepções, direcionar-nos-emos para a presença do termo santo nos dicionários específicos e no dicionário comum. Sabemos que o termo foi incorporado ao mundo religioso, no entanto, seu uso estendeu-se ao mundo secular, no qual é possível encontrarmos sua presença em sua forma mais dessacralizadae profana possível.
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No Dicionário Bíblico Wycliffede John Reapercebemos que o termo está relacionado às questões bíblicas e teológicas. Segundo Rea(2012, p. 1763) “o termo ‘santo’ na Bíblia Sagrada é a tradução de duas palavras hebraicas (haside kadosh) e uma grega (hagios) nos textos em Salmo 30:4; 106.16; Romanos 1.7”. Indo ao texto bíblico em Salmo 30: 4, percebemos que,ao usar o termo santo, o salmista referese a alguém bondoso, benigno, separado para a santificação.Leiamos o texto canônico: “Cantai ao Senhor, vós que sois seus santos, e celebrai e memória da sua santidade” (Salmo 30:4). Fazendo referência a esse mesmo texto bíblico, a Bíblia de Estudo Palavras Chave: Hebraico e Grego(2012, p.1648-1649),na definição hebraica o dicionárioesclarece-nos que Santo(hãsidh) (...) (propriamente) bondoso, i.e., (sem sentido religioso)piedoso (santo): -
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O que dizem os dicionários
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Santo: (hagios) de (hagos, uma coisa terrível) (...) sagrado (no sentido físico, puro; no sentido moral, imaculado ou religioso; no sentido cerimonial, consagrado): - santíssimo (uma coisa uma pessoa), santo. Adjetivo de hagos (s.f.), qualquer questão de temor religioso, expiação sacrifício. Em sentido primário: puro, incluindo a noção de respeito e veneração. Santo. (I) Puro, limpo, i.e., cerimonial ou moralmente puro, incluindo a ideia de respeito ou reverência merecida: (A) Num sentido particular: perfeito, sem mácula (Rm 12.1). (B) De forma metafórica: moralmente puro, reto, sem mancha no coração e na vida, virtuoso, santo: (1) Geralmente (Mc 6.20; Rm 7.12; 1Co 7. 34; Ef. 1.4; 5.27; 1 Pe 1.16; LXX:
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homem (benigno, peidoso), os fiéis, querido piedoso, santo benigno, amado, homem fidedigno. A palavra transmite a ideia essencial da fiel bondade e piedade que procedem da misericórdia. Ela é usada duas vezes com respeito ao Senhor: uma vez para manifestar sua santidade, no sentido de que suas obras são irrepreensíveis (Sl 145.17); e outra vez para declarar sua terna misericórdia (Jr 3.12). Outras ocorrências desta palavra normalmente se referem àqueles que refletem o caráter de Deus em suas ações e em sua personalidade. A palavra designa ‘aqueles que tem um relacionamento pessoal com o Senhor’ (1 Sm 2.9; Sl 4. 3 }4}; 97.10; 116.15); a condição daquele que confia plenamente em Deus (Sl 86.2); e os que manifestam a bondade ou misericórdia de Deus em sua conduta (2 Sm 22.26; Sl 12.1,2; Mq 7.2). No entanto, mais importante ainda, a palavra indica a natureza dos que são especificamente separados por Deus para serem os exemplos e mediadores de sua bondade e fidelidade. Sacerdotes (Dt 33.8); profetas (Sl 89.19 -20-) e o Messias (Sl 16.10), todos trazem esta marca e possuem como função serem “santos”. Seguindo o pensamento cristão, vislumbra-se que, em suma, a maioria dos textos canônicos, os quais usam o termo santo, o utilizam nessa configuração, poisse atribui o sentido de alguém benigno, bondoso e de alguém que segue os preceitos e modelos cristãos. Na epístola de I Pedro 1: 15-16, o apóstolo Paulo exorta os cristãos a viverem uma vida santa, o pregador assevera-nos dizendo: “mas como é santo aquele que vos chamou, sede vós também santos em toda vossa maneira de viver, portanto escrito está: Sede santos, porque eu sou santo.” Na acepção grega vejamos o que o dicionário explicita-nos:
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Le 11.44. (2) Referindo-se àqueles que são purificados e santificados pela influência do Santo, os santos. Isto é pressuposto de todos os que professam a fé cristã, por isso hagios, santo, hagioi, santos, cristãos (At 9.13,14,32,41;26.10; Rm 1.7; 8.27; 1 Ts 3.13. referindo-se às pessoas que devem, de alguma forma, estar incluídas na comunidade cristã (1 Co 7.14). (II) Consagrado, dedicado, sagrado, santo, i. e., separado do uso comum para o uso sacro;referindo-se a lugares, templos, cidades, ao sacerdócio a homens (Mt 4.5; 24.15; 27.53; At. 6.13; 7.33; 1 Pe 2.5); a pessoas (Lc 2.23; Rm 11.16); aos apóstolos (Ef 3.5); aos profetas (Lc 1.70; At 3.21; 2 Pe1.21); a anjos (Mt 25.31). (III) Santo, santificado, digno de reverência e veneração. Referindo-se a Deus (Jo 17.11; Ap 4.8; 6.10; LXX: Is 5.16; 6.3); ao seu nome (Lc 1.49; LXX: Lv 22.2); ao Espírito Santo (Mt 1.18); à santa aliança (Lc 1.72); às Sagradas Escrituras (Rm 1.2. LXX; Dn 11.28,30). Deriv.: hagiadzõ (37), santificar; hagiotes (41), santidade;hagiõsyne (42) santidade, a qualidade de santificação.
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SANTO DOS SANTOS: O santo dos Santos do tabernáculo eraum cubo de 10 côvados (5 metros) nos três sentidos. Separava-se do Santo Lugar por meio do véu. Êx. 26.33. Continha apenas a arca da aliança. O Senhor aparecia na nuvem sobre o propiciatório, em cima da arca. Ninguém, senão o sumo sacerdote, entrava dentro do véu, e, ele apenas uma vez por ano, para oferecer incenso e sangue diante do propiciatório , Lv 16. Hb 9.7. O Santo dos santos do Templo de Salomão era de 20 côvados 1Rs 6.16. Na descrição do templo de Ezequiel, não se faz menção da arca da aliançado santo dos Santos Ez 41.
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Na Pequena Enciclopédia Bíblica de O. S. Boyer (1996) ao buscarmos o significado do termo santo, verificamos que é algo intrinsecamente ligado ao sagrado. Determinada coisa ou pessoa é considerado santo, quando se encontra separado, purificado para as coisas divinas. Nessa enciclopédia, o termo é definido como “SANTO:Sagrado; que vive na lei divina; puro”. Na mesma obra, encontramos referências ao sintagmasanto dos santos, na qual será possível analisarmos que santo não está sendo referido apenas às pessoas, mas a um lugar, nesse caso, ao tabernáculo. Vejamos:
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4. O maior e mais perfeito Santo está nos céus, Hb 9.11-14: 10.19,20(Boyer, 1996, p. 564).
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Santo: san.to: adj (latsanctu) 1 Canonizado pela Igreja. 2Teol Que obteve no Céu a recompensa prometida aos que observam os ensinamentos evangélicos; bem-aventurado, eleito. 3 Que vive conforme a lei de Deus; que inspira benevolência e piedade; bondoso; que cumpre com todo o escrúpulo, com a maior exatidão, os seus deveres religiosos e morais; virtuoso. 4 Com o caráter de santidade; dotado de santidade. 5 Que se refere à religião ou ao rito sagrado. 6 Consagrado ao culto, à divindade; sagrado. 7 Digno de respeito e veneração pelo seu caráter, talento e virtudes. 8 Que é digno de respeito; que não pode ser violado sem que se cometa uma espécie de profanação. 9 Que não faz mal a ninguém; ingênuo, inocente, simples. 10 pop Benéfico, profícuo, útil. 11Diz-se do remédio de efeito certo, eficaz. 12 Caritativo, esmoler, bondoso. 13Aplica-se aos dias da semana que precedem o domingo da Páscoa e à própria semana. Supabssint: santíssimo. sm1 Teol Denominação atribuída pela Igreja Católica, após o processo de canonização, depois de falecido, ao fiel que praticou durante a vida, em grau heroico, todas as virtudes cristãs. 2 Imagem de um indivíduo canonizado. 3 Aquele que leva uma vida de abnegação e amor ao próximo; indivíduo de vida exemplar e de conduta irrepreensível. 4 Indivíduo ingênuo, inocente, simples, que não faz mal a ninguém. aumirreg e pej: santarrão. S. inocentes: os meninos que, segundo o Evangelho, foram mortos por ordem de Herodes pouco tempo depois do nascimento de Jesus Cristo. S. lenho: o mesmo que lenho da cruz. S.-ofício: o tribunal da Inquisição. S. óleos: óleos bentos pelo bispo na quinta-feira santa, usados na administração de alguns sacramentos e em outros ritos litúrgicos. S. sacrifício: o sacrifício da missa. S. sepulcro, Rel: sepultura no Monte Calvário onde Jesus Cristo foi sepultado. S. sínodo: conselho superior da Igreja russa. S. sudário, Rel: a) pano com que a Verônica enxugou o rosto de Cristo durante a paixão; b) representação desse pano pela Verônica durante a procissão do enterro. S. reis: os reis magos (o título de reis provém da tradição; o Novo Testamento os designa apenas como magos).
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Verificamos que o universo cristão é permeado do termo santo. Contudo, redirecionaremos para as acepções encontradas no dicionário geral da Língua Portuguesa.De acordo com o Dicionário eletrônicoPortuguês Michaelis o termo santo apresenta diversas acepções. Nele,a palavra santo apresenta-se com diversas conotações:
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S. temor: temor religioso; temor respeitoso diante das coisas sagradas; grande temor. Assentar o santo, Folc: pequena cerimônia preparatória para a iaô (noviça no candomblé) receber seu orixá (anjo da guarda), que fará morada em seu corpo. Despir um santo para vestir outro: prover a uma necessidade ocasionando outra. Fazer perder a paciência a um santo: ser (alguém) teimoso, enfadonho, impertinente. Não saber a que santo recomendar-se: hesitar ao tomar uma resolução. Não ser santo da devoção de alguém: ser pessoa antipática ou odiosa. Pegar-se com os santos: implorar a proteção deles. Rogar ao santo até passar o barranco: só ser religioso nas ocasiões de perigo. Santo de casa não faz milagres: referência ao fato comum de uma pessoa não ver reconhecidos os seus méritos no seu ambiente. Santo do pau oco: criatura travessa com aparência de quieta; pessoa sonsa, velhaquete; pessoa que finge ser inocente, mas não o é. Seja lá que santo for, ora pro nobis: aceito o auxílio de quem quer que seja. Ter santo forte: livrar-se de grandes perigos graças à proteção do seu santo. É expressão de frequentadores de macumbas. Todo o santo dia: todos os dias; sem interrupção.
É perceptível que oDicionário eletrônico Português Michaelisapresente um panorama geral sobre as definições do termo ‘santo’, mostrando como ele foi sendo usado na religião cristã, faz menção ao uso do termo em outras manifestações religiosas, como o Candomblé, por exemplo. Assim como, mostra-nos as diversas expressões idiomáticas das quais o senso comum se apropria. Como podemos perceber santo é definido, em linhas gerais, levando-se em consideração as questões sagradas.Levando em consideração as definições vistas até o momento, iremos nos direcionar para as religiões afro-brasileiras. Escolhemos a Umbanda e o Candomblé, por acreditarmos que são manifestações religiosas com uma representação muito forte em nosso país. Vale ressaltar também que ambas apresentam uma gama de expressões idiomáticas formadas pelo termo santo.
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Até o momento em que a pesquisa tomou aspectos diferentes, ressaltou-se enfaticamente o caráter cristão do termo santo, mas cabe ainda, discorrermos sobre as demais manifestações religiosas, no Candomblé e na Umbanda,por exemplo, o termo santo, assume uma conotaçãodiferente da que é atribuída no Cristianismo. Nas cerimônias promovidas por estas manifestações religiosas o termo santo é usado
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O uso do termo santo em outras religiões
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em diversos momentos. Sempre está associado aos rituais e de acordo com estas religiões afro-brasileiras, o termo santo assume graus de hierarquia.Santo nesta configuração está ligado aos orixás. Dentre os diversos termos que a Umbanda emprega, o uso da palavra santo torna-se algo recorrente, por tratar-se de algo associado às entidades.De acordo com uma pequena ficha de termos usados na Umbanda e no Candomblé, o termo pai-de-santoe mãe-de-santoé usado para designar um chefe tanto no campo espiritual quanto administrativamente. Vejamos alguns termos e suas definições:
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Nesta mesma concepção Sansi(2009) ao falar sobre o ato de “fazer o santo” – expressãomuito usada no Candomblé – explicaque “‘fazer o santo’ é um processo de construção da pessoa em relação com os espíritos que incorpora, (...) ‘outro corpo’ destes espíritos, os altares (assentos)” (Sansi, 2005 apudSansi, 2009, p. 140). Existem duas maneiras de “fazer o santo”. A primeira corresponde ao dom, à capacidade natural de incorporar os espíritos, pessoas que são conhecidas como médium. A segunda maneira faz parte do processo de “iniciação”, em que a mãe-de-santo ou pai-de-santo tem o papel de
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BABALORIXÁ - chefe masculino de terreiro; Sacerdote de Candomblé; ou de Umbanda (a Umbanda também usa = Babalaô). Denominado popularmente “Pai-de-santo”. Pessoa que dirige todos os trabalhos no Terreiro (administrativo e sacerdotal). Orienta a vida espiritual dos médiuns, filhos de fé e assistência do Terreiro. BACURO DE PEMBA - Filho de Santo. BATER PARA O SANTO - Tocar os atabaques com o ritmo peculiar a determinado Orixá. CAIR NO SANTO - Transe mediúnico de quem ainda não está preparado para incorporar. FEITA (O) NO SANTO - Médium que teve o cerimonial de firmeza de cabeça por haver completado seu desenvolvimento mediúnico. FILHO OU FILHA DE SANTO - Médium que se submeteu à doutrina e a todo ritual. MADRINHA - O mesmo que Mãe de Santo, Babá. MÃE DE SANTO - Médium feminino chefe ou dirigente de terreiro, Madrinha, Babá. PADRINHO - pai-de-santo, Chefe de Terreiro. PAI-DE-SANTO - Zelador do Santo, Chefe de Gira, Chefe de Mesa, Chefe do Terreiro. Médium e conhecedor perfeito de todos os detalhes para o bom andamento de uma sessão. VIRAR NO SANTO - Entrar em transe. Incorporar.
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orientar as pessoas sobre o “assento” do santo. (Sansi, 2009, p.141). As duas maneiras entram em conflito. As pessoas mais tradicionais acreditam que a maneira mais correta de “fazer o santo” está na iniciação e não na mediunidade. De maneira concisaSansi descreve o “fazer o santo” da seguinte forma: “Fazer o santo” é um processo muito concreto e material: não é só uma educação sobre mitos, cantigas e rezas, é também um habituscorporal do santo. Para tal, a iniciada deve aprender as técnicas do corpo essenciais para a iniciação, fazer oferendas e construir altares (Sansi, 2009, p. 144).
Percebemos que o termo santo nestas manifestações religiosas está ligado a espíritos. Diferente da religião cristã, que considera santo determinadoespaço ou mesmo uma pessoa que se separou para viver uma vida íntegra e pura.Nesta perspectiva, podemos inferir que o Candomblé traduziu este termo com uma conotação diferente da que o Cristianismo a princípio incorporou. É perceptível que houve um processo de tradução de significados do termo santo. Nos dicionários técnicos e nos teóricos que fizeram um estudo sobre a palavra santo, o sentido é diferente do que é empregado no Candomblé e na Umbanda. Houve uma ressignificação do termo santo. Em uma visão cristã e etnocêntrica o ato de “fazer o santo” não é visto com bons olhos. Acredita-se que o espírito que é denominado como santo não pode ser uma divindade boa, mas o contemplam mesmo como algo ruim. Para as pessoas que fazem parte do Candomblé e da Umbanda, o “santo” é considerado como um ser superior, dotado de poderes especiais. O qual deve ser respeitado. Dessa maneira,basta refletir sobre a seguinte proposição: “o contexto em que o termo está inserido é fundamental para determinar o seu sentido” (Krieger;Finatto, 2010, p.113).
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Observou-se que o termo faz parte do estudo da Terminologia, o qualcomo parte de uma língua de especialidadedifere do léxico comum. Em nossas investigações, o termo santo, a princípio, esteveimbuídono mundo cristão. Sua acepção relaciona-se às coisas sagradas e separadas do mundo secular. Por outro viés, consideramos que santo carrega uma carga semântica variada. Há situações em que o termo adquire um sentido totalmente oposto do que encontramos nas acepções religiosas. Encontramos sintagmas e expressões idiomáticas em que o termo é usado, cuja
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Conclusão
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definição é totalmente oposta da usada no mundo cristão. Temos o exemplo da expressão: não ser santo da devoção de alguém,a qual ganha uma carga semântica totalmente antagônica da atribuída nos dicionários religiosos. Vimos que nas religiões que não se enquadram nos parâmetros cristãos, o termo santo não apresenta o mesmo sentido do que encontramos nos dicionários específicos da religião cristã. Esse fator que nos faz entender que o termo é passível de tradução, ele não é estático. A língua não deve ser entendida como algo imutável. O senso comum se apropria do termo e o traduz com uma acepção diferenciada. Assim, faz-se necessário estudarmos os termos levando em consideração as situações comunicacionais e seu contexto de uso.Em nosso caso, santo, não pode ser vislumbrado apenas como um termo que é usado no mundo cristão, servindo para designar pessoas com uma predisposição a viver de maneira reta, com o coração bondoso e sem maldade. Como se verificou, há mudanças de significado para o termo de acordo com as situações em que ele está inserido.
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A BÍBLIA SAGRADA. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e Corrigida no Brasil. Ed.1995, São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2007. 1056p. Bíblia de Estudo Palavras: chave Hebraico e Grego. 3 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2012. BURKE, Peter; HSIA, R. Po-Chia. Tradução Cultural: nos primórdios da América Moderna. Tradução Roger Maioli dos Santos. São Paulo: UNESP, 2009. DIAS, Cláudia A. Terminologia: conceitos e aplicações. Ci. Inf., Brasília, v.29, n.1, p. 90-92, ja/abri. 2000. DICIONÁRIO DE PORTUGUÊS ONLINE MICHAELIS. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/ index.php?OJSSID=cd131873ea50b1582cc685c11841f8d5>. Acesso em: 10 mai. 2014. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões.Tradução Rogério Fernandes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova fronteira. 1988. KRIEGER, Maria da Graça; FINATTO, Maria José Bocorny. Introdução à terminologia: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2004. LUIGI, Moraldi. Evangelhos Apócrifos. Tradução Benônie Patrícia collinaBastianetto. São Paulo: Paulus: 1999.
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Referências
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PFEIFFER Charles F. VOZ, Howard F. REA, John. Dicionário Bíblico Wycliffe. Trad. Degmar Ribas Júnior. Rio de janeiro: CPAD: 2012. SANSI, Roger. “Fazer o santo”: dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras. Análise Social, v.44, n. 190, 2009, p. 139-160. Disponível em: <http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/12367 87502X4rFI6fj3Zm36GE2.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2014 Significaco de Palavras e termos usados em Umbanda e Candomblé. Disponível em: <http://www.letestrela.com.br/artigos/ orixas/604significado-de-palavras-e-termos-usados-em-umbanda-e-candomble.html>. Acesso em: 08 mai. 2013.
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AS CICATRIZES DE MARIA: Entre dores e rupturas Luciana de Barros Ataide Resumo: Considerando com Beth Brait, Antonio Candido e outros teóricos que mostram como a personagem de uma narrativa encena a linguagem, construindo assim a verossimilhança que a sustenta e consequentemente alcançando o propósito da função do texto literário, objetiva-se, com este estudo, mostrar como o conto As cicatrizes do amor, de Paulina Chiziane teatraliza tal processo. Na oportunidade, valendo-se da estética da recepção, será problematizado o deslocamento da personagem Maria através de uma abordagem entre a tradição e os valores da modernidade no espaço africano. Faz-se necessário ainda relacionar a importância da memória e do silêncio na construção da identidade a partir de novos valores sem que haja a perda cultural do indivíduo. Palavras-chave: Gênero. Deslocamento. Tradição. Memória. Identidade. Silêncio.
Paulina Chiziane: a contadora de histórias Paulina, uma contadora de história, iniciou sua atividade literária em 1984, com contos publicados na imprensa moçambicana. São histórias que falam das vivências de tempos difíceis, da esperança, do amor, da mulher e de uma África passada e presente que a autora soube transferir da oralidade para o papel. Tornou-se a primeira mulher moçambicana a publicar um romance quando lançou o seu primeiro livro, intitulado A Balada de Amor ao Vento em 1990, seguido de Ventos do Apocalipse (1993) e o O Sétimo Juramento (2000). Com o romance Niketche: Uma História de Poligamia (2002) recebeu o Prémio José Craveirinha (2003). Há ainda O Alegre Canto da Perdiz (2008), romance no qual aborda o tema do racismo numa Moçambique colonial.
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Diferente de alguns contemporâneos, Paulina Chiziane busca os temas de sua produção literária no cotidiano, nas relações familiares, na política doméstica. No conto As cicatrizes do amor, publicado na obra O conto moçambicano: da oralidade à escrita (1994), a escritora fala sobre Maria, uma personagem que passa por um processo de amadurecimento após a experiência traumática de ter sido impedida de se casar com o homem por ela escolhido e de ter sido expulsa de casa, pelo pai, 15 dias após dar à luz sua filha. Nessa atitude é possível observar o peso da tradição para a mulher em uma sociedade patriarcal e o silêncio feminino como forma de submissão. O texto literário: uma função necessária
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A literatura pode formar; não segundo a pedagogia oficial. [...]. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, [...], ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela [...] . E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação [...]
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Por ser Maria a figura central da narrativa do conto de Paulina Chiziane, nota-se que o enredo ganha vida a partir da trajetória da personagem. Isso porque esse ser ficcional funciona como o elemento de identificação do leitor com o texto, especialmente por fazer com que o leitor se entregue ao universo literário, deixando-se levar pela imaginação. Cabe lembrar que para haver a identificação do leitor com o texto, tanto a personagem quanto o contexto necessitam ser coerentes. São as personagens que dão credibilidade ao texto porque são resultados de uma construção linguística. É a esses seres que o autor dá a voz para expressar a sua visão de mundo. Beth Brait afirma que “a materialidade desses seres só pode ser atingida através de um jogo de linguagem que torne tangível sua presença e sensível os seus movimentos” (Brait, 1985, p. 53). Com isso a autora destaca a importância do trabalho linguístico para se criar uma personagem. Ela resume bem essa habilidade linguística quando diz que “A sensibilidade de um escritor, a sua capacidade de enxergar o mundo e pinçar nos seus movimentos a complexidade dos seres que o habitam realizam-se na articulação verbal” (Brait, 1985, p. 67). Tais considerações são necessárias para que se alcance a função do texto literário na qual reside o processo de humanização do homem. É o próprio Antonio Candido que afirma
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Diante das palavras de Candido, é possível perceber o poder que tem a literatura de atuar na formação do indivíduo, pois este, através da fruição da arte literária, tem suas características moldadas. Contudo, é preciso ressaltar que a literatura “não corrompe nem edifica, mas humaniza em sentido profundo, por que faz viver” (op. cit., p. 806). E com isso chega-se à função social. Ela é social porque possibilita que o indivíduo reconheça a realidade que o cerca quando se transporta para o mundo ficcional. Esse reconhecimento auxilia-o em sua relação com a realidade existencial. No que tange à linguagem literária, cabe ressaltar a afirmação de Martin Heidegger (2003) ao afirmar que a linguagem é a representação da coisa em si através da palavra. Isso pode ser confirmado com Benedito Nunes, ao dizer que Heidegger não pensa a linguagem como objetivação, mas como um dizer manifestante, como revelação da própria Palavra (Nunes, 1999). Nota-se com isso que, para o filósofo alemão, as coisas em si existem independentes da linguagem, contudo é a linguagem que vai apresentar a coisa pela palavra. Logo, a palavra, nesse contexto, é uma unidade de expressão da apresentação daquilo que se quer demonstrar pela linguagem. Seguindo esse pensamento, Heidegger fala também da relação da linguagem com a poesia. Segundo Nunes, ao associar a linguagem à poesia, Heidegger afirma que a poesia é um instrumento que possibilita a linguagem e que perpassa a cultura como numa tecedura. A linguagem, no entanto, está muito além de ser uma simples matéria disponível para ser trabalhada pela poesia. Ela é a reveladora da coisa de que se fala. Conforme diz Heidegger (2003), a linguagem não é algo possuído por nós, ao contrário, é ela que nos possui. Complementando o pensamento acerca da importância da linguagem para as relações sociais e mais especificamente para a construção da obra de arte, convém lembrar que para Arcângelo Buzzi a linguagem dá ao homem o poder de criar mundos fantásticos (1972). Com isso, é possível concluir que a linguagem faz o jogo dos signos já que ela possibilita, aos indivíduos, o contato com a realidade e com múltiplas formas de convivência. Dessa forma, é possível afirmar que a linguagem literária assume aspectos de representação e demonstração. É também através da linguagem literária que escritores, como Paulina Chiziane, colocam em questionamento a realidade; colocam o leitor em busca do autoconhecimento e do conhecimento do mundo. É também através da literatura que se pode refletir sobre a própria língua com liberdade,
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trazem freqüentemente aquilo que as convenções desejariam banir (Candido, 1972, p. 805).
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pois a linguagem literária permite que as palavras assumam vida própria, com novas significações que não aquelas conferidas usualmente.
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Através do processo de deslocamento, a personagem Maria do conto As cicatrizes do amor, ‘ressignifica’ a visão que se tem da mulher dentro de uma sociedade patriarcal. Gradativamente, ela modifica a posição da mulher passiva, subserviente e objeto para mulher transformadora. Maria passa do papel da mulher criada para obedecer ao esposo à protagonista de sua própria vida ao fazer a travessia no universo patriarcal e lutar contra o destino que lhe tentam impor, construindo, assim, sua identidade. É desse ponto que será possível notar a identidade como forma de emancipação do sujeito que deseja ser o agente construtor de sua própria história. Para que isso ocorra, é necessário que o indivíduo consiga ler o espaço que habita porque é uma construção que vem do conhecimento de mundo que ele possui; é um saber individual que é um patrimônio pessoal a ser preservado. No conto de Paulina Chiziane, narrado em terceira pessoa, há uma voz feminina que em alguns momentos se apresenta presa aos costumes do espaço africano: “Diabos me levem se não estou bem nessa rodada de mulheres sentadas na areia e os homens nas cadeiras” (Chiziane, s/d, p. 97); e em outros um pouco mais livre da rigidez institucional: “É uma revivência, um quadro bem evidente nos arquivos da tua memória, e nós não largamos um só suspiro, hipnotizados pela tua dor” (Chiziane, s/d, p. 98). A passagem do conto que apresenta as mulheres “sentadas na areia” enquanto os homens estão nas cadeiras mostra que a eles (homens), nessa sociedade retratada, são oferecidos todos os privilégios, desde os melhores lugares à mesa até a ascensão intelectual e social. Enquanto às mulheres, cabe o espaço doméstico, a responsabilidade de cuidar dos filhos e a imposição à passividade que visa à manutenção da supremacia falocêntrica. Assim, nota-se que as relações de gênero refletem concepções de gêneros, internalizadas tanto por homens quanto por mulheres, levando à somatização das diferenças. Assim, para chegar à condição de agente de si mesma, Maria, além de lutar pela própria autonomia tem, por vezes, a necessidade de se submeter a alguns valores que ainda persistem no espaço que habita.
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Inicia-se o espetáculo: problematização dos gêneros e rupturas Maria em cena
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Sobre a relação dos gêneros existentes em uma sociedade patriarcal, Manuel Castells explica como se dá essa autoridade: (...) Para que essa autoridade (patriarcal) possa ser exercida, é necessário que o patriarcalismo permeie toda a organização da sociedade, da produção e do consumo à política, à legislação e à cultura. Os relacionamentos interpessoais e, consequentemente, a personalidade, também são marcados pela dominação e violência que têm sua origem na cultura e instituições do patriarcalismo (Castells, 2001, p. 169).
Assim, é iniciado o relato da personagem Maria mostrando os processos necessários à reconstrução da condição feminina por meio de uma denúncia às opressões pelas quais elas passam. Esse episódio do
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– O que vocês não sabem – disse Maria – é que cada nascimento tem uma história e cada acção uma razão. Na minha juventude cometi o mesmo crime, ou melhor, ia cometêlo. Tudo por causa desse amor amargura, amor escravatura, que transtorna, que enfeitiça, fazendo da amante a sombra do amado (Chiziane, 1994, p. 97).
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Nesse universo tradicional, a protagonista é uma mulher que traz no corpo e na alma as marcas do sofrimento e que começa a ser desvendada a partir da cena em que todos estão reunidos bebendo e conversando na “caserna de Maria” (Chiziane, 1994, p. 128), local onde “... o povo triste recria a felicidade” (Chiziane, 1994, p. 128). Nesse momento de reunião, alguém folheia um jornal e: “– Veja isto, compadre. Duas crianças abandonadas pela mãe” (Chiziane, 1994, p. 129). Imediatamente há uma voz denunciante “– Alguém as deitou fora. As mulheres estão doidas” (Chiziane, 1994, p. 128). Em meio à confusão do que fora noticiado, Maria discorda de seus convidados e pronuncia-se: “– A maldade nasceu antes da humanidade. A culpa cabe às mães, mas é de toda a sociedade” (Chiziane, 1994, p. 129). Logo em seguida, Maria é acusada por uma voz masculina de estar cometendo um equívoco por culpa da embriaguez: “ – Não fuja da verdade, comadre, que a culpa está com as mulheres. O que dizes é suruma de bebedeira, estás embriagada, sim” (Chiziane, 1994, p. 97). Nota-se que a repetição da sentença: “A culpa é das mulheres” confirma a ação exercida pela cultura na diferença sexual. Em resposta a essa voz masculina, Maria logo começa a revelar o seu segredo:
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passado, rememorado, coloca em discussão os valores da tradição e da modernidade. Ao colocar-se mediante o reviver dessa experiência violenta, mais uma vez o autoritarismo da supremacia masculina fica evidenciado: Lembro-me da noite sem lua, quando debaixo do cajueiro disse sim, ao homem dos meus sonhos. O régulo de Matutuíne, meu pai, disse não a esse pobre, sem gado para lobolar a filha do rei. Ao meu homem ultrajado não restou outra alternativa senão procurar o lenitivo das mágoas do outro lado da fronteira, em Johannesburg, deixando-me o ventre semeado. Nos nove meses de gesta, minha alma em suplício consumiu facadas. Quinze dias depois do nascimento da criança, o meu pai disse: fora desta casa (Chiziane, 1994, p. 130).
Com isso, nota-se que nem Maria foi dona de seu próprio desejo, nem mesmo a mãe de Maria fora ouvida. Esse silêncio das mulheres representa, por si, a submissão feminina diante da lei. Essa passagem exige que seja pontuada a importância de a literatura abordar a imagem de uma mulher desafiadora, mesmo que intimidada pelo sistema falocêntrico, pois esse é o primeiro passo rumo à construção de sua identidade. Logo depois da expulsão, depois de ser desprezada pelos amigos, Maria se destaca como uma figura determinada que deseja encontrar seu objetivo: Amarrei a capulana bem firme; com o bebê bem seguro nas costas, jurei: os empecilhos [...] serão removidos pela minha mão. Chegarei a Johannesburg, minha terra de promissão. Abandonei a casa no ritual dos galos cerrando as cortinas vesperais. Segui o rasto do cruzeiro do sul, caminhei dias, e noites suficientes para contar todas as estrelas do firmamento (Chiziane, 1994, p.130).
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Meus olhos inquietos procuravam uma lixeira, uma vala, uma corrente de água, esgotos, um lugar qualquer, para desfazer-me do meu fardo. (...)
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Assim, para construir uma identidade, a figura feminina começa a mostrar a imagem de uma mulher desafiadora. E Maria segue contando toda a sua dor e sofrimento na busca de seu objetivo, até quando chega o momento em que tenciona abandonar a filha:
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Ao mostrar a força e a coragem de uma personagem para driblar os obstáculos sem jamais pensar em desistir de seu propósito, Paulina apresenta a capacidade da mulher de sobreviver fora de seu lugar de origem: “Como uma pena voando ao vento, balancei de poiso em poiso, contornando vilas, cidades, até alcançar o objecto da minha aventura: o meu homem” (Chiziane, 1994, p. 133). Por mostrar-se como uma mulher transgressora, Maria transpõe-se do estereótipo de dependente para a perspicácia de uma heroína. Após essa narradora/personagem compartilhar sua trajetória, seus dilemas, suas buscas ela denuncia, através da fala, a condição à qual a mulher está submetida e clama por uma nova ordem no que tange à liberdade feminina. Uma saída para essa liberdade é as mulheres firmarem-se economicamente e libertarem-se do sistema patriarcal. Maria o fez, já que no início da narrativa fica a observação de que todos estavam reunidos na “caserna de Maria”. Essa referência de posse foge ao estatuto social vigente, pois ela passa de mulher passiva e obediente àquela que trilha o próprio destino conseguindo até mesmo a independência financeira. Segundo Stuart Hall (2000) “as identidades estão sujeitas a uma historicidade radical, constantemente em processo de mudança e transformação” (p. 37). Isso mostra que para uma mulher sair da condição de submissão à total independência, precisa passar por um longo processo de mudança, precisa se transformar, o que demanda
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De repente o coração pulsou: uma moita cruzou o horizonte dos meus olhos. Será ali, será ali, o cemitério da minha filha, e à noite, bandos de corvos deliciar-se-ão com o corpo frágil do meu rebento, ai!... (...) Mergulhei na moita, paraíso ilícito. Os amantes também lá estavam, protegendo os abraços dos olhares indiscretos, e eu nem os vi, empenhada que estava na minha tarefa secreta. Adeus, fruto do prazer e dor; amor de fervor, adeus! Abandonava o lugar em passos de fuga; o casal que me espiava lançou gritos, alarmando os transeuntes que me rodearam. Uma velhota enxotou os curiosos, levou-me à sua casa para tratar da criança. Nem com isso desisti de meus intentos. (...) O sono venceu-me. No sonho vi a minha pequena já crescidinha, rindo em gargalhadas rasgadas nos braços do pai. O choro da criança interrompeu o meu sonho, transportandome para o novo sonho desta vez bem mais real: acriança sorria, vencendo a agonia. (...) Os espíritos do mar venceram o mal, amém! Pelo sinal da Santa Cruz (Chiziane, 1994, p. 131-132).
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uma grande superação, especialmente em um espaço povoado pelo patriarcalismo. Todo indivíduo tem a necessidade de pertencer a um grupo social que o respalde, que o aceite. Assim, é bem mais fácil deixar-se levar pelo que é difundido por uma sociedade dominante como o certo do que agir contrariamente ao que é pregado. Contudo, Paulina Chiziane constrói uma personagem totalmente contrária a essa superficialidade. Dessa forma, no conto As cicatrizes do amor, Maria, além de se articular como mulher que se constrói, coloca a narrativa nos polos: patriarcal e transgressor. A identidade da personagem articula-se no movimento que vai de um lado a outro, desloca-se e transmuta-se no espaço e nesse contexto ela assume-se enquanto sujeito de sua história. Sendo a literatura um espaço metafórico de denúncia, o conto aponta para a necessidade de uma tomada de decisão que liberte as mulheres, em suas diferenças, das imposições dualistas, que ditam como devem ser e reagir em determinados momentos de suas vidas. Nesse ponto, fica evidenciada a importância da linguagem literária como forma de além de possibilitar a criação de mundos fantásticos, retrata fatos verossímeis da realidade social.
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Nas palavras de Inocência Mata (2000), no conto As cicatrizes do amor, “há uma memória individual que se confronta com os ditames de uma sociedade tradicionalista” (p.136). Através do relato memorialístico, Paulina Chiziane usa a literatura para mostrar que esta é uma das maneiras de se construir e estabelecer a memória. O processo de interação da memória só é possível através do interdiscurso, ou seja, através da comunicação, através da linguagem que é o discurso em ação, efetuando a troca de informações, algo imprescindível para o ser humano uma vez que ele não é um ser isolado. Isso confirma a importância da memória para a cultura africana porque através das histórias transmitidas oralmente de geração a geração, ela (a memória) se mantém viva efetivando o valioso instrumento dos registros da tradição de um povo. São esses registros que manterão o elo entre o passado e o presente. Partilhando desse pensamento, Maurice Halbwachs (1990) diz que a memória deve ser entendida também, ou, sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes. Assim, fica evidenciado o conceito de memória associado à construção feita no presente a partir de vivências passadas. Isso pode
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Abrem-se as cortinas: dor do abandono - a memória silenciada de Maria
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ser percebido no conto de Paulina a partir da seguinte passagem: “O vulcão da recordação explodiu narrativas; as lavas caíram como soco nas gargantas abafando os acordes, calem-se todas as bocas, a comadre é que fala! A voz de Maria fez-se ouvir das profundezas do tempo” (Chiziane, 1994, p. 129). Essa passagem é início de um momento em que, através do processo de rememoração, a personagem Maria reviverá parte da história de sua vida, marcada especialmente pela dor do abandono. Então logo inicia: “Lembro-me da noite sem lua, quando debaixo do cajueiro disse sim, ao homem dos meus sonhos” (Chiziane, 1994, p. 130). Nesse momento de rememoração, Maria inicia o relato de uma vivência. E é nesse momento que se abrem as trilhas do enredo de As cicatrizes do amor. Outro aspecto importante abordado no conto e que mantém estreita relação com a memória é a construção da identidade. Identidade essa tomada sob o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Assim, é um sentido adotado a partir da imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria; a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria para acreditar na sua própria representação. Logo, é um conceito que, mais uma vez, remete a Halbwachs, uma vez que constitui o sentimento de identidade tanto individual quanto coletiva na medida em que é um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução. Isso porque não envolve apenas o ser que se reconstrói, mas também o grupo ao qual pertenceu e ao qual está inserido. O título do conto de Paulina, por si, já fornece um caminho para a compreensão das palavras memória, silêncio e identidade quando se parte do próprio sentido da palavra cicatriz: resultado de uma lesão que se for grave pode durar uma vida inteira. Ao analisar a palavra cicatriz sob uma perspectiva deleuziana é possível entendê-la como um signo da memória, pois, para ele o que nos força pensar é o signo, pois ele é objeto de um encontro e é a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. Para Deleuze (1987), o ato de pensar não decorre de uma simples possiblidade natural, é ele a única criação verdadeira. Assim, a contingência desse encontro faz com que Maria reviva sua experiência violenta marcada pela construção da memória e pelo silêncio a partir do signo cicatriz: “Ergue os olhos para o céu na súplica do silêncio. A mente recua na trajetória distante, mais veloz que a estrela cadente. Baixa os olhos para a terra infértil, salpicada de ervas tisnadas” (Chiziane, s/d, p. 97).
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Com isso, é possível observar, de um lado, a escrita como forma de transmitir o que não se consegue dizer, do outro, a total ausência de verbalização. Logo, o silêncio faz-se presente como se a autora quisesse mostrar que as reflexões podem ser realizadas também pelo sentir. Segundo Pierce (1977), o conhecimento não se dá apenas pela via da razão, mas também pelo sensitivo, pelo sensorial, por relações analógicas, pelas semelhanças e dessemelhanças. Seguindo a análise de Pierce, chega-se às considerações de Kovadloff (2003) quando se pensa o silêncio como forma de manifestação do sentir e também do pensar. Para Kovadloff há duas modalidades de silêncio: o da oclusão e o da epifania. O da oclusão corresponde a uma palavra rejeitada, há um discurso que é possível, mas que é rejeitado pelo medo. Já o silêncio da epifania relaciona-se à revelação plena da palavra. Nota-se com isso que no conto de Paulina faz-se presente o silêncio da oclusão, uma vez que ele é orientado pela percepção de mundo da personagem, pelo trajeto de seu olhar e pelas pulsões internas. É um silêncio associado ao lugar de reflexão, isto é, um vazio em que o indizível é relacionado a algo ainda oculto, mas que existe. É um silêncio metaforizado que representa, ao mesmo tempo, ausência e presença. Logo, ele (silêncio) tem um papel extremamente relevante na narrativa, já que é o dizer não-dito é um espaço que permite o deslocamento do sujeito e dos sentidos. No contexto do conto de Paulina Chiziane, é possível observar que ele, em si, constitui um lugar de memória já que guarda um passado conhecido e encena ambientes de memória ao fazer referência ao ritual tradicional da cultura africana de contação de história. Isso ocorre no momento em que Maria inicia seu relato e em seu entorno há um grupo de pessoas esperando pela história que será contada; “Vamos, conta-nos tudo, Maria, pareciam incitar as vozes em silêncio” (Chiziane, 1994, p. 130). Mais adiante, outra voz de um dos ouvintes é pronunciada: “E depois?” (Chiziane, 1994, p. 133). Com essas referências é possível ainda abordar o conceito de lugar de memória adotado por Pierre Nora (1993). No conto, o conceito configura-se como um lugar topográfico, já que registra situações vividas pelas mulheres moçambicanas em determinada época da história da África. Cabe ressaltar ainda que um dos elementos essenciais que confirma o caráter social da memória é a linguagem. É pela linguagem que se estabelecem as interações sociais reveladoras das identidades que por sua vez, remete à oralidade, confirmando assim, a ambientação de memória oferecida no conto. Com relação à personagem Maria, fica evidenciada ainda a memória silenciada pelo peso da tradição. Uma mulher que não teve a oportunidade de fazer as escolhas que pudessem guiar a própria vida é
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Luciana de Barros Ataide As cicatrizes de Maria: entre dores e rupturas
Luciana de Barros Ataide As cicatrizes de Maria: entre dores e rupturas
obrigada a silenciar e aceitar a ordem paterna de abandono do lar. O longo silêncio sobre o passado fê-la resistir ao tempo e ao esquecimento até o momento do desabafo. Sobre a memória silenciada, Michael Pollak diz que “... silêncio sobre o passado está ligado em primeiro lugar à necessidade de encontrar um modus vivendi com aqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de consentimento tácito, assistiram à sua deportação” (Pollak, 1989, p. 3). Essa foi exatamente a forma que Maria encontrou para resistir às dificuldades encontradas até ter coragem suficiente para falar da própria história e encontrar um espaço no qual pudesse reforçar os laços de pertencimento perdido e compartilhar essa memória silenciada. Ao se sentir pronta para relatar sua situação é como se Maria tivesse passado por um processo de reconstrução. Sobre isso, Michael Pollak diz que “através desse trabalho de reconstrução de si mesmo o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros” (Pollak, 1989, p. 11). Nesse aspecto, observa-se que a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros visando aos critérios de aceitabilidade e de credibilidade. Logo, a situação vivida por Maria confirma que a constituição da memória de um indivíduo é uma combinação das memórias dos diferentes grupos dos quais ele participa e sofre influência, seja na família, na escola, em um grupo de amigos ou em um ambiente de trabalho. Com relação ao silêncio associado à memória, esse aspecto parece ser retomado no conto quando aparece mais uma personagem que se emociona com o relato de Maria. Isso remete à constatação de que a situação vivida por Maria foi apenas mais uma de tantas outras Marias:
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Com isso, é possível observar que perante toda a trágica história relatada, os ouvintes permanecem estáticos, pois o relato ultrapassa o limiar de uma recordação. É um fato como muitos que já foram e outros que ainda virão. Nesse contexto, a linguagem, quando tomada como forma de compreensão da própria vida passa a estar envolta pelo silêncio uma vez que ele é o intervalo mediador entre a busca existencial e a tentativa de compreensão dos elementos sociais que
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Na caserna de Maria há uma mulher que chora, e os soluços sincronizam com a makwayela das palmeiras. Os corvos em revoadas grasnam agouros, as nuvens já abalaram e o sol voltou a abrasar. As águas do Índico balançam com mais força sob o domínio do vento sul. No coração da noite haverá tempestade (Chiziane, 1994, p. 133).
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determinam os comportamentos humanos. Isso significa que linguagem e sujeito estão em constante movimento, transitando entre o dito e o não-dito. Assim, pela memória enquanto signo, pela relação de lugar da memória e pela referência à memória silenciada, o conto de Paulina remete para a importância da conscientização da posição marginalizada e oprimida das mulheres como ponto de partida para a emancipação. Considerações finais Ao escrever o conto As cicatrizes do amor, Paulina Chiziane, apresenta, com sua narrativa, elementos essenciais para a compreensão da condição humana, já que trabalha com a verossimilhança. E o faz como forma de reconstruir o ser humano e denunciar suas vicissitudes. Essa possibilidade de criação é possível por meio dos efeitos estéticos produzidos na imaginação do leitor. Assim, ao se tomar o conto de Paulina e analisá-lo a partir do recurso transgressor da escritora ao denunciar as relações de gênero, observa-se que a linguagem literária além de possibilitar o processo criativo, vale-se também como forma de revelar a realidade humana e todas as suas vicissitudes. Isso porque o ato de escrever se dá pelo desnudamento do mundo, e, consequentemente, do homem porque, ao escrever, o autor transfere para a obra certa realidade. Portanto, chega-se a uma ideia de que o ato da escrita exige uma espécie de pacto entre autor e leitor para que ambos possam colaborar na transformação do mundo. Nessa perspectiva, a intenção foi mostrar a posição ocupada pela mulher moçambicana e as imposições de uma sociedade vítima do colonialismo através de uma reflexão acerca do gênero, da identidade, da construção da memória e do sentido do silêncio. Isso porque a narrativa de Paulina não está voltada apenas para a problemática feminina, mas também para um repensar dos valores e dos costumes de uma sociedade, numa tentativa de mostrar a mulher capaz de escrever seu próprio destino, livre das imposições masculinas e culturais.
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Referências
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Carlos Nédson Silva Cavalcante | Regina Célia Fernandes Cruz As vogais médias pretônicas no português falado em Bragança (PA)
AS VOGAIS MÉDIAS PRETÔNICAS no português falado em Bragança (PA): análise acústica preliminar
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Resumo: Este trabalho apresenta a pesquisa As Vogais Médias Pretônicas no Português Falado em Bragança (PA): Análise acústica. Seu principal objetivo é caracterizar acusticamente as vogais orais átonas, especificamente as vogais médias, em posição pretônica, desta variedade falada na Amazônia Paraense. O corpus é constituído de amostras de fala de 18 informantes nativos de Bragança (PA) estratificadamente distribuídos por faixa etária, sexo e escolaridade, que foram gravados em dois tipos de protocolo: a) teste de projeção de imagens e b) fala lida. Para a composição dos instrumentos de coleta de dados, foram selecionados 74 vocábulos de maior frequência de ocorrência nos corpora sociolinguísticos já existentes sobre as variedades linguísticas estudadas do Pará. Os dados foram segmentados em seis níveis no programa PRAAT e estão sendo tomadas as medidas de média e desvio padrão de F1e F2 (Hz) das vogais médias alvo na posição pretônica. Além da análise no PRAAT, se se prevê igualmente o uso do software R para tratamento estatístico a ser analisado. São também previstas medidas das vogais tônicas destes 74 vocábulos com o objetivo de apresentação de um espaço vocálico de referência. Conforme o corpus já analisado, que compreendem 324 ocorrências das vogais médias pretônicas, observou-se que a tendência dos falantes do dialeto de Bragança (PA) é pela realização da manutenção e que as ocorrências das vogais altas não são referentes às vogais subjacentes, mas resultado de variação das vogais médias em posição pretônica. Palavras-chave: Vogais médias. Vogais pretônicas. Análise acústica.
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Carlos Nédson Silva Cavalcante Regina Célia Fernandes Cruz
Carlos Nédson Silva Cavalcante | Regina Célia Fernandes Cruz As vogais médias pretônicas no português falado em Bragança (PA)
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Projeto Descrição Sócio-Histórica das Vogais do Português (do Brasil) coordenado por Dr. Marco Antônio de Oliveira (PUCMG) e Dr. SeungHwa Lee (UFMG) e do qual fazem parte 15 outras instituições nacionais além da UFPA.
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Este artigo trata de uma apresentação das ações do projeto Norte Vogais vinculado ao projeto nacional denominado Descrição Sócio Histórica das Vogais do Português do Brasil – PROBAVO1– com o objetivo de realizar uma investigação para descrever as realizações fonéticas das vogais nos dialetos do Sul ao Norte do Brasil. O projeto Norte Vogais conta com amostras de fala de informantes nativos de cinco municípios do Pará no seu banco de dados: Belém, Barcarena, Cametá, Mocajuba e Bragança. A variação no âmbito das vogais médias, em contexto átono, constitui uma das características marcantes do Português do Brasil em decorrência da atuação do processo de alteamento.O artigo fornece uma análise preliminar das pesquisas realizadas pelo grupo Projeto Norte Vogais ao analisar acusticamente as vogais médias pretônicas do português falado na cidade de Bragança-PA. Todas são descrições sociolinguísticas de cunho variacionista que, portanto, apresentam um tratamento quantitativo dos dados. Nas localidades já estudadas observou-se a preferência pela preservação das médias pretônicas em detrimento do alteamento, o que ocorre em todos os resultados sobre as variedades do português da Amazônia paraense. Os estudos também confirmam que as ocorrênciasde alteamento das vogais médias pretônicas nos dialetos paraenses são motivadas por uma clara harmonização vocálica, principalmente condicionada pela vogal da sílaba tônica e pela sílaba imediata, que contempla as hipóteses de Câmara Jr (1969), que afirmava ser o alçamento da pretônica determinado pela altura da vogal da tônica e de Silva Neto (1957), que afirmava ser o alçamento ainda mais favorecido por sílaba com vogal alta contígua e imediata à sílaba da vogal pretônica. Há o registro de raros estudos sobre o tema na variedade do português falado na Amazônia Paraense (Nina, 1991; Freitas, 2001) antes do trabalho da equipe do projeto Norte Vogais. Os estudos apresentados por Freitas (2001) sobre o dialeto bragantinojuntam elementos que destacam a predominância das variantes médias em detrimento das baixas e altas, sendo estas duas registradas com menos frequência. No sentido de ampliar os conhecimentos já realizados, propomo-nos a analisar as realizações variacionais fonéticas das vogais
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Introdução
Carlos Nédson Silva Cavalcante | Regina Célia Fernandes Cruz As vogais médias pretônicas no português falado em Bragança (PA)
médias pretônicas no falar da cidade de Bragança (PA),cuja síntese dos resultados apresentaremos a seguir. A Comunidade pesquisada Bragança está relacionada com a história da conquista da Amazônia durante o Período Colonial. Tem uma área de 2.091.919 km² e está localizada na região Nordeste do Pará. É um dos municípios mais populosos do estado do Pará com uma população de 113.227 habitantes, o que equivale a 1.5% da população do Estado. A atividade pesqueira é um dos principais pilares de sustentação econômica desta região que se configura como um dos maiores produtores de pescado do estado do Pará, exportando sua produção principalmente para as capitais do Nordeste e para o próprio Estado do Pará. Em relação à Educação, o ensino formal de Bragança é regido pelas esferas Federal, Estadual e Municipal. São mais de 240 escolas contando com as instaladas nas localidades regidas pelo município, que oferecem o Ensino Fundamental e Médio, e três instituições de Ensino Superior.
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A amostra de fala que compõem o banco de dados da presente pesquisa foi coletada em trabalhos de campo com gravações de áudio. Com base nos pressupostos da Teoria da Variação o estudo sobre as vogais médias pretônicas no dialeto bragantino priorizou uma amostra de fala de 18 informantes residentes na área urbana, correspondentes a 09 perfis de falantes do sexo masculino e 09 do sexo feminino, estratificadamente distribuídos nos três níveis de escolaridade (Fundamental, Médio e Superior) e três faixas etárias (15 a 25 anos, 26 a 45 anos e acima de 46 anos). A amostra utilizada para o presente artigo constitui-se apenas de 06 informantesdo corpus total, pertencentes à primeira faixa etária (15 a 25 anos).Na seleção dos informantes levaram-se em conta os seguintes critérios: ser nascido em Bragança ou ter fixado residência antes dos 25 anos caso não tenha nascido na cidade e não poderia ter ficado por mais de dois anos residindo em outra cidade. O levantamento dos dados consistiu em gravações da leitura de um texto em que os informantes eram induzidos a produzirem vocábulos contendo as vogais alvos. Os dados analisados compreendem 324 realizações de vogais médias em posição pretônicas. Serão apresentados apenas os resultados dos dadosjá analisados, pois a pesquisa ainda não foi totalmente concluída.
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Procedimentos metodológicos adotados
Carlos Nédson Silva Cavalcante | Regina Célia Fernandes Cruz As vogais médias pretônicas no português falado em Bragança (PA)
Análise quantitativa Conforme o corpus analisado observou-se que a tendência dos falantes do dialeto de Bragança-PA é pela realização da manutenção em posição pretônica. A grande maioria dos resultados apresentou a vogal média nesta posição, tanto na série anterior –[] quanto na posterior –[]. Foram registrados para os informantes do sexo masculinocento e dez casos de manutenção –[]/[], vinte e nove casos de abaixamento –[]/[] e quinze casos de alteamento –[]/[]. Para os informantes do sexo feminino as ocorrências registradas foram cento e seis casos de manutenção –[]/[], vinte e oitocasos de abaixamento – []/[]e vinte e setecasos de alteamento –[]/[]. Vale ressaltar que as ocorrências das vogais altasnão são referentes às vogais subjacentes, mas resultado de variação das vogais médias em posição pretônica. Levando-se em consideração a variável sexo, os casos de alteamento registaram um maior número de ocorrências entre os informantes do sexo feminino (27), apresentando uma diferença de doze casos a mais que os informantes do sexo masculino (15). Quanto à manutenção, os informantes do sexo masculino registraram 110 ocorrências e os do sexo feminino registraram 106. Os informantes do sexo masculino registraram 29 ocorrências de abaixamento e os do sexo feminino registraram 28. Nota-se que as ocorrências de alteamento e abaixamento registram valores aproximados. Variantes Vogal alvo anterior Vogal alvo posterior 58 15 05 52 14 Masculino 10 13 63 14 14 43 14 Feminino Figura 1: Lista dos vocábulos com a vogal alvo registrando o número de ocorrências de cada variante referente à variável sexo.
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Considerando a variável escolaridade, registrou-se um maior índice de casos de manutenção para os informantes do sexo masculino pertencentes aos níveis Fundamental e Superior, mantendo-se em trinta e nove ocorrências para cada nível. No nível Médio o índice de manutenção registrado é maior para os informantes do sexo feminino, com trinta e cinco ocorrências. Quanto aos casos de alteamento, o nível Superior foi o que registrou os valores mais distantes. Foram registradas dezocorrências para informantes femininos de nível Superior e apenas duas ocorrências para informantes masculinos, sendo
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Sexo
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que esse registro está relacionado a ocorrências de vogais médias pretônicas anteriores. Quanto ao abaixamento, observou-se que o nível Médio mantém os mesmos valores de ocorrências para informantes masculinos e femininos, totalizando onze ocorrências para cada. O mesmo ocorre no nível Superior, que totalizam nove ocorrências para cada. Nº. de Ocorrências Ens. Ens. Médio Ens. Superior Fundamental Masc. Fem. Masc. Fem. Masc. Fem. 06 09 07 08 02 10 Alteamento 39 36 32 35 39 33 Manutenção 09 08 11 11 09 09 Abaixamento Figura 2: Lista dos vocábulos com a vogal alvo registrando o número de ocorrências de cada variante referente à variável escolaridade.
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De acordo com as descrições sociolinguísticas já realizadas, as vogais médias pretônicas do português falado na Amazônia Paraense possuem três realizações possíveis: manutenção (m[]eda), alteamento (m[]eda) ou abaixamento (m[]eda). A partir das variantes detectadas os vocábulos foram classificados em invariantes– aquelesque admitem uma única forma; em totalmente variantes– aquelesque admitem as três variantes e os vocábulos variantes– aquelesque admitem duas variantes possíveis. De acordo com o corpus utilizado, trinta dos cinquenta e um vocábulos do corpus registraram uma única forma de realização da vogal alvo. Portanto, os vocábulos -apos[]ntado (6), -b[]bida (6), b[]neca (6), -cab[]ludo (6), -c[]rtificado (6), -c[]rveja (6), c[]légio (6), -c[]mandante (6), -dez[]sseis (6), -[]scravo (4), []stante (4), -f[]chado (6), -fut[]bol (5), -h[]spital (6), -m[]rador (6), -nam[]rado (6), -pr[]ciso (6), -pr[]sente (6), -pr[]sidente (6), pr[]sídio (6), -pr[]cissão (6), -pr[]fundo (6), -qu[]rida (6), r[]médio (6), -r[]polho (6), -r[]ndônia (6), -s[]tenta (6), -t[]soura (6), -t[]mate (6), -v[]rgonha (6) ocorrem em todo o corpus analisadocom uma única forma de vogal média pretônica. Observa-se que nesses vocábulos invariantes, as variantes de maior ocorrência foram a manutenção, que apresenta vinte e doisvocábulos e o abaixamento, com sete vocábulos. Observa-se igualmente que o único vocábulo com vogal pretônica anterior a ser realizado com alteamento foi -fut[]bol. Os casos de abaixamentos são identificados em quatro vocábulos com vogais alvo anteriores -pr[]sente, -r[]médio, -
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Casos
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s[]tenta, -v[]rgonha, bem como em três vocábulos com vogais alvos posteriores -c[]légio, -m[]rador, -nam[]rado. Identificamos no corpus apenasum vocábulo totalmente variante, ou seja, que admite as três variantes previstas para as vogais médias pretônicas. O vocábulo m//eda registrou as três variantes -m[]eda, m[]eda e -m[]eda - nos corpora dos falantes da faixa etária analisada. Das ocorrências foram registradas quatro realizações de abaixamento -m[]eda. As outras duas ocorrências foram realizadas por informantes do sexo feminino, sendo uma de nível Fundamental, que realizou a manutenção - m[]eda, e a outra, de nível Superior, que realizou o alteamento -m[]eda. Quanto aos vocábulos variantes, os que admitem mais de uma variante, foram registrados dez ocorrências para as vogais anteriores e doze para as vogais posteriores.
d//zesseis
Vogal /e/ Variante 01 d[]zesseis
Variante 02 d[]zesseis
//mprego m//nino mosqu//te iro p//queno
[]mprego m[]nino mosqu[]te iro p[]queno
[]mprego m[]nino mosqu[]te iro p[]queno
p//scador s//gundo s//nhora
p[]scador s[]gundo s[]nhora
p[]scador s[]gundo s[]nhora
t//atro v//ado
t[]atro v[]ado
t[]atro v[]ado
Dado
ap//senta do b//rracha c//mer c//ruja
Vogal /o/ Variante 01 ap[]senta do b[]rracha c[]mer c[]ruja
Variante 02 ap[]senta do b[]rracha c[]mer c[]ruja
c//stureir a c//zinha d//mingo m//squete iro p//lícia r//cambol e s//brinho t//alha
c[]stureir a c[]zinha d[]mingo m[]squete iro p[]lícia r[]cambol e s[]brinho t[]alha
c[]stureir a c[]zinha d[]mingo m[]squete iro p[]lícia r[]cambol e s[]brinho t[]alha
Dado
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Dos vocábulos variantes registramos o maior índice para as ocorrências de alteamento, ao todo oito para as vogais médias pretônicas anteriores e dez para as vogais médias pretônicas posteriores. Alguns casos de alteamento são ocasionados pelo processo de harmonização vocálica, que consiste na assimilação que a vogal média faz do traço de altura da vogal alta da sílaba seguinte, como é o caso registrado em -m[]nino, que passa a -m[]nino, e -c[]ruja, que
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Figura 3: Lista dos vocábulos com a vogal alvo registrando mais de uma variante emtodo o corpus davariedade de Bragança (PA).
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passa a -c[]ruja. Bisol (1981) enfatiza que o processo de harmonização vocálica das vogais médias pretônicas é claramente favorecido pelo contexto de uma vogal alta em sílaba subsequente. Câmara Jr. (1969) afirma que o processo de harmonização vocálica ocorre quando a vogal média pretônica é condicionada pela vogal da sílaba tônica ou sílaba imediata, ou seja, o alteamento da pretônica é determinado pela altura da vogal da tônica. Silva Neto (1957) também contempla a mesma ideia ao afirmar que o alteamento é mais favorecido por sílaba com vogal alta contígua e imediata à sílaba da vogal pretônica. Para os casos de abaixamento registramos dois vocábulos para as vogais médias pretônicas anteriores -p[]queno, -p[]scador -e três para as vogais médias pretônicas posteriores-b[]rracha, -r[]cambole, -m[]eda. Vocábulos variantes com ocorrência de alteamento como d[]mingo e -[]mprego foram registrados com maior índice pelos informantes do sexo feminino, nos três níveis de escolaridade. Apenas um informante do sexo masculino, nível Médio realizou a ocorrência d[]mingo. Outros como -p[]lícia e -s[]brinho foram especificamente realizadas por informantes do sexo feminino, sendo uma de nível Fundamental e a outra de nível Superior. Com o vocábulo -c[]zinha também ocorreu o mesmo, em que se manteve uma realização pelo informante feminino de nível Superior e a outra realização por uma informante de nível Médio. De todos os vocábulos do corpus apenas um mostrou-se bastante definido considerando a variante sexo. O vocábulo -//mprego apresentou duas realizações, nas quais as ocorrências com manutenção -[]mprego foram todas registradas pelos informantes do sexo masculino e as ocorrências com alteamento -[]mprego foram todas realizadas pelos informantes do sexo feminino.
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Consideramos também algumas variáveis linguísticas com relação à elevação da vogal média, apresentamos contextos linguísticos favorecedores. Os contextos precedentes são: Fricativas labial (v[]ado) apenas para as vogais anteriores, e coronal (s[]nhora, s[]gundo, s[]brinho); As oclusivas coronal (d[]zesseis, d[]mingo, t[]atro, t[]alha), dorsal (mosqu[]teiro, c[]ruja, c[]zinha), e labial (p[]lícia) apenas para as vogais posteriores; Posição inicial de sílaba associada à nasalidade ([]mprego); Nasal labial (m[]nino, m[]squiteiro);
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Fatores linguísticos favorecedores
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Para o contexto linguístico seguinte temos: Fricativa coronal (d[]zesseis, ap[]sentado, m[]squeteiro); Nasal coronal (m[]nino, s[]nhora) para as vogais anteriores e nasal labial (c[]mer) para as vogais posteriores; Líquidas (p[]lícia) e o tepe (c[]ruja) para as vogais posteriores; As oclusivas coronal e dorsal (mosqu[]teiro, s[]gundo ) para as vogais anteriores, e labial (s[]brinho) s para as vogais posteriores; Presença de vogal alta na sílaba tônica ou contígua (m[]nino, c[]ruja - harmonização vocálica). Presença de vogal baixa na sílaba tônica ou contígua (t[]atro, t[]alha, v[]ado). Os resultados apresentados no presente trabalho não diferem das informações de Freitas (2001), quanto aos contextos vocálicos favorecedores às variantes []/[] (manutenção), []/[] (abaixamento) e []/[] (alteamento). Os contextos foram as vogais imediatamente seguintes, independentemente da tonicidade, por processo de assimilação. As informações apresentadas por Freitas (2001) sobre a predominância da variante manutenção, em detrimento das baixas e altas, também estão de acordo com os resultados da presente pesquisa, inclusive o fato de a variante alta ser registrada com menos frequência.
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Para realizar a análise acústica, procedeu-se em primeiro lugar, à segmentação dos vocábulos alvos em seis níveis e, para isso, utilizouse o programa para análise de fala PRAAT, bem como as recomendações de Ladefoged e Maddieson (1996) e Ladefoged (2001; 2005).Em seguida, tomaram-se as medidas acústicas das realizações – frequência fundamental (f0), formantes (f1 e f2) e duração (ms). Em geral, as análises acústicas têm confirmado os resultados das descrições sociolinguísticas de que a manutenção das médias é a variante de maior ocorrência no português falado na Amazônia paraense. No estudo acústico empreendido sobre o sistema vocálico do português falado no dialeto bragantino compreendeu, além da descrição das três variantes das vogais médias pretônicas – // e // – tradicionalmente identificadas na literatura sobre o assunto, a saber: alta ([] e []), média ([] e []) e baixa ([] e []),detectou-se a ocorrência de uma quarta variante no nível acústico:o desvozeamento de vogais médias pretônicas. Observou-se no corpus controlado para as
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Análise acústica
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análises acústicas que as variantes baixas têm ocorrência bem maior do que o alteamento das médias pretônicas, característico do português falado na Amazônia paraense. Calcularam-se apenas as médias dos valores em Hz de F1 e F2 para uma análise acústica preliminar com os dados de fala lida. Os resultados mostram que no caso das vogais anteriores, tanto na fala masculina quanto na fala feminina, a variante alta ocupa quase o mesmo espaço acústico que a variante média fechada e ambas se apresentam bem distantes da variante baixa. Já as vogais posteriores são bem discriminadas acusticamente, tanto na fala masculina quanto feminina, conforme exposto na figura4. Média Variante
Nº de Ocorrências F1 Masc. Fem.
F2 Masc. Fem.
Masc.
Fem.
10
13
356
422
1984
2125
58
63
376
467
1916
2045
15
14
458
572
1868
2235
05
14
375
369
1351
1421
52
43
437
490
1254
1294
14
14
567
645
1214
1249
Figura4: Número de ocorrências, média das frequências (Hz) de F1 e F2 das variantes das vogais médias pretônicas.
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O gráfico a seguir mostra o espaço acústico das variantes das vogais pretônicas do corpus de fala lida de Bragança-PA.
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2400 2100 1800 1500 1200 900 600 300 0
F1 MASC F1 FEM F2 MASC F2 FEM
Figura 5:Médias de valores de Hz de F1 e F2 das três variantes das vogais médias pretônicas do corpus de fala lida da variedade de BragançaPA.
No que diz respeito ao desvozeamento vocálico, em geral, “são as vogais altas / / e / /, que, sendo intrinsecamente curtas e tendo a configuração da cavidade oral de menor tamanho, tendem a perder o vozeamento” (Menezes, 2012). Dos casos de desvozeamento das vogais médias pretônicas detectamos noveocorrências: -d//zesseis (2), -//scravo (2), -//stante (2), -fut//bol (1), -m//squeteiros (2).
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Apresentamos neste artigo as ações do projeto Norte Vogais que tem como objetivo caracterizar acústica e quantitativamente as vogais orais átonas das variedades estudadas da Amazônia Paraense pela equipe da UFPA vinculada ao PROBRAVO. Apresentaram-se especificamente os resultados preliminares alcançados com as análises quantitativa e acústica das vogais médias pretônicas da variedade do português falada no município de Bragança (PA). O material analisado compreendeu amostras de fala de seis informantes nativos de Bragança-PA com faixa etária de 15 a 25 anos e estratificados socialmente em sexo e nível de escolaridade que foram gravados em situação de fala lida. Os mesmos produziram cinquenta e um vocábulos contendo as vogais pretônicas alvo, a partir da leitura de um texto sobre futebol. Ao todo se analisaram324 ocorrências das vogais médias em posição pretônica. Dos resultados obtidos pela análise os vocábulos foram classificados em invariantes – b[]bida, -b[]neca, -c[]légio, fut[]bol, -pr[]sente - ; totalmente variantes – m//eda (-m[]eda, m[]eda e -m[]eda) – e variantes -d[]/[]zesseis, -p[]/[]scador, b[]/[]rracha, -c[]/[]ruja.
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Conclusão
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De maneira geral, tanto a análise quantitativa quanto a acústica dos dados tem confirmado que a manutenção é a variante de maior ocorrência, bem como confirma a hipótese de harmonia vocálica no caso do alteamento das vogais médias pretônicas no dialeto em questão.Entretanto, destoando das descrições sociolinguísticas, uma frequência de ocorrência das variantes baixas -[] e -[] – maior do que as variantes altas -[] e -[] – éregistrada no corpus de fala lida do presente estudo. Na análise acústica foi detectada uma quarta variante, a desvozeamento, caracterizada pela perda do traço fônico vocálico. O processo de abaixamento alcança a casa dos 18% no dialeto bragantino na computação geral dos dados. O processo de alteamento não é tão frequente no dialeto em questão, abrangendo apenas 13% das realizações de vogais médias pretônicas. A regra de redução é mais atuante. O processo de manutenção representa 69% das realizações. Vale ressaltar que este ainda é um estudo preliminar e logoé válido aprofundarem-se os estudos, procurando aplicar os fenômenos acústicos aqui expostos, e esperamos mostrar, em breve, seus resultados finais.
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BISOL, L. Harmonia Vocálica: Uma regra variável. Porto Alegre (RS): UFRGS, 1981. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (RS), 1981. CÂMARA JR, J. M. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1969. CAMPELO, M. A Variação das Vogais Médias Anteriores Pretônicas no Português Faladono Município de Breu Branco(PA): uma Abordagem Variacionista.Belém (PA):UFPA/ILC/FALE. (Trabalho de Conclusão de Curso em Letras). Faculdade de Letras,Universidade Federal do Pará, 2008. CAMPOS, S. Alteamento vocálico em posição pretônica no português falado no Município de Mocajuba-Pará. Belém (PA): UFPA, 2008. Dissertação (Mestrado em Letras). Curso deMestrado em Letras, Universidade Federal do Pará, Belém (PA), 2008. CRUZ, R. et al. As Vogais Médias Pretônicas no Português Falado nas Ilhas de Belém (PA). In ARAGÃO, S. (Org.). Estudosem fonética e fonologia no Brasil. João Pessoa (PB): GTFonética e Fonologia / ANPOLL, 2008. DIAS, M.; CASSIQUE, O.; CRUZ, R. O alteamento das vogais pré-tônicas no português falado na área rural do município de Breves (PA): uma abordagem variacionista. RevistaVirtual de Estudos da Linguagem
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Referências
Carlos Nédson Silva Cavalcante | Regina Célia Fernandes Cruz As vogais médias pretônicas no português falado em Bragança (PA)
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Ediane Maria Guimarães Monteiro | Glayce de Fátima da Silva | Joel Cardoso Aulas de língua materna: música infanto-juvenil em diálogo com outras artes
AULAS DE LÍNGUA MATERNA: músicas infanto-juvenis em diálogo com outras artes
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Resumo: Este trabalho advém da necessidade de contribuir com o fazerdocente dos professores de Português, mas não abarca as vastas possibilidades de fazê-lo, apenas apresenta algumas sugestões de atividades referentes à música. Sua linha central consiste em contemplar a música em aulas de Língua Materna, tendo como objeto de estudo a música como subsídio metodológico no processo de ensinoaprendizagem de Português. Desse modo, definiu-se o objetivo geral: apontar e descrever como a música pode ser utilizada como subsídio metodológico no processo de ensino-aprendizagem de Língua Materna. Em vista desse objetivo, definiram-se questões mais específicas, tais como: Delinear conceitos sobre música enquanto modalidade artística; definir as relações intersemióticas que se estabelecem entre as diversas modalidades artísticas; assinalar como as aulas de Língua Materna podem ultrapassar as fronteiras do ensino da Gramática; propor metodologias intersemióticas para o ensino-aprendizagem de Língua Materna, tomando a música como ponto de partida para o diálogo com outras artes. Apresenta-se assim, alguns desdobramentos conceituais sobre: semiótica; artes; a linguagem intersemiótica entre as artes; a arte musical; e aulas para além das fronteiras gramaticais. Aponta-se a relevância deste trabalho em virtude de demonstrar como a música pode contribuir para a ampliação do horizonte de leitura dos alunos, indicando formas de fazê-lo. Palavras-chave: Língua Materna. Música. Artes. Intersemiótica.
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Ediane Maria Guimarães Monteiro Glayce de Fatima Fernandes da Silva Joel Cardoso
Ediane Maria Guimarães Monteiro | Glayce de Fátima da Silva | Joel Cardoso Aulas de língua materna: música infanto-juvenil em diálogo com outras artes
Introdução
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Este trabalho partiu dereflexõesacerca da prática docente no ensino de Língua Portuguesa e Literatura, conduzindo-nos a propor estratégias que viessem a contribuir com o processo de ensinoaprendizagem. Não nos propusemosa abarcaras vastas possibilidades do fazer docente, detivemo-nos, pois, a lançar mão de atividades referentes à música em aulas de Língua Materna em diálogo com outras artes. Nesse sentido,apresentamos sugestões de como explorar a música em sala de aula, não a restringindo tão somente à sua letra, mas considerando-amelodicamente e, sobretudo, enquanto arte. Dessa maneira, indicamos metodologias de ensino adequadas aos recursos de que dispomos (seja a música, pintura, cinema, literatura etc.). Dedicamos algumas linhas deste trabalho para fazerum breve apanhado teórico sobre: semiótica, no que toca as relações que marcam as linguagens artísticas humanas; arte, que permitiu-nos caminhar de forma mais sólida em nossas propostas; a linguagem intersemiótica das artes; além da definição conceitual de música, enquanto modalidade artística; e sobre aulas de Língua Portuguesa, objetivo de nossas reflexões. Posteriormente, compartilhamos algumas de nossas propostas com base nas necessidades e experiências de nossa prática docente na educação básica. Para tal, definimos três compositores/intérpretes: Adriana Calcanhotto, Vinícius de Moraes e Toquinho, e a partir de suas músicas/composições tecemos diálogos com outras artes. Ponderamos que se faz necessário instigar a capacidade comunicativa dos alunos, o que não pode ser restrito à comunicação verbal, seja ela oral ou escrita. A música é utilizada pelo homem com objetivo comunicativo, bem como as diversas simbologias de que se utiliza para estabelecer comunicação, tais como pintura, jogos, esculturas etc. Assim, surgiu a necessidade de abordar as intercomunicações entre as artes, tomando a música como ponto de partida. Ressaltamos que não tivemos a pretensão de inovar as aulas de Língua Portuguesa, mas de contribuir com a prática docente, sobretudo a que sedesdobra na educação básica, junto ao públicoinfanto-juvenil.
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Ediane Maria Guimarães Monteiro | Glayce de Fátima da Silva | Joel Cardoso Aulas de língua materna: música infanto-juvenil em diálogo com outras artes
Música e aulas de língua materna Fundamentos de semiótica As linguagens estão no mundo e nós estamos na linguagem. (Santella, 1983, p. 4)
Para que se caminhe de forma mais sólida nos estudos das artes, faz-se necessário situar nestas linhas o conceito de semiótica. Entendemos que a comunicação não é privilégio excepcionalmente humano, contudo sabe-se que a linguagem animal acontece como mera atitude instintiva, o que se difere da linguagem humana, que é consciente. Dessa maneira, é a partir da apropriação das diversas formas de abordar a linguagem que o professor pode distender sua prática nas aulas de Língua Materna. Segundo instituiu Charles Peirce, asemiótica é a ciência dos signos, dedicadaà observação dos diferenciados sistemas de comunicação humana. Com o passar do tempo, esse termo foi relacionado por alguns estudiosos a um domínio particular, mais precisamente relacionado aos objetos não linguísticos. O termo Semiótica da raiz gregasemeion, etimologicamente significa signo. Para Santaella (1983), a própria vida é uma espécie de linguagem, uma vez que considera que “todos os sistemas e formas de linguagem tendem a se comportar como sistemas vivos, ou seja, eles reproduzem, se readaptam, se transformam e se regeneram como as coisas vivas” (Santella, 1983, p. 6). A autora define que
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Abraçamos a perspectiva teórica de Peirce acercada semiótica, aindaque reconheçamos que o estudo dos signos seja objeto de indagações desde a Grécia Antiga. O que nos interessa de fato na esfera da semiótica peirceana é a possibilidade de estudar a teoria geral dos signos, por nos conduzir a compreendermos semióticas especiais:
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Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido... Caracterizado o campo de abrangência da Semiótica, podemos repetir que ele é vasto, mas não indefinido. O que se busca descrever e analisar nos fenômenos é sua constituição como linguagem.
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Semiótica da linguagem sonora, da arquitetura, da linguagem visual, da dança, das artes plásticas, da literatura, do teatro, do jornal, dos gestos, dos ritos, dos jogos... [...] Nessas Semióticas especiais, que têm por função descrever e analisar a natureza específica e os caracteres peculiares de cada um daqueles campos, brotam necessariamente as práticas de aplicação, isto é, as atividades de leitura e inteligibilidade dos mais diversos processos e produtos de linguagem: um poema, um teorema, uma peça musical[...] uma nota musical prolongada, o silêncio (Idem, p. 8).
Destacamos que dentre essas manifestações de linguagem se estabelecem comunicações, ou seja, inter-relação (pontos de semelhança) existente entre elas, o que nos conduz ao sentido de intersemiótica. Intersemiótica, portanto, é a intercomunicação que marca os diferenciados sistemas de linguagem como literatura, música, cinema, dança, escultura, pintura, dentre outros, mas os citamos por serem esses os pontos de relevo de nosso escopo: a relação das artes, os pontos de comunicação entre elas.
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Neste estudo tomam-se as artes como arquétipos de linguagem, como manifestações produzidas com intuito comunicativo. Salienta-se que as comunicações artísticas são inerentes à atividade humana, que revelam sensações e/ou estado interior do criador, e que a exteriorização do introspectivo mental e sentimental desse criador em geral molda-se ou confere moldes a certas tendências estéticas, o que se dá nas diversas “categorias” artísticas. As tendências e similaridades que se estabelecem entre as artes de determinada época são marcas artísticas históricas, visto que algumas vezes existe a tentativa de reproduzir tendências já vividas, outras vezes tenta-se seguir tendências do momento em que se está inserido, essa característica é própria do fazer artístico. Antes, porém, de permear a correspondência entre as artes, cabe definir arte, termo de origem latinaars, artis, no sentido lato abarcou acepções bastante abrangentes, mas que ganhou novos sentidos ao curso do tempo. Houve épocas em que o “bem comer, vestir e beber” foi compreendido como “a arte do bem viver”, o falareloquentecomo “a arte do bem falar”. Atualmente pode-se delimitar a zona fronteiriça dessa palavra, relacionando-a a modelos, estilos, tendências, categorias, espírito criador, enfim, às especificidades que hoje circundam sua
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Conceituações de arte
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compreensão. A princípio, não é coerente dizer que toda e qualquer forma de expressão, seja ela pessoal ou coletiva,se constitui comoarte. Porém, não negamos a existência de diferentes níveis de produção artística, o que está vinculado diretamente ao juízo ou domínio que se tenha sobre arte, tanto por parte de quem a utiliza para expressar-se, como por quem as aufere. De acordo com Hauser (s.a), não é o nível de erudição de um sujeito que o torna apto a produzir ou apreender o que seja arte, há sim, formas diferenciadas de compreensão, bem como produção, de acordo com o nível de “conhecimento” de cada indivíduo. Parao autor“a obra de arte simultaneamente é forma e conteúdo, afirmação e decepção, jogo e revelação, natural e artificial, intencional e sem finalidade, dentro e fora da história, pessoal e supra-pessoal”.E acrescenta a “originalidade” como elemento de composição de uma obra de arte e a aponta como o mais universal desses elementos representativos. Trazer à tona a questão da originalidade implica em dizer que uma obra necessita apresentar-se ao mundo, apresentar o mundo e apresentar seu mundo, de maneira particular, ou seja, deve se mostrar em caráter próprio, indicando, se necessário, influências ou traços da realidade (do mundo real), mas sem perder de vista seu próprio mundo (originalidade). Dessa forma, lançamospropostas que contribuem para ampliaçãodo horizonte de leitura do aluno, mas com o cuidado de não atribuir às artes a obrigação comunicativaentre elas. Entendemos, pois, que cada modalidade artística vale-se por si só.
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O termo linguagem assume na mente de imediato a ideia do meio de comunicação mais prático e comum que o homem dispõe: a língua. No entanto, a linguagem não consiste apenas no uso de palavras – sejamelas articuladas ou escritas– masem diferenciadas maneiras de comunicação. A “língua” apresenta caráter particular, enquanto linguagem é algo de maior amplitude –emissão, transmissão e recepção de mensagem– quevai além da linguagem verbal. Segundo Latuf (2009), o ponto primário expansivo das produções artísticas está na comunicação do criador para consigo mesmo, posteriormente segue o extravasamento da anedota desse criador, que por sua vez pode desdobrar-se (prolongar-se ou renovarse) em quem contata as sensações projetadas nas artes. De maneira que as artes podem estabelecer relações umas com as outras e não apenas com quem as recepta, o que se denomina “comunicação intertextual”,
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A linguagem em comum entre as artes
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ou seja, correspondências que tocam ou interpenetram as mais variadas “categorias” artísticas, leia-se, assim, linguagens distintas com pontos de comunicação, como a linguagem humana. O autor acrescenta que estudar essas relações não culmina em apontar destaque desta ou daquela arte, tampouco a supremacia de uma sobre a outra, mas simplesmente apreciar e investigar em que situações e de que forma tais artes coligam-se, em relações temporais ou atemporais, em suas tendências, em espírito de época, em temática, em estilo, enfim, diversos pontos podem ser apontados. Vale inferir que a relação de que falamos pode estar relacionada entre manifestações artísticas de mesma categoria e de categorias diferentes, mas é importante frisar que essa relação não se dá como obrigatoriedade, o que não nos impede de observá-las e explorá-las, inclusive em aulas de Língua Portuguesa. Apreciações da arte musical
A música altera nosso estado de espírito. O corpo reage as vibrações dos sons e partir delas, são despertadas emoções que interferem no funcionamento de nosso organismo... A música
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A música tem o poder de nos unir culturalmente e socialmente, é um elemento que consegue mesclar as mais variadas e complexas culturas, desde um ritual mais simbólico e sagrado até o profano. A história da música não é algo que encontra suas bases consolidadas na história contemporânea, muitas pesquisas definem que sua existência é anterior à história do próprio homem, ou seja, na préhistória, o que se torna difícil entender como os “homens das cavernas” concebiam e entendiam a música, uma vez que não se encontravam vestígios arqueológicos algum a respeito dos sons. O próprio pai da ciência, Darwin, foi enfático ao afirmar que a fala humana não surgiu antes da música, pelo contrário, derivou desta, isso significa que ela veio primeiro, sensibilizou e alterou o estado de espírito do homem, dando origemà fala. Segundo assinala Vieira (2007, p. 6):
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Codificamos a música, poetizamos a miséria, metaforizamos a injustiça, subjetivamos a dor, cantamos a nossa língua e a dos outros quando foi necessário. Nunca calamos... Guardamos a viola, tiraram-nos o pandeiro, quebraram-nos o violão, emudeceram o tamborim e mesmo assim nos deixaram a língua, a voz e a música se fez. O poeta se fez. A esperança se fez (Vieira, 2007, p. 5).
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pode alterar e liberar partes reprimidas inscritas em nosso corpo.
A música muita das vezes chama a atenção mais pela melodia, que pela letra, a tal ponto que esta chega a ser secundária, em outras, a letra nos diz tanto, que a melodia fica para segundo plano. Há
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Hoje a música imbrica-se nos mais diversos campos da vida confundindo-se inclusive com o próprio viver. Por isso ela é adotada na religião como expressão dialogal entre o divino e o humano por ser considerada uma das mais belas manifestações do espírito humano. Mais do que qualquer outra forma de expressão artística, a música consegue expressar os mais variados sentimentos humanos: alegria, tristeza, paz, louvor, etc. (Vieira, 2007, p. 7).
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O nosso corpo, o nosso eu, o nosso ser é extremamente motivado pela música, música que nos desperta tristeza, nostalgia, emoções, alegrias que direcionam e até mesmo determinam o caminho de nossas vidas, pois alteram, mudam nosso estado de ânimo. Etimologicamente o termo música tem origem grega e em seu sentido lato era definido como “arte das musas”. Atualmente o termo música é bastante amplo, é uma forma generalizada de reunir inúmeros estilos musicais, gêneros variados, enfim, uma série de fatores que caracterizam tais estilos, o que, por conseguinte, nos leva a perceber que todo e qualquer estilo musical está direcionado a uma determinada época, quer aquela em que foi escrita, ou, alguma outra à qual deseja fazer referência. Isso significa que em meio ao período ou época em que a música foi escrita, percebem-se os motivos, as razões que geraram sua criação e obviamente sua relação com os aspectos sociais, uma vez que a música é um forte instrumento de crítica social, de manifestação, de denúncia, de indignação com determinada situação, enfim, é uma forma de representação da realidade humana de maneira crítica. A música entendida enquanto obra de arte reunia ao mesmo tempo, a poesia e a dança, e no momento de exteriorização todas as três eram praticadas de forma integrada. Daí a relação que se estabelece hoje da música com a poesia e a dança, música que configura-se como um conjunto formado de ritmos, melodias, de cadências bem definidas e ao mesmo tempo composta de poesia, o que se faz perceber através da melo-dramaticidade, da beleza estética pela qual as palavras são carregadas, do lirismo, e do belo que inebria aqueles que ouvem.
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momentos, porém, que tudo lhe prende a atenção, letra e melodia, formando um conjunto extremamente harmônico, que muito lhe diz e lhe faz pensar e refletir. No Brasil, comonão falar de música?Como não reconhecer as riquezase peculiaridades musicais do país? Seria extremamente contraditório viver em um país cujamúsica é composta por influência índio-afro-lusitana (dentre outras) e, enquanto professores, negá-laartística e linguisticamente em nossas salas de aula. Aulas de português para além das fronteiras gramaticais De fato, sob diferentes ângulos, a linguagem sempre exerceu sobre as pessoas certo fascínio e aguçou-lhes bastante a curiosidade (Antunes, 2007, p. 111).
A vida do ser humano em sociedade está intimamente ligada à linguagem, é através dela que o homem consegue interagir em sociedade. Segundo Antunes (2007), esse aspecto da linguagem é deixado em segundo plano em detrimento da gramática nas aulas de Português. A autora afirma que muitos professores ainda postulam a gramática como algo infalível, como se a gramática fosse algo completo e exato. O que pretendemos enfatizar de fato, é que as aulas de Português, assim como o professor de Língua Portuguesa, não devem tomar a gramática como o único instrumento de ensino de Português, mas como um aparato, um suporte para ajudar o professor a decidir algumas situações de uso da língua. Segundo aponta Antunes,
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Assim entendemos que a língua quão ampla como é não poderia estar totalmente contidanas gramáticas, o que nos leva a perceber que há ainda muito a ser estudado, pesquisado e descoberto, uma vez que a língua é um organismo vivo. Ressaltamos que somos a favorda gramática, mas é preciso desmistificá-la e abrir mãodas concepções tradicionais de ensino. O grande desafio é colocar o aluno em contato direto com a língua vivaque está presentenas conversas, nos debates, nos livros, nos
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o que interessa no momento é mostrar que a consulta aos manuais de gramática não deve ser o único respaldo que procuramos para decidir sobre usos alternativos da língua. Buscar, em primeira mão e, por vezes, unicamente o manual de gramática implica que transferimos para os gramáticos toda a autoridade sobre como dizer o que queremos (Antunes, 2007, p. 114).
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anúncios publicitários, nos avisos, nos outdoors, enfim, é preciso instigar o aluno a observar, pesquisar, criticar e absorver para si uma ideia concreta entre o que a gramática postula e o que a língua apresenta cotidianamente. Para Antunes (2007): Sairia fortalecida, ainda, em cada oportunidade, a prática da pesquisa, da observação, da análise, da comparação, pelo confronto crítico entre as regras hipotetizadas pelos manuais e os usos efetivados no material observado. Tais práticas despertariam a consciência de uma língua viva, pulsando no interior de pessoas de carne e osso, e não a língua engessada, paralisando-se na frieza e na imobilidade de documentos e compêndios (Idem, p. 117).
A autora chama atenção para essas variações linguísticas, para os falares que coexistem em nosso país, trabalhando desde cedo à consciência crítica do aluno e o respeito para com as diferenças, não sendo necessário emitir juízos de valor para um, ou outro.“Além disso, a norma de cada um, que é norma de sua região, como vimos, é marca da identidade cultural de seu grupo. Alterar-lhe, pois, os padrões da fala é descaracterizar essa fala, é tirar dela aquilo que faz a originalidade de sua feição” (Antunes, 2007, p. 108). É evidente que os conhecimentos gramaticais são importantespara produção textual, seja ela escrita ou oral, mas o ensino de Língua Portuguesa não deve ser restrito a isso, é preciso ir além, poisa interação verbal eficaz acontece tanto por meio do bom uso de recursos gramaticais, quanto por“conhecimentos de mundo” variados. Propostas para aulas de língua materna
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O universo artístico é amplo e diversificado, dotado de percepção visual, beleza, leveza de expressão e total sensibilidade, e pode, além disso, despertar o espírito crítico, dependendo da perspectiva interpretativa. Para esta proposta trabalhamos a música “Herdeiros do Futuro” de Toquinho em diálogo com a arte da animação. O objetivo desta proposta é instigaro aluno à conscientização ambiental, assim, tanto a música quanto a propaganda versama temática, procurando fazer com que o aluno aguce seu senso crítico e perceba a sua relação com o meio ambiente.
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A arte da animação
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Quanto à metodologia,primeiramentedeve-se partirda audição da música, seguida da exposição visual da arte gráfica sequencial, denotando os valores artísticos de ambas.Em seguida propomos leituras crítico-interpretativas junto aos alunos,enfatizando a relação entre seus conteúdos –preservaçãodo meio ambiente– posteriormentesolicitamos que os alunos façam a produçãode uma amostra fotográfica, que retrate situações registradas por eles, referentes à referida temática e de suas realidades. Ressalta-se que ao tomarmos a música/composição não podemos tomá-laapenas como texto (letra). Assim, na etapa inicial, de leitura interpretativa,propusemos produções textuais em sala de aula explorando tanto a temática quanto a gramática textual. A arte gráfica
Tomamos a composição“A Casa” de Vinícius de Moraescomo ponto de partida para o diálogo com a arte fotográfica. Assim, elegeuse a fotografia de Sebastião Salgado, datadaem 1982 na comunidadede
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A arte fotográfica
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A partir da composição “Gente tem Sobrenome” de Toquinho propusemos o diálogo com a arte gráfica (caricaturas). Objetivamos com esta proposta enfatizar o valor artístico da música e da arte gráfica, bem como explorar o ensino gramatical. Consideramos que o uso das caricaturaspermite explorar a percepção visual dos alunos, além deconduzi-los a interpretação textual paralelo às caricaturas (o que é permitido pela letra da música). Assimesse elemento que já lhes é comumpassa a ser reconhecido como arte. A metodologia propostase dá primeiramente com a audição da música, paralela a apresentação das caricaturas; em seguida se estabelece a relação entre as personagens presentes na letra da música com a temática gramatical (classes de palavras). Por fim, propõe-se que sejam produzidos poemas (cordéis) que versem a temática da música (substantivos). Faz-se pertinente trabalharmos a inter-relaçãoentreessas duas modalidades artísticas, visto queesteticamentea visão do belo e do feio, a perfeição das curvas e das formas,por vezes passam despercebidos. Explorar as leituras de imagens contribui para que o aluno ultrapasse aleiturasuperficiale passe a ler as entrelinhas, os subtendidos, principalmente se tratando de um texto subjetivo, metafórico, que requer mais atenção e sensibilidade poética.
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Chimborazo (Equador), a qual remonta uma realidade atemporal, e sem definição de espaço, tendo em vista que o problema do desabrigo compõerealidade atual na sociedade brasileira (como em muitas outras). Objetivamos com esta proposta expandir o horizonte interpretativo dos alunos a fim de que sejam capazes de identificar as mensagens não explícitas no texto. O desafio desta proposta foi de tomar uma composição de caráter infantile compreendê-la em uma perspectivacrítica e social. Bem mais que competências de leitura, pretendemos oferecer competências crítico-sociais aos alunos, enquanto cidadãos, para que sejam capazes de identificar na sociedade suas mazelas, inclusive quando projetadas nas artes. Propomos que primeiramente se aprecie a composição, posteriormente a fotografia. Em seguida, deve-se indagar a relação estabelecida entre elas, apontando para as especificidades que as diferem enquanto arte e as aproximam enquanto mecanismo de linguagem: capazes de transmitir mensagens afins através de artifícios particulares. No segundo momento deve-se abrir espaçopara discussões sobre problemas de moradia, seja ele local, nacional ou mundial. Por fim, deve-se solicitar a organização de uma peça teatral, que deve ser escrita e apresentada como encerramento desta proposta. A arte da animação
Nesta proposta tomamos a composição “Ciranda da Bailarina” interpretada por Adriana Calcanhoto –deautoria de Chico Buarque e Edu Lobo–emdiálogo coma arte pictórica, tomando-se as obras
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A arte pictórica
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Nesta proposta tomamos a composição “Aquarela” em diálogo com a arte da animação, (clipe da música). Objetivamos com esta proposta promover a reflexão filosófica da existência humana e instigar produções artísticas por parte dos alunos.Para iniciar as atividades deve-se assistir ao clipe da música, após sua exibição faz-se indagações acerca da mesma. Dando continuidade, divide-se a turma em grupos e separam-se as estrofes da música por equipe, em seguida cada grupo deve fazer representações gráficas da letra da música. Depois de concluída esta parte da atividade todas as imagens confeccionadas devem ser apresentadas e interpretadas de acordo com a letra da música. O próximo passo é reunir de forma ordenada essas imagens e transformá-las em clipe musical. Assim, o produto final pode ser apresentado como desfecho da atividade.
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“Ensaio de Balett” e “La Prima Ballerina” de Edgar Degas.Objetivamos com esta propostapromover discussões críticas que tocam a temáticas sociais, bem como ressaltar o valor artístico da música e da pintura, além de propor a produção escrita dos alunos. A metodologia desta proposta inicia com aapreciação da composição “Ciranda da Bailarina”. Em seguida devem ser levantadas discussões sobre classes sociais e os estereótipos ditados na sociedade atual. Após esse primeiro momento, apresentam-se as pinturas selecionadas, que devem ser contempladas em seu teor artístico. Nesse momento os alunos devem ser deixados livres para que interpretem as pinturas e as relacionem à composição. Por fim, os alunos devem elaborar textos literários em prosa, preferencialmente contos ou crônicas. Nesse momento, acompanha-se a produção escrita dos alunos, oferecendo-lhes orientação (gramatical e literária).
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Nesta proposta lançamos mão da composição “Oito anos” interpretada por Adriana Calcanhotto em diálogo com o poema “Meus oito anos” de Casimiro de Abreu, não pela semelhança de conteúdo que os títulos nos sugerem, mas pelas diferenças que marcam as duas autorias. Desse modo pretendemos suscitar nos alunos a capacidade de saber reconhecer os elementos (poéticos) que compõe ambas as estruturas, bem como as sinuosidades interpretativas distintas que os textos nos remetem. Primeiramente apresentamos as duas “modalidades artísticas” aos alunos, contemplando-as enquanto arte que são. Posteriormente, proporcionamos o estudo literário, em relação à forma, sonoridade e métrica dos textos. No momento seguintelevantamos discussões sobre as singularidades tematizadas nos textos e sobre o eu-lírico de ambas as produções. Em seguida o professor deve solicitar aos alunos que escrevam sobre suas experiências de infância, para que em seguida os instrua a transformarem suas produções escritas em monólogos ou poesiasafim de que possam reforçar a oratória pretendida com esta atividade em futura apresentação. Para reforçar esta atividade o professor pode sugerir pesquisas para que a classe procure poemas e músicas que possuam temática semelhante a dos textos escolhidos, tanto pelas semelhanças ao enfoque saudosista da poesia “Meus oito anos”,quanto pelas indagações infantis que caracterizam o pensamento típico de uma criança de oitos anos, tematizadas na composição “Oito anos”. Por fim,
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A arte poética
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organiza-se um sarau com as produções dos alunos, seguido da produção de um livrocom os textos dos alunos. Considerações finais Este trabalho não definiu procedimentos exatos para o ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa e, tampouco, propôs o rompimento com o ensino da gramática.O que de fato fizemos foi sinalizar algumas possibilidades de versar o ensino do Português com o objetivo de contribuir para quebrar as amarras do ensino tão somente gramatical. Não tivemos a intenção de abarcar todas as formas de contemplar a música em sala de aula, pois reconhecemos que diversas possibilidades de leitura podem ser distendidas das mesmas composições/interpretação e de tantas outras. Ressalta-se que foram tais possibilidades que nos permitiram ultrapassar os textos (letras) e atingir outras obliquidades interpretativas, alcançandoassim as relações com outras manifestações artísticas, tais como a poesia, a pintura, a arte gráfica, a arte fotográfica, etc. Este trabalho passou por etapas de idealização e elaboração, assim como de execução. Dessa maneira, afirmamos que esta não é a forma mais simples de desdobrarmos nossa prática, reconhecemos ainda que alguns ajustes precisam e devem ser feitos para atendimentos a realidades diversificadas. Mas constatamos que é possível despertar o interesse pela leitura, pelas artes, pela Língua Portuguesa, assentando inclusive o melhor ensino gramatical.
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ANTUNES, Irandé. Muito Além da Gramática. Por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007. HAUSER. Arnold. Teoria da Arte. Tradução de F. E. G. Quintilha. Lisboa: Presença, s.a. LATUF, Isaias Mucci. Correspondência das artes. Disponível em: <http://www2.fcsh,unl.pt/edtl/verbetes/c/correspondências_artes.htm>. Acesso em: 20 jan. 2015. SANTELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983. VIEIRA, Joana D’arc Soares. Música: Uma visão literária. Belém: Meg@ Mestre Ltda, 2007.
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Referências
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Andreia da Silva Ribeiro | Raimunda Benedita Cristina Caldas Banquete: um estudo acerca da sincronia e da diacronia do termo
BANQUETE: um estudo acerca da sincronia e da diacronia do termo
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Resumo: O presente estudo faz um levantamento do termo ‘banquete’ no campo da Socioterminologia. A análise voltada à investigação desse termo de especialidade toma-o como elemento linguístico constituído socialmente, e, portanto, passível de ressignificação. Objetivou-se lançar uma abordagem em torno do conceito de diacronia e sincronia para análise do termo técnico da culinária, cuja metodologia empregada envolve a pesquisa bibliográfica em textos que discutem o léxico de especialidade. O arcabouço teórico contempla os estudos das autoras Krieger e Finatto (2004), Biderman (1996), Faulstich (1998) e Bastarrica (1999). Nessa perspectiva, o termo “banquete” representa o objeto de estudo em perspectiva etimológica, sincrônica e diacrônica. Assoma-se o estudo de Bettencourt (2001) com contribuições a respeito da definição de banquete. Assim, esta abordagem estabelece relações com a área da tradução – para compreender a representação e motivação na tradução dos termos técnicocientíficos. Do mesmo modo, dialoga com Sobral (2008) a respeito da prática tradutória e com textos literários que tratam sobre o termo em questão. Corroboram para esta análise alguns exemplares de textos consagrados, a saber: O Banquete de Platão, O Banquete em Rabelais de Mikhail Bakhtin e textos bíblicos, com os quais se verificam mudanças de perspectiva do termo ‘banquete’, antes da nomeação de assento para designar uma refeição celebrativa. Palavras-chave: Linguagem. Tradução. Termo de especialidade. Banquete.
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Andréia da Silva Ribeiro Raimunda Benedita Cristina Caldas
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Andreia da Silva Ribeiro | Raimunda Benedita Cristina Caldas Banquete: um estudo acerca da sincronia e da diacronia do termo
Introdução Este estudo parte do princípio da dinamicidade da linguagem para discutir as transformações por que passam o léxico no percurso de uma língua. Na linguagem de especialidade novos termos são criados em função das novas tecnologias e dos avanços tecnológicos apresentados nas diversas áreas do conhecimento, contudo, termos, já existentes, são ressignificados, adaptados ou traduzidos a novas situações de uso ou a novos contextos. Seguindo esta perspectiva de mudança este estudo vislumbra a análise sincrônica e diacrônica da unidade terminológica apresentada como objeto de pesquisa, a saber, o termo “banquete”. Em busca de entendimentos sobre o comportamento histórico do termo em questão, propomos aliar referências de Terminologia para definição de conceito e objeto (o termo) àSocioterminologia, cujo enfoque está para a variação do termo. Também corroboram os referenciais de Bastarrica (1999), Bidermam (1996), Faulstich (1998) e Krieger e Finatto (2004). Aliada ao referencial supracitado propõe-se trabalhar com o aporte teórico da Traduçãoancorado em Sobral (2008), com a finalidade de problematizar para compreender como são traduzidos os termos, em particular, o termo banquete. A literatura, por sua vez, possui uma gama de obras que fazem referênciasao termo mencionado neste estudo, fato que contribui sobremaneira para elucidar as questões levantadas.A presente abordagemao considerar as de áreas distintas como a Terminologia, a Tradução e a Literatura para discutir aspectos e conhecimentos da língua, torna-se legítimade um estudo interdisciplinar. No intuito de alcançar o propósito de análise do termo em questãoforam utilizados para este fim alguns textos literários para refletir e ilustrar a ocorrência do evento e do próprio termo que o nomeia, assim comoforam realizadas pesquisas em buscade selecionar os textos apropriados para dar suporte à discussão.
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O conjunto lexical de uma língua é resultado da interação sociocultural de seus falantes construída a cada tempo-espaço. Em outras palavras, a constituição lexicalreflete fenômenos linguísticos que correspondem a um processo natural evolutivo em decorrência do contato existente desde o advento da linguagem. Osdiversos fenômenos que surgeme se apresentam no centro da linguagemvêm sendo estudados pelos mais diferentes campos linguísticos, um deles, a variação, representa um fenômeno e um
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A renovação lexical
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Para Krieger e Finatto (2004), uma unidade terminológica consiste em uma palavra à qual se atribui um conceito como seu significado (Wuster, apud Krieger; Finatto, 2004, p. 76).
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recurso linguístico acompanhado pela Sociolinguística (que se debruça sobre questões de interações na fala, acompanha as mudanças por que passam aspectos de um sistema linguístico heterogêneo). Outro fenômeno, a renovação lexical tem sido acompanhada pelas ciências do léxico: Lexicologia e Terminologia. Esta última, no âmbito da linguagem especializada, tem desenvolvido significativos estudos sobre a constituição e planificação de termos técnicos científicos. Ambas fornecem subsídios para os estudos, principalmente daSocioterminologia, cujo arcabouço considera termo e variaçãointeragindo junto ao contexto sociocultural. Ao relacionar o conceito da linguagem concebendo um universo amplo que engloba as mais variadas formas de expressão verbal e não verbal, enquadra-se a língua como representando uma parte desse todo e, a partir de campo, a Terminologia, por sua vez, representa uma área de estudo da linguagem com objeto próprio de estudo, a saber, a unidade terminológica1. O léxico das linguagens especializadas permite o acesso ao conhecimento das peculiaridades de determinadas áreas do cenário comunicacional.Nesse sentido, “o mais importante do conhecimento não é sua condição de produção, mas sim o processo que gera o conhecimento” (Severino, 1995). Assim, as relações socioculturais promovem as situações interacionaisde um sistema de comunicação em constante metamorfose. Em virtude das características evolutivas da linguagem, grande porcentagem dos componentes lexicais durante esses processos passaram por transformações de cunho semântico-morfológico ou mesmo de renovação lexical. Segundo Bidernam (1996, p. 9), “o léxico flui e reflui num moto-contínuo”, isto é, a língua não é estanque, ela se movimenta em virtude da heterogeneidade do léxico. Um aspecto importante encontrado nointerior de uma língua é o fenômeno da variação que corresponde à diversidade de formas linguística alternadas por uma comunidade de fala. Sobre este aspecto Faulstich (1998, p. 29) afirma que a diversidade de uma língua pode se realizar em pelo menos três níveis:o primeiro é que “toda língua é historicamente diversificada e, dada a mudança linguística, um estado de língua no tempo 1 é diferente de um estado de língua no tempo 2.”; em seguida refere-se ao ponto de que “toda língua é socialmente diversificada tanto pela origem geográfica quanto pela origem social dos locutores” e, por fim, que “toda língua é estilisticamente
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diversificada; os locutores vão modificando sua maneira de falar de acordo com as situações sociais em que se encontram”. A renovação lexical é um processo de transformações lentas e, ao mesmo tempo, um diversificado produto da criatividade do falante nos mais diferentes níveis.O dinamismo das línguas (nos mais variáveis níveis) é responsável pela atualização do léxico, por constituir novos vocábulos, transformá-los e atribuir novos significados. Sobre isto, Bidermam (2005, p. 36) afirma que há “reutilizaçãodos vocábulos já existentes na língua, atribuindo-lhe novos sentidos, é um recurso usado frequentemente nas terminologias”. O que para a autora representa uma forma de evitar a criação de novos vocábulos. Desse modo, é comum o uso de um sistema de referencial como de metáforas, metonímias, associações e analogias motivando a escolha de determinado termo para nomear algo ou alguma coisa.
Fonte: Faulstich (1998, p.3).
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Figura 01. Variação terminológica na língua.
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Segundo a concepção de Faulstich (1998, p.28), termossão “signos que encontram sua funcionalidade nas linguagens de especialidade, de acordo com a dinâmica da língua”, além disso, são também “entidades variantes porque fazem parte de situações comunicativas distintas”e, por fim, “itens do léxico especializado que passam por evoluções, por isso devem ser analisados no plano sincrônico e no plano diacrônico das línguas”, seguindo a categorização saussuriana. Interessa para este estudo a compreensão a respeito do comportamento do termo nos planos sincrônico e diacrônico, no processo evolutivo dos termos técnico-científicos. Assim, o esquemaa seguir, demonstra a dinamicidadeque ocorre durante o processo evolutivo da linguagem. No plano sincrônico, determinado termo assume conceitos diferentes em um mesmo dado momento histórico, dependendo da área de veiculação e atuação, mas sua forma se mantém a mesma. Já no plano diacrônico, otermo pode manter sua forma (ou não), contudo, seu conteúdo é atualizado, ou seja, “o conteúdo semântico do termo é passível de variação” (Bastarrica, 2009, p.28). Neste caso, nos percursos temporais da língua, o termo é uma unidade do discurso independentemente de sua realização no plano diacrônico e no plano sincrônico e, por isso, passível de apresentar variantes antigas e atuais (Faulstich, 1998 p. 64). Este processo de ressignificação do léxico é característica comum ao processo evolutivo das línguas. O fenômenoapresentado no exemplo acima ocorreutambém com vários outros vocábulos que passaram por transformações morfológicas e semânticas.Por esse mesmo viés, propõe-se a análise do termo banquete, tendo em vista a tradução do próprio termo, já que “o uso da linguagem [...], pode ser entendido como uma espécie de tradução” (Sobral, 2008, p. 31).
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A tradução se apresenta em situações diversas do uso da linguagem, seja em sentido mais específico como a tradução de termos, seja emformato mais amplo como as trocas entre línguas ou culturas diferentes, pois por meio do tradutor os autores se fazem visíveis, eles “estabelecem firmes pontes entre culturas, entre modos de estruturar o mundo por meio da linguagem viva, a linguagem que se dirige a alguém” (Sobral, 2008, p.103). A literatura é, portanto, um extraordinário recurso para a construção de elos entre autor e tradutor, mais que isso, entre culturas. E, nessa compreensão há exemplos eminúmeras obras que ganharam
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Tradução & Literatura - O banquete em textos literários
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versões traduzidas em várias línguas e que se tornaram conhecidas em todo o mundo. Por meio da tradução, obras clássicas escritas há séculos se apresentam como atual pelo fato de serem amplamente difundidase constantemente adaptadas e lançadas em versões etempos diferentes. Assim, a literatura representa conjuntos de múltiplos saberes que interligam as sociedades em tempos e espaços diferentes é, portanto,um elo que aproxima gerações. Desse modo, representa um recurso repleto de obras que tratam sobre a presença de banquetes, alguns até como o tema protagonista do texto, outros registram acontecimentos verossímeis, históricos e ficcionais descrevendo o evento. O banquete se apresenta como um evento festivo regado à comida e bebidas e, por isso, é comum a presença de várias pessoas em evento desta natureza. Algumas obras tratam o termo de forma direta, sendo ele próprio o tema a ser discutido, em outros são encontradas passagens que se reportam a realização do evento, banquete. Assim, o banquete é um termo atual, seja como tema de obras literárias ou em uma simples passagem de um texto. Os exemplos a seguir são de obras que citam ou tem como tema o banquete. Observa-se na obra, A Cultura Popular na Cidade Média e no Renascimento: o Contexto de François Rabelais, escrita por Mikhail Bakhtin(1987),que a imagem do banquete está presente em vários momentos,um capítulo inteiro é destino a falar sobre o banquete; o capítulo quarto, portando,é denominado“O Banquete em Rabelais”.Neste,Bakhtin destaca que,
O banquete em Rabelaisé visto como festa popular, celebração,
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O banquete celebra sempre a vitória, é uma propriedade característica da sua natureza. O triunfo do banquete é
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No livro de Rabelais, as imagens de banquete, isto é, do comer, do beber, da ingestão, estão diretamente ligadas às formas da festa popular [...]. Não se trata de forma alguma do beber e comer cotidianos, que fazem parte da existência de todos os dias de indivíduos isolados.Trata-se do banquete que se desenrola na festa popular, no limite da boa mesa. A poderosa tendência à abundância e à universalidade está presente em cada uma das imagens do beber e do comer que nos apresenta Rabelais, ela determina a forma de apresentação dessas imagens, o seu hiperbolismo positivo, o seu tom triunfal e alegre (Bakhtin, 1987 p. 243).
pois:
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Durante o capítulo quarto a imagem do banquete é revelada como um evento popular vitorioso promovido pelo homem, uma espécie de consagração sobrealgo. Além disso, estabelece diálogo com outras obras que tratam sobre banquete em sua maioria retratada de forma cômica. Se em Bakhtin o banquete está no centro do diálogo, em Platão, o diálogo está no centro do banquete, pois é durante a realização de um banquete que se estabelece o diálogo. Uma obra escrita no século IV permanece atual até os dias de hoje devido às inúmeras traduções e, ao seu conteúdo filosófico, é ela, “O banquete” de Platão, obra clássica bastante conhecida que vem sendo traduzida ao longo do tempo e que faz referênciaao comer e ao festejar. De forma resumida, o texto refere-se ao discurso de alguns filósofospresentes em um Banquete, uma reunião em que Sócrates se faz presente, cujo diálogo é contado porApolodoro. O diálogo se inicia com as personagensApolodoro e o Companheiro e é justamente no diálogo entre essas personagens que surge a primeira menção ao termo banquete; este vem da fala do companheiro quando diz: “Apolodoro, há pouco mesmo eu te procurava, desejando informar-me do encontro de Agatão, Sócrates, Alcibíades e dos demais que então assistiram ao banquete”; e ainda no dito: “Quandonasceu Afrodite banqueteavam os deuses”(Platão, 1991, p. 37-76). Nesta passagem o termo é de natureza derivada, “banqueteavam”. “O banquete” trata de uma reunião de alguns pensadores para a qual Sócrates é convidado. Agatão, anfitrião do evento, recebe alguns ilustres para banquetear, um jantar regado a bebidas. Durante o banquete os convivas se propõema tratar sobre o discurso, mais precisamente sobre a definição do “Amor” e do “belo”.Assim, Fedro, o pai da ideia é indicado a começar o discurso, fala sobre a mitologia grega da origem do universo, bem como os casos de sacrifícios em nome do amor. Conclui com a afirmativa: “o Amor é dos deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e da felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após sua morte” (Platão, 1991, p. 27). Em seguida,Pausânias classifica o Amor em dois: a filha de Urano, Ucrânia – oamor Celestial; a filha de Zeus, Pandêmia também chamada Afrodite– oamor popular. O amor popular de Afrodite é carnal, ama-se mais o corpo que a alma; o celestial de Ucrânia é o amor dos machos fortes e inteligentes, dos
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universal, é o triunfo da vida sobre a morte. Nesse aspecto, é o equivalente a concepção e o nascimento. O corpo vitorioso absorve o corpo vencido e se renova (Bakhtin, 1987, p. 247).
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[...], Jesus saiu e viu um publicano chamado Levi, sentado na coletoria, e disse-lhe: “Siga-me”. Levi levantou-se, deixou tudo e o seguiu. Então Levi ofereceu um grande banquete a Jesus em sua casa. Havia muita gente comendo com eles: publicanos e outras pessoas. Mas os fariseus e aqueles mestres da lei que eram da mesma facção queixaram-se aos discípulos de Jesus:
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jovens, segundo Pausânias, enquanto outros apresentam suas ideias. E, por fim, Sócrates defende o conceito de amor como sendo o desejo de “ter” e “manter”. Mais adiante ele revela o ensinamento sobre o amor, de uma sábia Martineia chamada Diotima, para ela o amor encontra-se entre dois extremos – obelo e o feio. É um gênio que caminha entre os deuses e os mortais, filho de “Recurso” e da “Pobreza”, por isso o amor nem é rico nem é pobre; é capaz de coisas belas, virtuosas, mas também pode ser seco, duro e capaz de fazer sofrer. Em Platão o banquete é o lugar (o lócus) da realização dos discursos, momento não só de confraternização, mas de exposição de ideias e pontos de vista. Note que o tema desenvolvido nas obras acima é o mesmo, porém é tratado sobre perspectivas diferentes. No entanto, o sentido do termo converge para um único entendimento do que seja um banquete. Outros exemplos elucidativoscom a presença do banquete podem ser encontrados nos textos bíblicos. A Bíblia, quesegundo Burke (2009, p. 27) era o texto mais traduzido na Europa moderna, “traduções das escrituras foram publicadas em 51 línguas entre 1456 a 1699”.Nelaapresentam-sevárias passagens com menções a presença de banquetes, das quais algumas podem ser observadasno livro de Ester, no qualo rei Assuero “deu um grande banquete, o banquete de Ester, para todos os seus nobres e oficiais. Proclamou feriado em todas as províncias e distribuiu presentes por sua generosidade real” (Ester 1,18). Posteriormente ao banquete de Ester ao rei Assuero e Hamã,“Disse o rei: Tragam Hamã imediatamente, para que ele atenda ao pedido de Ester... Então o rei e Hamã foram ao banquete que Ester havia preparado”. (Ester,5,5).Em ambos os acontecimentos, o banquete representa um momentoexpressivo com intenção de anunciar algo, ou seja, uma ocasião com a finalidade de revelação regada a comidas e bebidas. Ainda nas sagradas escrituras, desta vez no novo testamento uma passagem, no livro de Lucas, descreve um grande banquete oferecido a Jesus por um homem chamado de Levi, no texto está expresso:
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“Por que vocês comem e bebem com publicanos e pecadores?”. (Lucas 5, 27-30). 2
Também nesta passagem, banquete representa evento de caráter festivo e/ou comemorativo. Além destes exemplos, o termo em questão apresenta um significado metafísico quando assume representação simbólica de fartura não só para o corpo mais também para a alma, como no discurso religioso – “O banquete nupcial que tira o pecado do mundo”. Assim é possível notar o conceito de fartura e o caráter festivo em torno da realização do evento que este termo banquete abriga. O banquete: definições e análise O termo em discussão “banquete” é especialidade da gastronomia. “Banquete”, segundo o dicionário Aurélio (2004)é definido como: a) Refeição formal e solenede que participam muitos convidados; b) Refeição lauta e festiva. Portanto, não é qualquer refeição que pode ser qualificada com a denominação de banquete, logo, para que uma refeição se configure como um banquete...
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Bíblia (on-line, 2014). Teoria do conhecimento em que compreende o conhecimento como autoevidente, ou seja, como pronto e acabado (Hessen, 2000).
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Logo, Bettencourt comunga com Bakhtin quanto à definição deste termo. Esta concepção compreende a tradução construída e reconhecida do termo há muitos anos e que as sociedades consensualmente adotamcomo seu significado. Contudo, diante desta questão é preciso abrir um parêntese, porque quando nos deparamos com um termo,a impressão que temos éa da visão dogmática 3, de queele nos foi dado da mesma forma (forma e conteúdo) como se apresenta diante de nós.Esse comportamento é comum. O mesmo já não ocorre quando ouvimos um termo novo, para esse caso ocorre um
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[...] é necessária à existência de um caráter festivo, excepcional, uma percepção emocional que identificaria e separaria o banquete de outras refeições mais ou menos abundantes e populosas, servindo pratos mais ou menos elaborados de acordo com uma estrutura mais ou menos rígidas(Bettencourt, 2011, p. 10).
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estranhamento, que só desaparecerá após a familiaridade com o termo.“Essa presença constante de alterações, da mudança,mostra que o lugar do surgimento é o uso, a partir de significados que se estabilizaram ao menos por algum tempo” (Wittgenstein apud Sobral, p. 38-39). Esse e outros processos representam caminhos possíveis e passíveis de transformações. Assim, não obstante a premissa anterior, o termo banquete passou por esse processo evolutivo natural na língua. Em todo caso, é pertinente lembrar que o fenômeno ocorrido com este termo não se configura, portanto, em um processo recente. Segundo a história da evolução das línguas muitos são os exemplos encontrados de termos que passaram por ressignificação. Com o termo banquete ocorreu da forma como está expresso no quadro a seguir. Quadro. 1: Etimologia do termo “banquete”. Termo: Banquete 1 – Origem 2 – Atual Italiano ** * Raiz: Léxico comum Técnico da Área: Gastronomia Diminutivo de banco – Refeição farta, Semântica: banchetto abundante. Fontes: http://www.etimologista.com;http://origemdapalavra.com.br
Os estudos sobre a linguagem têm concebidoexpressivos subsídios para entender o processo evolutivo das línguas. Nas linguagens especializadas tanto os fenômenos de variação como os de
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Considerações Finais
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O estudo diacrônico do termo “banquete” nos permite entender o fenômeno que ocorreu para que este termo adquirisse o conceito atual, diferenciado de outrora, cujo significado denotava o diminutivo de banco, um objeto, um móvel.O termo primitivo cujo objeto representava um móvel com finalidade de assento, muitas vezes utilizado para acomodação no momento de uma alimentação rápida sem necessidade de ir à mesa, logo evoluiu e, em um dado momento histórico, assumiu representação conotativa. A partir daí, com o passar do tempo, o conceito original foi atualizado e passou a denotar a própria refeição. Este processo se deu pelo uso efetivo do termo nesse novo contexto pelos falantes da época, que provocou ressignificação do termo banquete de símbolo a coisa –simbolizadaneste caso, portanto, um recurso metonímico.
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renovação lexical representam formas importantes e comuns. Contudo, em um passado recente o fenômeno da variação, principalmente, era desconsiderado por muitos autores. Atualmente, a linguagem de termos técnico-científicos tem adquirido termos novos gerados, principalmente nas áreas de informática, culinária, telecomunicações entreoutros, além disso, tem se utilizado do processo de ressemantização, aproveitando nomes já existem empregando-os em outras dadas invenções, situações, ações etc., estendendo, muitas vezes, o sentido para nomear através de recursos metafóricos.Logo, um dado termo compreendido com uma dada definição atualmente, pode mais adiante adquirir outra definição em razão do caráter dinâmico da língua.
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Elenilda do Rosário Costa Da Idade Média ao século XXI: a linguagem do maravilhoso em “Um Sonho”
DA IDADE MÉDIA AO SÉCULO XXI: a linguagem do maravilhoso em “Um Sonho” Elenilda do Rosário Costa Resumo: “Um sonho” é uma narrativa oral coletada pelo projetoImaginário nas Formas Narrativas Orais da Amazônia Paraense(IFNOPAP) e faz parte de uma coletânea de narrativas intitulada Um portal para Bragança. Busco, neste trabalho, falar da linguagem do maravilhoso no período medieval e de como essa linguagem atua no século atual; por meio da narrativa citada procuro entender como se comporta e qual a finalidade deste gênero numa e noutra época. Para fundamentar esta ideia autores como Le Goff (1994), LéviStrauss (1977), Todorov (2008), Benjamin (2013), Cuche (1999), entre outros serão abordados aqui. Palavras-chave:Maravilhoso. Linguagem. “Um sonho”. narrativa oral.
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É comum, ao se falar de linguagem, imaginar diretamente a linguagem verbal, aquela descrita e escrita. No entanto, deve-se compreender que suaexpressão não acontece apenas na escritura, mas também por meio do visual, dos nossos sentidos auditivos e, óbvio, pela escrita. Ora, talvez essa ideia de relacionar linguagem à escrita de modo (quase) automático se deva ao que Walter Benjamim (2013) chamou de “essência espiritual do homem”. Para este autor, o que nos torna diferente de outros animais é a maneirapela qual nos relacionamos com as coisas e com os seres. A natureza humana tem o hábito de nomear as coisas e é nesse sentido que Benjamim se refere ao fato de que a “língua do homem fala em palavras. Portanto, o ser humano comunica sua própria essência espiritual ao nomear todas as outras coisas” (2013, p. 54). Esta afirmação está fundamentada no fato de que não conhecemos nenhuma outra linguagem que seja nomeadora, logo, totalmente
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Introdução
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comunicável em seu aspecto linguístico mais profundo, isso significa dizer que, embora os outros animais mantenham uma comunicação – eninguém duvida de que ela seja eficiente – a questão diferencial é: tal como o homem se relaciona com as coisas o processo inverso também existe, então, relação só existente entre homem e coisas e vice versa. Outra relação da qual pretende-secomentar aqui é aquela da linguagem tal como a conhecemos e utilizamos no nosso cotidiano no século XXI e a linguagem existente no maravilhoso medieval. A Idade Média, época que parece estar distantes de nós, reflete uma linguagem suscitada por um imaginário. Este imaginário reflete poder, uma sociedade e um tempo. A Idade Média, “esse mundo que perdemos” (Laslett apud Le Goff, 1994, p. 41) é na verdade o mundo a qual estamos ligados pela oralidade, uma linguagem jamais cortada pelo passar do tempo. A era medieval, bastante longa, é uma era de antíteses; se em um momento a maioria da sociedade é analfabeta, no outro a educação deixa de ser um privilégio de famílias ricas e da Igreja Católica e expande os horizontes da cultura a todos. Se num momento é opressora, no outro é reprimida; fala-se então, de uma linguagem a qual se tratava política através de narrativas de aventuras, pois assim se dava a compreensão do povo (Huizinga, 1978), uma que não se hesitava utilizar para louvar os príncipes. Na Idade Média, linguagem e pensamento são tão importantes quanto a poesia. O Maravilhoso, este que nos faz entender “parte do universo de seu imaginário” (Le Goff, 1994, p. 23) é a técnica, o meio, a via que nos fará compreender como a linguagem, tão diversa e carregada de ideologia, aparece e se consagra tanto no Medievo quanto numa narrativa oral de nossos dias. Por todos esses motivos,se pode afirmar que o Medievo foi uma sociedade simbólica, da palavra, da voz. Por ilustração, tomaremos umanarrativa oral bragantina intitulada por seu narrador de “Um sonho” a qual demonstra,como diz Lausberg (1993, p. 81), “tradição de discurso de uso repetido”,ou seja, lugares comuns dentro daquilo que Nei Clara de Lima (2003, p. 15) chama de parte da tradição oral.
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A definição atual dada ao maravilhoso é a de que ele supõe o sobrenatural e que ao longo da narrativa permanecerá inexplicado de acordo com as leis que regem a nossa realidade humana. O grande mestre no assunto, Tzvetan Todorov (2008),o explicou dizendo que é preciso admitir novas leis, uma nova realidade para poder compreendê-
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“...Mais uma de alma penada!!!” – o maravilhoso na linguagem dos sonhos
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lo. Certamente, não é esta explicação válida no Medievo, pois nesse período temos um maravilhoso que vai além da suposição de um leitor implícito (como necessita segundo a explicação de Todorov), ele “é dado como objectivo mediante textos ‘impessoais’” (Le Goff, 1994, p. 55). O maravilhoso medieval está relacionado a toda uma sociedade que via neste, impulsos e limites; algo que tinha funções como a compensação ou a contestação de uma ideologia ou ainda uma instabilidade cognitiva que o transformava em simbologia ou o racionalizava por meio de uma interpretação alegórica simplista. “O camarada tinha um sonho” Assim começa a narrativa oral tomada por ilustração. O sonho, a partir do século IV quando o cristianismo se torna religião e, mais que isso, ideologia, no Ocidente se torna fenômeno cultural, o qual passa a ser conhecido em proporções e significados de maior e menor grau em diversas sociedades humanas. Le Goff escreveu que assim como qualquer complexo cultural, o cristianismo não ficou isento de abrigar heranças de distintos povos e culturas, sendo a mais influente a grecoromana a qual, certamente, consideraram-na pagã. Entre essas heranças, no que tange aos sonhos, a bíblica, foi sem dúvida a mais influente, haja vista ser o Antigo Testamento uma obra riquíssima em tal aspecto. Entre tantos significados, o sonho, no Medievo “contribui mais para pôr o homem que sonha em contato com Deus que para lhe revelar o futuro” (Le Goff, 1994, p. 287), todavia o que se observa em “Um sonho” é o contrário de tal assertiva, isto é, verifica-se uma contribuição maior de revelar o futuro ao homem da narrativa que de aproximá-lo de Deus. Veremos isso adiante. A construção da narrativa, em primeiro plano, revela que o sonho é uma previsão, logo, um alerta emitido ao personagem para que ele, ao despertar, tome um posicionamento em favor de tal revelação, isso quer dizer que a personagem deveria realizar um deslocamento, mais que ideológico, geográfico, em busca do que o sonho lhe revelara – uma fortuna. A priori, parece se tratar de um sonho teoremático segundo descreveu Artémidore em Chave dos sonhos (1975), ou seja, um sonho cuja realização tem plena semelhança com aquilo que deu a perceber, mas antes que o personagem se dê conta disso, ele acaba por ignorar o primeiro sonho. Passado quinze noites, outro lhe é dado e nesteacontece o que Le Goff chama de “união da visão e da palavra” (1994, p. 286), em outros termos, existe na narrativa uma voz descrita como uma alma que fala ao sonhador aquilo que ele deve fazer. Nossa personagem dá ares de descrença em relação àquilo que sonha, apesar de tê-los “quase toda noite” ele não toma nenhuma atitudede imediato.Quando, este decide tomar a decisão de ouvir e seguir aquilo
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Aparece na narrativa as duas formas. Primeiramente, aparece o termo “cobra” e depois o termo “cabra”, a transcrição foi realizada pelo pesquisador do projeto IFNOPAP e está armazenada em um cd-room, logo não há qualquer intervenção nossa.
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que lhe diziam os sonhos, sua esposa faz o seguinte alerta:“ah, marido olha o que você vai fazer, sonho não é certo” Esse temor emitido pela esposa do sonhador é explicado por Le Goff: “Os sonhos são ilusões e são, principalmente, as visões nocturnas que podem levar à heresia. Sonhos = mentiras. Os sonhos podem ser tentações, podem ser provocações” (1994, p. 287). Esta é uma visão bem clara daquilo que o cristianismo tomou como objetivo – manter os fiéis dentro dos padrões de santidade, dentro do seu domínio de poder e repreensão; se os sonhos levavam à heresia era importante que fossem desprezados, afinal de contas a Igreja não queria seus discípulos fora de seus domínios. Se a personagem,sendo provocada a ir buscar uma fortuna, fosse, (como foi) isso certamente seria visto naquela época como pecado, pecado de vaidade, de ambição, de desobediência. Na Antiguidade, os sonhos eram tidos e classificados em três categorias básicas: os que não eram premonitórios, os que eram premonitórios e enviados por Deus e aqueles que eram enviados pelo demônio, igualmente premonitórios.Contudo, ainda se fala em outras duas subclassificações as quais os tratam como sendo claros ou enigmáticos e ainda ilusórios segundo as teorias médicas, nesse sentido, percebe-se na voz da esposa, exatamente, essa preocupação com esse caráter ilusório que o sonho pode ter, vem daí a razão pela qual ela queira alertar seu marido a não ir em busca dessa aparente riqueza. Tendo em vista que ao aportar num lugar em que a narrativa não descreve onde, apenas diz ter passado três ou quatro dias de viagem de seu lugar de origem até então, o que a personagem realiza é a ação de falar sobre coisas que ele espera realizar, qual seja o de achar sua fortuna. Hoijer (1974, p. 57) falando sobre a criação de coisas e seres naturais ou sobrenaturais em narrativas fez-nos remeter ao início de “Um sonho” em que lá, não vemos, necessariamente a criação, mas a presença de alguns elementos que chamam a atenção por causar certo estranhamento em nós, leitores. São elementos como tapecuer (árvore), uma cobra/cabra1 preta e até mesmo a presença de um cavalo, o qual o dono vende para poder fazer sua viagem. De modo geral, a estranheza é causada pela forma como a narrativa vai sendo construída, são elementos conhecidos por nós, mas ao mesmo tempo nos faz questionar o porquê de sua presença ali.
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O que o autor explica é que tudo que se passa no sonho é uma representação do real, daquilo que entendemos como nossa realidade. Contudo, toda representação é uma evocação de ausência e uma sugestão da presença (Ginzburg, 2001), ainda que os sonhos sejam
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todavia, é preciso ao menos confessar que as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas que não podem ser formados senão a semelhança de algo real e verdadeiro; e que assim, pelo menos, essas coisas gerais [...] não são coisas imaginárias, mas verdadeiras e existentes (Descartes, s/a, p. 94).
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Em outro momento quando se descreve os fatos os quais o sonhador pretende realizar, surge na história uma pessoa fazendo a seguinte pergunta: “qual é o sonho?” Parece que já se ouviu essa pergunta antes? Sim. Soa tão familiar porque as passagens bíblicas que tratam dos sonhos trazem com frequência esta interrogação dirigida aos intérpretes, reveladores de sonhos na busca de encontrar significados, respostas as suas inquietações. Le Goff chega a citar que esse recurso dirigido aos “especialistas de sua interpretação” (1994, p. 291) se distingue em três tipos: os adivinhos, conhecidos como os “populares”, os que se davam ares de puros sábios e ainda aqueles que escreviam tratados sobre as tais interpretações. Aqui há presença de hierarquizações, exatamente, como a própria linguagem; ambas as categorias se utilizam da palavra para revelar seus segredos, seus significados, mas por se ter uma mudança de espaço e de instrumento tem-se também uma valorização de uma em detrimento da outra; ver-se constantemente a escrita ficar no topo da pirâmide, enquanto que a fala fica subjugadaabaixo. “Especialistas” em interpretação e linguagem hierarquizam a sociedade. Outro ponto digno de nota se refere ao fato de que a mesma bíblia que revela sujeitos intérpretes, tal como José que teve sua vida completamente mudada por ter interpretado vários sonhos, é a mesma que condena os adivinhos. Ora, talvez essa condenação esteja relacionada com a questão da qual já se mencionou aqui, ou seja, a do caráter ilusório que os sonhos possuem. Mesmo Descartes em suas Meditações descreve que não se pode confiar nas coisas que acontecem durante o sono, pois, a realidade que se percebe durante este momento não é a mesma de quando se está acordado. Ele diz que lembra “de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões” (Descartes, s/a, p. 94). E sobre essa inquietude no que concerne à veracidade dos sonhos, na opinião dele não caberia provar se os sonhos são ou não verdadeiros,
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uma representação da realidade, permanecem, nesse momento, no plano da ideia, mas ao mesmo tempo eles são, também, uma realidade representada que pode ou não ser aquela que vivenciamos, daí a presença do maravilhoso, já que ele consiste – segundo sua definição mais atual – na admissão de uma nova realidade para explicar os fenômenos ocorridos. Sendo a língua parte social da linguagem, ela é elemento fundamental para criar seu meio social, ela detém o poder de estabelecer regras comportamentais de civilização e cuidado com seu determinado grupo. Molda comportamentos e ações e organiza seu espaço de acordo com suas vontades. Assim sendo, quando a personagem relata o motivo pelo qual está ali, naquela cidade que não é a sua, a linguagem estabelecida entre os participantes do diálogo faz perceber uma hierarquização tanto pelo uso constante de verbos da personagem principal no tempo presente no modo indicativo, quanto pela colocação de advérbios de lugar que denotam distância em relação ao falante (personagem secundário); ousa-se dizer e ratificar que a fala destaquando se opõe ao sonho alheio, colocando-o em dúvida,significauma inferioridade de comportamento e personalidade. Desse modo, a forma de organização da linguagem neste diálogo,
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Reflete na construção do discurso; demonstra a intencionalidade de atingir o ouvinte da maneira que melhor pareça. Por conseguinte, a personagem que debocha da atitude daquela que ouviu e seguiu o que os seus sonhos diziam revela uma apropriação do discurso de outrem para construir o seu na tentativa de denegrir este próprio outrem. Esclarece-se, dessa maneira, que a linguagem é então, “sentido e nãosentido. O sentido metaboliza-se, uma vez que pode dizer a mesma coisa de outra maneira. O não-sentido fixa-se na textualidade” (Mannoni, 1992, p. 73).
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“tenho de ser muito feliz, mas a minha felicidade, está aqui nessa cidade, a minha fortuna está aqui e a minha vinda aqui foi isto, ver se eu descubro. – Você tem sonho, meu amigo? Quer dizer que você veio aqui pelo um sonho? Ah, senhor, largue de ser tolo, que sonho é ilusão. Se é por causa disso eu ia na dita cidade que você mora, que já vieram me dizer que é pra mim ir lá, que tem lá uma fortuna dentro do quintal da casa de um homem, onde tem um pé de Tapecuer lá naquelas terras amarelas, onde tem um Tapecuer, onde, todo meio dia uma cabra preta vai rodar aquele pé de Tapecuer e de lá vai embora”(UM SONHO).
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A grande beleza de uma narrativa é poder entendê-la dentro da sua própria lógica; ainda que ela forneça elementos que ensine a viver e a conviver de maneira melhor, não se pode, em hipótese alguma, encaixá-la aos moldes de uma sociedade atual, pois a mesma não tem a obrigação – ainda que seja uma narrativa moderna– de ser colocada sob os nossos padrões sociais e comportamentais. Sendo assim, o pensamento de Lévi-Strauss ao dizer: “os ritos e as crenças mágicas apareceriam então como tantas outras expressões de um ato de fé numa ciência ainda por nascer” (1997, p. 26) só ressalta a importância de se compreender cada coisa a seu tempo, no seu espaço, na sua lógica, como é o caso da magia, a ciência da qual fala Lévi-Strauss. O que tem a ver narrativa e magia? Talvez você se pergunte. Ora, o seu caráter mítico. Aqui, pelo menos, é essa conexão que se pode traçar. Os ritos mencionados por Lévi-Strauss são muitas vezes contados em grandes narrativas. Da mesma forma que não podemos reduzir a magia a “uma forma tímida e balbuciante da ciência” (LéviStrauss, 1997, p. 28) não podemos – como muitos fazem – reduzir a narrativa e, principalmente, a mítica, a uma criação de iletrados ou sem cultura. Cultura pensada na concepção iluminista, de que existia um conjunto de saberes que eram acumulados e deveriam ser transmitidos pela humanidade (Cuche, 1999). Dessa forma quem possuísse tais características era visto como o sujeito evoluído, com progressos; em contrapartida, a ausência delas caracterizava sujeitos capazes de criar narrativas míticas. Agora, veja que a mesma analogia existente que privilegia a ciência em razão da magia é também semelhante àquela que se observa entre as personagens das quais trata-se aqui – uma tenta realizar seus sonhos, a outra não.Enquanto uma considera os sonhos uma tolice, algo irrelevante e julga a atitude alheia; a outraentende seus sonhos como um sistema articulado e dotado de sentido (claro que esta percepção não é vista de imediato na narrativa); a partir daí podemos compreender que tal como os “homens da ciência” pensavam a respeito das coisas que aconteciam manualmente e/ou naturalmente, isto é, chamavam de magia porque não era logicamente explicada e não nascia em laboratório, assim também é a lógica estabelecida dentro da narrativa – sair em busca de “formas vagabundas e ilusórias” (Le Goff, 1994, p. 298) não é algo que pareça ser “evoluído” para o comportamento racional humano. Se os sonhos não nascem em laboratórios são também considerados, num determinado momento da história, como magia, porventura, semelhantehierarquia existente entre as ciênciasé também aquela que diziam dos sonhadores na Antiguidade e na Idade Média, ou seja,no caso dos sonhos, existia uma autenticidade que dependia do nível de autoridade que o sonhador tinha diante da sociedade.
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Diz-se algumas páginas acima, que os sonhos são construções representativas do real, são criações imagéticas, logo, quando a nossa personagem sonha com uma fortuna ele não tem, de modo óbvio, em sua mente o ouro que caracteriza a fortuna,apenas o que seja uma ideia, apenas conteúdos mentais, portanto,
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A partir dessas propriedades, consegue-secompreender como age a narrativa maravilhosa. Esse “libertar-se do espaço e do tempo presentes” possibilita à nossa personagem entender as relações que a movem em direção a sua riqueza, ela não tem a necessidade de interagir concretamente com a riqueza, mas tem a de que entre os seus sonhos e a sua realização, fazer algo. E, como ao final da narrativa encontramos a seguinte frase:“porque tem isso, a fortuna da gente está na mão da gente, mas a gente tem que andar atrás dela, tem que sair, andar até ela chegar nas mãos” Estabelece-se aí uma mediação entre a sociedade e o ensinamento que a narrativa não deixa de propor, isto porque a linguagem é sistema simbólico e como tal constitui formas de perceber o mundo que levam os sujeitos a uma interação consigo mesmo, por exemplo, e a pensar e realizar coisas que estão além do seu tempo presente. Entre tantas possibilidades de análise para esta frase final, conclui-se: é preciso sair da zona do próprio mundo para compreender a lógica e o funcionamento do outro. Como uma narrativa mítica, ela se propõe a deixar algum ensinamento e,quando ela se materializa na simbologia dos sonhos, espera-se que seja fruto do pensamento do outro, haja vista, o símbolo ser revestido de valor social, “sentido, como, de algum modo, o ser ou o próprio objeto que representa” (Todorov, 1996, p. 301). Assim, havendo algum ensinamento social, este se dedica a esclarecer que, além de manter distância de sua própria dialética, é precisoentender a organização social-histórica da vida. A riqueza de cada um está bem próxima, mas é imprescindível se manter longe do seu lugar comum para observar melhor o funcionamento da vida, além é claro, tomar atitude, modificar o percurso das coisas é preciso para ser merecedor da recompensa. Então, quando a personagem decide pegar um navio e voltar à sua cidade porque era lá que estava sua riqueza, isto é, na sua própria casa, o que acontece, na
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essa capacidade de lidar com representações que substituem o próprio real é que possibilita ao homem libertar-se do espaço e do tempo presentes, fazer relações mentais na ausência das próprias coisas, imaginar, fazer planos e ter intenções (Oliveira, 1993, p. 35).
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verdade, é uma atitude concreta da percepção do universo ao seu redor, dando a ela o que lhe era devido já que pela sua mobilização de afastar-se para depois aproximar-se foi entendida. Quanto a isso, Le Goff cita visio e somnium como categorias de sonhos considerados premonitórios e verdadeiros, vemos na configuração de/e que ambos se apresentam na nossa narrativa. Aquele revela uma imagem do futuro que tal qual se realizará; este anuncia o futuro de forma velada. Podem parecer opostos, mas acabam representando um complemento um do outro, na medida em que, a princípio, o sonho parece revelar o local exato de onde estaria a fortuna, tem-se aí um futuro velado, pois não é claro quanto a esse espaço, contudo, este local, reafirmado pela voz da outra personagem deixa exatamente claro, uma imagem futura que se realizará, daí sua complementaridade. Interessante perceber em todas as classificações que Le Goff relata existir desde a Antiguidade e, principalmente, na Idade Média, a respeito dos sonhos, revela que quando o cristianismo se firma, a prática da oniromância é, ao mesmo tempo, crença e prática dominante embora caminhasse para meios de repressão da expansão.Tal como se sabe, a Igreja era o centro de governo na Idade Média, todas as coisas tinham, obrigatoriamente, esse olhar cristão. Ainda que em algum momento esse olhar fosse de contestação, havia na base um princípio de cristianismo, pois o mínimo de cultura cristã era necessário. De todo modo, quanto aos sonhos e o que eles significavam e o que deles poderiam ser interpretados,há três momentos: o primeiro de interesse, depois de inquietação e por fim de incerteza. Nesse panorama nota-seo quanto de influência a Igreja exercia sobre os sonhos e como eles respondiam a isso. Primeiramente, como já dito, o sonho era um meio de acesso a Deus, a conversão é resultado ímpar nesse sentido e por isso havia grande interesse em saber como que tantas conversões ocorreram “como que sem querer” (Le Goff, 1994, p. 299). Logo, não demorou muito para esse caráter sagrado desvirtuar para o profano, poisdepressa “os chefes do cristianismo associaram o sonho aos heréticos” (Le Goff, 1994, p. 302) por causa das várias profecias que muitos começaram a fazer; essa “revelação” do futuropassa a ser vista como mensagens do diabo, causando com isso a relação do sonho com o martírio, inquietação. Daí, impregnados por essa ideologia, os sonhos passaram a ser motivos de inquietação, fato este descrito na narrativa quando a personagem principal sente-se inquietadepois de várias noites tendo ao seu lado uma alma que vinha revelar-lhe o mesmo sonho. Ainda que o sonho revelasse algo bom, a inquietação é fruto da constante presença da alma – um ser sobrenatural em certo sentido. O que não é compreendido pela personagem nesta narrativa do século
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XXI é que a alma era quem emitia no Medievo “as suas próprias produções – e, entre estas, os sonhos” (Le Goff, 1994, p. 304), por isso, enquanto no maravilhoso medieval a linguagem dos sonhos eram as mensagens de Deus ou do diabo, claras ou enigmáticas, edificantes ou repressoras, aqui, em nossa época esta linguagem do maravilhoso “atual” apenas supõe uma sobrenaturalidade que não é necessário aceitá-la. No subtítulo da narrativa temos a expressão: “mais uma de alma penada”. Em nossos dias e rememorando nossos avós, isso indicaria, claramente, uma lição, ou seja,é hora de ouvir uma historinha para saber o que não fazer,aprender a se comportar mediante as coisas espirituais e materiais; é aqui que se encontra uma semelhança entre o maravilhoso medieval e este de nossos dias. Veja: Não se quer dizer que em cada época da história houve um maravilhoso diferente, e sim que cada sociedade tratou este gênero de modo particular.Contudo, algo é comum a todas– oimaginário – esteque revela a consciência e evolução histórica, este que revela a origem e essência do homem, este que reflete na linguagem de todos nós. Como linguagem simbolizante “o sonho utiliza os símbolos já preparados no inconsciente” (Freud apudTodorov, 1996, p. 343), como narrativa utiliza termos que o definem. Entre o maravilhoso medieval e este que se encontra em “Um sonho” aprende-se que existem fatos sobrenaturais que pedem uma explicação racional lógica, porém,não implica na nossa atitude frente aos eventos. O que de fato exprime e diferencia a linguagem do maravilhoso de antes e de agora são os temas evocados e como eles são tratados. No Medievo, essa linguagem se propunha a exercer um domínio sobre as classes menores; como tantas vezes já se disse e já se constatou, não só as concepções e utilizações do maravilhoso se modificaram com o cristianismo e com a nova sociedade do século XII e XIII como tudo ali. O exemplum, gênero de grande eficácia pastoral era e é o exemplo mais brilhante de uma linguagem maravilhosa, pois este se destinava a garantir a salvação daqueles que ouviam. Este também era um papel dos sonhos, mas não foi assim que se apresentou na narrativa coletada pelo projeto IFNOPAP. Por fim, os sonhos medievais e a linguagem do maravilhoso medieval, como um todo, foram os campos mais privilegiados para se falar da eterna batalha Deus x diabo, bem x mal e, como se viu no início deste trabalho, os sonhos buscavam mesmo essa aproximação do homem com Deus, mas aqui na narrativa, o sonho relatado pelo informante revela uma linguagem que o maravilhoso se apresenta apenas para dizer: olha, existe uma outra explicação, pode existir uma
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outra realidade, não sejam prepotentes ao considerar somente a vossa. Assim, ao se olhar para a narrativa oral de agora compreende-se que o maravilhoso do século XXI faz questionar, faz duvidar e é exatamente isso a que ele se propõe, diferentemente do maravilhoso medieval em que se propunha a ser aceitável sem questionamentos. Embora, ambos queiram ser edificantes, servir como lição, um admite a dúvida, a incerteza o outro não. Concluindo... No fim, entende-se que a narrativa é também uma história mítica e o mito é sempre uma justificativa para algo, é sempre uma resposta para uma pergunta, a priori, indecifrável, ou melhor, uma resposta para uma pergunta que não permite ser ignorada; assim, é sempre um ensinamento a ser dado. Desta maneira, o maravilhoso, que apesar de ter tido seus momentos usados pelos poderes da Igreja como mecanismos contra o pecado, de modo que a mesma esforçou-se por tirar do caminho dos fiéis a prática da interpretação dos sonhos, foi também uma poderosa resistência a esse poder. Quanto aos sonhos, visto numa narrativa oral, faz perceber que no fundo o cristianismo criou uma situação favorável a ele, entendendo, a partir da linguagem do maravilhoso que todos os sonhos tem significado e que não cabe a ninguém taxá-los como verdadeiros ou falsos e sim compreender que tanto na Idade Média quanto agora, mais que significado eles possuem uma finalidade e esta é comum ao mito, a esta narrativa e a linguagem de modo geral – a de ensinar. Uma leitura precisa sempre de uma releitura, portanto, a narrativa oral “Um sonho” quando lida novamente dará sempre novos elementos dignos de serem analisados e comentados. Contudo, para este momento, contento-me em dizer que ela não é produto de nenhum iletrado, é sim, uma construção elaborada de uma linguagem que só tem quem possui a sensibilidade de sentir o seu meio social, o mundo ao seu redor.
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Referências
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Adriana da Silva Lopes Entre o profano e o sagrado: o dilema da santidade
ENTRE O PROFANO E O SAGRADO: o dilema da santidade Adriana da Silva Lopes Resumo: Este trabalho irá realizar uma investigação sobre dois termos específicos da área religiosa: o sagrado e o profano. O objetivo deste trabalho é realizar um estudo de caso desses dois termos, a investigação irá se concentrar na análise da etimologia, nas definições encontradas em diferentes dicionários, o uso dessas palavras em diversos contextos e na visão de teóricos da área religiosa. O estudo possui aportes teóricos das áreas de Terminologia, Tradução e Discurso, para assim, compreendermos a linguagem religiosa, o transporte dos termos sagrado e profano da área religiosa para outras áreas do conhecimento e entender como o discurso religioso influencia na concepção dos cristãos sobre tais termos. Fazse necessário atentar para a origem desses termos e como os dicionários os definem. A Bíblia Sagrada é outro recurso utilizado na pesquisa, verificaremos como os termos “sagrado” e “profano” são empregados em um livro de cunho altamente religioso. Textos jornalísticos também servirão de contribuição nesse trabalho, notaremos, em um ambiente informativo, os contextos que os termos “sagrado” e “profano” integram e as associações a eles dadas. Oferecerá embasamento teórico neste estudo autores como Ieda Maria Alves, Maria da Graça Krieger, Maria José Finatto, Adail Sobral e Eni Orlandi. Palavras-chave: Terminologia. Tradução. Discurso. Sagrado. Profano.
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Em todas as religiões o sagrado se manifesta, o homem vive a experiência religiosa seja no espaço ou no tempo como já afirmara Mircea Eliade. Em contrapartida, o profano remete a tudo que não corresponde ao sagrado, trata-se da negação a vivência religiosa.
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Introdução
Adriana da Silva Lopes Entre o profano e o sagrado: o dilema da santidade
Entender essa dualidade faz-se necessária ao fato que nos levará a um debate de um dos assuntos mais polêmicos do campo religioso – a dualidade entre o sagrado e o profano. O objetivo deste trabalho é realizar um estudo de caso dos termos “sagrado” e“profano”. A investigação irá se concentrar na análise da etimologia, nas definições encontradas em diferentes dicionários, ouso dessas palavras em diversos contextos e na visão de teóricos da área religiosa. Sabe-se que o estudo de caso requer uma análise mais aprofundada e minuciosa sobre um termo, por isso buscam-se nesta pesquisa referências pertinentes para a compreensão da relação oposta entre “sagrado” e “profano”. É necessário considerar os dicionários disponíveis na internet que, além de trabalharem com a origem dos termos, oferecem várias acepções acerca dos termos “profano” e “sagrado”, assim como de seus sinônimos e antônimos. A Bíblia Sagrada é outro recurso utilizado na pesquisa, verificaremos como os termos “sagrado” e “profano” são empregados em um livro de cunho altamente religioso. Textos jornalísticos também servirão de contribuição nesse trabalho, notaremos, em um ambiente informativo, os contextos que os termos “sagrado” e “profano” integram e as associações a eles dadas. Neste estudo de caso será necessário aprofundar nosso conhecimento a propósitoda Terminologia, haja vista que “sagrado” e “profano” são considerados termos comumente utilizados por indivíduos da área religiosa. Por esta razão, verificaremos quais são os motivos que fazem com que o termo “profano” adquira o sentido de ser o oposto de “sagrado” e de não religioso.
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O estudo de um determinado termo ajuda-nos a compreender a linguagem de uma determinada área técnica. Mais ainda, no âmbito da língua de especialidade ocorrem variações, processos de derivação, neologismos semânticos, dentre outros fenômenos da língua. A terminologia é um campo de estudo que se volta a entender esses casos linguísticos próprios do conhecimento especializado. Dedicar-se ao estudo dos termos especializados requer, além de buscar sua definição, uma percepção sobre sua representatividade e relevância para as diversas áreas do conhecimento. Wuster (apud Krieger; Finatto, 2004), trata o termo como uma unidade terminológica dotada de um conceito para dar significação a palavra e é justamente o conceito, o responsável pelo caráter terminológico de uma unidade lexical da língua, ele “ estabelece a propriedade básica que distingue
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A terminologia nas diversas áreas do conhecimento: o sagrado e o profano sob diversos aspectos
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termos e palavras, salientando que a compreensão de uma unidade da língua, enquanto termo, está fundamentada no papel conceitual do signo” (Krieger; Finatto, 2004, p. 76). O que de fato caracteriza o termo é seu conteúdo especializado. Krieger e Finatto atestam que terminologia é a definição dos termos de caráter técnico-científicos, pode significar, ainda, o campo de estudos desses termos. A terminologia, além de oferecer fundamentação teórica, possui um lado de aplicação, como exemplo tem-se os glossários e os dicionários técnicos que servem como organizadores das terminologias. Os termos técnico-científicos abrangem dimensões cognitivas e linguísticas, cognitiva porque o termo expressa um conhecimento especializado e abarca uma dimensão linguística porque se voltam para o componente lexical especializado ou temático das línguas (Krieger;Finatto, 2004, p. 16). Para melhor apreensão sobre terminologia, o trecho a seguir esclarece-nos que:
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Importante frisar que o emprego das terminologias possui finalidade nos processos de comunicação de uma área científica. Krieger e Finatto expõem que essas funções estão “vinculadas à tridimensionalidade das faces constitutivas da terminologia – linguística, conceitual, comunicativa”, as autoras se embasam nos estudos de Benveniste a qual explana que o fomento de uma terminologia reflete no advento e desenvolvimento de um conceito novo. Acrescenta ressaltando que a terminologia é fundamental para a ciência, visto que é a partir da imposição dos conceitos, por meio da denominação, que a ciência existe e consegue se impor (Benveniste apudKrieger;Finatto, 2004, p. 17). Os estudos de Benveniste proporciona ao pesquisador entender a relevância do processo de
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Ao constituir a expressão lexical dos saberes científicos, técnicos e tecnológicos, a terminologia é um elemento inerente às chamadas comunicações especializadas, as quais são tradicionalmente associadas à redação de artigos científicos, teses, resenhas, manuais, textos especializados em geral. Entretanto, também em padrão oral, desenvolvem-se intercâmbios comunicativos entre especialistas de um mesmo campo de atuação e interesse. Como esse tipo de comunicação especializada possui determinadas particularidades, como precisão, objetividade e o uso sistemático de termos técnicocientíficos, costuma também ser identificada como língua para fins específicos (...), tecnoleto, língua de especialidade entre outras denominações (Krieger;Finatto, 2004, p. 16).
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denominação do componente lexical das línguas, nos termos de especialidade “o componente lexical (...) permite o homem denominar objetos, processos e conceitos que as áreas científicas, técnicas, tecnológicas e jurídicas criam e delimitam conceitualmente”. O léxico especializado oferece princípios e propósitos que integram diversos campos sociais e profissionais. As terminologias contribuem para o apagamento de ambiguidades e da polissemia na comunicação profissional, tornado assim, os conceitos mais precisos e objetivos, acarretando na incidência da univocidade. Krieger e Finatto (2004, p.18) dizem-nos que “a precisão conceitual torna-se uma condição necessária para um eficiente intercâmbio comunicativo, seja no universo da transmissão do conhecimento científico, seja para o assentamento de toda sorte de contratos jurídicos e comerciais”, possibilita também a criação de um intercâmbio tecnológico, científico e cultural. Nos estudos de Rosiane Braga uma abordagem sobre a relação que há entre conceito e termo nos faz compreender como esses dois elementos permeiam o campo da terminologia. O conceito, por fazer parte dos camposcientíficos e tecnológicos, requer uma unidade linguística, ou seja, originando o termo. Este por sua vez, é essencial para a relação entre o cognitivo e o semiótico, os termos facilitam a compreensão dos elementos distintivos que os definem. Braga (2002, p. 61) completa “é através dos termos que operamos os conceitos, que comunicamos um saber e formulamos nossos próprios pensamentos”. Sobre o conceito, Braga assevera que ele determina a função dos termos no interior de um conjunto estruturado, por isso o atributo semântico que lhe é dado. A terminologia, por meio das teorias da linguagem, se dedica a origem dos termos e procura entendê-los nos diversos campos científicos, além disso:
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Portanto, pode-se afirmar que a terminologia é um campo de estudo multidisciplinar por estabelecer um diálogo com diversas áreas do conhecimento. Dias (2000) ampara-se nas pesquisas de Cabré quando trata da terminologia como interdisciplina, posto que esta se
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A terminologia constitui-se em um campo de conhecimento que, ao dialogar com diferentes áreas especializadas, se capacita a estabelecer princípios e métodos de elaboração de ferramentas e produtos tais como sistemas de reconhecimento automático de terminologias, glossários, dicionários técnicoscientíficos e bancos de dados terminológicos (Krieger;Finatto, 2004, p. 22).
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organiza com base em fundamentos de outras disciplinas tendo um apoio teórico e objeto de estudo estabelecidos. Ao se embasar em outros campos de estudos, a terminologia elege elementos para utilizar dessas áreas e “constrói um espaço próprio e original, diferenciando dos outros campos científicos” (Dias, 2000, p. 91).
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Os estudos da Tradução permite-nos relacionar e entender os termos abordados neste artigo com os conceitos sobre o que é traduzível. Sobralmenciona que toda ação simbólica e o uso da linguagem são consideradas formas de tradução, visto que ela proporciona um sistema de produção de sentidos seja por meio de textos, imagens ou sinais. No processo comunicacional entre sujeitos, o que uma pessoa diz a outra é compreendido por quem recebe de uma maneira coletiva, nas palavras de Sobral (2008, p. 31) é o “consenso” social sobre o que algo significa, e ao mesmo tempo de uma maneira individual, o que depende de quem diz uma coisa e daquele a quem é dita essa coisa, a situação em que é dita etc.”. Segundo o autor, o emissor traduz o que vai dizer conforme quem é seu receptor, ou seja, ocorre um processo de interfluência e de adaptação de expectativas conforme o contexto. O indivíduo, sendo membro integrante de um sistema coletivo, atua na criação desse sistema e respeita as regras impostas por ele. O sujeito utiliza o sistema coletivo de modo particular, com suas particularidades e de suas respectivas relações com a sociedade, dessa maneira o aporte de suas experiências individuais e coletivas faz nascer a língua. Sobral nos explica que apesar de haver uma expressão individual da linguagem, não existe uma linguagem pessoal, se assim fosse a compreensão entre sujeitos se tornaria algo impossível. O autor aclara que uma linguagem comum a todos existe, o que não há de fato é uma linguagem que não seja transformada pelos sujeitos, por isso Sobral (2008, p. 32) afirma “traduzir nesse sentido amplo é parte constitutiva da vida semiótica dos sujeitos, porque traduzir é sempre “transferir”, ou seja, transportar algo de um lugar para outro, mesmo que sejam lugares abstratos”. Essa transferência pode ser entendida no campo da Terminologia na medida em que o transporte de um termo de uma determinada área de especialidade para outra pode acarretar na mudança de sentido, é próprio do processo de tradução alterar o que é transportado. Sobral afirma-nos que qualquer sentido produzido pode ser considerado tradução, ainda que dois sujeitos tratem, frente a frente, do “mesmo”,
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Tradução e Terminologia
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abordam também do “outro”. Trazendo essas questões para a Terminologia, pode-se afirmar que o termo empregado em uma área pode ser utilizado em outra com alterações de sentidos. Discurso Religioso O discurso religioso está inserido na sociedade através de uma instituição cujo poder e força influenciam na vida de muitos cristãos, a Igreja. O discurso desta intervém na vida e mentalidade dos fiéis, cuja fé os faz acreditar na palavra de um pastor ou padre, enfim, um pregador, sendo eles considerados representantes de Deus na Terra. O estudo do discurso irá nos fazer compreender como sagrado e o profano integram uma construção religiosa. Em nosso cotidiano percebemos o quão é abrangente a presença incorpórea de Deus na vida dos cristãos, principalmente seu papel na formação de uma ideologia religiosa, os dogmas exemplificam bem como se estabelece as relações de sujeitos no campo religioso. No discurso religioso quem assume a palavra está representando a voz de Deus, para melhor compreender esta questão veremos o que fala Eni Orlandi (1983, p. 218) sobre o tema:
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Esse caráter superior de Deus o faz maior que os homens, observemos a assimetria que há nesta relação: Deus é o locutor e o homem é impossibilitado de assumir tal papel, logo, constatamos a inexistência da reversibilidade, visto que não há troca de papéis na interação discursiva (Orlandi, 1983, p. 219). Nos diferentes tipos de discurso a pessoa que detém a palavra assume a função de representante, no discurso religioso a voz de Deus está na palavra do padre ou pastor. Orlandi (1983, p. 219) acrescenta “essa é, para nós, a forma de mistificação: em termos de discurso, é a subsunção de uma voz pela outra (estar no lugar de), sem que se mostre o mecanismo pelo
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No discurso religioso, há um desnivelamento fundamental na relação entre locutor e ouvinte: o locutor é do plano espiritual (o Sujeito, Deus) e o ouvinte é do plano temporal (os sujeitos, os homens). Isto é, locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo totalmente diferentes e afetadas por um valor hierárquico, por uma desigualdade em sua relação: o mundo espiritual domina o temporal. O locutor é Deus, logo, de acordo com a crença, imortal, eterno, infalível, infinito e todopoderoso; os ouvintes são humanos, logo mortais, efêmeros, falíveis, finitos, dotados de poder relativo. Na desigualdade, Deus domina os homens.
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qual a voz se representa na outra”. Consideremos que esta relação é uma representação de caráter estritamente simbólico. Necessário enfatizar que não há autonomia no discurso religioso, aquele que representa a voz de Deus não possui o poder de modificar ou alterar a Palavra, uma vez que o texto sagrado, a Igreja, as cerimônias tendem a regular o representante. O estudo sobre a análise do discurso religioso complementa esta pesquisa de forma que nos direciona a compreensão de como o sagrado e o profano formam uma construção religiosa. O discurso religioso tem poder e tal poder é exercido direcionado aos cristãos de modo que os façam perceber que a Palavra está sob mediação Divina. Cabe à religião distinguir o que é profano e sagrado, essa delimitação transcorre para a mentalidade dos fiéis.
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No que tange o universo religioso, sabe-se que há uma relação dualista entre os termos sagrado e profano. Esses dois elementos são considerados opostos e distintos na medida em que o sagrado está atrelado à religião e o profano não. Sobre eles,Émile Durkheim diz-nos que “o sagrado e o profano foram pensados pelo espírito humano como gêneros distintos, como dois mundos que não têm nada em comum” (Durkheim, 1996, p.51), para o teórico se há religião, o sagrado se distingue do profano. Eliade (1999) também compartilha da mesma ideia que Durkheim, o autor salienta que “o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano”. Para Eliade uma experiência profana não se encontra completamente no estado puro, o homem que escolheu pela vida profana não consegue extinguir o comportamento religioso. Por exemplo, quando o homem se encontra em certos lugares que de alguma forma foram marcantes em sua vida,trata esses espaços como locais únicos e considera-os “lugares sagrados” do seu mundo particular “como se neles um ser não-religioso tivesse tido a revelação de uma outra realidade, diferente daquela de que participa em sua existência cotidiana” (Eliade, 2010, p. 28). Portanto, são considerados sagrados os fatores atrelados à religião, mitos, crenças, etc. Quanto ao profano, este se manifesta em fatos naturais, biológicos, normais, ou seja, elementos não ligados ao sagrado, afirma Jaime Patias.O autor expõe-nos como se estabelece a relação de oposição entre sagrado e profano, com base nos termos a seguir: “transgressão-respeito, puro-impuro; benfeitor-temível,interior-
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O sagrado e o profano segundo a concepção de teóricos da religião
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exterior;permitido-interdito; dom-violência; vida-morte; naturezacultura; ordem-caos”. Não há como compreender o profano se deixarmos de lado o conceito de sagrado. Os termos estão intimamente relacionados, mesmo sendo considerados opostos. Aldo Natele Terrin, antropólogo da religião, atesta que no mundo atual os rituais sagrados ganham menos espaço quanto que os rituais seculares e profanos tendem a aumentar. A passagem de um ritual sagrado para o profano incide de maneira considerável, por isso que muitos pesquisadores tratam de ritos quando fazem a relação com os rituais profanos. A definição de sagrado e profano nos dicionários O universo religioso alimenta-se de fatores que remetem a santidade, ou seja, ao sagrado. Para melhor apreensão, a Enciclopédia Temática Knoow nos oferece uma definição ampla sobre o termo: A palavra Sagrado, derivada do latim “sacer” (sagrado), constitui uma das dimensões fundamentais da vida religiosa e designa uma área ou conjunto de realidades (seres, lugares, coisas ou momentos) que de certa forma estão separados do mundo profano comum, manifestando um poder superior e podendo ser abordados apenas ritualmente. No contacto com o sagrado, o homem experimenta algo que o ultrapassa, que o transcende. Assim sendo, as realidades sagradas não existem em função das suas próprias características, mas sim devido à transcendência nelas manifestada.
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adj (part de sagrar) 1 Que recebeu a sagração; que se sagrou. 2 Relativo, inerente, pertencente, dedicado a Deus, a uma divindade ou a um desígnio religioso: A Escritura Sagrada. 3 Digno de veneração ou respeito religioso pela associação com Deus ou com as coisas divinas; santo, santificado: O sagrado coração de Jesus. 4 Pertencente à religião ou ao culto religioso, ou relacionado com eles: Música sagrada. 5 Que recebeu um caráter de santidade, mediante certas cerimônias
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Sagrado é um substantivo masculino e insere-se na classe de adjetivos, de acordo com “Léxico: dicionário de português online” o termo remete àquilo “1. que se deve respeitar: um local sagrado 2. relativo a Deus ou à religião: um ritual sagrado”. São considerados sinônimos de sagrados palavras como: bem-aventurado, sacro, sacrossanto, santo e venerável. Vejamos no Dicionário Michaelis às definições de sagrado:
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religiosas. 6 Que, pelas suas qualidades ou destino, merece respeito profundo e veneração absoluta; venerável. 7 Diz-se de uma coisa em que não se deve mexer ou tocar. 8 Que não se deve infringir; inviolável. Antôn (acepção 4): profano. sm 1 Aquilo que é sagrado. 2 O que foi consagrado pelas cerimônias do culto. 3 Lugar vedado a profanações. 4 Lugar privilegiado.
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Profanidade,profanador,profanável,alheio,distante,distraído,estr anho,forasteiro, impróprio,isento,leigo,ádvena,adventício,alienígena,chocante,d esconhecido,esquisito,estrangeiro,exótico,extravagante,heterócl ito,indefinível,inusitado,invulgar,misterioso,singular,ignorante, laical,laico,secular,temporal,mundano,material,profaiki,terreno,
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Em contraposição a todos os aspectos ligados ao sagrado, o termo profano remete a tudo que não se insere no campo religioso. Do mesmo modo que os termos são opostos eles se interligam na medida em que dissociá-los acarretaria num possível comprometimento de interpretação. Por esta razão, a presente análise se preocupou em fazer um estudo de caso desses dois termos simultaneamente. Segundo o Significado e origem das palavras, o termo “profano” advém do latim profanum, pro (antes) e fanum (templo). O termo era comumente empregado para definir todas as pessoas que estavam fora ou na frente dos templos religiosos, as outras pessoas que adentraram nos templos eram denominadas de religiosas ou sagradas. De acordo com o Dicionário Aurélioo termo “profano” pode ser um adjetivo ou um substantivo masculino. No caso de adjetivo, é atribuído a tudo que é estranho a religião, o profano contravém a santidade de tudo que é considerado sagrado segundo o Aurélio. Quando o termo está inserido na classe de substantivo masculino, refere-se a uma pessoa leiga, não dotada de conhecimentos religiosos, um indivíduo estranho a uma seita ou religião. No Dicionário online Michaelis, outras acepções de “profano” são expostas, tais como: “contrário ao respeito devido à religião; que não pertence à classe eclesiástica; não monástico; secular; herético; não iniciado nos ritos ou mistérios religiosos; não iniciado em certas ideias ou conhecimentos; que não tem ilustração; vulgar”. Como vimos, o termo ganha outras conotações, mas sempre buscando distinguir e estabelecer uma relação contrária ao sagrado. No Dicionário Informal podemos constatar que além das definições vistas anteriormente, o termo “profano” adquire a significação de macular e desonrar, o dicionário traz ainda uma série de sinônimos para o termo, vejamos:
Adriana da Silva Lopes Entre o profano e o sagrado: o dilema da santidade
aguaceiro,borrasca,chuva,decíduo,passageiro,precoce,procela,p rovisório,tempestade,tormenta,tufão.
O Dicionário Informal traz ainda uma lista com os antônimos de profano: “sagrado; sacro; santo; religioso; hierático”. Os termos “sagrado” e “profano” em contextos de notícias jornalísticas Frequentemente ao lermos uma notícia sobre religião e cultura nos deparamos com os termos “sagrado” e “profano”. Atribuímos a ele sempre um caráter negativo e para os religiosos mais fervorosos o termo corresponde a uma ofensa aos objetos sagrados. Vejamos agora a aplicação dos termos aqui tratados em diferentes notícias veiculadas em jornais e revistas. No jornal Público nos deparamos com“profano” em dois momentos. O primeiro deles, “profanação” trata-se de uma derivação do termo que para título de conhecimento encontra-se presente neste estudo de caso, mas o significado atribuído a ele é o mesmo: Sindbad Rumney recordou, por sua vez, que o processo de 1994 terminou com um acordo entre as partes em 1996, segundo o qual os herdeiros passariam a ser consultados em todas as “principais decisões” relativas à colecção, algo que, afirma, nunca aconteceu. O representante dos herdeiros insurge-se ainda contra aquilo que classifica como “profanação” do túmulo de Peggy Guggenheim, cujas cinzas repousam nos jardins do palácio (Jornal Público, 19 de abril de 2014).
Atualmente, acusa Sindbad Rumney, “já não é um jardim para meditação ou um lugar ‘sagrado’ dedicado a Peggy Guggenheim, é um local profano que glorifica colecionadores”. Isto porque, acrescenta, se encontram atualmente espalhadas pelo jardim obras doadas por Patsy e Raymond Nasher. Além disso, Sindbad Rumney diz que o espaço é alugado para festas privadas e para eventos de angariação de fundos para o museu (Jornal Público, 19 de abril de 2014).
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Vejamos agora como o Jornal O Globo empregou o termo “sagrado”:
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Em seguida encontramos o termo “profano” na mesma notícia:
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
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CARACAS – Opresidente venezuelano, Nicolás Maduro, pediu que os resultados das eleições regionais deste domingo divulgados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) sejam respeitados. “Quando vier a palavra do CNE será a palavra sagrada. Peço aos que ganharem que ganhem com honra e respeito ao adversário e aos que perderem que aceitem sua derrota”, disse Maduro, ao votar no Colégio Miguel Antonio Caro, em Catia, segundo o jornal “El Universal”.
Neste contexto, a palavra que o presidente se refere receberá a sagração quando o CNE se pronunciar, ou seja, ela deverá ser obedecida sem questionamentos. Em notícias direcionadas para as manifestações religiosas quase sempre os termos “sagrado” e“profano” estão inseridos. No contexto a seguir, retirado do jornal Notícias do Ribatejo, percebe-se que os termos estão empregados de forma a estabelecer uma relação de oposição: Esta celebração [Dia de São José] digna da memória de S. José, combina as vivências do sagrado e do profano, promove ainda o artesanato e a gastronomia, e oferece concertos para todas as faixas etárias, de 18 a 23 de março, no Campo Infante da Câmara, junto à Casa do Campino (Jornal Notícias do Ribatejo, 12 de abril de 2014).
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
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“Sagrado” remete a santidade e é neste sentido que algumas passagens bíblicas empregam o termo ao se referir a algum objeto ou lugar santo, em Êxodo (29:31) diz: “Pegue o cordeiro da ordenação e cozinhe a sua carne num lugar sagrado”. A referência a um lugar, que o homem religioso sacralizou, pode ser vista também no Livro de Levítico (16:24): “Ele se banhará com água num lugar sagrado e vestirá as suas próprias roupas. Então sairá e sacrificará o holocausto por si mesmo e o holocausto pelo povo, para fazer propiciação por si mesmo e pelo povo”. Em 2 Reis (17:16), um objeto aos olhos do religioso pode tornar-se sagrado, vejamos: “abandonaram todos os mandamentos do Senhor, o seu Deus, e fizeram para si dois ídolos de metal na forma de bezerros e um poste sagrado de Aserá”. “Profano”, como vimos nos dicionários, se contrapõe as referências santas do termo “sagrado”, por esta razão devemos atentar para a sua aplicação na Bíblia Sagrada, utilizar essa obra torna-se
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As atribuições dadas ao sagrado e o profano na Bíblia Sagrada
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imprescindível visto que a mesma é considerada uma referência para os religiosos. Podemos encontrar o termo em questão em algumas passagens bíblicas como no Livro de Levítico (10:10): “Vocês têm que fazer separação entre o santo e o profano, entre o puro e o impuro”. No Livro de Ezequiel (21:25) aparece novamente o vocábulo em dois momentos, cujo o primeiro está em “ó ímpio e profano príncipe de Israel, o seu dia chegou, esta é a hora do seu castigo, e assim diz o Soberano, o Senhor: Tire o turbante e a coroa”, continuando em Ezequiel (22:26): Os seus sacerdotes violentam a minha lei, e profanam as minhas coisas santas; não fazem diferença entre o santo e o profano, nem ensinam a discernir entre o impuro e o puro; e de meus sábados escondem os seus olhos, e assim sou profanado no meio deles.
Como vimos, não há variações quanto à significação do termo “profano”, este sempre está atrelado a fatores “negativos” da área religiosa. Na Bíblia Sagrada, o profano é uma designação utilizada que representa as impurezas e heresias opostas ao sagrado.
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O trabalho desenvolvido em um estudo de caso proporciona ao pesquisador uma ampla visão a respeito de um determinado assunto. Nesta pesquisa, cujo foco era estudar os termos sagrado eprofanofoi perceptível que o profano insere-se no campo religioso para servir de contraposição as questões relacionadas ao sagrado, ou seja, os fatores ligados ao mundo a-religioso adquirem o significado de profano enquanto que questões de ordem religiosa que giram em torno de crenças recebem a acepção de sagrado. Como vimos, a Terminologia é considerada um campo multidisciplinar, por esse motivo é fonte de contribuição para qualquer área de pesquisa. Constatou-se neste estudo de caso, que os termos sagrado e profano são específicos da área religiosa, não sofrendo variação semântica quando verificado nos dicionários. Nas notícias jornalísticas selecionadas para este estudo, o termo profano é utilizado para demonstrar desrespeito com as questões sagradas. Na Bíblia Sagrada o profano associa-se ao impuro por contrapor o sagrado. Este estudo de caso permitiu verificar a importância dos termos para as áreas do conhecimento, sendo a Terminologia um campo de estudo multidisciplinar cujo diálogo com os mais diversos campos do
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Considerações finais
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saber deve estar sempre presente, por isso utilizou-se da Tradução e do discurso religioso.
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Referências
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Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
Romário Duarte Sanches | Sabine Reiter Estudos dos gestos dêiticos na linguística
ESTUDOS DOS GESTOS dêiticos na linguística Romário Duarte Sanches Sabine Reiter Resumo: Este presente artigo objetiva explicitar a relevância dos estudos dos gestos, em especial os gestos dêiticos, à ciência da linguagem. Como pressupostos teóricos utilizamos Kendon (1972; 2004) e McNeil (1992; 2000; 2005). Estes autores tratam da relação dos gestos com a fala, dos gestos como linguagem, e inferem discussões dos aspectos linguísticos e cognitivos, além de sistematizarem e classificarem os gestos em tipos e fases. Os pressupostos metodológicos seguem, em partes, os métodos adotados pela antropologia visual. Também foram adotados alguns procedimentos no tratamento dos dados, como a utilização do Software ELAN. Por ser um estudo experimental, utilizamos apenas uma gravação audiovisual que contempla uma narrativa oral de um morador residente na Ilha de Santana, localizada no município de Santana – AP, Brasil. Esta narrativa compõe o corpus de dados do Grupo de Pesquisa Núcleo de Fotografias Contemporâneas (NUFOC), da Universidade Federal do Amapá. A pesquisa nos mostrou que os gestos dêiticos são visualizados na interação comunicativa do sujeito durante a narrativa e nos leva a compreender que tanto os gestos quanto a fala estão intrinsecamente ligados. Palavras-chave: Linguística. Gestos dêiticos. Fala.
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Os gestos são, relativamente, pouco investigados no Brasil. Já no cenário atual, percebemos muitas pesquisas realizadas em países da América do Norte, Europa e Ásia. Essas pesquisas vêm tomando ogesto como objeto de estudo,na tentativa de relacioná-lo como processo cognitivo, com a aprendizagem individual, com o ambiente
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Introdução
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de aprendizagem, com a aquisição da primeira e segunda língua, com a função facilitadora do ato comunicativo e outras interfaces. Neste artigo, pretendemos esboçar um breve percurso histórico dos estudos dos gestos, perpassando por alguns estudos tradicionais e atuais. Em seguida, mostraremos os principais precursores e influentes nessa área de investigação, como Kendon (2005) e McNeill (2005), autoresque sistematizaram,metodologicamente, os estudos dos gestos enquanto categoria linguística. Por fim, será feita a abordagem metodológica adotada para este trabalho e também a explicitação da análise dos dados, com algumas considerações sobre a pesquisa realizada.
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Nos estudos tradicionais,Kendon (2005) mostra que os gestos têm atraído a atenção de estudiosos por mais de dois milênios. Entretanto, o interesse centrou-se na retórica clássica, com o aconselhamento do uso de um ou de outro gesto no discurso. Na Antiguidade Clássica, os retóricos relacionaram determinadas formas gestuais, entre elas, as das mãos com o discurso, consideradas elementos essenciais da arte retórica, por meio das quais os oradores podiam influenciar os ouvintes de acordo com os seus interesses. Segundo McNeill (1992), nenhum desses estudos tradicionais considerava os gestos espontâneos acompanhados da fala. Somente na pesquisa pioneira de David Efron(1941), os gestos espontâneos foram descritosde modo sincronizado à fala. Seu trabalho foi um marco nos estudos sobre os gestos, dado ao rigor metodológico. A partir de uma visão antropológica, Efron (1941) observou e analisou dois grupos de imigrantes europeus em New York, onderealizoualgumas observações, produziu filmes em câmara lenta e inúmeros desenhos. Consideramos um dos estudos atuais mais influentes, o trabalho de Adam Kendon (1972),que investigouvários aspectos dos gestos, incluindo seu papel na comunicação, na evolução da língua e na convencionalização.Como resultado importante de sua pesquisa, Kendon (1972) propõe a integração do gesto e da fala, a partir da existência de uma unidade entre gesto e fala. Sua contribuição é retomada por pesquisadores como McNeill (2005), e têm servido de base para os avanços nos estudos dosgestos e da cognição. Apesar do grande número de livros e de artigos que foram publicados sobre osgestos,ainda estamos na fronteira de um novo campo a ser explorado. A partir dessebreve percurso histórico mencionado acima, verificou-se que a importância do gesto foi crescendo no campo dos estudos cognitivos. Daí, autores como
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Estudos dos gestos: da tradição à modernidade
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Kendon (1972; 2004), McNeill (1992; 2000; 2005), Haviland (2000)e tantos outros, considerarem que os movimentos físicos, especialmente os gestos espontâneos que acompanham a fala, são mais do que meros acessórios para a comunicação e precisam ser investigados. De acordo com Pereira (2010) somente nos últimos quinze anos o estudo sobre o gesto passa ase intensificar, envolvendo áreas como linguística, arqueologia, antropologia, biologia, neurologia, etnologia, teatro, literatura, artes visuais, dança, psicologia cognitiva, engenharia computacional e tantas outras. Esta ampliação das pesquisas e das áreas envolvidas é uma tentativa de aprofundar as investigações a respeito do gesto para que um dia possamos desvendar os mistérios que envolvem gesto e fala.
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Um dos principais pesquisadores que estudam os gestos é Adam Kendon. Para ele, o gesto é importanteporque é empregado juntamente com o discurso, formando uma unidade eficaz de enunciado (Kendon, 2005).Destacamos a proposta de integração do gesto e fala deKendon (1972),que serviu de base para os estudos de McNeill (1992) em vários aspectos, principalmente na proposição do growthpoint (ponto de germinação). Em seus estudos, Kendon (1980) aborda o aspecto da convencionalidade e do valor comunicativo dos gestos, tendo em conta o papel da fala para a compreensão dos gestos ao propor uma sequência em ordem crescente de valores de convencionalidade. Esta sequência é chamada posteriormente por McNeill (1992) de continuum de Kendone se tornou referência para a classificação dos vários tipos de gestos na atualidade. Em suma, ocontinuum de Kendon segue o seguinte esquema: 1) gesticulação; 2) gestos idênticos à língua; 3) pantomimas; 4) emblemas; e 5) linguagens de sinais. Nesta sequência, à medida que se avança da gesticulação até linguagens de sinais, a presença obrigatória da fala vai diminuindo, aumentando as propriedades linguísticas dos gestos e fazendo com que os gestos idiossincráticos sejam substituídos por sinais convencionalizados. Assim, as principais características de cada componente do continuum são: 1. Gesticulação: consiste na realização de movimentos espontâneos, idiossincráticos dos braços e das mãos que acompanham à fala/gesto; 2. Gestos idênticos à língua:são semelhantes aos primeiros, no que diz respeito a sua forma, mas estão gramaticalmente
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Os estudos dos gestos em Adam Kendon
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integrados no enunciado, o gesto pode ocupar um espaço vazio de fala; Pantomimas: as mãos desenham objetos e ações, mas a fala não é obrigatória; Emblemas: seguem padrões consensuais, uma propriedade que falta à gesticulação e à pantomima; Linguagens de sinais: são sistemas linguísticos com uma gramática e um léxico próprio.
Os estudos dos gestos em David McNeill De acordo com Pereira (2010), David McNeill é o primeiro investigador a estudar sistematicamente a relação entrepensamento e gesto.O autor retoma a proposição de Kendon (1972) sobre a integração gesto/fala. Em seus estudos, McNeill (1992; 2000; 2005) chama atenção especial para os gestos das mãos que são produzidos durante a fala, ele observa que são gestos, frequentemente e estritamente, ligados às mensagens comunicativas dos falantes. Neste sentido, o autor considera essa relação como umaunidade inseparável que tem por base o processo cognitivo. McNeill (1992) afirma que os movimentos das mãos que fazemos quando falamos são fortemente interligados com a nossa fala no tempo, no significado e na função, e que ignorar o gesto é ignorar uma parte da conversação. Para McNeill (1992), haveria uma espécie de ponto de germinação do qual se desenvolvem palavras ou frases, por um lado, e movimentos significativos de mão, por outro. A partir de então, McNeill (1992; 2000; 2005) propõe o conceito de inseparabilidade entre gesto e língua, em que considera dois elementos inseparáveis e um todo interligado (gesto e fala), sugerindo a ideia de que essa inseparabilidade representa o ponto de partida para o enunciado, denominada pelo termo growth point (GP), traduzido por Pereira (2010) como ponto de germinação. De acordo com McNeill (1992) este ponto de germinação é a unidade de ideia mínima que pode se desenvolver para um enunciado completo juntamente com um gesto.
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Outro aspecto importante do trabalho de McNeill (1992) foi a proposta de classificação tipológica dos gestos em: icônico, metafórico, rítmico e dêitico. No entanto, essa proposta inicial foi ampliada, pois os resultados dos estudos de McNeill (1992; 2000; 2005) têm mostrado que os falantes além de produzirem os quatro tipos
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Classificação tipológica e fases dos gestos
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de gestos das mãos (dêitico, icônico, metafórico e rítmico)reproduziam outras dimensões dos gestos, daí se acrescentar adimensão coesiva. Segundo McNeill (1992), os gestos dêiticos são gestos demonstrativos ou direcionais que acompanham as falas apontando geralmente as entidades concretas, neste caso, esse apontar se realiza no espaço gestual e tem como função esclarecer e clarear. O seusignificado depende do valor referencial que é atribuído ao espaço gestual selecionado.
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Geralmente, os gestos de apontar acompanham a verbalização de advérbios de lugar (além, ali, lá, aqui, baixo, direito), pronomes demonstrativos (isto, aquele) e de pronomes pessoais (eu e você). Outro pesquisador desse tipo de gesto é o antropólogo JohnHaviland (2000). Ele realizou e realiza estudos em comunidades aborígenes e ameríndias. De acordo com Haviland (2000), apontar é uma forma por meio da qual as pessoas dispõem seu conhecimento sobre o espaço, usando um gesto para indicar: um lugar, uma coisa num lugar ou algo que se move de um lugar para outro. O segundo tipo de gesto são os gestos icônicos,denominados por McNeill (1992) como gestos intrinsecamente relacionados ao discurso e expressamrepresentações figuradas, referência espacial ou acontecimento. Para ele, um gesto será icônicoquando incluir uma relação formal íntima com o conteúdo semântico, exibindo significados de objetos e de ações. Na fala, algumas palavras têm aspectos que são descritos pelos gestos icônicos que completam a imagem da cena em descrição, ou seja, indicam a qualidade dos objetos, características físicas. Em seguida, temos os gestos metafóricosque são reflexos de uma abstração, na qual o conteúdo é uma ideia abstrata, mais do que um objeto concreto, um evento ou um lugar. Nesta classificação de McNeill (1992), essesgestos são parecidos exteriormente com os icônicos, mas se referem às expressões abstratas. Os gestos rítmicos(beats), segundo McNeill (2005),estão ligados ao ritmo da fala. Para ele são simplesmente batidas (golpes) rítmicas de dedo, da mão ou do braço (predominantemente do antebraço) que conferem uma estrutura temporal ao que é dito, enfatizando a força
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Estes movimentos de apontar são tipicamente realizados com os dedos, braço esticado, indicador esticado e apontando o ponto para o qual o falante quer chamar atenção, localizar e, na maioria das vezes, com os dedos restantes encolhidos, embora qualquer extensão de objetos (objetos manipulados) ou do corpo (cabeça, nariz, queixo) possa ser usada (McNeill, 1992, p. 80).
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combativa do argumento, independente do conteúdo expressado. O gesto marca um ritmo no discurso, enfatizando certas partes. Por último, os gestos coesivos, descritos por McNeill (2005), como um grupo de gestos que está relacionado diretamente com questões funcionais no discurso, podendo ser realizados por gestos icônicos, metafóricos ou dêiticos. Eles servem para unir, de acordo com o tema, partes do discurso que se encontram temporalmente separadas. Evidenciam simultaneamente a continuidade e a descontinuidade, ou seja, são gestos tematicamente relacionados, mas temporalmente separados. Diante da classificação dos gestos,McNeill (2005) baseado nas pesquisas de Kendon (1980), apresenta a classificação composta de uma unidade gestual(G-UNIT), e que segundo ele compõe vários sintagmas gestuais,ou seja, gestos formados pelas fases gestuais. Conforme McNeill (2005) essas fases são: 1. Preparação(opcional): é a fase em que a mão se move até uma posição ideal para o golpe. 2. Golpe (obrigatório): é uma ação que atinge a amplitude máxima do esforço do gesto em torno doqual as outras fases se organizam. É a fase em que o significado representado é normalmente expresso no discurso. 3. Recuperação(opcional): as mãos retornam para descansar (nem sempre na mesma posiçãoque no início). Não pode haver uma fase de retração caso o falante se movapara um novo golpe. 4. Congelamento: é a fase em que a mão é mantida no ar, havendo uma posição de congelamento. Para Pereira (2010) as categorias degesto e fase gestualsão apenas instrumentos de análise concebidos para casos empiricamente observáveis, já que durante as articulações dos braços e das mãos observamos uma grande variedade de movimentos precisos e complexos.
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Comoprocedimentos metodológicos adotados, seguimos os métodos e técnicas da antropologia visual, por meio da observação de traços culturais de uma determinada comunidade ribeirinha amazônica feita por meio de filmagens, gravação audiovisual. Os dados que aqui serão analisados contemplam uma narrativa oral de um morador residente na Ilha de Santana, localizada no município de Santana - AP, Brasil. Esta narrativa compõe o corpus de dados do Grupo de Pesquisa
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Procedimentos metodológicos
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Núcleo de Fotografias Contemporâneas (NUFOC) da Universidade Federal do Amapá. Para análise do objeto investigado (gestos dêiticos) procuramos tratar os dados com uso do soft ELAN, que nos deu suporte para segmentação do vídeo, transcrição da narrativa e identificação dos gestos. Após essa fase, passamos para a análise, especificamente, dos gestos dêiticos expressos na narrativa. Assim, delimitamos apenas dois gestos – seguindoos parâmetros de análise de Kendon (2005) e McNeill (2005) em relação às tipologias e fases dos gestos – paraque possamos visualizar a relação intrínseca entre gesto/fala. Análise dos Gestos Dêiticos
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Para melhor entendermos a análise dos gestos, faremos uma breve contextualização da narrativa utilizada. Nosso narrador começa a nos contar um caso que aconteceu,com seu irmão e com ele, ainda quando adolescentes. Eles foram para o matocaçar junto com o cachorro (animal de estimação) chamado Deixa-comigo. No meio do caminho avistaram um bicho estranho que avançou para cima deles. O narrador conta que eles estavam amedrontados porque nunca tinham avistado aquele elemento com características de um demônio, e isso fez com que eles voltassem para casa urgentemente, esquecendo o cachorro no mato que estava caçando. No entanto, o cachorro que tinha ficado para trás foi resgatado em seguida pelo pai do narrador e por eles que tiveram que acompanhar seu pai até o local do acontecido. Quando chegaram em casa,eles perceberam que o cachorro agia diferente, um comportamento estranho, e com isso concluíram que tal bicho avistado no mato tinhaincorporado ou amaldiçoado o cachorro. Após esse breve resumo passemos agora para a análise de dois gestos dêiticos retirados da narrativa.
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Fig. 01 - Gesto Dêitico 01
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Neste gesto demonstrado acima, o narrador fala sobre a distância em que ele se encontrava quando se deparou com um bicho no mato. Ele utiliza o dedo indicador para mostrar o ponto de referência, neste caso, a escada que está há alguns metros de distância do local de onde se narra a história; epara situar o local de onde a escada se encontra, ou seja, próximo ao rio. A intenção é de situar os ouvintes em relação à distância entre o bicho e o narrador/participante do evento narrado. Tais gestos dêiticos descritos aparecem concomitantemente com a fala, respectivamente,por meio dos dêiticos linguísticos demonstrativos:aquelaealí. Assim, constatamos dois gestos dêiticos, um seguido do outro, sendo que não há repouso do primeiro gesto, e não há a preparação para o segundo gesto. Outro ponto a serdestacado é o gesto dêitico com dimensão rítmica, pois por não haver repouso do primeiro gesto e preparação para o segundo, o narrador fica com o dedo indicador estendido e repetindo a ação de apontar. Assim, sistematizamos esses gestos nas seguintes fases: 1. Preparação: acontece com o levantamento do braço esquerdo com a mão entreaberta, seguido do golpe. 2. Golpe: quando o narrador configura a mão esquerda que estava entreaberta em um gesto de apontar com o dedo indicador se referindo à escada que está alípróximo do local que se narra a história e o gesto de indicar se repete de forma rítmica até atingir o segundo gesto dêitico.
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aí o bicho veio com uma distância como a... aquela escada acolá que vai descer pro rio alí -.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.**************** *****************~~~~~~~~
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3.
Recuperação: ocorre no segundo gesto dêitico na medida em que o narrador termina de indicar o objeto referente (escada), recuando o braço esquerdo repousando as mãos sobre as coxas. Fig. 02 – Gestos Dêiticos 02
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No segundo gesto demonstrado na figura 02, o narrador fala do momento em que o bicho veio se aproximando de seu irmão (Nonato) e dele, e ambos tiveram que mergulhar no igarapé. Desta forma, ele sinaliza com os braços de forma estendida para frente, com as mãos meio espalmadas e dedos unidos, imitando o ato de mergulhar, em concomitância, indica também a distância que se obteve com o mergulho. O gesto dêitico é acompanhado pelo dêitico linguístico demonstrativo lá indicando que após o mergulho eles voltaram a superfície numa dimensão, perceptivelmente, distante do bicho. Assim, o dêitico linguístico láestá indicando a distância entre o bicho e os dois irmãos. Destaca-se também que esse tipo gestual dêitico possui uma dimensão icônica, pois o narrador além de apontar o lugar, indica com as duas mãos estendidas o ato de mergulhar. Detalhamos as fases dos gestos dêiticos da seguinte forma: 1. Preparação: ocorre com o levantamento dos braços recuados e em seguida o narrador os estendem com um movimento para frente. 2. Golpe: acontece no momento em que os braços são estendidos para frente com as mãos meio espalmadas e dedos unidos,
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fomo boiar lá embaixo -.-.-.-.-.-.-.********~~~~~~
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configurando o ato de mergulhar e apontando a distância que se obteve com o mergulho. 3. Recuperação: ocorre na medida em que o narrador termina de indicar a distância do mergulho e repousa as mãos sobre as coxas. Desta forma, constatamos a classificação dos tipos de gestos, fases e dimensões, descritas por Kendon (2005) e McNeill (2005). Além da tipologia gestual principal presente em cada gesto, observamos também a presença de dimensões de outras tipologias durante as fases dos gestos, em que não se configurou uma única tipologia já que apresentou outros componentes, como no caso do gesto dêitico 01 que apresentou a dimensão rítmica e do gesto dêitico 02, a dimensão icônica. Algumas considerações
EFRON, David. Gesture and environment. New York: King Crown Press, 1941.
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Referências
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Por meio do que foi explorado neste artigo, conseguimos visualizar um novo ramo de estudos que se apresenta na ciência da linguagem. Por meio da análise feita, constatamos a ideia de que os gestos são movimentos realizados com as mãos e que acompanham a fala, neste sentido, gesto e fala são componentes que estão diretamente ligados. Assim, o comportamento não-verbal, os gestos, podem revelar pensamentos e sentimentos, e isso precisa ser explicado, considerando outras áreas do conhecimento. Em suma, as pesquisas que têm os gestos como objeto de estudo começam a se destacar pelo seu rigor científico que vem adquirindo nas últimas décadas. Esses estudos são representados por pesquisadores que acreditam que os gestos estejam envolvidos na fase de elaboração conceitual da fala, facilitando o acesso a itens do léxico mental. Alguns resultados chamam atenção para os indícios de que a comunicação não é a única intençãoque o gesto expressa, mas que eles podem refletir e afetar os próprios processos mentais dos falantes. Com esse estudo experimental, percebemos o quanto ainda é preciso ser investigado sobre os gestos e fala, tendo em vista, que ambos os elementos, podemfornecer informações valiosas para que um dia possamos desvendar os mistérios que cercam a linguagem (língua).
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Luciana Silveira Rodrigues | Maria Adriana Leite | Robson de Sousa Feitosa Formação de professores por meio das caravanas pedagógicas
FORMAÇÃO DE PROFESSORES por meio das caravanas pedagógicas para a construção da escola bragantina
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Resumo: A Secretaria Municipal de Educação de Bragança – PA lançou em 2013 seu projeto de educação objetivando a construção coletiva da Escola Bragantina. Este projetotrouxe um programa de formação continuada que visava identificar os elementos caracterizadoresdas comunidades bragantinas e fazê-los adentrar e modificar os currículos desenvolvidos nas escolas, ressaltando os saberes e fazeres locais.Essas formações ocorreramdentro das escolas, através de ações como Jornada Pedagógica e circuitos de diálogos intitulado de Caravana Pedagógica(CP), que é objeto de estudo deste artigo.Ao nos questionarmos se nossa escola está pronta para nossos alunos reais, nos deparamos com o desafio: uma proposta de formação que promova a reflexão-ação-reflexão dos docentes em rede, objetivando reafirmá-los como protagonistas de sua história, sem negar a participação dos sujeitos envolvidos nesse processo.Pensado no formato de construção coletiva, as CP’sconstituíram-se em um processo de acompanhamento periódico, cujo objetivo foi estabelecer um contato com o corpo escolar e auxiliar em seus projetos.As CP’sforam planejadas a partir dos projetos e dados referentes ao quecada escola vinha construindo nos últimos anos como: o IDEB, dados estatísticos, programas federais, PPP, projetos culturais, etc. O formato das CP’s não propunha levar fórmulas ou modelos, mas tinha como princípio partir de uma conversa inicial com os professores sobre suas práticas, o que possibilitavapartirmos do olhar dos professores, para só então construirmos com eles a reflexão teórica para reorientação de suas atividades, culminando com a construção do planejamento de suas
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Luciane Silveira Rodrigues Maria Adriana Leite Robson de Sousa Feitosa
Luciana Silveira Rodrigues | Maria Adriana Leite | Robson de Sousa Feitosa Formação de professores por meio das caravanas pedagógicas
atividades sob a ótica do complexo temático.O presente trabalho tem por objetivo a apresentação e a análise inicial da proposta da SEMED, através das Caravanas Pedagógicas.A diversidade encontrada nas escolasreafirma que o conhecimento não é uma “caixinha fechada” ou que tenhauma forma unilateral, ou ainda que sua construção tenha que ser feita de cima para baixo em que umas poucas pessoas mandam e muitas pessoas procuram acatar.Os saberes presentes nos diversos espaços que são abordados em cada comunidade nos levama ver a escola como um espaço privilegiado de construção de conhecimento em que os saberes culturais mais próximos dos sujeitos se articulam com os conhecimentos sistematizados que os professores trabalham em sala. Palavras-chave: Saberes. Caravana pedagógica. Escola bragantina.
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Propostas educacionais voltadas para melhoria do processo de ensino e aprendizagem tornam-se válidas quando o objetivo é contribuir para sua formação enquanto indivíduo, cidadão, pessoa. Este trabalho propõe-se a relatar uma das alternativas tomadas pela Secretaria Municipal Educação de Bragança-PA no intuito de contribuir para a reformulação docurrículo das escolas de sua rede de ensino. Convém destacar que este texto de apresentação e análise inicial da proposta de formação nas escolas através das Caravanas Pedagógicas, parte de sujeitos que estavam a frente desse processo e tem um discurso marcado por características próprias de quem tem a iniciativa da formação, carregadas de expectativas de êxito ou até mesmo em alguns momentos, sobrevalorizadas. No entanto, esse lugar marcado como uma limitação não nos impede de refletir sobre a iniciativa, por considerarmos a mesma como algo inovador para o município e região, que apresenta tantos outros problemas para se articular formação de professores, currículo e realidade de vida das pessoas. Elaborar um projeto de formação continuada de professores que alcançasse os saberes locais foi o desafio que a Secretaria Municipal de Educação de Bragança-PA se propôs nos anos de 2013 e 2014. Com o objetivo de identificar os elementos quecaracterizam as comunidades bragantinas e fazê-los adentrar e transformar os currículos escolares desenvolvidos dentro da rede de ensino, dando vez aos conhecimentos
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Introdução
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dos sujeitos locais, o programa de formação continuada incentivou os professores da rede municipal de ensino a buscarem maior envolvimento com os saberes produzidos pelas comunidades, trazendo à tona uma riqueza de saberes presentes no município de Bragança. A partir da leitura de referenciais como Pistrak (2000), Freire (1997), Pimenta(2012) e Arroyo (2011) chegou-se a proposta das Caravanas Pedagógicas, que consistiamem um acompanhamento periódico nas escolas da rede municipal feito pela equipe técnica da Secretaria Municipal de Educação (SEMED). Esse acompanhamento constava de um olhar aprofundado sobre a escola em seus vários aspectos: estrutural, financeiro e pedagógico. Com base nos dados apontados pelos indicadores externos e internos, como IDEB, Provinha Brasil, estatística anual, PPP, programas federais etc., se desenhava um perfil da escola. Após a preparação da equipe, seguia-se a visita na comunidade em um encontro que constava de: momento de motivação, escuta sobre os projetos da escola e aprofundamento/ampliação desses projetos. Esse formato abriu caminhos para o processo de discussão das condições materiais que os sujeitos vivenciam na sua realidade. Ao professor enquanto sujeito oportuniza-se a reflexão-ação-reflexão de sua prática pedagógica, pela aproximação com seus discentes, com a comunidade escolar e seus problemas cotidianos. Aos alunos por sua vez,através das práticas dos professores, oportunizaram-se momentos de aproximação dos currículos em sala de aula com a realidade de suas comunidades, gerando processos de identificaçãocultural. A busca pelo currículo integrado através dos complexos temáticos foi uma proposta que enfrentou resistência de alguns professores, principalmente aqueles que defendem linhas mais cognitivistas. Logo, a expansão da proposta se deu de forma lenta e cheia de desafios. Foi-se construindo juntamente com os professores e de acordo com a aplicação dos projetos de cada escola tinha-se um outro momento de reformulação dos projetos.O resultado foi exposto para a comunidade escolar através dos Museus Pedagógicos e também à comunidade acadêmica através do livro intitulado “I Caderno de Práticas Pedagógicas da Amazônia Bragantina”. O programa de formação continuada proposto pela SEMED nos anos de 2013 e 2014 aconteceu em seis Caravanas Pedagógicas e duas Jornadas Pedagógicas. Deteremos nosso olhar neste trabalho para 3 (três) das CP’s as quais ocorreram nas comunidades de Benjamim Constant, Vila do Castelo e de Bacuri Prata no ano de 2014.
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Caravanas pedagógicas no chão da escola Dentro da proposta de educação da SEMED-Bragança-PA, quepossuía como metaa construção coletiva da escola bragantina, existia um momento denominado pela equipe técnica de Caravanas Pedagógicas (CP’s). Consistia em um encontro entre a equipe técnica da SEMED e os professores, que ocorria nas escolas. Seu objetivo era aproximar a equipe técnica e os professores a fim de construir as bases necessárias para elaboração de uma nova política curricular. Essa perspectiva postula aspectos contrários aos ditos a seguir, quando,
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Esta assertiva se faz presente nos modelos de formação que são desenvolvidos pelas secretarias municipais de educação na maioria dos municípios da região, onde o aluno pensado para as práticas dos professores é um sujeito ideal, que difere daqueles que frequentam e são atendidos por nossas escolas. E as formações continuadas são momentos estanques, propostas por universidades ou consultorias, realizadas em espaços diferentes daqueles que os professores atuam cotidianamente. Por outro lado, oprojeto das Caravanas Pedagógicas foi pensado como um momento de formação que não negasse o direto dos professores de tornarem-se protagonistas de sua docência e que esses pudessem pensar os alunos reais envolvidos em suas comunidades e com identidades culturais próprias. Assim, o processo de formação se dava no chão da escola, onde o deslocamento realizado movia os facilitadores e não os professores, o que permitia maior envolvimento e proximidade com os elementos daquela comunidade atendida. Para substanciar as ações dos professores foi preciso muni-los de instrumentos para pensarem as possíveis ações ao retornarem ao chão da escola, após os momentos de formação, ou seja, os conhecimentos científicos precisavam estar bem esclarecidos para poderem dialogar com os conhecimentos construídos na realidade escolar, respeitando a cultura e saberes locais dos sujeitos. E esses conhecimentos da realidadeprecisam estar relacionados com as condições materiais de vida das pessoas do lugar, de tal forma que traduzissem o trabalho e os tipos de vida da comunidade.
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A maioria dos cursos de formação de professores nos prepara para atuar com o aluno ideal - por que não dizer irreal (...) [visto que] aprendemos os conteúdos de nossas áreas e que estamos longe de pensar em uma realidade concreta da escola na qual iremos atuar (Machado, 2008, p. 162).
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Nesse sentido, cabe exemplificar com os ensinamentos da escola do trabalho: Não se trata de estudar qualquer tipo de trabalho humano, qualquer tipo de dispêndio de energia muscular e nervosa, mas de estudar apenas o trabalho socialmente útil, que determina as relações dos seres humanos(Pistrak, 2000, p. 50).
As formações ocorridas nas comunidades de Benjamim Constant, Vila do Castelo e de Bacuri Prata no ano de 2014 visavam conhecer a realidade escolar local, na tentativa de compreender como estavam sendo conduzidos os projetos que vinham sendo executados pela escola e comunidade escolar. O encontroconstituía-se de:momento de motivação, de escuta dos projetos da escola feito pela fala dos professores e de estudo, para organização/ampliação dos projetos. Tudo devidamente registrado em fotografias (como na figura 1), áudios e relatórios para posterior análise a aprimoramento da proposta, além de constituir acervo para o currículo da escola bragantina. Fig. 01: Vista parcial da sala de aula com professores na escola da comunidade de Benjamim Constant.
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Na localidade de Benjamim Constant, a Escola Regina Gonçalves apresentou como proposta de trabalho a temática “O Trem”, que teve uma estação na vila, na antiga estrada de ferro BelémBragança, com a extensão de um ramal até essa localidade. Entre os relatos, destacamos a fala da professora Lidiane, da disciplina Ciências do Ensino Modular em que a mesma apresenta a defesa da escolha do projeto a ser trabalhado na escola: “sentimos necessidade de resgate da
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Fonte: Sanderson Marcelo.
Estuda-se a realidade atual pelo conhecimento dos fenômenos e dos objetos em suas relações recíprocas, estudando-se cada objeto e cada fenômeno de pontos de vista diferentes. O estudo deve mostrar as relações recíprocas existentes ente os aspectos
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identidade local, uma vez que os alunos não sabiam falar sobre a história do trem ou sobre as características do local”. E a fala da professora Antônia de uma turma multisseriada da comunidade vizinha chamada Tijoca, a qual afirma que “os alunos vem zerados do lar e isso dificulta o processo de ensino”. A fala da primeira professora parte de alguém que não é da comunidade e que tem fortemente a ideia de se retomar momentos históricos por curiosidade ou saudosismo. Ambos os relatos, ainda prezam por um deslocamento entre a proposta de contextualização do currículo e a vida dos alunos, pois tem características generalizantes em que desconsideram as experiências dos mesmos, seja pelo trecho “não sabem falar sobre a história do trem” ou “os alunos vem zerados do lar”. Pautando-se pelo trabalho de respeito ao pensado pelos professores e a manutenção da temática, essas respostas foram problematizadas em conjunto pelos formadores com os professores para revisão de conceitos teóricos e redirecionamento das atividades a serem planejadas para a prática pedagógica de sala de aula, de forma a redimensionar a leitura de mundo e valorizar os aspectos mais próprios da comunidade local. Os momentos de escuta com os professores nas escolas para socialização de seus trabalhos docenteseramorientados pelas perguntas abaixo: 1. Quais os projetos/ações exitosas da escola no ano de 2013? 2. Como a formação na Jornada Pedagógica 2013 lhe possibilitou a construção da proposta na escola? Se tiver começado esse ano, o que já conhece da proposta? 3. Quais as possibilidades e os limites da proposta de currículo integrado para sua escola? 4. Quais as ações necessárias para a implementação da proposta por sua escola? Ao respondê-las, os professores das três comunidades eram motivados a refletirem sobre a objetividade de seus trabalhos, bem como sua relevânciapara a comunidade. Uma vez que a proposta de ensino baseava-se nos complexos temáticos,onde toda metodologia apresentada seria resultado de um estudo sobre a realidade local e suas questões problemas orientariam todas as demais possíveis pesquisas, entendendo-se, que
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diferentes das coisas, esclarecendo-se a transformação de certos fenômenos em outros, ou seja, o estudo da realidade atual deve utilizar o método dialético (Pistrak, 2003, p.134).
Não há necessidade de uma fidelidade ao roteiro préestabelecido, pois as respostas aos instrumentos de motivação ditavam o ritmo do encontro. Cada projeto apresentado, experiência contada, ou questionamento levantado impulsionava os trabalhos a adentrarem nos saberes da região e se relacionarem aos conteúdos a serem estudados. Não se tratava de propor um regionalismo curricular, mas de trazer a realidade do aluno para o currículo e que este passasse a fazer sentido para a comunidade escolar e local. Tornava-se necessário acostumar-se ao fato de que em um processo de construção coletiva, é diante da realidade que se devemtiraros encaminhamentos mais adequados para a continuidade dos trabalhos. É importante considerarmos dois pontos da proposta: integração da escola em torno do complexo e alcançar as especificidades por nível e área de conhecimento. Se não houver participação da comunidade na elaboração dos projetos a proposta perde o sentido. Tão importante quanto, é a busca do aprimoramento do saber local: não basta conhecer o espaço, é preciso passar do saber local aos saberes especializados.Para se chegar a uma visão mais clara desse processo precisamos estar no chão da escola, sentir a maturidade do seu projeto para propor o passo seguinte levando a alcançar o objetivo que é a mudança na estrutura curricular e que a comunidade se veja na escola bragantina.
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Para que a comunidade pudesse ver o que a escola estava desenvolvendo foi proposto o Museu Pedagógico Bragantino, onde o conjunto das experiências desenvolvidas pelas escolas seria exposto não só como produto, mas também como processo, preliminarmente dentro da própria comunidade e posteriormente em um evento central, além de uma produção bibliográfica. O ponto de partida para a criação do museu foi a necessidade de visualizar o processo de construção dos complexos temáticos pelas escolas e como estes estavam se configurando enquanto proposta de ensino. Em junho de 2013 ocorreu o I Museu Pedagógico onde houve a apresentação de mais de vinte trabalhos, que nos deram o primeiro indicativo do tamanho da complexidade, não apenas com relação aos saberes, mas com relação ao formato dos complexos. Já no II Museu foram quarenta trabalhos expostos, alguns já mostrando avanço nas
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Socialização das práticas no III Museu Pedagógico
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pesquisas iniciadas no primeiro museu e outros com resultados preliminares de suas primeiras pesquisas. Foram as produções das escolas no ano de 2013 que serviram de matéria para estudo na Jornada Pedagógica de 2014. Partindo da análise dos trabalhos das escolas e ampliando com os círculos de diálogos por área de conhecimento a proposta para o III Museu Pedagógico veio no sentido de produção científica, ou seja, propõe ao professor uma sistematização da sua práxis de forma que estas contribuam para a reformulação curricular proposta inicialmente. A ideia era criar um movimento em espiral de reflexão-açãoreflexão, através de um processo de criação para além das práticas usuais, procurando soluções para as problemáticas que se apresentam na realidade e, posteriormente, ou ao mesmo tempo, produzir conhecimento científico sobre esse fazer. Tornar-se um professor que pensa sua rotina, um profissional reflexivo, como nos apontaPimenta.
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O III Museu Pedagógico no ano de 2014 apresentou a seguinte formatação: o primeiro momento na própria escola, o segundo momento constou de colóquio a partir do qual as escolas inscreveram seus projetos em forma de artigo e relatos de experiências para exposição à comunidade científica e o terceiro momento constou de exposição em praça pública dos projetos desenvolvidos nas escolas, voltada para o público em geral. Todos os trabalhos apresentados foram reunidos em um livro. Os trabalhos publicadosno “I Caderno de práticas pedagógicas da Amazônia Bragantina” possuempesquisas que contém experiências exitosas de cada comunidade. Estes foram agrupados nos eixos temáticos, a saber: A história da minha escola; Criança, cultura e brincadeira; O complexo temático no ensino fundamental: proposições de práticas a partir do currículo integrado; educação do campo: memórias, saberes e práticas materializando a escola bragantina e o currículo integrado na EJA: construindo a escola bragantina. É visívelo envolvimento dos professores que compõem as escolas municipais, pois seus trabalhos surgiram a partir das problemáticas da comunidade
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Esse conhecimento na ação é o conhecimento tácito, implícito, interiorizado, que está na ação e que, portanto, não a precede. É mobilizado pelos profissionais no seu dia a dia, configurando um hábito. No entanto, esse conhecimento não é suficiente. Frente a situações novas que extrapolam a rotina, os profissionais criam, constroem novas soluções, novos caminhos, o que se dá num processo de reflexão na ação... (Pimenta, 2012, p.23).
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e contaram com a participação desta no apontamento de soluções e novos desafios. Para além das exposições nos museus pedagógicos, no chão da escola, através das CP’s foi possível observar o desenvolvimento da proposta de ensino e de formação dos professores, via complexo temático e fundamentado na pedagogia da memória. Enquanto proposta de formação continuada, as CP’s mostraram as possibilidades e desafios na implementação de uma proposta em rede. O que vivenciamos em nossas escolas não foi uma adesão maciça à proposta, assim como a densidade teórica apresentada em alguns casos ainda foi tateante, da mesma forma que alguns projetos trabalhados insistiam na pontualidade das datas comemorativas, ou até mesmo o complexo temático, em alguns casos limitava-se a temas descolados da realidade e meramente verbalistas, sem a participação das crianças e o modo de vida das pessoas. A proposta por complexo temático que possibilitaria a incursão dos saberes e fazeres locais nos currículos escolares pela ação coletiva requer tempo para sua consolidação. As contribuições apresentadas ficam para aprofundar o debate e lançar bases para novas formas de pensar a educação bragantina. Não há novidades em tal proposta: falou-se de uma escola real, com pessoas reais, que vivenciam sua formação no chão da escola. O ponto que consideramos ímpar da proposta é permitir a experiência no tempo/espaço da escola para superação das questões problemas que se encontram no interior de cada comunidade que constitui a Amazônia bragantina.
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O trabalho das Caravanas Pedagógicas veio permitir encontrar na escola um lugar de humanização, destacado por Freire (1997, p. 52) como vital para o processo ensino aprendizagem. Os contatos com os professores na tentativa de uma possibilidade real para o desenvolvimento da pessoa foi uma experiência marcada por alguns desafios na formação pedagógica, como as mediações perante os processos de reflexão-ação-reflexão dos professores enquanto sujeitos da ação docente. Com a promoçãodo trabalho coletivo para a emancipação do sujeito, nos foi permitido perceber as mais variadas formas de provocar a expansão das fronteiras culturais e humanas dos estudantes e perceber nos professores que, partindo da reflexão, podem promover práticas que criem relações construtivas entre os alunos e proporcionem o saber necessário para sua vida cotidiana.
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Considerações finais
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As Caravanas Pedagógicas propiciaram momentos de reflexão, instrumentalização e operacionalização dos limites e possibilidades da proposta de reorientação curricular via complexos temáticos e pela relação entre a escola e a comunidade. Essa relação ultrapassou uma lógica burocrática e meramente cognitiva e passou a discutir a cultura do lugar, do sujeito, a articulação dos saberes a outros saberes; a valorização da existência dos valores e práticas construídas no cotidiano escolar como forma de construção do conhecimento que propicia a aprendizagem e o desenvolvimento do sujeito. Como almeja Freire (1997, p. 53), a educação enquanto ato político precisa ser considerada na sua totalidade de conhecimento.Não se trata da negação dos conhecimentos historicamente acumulados e transmitidos através das instituições educacionais, mas de torná-los instrumentos de transformação e emancipação social. Mobilizar as caravanas, não significou apenas obter uma aproximação entre a SEMED e a escola, mas desestabilizou uma única forma de legitimar o currículo que vem sendo construído pela escola como movimento cognitivista. A caravana possibilitou por meio do diálogo, discorrer sobre inúmeras indagações daquilo que tem sido construído enquanto política curricular da Secretaria Municipal de Educação de Bragança-Pará. Assim, asCaravanas Pedagógicas, possibilitou umalargamento daquilo que é legitimado enquanto conhecimento hegemônico e valorizou a construção do conhecimento construído pela base, pelas pessoas, pela valorização das reais questões problemas dos sujeitos. Tornando-se assim, um movimento de resistência curricular.
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ARROYO, Miguel. Currículo:território em Disputa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. FREIRE, Paulo. Educação como ato político. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1997. MACHADO, M. M. Formação de professores para EJA:Uma perspectiva de mudança.Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 2, n. 2-3, p. 161-174, jan./dez. 2008. PIMENTA, S.G; GHEDIN, E. Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2012. PISTRAK, Moisey. Fundamentos da Escola do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2000.
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Referências
Gleice da Silva Pantoja | Camilla da Silva Souza Gênero textual oral entrevista de emprego: trabalhando a oralidade
GÊNERO TEXTUAL ORAL ENTREVISTA de emprego: trabalhando a oralidade com os alunos da EJA
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Resumo:presente trabalho apresenta uma proposta didática acerca do gênero textual oral “entrevista de emprego” voltada para o desenvolvimento de habilidades e competências orais dos alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Júlia Quadros Peinado, localizada no município de Bragança-PA. A referente proposta foi construída a partir da observação do cotidiano escolar da turma da quarta etapa, de Educação de Jovens e Adultos (E.J.A.) e de um questionário aplicado à professora da turma. Assim, os dados apreendidos da realidade escolar da turma de E.J.A. revelaram algumas dificuldades em torno da expressão oral (postura, elementos prosódicos, expressividade facial) desses alunos. Logo, o gênero oral “entrevista de emprego” apresenta-se como uma forma de trabalhar o oral de maneira sistematizada, propondo atividades sequencias de práticas da oralidade como: a linguagem formal, os “meios cinésicos” e os “meios paralinguísticos” (Dolz; Schneuwly, 2004). Dessa forma, objetiva-se contribuir para o processo de ensinoaprendizagem, no qual, os alunos possam desenvolver individualmente sua expressão oral formal pública, características próprias do gênero “entrevista de emprego”. Para fundamentar este trabalho, ou seja, para respaldar a importância de se trabalhar com a oralidade de forma sistemática a partir dos gêneros textuais traz-se as contribuições de Leonor Fávero (2000), Roxane Rojo (2001) e Sandoval Gomes-Santos (2012). Sendo assim, nossa proposta prevê um ensino que contemple não somente as práticas escolares, mas, as práticas sociais que vão além dos muros da escola. Pois, os alunos de E.J.A. buscam um preparo voltado para o mercado de trabalho, para o exercício de sua cidadania e a escola deve propiciar múltiplos
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Gleciane da Silva Pantoja Camilla da Silva Souza
Gleice da Silva Pantoja | Camilla da Silva Souza Gênero textual oral entrevista de emprego: trabalhando a oralidade
letramentos, no qual os discentes possam estar inseridos em diversas situações comunicativas, de forma dinâmica. Palavras-chave: Oralidade. Proposta didática. Entrevista de emprego.
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Desde a época que remonta aos estudos de Ferdinand de Saussure, nos quais se observava uma de suas dicotomias fundamentais,langue (língua) e parole (fala), os estudiosos da linguagem fazem comparações e mesmo separações rígidas entre a fala e a escrita. De fato, sabe-se que as duas modalidades possuem as suas particularidades, porém não podemos afirmar que são dicotômicas, pois ambas são desenvolvidas em um continuumtipológico(Marcuschi apudKoch, 2007). Muitas pessoas, incluindo alguns professores de língua materna, acreditam que a escrita é superior à fala e, por isso mesmo, desde o processo de alfabetização até os níveis do ensino fundamental e médio, trabalha-se maciçamente a escrita de forma sistemática nas escolas, já que esta é a modalidade privilegiada para que os alunos alcancem o objetivo de adentrar em um curso superior ou em um cargo público, neste caso, apontem-se as redações de vestibulares e de concursos públicos que configuram os critérios de maior nota nos processo seletivos. Contudo, quando o assunto é oralidade, primeiramente, há o equívoco de que oral está relacionado somente à fala; em segundo lugar, na maioria das instituições escolares, a oralidade não possui uma forma sistemática de ensino (Dolz; Schneuwly,2004), a partir disso, muitos professores resumem o ensino do oral à leitura em voz alta de um texto ou mesmo às interações em sala de aula, quando os alunos respondem seus questionamentos. Assim, torna-se nítida a falta de sistematização no ensino do oral ao contrário do ensino da escrita. Nesse sentido, Fávero (2000) apresenta duas grandes motivações que fazem com que a oralidadeseja, também, priorizada nas metodologias de ensino das escolas. Primeiramente,a autoraassinala que o aluno já entra na escola falando, isto é, falante de sua língua materna; e segundo, a influência que a fala exerce na escrita dos alunos nos anos escolares iniciais, desta forma, é necessário que sejam desenvolvidas habilidades referentes à oralidade desde as séries iniciais de ensino, como também, ser praticada ao longo dos níveis escolares considerando as variações linguísticas que provêm da bagagem sociocultural dos alunos e indicando a funcionalidade social da oralidade. Dito isto, sublinha-se que a corrente teórica da qual partilhamos neste trabalho é a do Grupo de Genebra, liderados por
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Introdução
Gleice da Silva Pantoja | Camilla da Silva Souza Gênero textual oral entrevista de emprego: trabalhando a oralidade
Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz (2004), que afirmam que os gêneros textuais podem constituir-se enquanto objetos de ensino. Em nosso caso, referimo-nos ao gênero textual oral“entrevista de emprego” para o ensino da oralidade nas escolas. Assim, diante da problematização exposta, o principal objetivo deste artigo é apresentar uma proposta didática embasada em um gênero textual oral que possui uma função social relacionada ao público a que se destina. Logo, por tratar-se de uma turma de 4ª etapa de Educação de Jovens e Adultos (E.J.A.) da Escola Municipal de Ensino Fundamental Júlia Quadros Peinado situada na cidade Bragança (PA), bairro do Morro, os alunos com idade entre 18 e 50 anos, em sua maioria, objetivam um diploma escolar para ingressar no mercado de trabalho local e, conjuntamente a isto, está a necessidade social dos alunos em se expressarem oralmente perante um público em situações formais, já que os mesmos possuemalgumas dificuldades em relação à postura, aos elementos prosódicos, à expressividade facial e ao grau de formalidade que a situação discursiva exige. Portanto, a proposta de trabalho com o gênero “entrevista de emprego” fez-se oportuna aos interesses da referida turma, poisse apresenta como uma forma de trabalhar o oral de maneira sistematizada, propondo atividades sequenciais de práticas da oralidade como: a linguagem formal, os “meios cinésicos” e os “meios para-linguísticos” (Schneuwly; Dolz, 2004). Nesse sentido, é importante ressaltar que os dados que fomentam a proposta didática foram frutos de uma observação do cotidiano escolar e da aplicação de um questionário à professora da turma, propiciados pela disciplina “Oficina de Compreensão e Produção de Textos Orais1”. De tal modo, a proposta a ser desenvolvida ajudará os alunos de 4ª etapa EJA a se expressarem de forma individual ecoletiva, como também proporcionará a estes alunos um melhor desempenho numa eventual entrevista de emprego, ou seja, a compreensão global da proposta visa uma função para as situações reais de comunicação.
1
Disciplina ministrada pela Profa. Me. Camilla da Silva Souza (co-autora do presente trabalho) na turma de Licenciatura Plena em Letras – Língua Portuguesa/2013 (UFPA – Campus Bragança) em setembro de 2014.
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Em relação ao procedimento metodológico utilizado para construir o presente trabalho é relevante frisarque, por conta do tempo curto (treze dias) da disciplina referida anteriormente, a pesquisa demanda outras estratégias para que se possa ter uma melhor
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Práticas orais da professora: aplicando o questionário
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compreensãodarealidade dos alunos, por isso além da observação do contexto escolar da turma de EJA teve-se a necessidade de aplicação de um questionário. Logo, baseadas no método qualitativo, no qual “o processo e seus significados é que são enfocados” (Condurú; Pereira, 2005, p. 38), utilizou-se como recurso de coleta informativa um pequeno questionário constituído por cinco perguntas abertas aplicadas à professora para avaliar como esta trabalhava a oralidade em sala de aula. Eis as perguntas:
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Dentre as cinco perguntas, é válido esclarecer que a primeira pergunta prevê que a professora utilize gêneros orais em suas aulas, no entanto, fazendo uma correlação com a quarta interrogativa, concebe-se que apesar de a professora utilizar os gêneros orais não é uma relação consequente que a professora ensine estes gêneros, pois ela pode trabalhar os gêneros orais como forma de produzir gêneros escritos. Assim, em resposta ao questionário a professora da turma de 4ª etapa EJA afirmou que a oralidade é trabalhada em sala de aula através da interação entre os alunos, nas formas de debate a partir de temas. Segundo ela, os gêneros mais exercitados em sala de aula são as fábulas e as narrativas orais;e que os alunos apresentam timidez para desempenhar as tarefas, pois muitos sabem o que dizer, porém não sabem como se expressar. Parasuprir essas necessidades, a docente desenvolve trabalhos em equipe, em queapenas um é representante. Dessa forma, a professora indica queeles vão participando do trabalho e que assim adquirem uma linguagem formal e direcionada.Ainda para ela, a oralidade é de suma importância, pois sem a explicação prévia dos trabalhos a serem desenvolvidos, seria impossível a execução de trabalhos escritos e conclui que a maioria dos alunos está direcionada paraaperspectiva de conseguir um “bom” emprego.
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1. Quais os gêneros orais que costuma utilizar em suas aulas? 2. Os alunos apresentam dificuldades nas produções orais? Se sim, quais são? 3. Quais são as metodologias voltadas para tais dificuldades? Que pontos positivos podem ser apontados como resultados de tais metodologias? 4. A oralidade é trabalhada em sala de aula? Em caso positivo, de que forma essa oralidade é desenvolvida? 5. Qual a importância de utilizar o oral como objeto de ensino no contexto escolar?
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A partir das respostas do questionário analisamos que a docente não possui uma compreensão clara de como trabalhar os gêneros textuais, pois aponta as interações entre os alunos como forma de ensino do oral. Nota-se também que a oralidade equivale somente à fala, quando ela coloca a importância da oralidadenas suas explicações dentro da sala de aula. No entanto, a questão do “bom emprego” surgiu quando a professora foi perguntada acerca da defasagem escolar da turma, já que a turma possui 50 alunos matriculados, dentre os quais somente 25 participam das aulas, que se dão no turno da noite. Outro dado é que a maioria da turma é formada por mulheres e, de acordo com a docente, são mães, donas de casa que desejam um emprego e por isso estudam no período noturno.Retomando o questionário, isto quer dizer que a professora não vislumbra na oralidade uma função social e sim uma função puramente escolar. Nesse sentido, a proposta didática pretende evidenciaraos alunos que a oralidade não se efetiva apenas em conversações espontâneas, mas também nas diversas situações formais da vida em sociedade como é o caso da entrevista de emprego, na qual eles devem demonstrar qualificação para o cargo almejado desenvolvendo uma linguagem adequada à situação, uma postura que transpareça confiança ao entrevistador, enfim, domínios referentes à oralidade.
Quanto à escola, não se trata obviamente de “ensinar a fala”, mas de mostrar aos alunos a grande variedade de usos da fala, dando-lhes a consciência de que a língua não é homogênea,
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Como foi mencionado, é nítida a ausência de didáticas direcionadas para a oralidade no ensino de língua materna, ou seja, atividades que tragam a estrutura dos gêneros orais, seus aspectos composicionais e discursivos; o que gera dificuldades em lidar socialmente com tais gêneros, como a timidez, excesso de nervosismo a ponto de bloquear uma exposição oral diante de uma determinada plateia, e a própria compreensão de quais sejam as características dos gêneros orais no momento de suas produções. Por tudo isso, torna-se imperativo o ensino do oral nas escolas. Assim, pensemos: se a escola tem o dever de ensinar a escrita desde a alfabetizaçãopor que, então, não ensinar o oral?Já que a instituição exige tal modalidade do aluno, por exemplo, os seminários escolares?Todavia, muitas das vezes, não se ensina como planejar e apresentar o seminário escolar.Se a criança já sabe falar quando ingressa na escola e traz consigo conhecimentos pré-escolares, qual o papel da escola então? Fávero (2000) nos responde:
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Por que ensinar o oral nas escolas?
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monolítica, trabalhando com eles os diferentes níveis (do mais coloquial ao mais formal) das duas modalidades (Fávero, 2000, p. 12).
Nessa afirmativa reside um dos pontos fundamentais que regem a linguagem, as variedades de seus usos, uma vez que para cada contexto comunicativo há um uso específico de linguagem, quanto aos graus de formalidade ou informalidade, por exemplo. Por esse motivo, é imprescindível tornar claro para os alunos que a oralidade também pode ser trabalhada de forma sistematizada, assim como a escrita. Nesse viés, a escola configura o espaço privilegiado para o ensino do oralporque é um lugar onde há a circulação de gêneros textuais escritos e oraisdiversos e pode-se mostrar a relação diferenciada entre eles, efetivando, assim,processos de letramentos múltiplos (Rojo, 2001).Corroborando com esta concepção, os Parâmetros Curriculares Nacionais orientam que:
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Quando em sala de aula essas questões, como as de adequabilidade, são colocadas em prática pelo professor, a relação dos alunos com o ensino-aprendizagem ocorre de maneira diferenciada “daquela” cujo ensino é descontextualizado das realidades sociais de uso da língua(gem) com que muitos estão habituados durante o processo na vida escolar. Justamente por isto que a proposta didática a ser apresentada a seguir considera a realidade social dos alunos de EJA para que esta possibilite aos alunos um domínio do gênero e, consequentemente, segurança numa eventual entrevista de emprego, durante a apresentação de seminários, audiências públicas ou em qualquer situação queseja exigida uma exposição oral.Perfaz-se, assim, uma conjuntura de justificativas do “porque” devemos trabalhar a oralidade dos alunos da EJA, como é o nosso caso,mas, de forma abrangente, dos alunos de qualquer nível de escolarização quer seja fundamental, médio ou nível superior, haja vista a constatação dos estudos como os de Schneuwly e Dolz (2004) que, em muitos casos,a oralidade não é objeto de ensino. Logo, sugere-se adiante um dos modos de se ensinar o oral na escola.
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A questão não é falar certo ou errado e sim saber que forma de utilizar, considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saberadequar o registro às diferentes situações comunicativas. É saber coordenar satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo, considerando a quem e por que se diz determinada coisa (Fávero, 2000,p.12).
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Entrevista de emprego: objeto de ensino O gênero textual oral entrevista de emprego é um dos principais passos para se conseguir entrar no mercado de trabalho. Nesse gênero háa presença de um entrevistador e um entrevistado que, por sua vez,concorrerá a uma vaga de trabalho dentre várias pessoas a serem entrevistadas. No entanto,trata-se de um gênero da oralidade que aflige grande maioria dos entrevistados no que diz respeito ao modo de apresentação diante do entrevistador, pois aqueles que não possuem a prática de se expressarem em público desconhecem a estrutura composicional do gênero, tendo em vista que, no momento da entrevista, é necessário que o candidato tenha uma linguagem formal e um comportamento adequado para tal formalidade. Por isso, o candidato deve ter o cuidado de apresentar-se com roupas apropriadas, tom de voz constante, gestos contidos, manutenção do olhar firme à face do entrevistador para demonstrar segurança e capacidade de responder às perguntas com tranquilidade. Sendo assim, nosso objetivo inicial nesta proposta didática é exercitar a oralidade individual de cada aluno, visto que a entrevista de emprego é feita de modo individual. Para tal, os elementos linguísticos e não linguísticos a serem ensinados serão os mesmos para a turma e são baseados nas atividades propostas por Gomes-Santos (2012) no livro “Aexposição oral nos anos iniciais do ensino fundamental”, no qualo autor dimensiona as fases que compreendem a exposição oral, que vai desde a pesquisa de informações até a exposição propriamente dita:
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Dito isto, o autor confirma que a oralidade é um todo, ou seja, o conjunto de elementos linguísticos e não linguísticos, logo a fala não representa o todo da oralidade, mas, metonimicamente,uma parte que forma o todo. Assim, alunos e professores devem dispor dessa compreensão global que envolve a oralidade e, perante isso, observar que além de nossa voz as mãos falam, o olhar fala, o corpo fala. Esta concepção de Gomes-Santos (2012) segue na mesma linha teórica de SchneuwlyeDolz (2004), que propõem o seguinte quadro dos meios não linguísticos da comunicação:
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[...] A realização da exposição por meio da fala do expositor é imersa em um caminho em que se conjugam diferentes semioses e se combinam diferentes recursos semióticos, entre os quais: qualidade da voz, recursos prosódicos (velocidade e ritmo da fala, pausa, entonação etc.) e recursos cinésios (gestualidade, expressividade facial e corporal) (GomesSantos, 2012, p.120).
Meios cinésicos
Posição dos locutores
Aspecto exterior
Disposição de lugares
atitudes ocupação corporais de lugares roupas movimentos espaço disfarces gestos pessoal penteado troca de distâncias óculos olhares contato limpeza mímicas físico faciais Fonte: (Dolz;Schneuwly, 2004, p.157).
Lugares Disposição iluminação disposição das cadeiras ordem ventilação decoração
Levando em consideração estes aspectos, expomos, então, o passo-a-passo de atividades referentes à linguagem formal (meios linguísticos), aos elementos prosódicos, àgestualidade e expressividade facial (meios não linguísticos) do gênero oral entrevista de emprego propostas ao público da 4ª etapa de EJA da Escola Júlia Quadros Peinado, do período noturno. De todo modo,em acordo com a docente da turma de EJA, o tempo necessário para o desenvolvimento das tarefas especificadas na proposta didática teria a duraçãode seis semanas, com duas horas aulas por semana correspondente a cada atividade. Assim, adentrando de fato na proposta, adota-se o mesmo percurso didático deGomes-Santos (2012),que inicialmente assinala a fase de planejamento de uma exposição oral por meio de pesquisas. Desse modo, o professor poderia indicar aos alunos que buscassem informações sobre o gênero em diferentes meios como sitesde internet, vídeos de entrevistas de emprego, programas de televisão, jornais, etc. Após isso, o professor auxiliaria a turma em uma triagem das informações coletadas. Atravésda exibição de um vídeo, neste caso, indica-se o vídeo no endereço eletrônico “youtube.com/entrevistadeemprego_ficaadica”, que demonstra candidatos preparados e despreparados para uma entrevista de emprego, suas atitudes, suas respostas ao entrevistador e menciona aspectos intrínsecos ao referido gênero oral. Assim, o professor presentificaria o gênero oral e exploraria cada ponto em discussão com a turma. Abaixo são apresentados os elementos linguísticos e não linguísticos (Gomes-Santos, 2012) citados anteriormente com o objetivo e a atividade correspondente a cada um:
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Meios paralinguísticos qualidade davoz melodia elocução e pausas respiração risos suspiros
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Linguagem formal No que diz respeitoaos elementos linguísticos, a presente proposta didática faz alusão ao caráter formal da linguagem, ou seja, aos usos da variedade culta da língua materna.Para discorrer acerca do que seria a linguagem formal, convoca-se a seguinte afirmativa na qual se distinguem os estilos formal e informal das variedades linguísticas: [...] estilo informal, em que é mínimo o grau de reflexão sobre as formas empregadas, e o estilo formal, em que é máximo o grau de reflexão que se projeta sobre as formas linguísticas. A diferença essencial entre os dois graus extremos reside nos diferentes graus de adesão ao uso de formas padrão ou variantes de prestígio: no estilo informal a adesão às formas prestigiadas ou cultas é menor do que no estilo formal (Camacho, 2011, p.42).
Portanto, o grau de formalidade está relacionado à utilização da norma culta o que implica diretamente no menor uso das variedades coloquiais da língua. Entretanto, o estilo (formal ou informal) adotado pelo falante deve estar adequado à situação comunicativa em que ele esteja inserido. Desse modo, pretende-se trazer esta reflexão aos alunos da 4ª etapa EJA e indicar-lhes que a entrevista de emprego configura uma situação formal de linguagem. Objetivos: Mostrar aos alunos da EJA que a linguagem utilizada nessa situação deve ser formal, sem gírias, tiques ou manias que o falante tem durante a sua vida cotidiana. Enfatizar que se trata de uma situação séria, e por isso exige do candidato coerência e clareza durante a sua exposição ao entrevistador.
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Através da análisede dois textos, sendo um formal (notícia de jornal) e outro informal (bilhete), levar os alunos a perceberem a diferença dos termos usados em cada um dos textos e, a partir disso, fazer uma atividade oral em dupla (nas funções de entrevistador e entrevistado) que seja filmada, contendo perguntas e respostas que são feitas em uma entrevista de emprego, por exemplo, por que você quer
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Atividade:
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essa vaga de gerência? Quais as qualidades que você dispõe para a nossa empresa? etc. Outra atividade que pode ser realizada em sala de aula é a explanação da saudação de cumprimento ao entrevistador (Olá!Bom dia!), a apresentação do indivíduo (Nome, sobrenome) e a finalização da exposição (Agradecimentos). Elementos prosódicos A linguagem formal dos alunos da EJA deve estaracompanhada dos recursos prosódicos adequados a tal situação. Para Fávero (2000), os elementos prosódicos ou supra-segmentais“são de natureza linguística, mas não apresentam carácter verbal”(Fávero, 2000, p. 45). Nesse aspecto, serão desenvolvidos com a turma o ritmo da fala, a entonação, pausa e respiração, haja vista que no momento da exposição oral o candidato deve saber a entonação e o ritmo da sua fala, que não pode ser rápida, a ponto do entrevistador não compreender nada, e nem muito baixa ou muito alta, mas deve ter a altura e a entonação no ritmo equilibrado e audível. Nessa perspectiva,Gomes-Santos (2012) adverte: Podemos dizer, portanto, quea entoação e a pausa podem ser recursos prosódicos relevantes para sinalizar a abertura e o fechamento de determinados tópicos de conteúdo da exposição e mesmo para delimitá-la em suas fronteiras [...] (GomesSantos, 2012, p.121-122).
Dessa forma, pode-se perceber a importância comque os recursos prosódicos ou elementos suprassegmentais são articulados na exposição oral, isto é, são necessários para que haja um discurso organizado, por isso a devida proposta didática visa trabalhar este recurso através de atividades bastante criativas, fazendo com que os alunos possam interagir durante as atividades e, portanto, compreendersua relevâncianas situações comunicativas formais.
“Identificar e discutir o uso de recursos prosódicos na exposição oral” (Gomes-Santos, 2012, p.129).
Atividades: A partir da filmagem da atividade anterior, esta será exibida aos alunos para que estes identifiquem a altura, a qualidade da voz e da
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Objetivo:
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entonação na elocução dos expositores. O professor analisará em conjunto com a turmaas pausas e o porquê delas terem sido realizadas, dessa forma relacionar esses recursos aos conteúdos expostos. A gestualidade (postura) A gestualidade é mais um recurso semiótico de linguagem que não pode ser excluído dos estudos da oralidade. Considera-se que “a gestualidade é recurso dos mais centrais da exposição oral, uma vez que ganha corpo em ligação estreita com os elementos do ambiente da exposição”(Gomes-Santos, 2012, p.123), pois a maneira de se expressar envolve tanto a postura corporal, quanto a gesticulação com as mãos durante a exposição oral de um indivíduo coma função de fazer progredir o roteiro temático. Nesse sentido, tenta-se amenizar a timidez que sentem os alunos durante uma exposição oral em classe, pois, como se observou, os alunos de EJAapresentavam timidez não no que diz respeito à conversação espontânea, mas diante da exposição de trabalhos em classe solicitados pela professora da turma. Objetivo:
Identificar, discutir e exercitar o uso gestualidade na exposição oral (Gomes-Santos, 2012).
Atividades: Inventar gestos na exposição de um conteúdo sugerido pela turma sobre um dado tema e, a partir disso, convocar os alunospara levantarem hipóteses sobre que tema o gesto realizado se refere. A professora também pode indicar um tema em segredo a algum aluno e os demais podem tentar decifrar. Ainda em relação à gestualidade, pode ser mostrado para a turma um seminário escolar e nele o professor indicaria os gestos realizados pelos expositores relacionando ao assunto que eles abordam.
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Durante uma entrevista de emprego ou exposição em sala de aula, o indivíduo deve manter-se com o olhar em direção ao(s) ouvinte(s), não se deve olhar para o teto, para o chão, ou para o lado onde não haja plateia. Desse modo, a expressividade facial deve contribuir significativamente para o conteúdo exposto, podendo
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Expressividade facial e olhar
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assumir função interacional com o entrevistador (Gomes-Santos, 2012). Objetivo:
Discutir com os alunos a importância que tem a expressividade facial e o olhar durante uma entrevista de emprego.
Atividades: Trabalhar a invenção de mímicas faciais, com três alunos por vez, fazendo referência a algum conteúdo determinado pelos colegas.Questionar a eles qual a função do olhar nos diferentes conteúdos apresentados. Ao final dessas atividades específicas, o professor chega ao momento em que todos os elementos expostos serão operacionalizados conjuntamente pelos alunos de EJA, a encenação de uma entrevista de emprego. Encenação de uma entrevista de emprego
Desenvolver o conjunto de habilidades estudadas nas atividades anteriores; Aprimorar o aprendizado através de autoavaliação;
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Este é o momento de culminância da proposta didática, no qual os alunos desenvolverão as habilidades que aprenderam nas atividades. O professor poderávisualizarquais os elementos assimilados durante todo o processoatravés da capacidade de compreensão dos alunos, pois estes realizarão uma auto-avaliação. Destaca-se, também, que o professor precisa esclarecer aos alunos que o candidato,ao se colocarnadisputa de umavaga empregatícia, deve ter não somente uma boa comunicação, masuma aparência cuidada, com roupas formais e discretas; maquiagem e acessórios devem compor a sua imagem de forma neutra paraque não venha a assustar o entrevistador, ou seja, chamar a atenção negativamente. Por fim, estes alunos passarão a entender o conjunto complexo que constitui a oralidade e a consciência de como se comportar diante de uma exposição oral público-formal. Objetivos:
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Atividades: Dividir a turma em dois grupos, no qual o grupo A encenará entrevistas de emprego para o cargo de recepcionista de consultório médico eo grupo B encenará entrevistas para o cargo de atendente bancário. Os alunos serão organizados em duplas (entrevistador e entrevistado) que devem apresentar-se no tempo limite de 15 minutos. Para tal, os alunos com a função de entrevistador deverão pesquisar nos consultórios médicos e bancos, respectivamente, quais as perguntas mais frequentes feitas pelos empregadores nas entrevistas de emprego para os cargos mencionados, como também, os alunos que encenarão os entrevistados podem entrevistar recepcionistas e atendentes bancários para conhecer quais as capacidades e qualidades necessárias para cada cargo. Assim, os alunos entrevistadores deverão entregar ao professor em produção escrita o roteiro de perguntas a serem feitas, e os alunos entrevistados, os aspectos que foram descritos pelos sujeitos de sua pesquisa in loco. Após isto, o docente sorteará a ordem das encenações e marcará os dias de encenação que podem acontecer no auditório, na quadra ou mesmo na sala de aula da escola. Tais encenações deverão ser filmadas para serem exibidas para os alunos em outro dia para que eles possam efetuar a autoavaliação intermediados pelo professor. Frisando que esta última atividade exigirá mais tempo para sua execução.
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Como pode ser observado, desde o início do texto salientamos que este trabalho é uma proposta didática, isto quer dizer que esta é formada por sugestões de atividades didáticas voltadas para o gênero textual oral entrevista de emprego. Tal proposta não foi colocada em prática, contudo, sua feitura demandou uma pesquisa com a observação e a aplicação de questionário acerca de uma determinada realidade, a turma de 4ª etapa de EJA da E. M. E. F. Júlia Quadros Peinado, no município de Bragança-Pa. Assim, este trabalho apresenta-se como possibilidade de aplicação ao ensino da oralidade, ensino este que necessita de sistematização por parte dos professores. Em virtude disso, lançamos o olhar para o papel da escola neste processo de ensino-aprendizagem, haja vista que a perspectiva histórica demonstra uma dedicação da instituição para o desenvolvimento da escrita. Cabe lembrar que este artigo não visa à exclusão da escrita nos processos de letramento escolar, mas ressaltar a oralidade para o aprimoramento de seus usos nas práticas escolares esociais.
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À guisa de conclusão
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Destarte, na concretude desta proposta didática por meio das práticas docentes, objetiva-sedesenvolver nos alunos uma segurança maior diante de uma exposição oral, quer seja na sala de aula, quer seja, numa entrevista de emprego real. Pois,reconhecemosa complexidade que abrange a oralidade e seus usos diversos nos meios sociais tanto quanto a escrita. Logo, evidenciamos os meios linguísticos e não linguísticos (Dolz;Schneuwly, 2004; Gomes-Santos, 2012)possíveis de serem ensinados em sala de aula. Assim, a partir do gênero entrevista de emprego pretende-se preparar os alunos de EJA para uma ocasional entrevista de emprego eajudá-los nas interações dentro e fora da sala de aulade forma ativa e dinâmicaatravés de um ensino contextualizado da língua materna.
Referências
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CAMACHO, Roberto Gomes. Norma culta e variedades linguísticas. In: UNESP. Prograd. Caderno de formação: formação de professores didática geral. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011, p. 34-49, v.11. Disponível em: <http://acervodigital.unesp.br/handle/123456789/ 40354>. Acesso em: 02 mai. 2015. CONDURÚ, Marise Teles; PEREIRA, José Almir Rodrigues. Elaboração de trabalhos acadêmicos: normas, critérios e procedimentos. Belém: NUMA, UFPA, EDUFPA, 2005. DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard.Gêneros orais e escritos na escola. Campinas (SP): Mercado de Letras, 2004. FÁVERO, Leonor Lopes.Oralidade e escrita: perspectiva para o ensino de língua materna. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2000. GOMES-SANTOS, Sandoval Nonato. Aexposição oral: nos anos iniciais do ensino fundamental.1ed. São Paulo: Cortez, 2012. KOCH,IngedoreGrunfeld Villaça. O texto e a construção de sentidos. 9º ed. São Paulo: contexto, 2007. MARCUSCHI, LuizAntônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 10 ed. São Paulo: Cortez, 2010. ROJO, Roxane Helena Rodrigues.Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentes modalidades ou gêneros do discurso? In: SIGNORINI, Inês (Org.).Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001.
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Michelly Silva Machado Identidade étnica e autoidentificação Tenetehára
IDENTIDADE ÉTNICA E AUTOIDENTIFICAÇÃO Tenetehára: estudo sobre aldeia indígena Turé-Mariquita de Tomé-Açu/Pa Michelly Silva Machado Resumo: A história das etnias indígenas do Brasil é marcada por um longo processo de negação e segregação das identidades étnicas. No cenário Amazônico, as etnias indígenas resistem às discriminações sociais existentes e estabelecem as mais variadas formas de legitimar suas identidades e sobreviver às dinâmicas sociais do mundo pósmoderno. Nesse contexto, apresenta-se um estudo sobre a Aldeia Turé-Mariquita,etnia Tembé-Tenetehára, localizada na cidade de Tomé-Açu, no estado do Pará. Grupo que possui mais de 400 anos de contato, que sofreu ao longo da história, com repressões violentas; campanha de caça a escravos; epidemias; diminuição de seu espaço; mão-de-obra estigmatizada; e disputa de suas terras com fazendeiros, madeireiros e colônias de imigrantes.Embora estigmatizados como “índios remanescentes” por terem perdido quase totalmente suas características étnicas, lutam para garantir a integridade de suas terras, revitalizar sua cultura e legitimar sua identidade Tenetehára. Desse modo, o presente artigo visa refletir sobre as iniciativas indígenas Tembé a partir das suas reorganizações socioculturais modificadas pelos anos de contato com não indígenas. Para isso, dialoga-se com autores como Azevedo (1999), Silva (2010) e Gomes (2002). Palavras-chave: Etnia Tembé-Tenetehára. Identidade Indígena. Legitimação Cultural.
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[...] Nasci na Aldeia Turé, na época, não havia caminhos, era mata fechada. O meu pai procurava nambu, era galinha do mato, uma das refeições para oferecer para meus quinze irmãos. Na aldeia não havia doenças. Hoje a doença sai da cidade e vempara aldeia. Os índios velhos nasciam na folha de
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Introdução
Michelly Silva Machado Identidade étnica e autoidentificação Tenetehára
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Ainda no século XVII, a Coroa Portuguesa havia editado diplomas legais que visavam concretizar o processo de colonização com o resguardo de direitos territoriais dos povos indígenas. O Alvará Régio de 1680 foi o
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O depoimento de Lúcio Tembé (2008) desvela o olhar de um Tembé-Tenetehára sobre o passado na aldeia Turé-Mariquita,antes do intenso contato com não índios. Ao analisar o relato,é importantefazer algumas considerações sobre o período colonial, analisando o contato intercultural entre índios e não índios e suas consequências para os grupos étnicos. Ao voltar-se para o período colonial, especificadamente sobre chegada dos portugueses ao Brasil,percebemos que oentrechoquecom os povos indígenas,ocorridohá mais de 500 anos,marcou muito mais uma “situação de conflito, do que propriamente trocas” linguísticas/culturais(Franceschini, 2011, p. 42). No caso da Amazônia, o choque inicial pode ter se intensificado com o primeiro modelo de ocupação pensado para a região. O modelo realizado visava assegurar e demarcar o território português,utilizando o trabalho dasordens religiosas para pacificação indígena e controle territorial. Aatividade de catequese foi organizada em forma de aldeamentos, cabendo aosmissionáriosfacilitarna obtenção de aliados nas lutas contra possíveis invasores estrangeiros. Os missionários catequizarame ensinaramas primeiras letras e artes mecânicas aos índios aldeados. A Missão jesuítica na Amazôniadesvelou-se como uma das mais difíceis para a Companhia de Jesus, pois os índios da terra resistiam às práticas de conquista e fugiam constantemente dos aldeamentos. Um componente decisivo para a atuação religiosafoi a língua ensinada aos índios aldeados, que deviam abandonar sua língua maternae praticar a língua geralimposta como um canal de comunicação entre os “colonizados e colonizadores” (Azevedo, 1999, p.12). As ordens religiosas contribuíram fundamentalmente para exploração da floresta ao longo do vale do rio Amazonas. Na época, aeconomia da Amazônia dependia exclusivamente da mão-de-obra indígena,devido à dificuldade de obtenção da mão-de-obra escrava africana para extração das drogas do sertão. Segundo Rodrigues (2011), o discurso de “liberdade” dos índios, criado pelalei de 16801,
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bananeira. As índias Tembé davam a luz com as parteiras. Hoje há tanto estudo e muita ignorância. Não há respeito com mais velhos, parece que ninguém vai ficar velho. Não somos invasores, somos donos do Brasil (Tembé, 2008, p. 135.Destaque do original).
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não passou de um pano de fundo para que a coroa portuguesa pudesse ter um domínio maior sobre a mão-de-obra indígena. Conforme Azevedo (1999, p.157), a lei da “liberdade” de cativeirosnão foi efetivada, pois na prática os prisioneiros de guerra continuavam cativos e a escravização indígenapermanecia na Amazônia. Passados os anos, o Diretório de 1758, assinado pelo Marquês de Pombal (1699-1782), ministro do rei Dom José I, vigorou como um instrumento de imposição da língua do príncipe aos“gentios”, incentivo aos casamentosinterétnicose a expulsão da Companhia de Jesus da Amazônia. Já no século XIX,com o movimento da Cabanagem (18341841), mais de 40 mil índios e negros falantes do nheengatu ou da língua Geral foram exterminados, tendo os sobreviventes que fugir para o interior. Dessa forma, podemos perceber que o processode ocupação e contato da Amazônia, ocorreu em grande partepela marginalização e exclusão de muitos direitos aos povos indígenas.Contudo, muitos grupos étnicos resistiram, estabeleceram trocas híbridascom europeus e africanos e sobreviveram aos anos de contato. No caso dos Tembé-Tenetehára, embora tenham perdido sua língua materna e quase totalmente suas características étnicas, em decorrência de questões internas do grupo e pelos anos de contato.Não foram vítimas passivas dos contatos sociais, criaram estratégias de sobrevivência e se mantiveram presentes até a contemporaneidade.Atualmente, lutam pela ampliação de seu território, fortalecimento de sua cultura e reafirmação da identidade Tenetehára. Questões conceituais sobre identidade e autojustificação O dicionário Houaiss traz a seguinte definição para o termo identidade:
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primeiro reconhecimento, pelo ordenamento jurídico do Estado português de preservação a autonomia dos povos indígenas (FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Direito originário. Acesso em: 21 de jan. de 2015. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index. php/2014-02-07-13-26-02.
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[...] 1. Conjunto de características que distinguem uma pessoa ou uma coisa e por meio das quais é possível individualizá-la; 2. (...) Valores atribuídos às variáveis; 3. (...) situação em que dois seres apresentam mesma essência. 4. Etimologia: lat. identitas,átis, do lat.cl. idem 'o mesmo' (Houaiss, 2001).
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A partir deste conceito é possível compreender que o termo identidade, baseia-se na ideia da distinção,caracteres próprios e exclusivos de cada pessoa. Se ampliarmos a finalidade da apreensão conceitual, observaremos que o termo ultrapassa os limites da definição citada, dialogando com questões sociais, culturais, políticas e históricas, nos mais variados campos do conhecimento. Para Chauí (2000, p.73),“o princípio da identidade é a condição para que definamos as coisas e possamos conhecê-las a partir de suas definições”.Essa afirmação supõe a distinção do si e do não-si, característica que nos distingue, individualiza e identifica como membro de determinado grupo, conforme nossos interesses. De acordo com Orlandi (2000, p.45), as representações sociais, construídas no princípio da razão, são determinadas por interesses internos dos grupos sociais, que as forjam conforme seus ideais e discursos. O discurso da legitimação da identidade compreendido também no campo da ideologia pode ser visto como um conjunto de representações ou ocultações da realidade, pois não existe realidade sem ideologia, sentido sem interpretação e discurso sem significados. Segundo Bakhtin (1988, p.17) todo signo é ideológico, ligado sempre à situação social, uma vez que “os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são modelados por ela”. Assim, não existem discursos neutros, são produzidos e elaborados a partir de estratégias e práticas que buscam legitimar, reformar ou justificar os valores ideológicos de um grupo. Pode-se dizer que a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que objetivam conjurar poderes, perigos e dominar os acontecimentos contextuais e grupais (Foucault, 1996). O discurso sobre a identidade étnica, por exemplo, está relacionado aos lugares sociais que o sujeito falante ocupa, determinando assim as posições sociais de cada indivíduo. Conforme Chartier (1990, p.17), é importante lembrar que as representações sociais, ainda que fundamentadas no princípio da razão, são determinadas por interesses internos de grupos sociais que as forjam. Por isso, devem-se levar em consideração os discursos proferidos e a posição de quem os apropria. Nesse caso, o discurso levantado por algumas etnias sobre a identidade indígena ou sobre o “sangue índio”, por exemplo, pode ser utilizado para: fortalecer a crença; explicar ou atribuir significado à maneira de ser das coisas; legitimar práticas; controlar o comportamento; e criar a noção de identidade pessoal, comum e coletiva (Foucault, 1996, p.29).
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De acordo com Franceschini (2011, p.55), durante anos, muitos indígenas renegaram sua própria identidade étnica, assimilaram o preconceito existente na sociedade envolvente e julgaram negativamente, a si mesmos e ao seu grupo. No entanto, percebe-se que grande parte dos índios de hoje sabe o que o sobrenome da sua etnia representae os incentivos que podem conseguir pela sua descendência ou autoreconhecimentocomo indígena. São estratégias de sobrevivência, defesas e discursos que toda sociedade possui. Nas aldeias de Tomé-Açu,por exemplo, têm se tornado uma prática comum, trocar o primeiro nome registrado na língua portuguesa por nomes na língua Tembé, além de colocar o nome da aldeia como lugar de origem e naturalidade. Mudanças incorporadas nos registro civis para garantir a legitimação da identidade étnica e dispor de determinados direitos assegurados por lei. O que se observa hoje é que muitos índios “sabem” da importância de seu sobrenome e autodeclaração. Isso inclui direitos, como: regularização fundiária; políticas de assistência técnica e extensão rural; inclusão no Programa Nacional de Habitação Rural e Programa Minha Casa Minha Vida; investimento diferenciado para construção de habitações tradicionais; regulamentação do turismo em Terras Indígenas; inclusão no Programa Luz para Todos; vagas de acesso ao ensino superior (sistema de contas) e/ou vestibular específico; Programa Bolsa Permanência do MEC; entre outros. Dessa forma, para entender questõessobre o fortalecimento da identidade indígena no contexto da pós-modernidade, especialmente dos Tembé, é preciso levar em consideração os discursos levantados pelo grupo.Cientesque a identidade se constrói ao longo da vida e seu desenvolvimento ocorre em constantes transformações, poisser índio não está associado a um estágio de vida, mas a uma expressão sociocultural.
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Se por um longo período a história tratou a identidade indígena como assunto secundário. Atualmente, os novos debates acadêmicos e culturais passaram a valorizar a diversidade étnica e o multiculturalismo.Com base no Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, os direitos de igualdade discutidos em âmbitos nacionais e internacionais trouxeram grandes mudanças na maneira de pensar sobre a situação atual dos povos indígenas. Os novos parâmetros fizeram com que os governos mundiais passassem a adotar medidas de reconhecimento e valorização da diversidade cultural desses povos. Assim,a consciência da identidade
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Fortalecimento da Identidade Tembé-Tenetehára
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indígena pode ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos que deverão gozar plenamente dos direitos humanos e liberdades fundamentais conforme as novas convenções legislativas. Essas medidas sociais de inclusão objetivam sanar as injustiças vivenciadas pelos grupos indígenas, possibilitando assegurar direitos e advertir a visão estereotipada do índio puro, ingênuo e selvagem. O reconhecimento da cidadania indígena possibilitou, em parte, uma nova consciência étnica aos povos indígenas. Os índios da aldeia Turé-Mariquita estão quase totalmente integrados ao meio urbano, assimilaram grande parte da cultura não indígena epassaram a utilizar esses conhecimentos para garantir direitos sociais. Atualmente, demonstram-se mais atuantes em defesa de seu território e fortalecimento da identidade Tenetehára. Esse processo de conscientização e valorização da identidade Tembé foi estabelecido pelo “tempo de união e de luta” de várias aldeias Tembé-Tenetehárado estado do Pará.Foi o momento de luta, resistência e reconhecimento dos Tembé como uma “unidade de parentes” ou “do mesmo sangue”, representando a união da etnia para lutar pelos seus direitos e valorização da cultura Tenetehára (Alonso, 1999). Conforme Chalhoub (2001, p.25), essas intenções dos atores sociais, que em determinado momento empregam determinados valores em suas vidas, é uma forma de afirmação constituída por convenções que levam em consideração critérios como: inclusão e exclusão social; vantagens; conquistas; proteção; reconhecimento e necessidades internas e coletivas. Para reafirmar a identidade Tenetehára, os Tembé da aldeia Turé-Mariquitapassaram a refletir sobre o que é ser índio nos dias de hoje. Embora tenham perdido parte de suas características étnicas, criaram estratégias para estudar sua língua materna,lembrar seus cantos, hinos e pinturas. Tentaram conciliar traços da tradição Tembé com os recursos tecnológicos da cultura não índia. Por isso, sofreram grandes críticas e foram questionados pela população urbana sobre a sua indianidade. Dessa forma, observar o contexto da aldeia Turé-Mariquita é deparar-se com uma realidade bem híbrida. Para esses Tembé, não tem sido fácil impor sua indianidade à sociedade. Muitas pessoas, inclusive autoridades governamentais, “não entendem que os direitos indígenas não têm a ver com ‘primitividade’ ou ‘pureza’ cultural e biológica”, pois a identidade indígena está relacionada ao reconhecimento dos indígenas como “descendentes da população autóctone, que é a sua assumida identidade” (Oliveira Filho, 1999 apud Vaz Filho, 2011, p.01).
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Nação Tenetehára – “A gente verdadeira” Os Tembé-Tenetehára possuem mais de 400 anos de contato com não índios, sua história é marcada por lutas e resistências. A autodenominação Tenetehára representa o ideal, a força e a intrepidez desse povo histórico. Defensores de seu espaço, os Teneteháralutam pela desocupação de seu território e fortalecimento de sua cultura. A nação Tenetehára representa dois povos: os Guajajára e Tembé, grupos indígenas que compartilham línguas e tradições culturais bem próximas, cuja separação definitiva data de aproximadamente 150 anos (Carvalho, 2001, p.12). Os Tembé ficavam divididos em quatro locais: os que moravam na Terra Indígena Alto Turiaçu; os que moravam à margem direita do rio Gurupi, no Maranhão (MA); os que estão à margem esquerda do rio Gurupi, na TI Alto Rio Guamá, no Pará (PA); e os localizados na bacia do rio Acará. Os Tenetehára consideram-se um só povo e partilham a mesma identidade de origem, como os “índios verdadeiros”. Segundo Camargos (2013, p.03), os povos Tenetehára autodenominam-se: wazayzar(“Guajajára”) e xi ipew(“Tembé”). Com base nos estudos de Silva (2010), a nação Tenetehára, em Tupí-Guarani, significa: “homem verdadeiro” ou “ser autêntico” e simboliza a força e a importância do povo:
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Já a designação Tembé, segundo Phillips (2011), foi dada por regionais com quem eles comercializavam, significando “nariz chato”. É possível que o nome seja também atribuído devido ao hábito de furar o lábio inferior para colocar um “tembetá”, adereço em forma de cilindro. Apesar de oficialmente conhecidos como Tembé, o grupo se autodenomina Tenetehára.
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[...] o vocabulário Tenetehára é composto pelo verbo “ten” (ser) mais o qualificativo “ete” (intenso, verdadeiro) e o substantivizador “har(a)”, que quer dizer “o ser íntegro, gente verdadeira”. Já o etnônimo Guajajara, que significa ‘donos dos Guajá’, é interpretado pelos próprios Tenetehára com este significado. Este termo pode ter tido como fonte a língua Geral Amazônica do século XVIII e, segundo Gomes (2002), foi atribuído a eles por índios Tupinambá da ilha de São Luís por ocasião de contato com os Tenetehára habitantes do Médio e Alto Pindaré (Gomes, 2002, p. 47; Silva, 2010, p. 1127).
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Os Tenetehára e sua história
O Território Vale Do Itapecuru (MA) abrange uma área de 8.932,20 km² e é composto por 10 municípios: Anajatuba, Cantanhede, Itapecuru Mirim, Matões do Norte, Miranda do Norte, Nina Rodrigues, Pirapemas, Presidente Vargas, Santa Rita e Vargem Grande Sistema de Informações Territoriais. Disponível em: <http://sit.mda.gov.br>.Acesso em: 3 fev. 2015.
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De acordo com o Conselho Indigenista Missionário do Maranhão (CIMI, 1988, p. 43), a história do Vale do Itapecuru2 inicia-se com a colonização europeia, especificadamente dos franceses na cidade de São Luís, em 1612. Após a fundação, os franceses teriam enviado uma pequena expedição ao rio Pindaré, chegando com a notícia de uma numerosa tribo denominada Pinariens. Conforme estudos mais antigos, os índios Tenetehára formavam uma grande nação tupi-guarani próxima aos rios Pindaré e Caru, no estado do Maranhão, os quais mantinham suas tradições culturais e praticavam o comércio intertribal com etnias próximas. A localização mais antiga dos Tenetehára vincula-se ao século XVI na região do Pindaré, no estado do Maranhão. No entanto, outros estudos citam sua localização a partir do século XVII, no momento em que os franceses iniciaram o processo de exploração do interior do Maranhão. A partir de 1610, a influência portuguesa dominou a região. Ao lado dos jesuítas, os portugueses se fixaram no Maranhão e se constituíram como autoridades máximas sobre os índiosao explorar constantemente sua mão-de-obra. Embora os Tenetehára ficassem mais isolados na floresta e aparentemente não aparecessem como prioridades na lista de interesses dos colonos, também sofreram com os ataques escravagistas. Após o decreto pombalino, já no final do século XVIII os índios foram “libertados” e partes dos aldeamentos foram transformados em vilas. Os Tenetehára desses aldeamentos aos poucos passaram a conviver com a população local.Por volta do ano de 1850, parte dos Tenetehára provenientes do Maranhão migrou dos rios Pindaré e Caru para o oeste, até chegar à região do rio Gurupi, Capim e Guamá. Posterior a esse período, passaram a ser conhecido por Tembé, nome dado pelos regionais com os quais passaram a manter contato. A partir do século XIX, os Tembé do Gurupi foram subjugados à política de aldeamentos e das Diretorias Parciais. Nesse momento, os índios sujeitados aos colonizadores ficaram concentrados em uma mesma área de ocupação. De acordo com Duarte (2007, p.17), “os aldeamentos abriram caminho para a invasão de colonos e posseiros na
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No governo Médici, José Costa Cavalcanti ocupou o Ministério do Interior. Teve a missão de coordenar a construção da Transamazônica, estrada de 2,3 mil quilômetros, cuja construção começou em 1969 (1968 - ATO INSTITUCIONAL Nº 5. Disponível em: <http://www1.folha.uol. com.br/folha/treinamento/hotsites/ai5/personas/costaCavalcante.html>. Acesso em: 01 mai 2015.
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região”. O resultado disso culminou na diminuição do território e da população originais. Por volta dos anos de 1927 e 1929, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) fundou dois postos, um na ilha de Canindé-Assú, chamado de Pedro Dantas, que serviu de ponto de apoio para atração e integração dos índios Ka’apor, e o Posto General Rondon, no rio Maracassumé, que foi fechado em 1940, quando o posto Pedro Dantas tornou-se o atual PI Canindé. Nos anos de 1950, com o favorecimento da chegada de regionais e a volta do comércio com os regatões, os chefes dos postos Pedro Dantas e General Rondon, a fim de aumentar a produção local, favoreciam os casamentos interétnicos. Com isso, o uso da língua portuguesa estabelecida de forma dominante enfraqueceu o uso da língua materna dos indígenas. A presença de regionais e oestabelecimento de madeireiros e fazendeirosresultaram em grandes perdas para os indígenas. No período da ditadura militar, com a imposição do AI-5, em 1968 uma política indigenista agressiva foi iniciada na Amazônia. O Plano de Integração Nacional (PIN), editado em 1970, estimulou a ocupação da região, pensada até então como um vazio demográfico. O projeto pautava-se na abertura de estradas para integração da região Norte, por meio da construção da Transamazônica, que interligaria a BR 163, de Cuiabá a Santarém, além das BR 174, 210 e 374(Fonteles, 2014). O militar José Costa Cavalcanti3, apoiado pelo político e militar Arthur da Costa e Silva e pelo presidenteEmílio GarrastazuMédici, declarou que a Transamazônica cortaria as terras de 29 etnias indígenas, sendo 10 grupos isolados e dezenove já em contato com não índios. Apoiados pela Fundação Nacional do índio (FUNAI) e pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), os políticos citados concordaram com a pacificação de vários grupos indígenas, contribuindo para o processo de política de contato, atração e remoção de índios de seus territórios para a construção das estradas (Fonteles, 2014). Em 1970, durante a construção da rodovia transamazônica, os homens Tembé em idade adulta, principalmente do Gurupi,foram
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conduzidos a participar das frentes de atração com outros grupos, como: Parakanã e os Asurini do médio Xingu. O trabalho forçado na estrada dizimou vários índios e as aldeias dos Tembé ficaram com sua população masculina reduzida, prejudicando a divisão sexual de trabalho, lideranças políticas, escassez de alimentos pela falta de produção e perda de práticas ritualísticas. A situação atual das aldeias Tembé é marcada por conflitos entre fazendeiros, caçadores e posseiros. Mesmo com a delimitação das reservas pela Fundação Nacional dos Índios (FUNAI), esses grupos continuam vivenciando situação de conflitos pelo desrespeito aos limites de suas reservas. Ainda assim, lutam por suas terras e buscam reavivar a tradição deixada pelos antepassados. Os Tembé da Aldeia Indígena Turé-Mariquita
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O relato acima discorre sobre o pensamento de um Tembé sobre a demarcação das áreas indígenas do Vale do rio Acará-Mirim. É possível dizer que esse grupo seja remanescentedo Rio Capim, migrado para região de Tomé-Açu no final do século XIX. Na documentação na Administração regional da FUNAI, a primeira referência desse grupo Tembé, data de 1975, quando um técnico da 2ª Direção Regional foi deslocado para aquela região a fim de verificar as áreas ocupadas por indígenas. O grupo Tembé da aldeia Turé-Mariquita só passou a ter contato com a FUNAI a partir de outubro de 1987. Quando, um grupo de Técnicos da FUNAI, em uma visita à aldeia Acará-Mirim, foram informados pelo líder Tembé Sr. Barroso, que existia outro grupo morando na região de Tomé-Açu, em uma área situada cerca de 38 km a noroeste da cidade de Quatro Bocas, conhecida como Turé-Mariquita (Fundação Nacional do Índio, 1990). Ao visitar a aldeia Turé-Mariquita, os técnicos encontraram uma população de 32 indivíduos, entre índios e não índios, distribuídos em seis famílias, todas parentes de Lúcio Tembé (cacique da TuréMariquita), primo de Manoel Barroso. Conforme o diagnóstico etnoambiental realizado por antropólogos para a empresa Pará Pigmentos S.A (1995), a aldeia Turé-Mariquita tem sua origem pela
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[...] Antigamente vivíamos isolados e nem sabíamos que nos éramos índios, esta área que tem dono hoje, era toda nossa, mas nós não tínhamos noção, quando vieram demarcar estas áreas, não tinha perseguições em relações aos madeireiros, nós vivíamos isolados (Tembé, 2008, p.134. Destaque do original).
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Conforme o Registro de títulos e Documentos Nº 1.210, 15/04/92 – livro B-4 FLSA 45V a 47, comarca de Tomé-Açu/PA. Os Tembé modificaram este ano o estatuto da Associação e a renomearam como Associação Indígena dos Tembé de Tomé-Açu – ATT.
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ocupação da família de Poraganti Tembé. Sua história está relacionada a esse índio que, por volta de 1940, quando ainda tinha 12 anos de idade, deixou sua aldeia no Alto Acará-Mirim acompanhado por um homem não índio a pedido de seus pais, antes de morrerem infectados por uma epidemia de sarampo (Pará Pigmentos S.A, 1995). Ao sair da aldeia, foi batizado Lúcio e, posteriormente, se estabeleceu na região do Igarapé Turé-Mariquita. Moradores da Aldeia Velha (atual Acará-Mirim) contam que, desde a saída de Poraganti da aldeia, não tiveram mais contato com seus “parentes”, mas sabiam de sua presença na região do Turé-Mariquita. Segundo moradores mais antigos da área, Poraganti passou por vários lugares, chegando às margens do igarapé vindo de um lugar chamado Água Branca (Pará Pigmentos S.A, 1995). Poraganti e sua família consideram-se os primeiros moradores dessas áreas que, a partir dos anos 1970, começaram a ser loteadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A partir daí vieram a necessidade de legalizar seus lotes rurais registrando-os em nome de Poraganti e seus filhos mais velhos, José e Emídio. A partir dos anos 1980, os Tembé da Aldeia Turé-Mariquita começaram a se organizar em defesa de suas terras e de sua identidade etnocultural. Reataram relações com seus “parentes” do Alto Rio Guamá e em 1991 fundaram a Associação Indígena AnunMaywyhy4. A demarcação das terras indígenas foi definitivamente homologada somente em 1991. O grupo da Turé-Mariquita tinha como atividade básica o plantio de subsistência da pimenta do Reino, além da produção de arroz, milho e mandioca. Atualmente, a Aldeia TuréMariquitaé formada por 146 ha de terra indígena e 587,99 ha de áreas dominiais indígenas, totalizando 733,99 ha. Nela, residem aproximadamente 90 Tembé, distribuídos em duas aldeias, TuréMariquita (com presença de índios Munduruku) e aldeia Nova. A população encontra-se na maioria residindo na aldeia Monte Sinai, situada às margens do Igarapé Turé e de um braço deste, denominado Rego Fundo. Além destas, outras famílias Tembé componentes de uma mesma família extensa moram em “terras contiguas” à AI, às margens do Igarapé Breuzinho. Embora os Tembé de Tomé-Açu tenham perdido parte de suas terras ancestrais decorrentes do extenso processo de segregação, conseguiram homologar suas terras, formando as aldeias Turé-
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Mariquita e Turé-Mariquita II. No entanto, apesar de suas terras já estarem homologadas, conflitos com madeireiros e fazendeiros continuam acontecendo na região. Considerações Finais
ALONSO, Sara. Disputa pelo sangue reflexões sobre a constituição da identidade e “unidade tembé”.Novos Cadernos NAEA, v. 2, n. 2, dez., 1999.
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Referências
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Ainda que os Tembé-Tenetehárada aldeia Turé-Mariquita tenham perdido quase totalmente suas características étnicas, não foram vítimas passivas do entrechoque cultural, conseguiram homologar suas áreas e comprovar suas descendências. Enfrentaram os mais variados obstáculos e não desistiram de sua causa, lutaram e ainda lutam para garantir a integridade de suas terras, fortalecer sua identidade e revitalizar sua língua materna que permanece na lembrança dos mais velhos. Esse processo de conscientização e valorização cultural, pode estar relacionado ao “privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião” (Gadamer, 2003, p.18). Assim, compreende-se que o índio na pós-modernidade oferece diferentes concepçõese formas de pensar seu cotidiano. Isso quer dizer que dialogam com a realidade social e possuem critérios próprios para explicar sua realidade e sua cultura.Como afirma Pacheco (2011, p.43), encontraram alternativas, “forjaram memórias, saberes e modos de ser, demonstrando o poder, a força e as heranças das suas continuidadeshistóricas no presente”. Dessa forma, entende-se que a cultura indígena não é estática, se transforma no tempo e no espaço; ganha, perde ou incorpora valores. Logo, “os grupos étnicos só podem ser caracterizados pela própria distinção que eles percebem entre eles próprios e os outros grupos com os quais interagem” (Cunha, 1987apud Vaz Filho, 2011, p.04). Conforme Stuart Hall (2003), o sujeito pós-moderno não tem uma identidade fixa, ela é formada e transformadacontinuamente.Nesse contexto, as dinâmicas sociais, os contatos e deslocamentos, podem explicar o contexto atual dos Tembé da aldeia Turé-Mariquita, ressaltando a luta pelo fortalecimento da identidade Teneteháraconstruída, reconstruída e valorizada conforme as necessidades do grupo.
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Juliana Patrízia Saldanha de Sousa No labirinto da memória: a oralidade nas narrativas de Quintino de Lira
NO LABITINTO DA MEMÓRIA: a oralidade nas narrativas de Quintino de Lira Juliana Patrízia Saldanha de Sousa “A Justiça não resolve essa questão. Quem vai resolver essa questão é o gatilho e mais nada1”. Quintino 1951-1985
Em 15/11/1984, Quintino e sua tropa entram em Viseu, tentando encontrar a Juíza da Comarca para questionar o mandado de prisão expedido contra ele. Não obtendo sucesso, o Gatilheiro discursa em praça pública e é ovacionado pelo povo. Em seguida, ele dá um depoimento gravado ao Heráclito Ferreira, Diretor do Departamento de Arquivo e Documentação de Viseu, que posteriormente foi publicado em O Liberal (1984, p. 18).
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Resumo: Entre os anos de 1981 a 1985, explodiu um conflito agrário no Nordeste Paraense envolvendo diretamente o município de Santa luzia do Pará. Na liderança dos colonos, neste conflito, destacou-se Armando Quintino de Lira, que buscava liberar as terras para o colono ter a oportunidade para o trabalho. Sem solução para a questão agrária, eles articulam-se e buscam outro meio de fazer “justiça”, utilizando a força armada. Neste trabalho, pretendo investigar as narrativas orais relativas as ações do Quintino, enquanto agia como Gatilheiro. Será necessário a utilização de entrevistas e tendo como instrumento relevante, para que a pesquisa se realize, a memória dos cidadãos residentes em Santa Luzia do Pará. Busco resgatá-las e catalogá-las numa perspectiva de construção de um acervo como parte da história do
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município de Santa Luzia do Pará. A caminhada metodológica terá como base o uso de pesquisa qualitativa e envolverá, além de pesquisas documentais e bibliográficas, a pesquisa de campo, promovendo entrevistas com cidadãos que atuaram com Quintino no conflito e/ou foram testemunhas desse fato histórico e cultural para os luzienses. Busca-se compreender a grande influência causada pelas ações do Gatilheiro na sociedade Luziense. Palavras-chave: Quintino. Conflito agrário. Memória. Narrativas orais. Introdução: um mergulho na saga do Gatilheiro, le Redresseur de torts. Santa Luzia do Pará2 está localizada no nordeste paraense, foi uma das cidades-palco do segundo conflito agrário de maior notoriedade no Estadodo Pará, na década de 80, que envolveu diretamente duas partes distintas: Grileiros X Posseiros. Imagem01: Em entrevista ao jornal O Liberal.
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Santa Luzia do Pará estálocalizada na Br 316 da Pa-Ma, nos anos 80, ainda era Vila e pertenciaao município de Ourém.
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Na liderança dos colonos, destacou-se Quintino, 38 anos. Profissão: “matador de cabra safado”. Ele buscava liberar as terras,
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Fonte: O Liberal.
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griladas por fazendeiros e a empresa mineradora Cidapar. Ganhou fama, de repercussão internacional. Em meados dos anos 80, a situação se agravou, chegando a ser cogitada pelo então presidente João Figueiredo com uma possível intervenção federal. Sem solução para a questão agrária, ele articula com outros trabalhadores e montam um grupo armadopara impedir que os grileiros tomassem posse de suaspropriedades e buscam outro meio de fazer “justiça”, utilizando para isso, o gatilho. Nos dois lados desse combate, apresentaram-se personagens coadjuvantes que ajudaram a compor a história desse emblemático conflito que faz parte da memória da população luziense. Entre eles, destacam-se o ex-governador do Estado do Pará, Jader Barbalho, autoridades de todas as esferas políticas, empresários da região, fazendeiros, comerciantes locais, igreja católica sob o domínio da Diocese de Bragança, a população em geral e o personagem principal nascido Quintino Silva de Lira, mais conhecido como, Gatilheiro. Pe. Catel, na época, pároco da Vila de Santa Luzia, relembra a entrada de Quintino na luta pelas terras contra o fazendeiro Paraná.
As transcrições das narrativas orais utilizadas nesse artigo, segue a proposta do modelo apresentado pelo Prof. Dr. José Guilherme dos Santos Fernandes (UFPA), coordenador do projeto “Rotas do Mito”. Para Fernandes (2005, p. 162), “a transcrição da narrativa do entrevistado altera-se a fonte COMIC SANS MS, pois outro destaque deve ser dado ao gênero oral, ou seja, procura-se ressaltar a procedência diversa dos discursos presente – cultura escrita e cultura oral – para chamar atenção que estamos face a um saber da ciência e outro da experiência”. No entanto, para adequação deste trabalho aos moldes sinalizados pelo editor, farei a distinção destes dois ethos narrativos marcando os textos orias de itálico.
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O início mesmo da história3, quando começou a fama do Quintino. Na época as terras não tinham títulos, dentro dessa área tinha mais de trinta ou até 40 famílias. O fazendeiro Paraná queria impor a saída dessas famílias com ameaças, assassinato de colono, expulsando todos de lá. Então começou a revolta dos colonos e o Quintino fazia parte desse grupo. Eles foram até a comarca de Ourém, brigar na justiça pelo direito às terras, depois de várias audiências sem acordo entre as partes e, quase um ano depois, começaram as ameaças entre o Paraná e o Quintino. Paraná em sua prepotência não aceitava acordo com os colonos, nisso o Quintino perdeu a paciência e mandou uma carta fazendo uma promessa: Amanhã eu te mato! (Pe. CATEL.Belém-Pa, 10jun 2013).
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Um dos intermediadores das negociações entre os colonos e o governo, Francisco Vasques, nos conta a conversa em uma reunião entre o grupo de colonos. A gente não queria entrar pra esse lado armado, foi a necessidade que nos levou a isso. O Quintino foi o primeiro que entendeu que pela justiça o problema não seria resolvido”.Barbudo relembraas palavras de Quintino:“Olha, daqui pra frente não tem mais conversa! Eles não respeitam a gente! A farda que eles vestem não é deles. Então, não adianta que nós não vamos aqui conseguir muita coisa. O que nós podemos fazer aqui, já que bala entra em nós, entra neles também. (VASQUES, Francisco, 07 jun. 2013).
Francisco continua dizendo: “e até por uma decisão maior do próprio Quintino que dizia que não ia mais esquentar os bancos da justiça. Esse foi o termo que ele usou na época!” Anos depois, Quintino já conhecido nacionalmente e descrente de que o governo resolveria a crise, concede uma entrevista ao repórter Paulo Roberto Ferreira falando de sua decepção com a justiça.
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Após recorrerem a todos os órgãos governamentais como Delegacia, Iterpa, Fórum, entre outros, o grupo percebeu que a Justiça não solucionava o problema e tentaram encontrar no gatilho uma forma de resolver a questão, haja vista que haviam procurado todos os meios legais para a solução do empasse. Quintino dá seu recado em uma entrevista ao jornal O Liberal: (...) “fiquem avisados porque eu vivo a lutar pelos colonos contra os grileiros, seja de qualquer região. Que o meu destino é este. Isto é um caso muito sério porque eu nunca enfrentei uma luta para perder a parada”(LIBERAL Apud Loureiro, 1997, p. 287).
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Bom, é o seguinte: Eu digo e não peço segredo a vocês, vocês podem dizer até lá na federal ou na Segup que não venham me “preseguir”; que eles ficam vivos lá. Porque eu já ocupei as autoridades e as autoridades não deram jeito e então eu estou para dar um jeito nisso(...) Por que já chega de ficar de costas ardendo naqueles sofás em Belém, na Central da Polícia, na Segup, no Tribunal de justiça procurando os meus direitos e hoje eu caço meus direitos é no gatilho e o cabra que entra pra me perseguir eu mato (...) e assim chega de tanta promessa, de tanto sofrer. Eu já entendi que só o gatilho resolve essa questão (LIBERAL apud Loureiro, 1997, p. 287).
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No livro Estado, bandidos e herói: Utopia e luta na Amazônia (2001), Violeta Loureiro4usa o termo francês “redresseur de torts” reparador de erros - ao definir o perfil do Gatilheiro que torna-se, segundo a autora, “de ator individual para ator político, de indivíduo comum a reparador de erros” (2001, p. 291). Na tentativa dereparar os erros cometidos por fazendeiros e, consequentemente, pelas autoridades, Quintino “interpreta” dois personagens na sociedade. O de justiceiro, aclamado pelo povo humilde, que via na figura de Quintino a esperança de dias melhores. No outro, o de fora da lei, papel esse dado pelas autoridades constituídas, polícia militare pelos meios de comunicação como os jornais impressos. A partir destes relatos, pretende-seinvestigar as narrativas orais com relação às ações de Quintino, enquanto agia como Gatilheiro, com o propósito de embrenhar-me no labirinto da memória,individual e coletiva, através da oralidade dos agentes sociais testemunhas deste evento singular.Busca-setambém, através da memória, registar e discutir as narrativas orais, que apesar de decorrido 30 anos da morte do Gatilheiro, os fatos acontecidos durante o conflito, ainda permeiam o imaginário popular. Levando essas informações em consideração, acredita-se que pesquisar as narrativas, sobre o Quintino, constitui-se algo de grande relevância e significação, pois é possível fazer leituras utilizando a memória coletiva para entender o conflito a partir dos fatos históricos, e apropriando-se da memória individual para compreender a relevância dessas narrativas e como foram capazes de influenciar no cotidiano da população, na época. Nesse sentido, tem-se a possibilidade de resgatar e catalogar tais narrativas, numa perspectiva de construção de um acervo, para a valorização da cultura local, como parte da história cultural e social do município de Santa Luzia do Pará. Sobre essa questão,Von Simson nos mostra a relevância de se conservar as memórias.
Originalmente apresentado como tese de doutorado pela autora no Institutdes Houtes Études de l’Amérique Latine - Sorbonne Nouvelle, em 1994 – Paris, sob o nome Redresseurs de l’histoire en Amazonie brésiliènne (reparadores de Erros na história da Amazônia Brasileira). Posteriormente publica o livro, em 2001, com o título Estado, Bandidos e Heróis: Utopia e luta na Amazônia.
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Essas instituições realizam, portanto, hoje, de forma profissional, uma tarefa social anteriormente exercida pelos idosos. São elas os museus, arquivos, bibliotecas e centros de
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É importante frisar que na possibilidade de catalogar as narrativas orais, as gerações futuras terão condições de analisá-las e entendê-las, dentro do contexto social e cultural em que ela está inserida,configurando-se de fundamental relevância para a preservação dos acontecimentos históricos de uma sociedade.Assim, pesquisar as ações do Gatilheiro, através da memória, na tentativa de compreender as consequências causadas pelas ações do Gatilheiro na sociedade Luziense. Sabemos que as narrativas estão presentes na memória do ser humano desde os tempos mais remotos. As instituições e os pesquisadores da área apontam que através da memória coletiva buscam-se informações vividas por um grupo de indivíduos em um determinado tempo e espaço. Partindo desse pressuposto, Jacques Le Goff, em sua obra História e Memória,define a memória como “propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (2013, p. 387) Nessa linha de pensamento, Le Goffexpõe novas concepções recentes da memória, mostrando os principais aspectos de estruturação nas atividades de “auto-organização”. Tanto o aspecto psicológico como o biológico da memória é o “resultado de sistemas dinâmicos de organização” e que só existem “na medida em que a organização os mantém ou os reconstitui”.(Idem, p. 388) O autor ainda certifica que “a memória se configura em elemento essencial dentro do que chamamos de identidade, individuais ou coletivas; cuja busca é uma das atividades fundamentais do indivíduo das sociedades de hoje”. (Idem, p. 435) Para o entendimento dessas indagações faz-se necessário entender o que diz Pierre Janet sobre o ato mnemônico, ou seja, o que facilita a memorização, fundamental é o comportamento narrativoque se caracteriza pela sua função social. Com isso, o ato de narrar transforma a “linguagem, ela própria produto da sociedade”. (Florès, 1972 apud Le Goff, 2013, p. 389). Nesse sentido, a narrativa oral assume o papel de transmissora de informaçõesprovenientes do
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memórias, que de alguma forma e segundo critérios previamente estabelecidos realizam o trabalho de coletar, tratar, recuperar, organizar e colocar à disposição da sociedade a memória de uma região específica ou de um grupo social retida com suportes materiais diversos (Von Simson, 2004, p. 13).
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passado e é o instrumento indicado para as análises fundamentais,dos retalhos, que compõe a história de uma comunidade. Mergulhando na memória do Sr. Costa, ele nos conta o momento em que Quintino faz tocaia e mata o fazendeiro Paraná, fato este, que efetivamente deu início a saga de Gatilheiro.
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A narrativa citada acima, sob a ótica do entrevistado,apresenta uma das versões da morte do Paraná. Durante a entrevista, os detalhes da narrativa apresentaram-se cronologicamente de forma desconexa. Decorrido algum tempo, o Sr. Costaapropriou-se da rememoração,e de forma coerente, deu inícioa narrativa seguindo os fatos ocorridos naquela época. Maurice Halbwachs falando sobre Memória Individual e Memória Coletiva pontua-nos dizendo que “a memória é fundamental para recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos algumas informações” (2006, p. 29). Para o pesquisador, no “primeiro plano da memória de um grupo se destacam as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e que resultam de sua própria vida” (Idem, p. 51).Nesse sentido, memórias individuais e coletivas se
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Quintino chegou lá em casa e disse: - “Vai ficar caro esse roçado!! Vai ficar muito é caro!O Paraná não pagou o que prometeu os duzentos contos, não pagou ninguém!”. (...) Passou uns dias, o Quintino esperou no ladeirão, perto da Vila do Broca. Daí ele levou uma garrafa de vinho, pacote de bolacha, refrigerante. Aí ele fez a tocaia pra pegar o Paraná, esperou, esperou, aí quando foi umas nove horas ele ia passando e o Quintino torou ele na bala. Daí ele entrou na mata e encontrou o meu filho, o Chico, que estava brocando um roçado e perguntou pro Quintino: - “O que é que tu tá fazendo por aí?”. Quintino respondeu: - Tu não viu uns cachorros correndo atrás de um veado, viu? O Chico falou: - “Num vi não”. Quintino disse assim:- “Não rapaz! Eu tô é brincando! Fui acertar o homem lá na ladeira! Quer ver ele lá? Vai lá!“. Meu filho disse que não ia de jeito nenhum!. Daí correu a notícia que o Paraná tinha morrido. Uma das balas pegou na cachorrinha que a mulher do Paraná levava! Depois disso ele sumiu e virou o que todo mundo conhece! (Costa, João, Santa Luzia do Pará, 10 set. 2014).
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inter-relacionam na medida em que as memórias de um indivíduo é resultado de experiências vivenciadas por um grupo e ainda que, onde existe uma história, existem várias memórias. Em A memória, a história, o esquecimento, Paul Ricouer afirma que devemos a Maurice Halbwachs uma “audaciosa decisão de pensamento que consiste em atribuir a memória diretamente a uma entidade coletiva que ele chama de grupo ou sociedade” (Ricoueur, 2010, p. 130). Seria então, a memória, uma das ferramentas da humanidade, indispensável para a construção da história das sociedades? Conjectura-se que o ser humano não adquiriu uma memória referta,ou seja, o exercício da rememoração é fundamental para a composição da narrativa. Para tanto, Henri Atlan aproximando “linguagens e memória”, apresenta os sistemas auto organizadores que fundamentam o armazenamento da nossa memória. Sobre isso ele afirma que:
O autor considera que o ato de guardarinformações na memória, é de certa forma uma linguagem, pois mesmo sem a utilização da narrativa oral ou escrita, ainda assim, é uma linguagem em forma de pensamento. Portanto, éde suma importância a preservação da memória através da oralidade, pois na memória tem-se uma fonte de informações sobreacontecimentos históricos, culturais e sociais ocorridos em um determinado lugar e essas informações são relevantes no sentido de se conhecer o passado. Convém ressaltar os vários momentos em que os entrevistados davam início as suas narrativas dizendo que “era difícil lembrar, pois foi uma época difícil, perigosa”. Porém, logo em seguida, as lembranças começavam a irromper na memóriae através da oralidadea narrativa começava a ser tecida.Sr. Nelson relembra esse encontro com nostalgia e apreensão, sentimentos que ainda estão presentes na memória dos populares.
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Eu tinha minha barraca no garimpo do Cachoeira e a turma do Quintino sempre aparecia por lá, sempre de passagem.
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A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa memóriaque, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para se interpor quer nos outros, quer nas bibliotecas. Isso significa que, antes de ser falada ou escrita, existe uma certa linguagem sob forma de armazenamento de informações na nossa memória (Atlan, 1972, p. 461 apud Le Goff, 2013, p. 389).
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Numa manhã dessas, eles apareceram e pediram pra se chegar. Foi feito café pra turma toda, trocaram proza com a gente, Então eu disse que tinha que sair porque eu ia até Santa Luzia, que na época era a maior vila na região e tudo era comprado lá, eu disse isso mas morrendo de medo do Quintino achar que eu podia deletar onde o bando dele estava. Passado um tempo eu saí e eles ficaram por lá, caminhei por um tempo, acho que mais de uma hora na estrada quando vi os pistoleiros da Cidapar vindo na minha direção. Graças a Deus não me pararam pra perguntar nada, mas meu coração quase sai pela boca só de imaginar que os pistoleiros iam se encontrar com a tropa do Quintino (Nelson, Santa Luzia do Pará, 26 jul. 2014).
Sendo assim, a rememoração é o instrumento que possibilita a retomada das lembranças que eventualmente possam ter causado traumas ou fortes emoções, provocando o esquecimento.Por sua vez, memória torna-se imprescindível e assume a responsabilidade de trazer, à tona, ocorrências que compõem os retalhos dos acontecimentos cotidianos de uma sociedade. Ricoeur pontua-nos dizendo que“é a esse tesouro do esquecimento que recorro quando tenho o prazer de me lembrar do que, certa vez, vi, ouvi, experimentei, aprendi, adquiri” (Ricoeur, 2010, p. 427). Imagem 02: O grupo do Quintino.
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Florêncio narra um fato, no mínimo curioso, no bar do Sr. Zé Gomes, grande amigo de Quintino, e destaca o poder de persuasão que Quintino adquiriu no decorrer do conflito.
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Fonte: O Liberal. 24/11/1984.
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O Quintino chegava aqui em Santa Luzia e tudo parava por causa dele. Muita gente queria ver o famoso Quintino, mas ele nunca estava só, sempre acompanhado, ás vezes 8 a 12 homens, tudo pra proteger ele. Um dia ele estava bebendo no bar do Zé Gomes e ele viu um policial e perguntou se ele vendia o cinturão, carregado de bala, porque ele tinha gostado muito e o policial disse assim: - “Nada não! Não precisa pagar não! Ele é seu!”. Ele tirou o cinturão e deu pro Quintino. O Quintino disse a ele pra sentar e beber todo mundo junto, mas o policial se recusou, tava trabalhando, fardado, sabe como é, né? Não pode! O Quintino insistiu e disse que agora ele era o comandante do policial, e que ele não se preocupasse que agora ele era o seu chefe! Rapaz! Até a policial tinha medo do Quintino! (Florencio, Luís Carlos. Santa Luzia do Pará, 10 set. 2014).
Diante dessa exemplificação, os acontecimentos passados, sob esse aspecto que Ricoeur considera no “Domínio de reserva”, sempre estará na dependência da memória para que aflore, e a partir daí, começa a apresentar-se em fragmentos de lembranças e, consequentemente dá vazão as narrativas que se configuram como históricas. “A própria memória se define, pelo menos numa primeira instância, como luta contra o esquecimento” (Idem, p. 424). Sendo assim, a memória torna-se instrumento relevante para a preservação e valorização da história local, que através das narrativas, os fatos históricos ocorridos no passado, servirão como base de estudos acerca da formação histórica, social e cultural de uma determinada sociedade.
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A realidade mostra que nos dias atuais as conversas entre vizinhos e familiares, as prosas nosfinais de tarde feitas no batente da porta ou nas calçadas, resumiram-se apenas as cordialidades entre os conhecidos. Podemos considerar que com a chegada da modernização, a tecnologia “prendeu” o cidadão diante da televisão e do computador. Esse vício tecnológico foi capaz, pode-se dizer,de dizimar o hábito de contar histórias, e assim, as pessoas foram perdendo o costume de narrar suas experiências de vida, favorecendo o desuso das narrativas orais nos dias atuais. Dessa forma, pode-se considerar que, após 30 anos decorridos desse fato histórico, para os moradores do município de Santa Luzia do Pará, o ato de narrar os acontecimentos vivenciados pela população não fazem mais parte do cotidiano popular, ao ponto de não serem
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Considerações finais
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narradas com certa riqueza de detalhes, como faziam as pessoas que vivenciaram o conflito. Apesar de essa realidade ser presente nos dias atuais, as narrativas orais estão ganhando espaço nos centros acadêmicos. Peter Burke (2005) explicita um dos motivos para o atual reconhecimento e a valorização da memória histórica.
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Compartilhando o pensamento de Burker, nota-se que, em relação às narrativas de Quintino Lira, as pessoas que viveram naquela época deixaram de narrar os episódios do conflito,permitindo que as narrativas caíssem no esquecimento, ou por questões traumáticas ou por perda do hábito de narrar os acontecimentos passados. Vê-se que durante seu depoimento, Sr. Costa, vez ou outra, perguntava se essa conversa (entrevista) não traria problemas para ele, pois, mesmo depois de transcorrido trinta anos do fim do conflito, ainda hoje há marcas profundas na memória popular. Essa preocupação é causada pelo trauma vivido por essa geração que presenciou momentos de terror durante a caçada ao Gatilheiro. As memóriascoletadas durante a pesquisa possibilitarão, de certa forma, a rememoração da história desse período, indo de encontro ao passado por meio das diferentes memórias individuais que, sobretudo, são memórias coletivas. Le Goff nos diz que “adentrar nesse estudo da memória social é um dos meios de atingir fatos do tempo e da história, pois a memória se configura como um patrimônio infinito que se forma através de fragmentos” (Idem, p. 472). Nessa perspectiva, as experiências partilhadas são simbolizadas através da oralidade, dando sentido às perdas e às vitórias que fazem parte da história de Santa Luzia do Pará.Le Goffsobre isso, reitera dizendo “Pois, não se pode compreender a memória da sociedade sem percebê-la na dinâmica das tensões de poder entre variados grupos e classes sociais” (Idem, p.475). Atentemo-nos para a distinção entre documento e monumento apontado por Le Goff,para ele, “monumento é tudo aquilo que pode
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Mais que os livros, filmes e programa de televisão mostram, há um forte interesse popular pelas memórias históricas. Esse interesse cada vez maior provavelmente é uma reação à aceleração das mudanças sociais e culturais que ameaçam as identidades, ao separar o que somos daquilo que fomos. Em um nível mais específico, o crescente interesse por memórias do Holocausto e da Segunda Guerra Mundial ocorre em um tempo em que esses acontecimentos traumáticos estão deixando de fazer parte da memória viva (Burke, 2005, p. 88).
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BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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Referências
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evocar o passado, perpetuar a recordação” (Idem. p. 486), ou seja, remete-se a um povo, “herança do passado”, representa algo que foi vivido. Assim, Le Goff, considera que os monumentos seriam os desencadeadores da recordação, como um estímulo externo para a recuperação da memória. Portanto, o monumento permite resgatar os fatos específicos, armazenados na memória coletiva, ocorridos em um determinado tempo na sociedade. Enquanto que a história só existe devido ao documento. No entanto, o documento pode conter inverdades, pois os fatos registrados da história passam a ser uma escolha do historiador. A diferença entre monumentos e documento, é que este, volta-se para questões sociais e o monumento é a ponte para as lembranças do passado, já o documento é o conjunto dos dados específicos dessas recordações. Dessa forma, busca-se investigar a monumentalidade das narrativas orais sobre a saga de Quintino como Gatilheiro. Le Goff, sobre memória histórica, aponta que é “necessário dá uma importância especial às diferenças entre sociedades de memória essencialmente oral e sociedades de memória essencialmente escrita” (Idem, p. 390). O autor sabiamente reitera dizendo que“a memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (Idem, p. 437). Finalizando, observa-se que, atravésda oralidade, pode-se caminhar no labirinto da memóriaque compõe as narrativas de Quintino de Lira, nesse caso, percebe-se que ao contar histórias, a identidade das comunidades não caem no esquecimento, consequentemente, os ecos das vozes serão traduzidos, com isso, formam-se cidadãos pensantes, de forma que as diversas experiências relatadas através da memória coletiva, possibilitem discussões acerca dos conflitos. Nesse sentido, as narrativas orais podem ser registradas, documentadas e assim, servirão como suporte para que as gerações futuras tenham a possibilidade de analisá-las para acompreensão seu contexto histórico, social e cultural da época em Santa Luzia do Pará.
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FERNANDES, José Guilherme dos Santos. Do oral ao escrito. Outros Tempos, v. 2, p. 156-166, 2005. Disponível em: <http://www. outrostempos.uema.br>. Acesso em: 24 fev. 2015. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão...[at al.].- 7º Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP. 2013. LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Estado, Bandidos e Heróis. Belém: CEJUP, 1997. RICOEUR, P. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2010. VON SIMSON, Memória, Cultura e Poder na Sociedade do Esquecimento. In. Margens. Dossiê memória e Oralidade. v.1, n. 1, p. 1124Abaetetuba. PA: UFPA 2004
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CATEL,Pe. Aposentado. Entrevista concedida a Juliana Patrízia Saldanha de Sousa. Belém, 10 de jun. 2012. COSTA, João, Aposentado. Entrevista concedida a Juliana Patrízia Saldanha de Sousa. Santa Luzia do Pará PA, 10 set. 2014 FLORENCIO, Luís Carlos. Autônomo.Entrevista concedida a Juliana Patrízia Saldanha de Sousa. Santa Luzia do Pará PA, 10 set. 2014 NELSON, Francisco. Aposentado. Entrevista concedida a Juliana Patrízia Saldanha de Sousa. Santa Luzia do Pará PA, 26 jul. 2014 VASQUES, Francisco Chagas. Vereador. Entrevista concedida a Juliana Patrízia Saldanha de Sousa. Santa Luzia do Pará PA, 07 jun. 2013
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Giselle Maria Pantoja Ribeiro | Tatiana Cristina Vasconcelos Maia Novas alternativas de leitura e inclusão na escola
NOVAS ALTERNATIVAS DE LEITURA e inclusão na escola
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Resumo: Este artigo propõe reflexões sobre o multiculturalismo crítico e o multiletramento, como práticas inclusivas necessárias na escola e na sociedade. Durante muito tempo nas escolas o ensino da leitura se manteve em linha reta, linearmente sendo exercido e assim, se dava predominante a valorização de uma cultura dominante sobre a outra minoritária. E ocorria de se pensar em uma única forma de ensinar as crianças o caminho para se chegar à leitura e à escrita. (Ensinar o que às crianças? A leitura através da escrita?). O cenário agora pede mudança e ocorre a ampliação do entendimento do ato de leitura para se chegar a escrita. É nessa atmosfera que as reflexões aqui propostas se firmaram com o enfoque dado às outras formas de linguagens cabíveis nos espaços escolares, outras práticas de ensino da leitura que favorecem a construção do conhecimento mais amplo, pois a linguagem está voltada para as atividades cotidianas, ampliando enormemente o entendimento, desta maneira, o trabalho com o multiletramento pautado no multiculturalismo crítico, enriquece as práticas escolares a partir do momento que traz para escola o debate sobre as diferentes culturas e variadas formas de linguagens que podem ser trabalhadas, e desta forma, entender o ato de leitura não apenas como uma simples tarefa de juntar letras, formando sons para as coisas nominadas, já estabelecidas pelo sistema escolar, mas trazer para ela um diálogo amplo e dinâmico. Esta pesquisa tem caráter qualitativo e nela foram traçados os seguintes procedimentos: observações, anotações no diário de campo, entrevistas, análises e leituras teóricas para comparação ou constatação do que se pretende. Neste artigo, trabalhamos os itens relacionados ao tema: A leitura multicultural de Paulo Freire,
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Giselle Maria Pantoja Ribeiro Tatiana Cristina Vasconcelos Maia
Giselle Maria Pantoja Ribeiro | Tatiana Cristina Vasconcelos Maia Novas alternativas de leitura e inclusão na escola
Multiculturalismo e a crítica pós-moderna, Letramento como práxis: desafios apontados, (Multi) letramento e cultura: de que educação estamos falando? Alfabetização, multiletramento e surdez, “Uma história da leitura” à luz de Alberto Manguel, alcançando ainda as noções de Suzana Vargas em seu livro “Leitura: uma aprendizagem de prazer”, Roland Barthes “O prazer do texto”, Regina Zilberman “Literatura e pedagogia”, concluindo com as análises e as aproximações conclusivas. Palavras-chave: Cultura. Multiculturalismo. Multiletramento. Leitura. Ensino.
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Como se faz um leitor? Como nasce a descoberta do mundo tão ampliado da leitura? O leitor nasce no banco de uma escola ou cresce nela? Essas são provocações que podem nos levar a discussões breves, mas principalmente, a discussões divergentes. E para este artigo, escolhemos o segundo caminho. É na trilha das divergências que queremos andar, como quem segue a linha do horizonte e vê diante dos olhos o céu tocar a terra numa paisagem que se desdobra eamplia os sentidos do verbo ler. Há quem diga que o leitor nasce e cresce bem dentro dos muros da escola. Mas há os que acreditam na aprendizagem contínua capaz de derrubar os muros e se ver na teia de saberes que o mundo, o espaço terrestre oferece e nos entrega pelo emaranhado dos seus fios. Ao abordar o tema do multiletramento e sua aplicabilidade no universo escolar, bem como em outros pontos de saberes da Amazônia, buscamos compreender o processo ensino-aprendizagem a partir de algumas teorias e práticas executadas na região em que estamos inseridas (Belém-Pará). A discussão traz para a cena a luta por um novo olhar a aprendizagem da leiturae as teorias capazes de sustentar essa nova abordagem. Trata-se de uma proposta pautada na perspectiva do multiletramento. Tomamos como base, dados bibliográficos das produções de alguns autores que vêm dialogando sobre o assunto como ferramentas de valorização e inclusão das diversas culturas, o que possibilita ampliação de conhecimento, já presente na sala de aula e no mundo globalizado. E bem dentro desta discussão, dar ouvidos a Bentes (2012), seria nos entregarmos a uma pedagogia fundamentada no multiletramento que utiliza uma variedade de linguagens e de modos de significação, uma variedade de instrumentos de ensino para diferentes fins culturais, sejam elesorais, visuais, audiovisuais, auditivos ou que utilizem todo o
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Introdução
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corpo: a fala, a escrita alfabética, os desenhos, os gestos, as línguas de sinais, as fotografias, as artes plásticas e cênicas e/ou a imagem digitalizada, enfim, os espaços todos da ação de aprender a ler, explorando as múltiplas linguagens. É preciso contextualizar a discussão a partir de conceitos variados que perpassam por processos desde o aparecimento da escrita, da alfabetização, do letramento, até chegar ao multiletramento. Analisamos, também, outro fator que está na gênese de toda essa discussão,o multiculturalismo na educação e que integra a cultura e suas diversas facetas. Ao longo dos anos, a crítica à globalização é uma constante e já foi por diversas vezes denunciada a partir dos estudos sobre a indústria cultural e a comunicação de massa. Por efeito da globalização, o mundo mudou muito nas últimas duas décadas e, nessa mesma velocidade, a escola e os meios de ensinar e fazer de aprender. Isso tudo em função do surgimento das novas tecnologias digitais que tornam a informação a cada dia mais efêmera e instantânea. Dessa forma, qual seria o papel da escola? Na contemporaneidade, a escola deveria estabelecer o diálogo entre vários sons e vozes, diminuindo os conflitos, para, assim, formar um sujeito protagonista da sua história, respeitando também a história do outro.Vem daí a necessidade de termos uma visão holística(multicultural)em que inseridos no processo ensino-aprendizagem,possamos nos ver, ver o outro e ver o mundo que nos cerca e, nesta cadeia, entender que aprendemos uns com os outros e com todos os fios da teia de saberes. Na perspectiva aqui proposta, atenderemos as nossas necessidades respeitando os espaços e os saberes dos outros e do mundo, enquanto porta que se abre para o conhecimento.O que propomos então é o estudodas realidades nas escolas eproblematizar para, então, buscar uma prática que respeite as diferentes culturas e formas de aprender. Falar de inclusão na perspectiva da região em que vivemos e das práticasnas escolaslocais, faz parte do compromisso dos especialistas preocupados com a questão. Por essa ótica, defende-se que o desafio das mudanças deve ser assumido e decidido pelo coletivo social. Importante também é ressaltar que o ensino da leitura, de forma geral e independente do projeto de inclusão na região amazônica apresenta, até os tempos atuais, sintomas de falência. E entendemos que estas questões são muito bem pontuadas nas teorias e provocações de Regina Zilberman, Ezequiel Theodoro da Silva (2008),bem como Suzana Vargas (2013). Para que a inquietação se inflamasse, era preciso recorrer a observação de ambientes escolares e confrontá-los com o novo pensamento, algo que talvez, nos desse a certeza de que não é
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unicamente entre os muros da escola que o leitor ganha corpo, sopro e vida. Para tanto fôlego nesta discussão ouvimos atentamente Vargas (2013, p. 25) anunciando:
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Se olharmos para o passado e voltarmos nosso olhar para o presente, ainda vamos encontrar o ensino preso nos muros da escola e a uma visão unilateral e excludente de ensinar. As formas de trabalhar a construção do conhecimento ainda são arraigadas em métodos que mais afastam do que incluem. Os conteúdos parecem ter mudado, a metodologia também mudou um pouco, mas o espaço de aprender permanece fechado. É sempre entre os muros da escola que “aprendemos”? A escola para surdos deve estar voltada para a construção de um perfil de cidadão que supere a simples acumulação de conhecimento e a repetição mecânica, e compreenda que o conhecimento transforma e é transformado pelo sujeito (Santos,2012). É necessário que o aluno saibada aplicabilidadecontextualizada com seu cotidiano do saber ler e escrevere isso, quem nos oferece é o mundo com seus fios da teia dos saberes. De que lado do sol nasce o verdadeiro leitor? Aquele que sabe ser crítico?Ele nasce do lado mais quente do sol, do lado das descobertas, das novidades que permanecem novidades. Diria Ezra Poud em seu ABC da literatura (2006) quando propõe pensar a noção de literatura.Isso tudo é possívelse aproximarmos a formação do leitor pelas vias da literatura, entendendo que a literatura desperta o senso crítico e faz acordar os homens para tomar o seu lugar no mundo. “Ler literatura? Voar junto para outros lugares humanos, próximos do meu porque também meus, e hermeneuticamente retornar, agora muito mais conectado aos acontecimentos da vida”.Esclarece Silva (2008, p. 25). Dito isso, não é difícil perceber os espaços que a leitura literária nos oferece e entendê-la abrindo portas ao nosso pensamento.
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Penso fundamentalmente na leitura do mundo, que é um ato de compreensão do que se vê ou se sente. A criança inicia seu aprendizado a partir de sentidos anteriores aos da visão: aprende a respirar e, aos poucos, troca um modo de viver por outro, percebendo novas realidades pelo tato, olfato, paladar, etc. Adapta seus instintos às condições que o meio lhe oferece, estabelecendo, desse modo, relações de sentido para acompanhar o sigiloso mover-se da vida.
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Oliveira (2011)analisa a contribuição do pensamento educacional de Paulo Freire para a gênese histórica da interculturalidade no Brasil e identifica que, por meio de seus referenciais pedagógicos, a educação libertadora defendida pelo educador pode ser considerada de interculturalidade crítica. Com base na leitura de obras de Freire e de autores que tratam sobre a educação popular e a interculturalidade, bem como assuntos de interface com o tema, a autora faz uma aproximação teórica entre Paulo Freire e a educação intercultural crítica por meio da relação entre a cultura e a educação; da matriz libertadoraconstruída em seu projeto educacional e do debate sobre o multiculturalismo, apresentando questões de classe, gênero, etnia, diferença, solidariedade, alteridade, tolerância, entre outras. Ainda segundo Oliveira (2011), ao fazer a opção por uma educação do oprimido, Freire apresenta uma característica própria, traduzida por uma educação ética e politicamente engajada. Essa práxis libertadora propõe a superação da opressão e possibilita que homens e mulheres sejam sujeitos de sua história e cultura. Para Freire (1983) a opressão social está diretamente relacionada à opressão cultural, ou seja, a cultura não é nunca despolitizada; ela permanece sempre conectada à vida social e às relações de classe, poder e política que a inspiram. Walsh (2009) parte da necessidade – ainda presente e urgente – de se ler criticamente o mundo, intervir na reinvenção da sociedade e visibilizar a desordem absoluta da descolonização, como apontaram há alguns anos Frantz Fanon,na Martinica, e Paulo Freire, no Brasil. Fanon propõe a descolonização da ordem mundial, por meio de um processo histórico novo, feito por novos homens, que traduza uma nova linguagem e, consequentemente, uma nova humanidade.É preciso desconstruir os conceitos formados desde muito cedo nas crianças, jovens e adultos a respeito da cultura eurocêntrica, que sempre renegou a cultura dos sujeitos oprimidos historicamente, como os indígenas, os afrodescentes, as mulheres e as pessoas comdeficiência. A escola precisa dar conta desse debate e discutir as diferenças culturais e, acima de tudo, valorizá-las.Para tanto, é preciso olhar para fora dos muros da escola e ver que aprender está ligado também com o modo de viver e ao respeito das diferentes culturas. Ainda segundo Walsh (2009), a dupla modernidade/ decolonialidade, historicamente funcionou a partir de padrões de poder fundados na exclusão, negação, subordinação e controle dentro do sistema/mundo Capitalista que, nos dias atuais, se esconde por detrás de um discurso neoliberal multiculturalista, que faz pensar que existe
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Leitura multicultural de Paulo Freire
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um “reconhecimento” da diversidade e da promoção de sua inclusão. Na verdade, esse “reconhecimento” é ilusório, já que nos governos neoliberais a propaganda é inversamente desproporcional à realidade. A colonialidade do poder se acentuou nos últimos anos se adequando ao projeto de neoliberalização e a necessidade de mercado, o que provocou o surgimento do termo “recolonialidade”, ou seja, o “reconhecimento” e “respeito” à diversidade cultural são convertidos em novas estratégias de dominação, que ofusca e mantém, ao mesmo tempo, a diferença colonial por meio de um discurso de multiculturalismo e sua ferramenta conceitual, a interculturalidade “funcional”, que não aponta para a criação de sociedades que respeitem as diferenças; ao contrário, servem de controle de conflitos e para a conservação da estabilidade social num rearranjo permanente do projeto neoliberal. A interculturalidade é, cada vez mais, o termo usado para se referir a esses discursos, políticas e estratégias de corte multiculturalneoliberal, cujo interesse maior é a manutenção do status quo. Já a interculturalidade crítica não é condizente com o modelo de sociedade vigente, o neoliberal, uma vez que defende a construção de um novo modelo a partir das pessoas que sofreram submissão e subalternização históricas. A escola precisa não apenas reconhecer as diferenças e trabalhalas em datas e momentos isolados é necessário dar subsídios para que o professor ofereça oportunidades iguais para grupos de alunos diferentes, onde uma cultura ou um saber não se sobreponha ao outro. (SILVA, 2008) não só nos fala da valorizaçãodas espécies, mas acrescenta à elas a mesma importância de espaços e formas de viver, tornando-os parte da história, no momento em que praticam a escuta ou leitura de ficção.
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Ainda sob a ótica dessa sociedade neoliberal vemos a preocupação expressa por McLaren(1997) que, em seus estudos,se concentra em torno da crítica pós-moderna. Por teoria pós-moderna, o autor considera duas tendências fortemente expressas nesse contexto – a primeira, classificada como pós-modernismo lúdico e, a segunda, como pós-modernismo crítico ou de resistência. Posicionando-se como um teórico de forte influência marxista, logo nas primeiras páginas do livro Multiculturalismo crítico, McLaren (1997) expõe seu desconforto a partir do que compreende como pósmodernismo lúdico. Define-o como uma teoria que privilegia o cultural, o discursivo em detrimento da materialidade dos modos de
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Multiculturalismo e a crítica pós-moderna
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produção. Não basta pregar uma escola “pós-moderna”, se ela de fato não for praticada.Por conseguinte, apresenta a teoria pós-moderna de resistência, mas nãocomo forma alternativa à corrente que descreve como lúdica, mas como um meio de extensão de suas críticas. Para ele, o pós-modernismo de resistência traz à crítica lúdica, uma forma de intervenção materialista, uma vez que, não está somente embasado em uma teoria social da diferença, mas em vez disso, em uma teoria que é social e histórica (McLaren,1997). A corrente pós-moderna de resistência, seria uma crítica intervencionista, em que as “textualidades” tornam-se práticas materiais. Mas, em que sentido as correntes pós-modernas se relacionam com o multiculturalismo? Em que aspecto a teoria pósmoderna da resistência difere das demais concepções de diferença proposta pelas teorias liberais? Segundo McLaren (1997), para os liberais, o conceito de “diversidade” estaria associado à noção de um “bálsamo calmante”, isto é, uma solução para “administração da crise” imposta pelas questões raciais. Por outro lado, para os membros da teoria pós-moderna de resistência, a diferença se distancia do conceito de diversidade, isto porque o conceito nãoé tomado superficialmente, afirmam que a “diferença” é sempre incerta e polivocal, nem sempre servindo ao consenso, e, portanto, um conceito não determinado por limites claramente demarcados, servindo assim, ao que chamam de “multiculturalismo crítico”. Dessa forma,apresenta várias tendências dominantes da crítica pós-moderna. Essa discussão não pode estar dissociada das experiências vividas pelos grupos oprimidos. E, o pós-modernismo de resistência tem sido fundamental no desenvolvimento de novas formas de práxis pedagógicas que se preocupam com o repensar de políticas educacionais em uma sociedade multicultural. Para isso, é preciso que se apropriem de uma pedagogia crítica, quetambém precisa de táticas políticas e culturais que possam orientar a luta contra as múltiplas formas de opressão, e que interajam com grupos sociais distintos, mas que estejam trabalhando com objetivos de libertação. Apoiando-se em vários autores, McLaren (1997) refere-se a este posicionamento crítico como sendo uma “fronteira” ou um espaço “entre-meio”. E, é esse espaço que precisamos revisitar, não apenas nas teorias de fronteira da academia, mas também nas contingências vivas da luta revolucionária. Para além dos passos regulares, a busca pela identidade cultural passa não apenas pela diversidade, mas sim pela diferença dos vários movimentos da vida cultural.
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Letramento como práxis: desafios apontados Rojo (2009) faz uma abordagem interessante sobre a prática de letramento em diferentes contextos. Inicialmente, ela define alguns termos elementares para a compreensão do processo que se encontra em constante evolução. E, para definir o letramento a autora,apropriase do seguinte conceito: “letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social” (Soares, 1998, p.v72).Vem daí, a nossa provocação, porque não cabe mais unicamente dentro da escola a mágica da aprendizagem. E Silva (2008, p.31) nos acorda dizendo: “vejo-me melhor no meu próprio espaço; sou necessariamente, testemunha e parte da história porque ouvir ou ler ficção é participar; produzindo fatos do nosso jeito.” Outra vez Rojo (2009)nos inquieta e nos faz pensar no conceito de letramentosendo tão complexoque envolve uma diversificação ilimitada. Mas, como surgiu a empregabilidade do termo letramento? Segundo Kleiman (1995) o primeiro uso da palavra no Brasil, tradução literal do inglêsLiteracy, foi de Mary Kato (1986). E aí essa rede formada em torno do letramento recebe de Kleiman(1995, p. 15-16) a seguinte provocação:
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E Rojo (2009, p. 96-97) nos esclarece o conceito de alfabetismo queserve para designar o conjunto de competências e habilidades ou de capacidades envolvidas nos atos de leitura ou de escrita dos indivíduos, de acordo com suas histórias de vida. Daí surge outro termo alfabetismo funcional que, na década de 1930, nos Estados Unidos, foi empregado durante a Segunda Guerra, pelo exército norteamericano para a compreensão de instruções escritas necessárias para a realização de tarefas militares. Desde então, o termo passou a ser utilizado para designar a capacidade de se usar a leitura e a escrita para fins pragmáticos, em contextos diferenciados, seja em espaços domésticos ou de trabalho, na maioria das vezes, em contraposição ao mundo academicista. É Rojo que ilumina a discussão, porque entrega a fórmula certa para aprendizagem da leitura com três ingredientes mágicos: o
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o conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos numa tentativa de separar os estudos sobre o impacto social da escrita dos estudos sobre a alfabetização, cujas conotações escolares destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita.
A diferença está na qualidade da decodificação, no modo de sentir e de perceber o que está escrito. O leitor, diferente do ledor, compreende o texto em sua relação de interação dialética
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conjunto de competências e habilidades ou de capacidades. A palavra conjunto determina os espaços outros, para além da escola, com ela, mas também para além dela. O que reforça cada vez mais as nossas certezas. Assim, podemos dizer que as práticas sociais de letramento que exercemos em diferentes contextos de nossas vidas vão construindo nossos níveis de alfabetismos, esses já consolidados nos espaços escolares, não necessariamente dessa forma, pois existem pessoas que mesmo analfabetas e não escolarizadas, possuem os saberes populares herdados de seus antepassados e que se constituem em práticas de letramento. Isto os torna, de certa maneira, letrados. É o que chamamos de vivência de mundo, “escola da vida”, método muito presente nas populações do campo. Nesse emaranhado que envolve as diferentes denominações dos termos apresentados, é importante que não se perca de vista que o alfabetismo tem um foco individual determinado pelas capacidades e competências cognitivas e linguísticas escolares, enquanto que o termo letramento utiliza as práticas sociais de linguagens valorizadas ou não, envolvendo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, escola, mídias, etc.) numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural. Para a nossa região, tanto os processos de alfabetismo, letramento e a própria construção do conhecimento fica comprometida pela inadequação das práticas na sala de aula regular e em alguns casos. O professor muitas vezes, quer que o aluno descubra o pensamento do autor, sempre que trata de textos literários, quando deveria, na verdade, se permitir a escuta das impressões de leitura que o aluno teve, sem considerar que neste tipo de prática, o texto fica restrito a uma única análise, um único sentido, uma única resposta. E desta forma, escapa de um traço marcante do gênero literário: a polissemia ou o trabalho com as palavras em estado de pluralidade. É possível entender que o que as escolas propõem favorece a compreensão e o entendimento do que o professor quer explicar e não escuta atentiva dos conhecimentos adquiridos pelos alunos, seus conhecimentos de mundo e até mesmo de outras leituras já feitas. Com isso, afirmaVargas (2013),a estrutura educacional brasileira tem formado até agora mais ledores que leitores. Dentro deste propósito, é fundamental entendermos ao que se propõem os dois termos:
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com o contexto, em sua relação de interação com a forma. O leitor adquire pela observação mais detida, de compreensão mais eficaz, uma percepção mais crítica do que o que é lido, isto é, chega à política do texto. A compreensão social da leitura da-se na medida dessa percepção (Vargas, 2013, p. 29).
(Multi)letramento e cultura: de que educação estamos falando? A necessidade de se modificar as práticas pedagógicas monoculturais presentes na escola é urgente. Os modelos implementados pela cultura dominante de processos de aprendizagem que valorizam apenas a escrita e a leitura têm mostrado o insucesso de tais práticas escolares ao longo dos anos. A escola deve deixar sua prática monocultural, reproduzida há anos, e propiciar uma nova compreensão das relações entre educação e cultura. A escola deve ser concebida como um espaço ecológico de cruzamento de culturas, mediadora e reflexiva de influências plurais que as diferentes culturas exercem de forma permanente sobre as novas gerações (CANDAU, 2008). É neste compasso que Vargas se aventura avançando também no entendimento do ato de leitura:
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E é assim que autora vai dando a forma de multiletramento ao ato de ler, sem perder de vista o prazer que este ato pode proporcionar aos alunos e por isso mesmo a eficácia do trabalho dos professores. Para Rojo (2012), diferentemente do letramento, que aponta para uma variedade de práticas, o multiletramento aponta para dois tipos específicos de multiplicidade presentes em nossa sociedade, principalmente a urbana, na contemporaneidade – a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e comunica. Isto significa levar em conta o sentido de tudo o que é produzido e tudo aquilo que a escola pode produzir.
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Fruir o texto significa descobrir a vida enredada em suas malhas. Significa perceber a realidade de forma mais palpável por meio da impalpável trama da linguagem. Em palavras signos, formas todos juntos, passam a significar mais concretamente, inclusive, que a abstrata matemática dos números. Se antes do texto lemos a realidade com os sentidos, com os textos acrescemos mais ainda essa possibilidade da percepção porque o ler significa apoderar-me também daquilo que está distante dos sentidos (Vargas, 2013, p. 27- 28).
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Nesse sentido, a escola pode oferecer atividades que favoreçam a construção de relações interculturais que promovam situações de debate, de reconhecimento entre os diferentes, sem colocar uma cultura sobreposta à outra.EmBentes (2012) temoso principal argumento que serve de sustentação para esse debate é que há, na sociedade atual, uma multiplicidade de formas de linguagens e de culturas que superam a visão restritiva de se trabalhar na escola apenas a linguagem escrita ou de se centrar unicamente na aquisição de letras e na leitura de palavras impressas. No trabalho textos literários, é fundamental investir nas diferentes linguagens e variadas formas de significação aumentam as possibilidades de construção do conhecimento e consequentemente sua participação efetiva da vida em sociedade, sem que os alunos sejam obrigados a aprender sempre pelo caminho mais “fácil” e previsível. Isso significa dizer que a expressão e a recepção do conhecimento podem serrealizadas por diversas formas, pela visão, pelo tato, pela audição, pelo paladar, por desenhos e gravuras, pelo movimento do corpo, pelos espaços vividos, enfim, pela grande teia de saberes.
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Há muito que se discute a leitura ou alfabetização como uma necessidade básica para todo cidadão, e que a escola é um espaço de todos. Pesquisadores e educadores debatem permanentemente em busca de alternativas e políticas que levem a esse objetivo. Alguns relatos nos mostram que essa prática ainda é muito incipiente por diversos fatores que vão além da sala de aula – pela falta de interesse dos governantes e pela falta de respeito com a categoria de professores;pela falta de recursos e no entendimento das políticas públicas e não garantia que a escola seja um espaço de interação e disseminação de conhecimento. Assim, cabe à escola potencializar o diálogo multicultural, trazendo para reflexão,não somente a cultura dominante, mas, além disso, vivenciar a cultura trazida pelos integrantes da comunidade escolar: pais, alunos, professores, as culturas locais e populares para que se tornem objetos de estudo. Na teia de conceitos diversos que nos deparamos na elaboração deste artigo, entendemos que a escola pode organizar um trabalho pedagógico que contemple uma multiplicidade de práticas, gêneros, mídias, direcionada à compreensão e produção escrita em diferentes linguagens. Cabe aos educadores atentar para a utilização do multiletramento como ferramenta nova, advinda das novas tecnologias
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Aproximações conclusivas
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e que, em função da globalização da informação, precisa ser trabalhada no cotidiano escolar, principalmente num universo inclusivo. Ao analisar o contexto amazônico, notamos que os alunostêm sido bem pouco despertados para as várias formas de se comunicar com o mundo, nem tampouco comos diferentes gêneros literários. Desse modo, eles não são tocados para uma melhor compreensão do mundo que os cerca e para que possam intervir nas suas realidades sem serem mais vistos como “os silenciados”, que“não conhecem” e“não entendem”; portanto, o exercício da autonomia ou da sua independência na sociedade.
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Rosana Brito da Cruz O discurso sobre a heresia na formação de uma identidade cristã ortodoxa
O DISCURSO SOBRE A HERESIA na formação de uma identidade cristã ortodoxa Rosana Brito da Cruz
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O objetivo deste artigo pauta-se em analisar um aspecto da obra História Eclesiástica do bispo Eusébio de Cesaréia, no que concerne à análise de um discurso formador de identidade que se dá através da afirmação da ortodoxia pela alteridade das heresias, buscando consolidar sua legitimidade.Abordaremos em nosso trabalho apenas os aspectos considerados cruciais para entendermos a relação que se estabeleceu entre Igreja e Império Romano ao longo de sua trajetória, principalmente no que concerne ao processo de legalidade pelo qual passou o cristianismo e os discursos apologéticos de autores cristãos para legitimar uma identidade cristã ortodoxa. Com o processo de hierarquização discursiva no âmbito da organização eclesiástica, consideramos que as heresias assim definidas
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Resumo: Esteartigo é resultado da defesa de monografia realizada na Universidade Federal do Pará sob a orientação do Prof. Msc. Thiago de Azevedo Porto cujo título foi “Eusébio de Cesaréia e a História Eclesiástica: um discurso identitário acerca da ortodoxia via alteridade das heresias” (2013). Com o objetivo de verificar os processos formadores de identidade através do contexto de escrita da obra História Eclesiástica do bispo Eusébio de Cesaréia, produzida nas primeiras décadas do século IV, pois a mesma possui elementos que serviram como modelo para os textos hagiográficos posteriores. Essa obra foi o ponto de partida para elaboração deste artigo, no qual será analisado mais precisamente um aspecto da obra, no que concerne a análise de um discurso formador de identidade que se dá através da afirmação da ortodoxia pela alteridade das heresias, buscando consolidar sua legitimidade. Palavras-chave: Heresia. Ortodoxia. Identidade.
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pela Igreja estavam intimamente ligadas com o desenvolvimento do poder eclesiástico: quanto mais intenso ele fosse maior seria seu poder de coerção. Observamos nesse momento do século IV, grandes discussões teológicas, concílios ecumênicos e controvérsias, sobretudo no que concerne à necessidade de definir a essência de Cristo, causando posteriormente um grande problema dogmático, que seria o de estabelecer a relação entre Deus, o Pai, e o Filho, se estes seriam da mesma essência ou não. É nesse cenário que surge Ário que negava a divindade do verbo, tais questões foram resolvidas nos concílios que se seguiram de Nicéia e de Constantinopla. Diante desse cenário é que trabalharemos sobre os movimentos chamados de heréticos, primeiramente fazendo uma breve conceituação do termo heresia para um melhor entendimento sobre o tema discorrido. Posteriormente, faremos considerações gerais sobre alguns movimentos apontados como heréticos nos primeiros séculos da Igreja. Finalizando o trabalho, abordaremos sobre as contendas em torno do cristianismo e do arianismo, além do posicionamento da Igreja perante as correntes de pensamentos que estavam em evidência no cenário eusebiano, de escrita da obra HE1.
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Ao longo do trabalho, eventualmente, utilizaremos a sigla HE como substituto para História Eclesiástica. 2 RIBEIRO JÚNIOR, João. Pequena história das heresias. Campinas, SP: Papirus, 1989, p. 19.
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É fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho e para uma melhor compreensão do mesmo, apresentarmos, desde já, as bases conceituais do termo heresia, bem como algumas reflexões sobre o desenvolvimento histórico dos movimentos considerados heréticos nos primeiros séculos de organização da Igreja, pois tanto o surgimento do conceito, quanto a sua aplicação pela Igreja (e seus representantes) nos primeiros séculos, constituem uma base importante para analisar o discurso de Eusébio de Cesaréia acerca das heresias na História Eclesiástica, objetivo principal destetrabalho. O termo Heresia vem do grego (haíresis) que significa escolha, foi criado historicamente e ganhando outros significados com o passar do tempo, na época helenística tinha o sentido de doutrina ou escolha. Com o advento do cristianismo, a palavra recebeu uma conotação pejorativa de “doutrina que está fora da Igreja”, ou seja, contrária aos princípios da fé cristã2. A definição e aplicação deste conceito foi um instrumento fundamental para a própria organização eclesiástica:
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Conceituando Heresia
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OLIVEIRA, Elisana Ribeiro; CRUZ, Rosana Brito da. Eusébio de Cesaréia e a História Eclesiástica: um discurso identitário acerca da ortodoxia via alteridade das heresias. Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, julho a dezembro de 2011, p. 78. BARROS, José D’ Assunção. Papas, imperadores e hereges na Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. p. 55.
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definir quem eram os hereges era uma maneira de demarcar o que era certo dentro da Igreja, ou seja, delimitar um aspecto particular ou uma interpretação doutrinária como verdade, através da escolha feita por determinados grupos cristãos ou individualmente3. Essas escolhas sempre irromperam conflitos, controvérsias e desentendimentos desde o início das comunidades cristãs, pois não eram algo estável, o que fez com que uma doutrina se sobressaísse sobre as demais. É interessante esclarecer que inicialmente as heresias surgidas na Antiguidade eram de divergências teológicas, diferente das que surgem na Idade Média prenunciando a Reforma Protestante do século XVI4. A partir desse processo que envolveu escolhas, debates e conflitos, a Igreja foi delimitando a doutrina tida como verdadeira, e a única a possuir a verdade revelada pelos apóstolos, apontando nas demais o errado e denominando-as de heresias. O surgimento das heresias não corresponde a uma visão pueril de que aos poucos a fé cristã tivesse sido deturpada por falsas doutrinas, mas deve-se ao fato de que havia uma multiplicidade dos testemunhos da fé, que resultaram em escolhas pessoais e na formação de comunidades segregadas, desviando-se da doutrina fiel aos princípios. Desta forma, com o passar do tempo foi se afirmando a noção de ortodoxia, através da delimitação doutrinária e dogmática de tudo o que se considerava verdadeiro em questão de fé. Nesse sentido, a heresia está estritamente ligada com a evolução do poder eclesiástico, quanto mais forte ele é mais ela é identificada, condenada e perseguida. Percebe-se isto a partir do momento em que se dá a aliança entre Igreja Cristã e Império Romano, com Constantino, que não só legitimou o cristianismo como também as perseguições feitas aos hereges, que foram cada vez mais identificados e perseguidos por meios mais fortes e coercitivos. O herege não é designado “herege” senão porque alguém investido de poder eclesiástico e institucional classifica suas práticas ou idéias como contrárias a uma ortodoxia tida como verdadeira. Todo
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herético tornou-se tal por decisão das autoridades ortodoxas. Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos outros 5. As heresias, no entanto, sendo nomeadas como “desvios de conduta”, possuem elementos positivos para a evolução da doutrina cristã e para aprofundar o mistério e compreensão da fé, através de seus estudos. Sendo assim, são também consideradas como ocasião de progresso no seio da igreja. Realmente, todas as religiões soçobram no hábito e acabam por cansar. Cansam à medida que seus adeptos perdem fervor. A fé se enfraquece, perde dinamismo. Deixa de ser contagiosa como era na origem. O homem, pois, tem necessidade de ressuscitarse a si mesmo, de morrer e de reviver; daí serem necessárias as pulsões da novidade, o empurrão das heresias, para retomar seu caminho em direção aos cumes da perfeição. Por isso, São Paulo dizia que “É preciso que haja heresias” (1Cor. 11,19)6.
Com o passar do tempo a Igreja buscou se fortalecer através das heresias, como uma forma de reavivar a fé que muitas vezes se enfraquecia no âmbito da mesma. Assim como no início do cristianismo, a Igreja sempre buscou se consolidar e legitimar seu poder através das heresias, identificando nelas o errado e se afirmando como a verdadeira doutrina. Quando passava por algum enfraquecimento, buscava se fortalecer identificando outras heresias. O cristianismo conheceu crises profundas, devido principalmente as interpretações pessoais das sagradas escrituras no contexto do século IV, bem como aos mais diversos cultos que tendiam para a capital do Império Romano. Havia diferentes tendências que afirmavam serem os defensores da verdadeira fé, grupos cristãos seguiram determinadas tendências religiosas à medida que iam recebendo a mensagem de Cristo, uma multiplicidade de testemunhos da fé levou à formação de comunidades segregadas7. No interior desses grupos surgiu o que ficou conhecido como heresias, a começar pela tendência judaizante na qual havia um conflito entre judeus-cristãos e os recém-convertidos do paganismo que não necessitavam passar pela circuncisão nem observar
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DUBY apud BARROS, José D’ Assunção. Papas, imperadores e hereges na Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. p. 56. 6 RIBEIRO JÚNIOR, João. Pequena história das heresias. Campinas, SP: Papirus, 1989,p. 20. 7 Cf. STOCKMEIER,Peter; BAUER, Johannes B. Antiguidade In: LENZENWEGER, Josef etalli. História da Igreja Católica. São Paulo: Ed. Loyola, 2006, p. 24.
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todas as práticas judaicas. Deveriam apenas aceitar o monoteísmo e os mandamentos. Diante desse judaísmo heterogêneo carregado de idéias cristãs e não-cristãs, que têm raízes pagãs, surgiram as chamadas heresias judaicas. Considerações sobre algumas heresias, das origens ao século IV O surgimento dos movimentos heréticos e as formas geradas no âmbito eclesiástico revelam os diferentes posicionamentos sobre os assuntos da fé, a começar pelo gnosticismo que é uma forma de teologia que promete salvação pela compreensão dos enigmas do céu e da terra. Tal compreensão é adquirida quando o ser humano, orientado por um mestre, dirige sua atenção para dentro de si mesmo 8. A palavra gnóstico significa “aquele que conhece” 9, por isso, o gnosticismo trata sobre conhecimento secreto, que resultou do sincretismo entre judaísmo e cristianismo. Os primeiros movimentos gnósticos apareceram na Palestina e na Síria, tinham um caráter materialista, pois consideravam Jesus Cristo um simples homem nascido de Maria. Simão Mago e seu discípulo Menandro são apontados por representantes da Igreja como os fundadores do gnosticismo, que desenvolveu-se consideravelmente no século IV. Os gnósticos formaram vários movimentos com visões que se aproximavam, porém havia também divergências que os afastavam, seus princípios se caracterizavam entre bem e mal, um dualismo que dividia o mundo em físico e espiritual10. A seguir um documento que retrata a tentativa de explicar Cristo na concepção gnóstica síria:
MANDONI, Danilo. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 101. 9 HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Rosari, 2008, p. 65. 10 Ibidem, p. 65.
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O gnosticismo Gnosticismo de tipo sírio Saturnino (ou Saturnilo) (c.120) Irineu, Adv. Haer. I.XXIX.1-2 Saturnino era antioquiano. Pensava, como Menandro, que há um pai absolutamente desconhecido, que fez anjos, arcanjos, virtudes e potestades; o mundo, porém, e tudo quanto nele existe, foi feito por anjos em número de sete... O Salvador, conforme Saturnino, não nasceu, não teve corpo nem forma, mas foi visto em forma humana apenas em
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aparência. O Deus dos judeus, segundo ele, era um dos sete anjos. Visto que todos os príncipes quiseram destruir seu Pai, Cristo veio para aniquilar o Deus dos judeus e para salvar os que nele mesmo acreditassem. Esses são os que possuem uma faísca da vida de Cristo. Saturnino foi o primeiro que afirmou a existência de duas estirpes de homens formadas pelos anjos: uma de bons e outra de maus. Tendo em vista que os demônios davam seu apoio aos maus, o Salvador veio para destruir os demônios e os perversos, salvando os bons. Mas, ainda segundo Saturnino, casar-se e procriar filhos é obra de Satanás11.
Percebemos nesse documento o dualismo entre o bem e o mau e a busca pelo conhecimento que somente será alcançado com a libertação do espírito que está preso à matéria. Diante da gnose o cristianismo estava frágil, pois os hereges gnósticos se consideravam “ortodoxos”, uma vez que também se baseavam na escritura, na tradição e no credo12. O gnosticismo estava pautado em quatro traços característicos que, em toda a sua peculiaridade, promete ao “eu” humano uma redenção através do caminho do conhecimento e podem ser sintetizados nas seguintes ideias: Dualismo entre bem e mal, reino da luz e reino das trevas; Libertação da centelha de luz aprisionada na matéria; O conhecimento do “eu” só é alcançado quando este consegue se libertar dos grilhões da matéria e volta para o reino do verdadeiro Deus; O discurso sobre “queda” e “ascensão” está permeado de elementos filosóficos, religiosos e astrológicos da época, evidenciando seu caráter sincrético.
Diante do alcance que o gnosticismo havia tomado, o cristianismo lançou mão de guardar a revelação bíblica e garantir seu caráter histórico13, reagiu contra as aspirações gnósticas com a memória de uma tradição apostólica. Com esse embate entre
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BETTENSON,Henry. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 2007, p. 77. 12 DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo, RS: Sinodal 1993. p. 33. 13 STOCKMEIER, Peter; BAUER, Johannes B. Antiguidade In: LENZENWEGER, Josef et alli. História da Igreja Católica. São Paulo: Ed. Loyola, 2006, p. 25.
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cristianismo e gnosticismo, se delineou cada vez mais a imagem de um único Deus verdadeiro. Já o Marcionismo representou um grave confronto com a Igreja, liderada por Marcião, que era filho do bispo de Sinope, no Mar Negro, tendo sido expulso da congregação da qual participava (os motivos de tal expulsão não são claros). Marcião estabeleceu-se posteriormente na comunidade romana, onde passou a pregar um “Deus de Amor” 14, em detrimento do Deus do Antigo Testamento, que para ele era cheio de ira. O fato é significativo, pois mostra a força e a penetração do movimento gnóstico15. Sua afinidade com o dualismo gnóstico, na existência de um Deus justo e outro semelhante ao Demiurgo, encontrou afinidade para tal doutrina no apóstolo Paulo, que segundo ele foi o único que entendeu a revelação de Deus em Cristo16. Sua tentativa de separar do cristianismo qualquer ligação com o judaísmo e suas tradições é uma das suas principais características. Os principais elementos do marcionismo são: Afinidades com o dualismo gnóstico: existência de um Deus justo e cheio de ira, Javé, identificado com o demiurgo, e de um Deus de amor e de toda consolação, o Deus do evangelho; o Deus bom assumiu um corpo aparente em Cristo; desprezo da matéria. Rígido antijudaísmo: separação do cristianismo de qualquer ligação com o judaísmo. Repúdio integral do AT: AT e NT estão em plena contradição; rejeição da explicação alegórica do AT. Rigorismo ético: abstenção de todas as obras do Deus criador, especialmente o matrimônio, a carne e o vinho17.
A Igreja proclamou-se diante de Marcião para recusar suas ideias: que o Antigo e o Novo Testamento são normativos para seu ensino e ao declarar que o Deus do Antigo Testamento, o criador, é o pai de Jesus Cristo, portanto a criação é e continua sendo a boa criação de Deus18, e que todas as declarações devem partir dessa premissa. Podemos perceber que a partir desse momento a Igreja instituiu seu
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Idem, p. 26. DREHER, Martin N. Op. Cit., p. 34. 16 DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1993. (Coleção História da Igreja v. 1). p. 35. 17 MANDONI, Danilo. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Edições Loyola, 2006,p. 104. 18 Idem, p. 36. 15
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primeiro dogma de fé, ou seja, ponto fundamental e indiscutível da sua doutrina religiosa. Outro movimento que se destacou foi o ebionismo, que se caracterizava por judeus-cristãos que observavam a lei mosaica e reconheciam Jesus Cristo como Messias19; porém compreendiam que Jesus não era filho de Deus e sim um simples homem. Essa doutrina dos primeiros séculos de nossa era afirmava que Jesus possuía apenas uma natureza, a saber, a humana. Ainda, de acordo com esta heresia, também ensinava ser o Cristianismo uma mera continuação do Judaísmo, no qual o Nazareno não tinha nenhum dos atributos naturais e atributos que caracterizam a natureza divina (Andrade, 1996). Eles também rejeitavam o nascimento virginal, sustentando que Jesus nascera de José e Maria normalmente (Matera, 1989, p. 47). Ao rejeitar a divindade real ou ontológica de Jesus, asseverava que Jesus era um homem comum que possuía dons incomuns (Ericksson, 1997). Mas não sobre-humanos, ou sobrenaturais. Segundo Daniélou (apud Frangiotti, 1995), os ebionitas representavam uma tendência judaico-cristã herética20.
O movimento ebionita enfatizava a natureza humana de Jesus, como filho carnal de Maria e José, que teria se tornado Filho de Deus no batismo. Desvalido por cristãos e judeus, o ebionismo constituiu uma vertente separada com suas interpretações da Sagrada Escritura. A concepção ebionita compreendia Jesus como um mero homem, para eles, era importante decidir sobre a identidade ontológica de Jesus de Nazaré, conforme João Ribeiro Júnior 21, “entendiam que ele não era o filho de Deus e sim um simples homem, o profeta anunciado por Moisés”. Os ebionitas eram condenados porque consideravam Jesus um ser humano e nada além, mas parece que para eles tinha sido bem mais que isso. Seu nome vem do aramaico ebyon “pobre”, os ebionitas
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RIBEIRO JÚNIOR, João. Pequena história das heresias. Campinas, SP: Papirus, 1989, p. 23. 20 SILVA, José Orlando da. A encarnação como a suprema hierofania: releitura interpretativa do cristianismo.Dissertação – Mestrado, Recife: UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO, 2012,p. 54. 21 JÚNIOR, João Ribeiro. Pequena história das heresias. Campinas, SP: Papirus, 1989, p. 23.
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consideravam-se judeus que acreditavam em Jesus22, a Igreja dos ebionitas resistiu até o século V. O século IV foi, sem dúvidas, um período de grandes contendas no âmbito da Igreja, principalmente os conflitos teológicos que ocorriam em torno da questão trinitária, da definição da divindade entre Deus, o Pai, e o Filho. As controvérsias sobre questões cruciais da fé também tiveram a interferência imperial e muitas vezes se caracterizaram por lutas políticas23. Diante desse contexto surge um conflito que se apresentou entre Ário, que se considerava um teólogo conservador, e os bispos cristãos. Um dos temas centrais da doutrina de Ário é que o Pai é o único não gerado, ou seja, que o Filho não era divino, mais sim uma criatura como qualquer outra e possuía um caráter subordinacionista em relação ao Pai. Diante desse conflito foi convocado um concilio em Nicéia (325), que reuniu diversos bispos de todas as regiões para que fosse estabelecida a paz para a Igreja. Dentre eles destacavam-se Eustácio de Antioquia e Marcelo de Ancira, e entre o grupo que apoiava Ário estava presente Eusébio de Nicomédia e também Eusébio de Cesaréia24. Os arianos propuseram uma formulação da fé cristã, Eusébio de Cesaréia fez então uma proposta, ele formularia a fé num único Deus e verbo divino, buscava-se, portanto confirmar que o Filho pertence à esfera divina, indo contra a idéia ariana do logos ser uma criatura25. Eusébio posteriormente justificou sua atitude a comunidade a qual pertencia, afirmando que havia agido desse modo para conseguir a paz da Igreja, que pretendia o imperador. É interessante averiguarmos os motivos pelos quais havia tantos bispos que estavam seriamente divididos sobre a questão ariana, sabemos que muitos simpatizantes da doutrina de Ário foram silenciados à força por ordens do imperador 26. Ário tinha muitos seguidores e mesmo com a sua condenação ao exílio, após o concilio de Nicéia, a questão não estava encerrada e perdurou até o ano de 381. O arianismo adentrou até mesmo na corte,
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HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Rosari, 2008, p. 64. 23 MANDONI, Danilo. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 121. 24 STOCKMEIER, Peter; BAUER, Johannes B. Antiguidade In: LENZENWEGER, Josef et alli. História da Igreja Católica. 3 ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2006, p. 62. 25 Idem, p. 63. 26 HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Rosari, 2008, p. 81.
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especialmente por causa da irmã do imperador, chamada Constância, que levou Constantino a adotar uma política mais flexível, permitindo aos exilados, dentre eles Ário e Eusébio de Nicomédia, que inclusive se tornou de sua intima confiança, que voltassem e readquirissem suas sedes. Talvez essa atitude de Constantino se caracterize por interesses políticos já que os arianos eram a maioria nas regiões orientais27. Partindo da análise documental de tais questões, podemos presumir que Eusébio de Cesaréia entendia a questão herética como uma ameaça ao cristianismo e a fé na verdade professada pela Igreja. Podemos perceber o posicionamento arbitrário de Eusébio quando se trata de escrever a respeito das heresias que surgiram na Antiguidade, e de qualquer outro pensamento que fosse contra seus princípios dogmáticos, ou que se apresentasse como negação da verdade original segundo seus preceitos. É importante ressaltar que não era somente o bispo de Cesaréia que se posicionava dessa forma, pois ele fazia parte de um grupo social, cujo pensamento convergia com seus posicionamentos, contudo deve-se perceber que o significado da palavra “heresia” foi adquirindo novos matizes com os desenvolvimentos medievais28. Ortodoxia e heterodoxia: os debates e conflitos em torno do arianismo
MANDONI, Danilo. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p.129. 28 BARROS,José D’ Assunção. Papas, imperadores e hereges na Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. (Série A Igreja na História). p. 57. 29 MANDONI, op. cit., p.121. 30 MANDONI, op. cit., p.122.
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Ário (260-335) nascido na Líbia, educado na escola catequética de Luciano de Antioquia, era sacerdote em Alexandria, um centro do pensamento helenístico e lugar de uma escola famosa dedicada à expansão do Cristianismo entre as classes mais cultas29. Nesse contexto começa a se propagar o pensamento ariano (entre 318 e 381 d.C.) através de cartas, homilias, canções sacras e escritos 30. A Controvérsia Ariana pautava-se em torno de uma definição bíblica legítima da relação entre Deus, o Pai, e o Filho. Ário interpretou o Filho de Deus em um sentido subordinacionista, ou seja, estava numa posição inferior ao Pai, que teria sido criado do nada. O logos, desse modo, teria sido “produzido”, através da obra de criação do Pai, era uma criatura como outra qualquer.
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MANDONI, op. cit., p.122. MANDONI, op. cit., p.123. 33 PAPA, Helena Amália.Cristianismo Ortodoxo versus Cristianismo Heterodoxo: uma análise político-religiosa da contenda entre Basílio de Cesaréia e Eunômio de Cízico (séc. IV d.c.). Dissertação – Mestrado, Franca : UNESP, 2009, p. 45. 32
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Os pontos principais da doutrina ariana são: o Pai é o único nãogerado, não-criado, eterno e sem princípio, o único que é a origem; é anterior ao Filho; portanto se o Pai gerou o Filho, este passou a existir no tempo, consequentemente houve um momento em que o Verbo não existia; o Verbo é pura criatura e mutável, podendo conquistar novas perfeições 31. É interessante observarmos que a controvérsia do arianismo surge no âmbito do cristianismo, difundida por um sacerdote cristão. Portanto, o arianismo não se configurava como desvio da tradição ou como construção de uma nova seita, mas no nosso ponto de vista numa busca pela verdadeira essência de Cristo, em um consenso sobre a gênese da doutrina cristã. Ário apoiava-se nas seguintes premissas bíblicas: Pr 8,22 (Deus me criou), Mc 10, 18 (só Deus é bom) e 13, 32 (o Filho ignora o dia do julgamento), Jo 14, 28 (o Pai é maior do que eu), 1 Cor 15,28 (o Filho será submisso ao Pai), Cl 1,15 (o primogênito de toda criatura) 32. Constantino resolve intervir nos debates sobre a essência de Cristo e convoca um concílio, denominado de Concílio de Nicéia (em 335) que reuniu vários bispos para que fosse deliberada a questão ariana e outras que estavam em discussão na época. No Concílio, alguns bispos estavam preocupados com a unidade da Igreja, e outros com as distorções dos dogmas e doutrinas cristãos33. O grupo em torno de Ário contava com os bispos Eusébio de Nicomédia e Eusébio de Cesaréia, as discussões teológicas se acirraram ainda mais por causa da formulação da fé cristã proposta pelos arianos, originando resistências. Eusébio de Cesaréia propôs uma profissão de fé da sua comunidade que professava a fé num único Deus, dessa forma apaziguando as contendas, foram feitas apenas alguns complementos no que concerne ao emprego da palavra homoousios que significa (da mesma essência). O símbolo de Nicéia, portanto, visa confirmar que o Filho pertence à esfera divina assim como o Pai, posicionando-se contra as ideias de Ário. Todos os bispos assinaram a fórmula, inclusive Eusébio de Cesaréia, que concordou com os termos impostos de fé, menos Ário e dois de seus seguidores. Numa carta enviada posteriormente a sua comunidade, o bispo de Cesaréia busca explicar tal atitude, declarando
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que a paz na Igreja era necessária e devia-se ao Imperador34. Ário e seus seguidores foram exilados na Ilíria. Podemos analisar que, nesse contexto de fortes debates em torno da figura de Cristo, revela-se um ideal político-religioso que diz respeito a afirmar uma doutrina perante o Império e seu poder central. Também podemos perceber que se trata, sobretudo, de interesses e benefícios que seriam conseguidos com a definitiva proteção do Estado com relação à Igreja. Percebemos, ao longo dessas considerações, que as percepções de movimentos tidos como heréticos sobre questões relacionadas à fé e ao mundo sobrenatural, não estavam desconectadas. Muitas concepções se assemelhavam umas com as outras, porém divergiam também sobre várias temáticas, ou seja, ao mesmo tempo em que se aproximam se afastam em suas discussões sobre a fé. Os posicionamentos da Igreja em relação a elas foram bastante hostis, a partir do momento em que os eclesiásticos perceberam o risco de tais opiniões contrárias à verdade imposta pelo cristianismo, pois ameaçavam seus privilégios e sua hegemonia frente aos fiéis.
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STOCKMEIER, Peter; BAUER, Johannes B. Antiguidade In: LENZENWEGER, Josef et alli. História da Igreja Católica. São Paulo: Ed. Loyola, 2006, p.63.
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Como podemos observar ao longo do trabalho, existia toda uma trajetória de movimentos considerados heréticos anteriores a vida de Eusébio e de discursos sobre esses movimentos na tradição da Igreja. Portanto, quando ele fala das heresias ele se posiciona em relação a essa tradição, sendo por ela influenciado. Nosso intuito neste artigo foi de verificar os processos formadores de identidade através do contexto de escrita da obra História Eclesiástica do bispo Eusébio de Cesaréia e compreender o momento histórico destes debates em torno da verdade estabelecida pelo cristianismo em matéria de fé. Inicialmente fizemos uma conceituação do termo heresia, para entendermos a aplicação deste conceito quando se trata em definir o caminho errado, assim propagado pela imposição do cristianismo ortodoxo. Posteriormente fizemos considerações sobre algumas heresias que contestavam ideias estabelecidas como irrefutáveis pela Igreja. O arianismo é um dos movimentos pelos quais abordamos as controvérsias religiosas, surgiu dentro do próprio cristianismo, foi formulado por um eclesiástico cristão, justamente em um momento em que a Igreja buscava a afirmação e legitimação de suas crenças: o cristianismo utilizou-se do discurso como forma de estabelecer uma identidade cristã ortodoxa.
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Considerações finais
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Referências Documentação Primária Impressa: EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002.
Documentação Secundária Impressa: BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Aste, 2007.
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BRANDÃO, Helena HathsueNagamine. Introdução à análise do discurso. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FALCON, Francisco José Calazans. História Cultural: uma visão sobre a sociedade e a cultura. Rio de Janeiro: Campus, 2002. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2011. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: ________. (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 73-102. Obras Gerais: BARROS, José D’ Assunção. Papas, imperadores e hereges na Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo, RS: Sinodal 1993. FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (séculos I- VII): conflitos ideológicos dentro do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995. HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Rosari, 2008. RIBEIRO JÚNIOR, João. Pequena história das heresias. Campinas, SP: Papirus, 1989. MANDONI, Danilo. História da Igreja na Antiguidade. São Paulo: Edições Loyola, 2006. OLIVEIRA, Elisana Ribeiro; CRUZ, Rosana Brito da. Eusébio de Cesaréia e a História Eclesiástica: um discurso identitário acerca da
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Obras Teórico-Metodológica:
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ortodoxia via alteridade das heresias.Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo Volume 2/2, julho a dezembro de 2011, p. 74-82. PAPA, Helena Amália. Cristianismo Ortodoxo versus Cristianismo Heterodoxo: uma análise político-religiosa da contenda entre Basílio de Cesaréia e Eunômio de Cízico (séc. IV d.c.).Dissertação – Mestrado, Franca: UNESP, 2009. SILVA, José Orlando da.A encarnação como a suprema hierofania: releitura interpretativa do cristianismo.Dissertação – Mestrado, Recife: UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO, 2012. p. 54. STOCKMEIER, Peter; BAUER, Johannes B. Antiguidade.In: LENZENWEGER, Josef etalli. História da Igreja Católica. São Paulo: Ed. Loyola, 2006. p.7-112.
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Maria Adriana Leite | Luciane Silveira Rodrigues O processo formativo docente e suas interfaces com os saberes locais
O PROCESSO FORMATIVO DOCENTE e suas interfaces com os saberes locais: uma proposta de reorientação curricular em Bragança-PA
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Resumo: As reflexões apresentadas neste artigo são parte do processo de acompanhamento da proposta de formação continuada de professores da Secretaria Municipal de Educação-Bragança-PA (SEMED-Bragança-PA), iniciada no ano de 2013. Essa proposta consiste num plano de formação continuada para os professores, coordenadores e gestores da rede municipal de ensino, que tem como objetivo construir coletivamente as bases para elaboração de uma Política Curricular que afirmem as diretrizes da “Escola Bragantina”. Nosso objetivo é perceber como o processo de formação continuada chega ao chão da escola tornando-se elemento capaz de contribuir para a prática da reflexão pedagógica, que promova a transformação da práxis do professor. Entendemos que o processo de formação continuada de professores precisa dar conta de promover a constante reflexão de sua práxis, partindo do olhar sobre a diversidade cultural, em que a escola encontra-se inserida. Nosso trabalho é resultado do acompanhamento da implementação da proposta de construção da escola bragantina através das Jornadas pedagógicas 2013/2014, as exposições das escolas no Museu pedagógico e as Caravanas pedagógicas. O presente trabalho está estruturado três momentos, sendo o primeiro explanando como se deu a implementação da proposta de construção da escola bragantina em 2013, feita através da formação de multiplicadores, no segundo momento temos ampliação da proposta com os círculos de diálogos por área de conhecimento que teve por objetivo aproximar o professor da reflexão críticas sobre os conteúdos escolares e suas relações com o complexo temático e, por fim, no terceiro momento apresentamos uma reflexão a partir das análises das avaliações
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Maria Adriana Leite | Luciane Silveira Rodrigues O processo formativo docente e suas interfaces com os saberes locais
feitas pelos professores municipais ao final da Jornada Pedagógica em 2014. Palavras-chave: Formação docente. Currículo contextualizado. Complexo temático.
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As mudanças são características constantes na história dos seres humanos, vivemos em uma sociedade dinâmica caracterizada por uma multiplicidade cultural, ideológica e social. A escola é o ambiente em que nos deparamos frequentemente com essas diversidades, logo pensar em um processo de formação continuada para os professores consiste em “trabalhar em prol de um modelo de professor apto a compreender o conhecimento e o currículo como processos discursivos, marcados por relações de poder desiguais, que participam da formação das identidades.” (Canen, 2001, p. 336). Nós, enquanto educadores,temos o desfio de discutir e viabilizar propostas concretas de mudança da realidade, pois em algum momento seremos mediador do processo de transformação,principalmente no ambiente escolar. Bragança, cidade histórica de 400 anos, marcada por diversidades culturais,reflete tal aspecto em seu conjunto de escolas. Distribuídas em uma geografia díspar composta de campos alagados, mata terra firma, mangues, litoral, várzeas e igapós, temos as mais diversas peculiaridades, como aquelas que estão em ambientes que possuem a pesca como principal fonte econômica, as que estão dentro de comunidades tipicamente agrícolase escolas no ambiente urbanizado. Pautada por essas diversidades,a Secretaria Municipal de Educação tem sua proposição orientada pelo princípio dialético que busca os saberes locais para viabilizar a construção de uma proposta de reorganização curricular visando à melhoria e a qualidade do ensino. Desde o início de 2013, a SEMED-Bragança- PA vem trazendo à tona as discussões em torno da implantação do currículo integrado nas escolas do município de Bragança.Discussões sobre Cidadania, Cultura e Sustentabilidade relacionadas ao saber local da comunidade escolar que se fizeram presente no primeiro momento de construção, através do uso da pesquisa sócioantropológica que deu origem aos complexos temáticos nas escolas. Em 2014, a ampliação da proposta trouxe para a discussão os conteúdos da base curricular nacional que devem dialogar criticamente com os saberes locais, possibilitando ao educando do ensino fundamental a construção de conhecimentos.Acreditamos que a construção ou reconstrução de um currículo escolar deve pautar-se sobre um olhar daquilo que já fazemos, porém que precisamos
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Apresentação
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perceber o que ainda é possível fazer, procurando novas alternativas e apontando novos rumos. Construindo a escola bragantina 2013 e 2014 No ano de 2013, a SEMED-Bragança-PAapostou em um programa de formação continuada dos professores, coordenadores e gestores denominada “Escola Bragantina”. Tal proposta se define a partir de uma concepção de educação numa perspectiva dialética que se utiliza da teoria dos complexos temáticos, defendida por Pistrack em seu livro “fundamentos da escola do trabalho”, além de a utilização do caderno disponibilizado pelo MEC sobre as “Indagações do currículo”, buscando a realidade local das diversas comunidades escolares presente no município. Inicialmente, utilizou-se o processo de Multiplicadores tendo um Formador que capacitou a equipe técnica da SEMED-Bragança-PA.A equipe técnica, por sua vez,realizou a capacitação dos diretores e coordenadores e estes fizeram a capacitação para os professores. Tal processo causou estranheza nos educadores, pois os mesmos estavam acostumados com uma proposta de formação unilateral e ao serem convidados a tornarem-se formadores e saírem dacomodidade da “idade do oficio”, como traduz Tardif (2013, p.554), percebeu-se que muitos se tornaram relutantes em definir-se enquanto profissionais autônomos com seus conhecimentos teóricos e práticosque os levam a tomada de decisões. Assim, Marciel, et al (2013,p. 5) relata que:
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As formações de professores da rede municipal de ensino sempre ocorreramtendo à frente um palestrante que fazia as orientações sobre suas práticas pedagógicas trazendo intervenções externas a realidade do município.Isso caracteriza o “olhar de cima para abaixo”, que torna as formações mecanizadas levando ao esgotamento das propostas. Contrapondo a proposta de receitas predefinidas, partimos da lógica que seria necessário ouvir os anseios e dificuldades enfrentadas pelos professores no cotidiano da sua prática docente. Tal problematização levou-nos a organização do trabalho pedagógico
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os educadores envolvidos no processo de formação de multiplicadores em rede são sujeitos históricos mediados pelos conflitos e contradições refletidos no cotidiano escolar, por isso o percurso dessa formação deu-se com tensões, embates e discussões com intenção de buscar a transformação da realidade na perspectiva de uma educação de qualidade e socialmente referenciada.
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voltado ao complexo temático, com o eixo articulador “Bragança 400 anos: cultura, cidadania e sustentabilidade”. Como resultado dessa experiência de formação no chão da escola, das 127 escolas que compõem a rede municipal de ensino, obteve ao final do ano letivo de 2013 a exposição de 40 escolas que apresentaram a sistematização de seus trabalhos.Estas trouxeram as atividades desenvolvidas pelos alunos e professores e expressas através de diversas linguagens, como teatro, livros, músicas, danças, maquetes, estória em quadrinhos, culinária e outras. Esses resultados foram expostos nos I e II Museu pedagógico, que ao mesmo tempo em que se configurava como momento de socialização dos resultadosparciais dos trabalhos desenvolvidospelas escolas, também se apresentava como o processo de construção de conhecimento para o ensino e aprendizagem dos educandos. Torna-se relevante comentar, que ao trabalhar o currículo partindo do cotidiano do sujeito, deve-se ter o cuidado para que o ensino não se limite apenas aos fatos do dia a dia, mas que possam ser oportunizadas as opções de relacionar os sabereslocais e os conhecimentos universais vividos pelos diferentes grupos sociais. E a socialização no Museu pedagógico possuía o cárater de inter-relacionar conhecimentos e saberes. Ampliação da proposta de construção da escola bragantina
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Art. 11. A escola de Educação Básica é o espaço em que se ressignifica e se recria a cultura herdada, reconstruindo-se as identidades culturais, em que se aprende a valorizar as raízes próprias das diferentes regiões do País. Parágrafo único. Essa concepção de escola exige a superação do rito escolar, desde a construção do currículo até os critérios
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Dando prosseguimento ao processo de formação continuada no município de Bragança-PA, a proposta de formação em 2014 ganhou nova formatação. Em 2013, a partir da metodologia de multiplicação de formadores, buscou-se levar a todas as escolas, todos os professores o embasamento teórico-metodológico sobre: complexo temático, interdisciplinaridade e desenvolvimento do sujeito e o currículo integrado, ocorrendo momentos de estudo e formação. Seguimos ainda com as formações e momentos de estudos acreditando que é necessário unir a prática pautada em conhecimentos teóricos e as leis que nos embasam nas tomadas de decisão para a condução do processo formativo de cidadão, a fim de aprofundar a proposta, como vem sendo posto nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, previstas pela resolução nº 4 de julho de 2010, que afirma:
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Entende-se o conhecimento escolar como abrangente dos diversos saberes das sociedades humanas, de modo a garantir que a escola seja capaz de contribuir para que o sujeito (aluno), ao passar pela educação básica, possa participar do mundo do trabalho das várias manifestações cidadãs e culturais, bem como para a vida. Podemos ainda acrescentar a análise de Young(2007), quando este menciona que não basta adaptar o currículo para tornar a escola mais fácil às classes desvalidas, ou aos saberes regionais e locais, é preciso fazer com que as camadas desfavorecidas possam ter, pelo currículo condições para dialogar criticamente com sua realidade seja ela no campo ou na cidade, no meio acadêmico ou do trabalho, alcançando o que o autor chama de Conhecimento Poderoso. Em 2014, a SEMED-Bragança com o intuito de aprofundar debate sobre os aspectos da escolarização por meio do currículo integrado, da pedagogia da memória e da abordagem por complexos temáticos trouxe para o momento de formação na Jornada Pedagógica osCírculos de Diálogos por Áreas do Conhecimento, a considerar: Linguagem, Matemática, Ciências humanas, Ciências naturais e Educação infantil. O objetivo dos Círculos de diálogos é fazer o espaço de reflexão da práxis: olhar as produções das escolas no ano de 2013 e refletir os avanços, as possibilidades e também aslimitações da base teórica tomada como norteadora da proposta. Das 40 escolas que apresentaram seus trabalhos, no II Museu Pedagógico Bragantino, seis trabalhos foram escolhidos para serem usados como objeto de reflexão na Jornada Pedagógica 2014, levando em consideração alguns aspectos: forma de exposição do tema, organização do complexo, trabalhos de pesquisa expostos e a participação dos alunos nas atividades. A partir dessas experiências e intervenções técnico-teóricas, se introduziu a discussão sobre as áreas de conhecimento e a especificidade da Educação Infantil. Tomando a pesquisa como princípio educativo e o currículo contextualizado, propõe-se para o segundo momento da jornada cinco Círculos de Diálogos: Ciências naturais, pesquisa como princípio educativo e currículo contextualizado; Matemática, pesquisa como princípio educativo e currículo contextualizado; Linguagem, pesquisa como princípio educativo e currículo contextualizado;
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que orientam a organização do trabalho escolar em sua multidimensionalidade, (...).
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Ciências humanas, pesquisa como princípio educativo e currículo contextualizado; Infância, Currículo Contextualizado e Educação Infantil.
A proposta de sintetizar as diferentes disciplinas curriculares e as atividades práticas levando ao“afunilamento”das discussões nos círculos de diálogos tornou-se necessária para possibilitar uma visão ampla para o processo de construção do conhecimento, com objetivos
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I- “Letramento, Literatura e Currículos Contextualizados no Ensino Fundamental", tendo como facilitador o Professor Paulo Demétrios da Universidade Federal do Pará. Dentro desse círculo de diálogo foram trabalhados elementos da Linguagem Bragantina, como mitos, lendas e imaginário popular. II- “Ciências Naturais e Currículos Contextualizados no Ensino Fundamental", contamos com a parceria da professora Liliane Freitas trazendo abordagens sobre o uso da pesquisa no Ensino Fundamental. III- “Ciências Humanas e Currículos Contextualizados no Ensino Fundamental” Tivemos a mediação da Professora Ângela Tereza Corrêa, que enfatizoua discussão sobre a história, a cultura, a identidade do povo bragantino considerando os conhecimentos produzidos pelas atividades humanas e em que eles podem vir a favorecer o ensinoaprendizagem. IV- “Infância, Currículo Contextualizado e Educação Infantil” estando à frente a Professora Natalina Mende, discutiu a partir da conceituação de criança, infância e a infância na Amazônia a necessidade de contextualizar as especificidades da Educação Infantil. Que as práticas devem ver quem são seus alunos e que tipos de infância estão vivendo. V- “Etnomatemática e Currículo Contextualizado no Ensino Fundamental" teve como colaborador o Professor Osvaldo Barros, da Universidade Federal do Pará que mostrou de forma clara e sucinta a proposta da etnomatemática como ferramenta facilitadora no processo ensino-aprendizagem.
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Nessa formação, o objetivo era promover o diálogo entre os complexos construídos pelas escolas diretamente com os Conhecimentos Poderosos de cada área, convergindo toda a investigação feita pela pesquisa sócioantropológica que norteou a formação dos complexos em elementos a serem resignificados e recriados pela linguagem científica da escola.Em síntese, temos as proposições discutidas em cada círculo:
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bem definidos, o planejamento dos projetos e refletido por todo coletivo durante os encontros de formação e ao voltarem para o chão da escola. Resultados e discussões Ao final da jornada pedagógica, utilizamos um instrumento de avaliação através de questionário enfatizando a inserção da proposta da sobre a “escola bragantina”, tendo como objetivo verificar como foiaceitação ou a rejeição por parte dos professores nas escolas. Possui uma visão geral de como estava sendo construído os complexos temáticos no espaço escolar. A jornada atendeu um público de aproximadamente 900 professores, que participaram durantes três dias.No primeiro momento houve a exposição dos seis trabalhos selecionados a partir do Museu pedagógico, com intervenções do professor formador da equipe técnica da SEMED-Bragança-PA, apontando o que poderia ser melhorado e o que deveria ser mais aprofundado.Em seguida, foram criados grupos menores que se reuniram em espaços diferentes para selecionados pelas temáticas dos círculos de diálogos. Ao término, 598 professores contribuíram voluntariamente respondendo as avaliações, esse número correspondendo a 64,44% do total de professores participantes. Três questionamentos básicos nortearam o instrumento de avaliação, sendo que no primeiro perguntamos como estava a inserção da proposta em construção sobre a “Escola Bragantina”? Como respostas chegamos à síntese apresentada no Quadro 01:
Não construiu experiências envolvendo o complexo temático. Outra alternativa
%
456
76,25%
98
16,38%
31
5,18%
13
2,17%
Total de questinarios respondidos
598 100% Fonte: Secretaria Municipal de Educação- Setor Fundamental.
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Construiu seus complexos e deu continuidade a essa ação articulando-as com as propostas pedagógicas da escola. Construiu os seus complexos, mas não ampliou ou articulou com suas propostas pedagógicas;
Ocorrências
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Quadro 01: Resposta trazidas pelos professores. Inserção da proposta sobre a “Escola Bragantina ” em 2013
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Com base nessas respostas, verificamos que mais de 75% dos professores construíram os complexos temáticos e deram continuidade. Significa dizer que uma parte significativa do público alvo do programa de formação conseguiu desenvolver a proposta ou interessarse por ela. Entretanto, vemos como preocupante a ocorrência de 31 professores indicarem a não realização da experiência com os complexos temáticos, levando-se a perceber que os professores voltavam-se para as aulas tradicionais, não explorando o que havia ao entorno da escola. Ao conversamos com os docentes, observamos que em algum momento eles possuiam vontade de aplicar e iniciar, porém esbarravam no medo de tentar o novo, ou seja, o que era diferente do que vinham trabalhando. Paramelhorvisualização das respostas trazidas pelos docentes, os dados foram colocados em um gráfico, como mostra a figura 01: Fig. 01: Resposta dos professores sobre a inserção da proposta em construção sobre a “Escola Bragantina”.
A inserção da proposta em construção sobre a “Escola Bragantina” 600
456
400 200
98
31
13
0 Respostas dos professores Construiu complexos e deu continuidade Construiu complexos mas não ampliou
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Na segunda pergunta aos docentes, questionamos sobre a proposta de construção de currículo integrado e contextualizado com o intuito de percebermos como os professores estavam visualizando a proposta trazida pela Secretaria municipal de Educação.
300
Não construiu experiências envolvendo o complexo temático outras alternativas
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Nesse quesito ocorreu um fenômeno: os professores colaboradores optaram por responder a mais de uma alternativa que levou a um total de 627 ocorrência, que foram sistematizadas no seguinte quadro 2:
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A partir desse fenômeno ocorrido, na resposta, percebemos os diferentes olhares que estão sendo direcionados aos trabalhos a partir dos complexos temáticos, que por sua vez, são resultantes das diferentes práticas já desenvolvidas pelos professores da rede municipal. Diante dos números, entendemos que apesar dos 46,09% dos professores que conseguem a partir da proposta de currículo integrado realizar procedimentos em seus trabalhos e aproximar-se da realidade em que a escola esta inserida,a secretaria entende que nãochegou aser um resultado satisfatório, embora compreenda que encontra-se dentro de um processo de educação e que os poucos resultados observados são satisfatórios. Ao analisarmos os dados dos quadros, vimos que no primeiro questionamento mais de 75% dos professores afirmaram que construíram complexos articulando com a proposta pedagógica da escola, entendemos como discordante o fato de menos de 50%chegam a consolidar a transformação da ação docente, que justifica a necessidade de um acompanhamento frequente e no chãoda escola.Ao organizarmos os dados em um gráfico temos a figura 02, a seguir:
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Quadro 02: Resposta trazida pelos professores, coordenadores e diretoressobre a proposta de Currículo Integrado e Contextualizado Proposta de currículo integrado e Ocorrências % contextualizado Possibilitará a realização de procedimentos novos em meu trabalho 289 46,09% diário, aproximando-me da realidade em que a escola que trabalho está inserida; Possibilitará a ampliação de procedimentos didático-pedagógicos que 231 36,84% já vinha realizando; Possibilitará o maior envolvimento dos alunos e de outros professores em 72 11,48% atividades coletivas comuns; Pouco contribuirá 29 4,62% Outra alternativa: 06 0,95% Total de Professores que responderam a 627 100% pergunta Fonte: Secretaria Municipal de educação- setor Ensino Fundamental.
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Fig.02: Respostas dos professores sobre a proposta do currículo integrado e contextualizado.
A discussão e reflexão acerca da proposta de currículo integrado e contextualizado
350
300
250
Possibilitará a realização de procedimentos novos em meu trabalho diário, aproximando-me da realidade em que a escola que trabalho está inserida Possibilitará a ampliação de procedimentos didáticos-pedagógicos que já vinha realizando
289
231
200
Possibilitará o maior envolvimento dos alunos e de outros professores em atividades coletivas comuns
150
100 72 50
Contribuiu pouco 29 6
0
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Na terceira pergunta queríamos saber de que maneira tem sido vivenciado o Complexo Temático pelos professores,uma vez queo programa de formação pretende a transformação da prática docente de forma a atingir a participação dos professores na construção do
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Respostas dos servidores
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currículo e dos critérios que orientarão a “escola bragantina”, sendo estes pautados em uma construção coletiva. No quadro a seguir, (ver quadro 3) apresentamos as respostas trazidas pelos professores. Quadro 03: De que maneira tem sido vivenciado o Complexo Temático e o Museu Pedagógico por você? De que maneira tem sido vivenciado o Complexo Temático por você?
Ocorrências
%
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Percebemos que a proposta de formação continuada de professores da SEMED-Bragança-PA tem promovido constantes reflexões no “chão da escola”. O fato é constatado a partir da analise dos dados do quadro a cima, onde a maior ocorrência (65,62% ) aponta para participação intensa dos professores nas discursões e atividades desenvolvidas com outros docentes e individualmente, para a materialização da proposta desenvolvida na escola.Há uma participação esporádica nas discursões que levam a um percentual de 22,91% de docentes envolvidos. De uma forma geral, tabulamos em um gráfico as repostas que evidenciam a vivência pelos professores da proposta do complexo temático para a construção da escola bragantina, visualizados na figura 03, a seguir:
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Participo intensamente das discussões e atividades desenvolvidas com outros professores 378 65,62% e individualmente, para a materialização da proposta desenvolvida na escola; Participo esporadicamente das discussões e atividades desenvolvidas para a materialização 132 22,91% da proposta desenvolvida na escola; Minha participação pouco contribuiu nas discussões e atividades desenvolvidas para a 27 4,68% materialização da proposta desenvolvida na escola; Outra alternativa 39 6,77% Total de professores que responderam 576 100% Fonte: Secretaria Municipal de Educação-Bragança-PA: setor Ensino Fundamental.
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Fig. 03: Respostas dos professores sobre de que maneira tem sido vivenciado o Complexo Temático.
De que maneira tem sido vivenciado o Complexo Temático? 600
378
132 27
39
Participo intensamente das discussões e atividades desenvolvidas com outros professores e individualmente, para a materialização da Participo esporadicamente das proposta desenvolvida na escola discussões e atividades desenvolvidas para a materialização da proposta desenvolvida na escola Minha participação pouco contribuiu nas discussões e atividades desenvolvidas para a materialização da proposta desenvolvida na escola Outra alternativa
0
respostas dos servidores
Percebemos, ao final deste processo de avaliação, que a implementação da proposta de construção da escola Bragantina via ComplexoTemático, pedagogia da memória e currículo integrado tem sido amplamente discutida no chão das escolas da rede municipal de ensino. No entanto, não podemos afirmar que tais discussões já tenham alcançado os nossos objetivos que é a transformação da práxis docente e consolidando a escola como espaço de diálogos. Tendo em vista esses resultados, justifica-se a intensificação na ocorrência das “caravanas pedagógicas”, que se destina a estreitar os laços entre a secretaria de educação e as escolas através do processo de ajuda mútua na construção do complexo temático.
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Iniciamos este trabalho descrendo a proposta de formação continuada de professores da secretaria municipal de educação de Bragança-PA que visa a construção de diretrizes curriculares para a consolidação da “escola bragantina” com a participação coletiva e
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Considerações finais
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buscamos sistematizar as reflexões das quais resultam seu processo de ampliação, iniciada em 2013 com a formação de multiplicadores e em 2014 ampliada pelos círculos de diálogos, discussão da pedagogia da memória e implementação das “caravanas pedagógicas”. Em nossa breve caminhada, nos chamou atenção o processo de formação dialógica que ocorre em duas vias de conhecimento, ou seja, ao propormos a construção pelas escolas por complexo temático, a partir dos saberes locais, pretendemos estabelecer o estreitamento na relação entre a escola e acomunidade. Agora no meio do processo de formação nos percebemos também como construtores de nossos próprios complexos, pois a necessidade de estar com o professor no chão da escola (estreitamento das relações) discutindo sua práxis faz com que ao mesmo tempo que formamos também somos formados. É importante olhar para o processo de construção do complexo e não para o seu produto final e ver tal processo de construção como possibilidades de transformação do ambiente escolar.Tornando-o espaço de ressignificação e recriação dos conhecimentosoriundos da cultura local, que valorizema identidade do sujeito, bem como sua realidade social, entendida como resultado da ação humana historicamente sobre seu espaço geográfico, e palco de diversidades, conflitos e contradições. Definir as diretrizes da escola bragantina não é um processo homogêneo e unilateral, mas será resultante do conjunto de experiências desenvolvidas pelas escolas partindo da perspectiva de construção coletiva.Tendo este pressuposto, a secretaria municipal de educação investe na continuação da proposta com o projeto “caravanas pedagógicas”, que ao promover o estreitamento dos laços entre a secretaria de educação e as escolas, também promoveránossas indagações e busca por caminhos de reflexões-ação-reflexão da prática. Esses são os novos desafios da proposta a partir do ano de 2014.
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BRASIL. Lei nº 9.394. LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de dezembro de 1996. D.O.U. 1996. CANEN, A. Avaliação da aprendizagem em sociedades multiculturais. Rio de Janeiro:Ed. Papel & Virtual, 2001a. Disponível em: <www.papelvirtual.com.br>.Acesso em: 21 mai. 2014. GIESTA, N. C. Pesquisa sobre professores, Pesquisa sobre escola, Formação de professores, Didática, Ensino reflexivo. Editoras: Junqueira & Marin Editores, 2005
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Bibliografia
Maria Adriana Leite | Luciane Silveira Rodrigues O processo formativo docente e suas interfaces com os saberes locais
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Rayniere Alvarenga de Sousa | Deyse da Silva Mota | Sylvia Maria Trusen O processo de tradução: da oralidade para o escrito, e o gênero maravilhoso
O PROCESSO DE TRADUÇÃO: da oralidade para o escrito, e o gênero maravilhoso na narrativa transcrita pelos pesquisadores do programa IFNOPAP, A Cobra Grande
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Resumo:O presente artigo tem por objetivo realizar uma análise da narrativa A Cobra Grande, fomentando e estabelecendo uma compreensão da natureza das narrativas amazônicas. A pesquisa surgiu a partir do projeto de pesquisa intitulado “Alteridade e literatura: reflexões preliminares em torno de uma teoria para as narrativas amazônicas”. O estudo efetivou-se com a leitura analítica da narrativa (coletada e transcrita pelos pesquisadores do Programa IFNOPAP – o Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense); em conjunto com os estudos de Jakobson (1995), Larrosa (1996), Propp (2006), Todorov (2012), assim como pesquisadores da referida temática, sobretudo, Trusen (2014). Com isso, ratificamos a forte ligação e relevância da narrativa em questão com o gênero maravilhoso. O conto integra-se à produção no plano do imaginário das narrativas míticas de origem vinculada à Amazônia Oriental. Propõe-se, assim, a partir da leitura de Propp (2006), articular a narrativa ao gênero que Todorov (2012) distinguiu do fantástico e do estranho. Considerando-se que a narrativa foi traduzida do oral para o escrito, almeja-se também refletir acerca da passagem entre esses dois registros, abordando a concepção de metáfora. Como resultados, obtivemos a presença das seguintes ações dos personagens da narrativa: “interrogatório”, “informação”, “cumplicidade”, “dano”, “recepção do meio mágico”, “combate”, “castigo, punição” e “tarefa difícil”. Palavras-chave:Narrativa mítica. Gênero maravilhoso. Tradução.
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Rayniere Felipe Alvarenga de Sousa Deyse Carla da Silva Mota Sylvia Maria Trusen
Rayniere Alvarenga de Sousa | Deyse da Silva Mota | Sylvia Maria Trusen O processo de tradução: da oralidade para o escrito, e o gênero maravilhoso
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A história da região amazônica é norteada pelos relatos míticos, que se efetivam na produção da literatura popular, sobretudo na Amazônia paraense, nossa área de interesse para o desenvolvimento desta pesquisa. Lendas, mitos, contos, anedotas e cantigas populares são disseminadas por meio do relato oral e acabam sofrendo mudanças ao longo dos tempos, seja no conteúdo seja na forma apresentada, nos quais firmam a presença do imaginário da riqueza fantástica no âmbito da produção cultural amazônica, especialmente, nos relatos da oralidade. A pesquisa surgiu a partir do projeto de pesquisa intitulado “Alteridade e literatura: reflexões preliminares em torno de uma teoria para as narrativas amazônicas”, coordenado pela profa. Dra. Sylvia Maria Trusen.Inicialmente, buscamos seguir uma trajetória que nos conduzisse a entender a presença do maravilhoso na narrativa, bem com recorrer às teorias pertinentes ao ato da tradução – do oral para o escrito. Ambos constituem elementos interativos das narrativas populares da Amazônia oriental. Para tanto, fizeram-se necessárias as leituras sobre o gênero maravilhoso e tradução - mencionamos aqui, Roman Jakobson (1995), Jorge Larrosa (1996), Tzvetan Todorov (2012), Vladimir Propp (2006) e Sylvia Trusen (2014). Com isso, ao delimitarmos nossa área de interesse, explicitamos a relevância do trabalho realizado pelo programa de pesquisa IFNOPAP (O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense), que possui um banco de dados com gravações e transcrições de narrativas orais do nordeste paraense. O projeto pertence à Universidade Federal do Pará (UFPA), e atua de forma conjunta com diversas áreas do conhecimento como a Arqueologia, a Linguística, a Sociologia, a Antropologia, entre outras áreas. Muitas narrativas já foram publicadas na série de contos populares Pará conta..., constituída por livro tais como,Abaetetuba conta... (1995); Santarém conta... (1995); e Belém conta... (1995). O objeto da pesquisa encontra-se no volume Belém Conta... (1995), e é a narrativa intitulada A Cobra Grande, em que se apresenta o réptil habitante das profundezas dos rios amazônicos, que tem sua existência vinculada ao mito. Com base na leitura analítica da narrativa, e com o aporte teórico disposto, debrucemo-nos sobre os estudos literários necessários para a efetivação do presente artigo.
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Introdução
Rayniere Alvarenga de Sousa | Deyse da Silva Mota | Sylvia Maria Trusen O processo de tradução: da oralidade para o escrito, e o gênero maravilhoso
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Em relação ao ato da tradução podemos mencionar tópicos de extrema relevância, no que tange as teorias vigentes acerca da referida temática. Em sua obra After Babel, Steiner (2001, p. 68) nos explicita uma perspectiva bastante coesa, no que se refere à tradução, como podemos perceber no trecho seguinte: “o ser humano se entrega a um ato de tradução no sentido cabal da palavra, cada vez que recebe de outro uma mensagem falada.” Steiner (2001) toma o processo da tradução a partir de uma perspectiva que torna a prática recorrente e usual em todo e qualquer enunciado de comunicação entre os seres humanos. Partindo desse pressuposto, que formula a tradução como uma estrutura que integra o processo comunicativo, fica claro que toda a recepção e comunicação de qualquer ato da fala humana, incluindo a prática da leitura é tida como um ato da tradução. Jakobson (1995) nos apresenta pontos consideráveis acerca do ato da tradução, nos quais aponta a prática como um ato interpretativo que se materializa em três níveis, se distinguindo entre si pelas especificidades: • A chamada tradução intralingual ou reformulação (rewording) “[que] consiste na interpretação de signos verbais por meio de outros signos de uma mesma língua.” (Jakobson, 1995. p. 64); • A segunda tipologia seria a tradução propriamente dita, “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua.” (loc cit.); • A tradução inter-semiótica ou transmutação “[que] consiste na interpretação dos signos verbais por meio dos sistemas de signos não verbais.” (loc cit.) Com isso, o autor relata, em seu ensaio, a relação de perda de equivalência no âmbito do sentido (significado), como por exemplo, no primeiro nível da tradução, a tradução intralingual, em que se efetivam as trocas de vocábulos por outros com carga semântica semelhante, a qual conhecemos por sinonímias. Assim como na tradução intralingual, não se faz diferente no nível da tradução interlingual, pelo fato de nem sempre existir um código equivalente nas línguas. Ao traduzir um determinado texto de uma língua a outra, ou mesmo no seio da própria língua, haverá sempre interferências oriundas das disparidades culturais expressas nas línguas, o que impede a fidedignidade absoluta do traduzido. Ao realizar tais argumentações, Jakobson (1995) nos traz informações importantes sobre os diferentes níveis da tradução, e,
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Teorias contemporâneas da tradução
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talvez, a mais relevante delas seja a de tomar a tradução como um ato interpretativo. Larrosa (1996), formula o que vem sendo um ponto primordial para a pesquisa, sendo este, o afastamento da significação ocasionado pelo ato da tradução. Explicitando uma teoria pautada nas bases pósestruturalistas. Cada acto de traducción (y em general, de comprensión) desestabiliza y modifica tanto la lengua-fuente como la lengua receptora. Todo acto de comprensión modifica la lenguafuente porque la construye de umadeterminada manera. La tesis aqui sería que no hay sentido original, sino que todo sentido es ya resultado de uma traducción. Y todo acto de comprensión modifica la lengua-receptora porque la fuerza de manera que pueda acoger um sentido que no había previsto. La tesis aqui sería que la traducción compromete la estabilidade de la lengua (...) (Larrosa, 1996, p. 39).1
Cada ato de tradução (e em geral, de compreensão) modifica tanto a língua-fonte como a língua- receptora. Todo ato de compreensão, modifica a língua-fonte porque a constrói de uma determinada maneira. A tese aqui seria que não há sentido original, mas que todo sentido é já resultado de uma tradução. E todo ato de compreensão modifica a línguareceptora porque a força de maneira que possa acolher um sentido que não havia previsto. A tese aqui seria que a tradução compromete a estabilidade da língua. (Tradução nossa).
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Podemos depreender atravésda teoria de Jorge Larrosa (1996), que toda tradução implica processo de transformação. Entende-se, assim, a tradução como uma metáfora da leitura, o que caracteriza esta prática como uma aplicação cultural. O autor formula ainda que a tradução produz um novo sentido no traduzido. Portanto, pode-se concluir que no momento da tradução do relato, da oralidade para o escrito, por mais que os tradutores do programa IFNOPAP tentem retratar, através do registro escrito, a forma mais próximaa do relato oral, ocorrerá sempre um distanciamento/perda na equivalência do sentido inicial contido na efetivação da oralidade. A proposição defendida por Larrosa (1996) se faz presente, também, em Trusen (2014) que nos remonta a uma concepção em que a compreensão de um signo é dada sobre sua remissão a outro signo, o que nos leva a crer na constante movimentação/transformação dos conteúdos. Com isso, inferimos que não há estabilidade no sentido do conteúdo que passa por tradução.
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O filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov (2012) discorre sobre o fantástico na literatura, nos apresentando ao longo de sua obra, a diferenciação da tríade de gêneros literários que figuram na chamada literatura fantástica, sendo estes: o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Após a leitura de Todorov (2012), nos deparamos com formulações que nos levam a compreender a classificação e distinção dos gêneros constituintes da literatura fantástica. O autor nos lembra que a hesitação/vacilação do leitor e/ou da personagem frente aos fatos apresentados na narrativa, caracteriza o gênero fantástico. Assim, a partir do momento em que se toma uma posição (resposta) frente aos fatos narrados, encontramos a classificação dos gêneros literários vizinhos. Desse modo, segundo Todorov, caso haja a percepção dos fatos como sendo algo da ordem do verossímil, visto que as leis da natureza vigentes na realidade permaneciam intactas, estaremos então no gênero estranho. Caso a visão do leitor, ou, ainda, da personagem se voltem para o inverossímil, trata-se do gênero maravilhoso. Vale ressaltar, que o último gênero apresentado, o de maior relevância para a nossa pesquisa, é caracterizado pela sua correspondência com o desconhecido, atrelado à fuga da experiência prévia, portanto, a aceitação da existência do sobrenatural. Na narrativa, A Cobra Grande, há a presença de fatos sobrenaturais, que classificamos como pertencentes ao plano do inverossímil. Podemos citar, na narrativa, a presença da figura encantada que necessita de atos que sejam efetivados para que seu atual estado sofra uma transformação, passando assim, por um processo metamórfico. Todorov (2012) nos apresenta tal temática do relato fantástico como pandeteminismo – possui como consequência a “pansignificação”, onde há relação em todos os níveis – verossímil e inverossímil, sem contar na forte influência de determinados elementos, contidos na narrativa, com os demais objetos e itens presentes. O autor formula e nos apresenta em sua obra, ramificações da tríade dos gêneros da literatura fantástica, sendo o estranho puro, fantástico-estranho, fantástico-maravilhoso e maravilhoso puro. No denominado fantástico-maravilhoso, incluímos as narrativas que apresentam características fantásticas, mas terminam com uma aceitação do sobrenatural, através da ausência de explicações naturais, ou, ainda, fatos que se apresentem de forma não racionalizada. Devemos focar na presença ou na ausência de certos detalhes que nos permitirá sempre optar por uma solução.
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As teorias do gênero maravilhoso
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Com isso, nos deparamos com a necessidade de delimitação do maravilhoso puro. Todorov (2012) nos distancia de alguns tipos de narrativas: • O maravilhoso hiperbólico “[onde] os fenômenos não são aqui sobrenaturais a não ser superiores às que não são familiares.” (Todorov, 2012, p. 60), não há uma violação excessiva da razão; • O maravilhoso exótico, “narram-se aqui acontecimentos sobrenaturais sem apresentá-los como tais; supõe-se que o receptor implícito desses contos não conheça as regiões onde se desenrolam os acontecimentos; por conseguinte, não tem motivos para colocá-los em dúvida.” (loccit), logo depreende-se acerca da referida tipologia, justamente, que a mistura dos elementos da ordem do natural e do sobrenatural caracterizam o maravilhoso exótico; • Um terceiro tipo de maravilhoso é o chamado maravilhoso instrumental, “aparecem aqui pequenos [...] aperfeiçoamentos irrealizáveis, na época descrita, mas no final das contas perfeitamente possível.” (Todorov, 2012, p. 62); • “O maravilhoso instrumental nos conduziu para bem perto daquilo que se chamava na França, no século XIX, o maravilhoso científico.” (Todorov, 2012, p. 63). Em sua quarta tipologia apresentada, o sobrenatural é explicado com base na experiência prévia, de modo racional, porém toma como pressuposto leis que a ciência contemporânea não reconhece. Deste modo, após o conhecimento dos tipos de maravilhoso fomentados por Todorov (2012), podemos depreender que o maravilhoso puro distancia-se de suas vertentes, se opondo ao relato maravilhoso justificado e imperfeito. Dito isto, vale ressaltar, que esta pesquisa não procura somente explicitar assuntos referentes aos estudos estruturais das narrativas. Interessa ainda, construir a ponte entre as investigações da crítica literária e literatura folclorista. Com efeito, implica também em olhar longe: na forma do viver cultural do outro, ou seja, atravessar as fronteiras para perceber como os costumes, as crenças, o comportamento de um povo implicam no processo de construção de sua literatura. E é partindo deste viés folclórico em conjunto com estudos estruturais de narrativas, que frisamos a forte influência da
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No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. (Todorov, 2012, p. 5960).
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poética do maravilhoso na região amazônica, sobretudo, na Amazônia oriental.
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O imaginário amazônico é recheado de histórias que são (re)contadas sob a ótica do inverossímil, do ilusório, do irreal, do mítico, entre outras temáticas que configuram-se no maravilhoso literário. Para a psique dos habitantes dessa região, a paisagem rural, os mangues, as matas, a imensidão das águas e suas profundezas, tornamse espaço propício para o suceder de acontecimentos insólitos, sobrehumanos. Numa região tão exuberante, onde histórias de seres encantados alimentam o imaginário coletivo, assim como também nos envolve com toda sua imensidão de mistérios, nos deparamos com umas das narrativas envolvendo a figura encantada de uma cobra. Tal narrativa, ganhará, em nossa leitura, um olhar proppiano, uma vez que tomaremos como base os estudos realizados por Propp, em seu livro, A Morfologia do Conto Maravilhoso (2006). Com a leitura da narrativa atrelada aos estudos do conto maravilhoso do formalista russo, Vladimir Propp (2006), podemos constatar a possibilidade de uma análise através de seus elementos constitutivos, por meio das ações dos personagens. Cumpre mencionarmos o fato do autor julgar fundamental tais ações para a construção dos elementos diegéticos, em especial, o enredo. Para Propp (2006), o que muda são os nomes dos personagens, o que não sofre variação são suas ações. Partindo desse pressuposto, o autor formula que o conto maravilhoso atribui recorrentemente ação iguais a personagens diferentes. Norteando assim, as reflexões que permitem analisar os contos a partir das funções dos personagens, Propp (2006) viu a necessidade de verificar uma descrição do conto maravilhoso segundo as partes que o constituem, bem como, explicitar as relações destas partes entre si e com o todo. Nossa análise versa acerca da narrativa transcrita do oral para o escrito, incluída no imaginário da Amazônia paraense. Com efeito, não seguirá os detalhamentos da análise de Propp (2006), tendo em vista as especificidades de um conto ao outro. Importa ressaltar que o objetivo deste artigo não é o de esgotar possibilidades de ações embasadas nas formulações do autor, mas o de contribuir para o estudo do maravilhoso em narrativas locais. As funções apresentadas por Propp (2006) são sempre as mesmas em contos sobrenaturais. O autor menciona que tais funções dos personagens podem ser transportadas de um conto a outro sem
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Um olhar proppiano sobre A Cobra Grande
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alteração alguma. Ocorre a variação dos contextos, nas paisagens e nos personagens, mas não ocorre tal variação nas ações. Dito isto, verifiquemos um breve resumo do relato, aSucuriju, figura mítica que foi acometida de um encantamento, anseia por sua transformação. Metamorfose essa,no qual requer um ato de coragem da personagem pontada como sua cúmplice (feri-lo com uma lança na altura da cabeça), para que por fim, tal indivíduo pudesse transcender sua atual formade encantado. Porém, a tarefa dada a personagem não foi efetivada. Diante dos contos analisados por Propp (2006), são apontadas as funções/ações dos personagens dos contos de magia: “afastamento”, “proibição”, “transgressão”, “interrogatório”, “informação”, “ardil”, “cumplicidade”, “dano”, “carência”, “mediação, momento de conexão”, “início da reação”, “partida”, “primeira função do doador”, “reação do herói”, “recepção do meio mágico”, “deslocamento”, “combate”, “marca, estigma”, “vitória”, “reparação de dano ou carência”, “regresso”, “perseguição”, “salvamento, resgate”, “pretensões infundadas”, “tarefa difícil”, “realização”, “reconhecimento”, “desmascaramento”, “transfiguração”, “castigo, punição”, “casamento”. Levando em conta o processo empregado por Propp (2006), explicitamos as funções/ações dos personagens que estão presentes na narrativa A Cobra Grande: “interrogatório”, “informação”, “cumplicidade”, “dano”, “recepção do meio mágico”, “combate”, “castigo/ punição” e “tarefa difícil”. 1) “interrogatório”: nessa ação a personagem-principal procura através de questionamentos sondar a moça para saber se ela pode o ajudar. 2) “informação”: emparelhada a tal função frisamos, ainda, a definida como “informação”, consiste na obtenção de informações, disposta através de diálogos.Podemos ter confirmação da presença das duas ações apresentadas no trecho a seguir.“Depois, ele apareceu pra elas assim, assim como vem espírito, né? E, aí, falando pra ela se tinha coragem de desencantar ele; que ele era um encantado desde pequenino. [...] Aí, tinha coragem! E ele disse, então, que vinha tal dia ver aqui” (Simões; Goelder, 1995, p. 34). 3) “cumplicidade”: esta função apresentada por Propp (2006), é explicitada emA Cobra Grande, no momento em que a personagem, a moça, é persuadida pela proposta do encantado.“E ela já começou a namorar com ele e eles namoraram sempre”. (Simões; Goelder, 1995, p. 34). Grifo nosso. 4) “dano”: uma outra função dos personagens, com base na visão proppiana que pode ser frisada é a chamada “dano”, visto que,
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compreendemos na narrativa, que tal função é evidente, a partir do momento que a mesma personagem que mostra-se anteriormente como cúmplice do herói, também assume a função/ação de antagonista, justamente por causar prejuízo ao personagem principal, que como consequência maior, seria a estabilidade na forma sua forma encantada. O autor nos formula ser a função mais importante do conto maravilhoso, no que tange a dinamização dos fatos no enredo da narrativa.Podemos evidenciar a “cumplicidade” e “dano” com o fragmento da narrativa. “Era pra ele se desencantar naquele tempo. Como ela não fez o serviço, aí redobrou o encanto”. (Simões; Goelder, 1995, p. 35). Grifo nosso. 5) “fornecimento – recepção do meio mágico”: que também é uma função dos personagens, em que convencionalmente ligamos à magia alguns objetos que foram solicitados pelo herói a moça a qual estava namorando, no momento de realização do ritual que efetivaria sua mutação. A existência da função apresentada, é corroborada no seguinte trecho do conto.“- Que é pra você pegar. Pegue uma lança ou então a coisa na ponta do espeto, na ponta...”. (Simões; Goelder, 1995, p. 34). Grifo nosso. 6) “combate”: podemos frisar a função denominada por Propp (2006) que é definida como “combate” é explicitadana narrativa através do momento em que é instaurada a tentativa de cumprimento do ritual. A passagemideal para a corroboração de tal função é o momento no qual a personagem se vê frente a Sucuriju.
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7) “castigo/punição”:tal função pode ser emparelhada com “dano”. Explícita no momento em que se redobram os encantos da Sucuriju, pela falha no cumprimento das exigências que o processo metamórfico necessitava para que se efetivasse. O fragmento que comprova a ação dos personagens na narrativaé o seguinte:“Aí, ele disse que ela tinha redobrado todos os encantos dele. Não, não, não desencantou”. (Simões; Goelder, 1995, p. 35). Grifo nosso. 8) “tarefa difícil”: nos remonta a uma das funções mais utilizadas no conto maravilhoso. Na ocasião, é dada uma missão que deve ser cumprida pelo personagem que assume a função de cúmplice
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Aí, veio, veio de novo a primeira onda. Ele não veio. Na segunda... Na terceira ele apareceu, pareceu um [toro] de pau. Que ela olhou, eram duas tochas de fogo. Aí, ela foi pra fazer menção, fez três vezes, três vezes. Aí, ele foi com outra pessoa que tivesse coragem; que já estava no tempo dele desencantar, mas ele veio numa cobra.(Simões; Goelder, 1995, p. 35). Grifo nosso.
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do herói. Podemos inferir que, há a chamada prova de coragem, de modo que no conto em questão é perceptível no momento em que uma das personagens é encarregada de ferir a figura encantada para que, por fim, tal criatura venha a ser retirada de seu atual estado de encantamento.O trecho ideal para a explicitação dessa função é o momento em que a personagem se vê frente ao ser encantado. Depois, ele apareceu pra elas assim, assim como vem um espírito, né? E aí, falando pra ela se tinha coragem de desencantar ele; que ele era um encantado desde pequenino. [...] que já estava no tempo dele desencantar, vivendo na terra. Aí, ela disse que tinha coragem, né? (Simões; Goelder, 1995, p. 34).
Assim, algumas das funções e/ou ações das personagens apresentadas por Propp (2006), se destacaram na narrativa analisada acima. Vale ressaltar, que todas as funções descritas pelo autor nem sempre podem ser identificadas num mesmo conto. Considerações finais Seguindo os estudos de Propp (2006), nos propusemos, a delimitar a existência do maravilhoso presente no arcabouço folclórico da Amazônia oriental, sobretudo, na região paraense. A análise da narrativa pautou-se nas funções dos personagens, na qual apresentou como resultados as seguintes ações dos personagens: “interrogatório”, “informação”, “cumplicidade”, “dano”, “recepção do meio mágico”, “combate”, “castigo, punição” e “tarefa difícil”. Podemos ainda inferir que é necessário o desenvolvimento de mais pesquisas voltadas ao estudo do gênero maravilhoso e ao ato da tradução. Principalmente, quando se fala em literatura popular, com o objetivo de valorizar e promover os elementos constituintes da cultura de expressão amazônica.
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JAKOBSON, Roman. Aspectos linguísticos da tradução. In: Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1995. LARROSA, Jorge. La experiência de lalectura: estúdios sobre literatura y formación. Barcelona, Laertes, 1996. PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Tradução Jasna Paravich Sarhan. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2006.
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Referências
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Hildete Pereira dos Anjos | Ingrid Pereira Brandão | Mírian Rosa Pereira Os discursos presentes em cartazes de evento de educação especial
OS DISCURSOS PRESENTES EM CARTAZES de evento de educação especial Hildete Pereira dos Anjos Ingrid Fernandes Gomes Pereira Brandão Mírian Rosa Pereira
Participamos intensamente das elaborações acerca da deficiência e da inclusão escolar a ela vinculada durante a última década (20052015), criando e produzindo a existência do Núcleo de Educação Especial (NEES), vinculado ao Curso de Pedagogia da Universidade
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Introdução
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Resumo: Neste artigo, as autoras propõemuma análise do discurso não verbal presente nos cartazes produzidos pelo Núcleo de Educação Especial vinculado à Faculdade de Educação da Universidade Federal do sul e Sudeste (UNIFESSPA), com o propósito de divulgar a Jornada de Educação Especial e Inclusão. Os eventos acadêmicos analisados constituem o primeiro e o mais recente de uma série de seis eventos. O objetivo da pesquisaé analisar como os discursos sobre deficiência aparecem nesses cartazes, sob a ótica dos pressupostos teóricos da Análise de Discurso de origem francesa(AD); neles, são investigados os efeitosde sentido produzidos nos possíveis interlocutores, tendoo jogo simbólico da imagem como operador da memória, como formulado por Michel Pêcheuxe tambémas condições históricas de produção das formações discursivas, conforme Orlandi.Os resultados, queconsideraram a capacidade da produção não-verbal abrigar discursos em uma relação de complementaridade e contradição, apontam duas formações discursivas distintas, uma ancorada no discurso da dependência e outra na luta por afirmação dos sujeitos com deficiência, dentro dos debates do respeito à diversidade. Palavras-chave: Discurso Não Verbal. Efeito de Sentidos. Deficiência.
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Federal do Pará em Marabá, até 2013, e daí em diante da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, recém-criada. Realizamos nesse período, como corolário das ações do NEES, seis Jornadas de Educação Especial e Inclusão (em 2007, a primeira, e em 2014 a última). Os cartazes dessas duas Jornadas compõem o corpus deste trabalho: partimos do pressuposto de que eles expressam dois momentos distintos da nossa experiência com educação especial e inclusão: um momento inicial, de criação do Núcleo e de busca de seu fortalecimento e um momento de consolidação da última experiência realizada. Para analisar o material, amparamo-nos no ferramental da análise de discurso, considerando que a produção de sentido extrapola em muito as intenções daqueles que se pretendem os sujeitos do discurso: carrega consigo as marcas da história, das relações sociais, da produção científica, dos enfrentamentos e relações de poder que fazem com que certas coisas possam ser ditas, exibidas, mostradas, outras nem tanto. Nosso dispositivo analítico implicou em destacar todos os elementos visuais presentes nos cartazes, relacionar cada um às condições de produção e depois relacioná-los entre si, apontado regularidades na produção discursiva, portanto possíveis formações discursivase ideológicas. Os conceitos de produção discursiva, condições de produção, formação discursiva e ideológica são explorados na primeira parte do texto. A contextualização da educação especial na região (que inclui os conceitos de deficiência e inclusão) aparecem na segunda parte. A terceira é a análise do corpus propriamente dita, atravessada pela interpretação, que permite que apontemos regularidades no discurso presente nos dois cartazes e articulemos tais regularidades entre si e com o contexto descrito.
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A fundamentação na Análise de Discurso busca os efeitos de sentidos produzidos nos possíveis interlocutores, que ocupam lugares determinados na estrutura de formação social que lhes é comum, através das condições históricas, os mecanismos de funcionamento e sustentação das formações discursivas, como menciona Orlandi (2010, p. 13) “aquilo que numa formação ideológica dada, ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio histórica determina o que pode e deve ser dito”. O jogo simbólico da imagem como operador da memória, como formulado por Michel Pêcheux (2007), é tudo que deixa marcas reconstituídas na enunciação e permite ressurgir contextos históricos.
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Análise do Discurso,imagem e efeitos de sentidos
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Os discursos são conduzidos por formações ideológicas, como um elemento capaz de intervir com uma força em confronto com outras na conjuntura ideológica de uma formação social, em um determinado momento. De acordo com Brandão (2002) cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem individuais, nem universais, mas se relacionam diretamente a posições de classe em conflito umas em relação às outras ligadas à cultura. Nesse sentido, a formação ideológica tem como componentes uma ou várias formações discursivas interligadas. Desse modo, as formações discursivas inscritas em uma formação ideológica é que vão determinar “o que pode ou deve ser dito” a partir de uma conjuntura dada. Segundo Orlandi (1995) o discurso não verbal tem característica social, cultural e produz sentido, assim como o verbal, e incide em outros através da memória, que permite dizer sobre si e os acontecimentos ao redor. O não verbal constitui-se de diversas formas, como a arte, a música, pintura, fotografia, etc., mas, o objeto é o discurso. Nesse sentido, a imagem é um acontecimento discursivo que carrega o deslocamento de sentidos, podendose manifestar sob diversas formas e condições. Na análise de discurso, consideramos os distintos contextos históricos, que dialogam com a questão da deficiência e a inclusão, não como estigma, ou dizer o que pode ou deve ser dito, ao contrário, com delimitações para compreender os diferentes funcionamentos, que são os efeitos de sentidos produzidos. Deste modo, a linguagem, enquanto discurso é interação, fruto de produção social, não é neutra e nem natural. O discurso e os efeitos de sentidos são infinitos e inacabados, estão em constante movimento do simbólico de (re)construção da história, e também, mostram outras formas de dizeres, em relação com outros enunciados. No discurso ocorre o jogo simbólico como operador social, denotandoo lugar ocupado por aquele no contexto histórico mobilizado pela memória. Assim sendo, o jogo simbólico buscasentidos préconstruídosdo dito e não dito com as noções de implícito e explícito, como operador permite o discernimento do acontecimento enunciativo, que tem características em relação ao discurso e movimenta o já dito, assim, “há uma dimensão do silêncio que remete aocaráter de incompletude da linguagem: todo dizer é uma relaçãofundamental com o não dizer”(Orlandi, 1999, p. 12). Igualmente, a memória discursiva diante da imagem a ser analisada vem mediar o leque de sentidos emergidos nas condições de recepção, face às marcas que são definidas a partir dos lugares que
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ocupam; a memória invoca as relações perpetuadas nas marcas apresentadas. Portanto, a formação discursiva traz interligações de efeitos de sentidos que guiam o discurso ideológico de uma dada situação e determinam o que deve e pode ser dito no momento. A posição e a conjuntura sócio histórico determinam os ditos e não ditos que são orientados pela formação discursiva através do jogo de imagens, o que o sujeito pensa (Orlandi, 1999). Assim sendo, utilizaremos os conceitos de efeitos de sentidos, memória discursiva e jogo simbólico como fundamentos para a análise do corpus.
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Utilizamos a expressão “em situação de deficiência”considerando a importância de se evidenciar que a deficiência não se situa na pessoa, mas na interface entre os impedimentos de ordem física ou sensorial e as barreiras culturalmente produzidas (Anjos, 2011, p. 34).
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Com o intuito de vislumbrar com maior propriedade os discursos imbricados nas produções dos cartazes das Jornadas do ano de 2007 e 2014, partimos de alguns marcos históricos da educação especial que incidiram no direcionamento das ações organizadas a nível municipal, porém sem desconsiderar os modos particulares de conceber os sujeitos, as relações e os diferentes contextos em que se inserem a Universidade e seus pesquisadores da região sul e sudeste paraense. Os primeiros movimentos que suscitaram debates e atuações voltadas às pessoas em situação de deficiência 1 se amparam em modelos embasados em experiências internacionais, que atravessaram três momentos: segregação, integração e inclusão, não necessariamente compreendidos a partir de uma visão linear do processo, mas com marcos políticos diferenciados (Anjos, 2011). De tal modo, esses processos nos ajudam a compreender as interferências e novas organizações sociaisque constituíram o cenário nacional e foram incorporadas as instituições de ensino do município de Marabá. Segundo Mendes (2006), a segregação é a forma de reunir aqueles que são tidos com iguais num único espaço, sob a influência da ciência médica, curativa, em que o sujeito era concebido dentro de uma percepção biológica a partir de suas características individuais, para as quais suas necessidades escolares seriam melhores trabalhadas em contextos separados. Já no modelo da integração, as pessoas e serviços passam a ser obrigatoriamente responsáveis por oferecer o direito de conviver socialmente, de usufruir das mesmas condições e atividades,
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Breve contextualização da elaboração dos cartazes
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neste caso em específico, as escolares, segundo Mendes (2006), Glat e Fernandes (2005). Já na perspectiva da inclusão, a concepção que se tem é que independente da natureza das diferenças, especificidades, todos obrigatoriamente devem estar frequentando a escola. O que se estabelece a partir da difusão desta ideia é pensar as organizações sociais não dissociadas do indivíduo, bem como a convivência com o diverso.Em Marabá, tal incorporação ocorre no ano de 2001, junto ao processo de municipalização, transferindo ao município às responsabilidades pedagógico-administrativas antes conferidas ao Estado. (Anjos, 2014, p. 32) Ainda que de forma gradual, há uma mudança significativa principalmente na reorganização dos espaços direcionados aos alunos em situação de deficiência, em que são extintas as classes especiais e criadas as Salas de Recursos (SRs) direcionadas à deficientes auditivos e visuais, e Salas de Apoio Pedagógico (SAPEs) as outras categorias de deficiência, No âmbito da Universidade, as políticas institucionalizadas iniciam-se apenas em 2007, com a implantação de um Núcleo Eletivo de Educação Especial, da Universidade Federal do Pará, vinculado ao curso de Pedagogia, no Campus de Marabá, com ações envoltas a oferta de formação (ensino, pesquisa e extensão), parcerias com órgãos municipais e estaduais, debates, produção de materiais adaptados, realização de eventos, além da inserção e convívio com os alunos em situação de deficiência (Anjos, 2011). No ano seguinte, é criado e cadastrado no CNPq o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Especial (GEPNEES). É interessante observarmos que há uma disparidade temporal entre o movimento que abarca município e Universidade em relação ao atendimentoa pessoas em situação de deficiência, embora suas trajetórias em dados momentos estejam entrelaçadas.Ainda que mais experiente, o Município em 2007, também passa por novas adequações previstas em conformidade com os programas desenvolvidos pelo Ministério da Educação (MEC), que substitui as SRs e SAPES, por Salas de Recurso Multifuncionais (SRM’s). Isto significa novos aprendizados, crises e incertezas em ofertar um atendimento educacional especializado, agora, extensivo a todas as categorias de deficiência, reunidas em um único espaço. Nesse sentido, observamos que a Universidade, através da representação do Núcleo, inicia suas ações com laços de dependência mais fortes com o município e seus servidores, embora o encontre em processo de adequação, reaprendendo a lidar com a situação de deficiência, frente ao desafio de trabalhar com a diversidade, oque não
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coloca o município muito distante da condição de iniciante, aprendiz, em que a Universidade se encontra. Outro fator de aproximação decorrente das ações iniciadas no ano de 2007, é que um dos projetos desenvolvidos pela Universidade através do Programa Incluir, também inicia o estímulo à presença de alunos em situação de deficiência nos espaços do campus, através de um curso preparatório para o vestibular, sendo adaptado aos alunos com deficiência visual e auditiva. Desta forma, mesmo que de maneira implícita, a Universidade acaba por reproduzir a prática do município em iniciar o trabalho com essas categorias de deficiência. O que posteriormente se retrata em números mais expressivo nos debates, produções acadêmicas, participação de docentes com habilitação nas áreas descritas e presença dos mesmos nos primeiros eventos realizados. Assim, o ano de 2007 é um divisor na história da Educação Especial e Inclusiva dos alunos em situação de deficiência no ensino superior do município. O cenário ajuda a compor a I Jornada de Educação Especial e Inclusão, primeiro evento acadêmico a abordar a temática, ressignificando a instituição e os agentes pertencentes deste espaço. Incorporando tais influências, o ano de 2014 traz, concomitantemente ao mais recente evento das Jornadas, as transformações e impactos sobre o Grupo de Estudos e Pesquisas do Núcleo de Educação Especial. Sua redefiniçãocomo Grupo de Pesquisas Dinâmicas Socioeducacionais, Políticas Públicas e Diversidade (GEDPPD) expressa aampliação da temáticas eespaços de discussão, possibilitando o diálogo com outras ciências e experiências que contribuem na visualização do sujeito como um todo e em suas relações com a sociedade. Pensar a deficiência exige então, compreendê-la em um conjunto de fatores que engloba o sujeito a uma rede de relações e a multiplicidade de características interligadas: corpo, sociedade, cultura, raça, etnia, gênero, orientação sexual e condição social. No Núcleo de Educação Especial, não há mais espaçopara a simples categorização das limitações e seu estudo isolado, a dinâmica constituída perpassa pela interlocução e interdisciplinaridade.Nesse momento, já há um reconhecimento e notoriedade nas produções acadêmicas reconhecidas no cenário nacional, principalmente através da interação com outros pesquisadores, muitos presentes ao longo dos eventos, e da participação do referido grupo no Observatório Nacional de Educação Especial. Outro fator de relevância neste contexto se caracterizafrente à transição da Universidade Federal do Pará em Marabá (UFPA) para
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Hildete Pereira dos Anjos | Ingrid Pereira Brandão | Mírian Rosa Pereira Os discursos presentes em cartazes de evento de educação especial
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Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), reorganizando-se com maior autonomia, ampliando seu campo de intervenção, bem como ocasionando transformações junto à região. Entre as muitas conquistas e mudanças decorrentes ao longo desse recorte temporal da implantação do Núcleo e consequentemente das ações desenvolvidas por ele, talvez o que mereça maior destaque esteja no exercício de acompanhar a trajetória de alunos que saem da condição de invisibilidade para o centro das discussões, que podem enfim ser propostas e vivenciadas pelo seu olhar e experiência. Os discursos presentes nos cartazes
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Como apontamos anteriormente, para poder analisar discursivamente o material de divulgação dos dois eventos, foi preciso produzir um dispositivo analítico. Como se tratava de material predominantemente imagético, nosso dispositivo precisaria destacar e analisar as marcas no formato de elementos visuais em cada cartaz; cada marca evoca sentidos relacionados às suas condições de produção, ou seja, ao contexto e as elaborações teóricas de cada época acerca de deficiência e inclusão, que é preciso evidenciar. Por fim, a interpretação dessas marcas permite apontar regularidades na produção discursiva; o uso de um dispositivo analítico permite, portanto, apontar formações discursivas e ideológicas presentes nos dois cartazes. Antes de passar à análise, consideramos importante descrever o material visual que compõe o corpus deste trabalho, começando pelo cartaz da I Jornada, ocorrida em 2007.
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A imagem disponibilizada no cartaz escolhido para o primeiro evento acadêmico da região que propunha uma discussão sobre educação especial e inclusão, apresenta dois pés adulto, do sexo masculino, de etnia branca, manicurados, limpos, posicionados ao centro de um tapete de cor branca, tendo os pés de uma criança (com características semelhantes)apoiados sobre eles. Possivelmente pela figura dos pés e o conjunto geral dos caracteres que compõem o cartaz, há indicativos de pertencimento à classe média. As informações contidas dividem-se nas partes superior e inferior do cartaz, utilizando o azul para destacar a redação superior e a cor preta para as informações que se encontram na parte de baixo. O texto é sucinto, trazendo apenas as informações mais relevantes: data, local, organizadores, e-mail para inscrições e o nome em destaque da I Jornada de Educação Especial e Inclusão. A única tonalidade que diverge do restante da figura apresentada é a cor azul que anuncia o evento; no mais, prevalece a coloração clara, suave, sobressaindo o branco. O ambiente é organizado de forma estática, tendo sua base na sustentação dos pés, centrada no desenho do tapete. Não há registro de temática referente ao evento, assim, pode-se dizer que há uma preocupação maior com a divulgação do evento do que necessariamente transmitir uma ideia específica sobre a discussão proposta, já que se trata da primeira versão do evento. Os elementos acima destacados permitem um trabalho analítico com relação às suas condições de produção, mobilizando o conceito o jogo simbólico como operador social, como apontava Orlandi (1992, p.12). A memória presente no discurso não-verbal evoca determinados saberes sobre deficiência. Os marcadores que nos remetem a tais saberes podem ser articulados em uma formação discursiva: tapete, pés brancos e bem cuidados evocam a vinculação a valores, tratos e objetos da classe média, na qual começam as reivindicações de mais espaço para as pessoas com deficiência; cores suaves evocam conforto e aconchego, que podem ser associados ao cuidado e interpretados como dependência. Essas marcas das condições de produção se organizam, portanto numa formação discursiva, através do jogo operador da memória; evidenciam efeitos de sentidos que são determinados pelas posições ideológicas, as quais determinam o que pode e deve ser dito sobre deficiência em cada tempo histórico. Deve-se ainda acrescentar que nos efeitos de sentidos produzidos, a expectativa de passividade na interação entre produtor e possíveis interlocutores, sem o objetivo de suscitar impactos, embates ideológicos entre participantes e organizadores: não são colocados questionamentos, conflitos não são evidenciados: o evento é anunciado, assim como os modos de acessá-lo. Se a imagem suscita
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um ponto de vista sobre deficiência e inclusão, o texto não o faz diretamente. Tratando-se do primeiro evento acadêmico da região que se propõe a discutir a questão da educação especial e da inclusão, seria compreensível que a convocatória não pretendesse chamar a atenção para conflitos, e sim para a unidade em torno do debate. Mas as condições históricas apresentam também outros elementos para a interpretação dessa questão: o município de Marabá, em toda a região, era o município com mais vivência, tempo e estrutura destinados à educação especial e inclusão. Nesse período (2007) a participação do município na inclusão aparece de forma mais intensa, ainda sob o reflexo do processo de municipalização instaurado. Além disso, evidencia-se no cenário nacional uma política voltada para a inclusão das pessoas em situação de deficiência, que é incorporada sem questionamentos pela Universidade: esta é neófita no processo, precisando contar com o conhecimento já elaborado na rede pública e sem posicionamento próprio a respeito (por isso, talvez, a ausência de temática). Não há, então, uma memória própria a ser evocada, e do interdiscurso, a memória é a do cuidado e da dependência, por si suaves e pouco questionadas na época. Destacamos, ainda, a intencionalidade do produtor do discurso com relação ao público que quer atingir, considerando a necessidade da Universidade em construir laços de segurança, credibilidade com aqueles que já atuam na educação especial. Podemos, com a análise das marcas na imagem escolhida, apontar no primeiro cartaz uma formação discursiva associada ao modelo da dependência, do cuidado; com relação ao texto, a desvinculação de enfrentamentos porventura já existentes, evocando a necessidade de unidade entre os envolvidos com a educação especial e inclusão.
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O segundo cartaz que compõe o corpus deste trabalho convoca para o evento de 2014, tendo, portanto, um intervalo de sete anos com relação ao primeiro; entre os dois eventos,aconteceram quatro edições da Jornada (que foi anual de 2007 a 2010 e a partir daí, bianual). O dispositivo analítico foi o mesmo utilizado para o cartaz anterior: foram evidenciados os elementos visuais do cartaz e relacionados a suas condições de produção. A imagem utilizada traz ao fundo a cor vermelha em parte da extremidade superior, a cor verde ocupa maior espaço da imagem, e um pouco abaixo do centro do cartaz, mistura-se a tonalidade amarela. Observa-se ainda como pano de fundo um pequeno pedaço em azul que ocupa o canto inferior direito. De modo geral, há predominância demúltiplas tonalidades, sobressaindo-se as cores primárias. Ao centro da figura, aparecem os contornos de um grupo de pessoas que apresenta corpos com diferentes idades, gêneros e condições físicas e que parecem transitar pelo espaço. Há alguns com formatos mais definidos, embora nenhum apresente rostos, expressões faciais. As pessoas que estão posicionadas à frente, são desenhadas com cores quentes, mais fortes, com predomínio das cores rosa e vermelho, enquanto nos que se encontram dispostos atrás, observa-se uma mistura com as cores verde, amarelo e azul que ajudam a compor o fundo do cartaz, ocasionando um apagamento sutil em relação aos outros. Entre os sujeitos, aparecem sombras, que estão mais evidenciadas na figura de dois corpos que podem representar crianças ou anões, um cão guia junto a um homem deficiente visual e dois cadeirantes. Na parte superior, encontramos ainda o nome do evento, em letras desenhadas na cor amarela. Logo abaixo do grupo de pessoas, está descrita a temática: “Olhando a educação como um direito: deficiência, inclusão e diversidade”; aparecem também a data e local do evento, assim como o nome do grupo de pesquisa responsável pela organização. Em uma estreita faixa branca ao final do cartaz encontram-se os logotipos referentes às instituições envolvidas no evento: a Universidade, a Faculdade, o Instituto, o Núcleo de Educação Especial e a CAPES. Analisando as marcas discursivas na apresentação da temática, chama a atenção o verbo empregado no infinitivo (“olhando”); isso remete a ideia de transitividade, de um movimento de ordem contínua, ainda não finalizado. Já nas palavras “direito” e “inclusão” a marca é não-verbal; são escritas na cor vermelha, normalmente associada a memórias de lutas, resistências e enfrentamentos. A cor utilizada para fazer referencia a palavra “deficiência” (azul escuro) também dialoga com a figura de um cadeirante localizado a margem esquerda do cartaz,
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inclusive sendo esta sua única aparição na multiplicidade de cores utilizadas. Nos termos “diversidade” e “educação” emergem ainda marcas discursivas em que interagem cores e texto. A primeira, na cor verde, que culturalmente está associada à esperança, sentimento este partilhado dentro de um coletivo comum de indivíduos; essa cor também aparece em maior proporção e harmonia com o conjunto geral do pano de fundo do cartaz. Já no segundo termo é utilizada a cor azul, sinônimo da serenidade, de modo que transmite a compreensão da presença de um discurso educacional, mas que não apresenta conflitos ou prioridades quando comparado a outros campos de discussões manifestados na leitura do cartaz. Nesse sentido, entre linguagem verbal e não verbal há um elo discursivo: propiciam uma interdiscursividade própria que pressupõe processos específicos são evidenciados pela memória em relação ao que não é dito: nada é dito sobre esperança e serenidade, mas elas podem ser evocadas pelo uso das cores. Ao analisar a expressão por inteiro (“Olhando a educação como um direito: deficiência, inclusão e diversidade”) percebemos marcas textuais bem delineadas na perspectiva de questionamentos críticos e atuais, presentes na sociedade contemporânea. Ainda que já tenhamos avançado na desconstrução dos estigmas de deficiência associados ao corpo, é possível identificá-los no traçado vinculado aos cadeirantes e ao deficiente visual sendo conduzido pelo cão guia. A questão de gênero e vulnerabilidade é outro elemento que chama a atenção: afigura da mulher é presença permanente próxima às imagens que representam as pessoas em situação de deficiência às crianças ou a adultosde baixa estatura. Nesse sentido, os discursos trazem as marcas do papel de proteção, de cuidado, associadas ao estereótipo do gênero feminino. Mesmo que as marcas no texto e nas imagens conduzam a uma formação discursiva embasada na representação da diversidade humana, recriando um cenário de luta em busca da defesa de direitos através da coletividade, encontramos oscilações nessa formação discursiva que nos apontam fragilidades, principalmente no que diz respeito ao movimento de inserção social. Verificamos também que o grupo que assume o evento, assume status de grupo de pesquisa, definindo e ampliando seu campo de atuação, marca reforçada pela presença de financiamento federal (CAPES) e pelo destaque da Universidade.
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Conclusão Os dois cartazes representam momentos distintos da história da intervenção da universidade no campo da educação especial: um momento inicial e o momento atual (ano de 2014). Suas marcas podem ser agregadas em duas formações discursivas distintas: uma em que o discurso da dependência, do cuidado se evidencia, ao mesmo tempo em que a expectativa de interlocutores está no professorado da rede pública e em alunos de graduação; outra em que o discurso dos direitos da pessoa em condição de deficiência ganha relevo, associado ao discurso da diversidade. Nesse caso, os interlocutores se ampliam: o mundo acadêmico mais amplo e as esferas governamentais também são incluídos na expectativa de recepção do discurso. A primeira enfoca o sujeito e seus educadores e cuidadores, a segunda, o movimento social, a articulação entre os grupos excluídos e a obrigação do Estado em fornecer educação de qualidade. Os resultados evidenciados pela análise do corpusconsideraram a capacidade que tem a produção de imagens de abrigar discursos em uma relação de complementaridade e contradição. A construção das marcas discursivas em cada momento do contexto histórico alusivo ao evento escapa ao controle do produtor: nelas emerge o momento histórico em que um grupo de educadores assume as discussões sobre educação e inclusão educacional no âmbito acadêmico e as ressignificações que vão sendo construídas ao longo dos anos, das interações, dos estudos e da ampliação da influência do grupo. Os efeitos de sentidos ideológicos, constituídos por interpelação nas formações discursivas, são correspondentes à historicidade do locutor e dos sujeitos participantes, proporcionando, a ambos, condições para que ressignifiquem seu dizer e pensar sobre educação especial e inclusão.
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Referências
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OS SABERES DA GENTE DO MAR: o imaginário e as experiências de vida dos pescadores da Vila do Treme, Bragança (PA)
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Resumo: A construção de saberes deve implicar em uma perspectiva inclusiva de vozes e discursos narrativos, particularmente em uma realidade de povos e comunidades tradicionais. Considerando-se esta visão, neste artigo apresento as análises das narrativas orais dos pescadores, constituídas a partir de depoimentos das experiências de vida e narrativas míticas, coletadas na comunidade durante a realização da pesquisa de campo com técnicas e procedimentos metodológicos da história oral com instrumentos do método etnográfico, tendo como objetivo central compreender a formação de identidades dos pescadores da vila do Treme-Bragança (PA), por meio do seu ponto de vista, ou melhor, priorizando os saberes tradicionais repassados de geração a geração no contexto social desta prática milenar, a pesca artesanal. As reflexões apresentadas fazem parte do terceiro capítulo da dissertação de mestrado do curso de pós-graduação Linguagens e Saberes na Amazônia da Universidade Federal do Pará, Campus de Bragança. O aporte teórico está fundamentado nos estudos sobre a memória no percurso das reminiscências dos pescadores (Halbwachs, 2004; Le Goff, 1996; Ricoeur, 2007; Sarlo, 2007). Abordarei sobre a importância das fontes orais na geração de dados por informarem mais do que simples acontecimentos, não somente fatos, mas o significado destes para quem os vivenciou e os reconta (Portelli, 2001; Albert, 2005; Thompson, 2002). No que concerne as narrativas míticas, pressupõe-se que o narrado e o vivido pelos pescadores, na medida que se constituem de elementos que representam o comportamento desses sujeitos, são a expressão do seu próprio modo de vida e sua
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Roseli da Silva Cardoso José Guilherme dos Santos Fernandes
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representação da realidade (Greimas, 2001; Eliade, 1976; Barthes, 2011; Genette, 1985). Palavras-chave: Narrativa. História oral. Memória. Identidade. Pescadores artesanais.
Introdução Este estudo parte da pressuposição de que memória e oralidade fundem-se nas inúmeras narrativas presentes nos relacionamentos sociais que constituem a diversidade cultural de nossa sociedade. Nesse sentido, entende-se que nelas estão presentes as experiências de vida acumuladas e os vários discursos materializados que guardam em si uma variedade de significados. Justamente porque nos deparamos com o narrado e o vivido dos pescadores, na medida que se constituem de elementos que representam o comportamento desses sujeitos como expressão do seu próprio modo de vida e sua representação da realidade. Pressupõe-se, ainda, que a narrativa sob diferentes formas está em todos os lugares e em todos os tempos, logo faz parte da história da humanidade, assertiva confirmada nas palavras de Barthes:
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A infinidade de narrativas existentes na história da humanidade resultou em uma vasta bibliografia narratológica com diferentes enfoques conceituais, a partir de vários pontos de vista (histórico, psicológico, sociológico, etnológico, estético, etc.), situação que configura o dilema conceitual da narrativa. Desse modo, teremos como parâmetro de análise das narrativas dos pescadores as concepções de Gerard Genette (1985, p. 27) uma vez que a análise do discurso narrativo será, pois, para nós, “essencialmente o estudo das relações entre narrativa e história, entre narrativa e narração, e (enquanto se
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Inúmeras são as narrativas do mundo. Primeiramente, há uma variedade prodigiosa de gêneros, eles próprios distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse apropriada para que o homem lhe confiasse suas histórias: ela pode ser suportada pela língua articulada, oral ou escrita; pela imagem fixa e imóvel, pelo gesto e pela mistura ordenada de todas essas substâncias; ela está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, etc. Ademais sob essas formas quase infinitas, ela está presente em todos os tempos, todos os lugares, em todas as sociedades, pode-se dizer que ela começa mesmo com a história da humanidade (Barthes, 2011, p. 19).
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De acordo com Genette, narrador autodiegético é aquele em que relata suas próprias experiências como personagem central da história. O narrador heterodiegético relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou, como personagem o univesodiegético em questão. Por fim, o narrador homodiegético veicula informações advindas de sua própria experiência diegética, mas não participou da história como protagonista (Reis; Lopes, 1987).
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inscrevem no discurso da narrativa) entre história e narração.” O autor define três categorias essenciais de análise apontadas por Todorov: a do tempo, onde se exprimem a relação entre o tempo, a história e o discurso; a do aspecto ou a maneira pela qual a história é percebida pelo narrador; a do modo, isto é, o tipo de discurso utilizado pelo narrador1. Outro aspecto significativo para este estudo é indicado por Benjamin (1989, p. 205), acerca da narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no mar e na cidade-, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. Benjamin (1987, p.198) fala ainda que “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”. O autor refere-se naquele momento ao agricultor sedentário, por manter as tradições e aos mercadores dos mares, por trazer a novidade. Neste caso, podemos inferir tais tarefas realizadas, atualmente, pelas comunidades tradicionais, em particular os pescadores. Em outros termos, significa dizer que eles mantêm entre si a tradição oral das narrativas repassadas de geração a geração e ao mesmo tempo trazem as novidades a partir do contato com outras comunidades, então, podemos dizer que os pescadores da vila do Treme representam os sedentários e os mercadores dos mares da atualidade.Neste aspecto, os pescadores manifestam resistência à morte da narrativa referida por Benjamin, na medida que seus relacionamentos sociais são marcados pela oralidade por meio da experiência de vida narrada em seu grupo social. Eles resistem as transformações sociais porque mantém a tradição, sabem dá e receber conselhos por meio de suas narrativas.
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Análise das narrativas dos pescadores: a representação contextual dos saberes da gente do mar
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Apropriação tradicional do mar, conforme Diegues é “o conhecimento aprofundado da natureza e dos seus ciclos que se refletem na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido de geração em geração por via oral. De modo que estabelece uma relação de “dependência ou até de simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais renováveis a partir dos quais se constrói um modo de vida” (Diegues, 2001, p. 87). De acordo com o antropólogo Godelier (1984) citado por Diegues (op. cit., p.7) no interior das relações materiais com a natureza existe um aspecto não-material que unifica as três funções do conhecimento: representar, organizar e legitimar as relações sociais com a natureza. Para se entender o processo material de produção é essencial se levar em conta os mitos e símbolos usados pelos pescadores.
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Sabe-se que as comunidades de pescadores apresentam aspectos simbólicos de apropriação tradicional do mar 2 (Diegues, 1998), isso implica dizer que as suas narrativas são compostas não somente de relações com o meio ambiente, com o meio social, mas também em conexões simbólicas com o mundo não-material3. Neste sentido, teremos ainda, as concepções de A. J. Greimas (2001, p.78) para a interpretação da narrativa mítica dos pescadores (NP), teoricamente, o autor “pressupõe o conhecimento da estrutura do mito e a dos princípios organizadores do universo mitológico do qual é a manifestação realizada nas condições históricas dadas”. A partir da variedade de narrativas coletadas que compõem o corpus desta pesquisa, decidi, primeiramente separar em dois grupos as narrativas dos pescadores da vila do Treme. Dessa maneira, classifiquei-as em narrativas locais e narrativas regionais, a fim de elaborarmos uma cartografia das narrativas orais dos pescadores. Entende-se por narrativas locais, aquelas que ocorrem próximas da costa do entorno da vila do Treme, Ajuruteua e Augusto Correa. Em se tratando das narrativas regionais, compreendem-se aquelas que pressupõem um deslocamento para além da costa contínua da vila, ultrapassam os limites entre o Pará e o Maranhão. Nesta perspectiva, importa enfatizar que a escolha dos pescadores da vila do Treme se deu também, justamente pela localização geográfica da vila. Conforme mapa abaixo, percebemos a localização central da vila, possibilitando o deslocamento dos pescadores para explorar os recursos naturais nas proximidades dos rios e mares vizinhos. Dessa maneira, eles transitam nos espaços
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marítimos locais que compõem o estuário marítimo dos municípios de Augusto Correia (Pirimirim, Croa comprida, Ilhas das pedras, Ponta do Marambaia, dentre outros); Bragança (Ajuruteua, Caratateua, boca da salina, etc.); Quatipuru (Maiaú); Em se tratando do espaço regional, consideramos o tempo gasto e a distância percorrida de barco pelo pescador para explorar os recursos naturais nas áreas mais longínquas, como Viseu (rio Piriá) e as praias do estado do Maranhão (Praia dos Lençóis, Sababa, Estandarte, Prainha do Sabino cruz, Carará praia, Turiaçu, etc.): Mapa do deslocamento dos pescadores da Vila do Treme LEGENDA A= deslocamento Pará – Maranhão B= Treme e localidades mais próximas C= Viseu e Maranhão PARÁ 1- Maiau 2- Ajuruteua 3- Boca da salina 4- Caratateua 5- Ilhas das pedras 6- Croa comprida 7- Ponta da maranbaia 8- Pirimirim 91011121314-
MARANHÃO Sababa Estandarte Praia Sabino cruz Praia dos lençóis Turiaçu Santa Helena
Fonte:Vando Gomes. Engenheiro de pesca, Universidade Federal do ParáUFPA. Laboratório de Geologia Costeira- LAGECO. Instituto de Estudos costeiros- IECOS.
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A classificação das narrativas dos pescadores em conto maravilhoso ou conto fantástico está fundamentada na definição de Todorov (2010, p.58), segundo ele, o conto maravilhoso “são as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de permanecer sem explicação, não-racionalizado, sugere-nos realmente a existência do sobrenatural”. Para as narrativas fantásticas ou fantástico-estranho, o autor supracitado afirma que estas narrativas relatam “(...) acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional”. Em outras
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As narrativas locais e regionais dos pescadores da Vila do Treme: do conto maravilhoso ao conto fantástico
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palavras diz que narram “acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos (...)” (Todorov, opus cit., p.53). É importante destacar que as narrativas locais, doravante NL, estão subdivididas em dois grupos: as narrativas do mito Ataíde - NAt (conto maravilhoso - CM), e as narrativas de história de vida ou narrativa mitomórfica4 - NM (conto fantástico - CF). Ao passo que as narrativas regionais, doravante NR, compreendem as narrativas advindas do sebastianismo do estado do Maranhão (NS) e narrativas de cunho religioso afrodescendente (NAf). Tais narrativas regionais também foram subdivididas em conto maravilhoso (narrativa de cunho religioso afrodescendente) e narrativas fantásticas (narrativas sebastianistas). Assim, sistematicamente temos o seguinte esquema classificatório: NP
NL
NR
CM
CF
CM
CF
Nat
NM
Naf
NS
Termo utilizado, primeiramente na dissertação de mestrado de Fernandes (1998): Largueza e lassidão: a mitopoética do espaço das águas. Conforme definição do autor “mitomórficos, ou seja, personagens da narrativa que, mesmo originários do mundo dos homens, do Cultural, assumem funções de antagonistas aos personagens antropomórficos, seja enfrentando-os diretamente, desafiando-os em tarefas, ou impondo interditos às atitudes e aos valores dos personagens antropomórficos” (Fernandes, 1998. p. 100).
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As narrativas locais do mito Ataíde, conforme esquema acima, são consideradas como conto maravilhoso, visto que os pescadores acreditam na existência de um ser sobrenatural. Diferentemente, as narrativas locais mitomórficas são classificadas como conto fantástico, justamente porque os pescadores apresentam uma explicação lógica acerca dos fenômenos da metamorfose, acreditam que há alguém na comunidade que se transforma em bicho com a finalidade de assustar os moradores da vila. Quanto as narrativas regionais, as narrativas de
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cunho afrodescendentes são classificadas como conto maravilhoso, haja vista acreditarem nos poderes sobrenaturais dos pajés manifestados nos rituais religiosos. Ao passo que as narrativas regionais sebastianistas apresentam acontecimentos extraordinários e insólitos, porém, no final tudo é explicado a partir da crença do retorno do Rei D. Sebastião, herança dos portugueses. A seguir traremos a análise das narrativas locais e regionais. Primeiramente, iniciaremos com a análise das narrativas locais. Vejamos as condições históricas das narrativas míticas no espaço do mangue com apresentação e análise das narrativas do mito Ataíde que compõem o quadro das narrativas locais (NL), classificadas como conto maravilhoso (CM). A narrativa mítica no espaço “suturno”5 do mangal Para compreendermos a produção material dos pescadores necessitamos entrar no universo não-material, considerando o discurso interno narrado em sua essência simbólica e mitológica que marca suas relações com o meio social e natural. Assim sendo, na análise do discurso narrativo dos pescadores priorizaremos o saber simbólico e mítico para compreendermos sua representação social, ou seja, partiremos de suas experiências particulares na constituição de reflexões a partir do ponto de vista deles. Nesta perspectiva, apresento a primeira narrativa mítica do pescadorda vila do Treme:
O termo “suturno” foi atribuído pelos pescadores, segundo eles o mangal apresenta características assombrosas e sombrias por ser um local inóspito da floresta nas margens dos rios. 6 “Reszinho” faz parte do vocabulário particular dos pescadores, termo que designa algo que está muito próximo do tijuco, equivalente à locução adverbial de lugar muito próximo ou muito perto.
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Eu me lembro quando eu trabalhava no mangal, no mangal aí os pessoal lá da canoa tinha uns colega lá. E pô vumbora pro mangal? Então vumbora! Vai logo no mangal, aí chegou lá no mangal o rapaz tava lá no mangal assim, ele foi metê a mão no buraco do caranguejo, sabe? Pra tirar o caranguejo, aí agarrou meteu a mão assim no buraco e olhou pra frente assim (expressão misteriosa) Num tem um tal de Ataíde no mangal, homem morenão, assim negão, ele tava com a mão, o mangueiro assim, ele tava por cima do mangueiro, ele tava com o braço reszinho6 aqui no tijuco, dormindo, dormindo! Ele só olhou assim, viu aquele homem por cima do mangueiro e
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sispou7 pra trás (risos) Nós tava na canoa assim se arrumando pra ir pro mangal também junto com ele (...) E rapaziada vumbora8 caí fora – o que é rapá? Tem um homem ali medonho! Tem um homem medonho ali! (...) (João Furtado de Miranda9, em 06/03/2014)
Ao adentrar no universo discursivo interno do pescador, percebemos claramente elementos que marcam a forte presença da memória em “Eu me lembro quando eu trabalhava no mangal”.Trecho inicial de uma sucessão de construções subjetivas, assentadas em marcas coletivas, apesar de entendermos o ato de lembrar como atividade predominantemente individual, pois não lembramos das coisas em grupo, uma vez que a memória “(...) só se materializa nas reminiscências e nos discursos individuais” (Portelli, 1998, p. 127). Isso implica dizer que, lembramos de fatos vividos com outros indivíduos, no momento de lembrar apresento um ponto de vista particular, mesmo que minhas lembranças individuais estejam apoiadas na memória coletiva (Hawbwachs, 1945). Existem referencias às pessoas, ao espaço, pois o mangal faz parte do contexto social dos pescadores, a prática da coleta ou como eles chamam “tiração” é a mesma, isto é, existem todos os elementos que corroboram uma veridição. Assim como o mito, não sabemos a causa, o que motivou o pescador sair correndo assustado do mangal, porém, tem uma consequência: o respeito pela interdição. Do exposto acima, constatamos a importância de estudar não o resultado do fenômeno narrativo, mas, e sobretudo, o processo em que se efetiva a complexidade contextual do pescador. Então, não podemos achar que se trata de simples lembrança, na verdade, todo ato de lembrar significa reordenamento ideológico e conceitual do passado a partir de bens simbólicos na reconstituição da textura da vida que se sustenta na dimensão subjetiva. Em outras palavras, a narrativa do pescador traz a história oral e o testemunho como elementos restituidores da confiança da primeira pessoa que narra a sua vida (privada, pública, afetiva, política) para conservar a lembrança ou para reparar uma identidade machucada. (Sarlo, 2007). É válido ressaltar
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“Sispou” de acordo com o contexto, significa correu depressa assustado do local, onde estava o mito Ataíde. 8 “Vumbora” significa vamos embora, vamos sair daqui depressa. 9 O pescador João Furtado de Miranda, católico de 53 anos, casado com Suely Ataíde Miranda, pai de 05 filhos. Trabalhou na pesca em várias modalidades, de 08 a 50 anos de idade. Atualmente, vive de uma aposentadoria garantida pela Colônia dos Pescadores.
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que o tempo da narrativa faz parte da fase da juventude do pescador, o qual faz um percurso longínquo em comparação ao tempo da narração, um pescador aposentado que adentra em suas reminiscências e narra suas aventuras no espaço “suturno” do mangal, uma memória machucada diante uma profissão exercida sem nenhuma garantia de seus direitos trabalhistas: “Minha vida toda foi trabalhando duro na pesca, desde 08 anos, o que eu ganhei foi uma enfermidade, não possoir pra maré mais”. Dos 42 anos de vida dedicados à pesca, restou-lhe uma enfermidade e um salário mínimo que mal dá para o sustento de sua família. É importante considerarmos nesse processo de construção da narrativa o espaço em que os fatos ocorreram: o mangal. Local da floresta que estabelece não somente uma relação com o mundo exterior ou contexto histórico e social, mas representa construções primordialmente simbólicas, porque representa a experiência de vida concreta do pescador numa relação de simbiose entre o homem e a natureza. Espaço da matéria prima da imagem de onde emana o sentido misterioso atribuído pelo pescador, o sentido de floresta “suturna”, espaço inóspito, afastado da população, repleta de mistérios. Visão mítica construída por meio da categoria sintática 10, composta por três orações independentes coordenadas entre si: “Tem um homem ali medonho! Tem um homem medonho ali! Rapá, ele desce por cima do mangueiro!”São elementos extremamente significativos que incorporam uma imagem fora da realidade, situação estranha, anormal e assombrosa na constituição do espaço aterrorizante do mangal com presença de seres míticos e encantados com poderes sobrenaturais. Apesar de serem considerados como seres mitomórficos em outras localidades, do ponto de vista dos pescadores da vila do Treme, o Ataíde é um ser sobrenatural, pertencente ao mundo dos espíritos11. A imagem descrita pelo narrador leva-nos a pressupor que existe uma certa integração entre o ser mítico e a natureza ao afirmar que o Ataíde “tava com a mão, o mangueiro assim, ele tava por cima do mangueiro, ele tava com o braço reszinho12 aqui no tijuco, dormindo, dormindo!” Neste trecho, Ataíde e mangueiro estão intrinsicamente
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Trata-se de orações coordenadas por justaposição, ou seja, são colocadas lado a lado, sem qualquer conectivo, chamadas de assindéticas. 11 Nos estudos de Fernandes (1998, p. 138) “segundo o narrador Manoel Silva, o Ataíde (ou Sarambui) ele é uma pessoa que se transforma também (...), ele é invisível, (...) se transforma em várias pessoas.”. 12 “Reszinho” faz parte do vocabulário particular dos pescadores, termo que designa algo que está muito próximo do tijuco, equivalente à locução adverbial de lugar muito próximo ou muito perto.
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constituídos como se fossem uma só coisa, ou seja, o ambiente natural da floresta e o aspecto das árvores do mangal, o barulho do mar e dos galhos dos mangueiros que se desprendem sozinhos, contribuíram para a construção de um cenário perfeito para aparição o ser mítico, pois não podemos esquecer que o mangal suscita receio, temor e medo, segundo os próprios pescadores. Portanto, pressupõe-se que o objetivo dessa narrativa mítica é de assegurar a organização social do trabalho coletivo e inibir a ambição dos companheiros. A esse respeito, apesar das mudanças no contexto econômico do nordeste paraense, Maneschy (1993, p. 92) observa que a organização social da produção pesqueira artesanal se realiza de modo coletivo e de ajuda mútua, com membros da mesma família ou vizinhos, moradores da vila de Ajuruteua: “tal prática pode chegar ao ponto de o proprietário ceder uma de suas partes a outro pescador, quando a captura for muito pequena, o que se diferencia bastante de comportamento empresarial”. Tal condição de trabalho é frequente na vila do Treme. Ao longo de toda a narrativa o nome do rapaz não é revelado, mesmo sendo o agente, o actante da narrativa, ou seja, o participante ativo na sequência dos acontecimentos, aquele que realiza a ação (Greimas, 1990). O curioso é que o actante que vê o ser mítico, que passa pela experiência de terror, na maioria das narrativas é anônimo, o narrador usa termos generalizantes como o rapaz, o pessoal, os mais velhos, narra o fato sempre a partir de um ponto de vista externo, sem identidade. Deste modo, temos um narradorhomodiegético, uma vez que participa da história não como protagonista, mas como função que pode conferir-lhe uma simples testemunha imparcial a uma personagem secundária expressamente solidária com a central, numa posição de subalternidade (Genette, 1985).
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De acordo com Silva Júnior (2014, p.16), tais narrativas são recorrentes na região bragantina, neste caso em Taperaçu Campo. Ele afirma que
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No quadro das narrativas locais narradas pelos pescadores temos também, as narrativas mitomórficas da Matintaperera, do bode, do porco, etc. Por mitomórficos entende-se as personagens humanas da narrativa que, culturalmente se transformam em bicho. Metamorfoseados na narrativa tentam assustar os moradores para se apoderar da floresta, do mar, do rio, ou seja, do espaço onde os seres humanos ou seres antropomórficos transitam e constroem seus relacionamentos sociais13. Assim, uma vez ameaçados pelos seres
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As narrativas locais mitomórficas dos pescadores sedentários
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míticos, os humanos tornam-se seus maiores opositores, para os quais o conflito entre seres mitomórficos (personagem narrativo originário do mundo dos homens, culturalmente, assumem a função de combater os seres antropomórficos) e integram o viés sequencial do sintagma narrativo. Dessa maneira, a função dos seres míticos é a de afastar os seres humanos do objeto de desejo (recurso natural). Conforme narrativa do pescador abaixo: Eu vi um bicho das asas medonha, como um gavião que passa na televisão. Pra mim aquilo era uma Matintaperera. Aquele bicho era bicho de satanás aí eu comecei a desconjurar, foi embora. De vez em quando a minha mãe dizia: Antônio, Antônio, vem uma matinta pereira daqui, parece que ela assobiava fiiiiiiiiii. Nós morava no centro, tinha gente que dizia que quando ela assobiava era só pegar uma faca e enfiar em cima de uma mesa que no outro dia de manhã a pessoa que era a matintaperera vinha. Quando não oferecia um pedaço de tabaco. De manhã cedinho ela aparecia. (Pescador Antônio Rodrigues14, em 23/02/2015).
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“em algumas visitas, logo que esgotavam as narrativas damatintaperera, surgiam outros casos de aparições e encontros inesperados. Assim identifiquei as narrativas míticas que transitam livremente na comunidade: a narrativa do bode, a do gritador, a do fogo do campo, a da mãe d’água, a dacurupira, a do Ataíde, a do labisonho e a da matintaperera”. 14 Pescador Antônio Rodrigues de Sousa, 73 anos, católico casado com Joana Mescouto de Sousa, analfabeto. Atualmente está aposentado, mas trabalhou na pesca desde 08 anos de idade em várias modalidades, juntamente com o pai e os irmãos. De acordo com seus relatos, foi o pescador que mais matou peixe na vila do Treme.
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Nesta narrativa temos um narrador autodiegético que participa da ação como testemunha ocular do mito matintaperera, deste modo, configura uma relação de disputa e conflitos entre dois seres: antropomórfico (o pescador protagonista) e mitomórfico (Matintaperera). Assim, os actantes da narrativa estão dispostos a dominar o espaço, objeto de desejo (rio, mata, vilarejo, etc.), neste caso, o pescador enfrentou o ser mitomórfico, que desconjurado sai em fuga. Podemos dizer que há um duplo percurso narrativo (PN), uma vez que, o domínio do espaço se alterna entre os actantes da narrativa, em alguns episódios os seres antropomórficos são os fugitivos. Nesse sentido, pressupõe-se que há uma relação de reciprocidade afetiva motivada pelo medo, isso ocorre porque os papeis de protagonista e de
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antagonista são alternados entre os seres mitomórfico e antropomórfico, ou seja, o domínio do objeto de desejo é garantido pelo ser que consegue se impor diante do outro. Ao considerarmos que o ser mitomórfico seja o protagonista da narrativa partimos da premissa de que o espaço natural, objeto de desejo está sob a proteção daquele que o domina, ou melhor, inferimos que o local está sendo monopolizado pelo ser antropomórfico (antagonista) alguém que quer explorar os recursos naturais, causando danos a natureza e a comunidade, trata-se da possibilidade de reestabelecer equilíbrio social, econômico e ambiental do povoado. Porém, na inversão dos papeis, como antagonista da narrativa, o ser mitomórfico aparece apenas para desestabilizar o espaço, assustando aqueles que queiram explorar os recursos naturais, pois antes de se metamorfosear em bicho, participa como humano da vida social do povoado, sabe a rotina de todos, o que facilita sua ação de assustar a vítima. Esta atitude pode ser compreendida como um mecanismo de dominação para satisfazer o desejo de dominar o espaço diante dos membros da comunidade. Se sujeito em forma humana não tem voz, não tem poder e não é respeitado, na forma de bicho, de assombração consegue suprir a necessidade de se sentir dono da situação. Cronologicamente, o enredo se desenrola na calada da noite, de um lado temos a Matintaperera que assombra a população com sua aparição em forma de bicho e assobio pavoroso; do outro temos o pescador, ou sujeito antropomórfico de grande coragem que desafia o ser mítico para garantir o domínio do espaço natural. Domínio que só acontece quando se desmascara o sujeito que se metamorfoseia, este se sente envergonhado e foge do povoado. Do contrário, o domínio do espaço passa para o ser mitomórfico que por muito tempo assusta os moradores do povoado, garantindo seu poder. É interessante destacar que as pessoas que se transformam em bicho só serão apanhadas se feridas durante o ataque, pois o ferimento seria a prova mais plausível da revelação do ser mitomórfico. Além disso, segundo o pescador existem também duas maneiras: “só pegar uma faca e enfiar em cima de uma mesa que no outro dia de manhã a pessoa que era a Matintaperera vinha. Quando não, oferecia um pedaço de tabaco. De manhã cedinho ela aparecia”. Na verdade, qualquer pessoa que chegasse primeiro na casa de quem usou os dois procedimentos acima, seria a Matintaperera, instaurando um clima de desconfiança entre os moradores suspeitos. Por essa razão, a prova mais eficaz seria ferir o ser mitomórfico violentamente, para não deixar dúvidas da identidade do homem que vira bicho. Na visão do pescador esse tipo de sujeito é amaldiçoado por Deus e pelos homens, portanto,
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pertence ao mundo das trevas, do inferno, quando afirma: Aquele bicho era bicho de satanás aí eu comecei a desconjurar, foi embora. As narrativas regionais afrodescendentes: mito e ritual O universo religioso dos pescadores ocorre dentro de um certo sincretismo, entre mitos e rituais, ora está diante de uma forte fé cristã, na crença de um único Deus criador, ora afirma a existência dos seres míticos e lugares encantados. Este fato pode ser explicado a partir do intenso fluxo dos pescadores na região costeira do estado do Maranhão, onde há umagrande concentração de credos oriundos dos povos afrodescendentes, com a realizaçãoconstante de rituais nas minas15. Conforme narrativa do pescador a seguir: Lá eu escutava muito os mais velhos, o pessoal contar né, sobre a praia do Lençol que era encantada, até porque essa mulher minha ela é de lá, dessa região de lá. E aí eu tinha um barquinho eu pescava lá e o pessoal me contavam muito essas histórias, dentro da praia do Lençol. Eu estranhava quando me convidava:- vumbora ali numa mina. Numa mina? Uma mina rapaz é um terreiro. Aí esse negão começou a brincar e tal (risos). Daqui a pouco, era gay, aí eu tava lá escorado numa mesa, eu e o primo, ele achava graça demais. Aí daqui a pouco, o cara disse assim, ele o chefe: olha aqui na minha brincadeira ninguém faz palhaçada até porque tem muitos pai de família, aqui tem que respeitar (...). Ela tirou a roupa todinha ficou seminua, aí ela subiu de costa na parede pra onde eles tavam, e lá ela subiu e lá ela se sentou mesmo, se abriu assim e aí foi buscar uma pedra, uma pedra assim em cruz, aí ela se assentou e foi dalhe nessa pedra (Pescador João Miranda Mescouto16, em 09/09/2014).
Nesta narrativa temos os episódios que acontecem em torno da magia e da feitiçaria que podem também ser perfeitamente analisados a partir dos estudos morfológicos dos contos maravilhosos de Vladimir
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A Mina é uma religião trazida pelos escravos vindo de Daomé (República popular de Benim) para os estados do Maranhão e do Pará. O termo Mina faz referência ao maior empório de escravos sob o domínio português, mais detalhes em Vergolino e Silva, 2003. 16 PescadorJoão MirandaMescouto, 59 anos, conhecido por “Jota ou Sete Lapadas”. Evangélico, casado com Leonilda Ribeiro Mescouto com quem teve 06 filhos. Analfabeto, trabalha na pesca em várias modalidades, desde os 10 anos de idade.
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De acordo com Vladimir Propp (2001, p.17) “por função compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação”. Diz ainda, “os elementos constantes, permanentes, dos contos maravilhosos são as funções dos personagens, independente da maneira pela qual eles as executam”.
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Propp17. Ao considerarmos as funções das personagens, temos o afastamento do pescador de sua família para trabalhar na atividade da pesca em outras regiões, onde normalmente se depara com proibições que geralmente são transgredidas por uma vítima que sofre as consequências. Neste caso temos duas vítimas. A vítima do primeiro episódio é uma moça que namorava com um rapaz no terreiro, atitude proibida pelo chefe Júlio mineiro, o qual estaria com ciúmes do rapaz, conforme relatos do narrador: “...porque ela tava namorando lá pra trás e lá ele não aceitava isso, né, porque ele era gay né, não gostava dessas coisas lá não, até porque a casa dele era cheia de macho (...) comentário do pessoal que eu não era de lá”. Assim, uma vez cometida a transgressão, a vítima sofre as consequências. No desenrolar dos acontecimentos a vítima sofreu uma punição, uma espécie de magia ou feitiço que consistia em bater numa grande pedra seminua, na frente de todos os convidados até o chefe do terreiro decidi a hora de acabar com a ridicularização da vítima. Então, conclui-se que o grande motivo da feitiçaria é o ciúme de Júlio mineiro pelo rapaz que namorava com a tal moça. Simbolicamente, o rapaz seria o tesouro disputado entre as personagens nesta intriga. Os poderes mágicos estão concentrados nas mãos do líder religioso, personagem muito respeitado e temido entre os membros de seu grupo social, o mesmo, apesar de ser motivo de chacotas por ser homossexual, manifestadas nas risadas do narrador e seu primo. Atitude justificada, segundo relatos do pescador narrador ao afirmar que naquele tempo não existia Lei para combater atitudes preconceituosas, por isso se sentiram à vontade em ridicularizar o líder religioso Júlio Mineiro. O curioso desse fato reside na não punição dos dois indivíduos que aparentemente ofenderam muito mais o chefe religioso do que a moça que namorava no terreiro, isso talvez se justifique por serem dois homens, simbolicamente representam objeto de desejo e preferência sexual do líder religioso, logo, foram poupados da punição. A partir da leitura da narrativa do pescador, observamos o fenômeno social do sincretismo religioso, implicitamente mencionado no contexto sociocultural dos pescadores, isso se justifica, inicialmente na vila do Treme, pelo forte fluxo dos mesmos nas várias localidades férteis da atividade pesqueira no estado do Maranhão, local de realização dos rituais religiosos afrodescendentes, nas Minas, por essa
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razão essa narrativa é classificada como narrativa regional. Conforme o seguinte trecho: “Lá eu escutava muito os mais velhos, o pessoal contar né, sobre a praia do Lençol que era encantada, até porque essa mulher minha ela é de lá, dessa região”. A metamorfose nas narrativas míticas sebastianistas As narrativas dos pescadores, ou melhor, os saberes da gente do mar, revelam o universo mítico da transfiguração e metamorfose dos elementos da natureza num rico quadro de imagens que compõem os significados da representação social e comportamental dos sujeitos da pesca, compostos por discursos variados advindos de fatores históricos, geográficos, sociais e religiosos. Conforme narrativa a seguir:
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É indiscutível o contato entre os pescadores da vila do Treme com os pescadores e povoados do estado do Maranhão, agora o rio Japariquara, em Santa Helena. Local revelado pelo pescador como lugar repleto de feiticeiros, com predominância de seres encantados referentes à lenda do Rei Sebastião. O narrador conta que “esse lugar você bota a rede vem uma galinha na rede numa pedra, a pedra vem virada numa galinha, pega puxa outra vem virada num coelho, outra pedra puxa virada noutra coisa”. A sequência pode ser percebida como surreal composta por seres aquáticos metamorfoseados em pedra numa imagem enigmática dos segredos do mar ligados à crença dos lugares encantados que constituem o sebastianismo maranhense, claramente explícito nos estudos de Câmara Cascudo:
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Tem um rio aqui no Maranhão, eu nunca fui lá, pertinho de onde eu ia, o nome lá é Japariquara, na beira do rio de Santa Helena. Aí esse lugar você bota a rede vem uma galinha na rede numa pedra, a pedra vem virada numa galinha, pega puxa outra vem virada num coelho, outra pedra puxa virada noutra coisa. Existe, eu já ouvi muita conversa, eu nunca vi, mas já vi muita pessoa dizer que nesse rio, a gente se não pedir bem licença ele bota a rede no meio do cardume do peixe e não vem nenhum e se ele pede licença, chega a rede enche de peixe. Aí, é nesse mesmo rio do lado da coisa, eu vou lhe contar uma história que o cara me contou – ele me disse Antônio aí no rio do Turiaçu que sobe pra Santa Helena, justamente Japariquara- é braço – porque diz que no Maranhão tem muito feiticeiro, tem muito essas coisa, no Lençol essas praia pra lá (Pescador Antônio Rodrigues, em 18/09/2014).
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Na praia dos Lençóis, em Cururupu, Maranhão, nas noites de sexta –feira, não havendo luar, aparece um grande touro com uma estrela resplandecente na testa. Quem estiver na praia será tomado de pânico irresistível. (...) Quem tiver a coragem de ferir o touro na estrela radiante, vê-lo-á desencantar-se e aparecer El-Rei D. Sebastião. A cidade de São Luís do Maranhão submergir-se-á totalmente, e diante da praia dos Lençóis emergirá a Cidade Encantada, onde o rei espera sua libertação. Da praia dos Lençóis é proibido pelos pescadores levar-se qualquer recordação local que tenha sido colhido na praia ou n’água do mar, conchas, estrelas, búzios, algas secas, etc. Tudo pertence a El-Rei D. Sebastião e é sagrada sua posse (Cascudo, 1972, 1972, p. 875).
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A relevância deste estudo se configura pela possibilidade de adentrar no universo cultural dos pecadores e juntamente com eles proporcionar o enriquecimento dos diferentes saberes que constituem a complexidade da sociedade, em particular da vila do Treme, que compõe o vasto espaço amazônico. Constitui ainda, a confirmação da importante contribuição para ampliação dos estudos acerca da narrativa, compreendida como ferramenta indispensável para ampliação do conhecimento da região. Nesse sentido, as narrativas locais e regionais dos pescadores contemplam uma infinidade de saberes constituídos pela necessidade de expressar a história de desejos, privações, e algumas vezes, de realizações do caboclo amazônico. A análise das narrativas dos pescadores permitiu contemplarmos em profundidade as teorias disponíveis acerca dos estudos narratológicos, proporcionou um diálogo entre as teorias que fundamentaram nossas reflexões e a realidade de sujeitos reais inseridos no contexto social da pesca, além disso, mostrou o cenário sociocultural, religioso e econômico a partir dos próprios pescadores, na dinâmica social de sua trajetória de vida, logo estamos diante da valorização da experiência, da história oral e diversidade cultural, elementos indispensáveis à caracterização etnográfica deste estudo. A convivência na comunidade permitiu também, uma abordagem mais precisa acerca da problemática social enfrentada pelos pescadores artesanais, atribuindo-lhes valor intrínseco dos processos internos da prática de sua existência social e material, uma vez que, a priori a voz do próprio pescador testemunhou suas inquietações, seus desejos e suas reivindicações por meio das narrativas orais locais e regionais.
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Considerações finais
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Deste modo, a apresentação da comunidade é dada a partir do ponto de vista dos próprios pescadores, proposta que contribuiu para uma análise mais aprofundada e contextualizada das práticas sociais, históricas, econômicas e culturais da referida comunidade. Nesse aspecto, constata-se a necessidade de uma política social e ambiental mais presente e atuante que possibilite estrutura básica,a fim de viabilizar os recursos pesqueiros com base no desenvolvimento sustentável e garanta efetivamente a promoção social dos pescadores.
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BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. DIEGUES, Antônio Carlos S. A Sócio-antropologia das comunidades de pescadores marítimos no Brasil. Etnográfica, vol. III (2), 1999, pg. 361375. ______. A Construção Histórica e Simbólica da Maritimidade. In: ILHAS E MARES: simbolismo e imaginário. São Paulo: Hucitec, 1998. FERNANDES, José Guilherme dos Santos. Largueza e lassidão: a mitopoética do espaço das águas. Belém: Programa de Pós-Graduação em Letras/UFPA, 1998. p. 100 (Dissertação de Mestrado). GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa, Vega [s d]. GREIMAS, A. J. Elementos para uma teoria da interpretação da narrativa mítica. In: BARTHES, Roland [et al.]. Análise estrutural da narrativa. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 1ª ed. São Paulo: Centauro, 2004. MANESCHY, Maria Cristina. Ajuruteua: uma comunidade pesqueira ameaçada. Belém: UFPA. CFCH. 1993. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revistas de Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 3, p. 1-9, 1989. PORTELLI, Alessandro. História Oral como Gênero. Projeto História. São Paulo, 2001. Disponibilidade em: <revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/download/10728/7960>. Acesso em: 10 mar. 2014. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática,1988. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva.2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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Referências
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TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
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Myrcéia Carolyne Guimarães da Costa O traslado das narrativas orais à escrita: a tradução e a performance do narrador
O TRASLADO DAS NARRATIVAS ORAIS à escrita: a tradução e a performance do narrador
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Resumo: Neste trabalho é feito um estudo de tradução, transcrição e performance narrativa. Esta tradução dá-se na passagem do âmbito do oral para o do escrito, cujo objeto de estudo é uma narrativa oral em torno do Ataíde, ente mitológico dos manguezais, colhida em Taperaçu/Bragança, Pará. A finalidade deste trabalho é discorrer sobre as teorias acerca dos estudos de tradução, além de apresentar problemas que advêm dela, especialmente quanto às duas modalidades da língua: oral e escrita. Traduzir não se reduz somente à transposição de uma língua estrangeira para a língua materna. Entendemos tradução como um trabalho que suplanta a esfera das palavras, abraçando o homem e sua cultura, visto que, estudar tradução compreende analisar os problemas de recepção, o modo como certas culturas, grupos ou indivíduos leem a cultura do outro. A base teórica que fundamenta a tradução centra-se nas teorias tradutórias de Walter Benjamin, Jorge Larrosa, Sabine Gorovitz, Antoine Berman, Peter Burke e Roman Jakobson. No que diz respeito às narrativas orais, o trabalho é balizado nas leituras de Junia Zaidan e Barbara Reeves (que cita Paul Thompson) para fundamentar o ato de transcrever/traduzir a voz do narrador em material escrito para o pesquisador. Em relação à performance, as teorias de Paul Zumthor, direciona as análises desta pesquisa. Assim, o trabalho de transcrever uma narrativa oral perpassa pela ação de traduzir, pois trata-se de uma tradução intralingual (segundo Jakobson, 1995) em que existe a passagem entre signos verbais no interior da mesma língua, no caso deste trabalho, do campo do oral para o campo do escrito. Palavras-chave: Narrativa Oral. Escrita. Performance. Tradução.
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Myrcéia Carolyne Guimarães da Costa
Myrcéia Carolyne Guimarães da Costa O traslado das narrativas orais à escrita: a tradução e a performance do narrador
Introdução
As narrativas orais, em particular as de cunho maravilhoso (como as analisadas aqui, com seus mitos e lendas) constituem um fator extremamente relevante e marcante como traço de uma cultura.
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A teoria da tradução e as narrativas orais
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Neste trabalho é realizado um estudo a respeito de tradução, transcrição e performance do narrador. Esta tradução dá-se na passagem da esfera do oral para a esfera do escrito, para o qual é objeto de estudo uma narrativa oral acerca da entidade mitológica dos mangues, o Ataíde, coletada na comunidade do Taperaçu, Pará. O foco principal deste estudo é trazer à luz as teorias a respeito do trabalho tradutório, bem como os problemas em torno da tradução, sobretudo em relação a modalidades diferentes da língua: a oral e a escrita, gerando, pois um questionamento: como se dá a passagem dos aspectos do narrador que escapam à palavra? O trabalho de traduzir não se restringe apenas a “transportar” um texto de uma língua estrangeira para a língua materna (assim o senso comum concebe a tradução). Aqui o trabalho tradutório é entendido a partir da perspectiva de que ultrapassa o campo das palavras, abrangendo o homem e sua cultura, ou seja, estudar tradução significa estudar os problemas de recepção, o modo como certas culturas, grupos ou indivíduos leem a cultura do outro. Diante dessa abordagem, tomar-se-á como premissa as considerações que Larrosa (1996) fez para tradução: “ler é traduzir; interpretar é traduzir; a tradução é inerente à compreensão humana”, isso nos faz refletir que, ao termos contato com o outro, fazemos uma leitura dele, isto é, uma interpretação, e esta é uma experiência de tradução em virtude de que nessa leitura há o movimento de intercâmbio e de contato do “eu” com o “outro”, pois a tradução propicia, conforme Gorovitz (2011), uma espécie de interação através da qual existe uma passagem entre línguas, culturas e realidades. Toda questão que concerne à tradução é fundamentada, sobretudo, nas teorias tradutórias de Walter Benjamin, Jorge Larrosa, SabineGorovitz, Peter Burke e Roman Jakobson. Em relação ao trabalho com as narrativas orais, é orientado pelas leituras de JuniaZaidan e Barbara Reeves que amplamente cita Paul Thompson para balizar o ato de transcrever/traduzir a voz do narrador em produto escrito do pesquisador. Para a questão da performance, teremos nos estudos de Paul Zumthor e Luciana Hartmann, a base teórica que direciona as análises desta pesquisa.
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Simões (2004), em relação aos habitantes da Amazônia, afirma que suas vidas são atravessadas por valores dogmáticos que expressam a multiplicidade do viver amazônico, pois, através das narrativas, são envolvidos sentimentos, emoções, sonhos, anseios, ideais, medos, concretizações de objetivos e frustrações de pessoas que interagem num ambiente de grandes selva e água. A coleta das narrativas deu-se por meio de gravações de áudio e o processo de transcrição é baseado na interpretação. Transcrever é interpretarsegundo Larrosa (1996), e muito importante é a figura do receptor do texto, pois este deve se permitir atravessar pelo lido/ouvido a fim de que haja a “experiência”. Este autor compreende experiência como algo que transforma o receptor de acordo com sua vivência, pois experiência não é o que acontece, e sim aquilo que acontece em nós. Em relação à experiência com leitura/tradução, ele postula que:
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Dessa forma, o papel do tradutor, é entrar no texto, na cultura do Outro (como no princípio da Bildung – que, conforme o mesmo autor, a tradução/leitura funciona como um movimento de ida e volta, cujo ponto de partida é o familiar, o conhecido e que se separa de si mesmo a fim de adentrar no “alheio”, no desconhecido para, em seguida, regressar ao lugar de origem formado e transformado, ou seja, uma autêntica experiência) e deixar-se fazer a experiência. Aqui, teremos esse fenômeno duas vezes: o primeiro é o contato do tradutor como o narrador; e o segundo é o contato do leitor com as narrativas orais traduzidas/transcritas. Este trabalho se propõe a transcrever as narrativas coletadas com base nas teorias acerca de tradução, trata-se, portanto, de um trabalho de tradução monolíngue, em que a passagem dar-se-á na mesma língua, à maneira intralingual, como postula Jakobson, “a tradução intralingual ou reformulação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos verbais da mesma língua” (Jakobson, 1995). É o fato de estar no campo da mesma língua que é utilizada essa teoria (dentre outras) para fundamentar teoricamente o trabalho, porém, é importante ressaltar, são os mesmos signos linguísticos, contudo, em modalidades linguísticas distintas.
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Para que lalectura se resuelva em formación es necesario que haya uma relación íntima entre el texto y la subjetividad. Y esa relación podría pensar se como experiencia, aunque entendiendo experiencia de um modo particular. A experiência sería lo que nos pasa. No lo que pasa, sino lo que nos pasa (Larrosa, 1996, p. 18).
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Jorge Larrosa utiliza-se de metáforas para explicar a leitura e uma delas é a metáfora da tradução, na qual expõe que a atividade de ler é semelhante a transplantar o sentido dado em uma língua para outra língua diferente, com uma condição: a de que o objeto transplantado não seja realizado mecanicamente, e sim modifique a língua à qual se incorporou. Essa afirmação nos faz refletir sobre a função do tradutor, função esta que trará mudanças para o texto de partida, pois o tradutor procurará meios pelos quais seu produto final chegue ao entendimento do leitor, para que este também passe pela experiência da “experiência”, sem, contudo, alterar-se a essência de texto original. É nesse sentido que Reeves-Ellington (1999) afirma, citando Kahn (1982)1 que já há o reconhecimento por parte de alguns estudiosos para com as dificuldades do trabalho do tradutor, dando especial relevância às influências de natureza pessoal, cultural e ideológica que são trazidas pelo intérprete/tradutor para as narrativas. É nessa perspectiva que Zaidan (2013), tomando as ideias de Alberti (2004)2 afirma, ao tratar de histórias orais, que elas se mostram como um campo de versões possíveis e por ampla carga de subjetividade. Da mesma forma, o tradutor também não é isento de subjetividade, nas palavras de Gorovitz:
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Apud Reeves-Ellington, 1999, p. 1. Apud Zaidan, 2013, p. 3.
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Reeves-Ellington, toca em um ponto primordial no trabalho de traduzir narrativas orais – diz respeito à consciência acerca do problema da tradução e representação. Ela aponta para a reflexão e crítica do tradutor em relação às suas práticas tradutórias, ou seja, se o seu trabalho baseia-se em produzir versão que conserva o significado essencial da língua sem traduzi-la literalmente, ou conserva o estilo do narrador e o espírito da história. É nesse aspecto que se afirma que a postura do tradutor não é neutra e ele deve informar qual a maneira que utilizou a fim de obter o efeito desejado. Em vista disso, há uma relação bastante próxima entre pesquisador, narrador e narrativa, “o pesquisador e o narrador são coprodutores da narrativa. [...] As histórias que o pesquisador grava
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Ele (o tradutor) se coloca entre dois espaços, tendo um olho voltado para trás e outro para frente, efetuando assim uma operação de duplo sentido: ele observa em si mesmo a obra do outro, observando o outro em sua própria obra. (Gorovitz, 2011, p. 15).
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não lhe pertencem. Seus informantes são parceiros no processo” (Reeves-Ellington, 1999, p. 106). Os dois protagonistas na captação da narrativa estão envolvidos numa mesma ação, o tradutor, segundo seu intento e sabendo a que público vai atender, faz ajustes para transformar a narrativa oral em texto escrito. As suas decisões podem acarretar em mudanças no texto de partida mesmo que o narrador tenha um alto grau de controle sobre sua cooperação no decorrer da entrevista. Essas decisões existem com a finalidade de o tradutor procurar causar no leitor o mesmo efeito que as histórias, na voz do narrador, causou nele, por isso a reação do leitor torna-se um aspecto importantíssimo nas tomadas de decisão durante a tradução. Ao se traduzir a fala para a escrita, o resultado (como em toda tradução) é um outro texto que se difere do texto de partida, sobretudo porque se trata de modalidades de língua diferentes. Em se tratando de escrita, a transcrição não dá conta de aspectos como o sotaque, o gestual, as pausas, enfim, as formas individuais de expressão. E ainda pode ocorrer pontuação equivocada deliberada pelo tradutor que pode alterar bastante o significado original, comprometendo a narração original e, por conseguinte, sua análise. Narrativa sobre o Ataíde
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“Lá na praia do Mata Boi, quando existia, agora não existe mais. Fomos três: eu, um pescador meu e um passageiro. Chegamos lá de noite. Logo na chegada tinha um rancho com moradores. Então perguntaram (ao rapaz): – Tu vai dormir aonde? – Eu vou dormir lá em cima, acolá. O dono da casa, que era muito amigo do meu empregado, disse: – Rapaz, dorme aqui em casa. A cozinha é grande, arma tua rede por cima da mesa. A mulher tá aí com os menino. Umas dez horas da noite eu vou sair pra pegar isca pra pescar amanhã. Tu fica aí, ao menos acompanha a mulher. Aí o cabra entrou e foi certinho na rede dele. Pegou o rapaz com rede e tudo, por baixo. O bicho não meteu a mão por dentro da rede pra pegar só ele, começou a balançar, balançar, que chegou a balançar o rancho. – Que é, Pedrinho?
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Esta narrativa foi contada pelo Sr. Domingos Ferreira da Silva, conhecido na localidade como Seu Raiol. Esta é a segunda versão, para o público leitor.
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Ele não falou nada, não respondeu nada. Ela veio do quarto e quando chegou, ele tava desmaiado dentro da rede, mortinho. Ele levou mais de hora pra começar a conversar. – Quando, quando acendeu a luz, o cabra me largou. Ele, ele não desceu pela escada, ele pulou de embalo. Então desceram e foram ver. Dizendo ele, que era mais de parmo3 o rastro. Ainda viram o rastro. E de lá pra cá, foi a primeira e a derradeira vez que ele foi. Ele disse assim: – Eu murro4 desse mundo, Raiol, mas lá nesse Mata Boi eu não vou mais! E não foi mesmo.
Narrativa do Ataíde: estudo de um caso O trabalho de tradução/transcrição da narrativa utilizada como objeto de estudo neste trabalho deu-se com base na tradição alemã sobre tradução apregoada por Goethe in Larrosa (1996), nela explicase que existem três maneiras de se conduzir o processo de tradução.Nos fundamentaremos na terceira forma que aplica o princípio da Bildung(já citada anteriormente), o tradutor não se atém de modo fixo ao original de sua língua, estabelecendo uma renúncia de sua nação para acolher o estrangeiro, o que é estranho ao seu idioma, forçando sua língua (sua cultura) a ir além de seus próprios limites. Portanto, na tradução da narrativa coletada procurou-se conservar o máximo possível da voz do narrador, mantendo palavras e expressões próprias de sua linguagem (devidamente explicadas em notas de rodapé), construções linguísticas que desviam da norma culta da língua, e tudo mais que possa aproximar o texto escrito do texto falado (de certo que se tem consciência de que as duas modalidades apresentam especificidades próprias, que uma não é espelho da outra), a fim de se preservar o encantamento que o tradutor obteve ao escutá-lo. Caracterização da entidade
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O Ataíde, de acordo com a descrição dos narradores entrevistados do Taperaçu, é um ser com formas humanas, porém, muito grande, preto, cabeludo, catinguento (transpiração malcheirosa), muito feio, só se vê no escuro (“ele é quase invisível”), tem um grito
Palmo. Morro.
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pavoroso e medonho parecido com o grito da guariba5 e possui o órgão genital de tamanho exagerado. Disseram que o Ataíde atrai as pessoas (homens e mulheres), agarrando-as e levando-as para dentro do mangue, os narradores são reticentes, evitam falar o que acontece no interior do mangal durante o ataque, para isso fazem um gesto levantando os ombros e movimentando para baixo os lábios fechados. Diante de minha insistência, perguntando se havia estupro, eles disseram que sim, que, às vezes, ele “se serve dos atacados” e, outras vezes, há espancamento, “o Ataíde surra as pessoas”. O problema da tradução
Denominação comum a vários macacos da América do Sul e Central; Corpulentos, mas ágeis, caracterizam-se pela cabeça maciça e pelo queixo barbado dos machos. Andam em bandos, saltando de galho em galho sob o comando do macho mais velho. In: Ferreira, A.B.H. Aurélio Online. Disponível em: <http://www.dicionariodoaurelio.com>. Acesso em: 17 fev. 2014.
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Num trabalho de tradução, busca-se, ingenuamente, a fidedignidade entre o texto de partida e o texto final, isso se configura como um problema no sentido em que não há como passar integralmente uma língua para outra, pois possuem sistemas de signos diferentes que, muitas vezes, não apresentam equivalência de significados. Jakobson assinala, para o trabalho de tradução, que existe uma recodificação em que há a substituição de mensagens de uma determinada língua não por unidades de código separadas (palavra por palavra) e sim por mensagens inteiras de outra língua. Segundo este autor, “o tradutor recodifica e transmite uma mensagem recebida de outra fonte. Assim, a tradução envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes”. (Jakobson, 1995, p. 65) Peter Burke compartilha da ideia de que a tradução não se realiza somente no âmbito das palavras, pois tem com clareza a noção de tradução entre línguas e entre culturas, visto que trata-se da “adaptação de ideias e textos conforme eles passam de uma cultura para outra” (Burke, 2009, p. 8), e chama a atenção para relevância dos receptores dos textos traduzidos. Como o enfoque é o público, as traduções são vistas como promotoras de mudanças na cultura que as acolhe, isto é, o intercâmbio cultural é realizado pela tradução sob uma nova ótica: a dos leitores. Todas essas discussões nos faz refletir sobre a busca da fidedignidade no processo de tradução. Não há como fazer esse trabalho “de espelho” de uma língua para outra, de uma cultura para
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outra, mesmo no interior da mesma língua (como é o caso deste trabalho), em razão de se trabalhar com códigos diferentes e que possuem seus sistemas específicos. Não é possível se chegar em completude ao texto original. Para Larrosa (1996) não existe sentido original em razão de que todo sentido é proveniente de uma tradução e toda interpretação modifica a língua receptora por exigir que esta acolha um sentido que não havia previsto. Walter Benjamin6 considera, em relação a essa busca ao sentido original, como um retorno a um tempo de perfeição e compreende este retorno sob a ótica do movimento em direção a algo no plano ideal, a um “futuro que não existe”, ou seja, existe um texto de partida (passado) e o texto traduzido (futuro), esse movimento nunca se encerra porque o produto da tradução torna-se outro texto que não é o texto original em outra língua (mas vinculado a ele), e é neste lugar que se faz a ponte do texto de partida ao texto traduzido – o entre-lugar – no qual reside a tarefa do tradutor. Ao realizar a tradução da narrativa oral sobre o Ataíde, observouse a problemática que se trata da passagem do oral para o escrito, há certas especificidades da fala que não são possíveis de reprodução escrita, como gestos, expressões faciais, entonações, substituição de palavras por outros elementos que só são percebidos pelo visual e pela arte de contar dos narradores que tornam as histórias ainda mais encantadoras. Reeves-Ellington diz que o maior problema de se trabalhar com transcrições de narrativas orais diz respeito aos
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Apud Lages (2002).
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A mesma autora, explicando a experiência do antropólogo Denis Tedlock, em que transcreveu uma palestra de forma semelhante aos padrões da oralidade a fim de demonstrar os problemas em transcrever narrativas orais como prosa, afirma que é necessário bastante atenção ao que o antropólogo denominou de “habilidades da oralidade” para que se consiga extrair mais significados das narrativas orais, assim como essa postura revela mais respeito à voz do narrador. “o tradutor tem de encontrar o equilíbrio entre oralidade e escrita. O desafio varia
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aspectos paralinguísticos e não-verbais tão notórios durante a conversa não se encontram no texto transcrito. A palavra falada, asséptica no papel impresso, deixa de evidenciar os silêncios, sussurros, entoações, ritmos, repetições e a emoção. O texto deixa de revelar o encolher dos ombros, o levantar das sobrancelhas ou as lágrimas(Reeves-Ellington, 1999, p. 6).
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dependendo da forma como as histórias orais são construídas no ato da tradução”(Reeves-Ellington, 1999, p. 6). Assim, verificou-se, através do trabalho tradutório da narrativa oral do Ataíde, que não há realmente a possibilidade de alcançar a fidedignidade entre os textos, agravando-se, neste caso, porque temos uma tradução intralingual. Isso desencadeia em também comprovar que a busca do sentido original não é possível, pois o movimento entre o passado – texto original – e o futuro – texto traduzido, não autônomo do primeiro – nunca chega ao fim, não se chega ao plano ideal exatamente em virtude de a tradução não ser “idêntica” ao texto de partida e por esta não ser independente dele. O tradutor precisa ter ciência de que sua função tem uma importância crucial neste processo que lida com o(s) Outro(s). Esta tarefa implica em fornecer informações oriundas de Outra pessoa e se destina a Outra pessoa (que não é a primeira), Desse modo, ele tem o dever de ser responsável com as duas esferas e com seu objeto de estudo. É no tocante a esse fato, mais precisamente em relação ao envolvimento do tradutor com o narrador, que Reeves-Ellington considera a lealdade como obrigação do tradutor para com os narradores, seus parceiros no trabalho. Assim, se um tradutor quer ser responsável aos olhos de seus leitores e leal aos coprodutores, o conceito de “responsabilidade com a lealdade” pode ser um norteador para se discutirem as dificuldades na tradução de narrativas orais (ReevesEllington, 1999, p. 3).
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Ante aos problemas de tradução assinalados acima, dar-se-á especial atenção à performance do narrador. Por mais que se tente aproximar ao máximo possível a transcrição à narrativa, muitos aspectos são perdidos no transpor de uma modalidade da língua para outra, aspectos estes demasiadamente relevantes no momento de ouvir as histórias, visto que são elementos que trazem consigo carga semântica, carga dramática, localização espacial, enfim, prendem a atenção e geram encantamento no ouvinte. Na oralidade, a performance é um elemento essencial para dar vida ao fato narrado, ela é constituída no campo da forma e engloba o tempo, o lugar, o objetivo da transmissão, a ação do locutor e a contrapartida do público. Estas, conforme afirma Zumthor (2007), são as regras da performance e são tão ou mais importantes que as regras textuais no tocante à comunicação. A ideia de performance remete
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A Performance do narrador
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competência, isto é “saber ser” (na ordem de presença e conduta coordenadas no espaço e no tempo – físico e psíquico) encarnado em um corpo vivo. Assim, para a performance, no extremo, supõem-se que
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Tamanha é a relevância dos fatos performáticos, que, ainda em oposição ao texto escrito, alguns de seus elementos (da poética escrita) podem ser econômicos, na poética da voz, por sua vez, não existe essa economia, exatamente por reunir o arcabouço de elementos que desencadeiam para a recepção, no sentido em que estão diretamente ligados à percepção sensorial, ou seja, o envolvimento do corpo. Partindo desse princípio, a narrativa aqui estudada exemplifica tal afirmação, como ela fora coletada e traduzida pelo próprio pesquisador, tem-se a clara noção da presença desses elementos e da perda deles durante o processo de tradução. A princípio, estamos no campo da presença das duas esferas – narrador e ouvinte – e este campo já se configura como um diferencial no processo de contato com a história. Este contato se dá por meio da audição da voz e da visualização do ato de narrar, de modo que é bastante distinta a recepção de quem ouviu/viu a narração e de quem apenas a leu a tradução. Pois quem somente a leu, não obteve contato com as pausas, as repetições, os silenciamentos, os ruídos de voz e de gestos, as expressões faciais, o movimento do corpo para marcar espaço, tempo, clímax da narrativa, enfim, com o conglomerado que envolve a uma contação de história. Nesse aspecto, quando se refere à performance, intrinsecamente reporta-se à ideia de uma ocorrência oral e gestual, de forma que o procedimento metodológico em forma de captação apenas de voz permite que a voz perdure ao passo que a gestualidade tende a desaparecer. Cabe também frisar que o pesquisador/ouvinte procurou manter, no traslado, algo que remetesse à sedução advinda de uma contação de história e que, o seu trabalho revela muito de sua subjetividade, de como se deu a recepção do texto e, nesse caso, ele se vale apenas da palavra escrita para dar conta de tão complexo processo de oralidade, no qual a performance do narrador está ligada ao conhecimento do que se transmite, Zumthor diz que a performance modifica o
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o efeito textual desapareceria e que todo o lugar da obra se investiria dos elementos performanciais, não textuais, como a pessoa e o jogo do intérprete, o auditório, as circunstâncias, o ambiente cultural e, em profundidade, as relações intersubjetivas, as relações entre a representação e o vivido (Zumthor, 2007, p. 17-18).
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(1) “Ele agarrou, dormiu, ficou naquele dormindo lá, aí teve, teve... quando foi meia-noite pra uma hora... aí ele viu mexer na escada assim, né”. (2) e (3) “Ela agarrou, veio de lá, chegou e TArra, tarradesmaiaaadodenda rede, mortiiiinho”. (4) “Aí, viero,se aperreou-se e chamou uma vizinha lá, perguntou se num tinha, tinha aquela água benta, aí foi quemá algodão pra botar no nariz, aí o cabra tornou...”. (5)“Aí ela disse: ‘será que foi, foi o Ataíde que queria lhe agarrar?”. (6) (Colocando-se em postura ereta na cadeira, proferiu:) “Aí o cabra entrou, aí foi ceeertinho na rede dele, chegou na rede, pegou ele com rede e tudo assim, por baixo, sabe (apontando e fazendo menção a esses movimentos). Pegou com rede, num meteu a mão assim por dentro pra pegar só ele, pegou a rede com tudo assim, começou a fazer desse jeito (gestos), balançar, chega balançou o rancho”.
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Deve-se também atentar para o meio pelo qual se deu a coleta da narrativa, no nosso caso, foi realizada por meio de gravação de áudio.
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conhecimento, “ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o marca” (Zumthor, 2007, p. 32). No trato da performance narrativa, as manifestações corporais dos narradores são analisadas sob o que Hartmann (2005) intitula performance como espetáculo – na qual o ato de narrar exige elaboração estética, trabalha a linguagem poética e possui início e fim bem definidos, visa ao evento narrativo (contos, histórias); em oposição ao que chama de performance como desempenho – na qual há a inclusão absoluta do narrador na realização de sua atividade de narrar, seus desempenhos vocal e corporal são direcionados para o conteúdo, enfatiza o evento narrado (as narrativas pessoais). A narrativa apresentada é uma segunda versão direcionada a um público acadêmico, na primeira versão pode-se verificar alguns aspectos exclusivos da performance no momento da narração. São destacados alguns, de acordo com Hartmann: (1) mudança de linha marca separação de sentenças e indica pequenas pausas de respiração do narrador; (2) letras maiúsculas assinalam ênfase na pronúncia; (3) repetição de vogais indicam sílabas alongadas; (4) grafia incorreta representa a oralidade do contador, como ele pronuncia a palavra. Importa ressaltar que se trata de uma alternativa “de análise e de ‘tradução’ da oralidade para a escrita” (Hartmann, 2005, 137). Destaco ainda o sussurro, em negrito (5); e a descrição de gestos (6).
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Este trabalho trouxe à luz as teorias a respeito da atividade de traduzir textos e essas teorias apontam para uma tradição de tradução que ultrapassa o sentido de passagem de um idioma para outro. A
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Considerações finais
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Esta media permite que consigamos gravar a narrativa no que se refere à voz, os fatos que concernem ao corpo são excluídos, de modo que a performance do narrador esvai-se do registro. O diferencial em relação à escrita é que a gravação, percebida pelo ouvido, não pode ser lida (ainda), esta mediação eletrônica realiza o trabalho de fixar a voz para permitir ao tradutor que retorne quantas vezes achar necessário à narrativa para transcrevê-la, agora sim transpô-la para os signos escritos da linguagem, e não contar, para isso, somente com a memória. Mesmo que ao captar a voz e ao escrever, a performance tenha passado para a esfera da abstração, esse registro é importante, é necessário para manter a narrativa viva. A performance, que se perde com meios eletrônicos dessa natureza, permanece presente, em sua essência (no narrador), através da corporeidade: o peso, o calor, o volume do corpo para os quais a voz é o instrumento de propagação. A noção de performance deixa de ter sentido quando não se pode visualizar o ato de narrar, pois os elementos que a integram requerem, indubitavelmente, a presença do sujeito contador, ou seja, de um corpo. Isso não retira, no entanto, sua importância, sua contribuição na ordem do sentido e da estética do texto narrado convertido para o escrito. Lançar mão da ideia de performance pressupõem a necessidade de considerar a introdução do corpo na análise da obra, neste trabalho de tradução, a questão da performance ficou por conta da lembrança do tradutor, embora se saiba que o que mais se relevou, como o discutido acima, foi a questão da palavra gravada, mesmo de posse de uma gravação em áudio e vídeo, como se trata de tradução para a modalidade escrita, a performance, estaria ali registrada, porém, ficaria mais uma vez de fora do texto escrito. Com efeito, como estamos lidando com a passagem do texto oral para o escrito, não se consegue preservar os elementos performáticos. Convém ressaltar que é um trabalho com modalidades diferentes da língua, cada uma com seus traços específicos, portanto, tentar depositar na escrita elementos exclusivos da performance oral, é querer atingir o inalcançável texto original, tal finalidade, conforme a teoria da tradução explica, não é possível em razão de que entre o texto de partida e o texto traduzido existe uma série de elementos no interior, no exterior e entre os textos que não permitem a fidedignidade tradutória, sem com isso, no entanto, retirar o caráter inteligível de obra traduzida.
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tradução é entendida como passagem de naturezas diversas, sejam elas entre línguas diferentes, no interior da mesma língua e até mesmo entre linguagens diferentes em que a realiza através de signos verbais e signos não-verbais. Entendemos que para se traduzir, o tradutor necessariamente faz um trabalho de interpretação, de leitura, e, para isso, ele deve deixar-se atravessar pelo texto de partida. Esse atravessar consiste em adentrar no texto, na cultura do Outro para poder adquirir experiência (compreendida como o que acontece em nós e não aquilo que simplesmente acontece, não são os fenômenos que ocorrem num plano exterior ao sujeito, e sim as impressões, as marcas deixadas pela obra que atravessam o indivíduo para fazer parte de sua própria constituição) para ocorrer a transformação – em que é a relação com o texto que ganha importância e não o texto em si, a presença do Outro tem sempre algo a oferecer ao receptor, que por sua vez, já possui conhecimentos, e esta oferta permite a realização do fenômeno em que o outro permanece como outro e não como “outro eu” e o “eu” passa pela metamorfose. Um trabalho de tradução permite um exame da própria cultura e implica num movimento de autorreflexão a partir do conhecimento da diferença constituída pelo outro. Tomar como tradução o trabalho de transcrição de narrativas orais sobre o Ataíde possibilitou adentrar na cultura do Outro (os moradores da comunidade do Taperaçu) de maneira respeitosa e a tradução ultrapassou os limites do linguístico permitindo que o tradutor/leitor penetrasse e conhecesse a cultura estudada e foi transformado por ela numa ação de autoconhecimento a partir da diferença encontrada no outro para analisar-se a si mesmo. Além da discussão sobre o processo tradutório das narrativas orais, debruçou-se, em especial sobre um problema que lhe ocorre – a performance do narrador. Vimos que à ela é atribuída grande importância para a interpretação, visto que a linguagem do corpo transmite muitas informações que vão além de mera contribuição. Ela possui mecanismos próprios para dar vida às intenções do narrador, ao efeito que pretende provocar no ouvinte, seu corpo se movimenta de acordo com seus objetivos, pois o narrador é o senhor do texto. Na passagem para a escrita, perde-se esse recurso tão relevante. Em se tratando de modalidade de língua diferente, não se tem recurso na escrita para a tradução da performance, porém, é um registro importante e que deve ser feito dentro das restrições de sua especificidade, e que não subtraem o valor que a modalidade escrita oferece a um texto traduzido da oralidade. Com efeito, este trabalho se constituiu como um importante registro da cultura oral através de um tratamento adequado a fim de buscar preservar os aspectos da oralidade dentro das limitações escritas
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baseado no que importantes pensadores teorizaram sobre assunto sugerindo a(s) postura(s) que o tradutor deve assumir a fim de realizar um trabalho idôneo para todas as partes que compõem o processo de tradução – o narrador, o texto, o tradutor e o receptor do texto traduzido.
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Referências
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
Alceny Nunes de Araújo | Fernando Alves da Silva Júnior Produção de saberes na confecção de panelas de barro
PRODUÇÃO DE SABERES NA CONFECÇÃO de panelas de barro na comunidade de São Mateus, Taperaçu Campo, Bragança (PA)
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Resumo: A comunidade de São Mateus, subdivisão da comunidade Taperaçu Campo, pertencente à Reserva Extrativista Marinha Caeté-Taperaçu, é uma área rica em matéria-prima para a confecção de cerâmica, especialmente o tijolo e, em menor escala, os utensílios domésticos, como panelas de barro. Na pesquisa pretendese discutir o modo em que os saberes são construídos em torno da confecção das panelas de barro que, por um lado, apresentam-se como fonte de renda familiar e, por outro, como uma forma de transmissão de conhecimento por meio do seu processo de fabricação. As primeiras visitas à “Cerâmica de Panela de Barro São Mateus” revelaram que é no manuseio e no falar que se dá o aprendizado pela argila cujo grupo humano envolvido com a produção de cerâmica e de saberes engloba três gerações (avós, filhos e netos). A produção consiste, primordialmente, na extração e/ou na compra da argila, seguida da modelagem em torno manual, colocadas para secar em prateleira e, por fim são queimadas, tingidas e postas à venda no próprio “ateliê”. A modelação das panelas de barro da comunidade é um ofício que se espraia para além das olarias e atinge a escola local de educação infantil “Maria Olinda Oliveira Silva” por meio dos programas “Escola de Portas Abertas” e “Mais Educação”. É pensando nessa relação de se produzir conhecimento por meio do barro que espreitamos nosso objeto de pesquisa. Palavras-chave: Produção de Saberes. São Mateus. Panela de Barro.
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Alceny Nunes de Araujo Fernando Alves da Silva Júnior
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
Alceny Nunes de Araújo | Fernando Alves da Silva Júnior Produção de saberes na confecção de panelas de barro
Introdução Neste trabalho, escrito a duas mãos, destacamos o primeiro resultado da pesquisa de campo com os produtores de “panela de barro” da comunidade do São Mateus (Taperaçu Campo, Bragança/PA). Localizada na área rural e entorno da Reserva Extrativista Marinha Caeté-Taperaçu (doravante REM CaetéTaperaçu), a comunidade de São Mateus é uma das poucas localidades bragantinas que ainda cultivam a cultura da argila1. Nosso intuito é destacar o local reservado aos mais jovens no processo de produção que, por configurar uma modalidade de educação não formal, chamamos de conhecimento pela argila, uma vez que é no contato com a matéria prima dos utensílios de barro que o ensinamento/aprendizado se realiza. Salientamos, assim, a produção de conhecimento a partir da argila articulado aos saberes tradicionais e ao valor comercial das peças confeccionadas no ateliê da Associação Panela de Barro São Mateus. Tendo em vista que pouco se falou acerca da cerâmica de São Mateus, tivemos que recorrer às fontes orais que, se por um lado serviram como testemunho de uma prática dita tradicional, por outro supriu a carência de material escrito sobre a produção local, assim, metodologicamente, a pesquisa se fundamenta na pesquisa de campo norteada pela leitura dos textos etnográficos, Brandão (2007), Oliveira (2006) e Geertz (1989, 2009), e da história oral, Alberti (2005).
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Damos destaque para a comunidade da Vila que Era, especialmente para a dona Nazaré que, aos 62 anos, ainda desenvolve seu trabalho com a produção de “louças” de barro, ou como ela mesma menciona, “louceiras”.
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A via que se toma ao propor uma discussão que considera os saberes tradicionais é espinhosa, primeiro por conta da inevitável comparação ao saber científico e, segundo, por conta da tendência em pensar que um é mais bem acabado que outro. Pelo contrário, assevera Carneiro da Cunha (2009, p. 302-303), há uma resposta genérica e afirmativa para a comparação entre saberes tradicionais e saber científico, pois ambas se preocupam em compreender o mundo e outra, não tão genérica, porém discordante, de que “ambos são também obras abertas, inacabadas, se fazendo constantemente”. Nesse sentido é lícito afirmar “que não se trata de lógicas diferentes, mas antes de premissas diferentes sobre o que existe no
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O saber tradicional em São Mateus
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mundo”, nessas duas lógicas, afirma Lévi-Strauss (2011, p. 31), uma está “muito próxima da intuição sensível e outro mais distanciado”. Por isso Carneiro da Cunha (2009, p. 303) afirmará que o conhecimento tradicional joga com unidades perceptuais, mais próxima do cheiro, da textura, do sabor, enquanto o científico trabalhará primordialmente com definições. É dessa maneira que o saber científico está para o conceito enquanto o tradicional para a sensibilidade. É justamente esse jogo com o corpo que nos interessa. O trabalho com a argila denota, sobremaneira, um aproximar-se do objeto, não somente o tato que dá conta do material trabalhado, mas o cheiro e as cores do barro completam a textura da argamassa que compõe o processo de aprendizagem pela argila. Se tradicional sugere algo estanque, ou seja, uma prática que se pereniza, não é difícil crer que são as rupturas, como quer Bornheim (1987, p. 15), que garantem a continuidade daquilo que se diz tradicional. A infatigável repetição de uma prática nos conduz a pensar um ponto inicial e, com isso, abordar a tradição como algo inventado (Hobsbawn; Ranger, 2006). Essa continuidade apropriasse de um passado que confere distinção em um presente. É o que se observa quando questionamos a origem da cerâmica de São Mateus, a resposta nos conduz a mesma resposta encontrada na comunidade Vila que Era, é uma cultura da argila ligada a um passado indígena, afirmação esta que encontra amparo nos trabalhos de Ribeiro (1996) e Costa (1939). Em certa medida, essa defesa da continuidade de uma prática autóctone confere prestígio ao trabalho com argila, distinção que empodera determinado ateliê. Em todo caso, no presente trabalho essa discussão serve de esteio para a definição dos saberes tradicionais enquanto conhecimento ligado à sensibilização do jovem aprendiz para o trato com a argila, no entanto essa sensibilidade não perpassa apenas pelo contato manual com a matéria prima, mas complementa-sepela oralidade, o imprimirda voz na cadência dos movimentos das mãos que produzem conhecimento na medida em que se molda objeto.
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Convém destacar que a descrição que faremos do processo de produção neste trabalho amparou-se em entrevistas com dona Maria de Canela, dona Osmarina (senhoras que adotam o modelo tradicional de produção) e com o senhor Daniel Ferreira (presidente da Associação Panela de Barro de São Mateus que recebe visitas técnicas do SEBRAE).
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Descobrindo os passos da produção em São Mateus
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Costa (1939, p. 09) corrobora ao afirmar que para os indígenas brasileiros “a cerâmica era trabalho atribuído às mulheres”
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A confecção de panelas e utensílios domésticos a partir do barro segue diversas etapas, que destacaremos aqui a modo de compor um panorama geral de como os moradores de São Mateus se apropriaram dessa atividade. O primeiro passo é obter a argila apropriada para a produção. A ida ao barreiro (os campos) é uma atividade que envolve, grosso modo, dois grupos, os membros do próprio ateliê, ou proprietários de olarias que podem fornecer a matéria prima. Aqui, não observamos uma divisão do trabalho com base nos gêneros, no entanto, é interditado às mulheres grávidas ou menstruadas a retirada do barro. Atentamos que, de acordo com dona Maria de Canela, produzir panelas de barro era uma atividade quase que exclusivamente feminina. Acerca disso, encontramos em Ribeiro (1996, p. 443) outros interditos ligados às mulheres que pairam sobre a confecção de utensílios de barro na cultura Kaapor. Nos escritos do antropólogo, percebe-se que esta era uma função própria das mulheres2. Ele ressalta que durante a modelagem a mulher não deveria se ausentar para urinar ou permitir que outras pessoas a visitassem no decorrer da produção do utensílio sob o risco dele rachar quando fosse queimado. Em São Mateus, as jazidas de barro são os campos e por conta da estação das chuvas, o que é extraído durante o verão fica estocado nas dependências das olarias. A retirada em grande escala dos campos se dá por meio de tratores e toda matéria extraída é conduzida para a olaria em caçambas. Do pátio da olaria, o barro é lançado, mecânica ou manualmente, em um laminador que se responsabiliza por triturar pedras, madeira ou qualquer material que possa danificar o produto final. Em seguida, a argila é conduzida para a máquina, conhecida como maromba (espécie de rolo compressor mecânico), depois de passar por dois cilindros, a argila é conduzida em uma esteira à máquina que se responsabiliza em dividir a massa em peças de 20cmx50cm destinada ao ateliê. A olaria vendea argila preparada à R$0,30/kg. No barraco da associação, essa argila fica abafada em sacolas, “curtindo”, por três dias. O descanso da argila garante melhor qualidade aos utensílios. Dona Maria de Canela explica que antes das olarias fornecerem essa opção, o preparo era manual, daí resultava um tempo mais longo a ser reservado ao preparo do barro, para a limpeza das impurezas etc.
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Fig. 01: Maria de Canela expondo pote, alguidar, “pão de jutaicica”, fungo, cuipeua e caroço de anajá.
Fonte: Arquivo pessoal (2015).
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caripenas.f. [< T. karaipe’rana<karai’pe (v. CARAIPÉ) + ‘rana ‘semelhante]. Nome comum a diversas plantas da família das rosáceas. 1930 G. CRULSA Amazônia que eu vi 166: A uma das margens, também pudemos observar algumas cariperanas, arvores de tronco esbranquiçado, [...], e de cuja casca, no seu dizer, se consegue certa cinza especial, que de mistura com barro, é muito usada no fabrico da louça. (Cunha, 1998, p. 106)
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Com a matéria prima curtida e pronta para o uso, inicia-se o processo que dará resistência aos utensílios. Para tanto, a argila recebida, ainda é amaciadomanualmente com certa atenção para se retirar as pequenas pedras ou pedaços de madeira que restaram da seleção anterior, esse cuidado com o barro evita as possíveis rachaduras nas peças prontas. Depois dessa cuidadosa seleção, misturase na argila um pó chamado de chamote, ou “um subproduto proveniente de rejeitos de material cerâmico após a queima” (Gouveia, 2008, p. 21), que no ateliê de São Mateus, é constituído por restos de utensílios de barro (tampas, panelas, canecas etc.) que se quebram durante a produção ou são quebrados por não estarem em perfeitas condições para a venda. Essas peças são pisadas em um pilão convencional de madeira, depois é peneirado em um escorredor de arroz até originar um pó bem fino e uniforme. Segundo dona Maria de Canela e dona Osmarina, antigamente, ao invés do chamote utilizavase o caripé, termo tupi que se relaciona às caripenas:
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Quando se utilizava o caripé, queimava-se as cascas da árvore para se obter as cinzas que, incorporadas à argila, garantia a resistência dos utensílios. Na produção de cerâmica pelos kaapor, também usavase as “cinzas da casca do karipe (caripé)” misturadas à argila molhada (Ribeiro, 1996, p. 467). Devido à quase extinção da espécie, e por conta do alto preço cobrado por essa cinza no mercado, na Associação de São Mateus optou-se pelo chamote proveniente do reaproveitamento das peças inutilizadas. Dona Isaura Correia, louceira a 45 anos em São Mateus, ratifica que o chamote poderia ser feito com caripé, no entanto, a associação estaria contribuindo com o desmatamento e, nos afirma que a intenção é garantir a renda para a comunidade agredindo o mínimo possível a natureza. Fig. 02: Sacola com argila beneficiada (à esquerda) e chamote (à direita).
Fonte: Acervo pessoal (2015).
E também o mais especializado, uma vez que para se tornar “torneiro” é necessário um tempo de aprendizagem de três a quatro anos e, dependendo da habilidade do aprendiz, alguns não conseguem adquirir a destreza necessária para moldar as peças.
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Estando com a massa pronta, parte-se para a confecção das peças. Para tanto, separa-se uma parte da argila e a molda em um torno de madeira. Os irmãos e louceiros, senhor Daniel e senhor Francisco Ferreira, são os responsáveis pelo uso do torno3. Enquanto os pés giram uma espécie de roldana, na parte de cima se dá o trabalho mais cuidadoso do processo no qual as mãos do louceiro delicadamente imprimem forma ao barro disforme e qualquer descuido pode danificar a peça, o tempo para se moldar uma caneca toma em média 15 minutos, já o tempo despendido para uma panela de arroz, 30 minutos.
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Evitamos o termo “assar”, pois “queimar” é o termo local que define a etapa em que tanto os utensílios de barro quanto as telhas ou tijolos são levados ao forno.
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A princípio, a peça não era moldada no torno, usava-se a técnica do “rolinho”. Neste caso, enrolava-sepequenas quantidades de argila em formato de tira cilíndricas, empilhava-se em espiral uma a uma para formar a peça desejada, dava-se o acabamento com uma palheta de ferro ou casca de cuia (a cuipeia) e alisava-se com fungo de árvore. Ribeiro (1996, p. 468) explicar que os Kaapor também enrolavam o barro para formar os “roletes” que são organizados em espirais para dar a forma do utensílio. O acabamento, descrito por Darcy Ribeiro, é feito com “uma lasca de cabaça” molhando-a constantemente para que a superfície da louça fique uniforme e macia. Costa (1939, p. 19), de modo similar, enumera, entre outros, os artefatos utilizados pelos Tupinambá na confecção de utensílios feitos de argila: “a cuipeua”, fragmento de cuia em formato de concha juntava-se ao itapuquiti, espécie de pedra de esfregar feita de seixo ou caroço de inajá. O uso destes e outros instrumentos resultavam em uma peça mais bem acabada. Na etapa seguinte, as peças moldadas são dispostas em prateleiras para secarem. No verão, o tempo de secagem dura, em média, três dias, no inverno, esse período triplica, de sete a dez dias. Aproveita-se esse intervalo para adicionar as asas, endireitar as bordas e finalizar as tampas etc. depois de secas, são lixadas com retalho de sacos utilizados na transporte de frutas (tipo saco de engranzamento), é este o momento para se deter nos poros que possa comprometer a resistência da peça. Para a garantia de produtos sem a presença de poros, dona Maria Canela, ressalta a técnica que consiste em alisar o utensilio com a semente do anajá, o mesmo observado por Costa (1939, p. 19) na cultura Tupinambá. Depois do lixamento, as peças estão prontas para serem queimadas4. A temperatura do forno alcança 800 a 1000 ºC quando utilizado cascas e/ou caroços de palmeiras (açaizeiros ou dendezeiros). A semente do açaizeiro, o produto mais utilizado na queima por conta do baixo custo, é comprada por R$4,00/saca.Para o uso da semente como combustível, o forno deve ficar 12h de “esquente”, ou seja, controla-se a temperatura para que ela não alcance bruscamente o valor máximo, evitando com isso, rachaduras com a dilatação da superfície dos utensílios.
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Fig. 03: Peça sendo confeccionada por Leonardo Ferreira, filho do presidente da Associação.
Fonte: Acervo pessoal (2015).
O senhor Daniel Ferreira explica que esses valores variam em função do tamanho do forno e das peças. Ressaltamos que os utensílios trincavam com mais facilidade caso o controle da temperatura não fosse acompanhada pela/o louceira/o.
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A queima que utiliza sementes necessita de um exaustor (com potência de 450w, em média) que “sopra” o forno, potencializando o aquecimento. No entanto, a queima não se dava em fornos, utilizava-se fogueiras. Nesse caso, levava-se ao fogo em torno de 3 a 4 peças, se comparada ao forno que queima em média 130 peças5 observamos um cuidado com a otimização da produção. Dona Maria de Canela,
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destacou que no processo de produção que envolvia a fogueira, o tempo de produção se limitava ao verão, pois no inverno (período de chuvas) cozer panelas implicava morosidade no processo e, consequentemente, alongamento do período de trabalho. Fig. 04: Lixamento de uma peça.
Fonte: Acervo pessoal (2015).
Para os Kaapor (Ribeiro, 1996, p. 467-469) o processo no qual se queimava utensílios de barro era semelhante. Na experiência vivenciada pelo antropólogo, um alguidar é queimado em fogueira por seis horas. No final eles esmaltam-no ainda quente com “uma boa quantidade de resina de jatobá (jutayaca), que a velha tomou e amoleceu em água fervente, fazendo bolas que colocou na ponta de uma vara de metro e meio”, tal qual nos explicou dona Maria de Canela e dona Osmarina.
Fonte: Ribeiro (1996, p. 443, 468 e 469).
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Fig. 05: Desenhos da cerâmica Kaapor por Darcy Ribeiro.
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Observamos em Costa (1939, p. 15) que o uso do forno não é uma técnica hodierna uma vez que os Tupinambás a utilizava, além de cozerem as louças em fogueiras ou covas. E, tal qual nos fala as louceiras de São Mateus e Darcy Ribeiro, Costa reafirma o uso da jutaicica no revestimento interno das peças de barro que era aplicado enquanto as louças, especialmente os alguidares, estavam quentes. Fig. 06: Panelas no forno.
Fonte: Acervo pessoal (2015).
Com as peças já queimadas e frias, inicia-se a defumação.Tanto no ateliê quanto nos quintais das louceiras, as louças são emborcadas em pequenos fogareiros para receberem a fumaça de folhas de goiabeira ou azeitoneiras. As peças são expostas à fumaça por 20 a 60min., sempre em baixa temperatura e com bastante fumaça. A finalidade dessa defumação é garantir a impermeabilidade do utensílio. O senhor Daniel Ferreira afirma ser, como em todo o processo, um dos testes de qualidade da louça6, pois resistindo ao fogo sem rachar, certamente estará pronta para ir ao fogo com alimentos.
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Existe um teste final que assegura a solidez das peças tanto para o uso de frios quanto de quentes, porém é um segredo não revelado.
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A produção de utensílios de barro no ateliê da comunidade São Mateus, não supre apenas a demanda familiar ou local, eles atendem a encomendas da sede do município (Bragança/PA) e cidades circunvizinhas. Em algumas épocas do ano, as encomendas fazem com que o ateliê contrate mão de obra extra. Tendo em vista este foco
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Considerações finais
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comercial da associação, o senhor Daniel Ferreira ressalta o cuidado para que o ensinamento das crianças não seja interpretado como exploração de mão de obra infantil, o que faria recair uma visão negativa sobre a associação. Diferente do que aconteceu com o aprendizado de dona Maria Canela e da dona Osmarina, que o ensinar focava uma prática mais ligada aos laços de parentesco e compadrio uma vez que dificilmente vendia-se uma peça, pois era costume dos interessados nos utensílios fornecerem argila e caripé objetivando a partilha da produção o foco de uma associação é a comercialização com a finalidade de fortalecer a renda familiar dos associados e, com consequência, limitar o acesso das crianças na produção. Não obstante essa preocupação do presidente da associação está a participação da associação no calendário escolar da comunidade por meio do Programa Mais Educação e do Programa Escola Aberta que permitem aos associados promoverem oficinas para sensibilizar as crianças para o cuidado com o barro. Apesar da complexidade das etapas, o aprender exige uma atenção para o ver e para o sentir o barro. A sensibilidade do olhar atento e do toque manual com a peça. Mesmo fator determinante de se aprender destacado por dona Maria Canela e dona Osmarina. Quando dona Maria de Canela tinha 21 anos, o aprendizado exigiu, no mínimo,dois anos de experiência a sogra (famosa paneleira da década de 70 na comunidade do Tamatateua) cuja função era apenas de ajudante na produção de potes, panelas e alguidares para seus vizinhos. Esses dois anos de atenta observação culminaram em uma tentativa positiva quando dona Maria de Canela “arriscou” produzir um alguidar. O mesmo aconteceu com dona Osmarina, aprendeu da mãe, do mesmo modo em que esta aprendeu da avó. A sensibilidade do olhar nos parece ser a tônica central desse modelo de aprendizagem, principalmente marcado pela oralidade. A voz imprime significado no barro. O olhar conjuga-se com a voz.
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Camila Oliveira de Souza | Kelry Leão Oliveira | Gilcilene Dias da Costa Projetos de linguagens na educação infantil
PROJETOS DE LINGUAGENS NA EDUCAÇÃO infantil: um estudo a partir da teoria Pós-Crítica em Educação
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Resumo: O trabalho a qual nos propomos a desenvolver, trata-se de uma pesquisa que vem sendo realizada neste primeiro ano de curso do mestrado em educação, motivado pela disciplina Educação Brasileira, que nos oportunizou investigar como a educação estava sendo pensada no cenário brasileiro. Isso nos levou a curiosidade de entender como o campo da educação infantil está sendo pensado em nosso país a partir dos pensamentos da vertente pós-crítica em educação. Dessa forma, escolhemos como objeto de estudo, a análise dos projetos de linguagens de uma unidade de educação infantil de Belém-Pará, com objetivo de entender, como vem sendo construídos os projetos pedagógicos nas Unidades de Educação Infantil, analisando se as formações pedagógicas têm contribuído para o aperfeiçoamento deste trabalho e se na prática dos professores tem inovado e dinamizando o ensino. Dessa forma, buscamos verificar como o currículo vem sendo dinamizado nesta perspectiva, analisando se tem se pensado no respeito e reconhecimento das identidades e das diferenças dos sujeitos do espaço. Isso nos levou a realizar uma pesquisa teórica, utilizando autores que discutem a pós-modernidade em educação como Silva (2001); Corazza (2001); Costa (2013) e outros e em articulação destes estudos passamos para a pesquisa de campo. Este trabalho vem se modificando ao longo do curso de acordo com os dados coletados, por meio de uma abordagem qualitativa, com entrevistas semiestruturadas e observação em lócus de pesquisa, trata-se de uma pesquisa em andamento que pretende contribuir com os nossos trabalhos de conclusão de curso do mestrado, que envolvem as dimensões das linguagens e os estudos pós-críticos em educação, no que
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Camila Claide Oliveira de Souza Kelry Leão Oliveira Gilcilene Dias da Costa
Camila Oliveira de Souza | Kelry Leão Oliveira | Gilcilene Dias da Costa Projetos de linguagens na educação infantil
tange a diferença no campo educacional. Portanto, os resultados ainda são preliminares, mas já podemos dizer que a Unidade vem desenvolvendo projetos de linguagens como impulsionadores em suas práticas pedagógicas e no trabalho curricular, que as formações pedagógicas acontecem e que estes professores são atuantes na dinâmica das formações, porém é uma trabalho que ainda deixa dúvidas, receios e angustias nos professores, mas que porém tem promovido um ensino dinâmico e diferencial em relação ao que vinha sendo pensado no espaço anteriormente. Ainda temos a curiosidade de descobrir com a pesquisa se o ensino dinamizado leva em consideração o contexto sociocultural dos indivíduos e se respeita a identidade e a diferença das crianças na ressignificação de seus conhecimentos, que são metas e desejos ainda a serem respondidos com o andamento da pesquisa de campo. Palavras-chave: Projetos de Linguagens. Educação Infantil. Pós-Crítica. Identidade. Diferença.
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Trabalhar com projetos de linguagens na educação infantil tem sido uma meta para muitos educadores, em busca de proporcionar uma construção de conhecimentos dinâmicos e prazerosos. Nesse sentido, os estudos pós-críticos em educação tem promovido diálogos e propostas no intuito de ressignificar o currículo, possibilitar o encontro com o “novo”, valorizar as diferenças e as construções subjetivas dos educandos, fazer com que crianças e docentes caminham em “vias de mãos duplas” em busca da construção e reconstrução desses conhecimentos. Nesse contexto, é relevante investirmos em pesquisas nessa vertente pós-crítica a fim de possam contribuir com práticas pedagógicas inovadoras na educação infantil, assim como, com o desenvolvimento dessas crianças. Assim, motivadas por descobrir os caminhos que os estudos pós-críticos percorrem nas discussões acerca da educação brasileira e mais precisamente da educação infantil, e interessadas em socializar as experiências que já vem sendo realizadas em busca do “novo” na educação, como um ensino que respeite as diferenças e linguagens dos sujeitos, manifestamos o interesse em realizar esta pesquisa, a qual se encontra em andamento, para um melhor aprofundamento da discussão e uma vivência na prática pedagógica em busca de novos caminhos na pesquisa em educação. Dessa forma, buscamos discutir neste trabalho algumas impressões iniciais a respeito desses estudos teóricos e das vivências
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Introdução
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cotidianas, tendo como lócus de pesquisa uma Unidade de Educação Infantil de Belém-Pará que trabalha com projetos de linguagens como impulsionadores de suas práticas, ainda em fase experimental através de seu projeto piloto. Neste estudo apresentamos algumas considerações teóricas a respeito dos estudos pós-estruturalistas em educação, buscando uma correlação com os estudos teóricos sobre as linguagens que a Unidade pesquisada utiliza em suas práticas e também alguns estudos em documentos oficiais que regem a educação infantil. Também apresentamos algumas considerações a respeito dos caminhos metodológicos seguidos para a pesquisa, pois pretendem promover uma troca de ideias e conhecimentos com os docentes e coordenação pedagógica da instituição, através da coleta de dados por meio de entrevistas semiestruturadas e observação no espaço. Tendo percebido a relação entre os projetos de linguagens desenvolvidos na Educação Infantil a partir do estudo da Diferença em uma perspectiva pós-crítica, uma vez que os projetos são pensados a partir das diferenças, faz-se importante falar primeiramente neste estudo dos projetos de linguagens e mostrar sua importância como reconhecimento e constituição de multiplicidades de linguagens e diferenças na educação infantil em um projeto piloto realizado no município de Belém, posteriormente faz-se necessário mostrar as implicações desse olhar da diferença na perspectiva pós-crítica em relação ao uso dos projetos de linguagens na educação infantil, a partir dos autores pós-estruturalistas. As inquietações que contribuíram para a decisão da escrita desse texto e problema foram adquiridas por curiosidades desenvolvidas no Mestrado em Educação, realizado no Programa de Pós-graduação em Educação, Linha de Pesquisa Educação: Currículo, Epistemologia e História, no PPGED/ICED/UFPA e por meio dos diálogos realizados no grupo de pesquisa PHILIA com a orientação da professoraorientadora do mestrado a partir de uma perspectiva pós-crítica. Outrossim, faremos algumas considerações acerca dos resultados parciais da pesquisa, mas que já nos apresentam pontos relevantes a respeito dos caminhos que a educação infantil vem permeando atualmente neste espaço. Trata-se de uma pesquisa em andamento, que tem contribuído com as discussões acerca da Educação Infantil e da teoria pós-crítica nas disciplinas do curso de mestrado, pois partimos da teoria pós-crítica para entender esta dinâmica realizada nesta unidade, buscando discutir o novo na educação com o propósito de ressignificar os estudos sobre currículo e linguagem. Assim, podemos dizer que este trabalho busca entender como os projetos de linguagens têm sido pensados para a educação infantil em
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uma Unidade de ensino de Belém-Pará e como tem se articulado com o ensino na perspectiva da diferença, fazendo deste ensino algo motivador e atraente para as crianças. Visa, ainda, analisar as diferenças e as múltiplas linguagens que constituem este espaço, sobressaltando as relações com o Outro nesses contextos. Também pretendemos analisar se os professores entendem essa dinâmica como uma prática mediada pelas teorias pós-críticas, por meio das linguagens como forma de produção e ressignificação de conhecimentos, ou se usam sem ter um norte teórico, somente como um trabalho experimental. Pretendemos analisar estas questões porque ao começar a desenvolver a pesquisa ficamos cientes de que se trata de um trabalho experimental por meio de um “Projeto Piloto”, que ainda traz muitas dúvidas e anseios para os professores, mas que já apontam mudanças significativas no processo de construção do conhecimento. Desse modo, com o andamento da pesquisa, já estamos realizando algumas discussões acerca da formação pedagógica na educação infantil, por entendermos que é importante que os docentes tenham uma preparação para desenvolver um bom trabalho com as linguagens através de projetos, sendo esta atualmente uma proposta inovadora que já vem sendo trabalhada em algumas UEI’s, inclusive nesta onde estamos dinamizando a pesquisa e que já foi apresentada para a SEMEC (Secretaria Municipal de Educação e Comunicação) de Belém e mais especificamente à Coordenação Infantil das unidades, estando em processo de aprovação no município, de forma experimental, por ter apresentado resultados satisfatórios no trabalho pedagógico até o momento. Assim, elencamos como objetivos iniciais para este trabalho, analisar quais os benefícios que o ensino através dos projetos e do uso das linguagens tem proporcionado para a melhoria da qualidade do ensino na educação infantil; verificar de que forma a pedagogia de projetos contribui para a formação pedagógica e para o ensino em sala de aula e qual abordagem é dada à diferença nesse processo de construção de conhecimento por meio dos projetos de linguagens. A partir de então, com o propósito de aprofundamento de estudos, pretende-se analisar de que forma os cursos de formação de professores vem acontecendo na UEI pesquisada, fazendo com que a mesma ganhe visibilidade pelo trabalho inovador que vem fazendo através das propostas pedagógicas de projetos de linguagens.
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Descobrindo e redescobrindo o mundo por meio dos Projetos de Linguagens na Educação Infantil Os projetos de linguagens realizados nas Unidades de educação Infantil têm sido um meio de organização curricular facilitador nas práticas de construção de conhecimentos. Por meio dos projetos, as experiências dos professores e dos alunos são colocadas em práticas nas situações de aprendizagens sendo realizadas de acordo com o contexto sociocultural dos sujeitos envolvidos nos projetos. Para Barbosa e Horn (2008, p. 19): Historicamente, os projetos foram construídos com o intuito de inovar e de quebrar o marasmo da escola tradicional. Seus criadores tinham a convicção de pioneiros, isto é, o compromisso com a transformação da realidade, o desejo e a coragem de assumir o risco de inovar e a convicção de que era preciso criar uma nova postura profissional.
De acordo com as afirmações acima, podemos dizer que os projetos foram surgindo com o propósito de inovar as práticas tradicionais que até hoje permeiam muitas instituições educacionais, buscando por meio desta dinâmica proporcionar um ensino mais prazeroso que pretende criar uma nova forma de se trabalhar nos espaços educativos. Mas, atualmente, busca-se bem mais do que inovar, busca-se discutir o conhecimento a partir do contexto sóciohistórico das crianças, de suas vivências, suas culturas, sua vida real.
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Partindo da perspectiva do conhecimento inserido no contexto sócio-histórico da criança, consideramos que o ensino por meio dos projetos pedagógicos tem impulsionado as práticas dos professores e estimulado as crianças a criarem e recriarem conhecimentos participando ativamente na elaboração e ações do projeto, pois estes são construídos de acordo com as necessidades e curiosidades das crianças. Para Barbosa e Horn (2008), cria-se uma pedagogia
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Hoje voltamos a falar dos projetos, porém não da mesma forma que a escola nova o fez. É necessário dar-lhes “uma nova versão”, na qual estejam incluídos o contexto sócio-histórico, e não apenas o ambiente imediato, o conhecimento das características dos grupos de alunos envolvidos, a atenção à diversidade e o enfoque em temáticas contemporâneas e pertinentes à vida das crianças [...]. (Barbosa;Horn, 2008, p. 19).
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diferenciada que visa trabalhar com projetos e com as linguagens através da “pedagogia de projetos”. Segundo a autora:
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A prática pedagógica na educação infantil deve estar aberta a experimentações e vivências, à participação das crianças nas ações, por meio das trocas de afeto, dos gestos e movimentos das crianças e a todos os demais processos que levam as mesmas a exercitarem a criatividade. Nesse sentido, é importante que o Planejamento Pedagógico e a seleção e tratamento curricular sejam organizados de forma viável, é importante que essas práticas sejam pensadas e elaboradas com muita responsabilidade e dedicação por meio de ações dinâmicas e prazerosas que façam com que as curiosidades das crianças sejam atendidas. Partindo desse pressuposto, trabalhar com projetos nos ajudam a aguçar a curiosidade destas crianças através de seus desejos, buscando criar e ressignificar conhecimentos “reais”, de acordo com o que é interessante para as crianças em termos de descoberta e aprendizagens. Atualmente o trabalho com projetos tem permitido essa ressignificação do conhecimento, pois, tem-se uma postura pedagógica, que deixando de considerar os projetos como um “método”, e sim como uma forma de reflexão de uma determinada postura pedagógica, que contribui para repensar as práticas pedagógicas e as teorias que sustentam essas práticas. Partindo deste enfoque, podemos dizer que os projetos nesta perspectiva do “novo”, passam a não ser mais considerados como uma mera técnica de ensino, com uma sequência de passos a serem seguidos, e sim como uma possibilidade interessante para a organização pedagógica da educação infantil, pois valoriza ricas relações entre o ensino e a aprendizagem, em que os conhecimentos nascem das vivencias diárias entre sujeito e mundo.
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As ideias de uma pedagogia diferenciada começam a ganhar espaço principalmente a partir da década de 1960, pois a homogeneidade da escola tem excluído muitas crianças do processo de ensino-aprendizagem. Começam a ser valorizadas as diferenças no modo como são selecionados os conhecimentos, a consideração pelas riquezas de experiências sócio-culturais, as diferenças subjetivas das crianças e suas histórias de vida. Uma das formas de dar conta dessas pedagogias diferenciadas e também da apropriação pela criança das diferentes linguagens é a pedagogia de projetos. [...]. (Barbosa;Horn, 2008, p. 29).
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Desse modo, pensar na elaboração de uma proposta pedagógica que atenda às necessidades das crianças na educação infantil, implica levar em consideração alguns aspectos do contexto cotidiano destas crianças, buscando considerar a subjetividade de cada sujeito e suas especificidades. E o trabalho com os projetos por meio das linguagens nos ajudam a verificar como melhor desenvolver um trabalho que atenda às necessidades de cada sujeito, por meio das diversas linguagens e diversas maneiras de pensar o conhecimento. É nesse sentido que o ensino por meio das linguagens, através dos projetos se faz necessário por proporcionar à criança um amplo espaço de construção do conhecimento. Porém, vale ressaltar que essa organização curricular deve ser planejada com respeito às individualidades das crianças, permitindo suas escolhas nas situações de aprendizagem, as quais precisam ser observadas atentamente pelas professoras para que se processe a construção do conhecimento. Para Edwards, Gardini e Forman (1999), todo conhecimento emerge no processo de construção social e de si mesma, devendo o professor estabelecer um relacionamento pessoal com cada criança e basear esta relação no sistema social do espaço educativo. É nesse contexto que o ensino por meio das linguagens se torna necessário, por proporcionar à criança a construção do conhecimento por meio da interação com o outro e da participação na construção desses conhecimentos. Acreditamos que a criança é um ser social que ao nascer já predispõe de capacidades emocionais, afetivas e cognitivas, dando a ela a possibilidade de interagir e aprender nas relações com outros sujeitos em diversos ambientes em que vive, sendo esta capaz de ser influenciada e influenciar o ambiente em suas ações sobre o meio. Nas interações vividas pelas crianças vão se construindo conhecimentos, novas aprendizagens e as mesmas vão se instituindo enquanto sujeitos sociais. E isso se dá devido as suas experiências em criar conhecimentos por meio de experimentações. Partimos do princípio de que a criança traz consigo em sua bagagem cultural impressões, ideias e interpretações do mundo por meio de experimentações artísticas, sendo que ao construir e reconstruir conhecimentos faz uso da arte como elemento impulsionador de suas criações. A criança pula, canta, dança, brinca e se constitui com a arte e a mesma está presente em suas vivências diárias, o que assegura mais ainda trabalhar com os projetos de linguagens na educação infantil, para permitir que as crianças experimentem o mundo por meio do contato com a arte. A reconstrução de regras, reinvenção de palavras e modos de falar, enfim, a recriação do mundo é perfeitamente possível através de
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desenhos, pinturas, modelagens, esculturas e brincadeiras, ou seja, criase e recria-se por meio do contato da criança com a arte. Junqueira Filho (2005) acredita que tais atividades não se referem simplesmente às crianças estarem em ação, mas como situações de aprendizagem, à ação-interação das crianças junto a um objeto de conhecimentolinguagem, sejam pessoas ou aspectos materiais e/ou simbólicos do mundo. Muitas pesquisas e ações vêm sendo realizadas ao longo do tempo para aprimorar as práticas pedagógicas na Educação Infantil, porém, o que se observa é que em muitas unidades educativas as práticas desenvolvidas ainda são limitadas e escassas, pois os cursos de formação de professores não acontecem comumente, o que provoca uma acomodação, fazendo com que as metodologias de ensino não avancem e muito menos se inovem. Por meio de tais argumentos acreditamos que medidas urgentes precisam ser tomadas para melhorar a qualidade da educação. E a Educação Infantil pode ser a base da formação intelectual, social e humana da criança que precisa receber uma atenção e incentivo especial, para que a criança tenha uma boa formação tanto na fase da educação infantil como no seu futuro escolar. Portanto, consideramos que o ensino por meio dos projetos permeados pelas linguagens se tornam imprescindíveis na Educação Infantil, assim como os cursos de formação de professores, contribuindo para que a criança se desenvolva gradativamente desde a sua chegada às Unidades Educacionais, pois o ensino se torna significativo se todas as fases de aprendizagem da criança acontecerem com eficiência. Assim, promover um ensino dinâmico com o uso de múltiplas linguagens como impulsionadoras de projetos na educação infantil permite à criança viver e aprender em um espaço mais acolhedor e livre para o “jogo da criação”, onde todos são sujeitos do conhecimento e o conhecimento de constrói nas vivências no espaço.
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Trataremos neste tópico sobre a diferença na teorização curricular, dando ênfase para as questões voltadas aos projetos de Linguagens em uma perspectiva pós-crítica. Desta forma, esse texto tenta mergulhar em um estudo sobre a diferença e suas ressonâncias no currículo e nos projetos de linguagens desenvolvidos na UEI pesquisada no município de Belém, a fim de perceber os caminhos que a diferença vem trilhando nos estudos pós-críticos.
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Diferença e suas ressonâncias no currículo e nos Projetos de Linguagens.
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Os argumentos que vão sendo tecidos no texto não são para definir conceitos da diferença, mas discuti-los dentro do campo curricular, em especial, nos projetos de linguagem pensados em uma perspectiva da diferença, apostando na importância desse pensamento, dessas intensas discussões em torno da problemática da diferença sob os aspectos das teorizações curriculares. Segundo Costa (2013, p. 3),
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É imprescindível considerar que a discussão sobre gênero, raça, etnia, e a própria identidade e a diferença, ganha com o pensamento da diferença uma radicalidade no seu existir. Saber lidar com as diferenças de forma ampla e profunda exige pensá-las. Muitos estudiosos fazem essa discussão e o reconhecimento disso é importante para o campo curricular. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2005), as teorizações póscríticas se caracterizam como um conjunto de perspectivas teóricas que mantem o impulso teórico das teorias críticas, no entanto, realizam uma releitura e questionam alguns de seus pressupostos, tais como: ideologia, poder, emancipação e libertação, destacando-se a aversão à noção realista e essencialista de verdade. Em convergência com as ideias de Michel Foucault (2000), afirma que não existe uma verdade única, mas sim, “regimes de verdade” ou produções discursivas permeadas por relações de poder que funcionam na sociedade como verdadeiros. Por se tratar de um campo de estudo bastante diversificado em seus matizes teórico-metodológicos, deve-se tomar por base alguns exemplos ao estilo dessas teorizações curriculares, na discussão da diferença, ao conceber que: “[...] o texto não visa apontar soluções ou caminhos teórico-metodológicos que orientam as práticas de pesquisa em educação, e sim realçar a ideia de que a forma de expressão desse
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no campo da pesquisa em educação o pensamento da diferença nos chega pelas vias dos estudos de Currículo (Gallo; Silva; Louro; Corazza e colaboradores) e nos interpõe difíceis desafios: imprimir um duplo exercício ao pensar: da crítica, mediante a análise veemente das “imagens dogmáticas do pensamento” (Deleuze, DR, 1988) que imobilizam o acontecimento e a singularidade dos fenômenos através das noções de representação, universalidade, identidade; e, simultaneamente, da clínica, mediante um tratamento agudo das questões intersubjetivas que nos inquietam e nos desafiam a pensar, cavando uma abertura ou um intervalo no pensamento capaz de rasgar o caos (da cultura, da educação) e povoá-lo com uma diferença no olhar/escutar/perceber/pensar/criar.
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estilo arrasta o seu conteúdo, criando condições de possibilidades do novo no campo da pesquisa” (Costa, 2013, p. 1-2). Com lentes emprestadas de Silva (1996), os argumentos favoráveis à diferença no campo crítico esclarecem que o conceito de diferença visto por outro ângulo, implica a rejeição de categorizações, de oposições binárias, como libertação/repressão que supõe a auto identidade do sujeito, implica a recusa de um processo educacional voltado a deixar florescer essa essência (da “mesmidade”) ou desenvolvê-la. Situada na perspectiva da diferença, Costa (2002) destaca que, no pensamento da diferença a identidade é retomada pelo viés crítico do tratamento da diferença; a autora ressalta que a diferença existe em relação com outras identidades e diferenças e não pode, portanto, ser vista como “totalidade” que serve para nomear pessoas, grupos, culturas de forma homogênea e unitária. Para os novos olhares do pensamento da diferença no campo das teorizações curriculares, a diferença tem relações com a identidade, pois,
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Os debates tecidos sobre a problemática da diferença vêm ganhando uma maior proporção em fóruns, seminários, grupos de pesquisa e apontam que não se trata de uma questão simples. Na verdade, a perspectiva pós-crítica em educação, recebe influências da chamada “virada linguística”, com a influência do pós-modernismo, dos estudos culturais. Os estudos da Diferença, atualmente para Costa (2002), mostram que as discussões e polêmicas em torno da diferença estão muito mais evidenciadas em diversos campos de estudo e acredito que uma das coisas a fazer é ousar esbarrar nos limites e fronteiras desse terreno, movidos pelo sonho de inventar e produzir outras escritas que abram a possiblidade de pensar uma política pedagógica da diferença começando, talvez, pela desconstrução de narrativas “canônicas” ou fechadas a novas políticas de identidade, podendo ultrapassar as fronteiras da “benevolência” social através da crítica e da subversão de
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[...] embora tendamos sempre a classificar como “diferente” aquilo que é exterior a nós, nossa própria constituição também é composta pelo outro que, ao mesmo tempo, é interno e externo a nós. No entanto, esse [nosso] outro muitas vezes nos causa estranheza e perplexidade diante da ‘norma’, e, então fazemos questão de ocultá-lo, reprimi-lo sob o risco de vivermos “marcados” pela sombra da “diferença” (Costa, 2002, p. 42).
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certas práticas historicamente naturalizadas no cotidiano de nossas atividades sociais, educativas, culturais, profissionais. Silva (1996) chama de movimento pós-modernista e a denominada “virada linguística” vem colocar em xeque essa concepção que constitui o núcleo mesmo de nossas nações de educação e currículo. Por outro lado, a “virada linguística” descentra o sujeito soberano, autônomo, racional, unitário, sobre o qual se baseia nossa compreensão convencional do conhecimento e da linguagem, e naturalmente da educação e do currículo, sendo a teoria crítica do currículo um movimento de constante problematização. No complexo dessa nova visão busca-se situar a diferença dentro da perspectiva pós-crítica a partir de algumas categorias e apresentar uma visão singular da diferença com base na perspectiva pós-crítica da educação. Essas formas de ressignificação desenvolvidas nos projetos de linguagens possibilitam inquietações para pensar um projeto de grande importância na construção da criança com respeito a Identidade/diferença, cultura, raça/etnia, gênero/sexualidade, alteridade dentre outras temáticas relacionadas ao meio sociocultural. Esse interesse é proveniente de algumas observações feitas nesse estudo, onde vale ressaltar que a diferença não é sinônimo de desigualdade, como é pensado na sua radicalidade do outro ser diferente do mesmo. Mas pensar a diferença a partir de um projeto de linguagem, no que acreditamos é esbarrar nos limites e fronteiras, inventar e produzir outras escritas e ressignificá-las no campo curricular, especialmente na educação infantil, na arte e invenção do novo.
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Os projetos de linguagens ganham destaque neste trabalho por despertarem na criança um desejo em descobrir e redescobrir o mundo, que lhes proporciona conhecer este mundo de forma prazerosa e dinâmica por meio da arte da criação, através do uso de linguagens impulsionadoras dos projetos – uma forma de aprendizagem que respeita as diferenças e as identidades dos sujeitos e que perpassa pelo campo das teorizações pós-críticas em educação. Nesta pesquisa buscamos esboçar os estudos em construção nos trabalhos dissertativos do curso de Mestrado em Educação que estamos realizando, buscando aproximar os sujeitos das teorias pós-críticas em educação, apresentando uma experiência real de projetos que vêm sendo considerados satisfatórios às Unidades de educação infantil, que fazem uso das linguagens por meio da arte em seu processo de construção e reconstrução de conhecimentos.
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Conclusão
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BARBOSA, Maria Carmen Silveira; HORN, Maria das Graças Souza. Projetos Pedagógicos na Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2008. COSTA, Gilcilene Dias da. Diferenças em cena: algumas discussões conceituais. Revista leitura. Porto Alegre: Unijuí, 2002.
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Referências
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Ao discutirmos ao longo do texto sobre os projetos de linguagens e os estudos da diferença em experimentações pós-críticas em educação, procuramos mostrar a ligação entre estudo da diferença e a experiência do “Trabalho Piloto” com linguagens que vem sendo realizado na unidade pesquisada. Nossas primeiras impressões ao entrarmos em contato com uma instituição de ensino da educação infantil de Belém-Pará, já que é necessário ressaltar que se trata de uma pesquisa em andamento, foram de que algumas unidades vêm trabalhando com os “Projetos de Linguagens”, como um “Projeto Piloto” e que estes projetos produzem impactos positivos no processo de ensino-aprendizagem das crianças, pois os projetos tem aguçado a curiosidade das crianças e o desejo de participarem da construção do seu conhecimento juntamente com seus professores. O que se percebe é que os projetos de linguagens vêm fazendo a diferença nas práticas dinamizadoras neste espaço, procurando valorizar as diferenças e as identidades dos sujeitos. Neste processo tem se levado em consideração as subjetividades das crianças e suas experiências socioculturais e escolares, já que os projetos surgem das vivências e dos desejos das crianças. Observando alguns dos avanços dos estudos pós-críticos com o uso dos projetos de linguagens na educação infantil, buscaremos com os desdobramentos desta pesquisa analisar mais de perto como de fato vem acontecendo esse processo e como este vem modificando o dia-adia nos espaços escolares das crianças. Assim, foi por esse motivo que procuramos desenvolver esta pesquisa em uma Unidade de Educação Infantil, em Belém-PA, a fim de verificar como as unidades vêm buscando construir métodos de ensino inovadores e dinamizar esse processo, observando o quanto estas propostas têm ajudado a desenvolver os saberes das crianças. Portanto, o propósito desta pesquisa, ainda em andamento, no que tange às discussões acerca dos projetos de linguagens na educação infantil a partir da teoria pós-crítica em educação, visa contribuir com o processo de ressignificação do currículo e suas linguagens no campo da educação infantil, como arte e invenção do novo.
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______. Labirintos do filosofar/pesquisar com Nietzsche e Deleuze. 36ª Reunião Nacional da ANPEd – 29 de setembro a 02 de outubro de 2013, Goiânia-GO. EDWARDS, C.; GARDINI, L.;FORMAN, G. As cem linguagens da criança: abordagem de Reggio, Emilia na educação da primeira infância. Porto Alegre: Artmed, 1999. JUNQUEIRA FILHO, G. A. Linguagens Geradoras: seleção e articulação de conteúdos em educação infantil. Porto Alegre: Mediação, 2005. SILVA, Tomaz Tadeu da e MOREIRA, Flávio (orgs.). O currículo e os novos Mapas culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. ______. Identidade terminais: As transformações na política da pedagogia e na pedagogia da política. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. ______. Documentos de Identidades: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. ______. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. ______. O Currículo como Fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
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Kelry Leão Oliveira | Gilcilene Dias da Costa Que linguagens educam os pequeninos?
QUE LINGUAGENS EDUCAM OS PEQUENINOS? um estudo sobre as dimensões da linguagem em uma unidade de educação infantil, Belém-Pará
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Resumo: E ste trabalho visa apresentar elementos iniciais de uma pesquisa de Mestrado em Educação, cujo objetivo consiste em analisar as dimensões das linguagens artística e musical na educação infantil tendo como lócus uma Unidade de Educação Infantil no município de Belém-PA e como aporte teórico os estudos pós-estruturalistas sobre linguagem, diferença, currículo, educação. A pesquisa surgiu de inquietações que se deram durante a graduação e que se estenderam para o campo profissional com a minha entrada nesta instituição de ensino a qual estou me propondo investigar, por conta da escassa discussão acerca da linguagem que leva a dificuldade dos professores em saber utilizar suas dimensões em práticas diárias como mecanismo de construção/ressignificação do conhecimento. Dessa forma, buscamos investigar os modos como a linguagem está sendo trabalhada na educação infantil, analisando como as crianças estão se desenvolvendo a partir dessa proposta de ensino e se o contexto sociocultural dessas crianças vem sendo levado em consideração nessa dinâmica de construção do conhecimento. Como proposta deste trabalho, optamos por apresentar num primeiro momento uma discussão teórica sobre linguagem a partir de uma perspectiva pósestruturalista apoiada em autores como Corazza (2001); Costa (2011 e 2013); Silva (2001), e da “perspectiva do cotidiano” fundamentada nas ideias de Michel de Certeau (2014), com aproximações a serem feitas ao campo da educação. Por se tratar de uma pesquisa em andamento, os dados obtidos ainda são preliminares, porém, é possível apontar, no tocante aos estudos da linguagem, o seu caráter
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Kelry Leão Oliveira Gilcilene Dias da Costa
Kelry Leão Oliveira | Gilcilene Dias da Costa Que linguagens educam os pequeninos?
instável e difuso no meio social, bem como no tocante ao cotidiano escolar que os professores vem desenvolvendo um trabalho experimental no município de Belém, com uma metodologia de ensino que ainda está em processo de aprovação pela secretaria de educação do município, e que por ser nova gera muitas dúvidas em relação às formas de realizar as práticas pedagógicas, mas que ao mesmo tempo sinaliza ações satisfatórias para a formação destas crianças. Palavras-chave: Linguagem. Educação Infantil. PósEstruturalismo. Cotidiano.
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Este trabalho surge a partir de pesquisas que estamos realizando no curso de Mestrado em Educação, turma 2014, no Programa de PósGraduação em Educação (PPGED-UFPA), acerca das dimensões das linguagens na educação infantil, tendo como lócus de pesquisa uma Unidade de Educação Infantil de Belém-Pará. O que motivou esta pesquisa no Mestrado foi a busca por entender que linguagens educam os pequeninos e de que forma a linguagem vem sendo discutida na instituição de educação infantil. Os diálogos travados a respeito desta temática nos remeteram a fazermos algumas considerações teóricas a respeito da linguagem e do currículo numa perspectiva pós-estruturalista, com destaques para o seu uso nas práticas pedagógicas com os pequeninos e algumas discussões a respeito do caminho metodológico traçado para o consequente desdobramento da pesquisa. Vale lembrar, que a pesquisa aqui apresenta possui ainda resultados preliminares, pois a pesquisa de campo encontra-se em fase inicial. Para o avançar da pesquisa, partimos do ponto de vista de que a multiplicidade de linguagens permite à criança, na tenra idade, ampla participação na construção do conhecimento, num processo em que ela cria, recria e ressignifica os conhecimentos, tendo participação ativa no processo educativo. Nesse contexto, buscamos analisar o contexto educativo em que as crianças estão situadas, levando em consideração as suas experiências e invenções. Isso nos impulsiona a trilhar caminhos metodológicos da pesquisa apoiando-nos na perspectiva das “invenções cotidianas” de Michel de Certeau (2014), que busca entender o processo de construção do ensino partindo das vivências cotidianas e das construções e invenções dos professores e das crianças. Além disso, buscamos apoio teórico-metodológico nos estudos sobre linguagem e educação, e pensamento da diferença e
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Introdução
Kelry Leão Oliveira | Gilcilene Dias da Costa Que linguagens educam os pequeninos?
educação, especialmente, Corazza (2001); Costa (2011 e 2013); Silva (2001); Rousseau (2008), com o intuito de pensarmos um currículo na perspectiva da diferença articulado aos componentes das linguagens e das artes. A partir dos primeiros contatos com o campo de pesquisa já podemos inferir que a instituição pesquisada vem ousando em trabalhar com as linguagens em seu currículo para o ensino dos pequeninos, através de um “Projeto Piloto” que busca dinamizar os movimentos das linguagens no processo de construção do conhecimento; conhecido como “Teia das Linguagens”. Esse movimento da teia se dá por meio dos projetos de linguagens construídos na interação com as crianças, é um desenho curricular realizado pelos professores da instituição com anseios por algo novo no município, não se trata de um projeto que esteja sendo utilizado com referência no currículo municipal. Não obstante as dúvidas e anseios, os trabalhos que a instituição vem realizando são muito interessantes e dinâmicos, efetivados por meio dos “Projetos de Linguagens” construídos pelos professores e crianças a partir das observações cotidianas e vivências das destes sujeitos no espaço educativo. Assim, podemos dizer que o trabalho experimental com linguagens, dinamizado na Unidade de educação infantil pesquisada, já vem apresentando efeitos positivos, porém, alguns docentes ainda encontram dificuldades para realizarem as situações de aprendizagens por meio das linguagens. É preciso considerar que apesar de o ensino estar sendo dinamizado muito recentemente por este viés, o trabalho se destaca frente a essa nova proposta, pois atende as diversidades e diferenças, contudo, ainda não podemos afirmar como os professores percebem o ensino das linguagens com as crianças e suas relações com um currículo na perspectiva da diferença, o que pretendemos descobrir no decorrer da pesquisa.
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A escolha do tema Linguagens para este estudo se deve ao interesse de entender de que forma o ensino por meio das linguagens vem acontecendo na escola infantil, verificando se os conhecimentos socializados no espaço escolar têm levado em consideração o cotidiano das crianças, trazidos de sua cultura, de seus modos de vida, de seus valores sociais. O interesse advém, também, das angústias vividas no meio educacional e profissional, e de inquietações na busca por entender como o currículo incide na construção do sujeito, entender como o ensino da linguagem entrelaçado aos componentes das artes
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Percursos de Construção da Pesquisa
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ajuda a desenvolver o sujeito por meio de uma leveza no aprender, no descobrir e redescobrir o novo. A partir dessas motivações buscamos formular o problema de pesquisa, com o seguinte questionamento: Como as linguagens que atravessam as propostas curriculares na educação infantil da instituição analisada, podem constituir-se como um elemento potencializador de conhecimentos e práticas escolares inventivas? Partindo desta questão de pesquisa, elencamos como objetivo analisar como as práticas curriculares da Unidade de Educação Infantil pesquisada vêm se desenvolvendo em relação ao ensino das linguagens e a perspectiva da diferença. As discussões iniciais da pesquisa se pautam na interlocução com autores pós-estruturalistas que discutem a linguagem e a educação na perspectiva da diferença, como: Corazza (2001); Costa (2011 e 2013); Silva (2001), apontando algumas considerações sobre o currículo e diferença; também nos valemos dos pressupostos de Rousseau (2008), buscando enriquecer os debates acerca da linguagem, destacando a importância da linguagem na educação do período da infância, tendo como interlocutor Streck (2008), que contribui com discussões ao pensamento de Rousseau. Escolhemos esses autores para aprofundar os debates iniciais aqui travados sobre a temática em questão, pois estes nos ajudam a entender como vem sendo pensado o currículo na perspectiva da diferença articulado aos componentes das linguagens e das artes. Buscamos para esse trabalho fazer uma discussão a respeito do currículo na perspectiva da diferença por entendermos essa prática de linguagem dinamizada na instituição como algo que proporciona a interação e participação da criança no processo de construção do conhecimento, numa relação professor-aluno recíproca de conhecimentos, permitindo novos olhares para o aprendizado. Problematizamos, ainda, certas dinâmicas institucionais que desconsideram as atividades tarefeiras utilizadas há pouco tempo nas escolas e que ainda persistem existir, que apresentam o conhecimento pronto e acabado para as crianças, por meio de atividades rotineiras mimeografadas, desenhos prontos, frases definidas. Entendemos que o estudo da diferença se associa com a dinâmica do ensino por meio das linguagens por proporcionar a interação e as manifestações subjetivas para a construção do conhecimento. A criança se sente mais motivada quando pode ajudar nesse processo. Partindo dessa perspectiva, o professor precisa partir das vivências das crianças na construção de metodologias de ensino, buscar entender os desejos e anseios das mesmas. Sabendo da importância que um currículo na perspectiva da diferença apresenta para a formação dos indivíduos, consideramos
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A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento. [...] a pesquisa qualitativa supõe o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada, via de regras através do trabalho intensivo de campo.
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como hipótese inicial neste estudo, que o currículo escolar precisa levar em consideração as diferenças socioculturais, linguísticas entre outras produzidas no contexto social, proporcionando o ensinoaprendizagem dinâmico e prazeroso, que conduza a criança ao conhecimento por meio das artes, através de linguagens dinâmicas que estimulam o contato da criança com sentimentos, emoções permitindolhes interagir com o mundo de forma prazerosa, sentindo-se parte dele e construindo uma visão sobre ele. Como possibilidade de acesso ao universo infantil e suas múltiplas linguagens, optamos por um estudo baseado nos estudos do cotidiano escolar, fundamentada em Michel de Certeau (2004), por considerarmos que a linguagem é algo dinâmico que se efetiva e se transforma constantemente no cotidiano das práticas sociais e culturais, nas interações intersubjetivas que construímos com os outros mediados por signos que nos provocam os sentidos, pondo-nos a pensar e agir. Desse modo, mergulhamos no cotidiano das práticas da instituição pesquisada, com o intuito de perscrutar que linguagens educam os pequeninos, que linguagens reverberam no currículo escolar e que linguagens os pequeninos constroem nos contextos de interação com o mundo. Assim, no intuito de perceber como vem se dando esse processo de construção e ressignificação dos conhecimentos buscamos dinamizar uma pesquisa utilizando como procedimentos metodológicos no Projeto para a dissertação, inicialmente um estudo teórico, estabelecendo um diálogo com os autores que abordam tanto a temática do currículo na perspectiva da diferença na educação como da linguagem na educação infantil. E em seguida, articulando com os estudos teóricos, iniciamos a pesquisa de campo, para então buscar desenvolver o diálogo a respeito da temática na dissertação de mestrado. Este trabalho se dará por meio de uma abordagem qualitativa, por propiciar um contato direto entre o pesquisador e o contexto a ser pesquisado – no caso desta pesquisa, um contato com uma Unidade de Educação Infantil no município de Belém. Para fundamentar e validar esse tipo de pesquisa, utilizamos os pensamentos de Ludke e André (1986, p. 11), que consideram que:
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Esta pesquisa está baseada na “perspectiva do cotidiano escolar”, fundamentada nas ideias de Michel de Certeau, com aproximações a serem feitas ao campo da educação. Duran (2007), ao falar sobre “As maneiras de pensar o cotidiano com Michel de Certeau”, considera relevante realizar as pesquisas no campo da educação, a partir das observações cotidianas do espaço educativo e das práticas pedagógicas dos professores. Ele considera “[...] a perspectiva do cotidiano escolar como uma das suas dimensões de análise em processos formativos de professores, considerando a importante contribuição de Certeau do que ele chama “invenções cotidianas” [...]”. (Duran, 2007, p. 115). Com base nessas considerações a respeito das “invenções cotidianas”, consideramos que ao utilizarmos essas dimensões de análise, poderemos problematizar as práticas, criações e artes nos espaços educativos, fazendo uma escuta e um diálogo com os professores a respeito de suas invenções e criações, para observar as peculiaridades das práticas pedagógicas valorizando as propostas e dinamizações dos professores na mediação do conhecimento, assim como, poderemos observar que linguagens as crianças buscam para seu contexto e quais as suas criações e experiências com linguagens. Depois de entrarmos em contato com o cotidiano dos docentes, utilizaremos roteiros de entrevistas como técnica de coleta de dados, sendo que para Lakatos, a entrevista despadronizada ou semiestruturada é aquela em que “[...] o entrevistador tem liberdade para desenvolver cada situação em qualquer direção que considere adequada. É uma forma de poder explorar mais amplamente a questão” (Lakatos, 2007, p. 279). Serão sujeitos dessa pesquisa de mestrado, a coordenadora pedagógica e uma amostra de três professoras da Unidade, das turmas de Berçário e Maternal I e II, que vivenciam a realidade do ensino com as linguagens e que são os mediadores desse conhecimento. A partir dessas entrevistas, buscaremos analisar as dimensões das linguagens efetivadas nesta instituição e se essas práticas estão levando em consideração os aspectos da diversidade e da diferença no currículo escolar. Utilizaremos, ainda, como fonte de análise da pesquisa, o planejamento curricular da escola, a fim de perceber as práticas dos educadores com vistas a um ensino crítico e criativo permeado pela perspectiva da diferença. Simultaneamente, realizaremos observações no cotidiano da Unidade, a fim de verificarmos a dinâmica desse processo educativo, acompanhando as trocas de turno dos professores, suas articulações na HP (Hora Pedagógica), também observaremos a rotina das crianças e as atividades pedagógicas realizadas (situações de aprendizagem). Na qualidade de professora da escola, a discente deste texto também estará
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participando da formação em contexto de trabalho para entender como acontecem os encaminhamentos e articulações entre os projetos de linguagens e o currículo escolar. A análise do material se dará em torno do planejamento curricular e uma análise a partir dos pressupostos dos autores que compõem o referencial teórico deste trabalho, articulados às falas da coordenadora pedagógica e das professoras entrevistadas. Por conseguinte, faremos o cruzamento de dados do acervo documental disponível, juntamente com os recortes dos depoimentos das pessoas entrevistadas, da observação in loco, tecendo uma discussão acerca do tema abordado nessa pesquisa e após a análise dos dados, faremos a sistematização dos estudos e resultados que darão subsídios ao trabalho dissertativo, visando o melhor embasamento e enriquecimento da pesquisa realizada. Currículo e Linguagens
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[...] é elemento constituinte do humano, e o homem busca com ela significados, pensamentos, sentimentos, emoções, interesses, vontades e atos. Através da linguagem se organiza o mundo humano, construindo sentido para o que faz e aprende, bem como para o que existe e acontece no mundo. [...] A linguagem é elemento constituinte do humano, pois com ela o homem significa pensamentos, sentimentos, emoções, interesses, vontades e atos. Com ela, organiza o mundo
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O currículo é visto neste estudo como uma das vias de acesso à construção de conhecimentos, proporcionando subsídios no campo educacional para o indivíduo conhecer o outro, as diversidades, a diferença e outros fatores que envolvem o conhecimento sociocultural. É por meio do conhecimento que o educando poderá compreender o mundo à sua volta. Sendo assim, ele precisa criar oportunidades para que o educando participe de sua construção. Corazza (2001, p.10) compreende que o currículo “é um dispositivo saber-poder-verdade de linguagem”. Nessa perspectiva, ele pode ser também entendido como uma linguagem, como uma prática social, discursiva e não discursiva, que se corporifica em instituições, saberes, normas, prescrições morais, regulamentos, programas, relações, valores, modos de ser sujeito. Nesse sentido, o estudo das linguagens se torna imprescindível por proporcionar um conhecimento global e inovador do mundo, por envolver o indivíduo no processo de construção e reconstrução do conhecimento. A linguagem, para Both (2007, p. 1-2):
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humano, construindo sentido para o que faz e aprende, bem como para o que existe e acontece no mundo.
Assim, é importante analisar o contexto da educação partindo de uma visão pós-crítica do currículo, em que se enfatize a descoberta de um currículo como uma das possibilidades de respostas à multiplicidade de quereres e questões que fazem do currículo um campo de investigação. É preciso pensar num currículo plural, que busca a criação do novo, a partir das vivências cotidianas dos indivíduos e aberto a novas descobertas. Nessa perspectiva, podemos conceber o currículo como algo acessível, dinâmico e expressivo que se reconstrói de acordo com os desejos e anseios de um determinado grupo social, não é um campo fechado com conhecimentos prontos, proposta universal, sem especificidades regionais e locais. Isso faz com que lutas constantes sejam organizadas para abolir com o tradicionalismo dentro da escola, que impede os alunos de exporem seus “desejos e sonhos” e almejarem uma educação promissora. Para Costa (2011, p. 280):
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Costa (2011) acredita que a contar pelos moldes tradicionais com que a escola moderna está habituada a ensinar, é possível que no interior de seus muros se configure uma educação sem apetites, desejos e sonhos, sendo provável que ela própria se converta em apatia e inércia de ensinar e aprender, onde docentes e discentes são impelidos a se reunirem em torno de um trabalho “tarefeiro” e sem sabor, limitado a alguma finalidade mercadológica no presente ou no futuro. Daí a ousadia em investir em um estudo que perscrute a arte e a linguagem como canais de construção do conhecimento, dando oportunidade para as crianças exporem seus sentimentos, seus desejos,
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Tem se tornado um lugar comum na educação protestar contra as formas tradicionais de ensinar e de avaliar os conhecimentos e as aprendizagens dos alunos, sob a alegação de que os processos pedagógicos escolares estão cada vez mais desprovidos de vida e de arte, mergulhados que estão no fazer tarefeiro de todo dia. Não obstante, a cena tende a se repetir: professores limitados a reproduzir antigos métodos de ensino e avaliação (tais como a reprodução mecânica de roteiros, planos de aula, mimeógrafos sem vida e sem inovação); alunos e crianças, desde bem cedo, apartados de seu espírito artístico, alegre, curioso, inventivo são conduzidos para a rigidez do cumprimento do dever, de tarefas e horários desprezíveis.
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sendo construtoras do seu próprio conhecimento, por meio de ações pedagógicas dinâmicas e interativas. Levando em consideração essa forma com que a criança concebe o mundo, os professores precisam agenciar um ensino que atenda as singularidades dessas crianças nos espaços de educação infantil, por meio das linguagens por um ensino inovador e dinâmico através das artes. É por meio desse ensino inovador, provocador, dinâmico, que o ensino da diferença perpassa, respeitando as diversidades e as diferenças de pensamentos, habilidades e ações, assim como, com base na perspectiva pós-estruturalista da linguagem que concebe o conhecimento em estado de devir, ter a capacidade de se construir e reconstruir em cada ato, em cada instante, em cada diálogo estabelecido entre os sujeitos. E é por este devir que buscamos incitar o ensino através das linguagens e mais especificamente das artes, proporcionando esta oportunidade à criança de se constituir como ser de linguagem, deixando de lado o fazer “tarefeiro” em busca do novo, da criação/recriação da vivência de sua identidade cultural e respeito à diferença. De acordo com os estudos que foram surgindo e assegurando o ensino por meio das linguagens através das artes, surgem as Diretrizes Curriculares Nacional da Educação Infantil que destacam, em seu Art. 4º a respeito das propostas pedagógicas que:
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A criança, de acordo com as diretrizes, é sujeito do conhecimento porque participa ativamente da sua construção, de acordo com sua subjetividade e criatividade, levando em consideração as identidades culturais das crianças e suas vivências. Assim, é preciso pensar o currículo em estado de devir. Partindo desse contexto, “conceber um currículo em estado de devir implica, antes de tudo, admitir que as forças desejantes que o movem rumo à outra educação encontram-se em contínuo processo de criação e recomeço [...]” (Costa, 2013, p. 281). Para a autora, a pergunta pela criação do novo e pelo recomeço da criação pressupõe
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As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar que a criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. (Dcnei, p. 01, 2009).
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um questionamento sobre as formas tradicionais de educação e uma abertura aos “clarões de intensidade” que ofuscam a temporalidade e a espacialidade programáticas do currículo formal. É por meio do movimento da criação que “o território do currículo se desfaz e se desterritorializa em espaços de virtualidades, um jogo de intervalos ou entretempos, um nascimento, uma relação, um limite, um devir” (Costa, 2013, p. 149), sendo que o devir desse movimento é o recomeço da criação. É partindo dessa premissa que buscamos construir um currículo atento aos aspectos subjetivos de cada criança, um currículo como prática de significação: Como prática de significação, o currículo tem sido, sem dúvida, um dos artefatos educativos mais envolvidos nos processos de constituição de sujeitos, identidades e diferenças. Afinal, se o currículo assume grande produtividade nas formas pelas quais os sujeitos são cotidianamente interpelados a ocupar diferentes “posições” na dinâmica social, é porque sua existência depende, em grande parte, da materialidade das práticas culturais – as quais lhes dão sustentação e com as quais estabelece uma relação produtiva. (Costa, 2003, p. 31).
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O currículo não é, entretanto, como supõe a concepção realista, um local de transmissão de conhecimento concebido como mera revelação ou transcrição do “real”. O currículo, tal como a linguagem, não é um meio transparente, que se limita a servir de passagem para um “real” que o conhecimento torna presente. O currículo é também representação: um local em que circulam signos produzidos em outros locais, mas também um local de produção de signos. Conceber o currículo como representação significa vê-lo como superfície de inscrição, como suporte material do conhecimento em sua forma de significante. Na concepção do currículo como representação, o conhecimento não é a transcrição do “real”: a transcrição é que é real (Silva, 2001, p. 64).
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De acordo com Silva (2001), o currículo não pode ser visto como um local de transmissão do conhecimento e sim um local de produção de diversas culturas, um local de circulação e de produção de signos, diferente do que a concepção realista dispõe, concebendo o mundo com significados fixos, como uma mera transmissão do “real”. Os conhecimentos precisam ser construídos e reconstruídos, por um processo de ressignificação e construção do currículo novo e ousado.
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Podemos dizer que o currículo precisa estar aberto para o novo, para o desconhecido, transformar e se transformar. O currículo precisa desconsiderar a lógica binária do “ou isso ou aquilo”. Assim, numa visão pós-crítica, o currículo precisa ser bem mais do que a perspectiva realista propôs, ele precisa enfeitiçar, instigar a novos significados para as “coisas”, precisamos criar um currículo dinâmico que permita as crianças criarem, fabularem e recriarem na educação infantil. É preciso considerar o ser humano como um “agente livre”. Streck (2008, p. 21-23) afirma que “o que distingue o ser humano é o fato de ele ter a possibilidade de ser um agente livre, e a meta da educação seria formar este agente [...]”. Dessa forma, a linguagem é um meio de proporcionar o conhecimento de forma livre, aberto, dinâmico. Ela é capaz de dizer o que o indivíduo busca, que conhecimentos tem acumulado, quais suas vivências e seus reflexos em sua constituição através da arte de criar e recriar a partir de suas vivências cotidianas em uma determinada sociedade. Em seu “Ensaio sobre a origem das línguas” Rousseau (2008) reforça esta ideia quando diz que “a palavra distingue o homem dentre os animais: a linguagem distingue as nações entre si; somente se sabe de onde é um homem após ter ele falado. [...]” (Rousseau, 2008, p. 97). Nessa perspectiva, precisamos entender as particularidades de cada sujeito e respeitas suas subjetividades, pois o conhecimento não pode ser visto como algo externo. Dessa forma, na educação infantil, é preciso partir do interior de cada criança, buscar nela o que a faz querer aprender, respeitando as diversidades e as diferenças no desejo e na capacidade de querer e fazer de cada criança. Trabalhar com as linguagens por meio das artes desperta na criança o desejo por descobrir e viver o novo, o real. O importante é que o educador reconheça as crianças em suas individualidades, sem ter pressa para ensinar diversidades de conteúdos em conexão com o que as instiga a aprender. É preciso dar liberdade e autonomia para a criança construir-se, pois, “[...] o segredo da boa educação, pelo contrário, consiste em perder tempo, ou seja, em permitir que a criança veja, sinta e comece a fazer os seus juízos próprios [...]” (Streck, 2008, p. 36). Despertar na criança o desejo de aprender, pois, despertando esse desejo a criança desenvolverá dinamicamente suas descobertas e aprendizagens. Isso significa que a criança precisa ser motivada para querer aprender, e o professor precisa criar situações de aprendizagem que atraiam o seu interesse. E consideramos que o uso das linguagens nesse processo é relevante e motivador, abrindo espaço para a criança participar do “jogo da (re)criação do novo” enquanto elemento impulsionador de aprendizagens.
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Tal perspectiva pode ser exemplificada com ações inovadoras que a Instituição de Educação Infantil pesquisada, na cidade de Belém, vem fazendo no intuito de consolidar projetos que visam interligar currículo e linguagens, como é o caso dos “Projetos de Linguagens”, construídos por professores da instituição. Os projetos buscam dinamizar o ensino por meio das experiências das crianças e dos professores, apontadas no dia-a-dia de vivências no espaço. São projetos realizados por meio das “teias de linguagens” que interligam várias dimensões impulsionadoras aos projetos; a escolha das linguagens é feita de acordo com o que se pretende realizar durante a dinamização do projeto, estando um espaço sempre aberto à teia de linguagens com a possibilidade de emergirem outras linguagens, demostrando um currículo atento ao novo e à dinâmica do cotidiano das crianças. Cada turma elabora seu projeto e estes são sistematizados no grupo com os professores e organizados em conjunto, formando assim os “Projetos de Linguagens” da Unidade de Educação Infantil. Provisoriamente, podemos afirmar que o uso de projetos de linguagens permite a criança participar do processo de construção do conhecimento com entusiasmo e prazer, de forma dinâmica e afetiva, de modo que os sujeitos interajam, criem e recriem conhecimentos através de um currículo aberto ao “novo” por meio de uma relação entre currículo e linguagem, dado que as linguagens são mediadoras do processo do conhecimento, podendo ser percebidas nas manifestações artísticas presentes nos projetos no tocante a música, teatro, brincadeiras, dança e outras situações de aprendizagem. Nesse aspecto, o ensino atrelado aos projetos de linguagens na educação infantil tem incitado a criança ao interesse em conhecer-se e conhecer o mundo numa relação de troca de experiências com os adultos e ao mesmo tempo trocas de sentimentos e emoções, em que o conhecimento se (re)constrói nas relações vivenciadas diariamente.
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Este artigo teve como propósito demonstrar o processo inicial de construção do trabalho dissertativo que estamos realizando ao longo do curso de Mestrado em Educação no PPGED/UFPA, tecendo discussões teóricas acerca das dimensões das linguagens em uma Unidade de Educação Infantil de Belém-Pará, partindo de um estudo pósestruturalista para discutir a linguagem e o currículo na perspectiva da diferença, como algo que permite o jogo da criação, o começo e o recomeço dos conhecimentos e a ressignificação destes. Ao dinamizarmos as primeiras leituras teóricas, compreendemos que promover um currículo inovador e aberto se torna um caminho
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Conclusão
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para a construção subjetiva do educando em situações e ações com o mundo. Compreendemos, ainda, que através das linguagens e especialmente por meio das artes, a criança se depara com o novo, o desconhecido e constrói um conhecimento subjetivo de acordo com seus desejos e vontades. Partindo desse ponto, consideramos nestes estudos iniciais que é preciso promover ou abrir espaço para a criação autônoma do conhecimento, onde o conhecimento seja interessante para a criança e a sua construção ocorra desde o período da infância, pois este é um momento em que a criança se descobre enquanto sujeito do conhecimento. Sendo assim, se a criança participar de um ensino de reprodução deixará de conhecer o novo e terá um processo de aprendizagem de pura decodificação e repetição. Dessa forma, faz-se necessário analisar como as unidades de educação infantil estão dinamizando as práticas educativas na perspectiva do cotidiano escolar, para perceber se o contexto sociocultural das crianças está sendo levado em consideração na construção do conhecimento e da singularidade de cada criança e se o currículo proposto considera o ensino na perspectiva da diferença, além de verificar como acontece esse processo de dinamização do currículo partindo dos contextos diários dos sujeitos, vivenciando a construção do conhecimento a partir da perspectiva dos sujeitos, um conhecimento em constantes transformações e recomeços. Com base nos estudos iniciais desta pesquisa de mestrado, os primeiros contatos feitos na unidade nos demonstraram que apesar das dúvidas e anseios que os profissionais encontram para realizar este trabalho, já vem sendo observado um trabalho interessante e dinâmico, realizado por meio dos “Projetos de Linguagem” construídos pelos professores em consonância com o que desperta interesse na criança. Portanto, podemos finalizar dizendo que o trabalho experimental com múltiplas linguagens que esta UEI vem desenvolvendo, já vem apresentando efeitos positivos em sua dinamização, enquanto uma nova proposta que visa atender as diversidades e diferenças, mas ainda não podemos afirmar como os professores percebem o desenvolvimento do ensino na perspectiva da diferença, já que isso diz respeito a outros desdobramentos da pesquisa através das observações do cotidiano escolar, coleta de dados, entrevistas e documentos utilizados pela escola onde nos propomos a desenvolver a pesquisa. Este artigo pretendeu apresentar algumas discussões teóricas que já vem sendo realizadas no trabalho dissertativo de mestrado ao qual nos propomos a desenvolver em torno das dimensões das linguagens e sua importância no currículo da educação infantil. Consideramos relevante destacar que desenvolver uma pesquisa partindo da
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perspectiva cotidiana nos permite entender as dinâmicas do dia-a-dia de criação, invenção e recriação que se constroem no ambiente escolar, nos aproxima dos sujeitos e permite sentir como ocorre a construção do conhecimento no real, como o currículo se constitui nas ações e expressões diárias demonstradas pelas crianças e nos ajudam a perceber como o currículo real, “vivo”, “novo” é expressivo e dinâmico, para que possamos fugir do objetivismo do currículo formal, de pura decodificação da linguagem e de conhecimentos.
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BOTH, Sérgio José. A Filosofia da Linguagem e o Entendimento Humano. Tangaráda Serra-Mato Grosso, Editora: Sanches Ltda., 2007.Disponível em: <http://tangara.unemat.br/iii_cole/pdfs/lingua /001.pdf>. Acesso em: 05 ago. 2013. CORAZZA, Sandra. O que quer um Currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis: Vozes, 2001. COSTA, Gilcilene Dias da. Entre a política e a poética do texto cultural: A produção das diferenças na Revista Nova Escola. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, 2003. Disponível em: <http:// www.ufgs.br/dissertac_políticapoetica>. Acesso em: 10 set. 2013. ______. Currículo e Arte: Confluências Nietzsche-Deleuze. Revista Teias, v.14. n.31. 147-161. mai./ago. 2013. Disponível em: <http:// www.periodicos.proped.pro.br/index.php/revistateias/article/view/1105>. Acesso em: 10 set. 2013. ______. Curricularte: Experimentações Pós-Críticas em Educação Educ. Real., Porto Alegre, v. 36, n.1, p. 279-293, jan./abr., 2011. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/edu_realidade>. Acesso em: 10 set. 2013. DURAN, Marília Claret Geraes. Maneiras de pensar o cotidiano com Michel de Certeau. Diálogos Educ., Curitiba, v. 7, n. 22, p. 115-128, set./dez. 2007. Disponível em: <http://www.pucpr.br>. Acesso em: 14 out. 2014. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Científica. São Paulo: Atlas, 2007. LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: Abordagens qualitativas. São Paulo: EPV, 1986. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008. SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. STRECK, Danilo R. Rousseau & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
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Referências
Josué Leonardo Santos de Souza Lisboa Terminologia da piscicultura no Pará
TERMINOLOGIA DA PISCICULTURA NO PARÁ Josué Leonardo Santos de Souza Lisboa Resumo: O presente trabalho consiste na elaboração do glossário da terminologia da piscicultura, ramo da aquicultura, de cultivo de peixes, nos municípios de Belém, Castanhal, Peixe-Boi e Igarapé-Açu, no Estado do Pará. O corpus denominado PisciTerm é constituído de entrevistas com piscicultores, técnicos, engenheiros da pesca, professores especialistas, estudantes e trabalhadores braçais do dia a dia das fazendas, laboratórios e estações de piscicultura. Assim sendo, o objeto de estudo é o léxico especializado e as variantes terminológicas linguísticas e de registro pertencentes à piscicultura, delimitadas em três campos semânticos: reprodução induzida, engorda e comercialização. Têm-se, como ferramenta de auxílio para o levantamento, a análise, edição, a organização e distribuição dos verbetes, os programas computacionais WordSmith Tools (versão 5.0) e Lexique Pro (versão 3.3.1.). A pesquisa está ancorada nos procedimentos teórico-metodológicos da socioterminologia estabelecidos por Gaudin (1993) e Faulstich (1995, 2001, 2010). O objetivo é documentar, a linguagem técnica e as variantes orais dessa área do conhecimento humano, em expansão no mundo, no Brasil e no Pará, de grande relevância ambiental, econômica, nutricional e social, tornando-se uma importante ferramenta tanto para os profissionais da área, quanto para os demais profissionais, e a para todos os interessados pela terminologia da piscicultura. Palavras-chave: Socioterminologia. Glossário. Piscicultura.
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A linguagem de especialidade manifesta-se em todos os contextos sociais. Ela está presente nos meios de comunicação através do desenvolvimento econômico, técnico e científico da sociedade.
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Introdução
Josué Leonardo Santos de Souza Lisboa Terminologia da piscicultura no Pará
A piscicultura é um ramo da aquicultura, que tem como objetivo o cultivo e manejo de peixes, como o tambaqui, tambacu, pacu, pirarucu etc.(SEPAQ, 2013, p.04). Escolheu-se esta atividade por sua relevância no mundo, no Brasil e no Pará, pois é uma alternativa de produção sustentável de alimentos sem causar pressão aos estoques naturais de peixes ocasionados pela pesca extrativa. Além disso, tem despertado grande interesse por parte de pequenos e grandes produtores para exportação e do governo federal e estadual. Esse interesse se dá devido aos baixos custos na produção de alimento rico em proteínas, à geração de empregos e de renda e por ser uma atividade economicamente viável. Este trabalho tem como objetivo apresentar os resultados parciais da pesquisa de mestrado vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Letras-Linguística (PPGL/UFPA). A pesquisa em andamento consiste na produção do glossário dos termos orais da piscicultura no Pará. A coleta dos dados está sendo concretizada por meio de entrevistas com os socioprofissionais, nos municípios de Belém, Peixe-boi e IgarapéAçu. Os resultados parciais expostos, neste artigo, referem-seàs entrevistas feitas com quatro informantes: dois piscicultores de PeixeBoi, um piscicultor da estação da EMBRAPA, em Belém e um especialista da área de aquicultura/piscicultura. Busca-se com este trabalho contribuir para a documentação e análise dos termos representativos que concretizam a atividade da piscicultura no Pará.
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A terminologia é um campo da linguística e das ciências do léxico, de conhecimentos e práticas, que tem como objeto de estudo os termos técnico-científicos e lida com as relações entre os conceitos e termos de uma área especializada. As orientações terminológicas apresentam dois tipos de análise: in vitro e in vivo. A análise in vitro se deu com o estabelecimento da Teoria Geral da Terminologia (TGT) cujo enfoque tinha um princípio normativo, de padronizar, alcançar a univocidade dos termos, rechaçando os aspectos comunicacionais, pragmáticos e variacionistas da linguagem de especialidade. Por outro lado, a análise in vivo se deu com a fundamentação da Socioterminologia,reconhecendo que a análise terminológica deve considerar o contexto de produção e uso dos termos e expressando veementemente a variação nas linguagens de especialidade. Gaudin
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As ciências do léxico especializado: a Terminologia e a Socioterminologia
Josué Leonardo Santos de Souza Lisboa Terminologia da piscicultura no Pará
(1993, p.216) afirma que a terminologia é como “práticas linguísticas e sociais concretas dos homens que a empregam”. Assim sendo, para a concepção socioterminológica, as línguas de especialidade funcionam como qualquer língua natural, sem artificialismos, dando prioridade e importância à dimensão social, ao contexto de produção, à realidade do funcionamento dos léxicos especializados. Faulstich (2001, p.22) ressalta que “no quadro de uma interpretação socioterminológica, as variantes são resultantes dos diferentes usos que a comunidade, em sua diversidade social, linguística e geográfica, faz do termo”.Com isso, deu-se reconhecimento à variação terminológica nas línguas de especialidade. A piscicultura no mundo A classificação da atividade aquícola1, a se dá pela espécie cultivada, assim o cultivo de peixes é denominado de piscicultura. No mundo, a piscicultura2 é uma atividade importante para o controle e regularidade de organismos aquáticos para a produção de alimentos de alto valor proteico e de baixo custo à população. Em contrapartida à redução e à crescente pressão aos estoques pesqueiros naturais disponíveis, devido à pesca extrativa, de captura, desordenada, a piscicultura tornou-se uma alternativa economicamente viável. A importância da piscicultura é ratificada pela contribuição para o bemestar e a prosperidade no mundo, além de possibilitar meios de subsistência e renda para parte significativa da população mundial (FAO, 2012, p. 04).
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A aquicultura é a prática zootécnica que trata do cultivo de espécies aquáticas e semi-aquáticas (Camargo; Pouey, 2005). Quando se fala em piscicultura está atrelada, também, a aquicultura e os outros métodos de cultivo de pescado.
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A pesquisa com os socioprofissionais da piscicultura está em andamento. Até o momento há 10 informantes entre piscicultores, técnicos, especialistas, estudantes, da faixa etária entre 20 e 60 anos, do sexo masculino e feminino. Esses informantes foram entrevistados por intermédio de questionários, mas as entrevistas não se limitaram a isso, pois o que era observado no ambiente de trabalho e algumas questões que ficavam em aberto serviram de subsídio para coletar mais informações sobre o dia a dia da piscicultura nas fazendas, nos laboratórios e estações.
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Metodologia da pesquisa de campo
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Para a gravação, utilizou-se o gravador digital, tendo como média de gravação de aproximadamente 50 minutos para cada informante, para alguns mais de uma vez. Além disso, foram tiradas inúmeras fotos do ambiente de trabalho e foram feitos vídeos das ações de trabalho. Para a organização dos dados, tornou-se viável criar fichas terminológicas de registro.Obteve-se o auxílio dos programas computacionais Wordsmith Tools (versão 5.0), facilitando o processo de visualização da frequência e o contexto dos termos, e do Lexique pro (versão 3.1), que auxiliou na organização dos termos-entrada e a transposição desses para o documento Word para impressão. Para este artigo, utiliza-se um corpus parcial constituído do registro oral de quatro socioprofissionais da piscicultura, dos municípios de Belém e Peixe-boi, a saber:1) piscicultora-dona da fazenda de piscicultura em Peixe-Boi; 2) piscicultor-trabalhador braçal de fazenda de piscicultura em Peixe-Boi; 3)Piscicultor-técnicotrabalhador braçal da Embrapa-Belém; 4) engenheiro da pescaprofessor universitário da UFRA-Belém.Os termos apresentados são recortes da pesquisa em andamento, ainda faltando a transcrição, a análise,a documentação de outros termos e a visita a outros municípios.
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O glossário da terminologia da piscicultura no Pará apresenta 139 verbetes, entre termos e variantes, distribuídos em 3 campos semânticos. Dos 139 termos, 40 são ilustrados, expondo a ação que o termo denota ou o objeto referido. Apresenta-se a distribuição quantitativa, percentual, dos termos, em relação aos campos semânticos, às categorias gramaticais e às estruturas terminológicas. Em relação aos campos semânticos, o campo “engorda” é o que compõe mais termos, são 101, que representam um percentual de 93%. O segundo campo semântico mais produtivo é a “reprodução induzida”, com 5 termos, que equivalem ao percentual de 4%. O terceiro campo é a “comercialização”, com um percentual de 3%, com 3 termos. Quanto às categorias gramaticais, há uma predominância de substantivos femininos, são 72 termos substantivos femininos, que representam um percentual de 52%. O percentual de substantivos masculinos é de 44%, que equivale a 61 termos. No entanto, tem-se uma ínfima presença de adjetivos e verbos. Há 3 adjetivos, que representam um percentual de 2%. Os 3 verbos equivalem a um percentual de 3%.
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Resultados da pesquisa terminológica
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Já a distribuição das unidades terminológicas simples (UTS) e unidades terminológicas complexas (UTC), prevalecem as unidades terminológicas simples (UTS) com um percentual de 63%, que equivale a 88 termos. Por outro lado, as unidades terminológicas complexas (UTC) apresentam um percentual de 37%, que equivale a 51 termos. Metodologia da organização do glossário da piscicultura A macroestrutura do glossário Os verbetes estão organizados em ordem alfabética e distribuemse em campos semânticos, a saber: reprodução induzida, engorda e comercialização. A microestrutura do glossário Os verbetes estão estruturados da seguinte forma: a) termo entrada; b) campo semântico;c) categoria gramatical;d) definição;e) contexto;f) variante; g) nota; h) remissiva. Ressalta-se que no contexto é indicada a abreviatura para os informantes entrevistados:I01PFPB: Informante 01 Piscicultora Feminino Peixe-Boi; I02PSGMPB: Informante 02 Piscicultor Serviços gerais Masculino Peixe-boi;I03PSGMPB: Informante 03 Piscicultor Serviços gerais Masculino Peixe-boi;I04EPMBEL04: Informante 04 Especialista em piscicultura Masculino Belém; I05TEMBEL: Informante 05 Piscicultor Técnico da Embrapa Masculino Belém. Amostra do glossário dos termos da piscicultura no Pará
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A Apossiuga [Engorda] s.f. Edificação construída dentro do viveiro para criação de porcos. “(...) nas fazendas, o camarada que tem açude, tem um viveiro, aí tem criação de porcos, aí ele aproveita e faz a <apossiuga>.” (I04EPMBEL04) Variantes: casa, casinha, possiuga, casa de criação de porco, casa de palafita, chiqueiro Nota: É uma atividade consorciada de peixe e suíno cujo objetivo é a adubação da água do viveiro através das fezes dos porcos. Ver: gaiola, aprisco, consórcio
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B Balança [Engorda, comercialização] s.f. Instrumento utilizado para a pesagem dos peixes. “é a <balança> pra pesar o peixe pra venda...” (I02PSGMPB) Nota: A balança é utilizada tanto na despesca parcial, para biometria, quanto na despesca total, para a comercialização dos peixes. Ver: despesca, despesca parcial, despesca total.
C Consórcio [Engorda] s.m Atividade praticada na piscicultura que admite a criação de seres do ecossistema aquático e seres do ecossistema terrestre com o objetivo deaproveitar racionalmente a mesma área e aumentar a rentabilidade da produção. “(...) olha, nesse caso aí tá caracterizando um <consórcio>no caso seria o peixe e o frango ou peixe e o porco ou o peixe e a cabra ou um caprino...” (I04EPMBEL04) Nota:há a possibilidade de haver o consórcio de peixe com arroz, atividade denominada de rizipiscicultura, peixe com gado, peixe com cavalo, peixe com galinha, peixe com pato. Ver: policultivo, apossiuga, aprisco, casa, excremento.
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F Fitoplanto [Engorda] s.m. Organismo de origem vegetal, responsável pela produtividade primária, que habita no meio aquático. É uma fonte de alimento natural consumida pelas larvas, alevinos e peixes no viveiro.
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Despesca [Engorda] s.f. Atividade de retirada dos peixes do viveiro. "se tiver os peixes, ou camarões outro organismo dentro é <despesca>... aí com a <despesca> a gente vai diminuindo o nível da água e vai tirando os organismos, né?"(I02PSGMPB) Nota: a despesca pode ser parcial, quando o objetivo é ter a noção do peso e tamanho dos peixes, e total, quando o objetivo é o abate dos peixes para a comercialização. Ver: despesca parcial, despesca total.
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“(...) <fitoplanto>... é que na realidade o que acontece... todos os tanques... eles têm um solo perfeito, então eles também já tem alimento natural do peixe...”(I01PFPB) Variante: fitoplâncton, fito, microalgas, microorganismos Nota: Os fitoplânctons são considerados os seres mais importantes da água por serem a base de alimentação das larvas, alevinos e peixes no viveiro. Ver: zooplâncton, produtividade primária, produtividade secundária, alimentação natural, excremento, consórcio.
M Monge [Engorda] s.m. Edificação de concreto que serve para controlar o escoamento da água no viveiro. “é o< monge>... serve para o controle da água do açude...”(I02PSGMPB). Nota: geralmente a entrada de água no viveiro é de um lado oposto ao monge. Ver: mangueira de escoamento da água, joelho articulado.
O Oxigenar a água [Engorda] S.T.v. Fazer com que a água aumente a superfície de contato com o ar para elevar o teor de oxigênio no viveiro “(...) a própria natureza já ajuda a <oxigenar a água> dependendo da estação do dia, ser um dia de sol bem quente, bem ventilado isso também já ajuda a <oxigenar a água>(I01PFPB). Nota: a oxigenação da água pode acontecer de forma natural, com os ventos, e artificial através de equipamentos de aeração, da limpeza e adubação química do viveiro. Ver: aerador, oxigênio.
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R Recria1 [Engorda] s.f. Fase na qual o piscicultor produz peixes juvenis para comercializá-los a estabelecimentos de pesque e pague. “(....) o que seria a< recria>? a produção de juvenis... aí depende muito, tem produtor que compra pós-larvas, compra alevinos, aí produz juvenis, aí vende pra pesque e pague, o
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cara trabalha só com a produção de juvenis, trabalha com a produção de juvenis...” (ITEMBEL03) Variante: produção de juvenis Nota: esta fase de produção de juvenis é exclusiva para a comercialização a empreendimentos de pesque e pague. Ver: recria2, engorda, engorda final Recria2 [Engorda] s.f. Fase na qual o piscicultor produz peixes adultos com o objetivo de comercializá-los aos supermercados, às feiras, aos mercados até chegar ao consumidor final. “agora se ele for um piscicultor que trabalha com a engorda do peixe pra vender pro consumidor final ou pro atravessador, eu posso trabalhar com duas fases: <recria> e engorda” (I05TEMBEL). Nota: Após a compra de pós-larvas e de alevinos, o piscicultor faz a recria e a engorda dos peixes. Ver: recria (1), engorda, engorda final, produção de juvenis Rede grande [engorda, comercialização] S.T.s.f. Instrumento utilizado para a retirada parcial ou total dos peixes no viveiro “a gente tem uma <rede grande>... se tiver como meter e torar a rede no meio assim pra puxar o peixe pra cá a gente puxa... aí a gente pesca bastante peixe...”(I01PFPB). Variante: rede Nota: a rede é utilizada na despesca parcial para análise do peso e tamanho do peixe ou na despesca total para a comercialização. Ver: despesca, despesca parcial, despesca total.
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T Tambaqui [reprodução induzida, engorda, comercialização] s.m. Principal peixe reproduzido e cultivado nas estações e fazendas de piscicultura. “o <tambaqui> ele tem a escama mais escamuda... aquela escama bem mesmo que tu vê... e a escama amarela porque tem a escama bem amarela...”(I03PSGMPB) Nota: é um peixe redondo que apresenta escamas, coloração preta e amarelada. Tanque de reserva de peixe [Comercialização] S.T.s.m. Ambiente revestido de concreto construído para armazenar os peixes para comercialização.
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“isso aí é o <tanque de reserva de peixe>... por exemplo. a gente quer vender quantos quilos... aí a gente pega do açude grande aí coloca neles pra ir vendendo de pouco..”(I03PSGMPB) Ver: tanque.
V Viveiro [Engorda] s.m. Ambiente escavado na terra destinado ao cultivo de peixes. "... nesse caso aí, é um <viveiro>, não é um tanque, por que é um <viveiro>? porque foi cavado, né? e tem um... se você for perceber, ele tem uma rampazinha, onde tem um... mato, as gramíneas... tá caracterizado um ambiente próximo do ambiente natural..." (I05TEMBEL). Variantes: viveiro escavado, poço, açude Nota: Os viveiros apresentam pouca profundidade e terreno de solo argiloso e impermeável. Ver: tanque, tanque-rede, tanque de concreto, tanque escavado, tanque de reserva de peixe.
Considerações finais A pesquisa para a documentação dos termos da fala dos socioprofissionais da piscicultura no Pará está em andamento. Este artigo é uma amostra de 13 termos que concretizam um processo de entrevistas, gravações, transcrições e análises baseado nas concepções teórico-metodológicas da terminologia e da socioterminologia. Sendo assim, organizou-se, neste artigo, um pequeno glossário com o objetivo de apresentar os termos na modalidade oral da piscicultura. A riqueza linguística e terminológica é indubitável, pois houve descrição e compartilhamento do conhecimento, das experiências, da cultura dos integrantes desse grupo de socioprofissionais, por meio do seu léxico especializado, resultando em 139 termos da pisicicultura.
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CAMARGO, S.G.O. de; POUEY, J.L.O.F. Aquicultura: um mercado em expansão. Revista brasileira de agrociência, Pelotas, v.11, n.4, p.393-396, 2005. FAULSTICH, Enilde. Aspectos de terminologia geral e terminologia variacionista. Tradterm 7, 2001, p. 11-40.
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Referências
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FOOD and Agriculture Organization of the United Nations.The state of world fisheries and aquaculture. Fao, Fisheries and aquaculture department. Rome, 2012. GAUDIN, François. Pour une sócio-terminologie: des problèmes sémantiques aux pratiques institutionnelles. Rouen: Publications de l’Université de Rouen, 1993. KRIEGER, Maria da Graça e FINATTO, Maria José Bocorny. Introdução à Terminologia: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2004. PARÁ. Secretaria de Estado de Pesca e Aquicultura. Piscicultura. Belém: SEPAq, 2013.
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TERRITÓRIO INDÍGENA: a aprendizagem mediada pelos saberes tradicionais e culturais do povo Tembé
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Resumo: A pesquisa está em andamento e tem o propósito de discutir como se constrói o conhecimento da criança indígena, nas aldeias Sede e Cajueiro, situadas na Terra Indígena Alto rio Guamá. Apresenta as práticas cotidianas que viabilizam a aprendizagem da criança em território indígena. Nesse contexto o saber da criança é construído pela oralidade, tendo como suporte as brincadeiras, a prática cotidiana e o ambiente que a cerca. Mediante essa realidade cabe registrar como esse conhecimento é repassado, visto que as crianças estão sempre presentes na ação cotidiana. Com isso a situação a ser investigada neste espaço se faz a partir do olhar da criança Tembé como percebe o universo de conhecimento e aprendizado de seu povo. Ainda nesta dinâmica, espera-se identificar como a criança entende as expressões culturais como a pintura corporal, dança, canto e a língua materna, considerados processos identitários do grupo. Este trabalho tenta analisar como o conhecimento tradicional da criança Tembé, em consonância com as diversas realidade sociais e culturais, são significativos para a identidade da criança neste contexto, pois é necessário entender questionamentos centrais como: Qual a função social da criança Tembé? Como é constituído o conhecimento da criança em relação a sua identidade? A pesquisa utiliza o método etnográfico, e ainda como suporte a observação participante, entrevistas semi-estruturada e registro audiovisual. Os sujeitos envolvidos foram as crianças, professores indígenas, pajés, os idosos que são responsáveis pela continuidade e repasse da cultura. Diante dessa vivência cotidiana a criança Tembé vivencia momentos relevantes de aprendizagem, configurados desde o nascimento até a fase adulta, como o ritual do bebê, a festa do mingau, a festa da moça (Wyrau
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Lena Cláudia dos Santos Amorim Saraiva
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haw) entre outros. Palavras-chave: Saberes Criança Tembé.
Tradicionais.
Aprendizagem.
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No decorrer do artigo utilizarei a sigla (TIARG). O termo brincadeira é utilizado pelo povo como sinômino de festa.
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Com base numa perspectiva etnográfica este artigo analisará a aprendizagem do povo Tembé, baseado nos saberes e práticas dos mais idosos da aldeia levando em consideração todos os ritos e eventos culturais, que de certa forma se configura como um processo identitário de um povo. O registro desses saberes se efetivou na Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG)1, situada no Estado do Pará, próximo da divisa com o Estado do Maranhão, abrangendo os municípios de Santa Luzia do Pará, Nova Esperança do Piriá e Paragominas. A TIARG é banhada no seu limite norte pelo curso alto do rio Guamá e no limite sul pelo curso alto do rio Gurupi. Atravessam também a TIARG os rios Piriá, Coaraci-Paraná, desaguando no rio Gurupi. O ritual é considerado como um dos momentos de socialização e transmissão dos conhecimentos Tembé, pois durante todo o período de preparação para esta “brincadeira2”, as aldeias coletam matérias-primas como: jenipapo, penas de galinha e de pato para elaboração da indumentária do ritual, assim como também a caça, que é alimento indispensável servido no ritual. Logo após a identificação das jovens que anunciam o primeiro ciclo e depois do período de isolamento do grupo. A família da jovem oferecerá à comunidade o mingau de manicoera, depois do primeiro período de reclusão que dura uma semana, a jovem será pintada novamente de jenipapo, neste momento é oferecido o mingau à comunidade que tem como objetivo anunciar o primeiro ciclo da jovem. Durante essa fase a jovem fica em repouso deitada numa rede e só levantará no momento de servir o mingau aos convidados. De acordo com a tradição Tembé a Wyra’u haw (Festa da Moça) acontece na ramada durante cinco dias, a cantoria se inicia no primeiro dia do ritual entoada por homens e mulheres das diversas aldeias com acompanhamento dos maracás e as batidas dos pés no chão, acompanhando o ritmo dos cantos. Durante o período da festa a cantoria é organizada pelos pajés, caciques e pelos homens mais idosos do grupo.
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Introdução
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As crenças, ritos e cultos são efetivados e sentidos de diferentes formas, contribuindo essencialmente para o aprendizado e educação das pessoas. Durkheim (1978) afirma que os ritos nascem nos grupos e sua função é fazer emergir, manter ou recriar certas ideias ligadas à religião. Assim, o rito não é uma celebração fechada no tempo e no espaço, transcede as delimitações físicas dos locais onde acontecem. Considerando as regras do ritual do povo Tembé passo a descrever a Wyra’u haw (Festa da Moça) que é um dos símbolos da cultura e da aprendizagem desse povo. É importante enfatizar na descrição dos eventos do povo Tembé, que tanto as crianças como os jovens estão presentes em todos os rituais, atentos a tudo, e orientados por um membro mais idoso do grupo. Dessa forma, este trabalho não pode caracterizar-se os sujeitos, pois todos aprendem de forma igual, seja criança, jovem ou adulto, pela oralidade e pelas práticas sociais e culturais. A Wyra’u haw (A festa da moça), basea-se primeiramente na “formação da menina” que consiste no primeiro ciclo mestrual, quando a menina anuncia à mãe sua primeira mestruação. Logo a mesma passará pelo processo de preparação, que se inicia com a Kàwy’Uhaw (A Festa do Mingau), que antecede a Wyra’u haw (A Festa da moça). Esse evento constitui um ritual de passagem, conforme Van-Gennep (1997), o qual caracteriza os ritos de passagem em três categorias: os ritos preliminares (separação), liminares (margem) e pós-liminares (agregação). Analisando a Wyra’u haw (A Festa da Moça)ajovem adolescente passa por todas essas fases do ritual. No momento do primeiro ciclo a jovem Tembé é pintada com jenipapo e colocada no isolamento dentro de sua casa chamada pelos Tembé de “Tukaz” que significa“quarto fechado”. Essa separação do grupo é pensada por Turner (1974) como a fase limiar, ou seja, é a fase intermediaria entre o distanciamento e a reaproximação. Considerando o conceito de Van Gennep (1997) sobre o ritual analisase o momento da “Tukaz” como os Ritos preliminares (separação), ou seja, quando a menina permanece na “Tukaz” por cinco dias, tendo contato unicamente com as mulheres mais velhas da família (mães e avós). Depois de cinco dias o “pai acorda bem cedo, começa a fazer barulho para que a moça assustada saia da “Tukaz”. Dando continuidade ao processo, os pais vão oferecer o mingau para a aldeia e posteriormente marcam uma data para a Wyra’u haw (Festa da Moça).” A festa do mingau é preparada pela família durante o dia a moça fica em repouso e só levanta à noite para servir o mingau aos participantes. Esse processo é considerado por Van-Gennep (1997) como Ritos
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Liminares (margem), pois pode considerar-se a “Festa do Mingau” como a preparação para a festa maior e também o tempo de espera das outras moças se formarem. Todos os grupos sociais possuem eventos relacionados com o processo de formação de pessoas, considerados especiais e únicos. Assim Peirano (2003) destaca que os rituais podem ser simples ou elaborados, formais ou informais. Já Van-Gennep (1978) explica que existem outras categorias de rituais classificados como ritos de iniciação à puberdade fisiológica e social, tais como a circuncisão e a mutilação. Em algumas sociedades o rito de puberdade tem em sua essência o caráter sexual, pois caracteriza a passagem dos sujeitos de mundo assexuado para o sexuado a partir do desenvolvimento corporal. Dependendo do contexto, os rituais e cerimônias distinguem-se das demais atividades, as quais são distribuídas em todo o grupo. Assim, de acordo com o ritual Tembé uma semana antes da festa os Tembés saem para procurar caça como o macaco guariba, porcão e o pássaro chamado “nambú”, caça que será servida no momento final do ritual. Assim, as tarefas vão sendo divididas durante o dia. Quando os caçadores retornam a aldeia com o alimento que será servido no último dia do ritual e levam para a casa do Moquém3.
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Local onde é assado toda a caça servida no ritual.
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Fig. 01: Pintura da meia lua ( Zahy mupinin haw). Aldeia Cajueiro/2012.
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A ordem dos casais é estabelecida de acordo com a jovem, ou seja, quem teve o primeiro ciclo mestrual, a primeira à anunciar seu ciclo é considerada a dona da festa e sua responsabilidade é comandar a dança juntamente com seu par, ensinando as outras jovens o ritmo da dança. No decorrer do ritual a dona da festa é vigiada pela família e pelas mulheres mais idosas da aldeia, pois a mesma tem a responsabilidade de orientar as demais jovens que participam do ritual. As regras estabelecidas para os rapazes estão relacionadas com a questão alimentar, pois não podem consumir algumas caças como anta, veado, tatu, porco do mato entre outros, esses alimentos só serão consumidos pelos rapazes após a Wyra’u Haw (Festa da moça). Outro elemento significativo no ritual é a pintura corporal, utilizada pelos rapazes chamada “de meia lua” (zahy mupinin haw) na parte superior do corpo, nas pernas pinta-se do meio da perna para baixo e no rosto é pintado uma espécie de “bigode”. A seguir a figura da pintura corporal utilizada pelo rapaz na Wyra’u haw (Festa da Moça). Na primeira Wyra’u haw (Festa da Moça) realizada na aldeia Cajueiro, percebi a complexidade do ritual, pois todos os aspectos que compõem o ritual acontece quase simultaneamente, portanto é preciso estar atento as dinâmicas ocorridas neste evento. De toda forma é sempre uma expectativa no sentido de tentar registrar todas as situações que envolvem o ritual nos seus diversos aspectos. Primeira Wyra’u haw (Festa da Moça) Aldeia Cajueiro
O senhor Francisco é o professor itinerante nas aldeias Tembé e falante de quatro línguas incluindo a língua Tembé. Tem a missão de ensinar aos seus parentes todo o seu conhecimento relacionado à cultura Tembé. É considerado pelo grupo como um “dicionário vivo”, devido sua atuação nos diversos eventos sociais e culturais ocorrido na Terra Indígena Alto rio Guamá. Aos 89 anos já perdeu a conta de quantas Festas da Moça já realizou, durante a primeira Festa da Moça na aldeia Cajueiro, o senhor Francisco coordenava todas as etapas para que tudo estivesse de acordo como era no seu tempo, todo seu conhecimento veio de seus pais e avós.
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Sobre este ritual, o professor Francisco4 afirma que é neste momento que a identidade do povo Tembé é reafirmada. A Wyra’u haw (Festa da Moça) é uma expressão cultural que mobiliza toda a aldeia: os homens são responsáveis pela caça que será consumida na aldeia e as mulheres se encarregam da preparação da comida e bebida que será servida, assim como a confecção dos trajes que os jovens utilizam no ritual.
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Com a distribuição de tarefas é perceptível que os elementos que compõem o ritual como os maracás, o cigarro de tawari, a preparação do jenipapo e do urucum, e também o preparo da defumação feita com uma resina chamada breu. De acordo com a organização da divisão do trabalho dentro dos padrões culturais do povo Tembé, percebeu-se a função social de homens, mulheres e crianças neste processo, de acordo com o ritual apresento o lugar escolhido para festa é a ramada, a qual é ornamentada por homens, mulheres, jovens e crianças no primeiro dia, já o cigarro, o maracá são os adereços colocados na ramada. Assim, o conhecimento tradicional é expresso nos saberes e práticas rituais, permitindo entender os aspectos sutis da cultura Tembé e seus diversos significados. Pois segundo Dantas (2003) a complexidade do processo de construção do conhecimento tradicional relaciona-se intimamente com a organização social, ou seja, com todo o complexo de representações simbólicas interligadas à atividade social de um povo. (p.100).
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Na cantoria os homens fazem a primeira voz e as mulheres a segunda voz. Durante o dia homens e mulheres cantam dentro da ramada. Já à noite os cantores se deslocam a para frente da ramada. Nos três primeiros dias a cantoria inicia 7:30 às 12:00hs, retornando 14:00 às 17:00hs, e das 19:00 às 22:00hs. Nos últimos dois dias, quando se aproxima o final da festa a cantoria segue direto tendo intervalo somente para o almoço. Do quarto para o quinto dia, a cantoria continua até a madrugada e só encerra no final da tarde do quinto dia. No final do ritual que os Tembé chamam de “virada”, todos os participantes e convidados, se quiserem, podem compartilhar a dormida na ramada, sem parar o ritmo, apenas diminuindo a entonação durante a madrugada. Na ramada todos acordam ao som dos belíssimos cantos na língua Tembé. Os cantos entoados invocam os pássaros do dia e da noite, estabelecendo vários ritmos com o acompanhamento do maracá. Os cantos da festa são “músicas do pássaro maguari, do bem-te-vi, do tucano, do gavião real, do roxinol, do maracá, da borboleta, da onça preta”. Uma parte dos cânticos é entoada na ramada durante o dia e outros à noite ao ar livre. Segundo o pajé, “no momento do canto, não
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A cantoria
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se deve passar pela frente da ramada, porque pode pegar a caruanã5 e cair morto no chão”. O trabalho de Galvão (1949) descreve também que os Teneteharas já se referiam aos sobrenaturais pela designação genérica de Karowara. A comida no ritual Na tradição Tembé os alimentos são servidos da seguinte forma: o primeiro alimento a ser preparado é um pássaro conhecido como Nambu (Crypturelles Strigulosus). Para este ritual foram preparados dois Nambus, depois de tratados são levados ao fogo de brasa, logo colocados para ferver na água e sal até a carne do pássaro ficar pronta para ser desfiada. O último processo consiste em misturar a carne de ave com a farinha que será pilada até ficar homogênea, esta mistura é enrolada à mão em forma de pequenos bolinhos. Esse ato, no ritual, é uma forma de preparação do corpo da jovem para receber outros alimentos, como se observa nas imagens abaixo. Fig. 02: a) Bolinho de Nambu utilizado no ritual. b) Moça comendo bolinho de Nambu.
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Na explicação do pajé caruanã são visitantes de outro mundo, que se aproximam ao ouvir as músicas e os sons do maracá.
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Depois que a moça come o bolinho de Nambu, ela vai distribuir os bolinhos para os participantes da festa. Os outros alimentos utilizados no ritual é o macaco Guariba e o porco que, depois de assados na brasa e cozido, a sua carne será desfiada para ser misturada com farinha, formando uma farofa que será servida à comunidade.
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Fotos: Lena Saraiva/ Julho 2012.
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No ritual vários aspectos acontecem simultaneamente tais como o preparo da comida, a pintura corporal dos rapazes e moças, assim como a preparação de macacos guariba (macho/fêmea) que são utilizados no ritual para uma encenação específica na qual são escolhidos dois rapazes que dançarão com os macacos na frente dos jovens que participam do ritual. (Ver figura 03). Fig. 03: a) e b) Dançarinos e os macacos Guaribas.
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A Wyra’u haw (A festa da moça) é um ritual em que os Tembé reafirmam a identidade e garatem a transmissão dos conhecimentos dos mais antigos para toda a comunidade. No decorrer da festa os Tembé apresentam aspectos essências da sua cultura, associados principalmente à identidade de seu povo. Nessa trajetória, vários eventos reafirmam a identidade coletiva considerada por Cardoso de Oliveira (2006) como um aspecto que só pode ser vivenciado no grupo. Essa vivência coletiva é também uma expressão do conhecimento tradicional, definido como aquele produzido pelas sociedades possuidoras de rasgos culturais específicos que as diferenciam das sociedades nacionais onde estão imersas. (López Garcés apud Zerda: 2003). Assim essa diferenciação é visualizada no ritual nas diferentes fases. No ritual se transmite o conhecimento do pajé e dos mais antigos, é nesse espaço de aprendizado que toda comunidade se fortalece. Segundo Francisco essa é uma das formas de repassar às novas gerações a riqueza cultural existente na Wyra’u haw (A festa da moça), pois segundo os Tembé tudo que acontece na festa é cultura Tembé.
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Foto: Lena Saraiva-Julho 2012.
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Na festa todos os momentos são únicos. Como afirma Puluta6, Francisco e Reginaldo7, então todos (crianças, jovens, professores, convidados) devem estar atentos para aprenderem o que é a “cultura Tembé”. Cunha (2009) reafirma a existência de umapluralidade de regimes de conhecimentos e de culturas. O modo de conceber esses direitos depende de como se entende a cultura. Já para Geertz (1989, p.61), o conceito de cultura discute que “Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens”. Diante da reflexão de Geertz é importante destacar que para os Tembé todos os elementos que envolvem o ritual estão associados à cultura e a identidade.
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Liderança política na aldeia Cajueiro. Cacique da aldeia Cajueiro.
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A pintura corporal é um aspecto importante no cotidiano Tembé, destacada no momento em que os adultos ensinam às crianças técnicas da pintura corporal. A pintura no corpo é feita com o sumo do jenipapo. Para conservar a tinta é necessário misturar o sumo do fruto com o algodão, para que a tintura esteja boa no momento de ser utilizada. É importante ressaltar que durante a festa, homens, mulheres e crianças utilizam um único grafismo de pintura corporal chamado de “meia lua” e os convidados também compartilham esse momento utilizando a mesma pintura. Do ponto de vista dos Tembé, todas as fases do ritual têm um significado que é embasado na forma como o povo concebe cada objeto ou ação que compõem o ritual. É relevante destacar que nas sociedades indígenas a pintura corporal tem grande importância e significado, podendo ser uma expressão da beleza, assim como uma preparação à guerra. No caso em estudo, a pintura oficial utilizada durante o ritual é a Zahy Mupinin haw (pintura da meia lua) e que segundo Chico-rico, “a pintura utilizada é um remédio para a comunidade, então a pintura corporal representa a saúde de seu povo.” De acordo com esta explicação, pintar o corpo todo dos jovens significa proteger a saúde deles. A pintura corporal de acordo com as lideranças é um momento de socialização do conhecimento do grupo, onde os mais antigos vão ensinar a geração mais nova, contudo é importante considerar as diferenças existentes em cada traço da pintura.
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Pintura Corporal
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As imagens a seguir retratam como as crianças vão dominando a técnica da pintura corporal, esse momento de aprendizado principalmente das crianças segundo Chico-rico é considerado pela comunidade como um momento de respeito pela cultura do seu povo. Fig. 04: a) Preparação do Jenipapo, b) aprendendo a pintar e c) Tirando semente de urucu.
Foto: Lena Saraiva.
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Aplicada no corpo, a pintura possui uma função essencialmente social e mágico-religiosa, mas também a maneira reconhecidamente bonita e correta de apresentar-se havendo aqui uma correspondência entre o ético e o estético. Em muitas
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A pintura corporal para os indígenas Tembé tem sentidos diversos, é sinônimo de festa, de guerra como também a busca pela estética e principalmente pelos valores e conhecimentos que são transmitidos através dessa dinâmica que envolve toda comunidade. Nessa reflexão Lux Vidal (1985) diz que:
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sociedades indígenas, a decoração do corpo confere ao homem a sua dignidade humana, o seu ser social, o seu significado espiritual e identidade grupal.
No estudo de Gallois (1993) sobre os Waiãpi, demonstra as diferenças internas que são abordadas pela pintura corporal e também a relação com o sobrenatural. Assim a pintura corporal é regida de acordo com o conhecimento de cada grupo. Todas as fases que compõem a festa têm a vigilância de um adulto ou das pessoas mais idosas da aldeia Cajueiro que dominam todas as fases do ritual. Outro momento associado às várias formas de ensinar a criança é quando seu Chico rico avisa com um berrante 8 que a cantoria vai continuar, depois de um intervalo de uma hora. Músicas e danças
Berrante, também conhecido como chifre ou corno, é uma corneta feita de chifres de boi ou de outros animais. É uma espécie de buzina usada desde a antiguidade por pastores e atualmente por vaqueirosbrasileiros e africanos para chamar o gado no campo ou no transporte por intermédio das comitivas.
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As pessoas mais idosas relatam que na cultura Tembé se aprende olhando e fazendo. No momento que Chico-rico toca o berrante anunciando o retorno da cantoria, as crianças se aproximam e ficam observando todo o ensinamento que é repassado neste momento por Chico-rico. Os conhecimentos são repassados de pai para filho ou de irmão para irmão e na integração das crianças nas diversas atividades ocorridas no momento do ritual, onde o saber é reconstruído e Geertz (1997), analisa o sentimento que um povo tem pela vida, o qual é transmitido nos diversos segmentos de sua cultura, como através da arte, da religião, da moralidade, da ciência, do comércio, da tecnologia, da política, das formas de lazer, do direito e até da forma em que organizam sua vida prática e cotidiana. Os Tembé consideram que no momento de socialização a aprendizagem é efetuada de forma coletiva e nas várias etapas que constituem o ritual, Viveiros de Castro (2000, p. 167) afirma que: A produção de tais conhecimentos possui múltiplas dimensões referentes à própria organização do trabalho dos povos tradicionais, extrapolando os elementos técnicos e englobando o “mágico, o ritual, e enfim, o simbólico”. Os conhecimentos tradicionais podem assumir a forma de histórias, rituais, práticas agrícolas ou medicinais.
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A imagem a seguir registra como a aprendizagem se realiza na prática cotidiana e no momento da Festa. Fig. 05: Criança Tembé tocando Maracá.
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De acordo com Pinto (2003) o conhecimento tradicional caracteriza-se por ser coletivo, uma vez que é desenvolvido de maneira coletiva no seio das sociedades. Deste modo, ainda que os indivíduos ou grupos detentores desses saberes determinem os seus autores, estes conhecimentos são resultado da estreita ligação e contacto que estes povos têm com o meio ambiente biofísico e social. Já para Overing (1988) seu estudo com os Piaroa, fica claro que o conhecimento e o aprendizado são direcionados para o amadurecimento e a maturidade, pois deve se estabelecer a responsabilidade e a capacidade de adquirir conhecimentos sendo necessário compreender a noção de pessoa pela busca do equilíbrio dos sentidos e do pensamento. López Garcês (2007) enfatiza que a proteção dos conhecimentos estão associada aos diversos saberes expressados cotidianamente nos rituais, narrativas orais, cultura material entre outros. Faz necessário destacar que o conhecimento tradicional do povo Tembé está associado às manifestações culturais e à memória coletiva que é acionada nos momentos de festa. Para os Tembé, é necessário registrar toda a trajetória de seu povo no que se refere ao conhecimento tradicional, buscando nos “arquivos vivos”, que segundo os Tembé são os pajés e as pessoas mais idosas das aldeias. Essa estratégia seria uma forma de preservar o que é considerado pelo povo como “cultura Tembé”. Neste sentido é
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Foto: Lena Saraiva /Julho 2012.
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importante enfatizar como o povo Tembé se apropria do conceito de “cultura”, para identificar e caracterizar seus diversos ritos. Com o sentimento de que “a cultura é tudo o que pode ser repassado para gerações futuras”, rito chega à fase final.
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O ritual é um sistema cultural construído na vida cotidiana de um povo, caracterizado por regras e performances específicas. No caso dos Tembé o ritual A Wyra’u Haw (Festa da moça) é efetuado para apresentar os jovens que já podem se casar e ter filhos, isto é entrar na fase da vida adulta. Os adolescentes vivem um período novo em sua vida, buscando, definir o seu papel dentro do círculo social no qual estão inseridos. Nessa nova fase de transição para a idade adulta, novas relações interpessoais são vivenciadas e estabelecidas, por meio da interação dentro do grupo. Os jovens Tembé recebem dos homens idosos todos os ensinamentos de como se tornar um bom esposo e a sua responsabilidade, caso alguma das jovens lhe escolha para marido. Mesmo que não seja escolhido no momento da festa, ele já estará preparado para contrair o matrimônio. Já as meninas também são ensinadas pela sua mãe e avó, a se tornarem excelentes esposas. O ritual é o momento de muito aprendizado, pois ambos terão que mostrar para a comunidade que já podem assumir uma família. Outro aspecto predominante na festa, segundo os pajés, é fechar o corpo dos jovens para que eles possam se alimentar de todos os tipos de caça. A participação na festa da moça é opcional, nas aldeias é comum encontrarmos jovens que optaram por não participar da festa. Nas sociedades indígenas, os homens passam por rituais que envolvem riscos e, muitas vezes, sofrimentos físicos. São figurações simbólicas de um novo nascimento, da morte da personalidade infantil e substituição pela do homem.Neste sentido, os adolescentes precisam vencer os desafioscomo forma de poder e capacidade de transição.Para as mulheres, esses rituais costumam ser mágicos, como pintar o corpo comdeterminados produtos da natureza e ouvir cantossagrados. Mas, para ambos os sexos, essas iniciações significam um período educativo (de orientação).Os ritos são protetores e têm o propósito de assegurar afelicidade e marcar a passagem para uma nova condiçãosocial.
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Conclusão
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Referências
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Joel Cardoso Arte e formação social do indivíduo
ARTE E FORMAÇÃO SOCIAL DO INDIVÍDUO: breve contextualização histórico-reflexiva da arte na sociedade contemporânea Joel Cardoso
Palavras iniciais
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Presente em nossas vidas em todos os níveis, a arte está no nosso dia-a-dia, inserindo-seno nosso cotidiano. A busca do belo, da disposição estética é inerente a todos os homens, desde o mais simples até o mais sofisticado, desde o mais pobre até o mais rico. Os moradores de quaisquer casas, por mais simples que sejam, dispõem o ambiente buscando a praticidade, a beleza, a harmonia. Desde o arranjo de uma mesa, até a visão de conjunto, perpassando pela aparência interna ou externa da casa, tudo faz parte dessa busca pela beleza, da busca pelo prazer estético.A arte, tão antiga quanto o próprio homem, algumas vezes, se tornatão ou mais importante que a vida. Ela é a responsável por “colocar o homem em estado de equilíbrio com o meio circundante” (FISCHER, E. 1971). Através dela, irmanamo-nos com a realidade, visualizando-a de uma forma que só a arte pode mostrar e esmiuçar. E, conhecendo e compreendendo melhor o mundo, podemos interferir nele, agir, e, se for o caso, modificá-lo, ajudando-nos não só a suportar a realidade como a transformá-la, uma vez que faculta a determinação de humanizar a nossa existência. Auxílio mágico para a dominação do real ou do imaginário, conhecemos melhor o mundo e a nós mesmos por intermédio da arte. A arte se faz necessária não apenas pela sua peculiar magia, pelo incontestável prazer que desperta, mas
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Por meio da Arte é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo ao individuo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada. Ana Mae Barbosa (2003, p. 18).
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A arte se faz presente em todos os níveis da cultura humana: nos cultos religiosos (com as mais diversas finalidades); nas manifestações festivas e de celebração; nas inscrições tumulares (desde as tumbas dos Faraós); nas esculturas (algumas monumentais, como as Pirâmides);
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Recortes específicos: arte no contexto político brasileiro
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por produzir conhecimento. Não é, pois, sem razão, que, num mundo injusto, dividido em classes, os detentores do poder querem recrutar a arte, buscando atrelá-la aseus projetos particulares. Os artistas, com seu trabalho, transmitem, direta ou indiretamente, experiênciasque revelam o seu tempo e suas condições sociais, tirando o homem de um estado de fragmentação para capacitá-lo para a sua completude. Extrapolando suas funções sociais, a artenos revela mundosjamais imaginados, como também, por outro lado, mundos reais, passíveis de mudanças, podendo, inclusive, interferir para a compreensão deles, ou para ajudar a mudá-los. O contato com o universo da artepode ocorrer de diversas maneiras. Além do fazer artístico, podemos, também, nos dedicar à arte apenas para conhecê-la e apreciá-la. Ao nos dedicar ao estudo da História da Arte, educamos a nossa sensibilidade para a percepção dos diversos movimentos estéticos que, na sua evolução, nas diversas formas que assumiu ao longo da história, elegeram padrões diferenciados de beleza, de modelos, de fazer artísticos. Se, como afirma o crítico de arte Robert Hughes, é um exagero afirmar que podemos educar alguém através da arte, não temos a menor dúvida de que ela pode fazer de nós pessoas melhores. Toda sociedade precisa de regras para sobreviver. Regras quenorteiem,que rejam a vida comunitária. Nesse sentido, a arte pode, especularmente, refletir a realidade em que é produzida. Mas pode, por outro lado, transgressoramente, contestar essa mesma realidade, questionando-a, discordando dela, criando mundos outros completamente distintos. Na universidade, quando falamos de História da Arte, referimonos à disciplina que deveria tratar da apresentação da evolução de múltiplas expressões artísticas, do modo como essas modalidades artísticas se constituíram e se articulam através do tempo, formando os estilos, as escolas estéticas.No entanto, via de regra, por questões didáticas, a disciplina privilegia quase sempre apenas uma das linguagens artísticas, a pintura, modalidade que - entre outras, principalmente em interconexão com a escultura e a arquitetura forma, tradicionalmente, o repertório daquilo que se convencionou chamar de artes visuais.
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A arte, espelhando a realidade subjetiva ou objetivamente, pode, também, assumir um caráter de contestação política e ideológica, da denúncia social. Isso, naturalmente, incomodaos poderosos que, ao se sentirem expostos, não medem esforços para reprimir tais
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Arte e realidade: reconhecimento e sucesso
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nas ruas, nas praças, nas casas, nos museus, na configuração das cidades etc. Não foram, evidentemente, somente na Grécia e no Egito que surgiram manifestações relevantes no universo da Arte. A arte se fez(e se faz) presente entre todos os povos. Se olharmos ao nosso redor, constatamos que vivemos cercados de uma quantidade imensa de objetos, criados com fins específicos. A elaboração de tais objetos, extrapolando a praticidade, ambicionam, também, reconhecimento no patamar estético. Com o passar dos tempos, algumas manifestações de arte, por simbolizarem idealizações e sonhos humanos, foram consideradas perigosas para os governos autoritários. Foi o caso, por exemplo, no nosso país, num determinado momento histórico,do teatro, da MPB, depois, do cinema, das charges, das HQs etc. A arte, qualquer que seja a sua forma de expressão, personifica ideais libertários:ela se quer e se sabe independente. Sem tais marcas, não há como crescer, como ganhar autonomia. No Brasil, no século XX, época dos governos militares, intelectuais e artistas foram, por conta de suas produções culturais e artísticas, duramente perseguidos. Vamos, a título de ilustração, a alguns nomes: o cartunista Henfil; Chico Buarque (compositor, intérprete e dramaturgo), perseguido pelo teor contestador de suas canções e por espetáculos teatrais como Gota D'Água, Roda Viva, Calabar; Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, por canções que expunham a opressão vigente e muitos, muitos outros. No âmbito do teatro, temos, ainda no mesmo contexto, José Celso Martinez, dramaturgo e diretor; Oduvaldo Viana Filho, mais conhecido como Vianinha, autor e ator, perseguido por causa de sua peça Rasga coração; Nelson Rodrigues, considerado imoral e pornográfico e marcado duramente pela censura. A peça Álbum de família, por exemplo,ficou proibida por 21 longos anos. Plínio Marcos, apontado como seguidor de Nelson Rodrigues, autor de textos irreverentes e reais, comoNavalha na carne e Dois perdidos numa noite suja. Alguns religiosos também ficaram sob a mira dos governantes por assumirem a defesa dos mais fracos e oprimidos. Todos personas non grata. Pintores, jornalistas, intelectuais etc. entraram no rol das pessoas consideradas perigosas para o sistema.
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manifestações.Todo artista gostaria de poder sobreviver de seu trabalho. O reconhecimento desse trabalho, porém, quase sempre é um processo lento. Muitos artistas viveram em condições precaríssimas. São famosas algumas histórias que circulam no universo da arte.Alguns poucos artistas, como, por exemplo, Michelangelo, Da Vinci, Rafael, Renoir, e, na Modernidade, Pablo Picasso alcançaram notoriedade ainda em vida. No século XIX, no auge do Romantismo musical, Frederic Chopin e Franz Lizst (cujos concertos arrastavam multidões), também obtiveram reconhecimento e notoriedade, ficando famosos ainda em vida e sendo muitíssimo bem remunerados pelos seus trabalhos. Outros, no entanto, amargaram a mais cruel miséria e só foram reconhecidos postumamente. É o casodo genial Wolfgang Amadeus Mozart, que amargou uma vida cheia de dificuldades, ou, para ficarmos em solo pátrio, de Cartola, ou, ainda, o exemplo mais famoso, pertencente à esfera pictórica, o caso do pintor VincentVan Gogh. Nos dias atuais, o universo das Artes pode propiciar, não só a notoriedade, como retorno financeiro auspicioso, ainda que para alguns poucos eleitos. É, por vezes, o caso de personalidades que, meteoricamente,despontam no mundo da Moda, da Televisão, do Cinema, da Música, da Literatura, e se tornam famosas, às vezes, da noite para o dia.
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Quando arte e educação se entrelaçam, prazer e sedução se aliam nesse congraçamento. Em âmbito muito maior que o presumido, ambas promovemo encontro de duas instâncias humanas que jamais se dissociam. Através da arte, o homem se humaniza, descobre novas possibilidades de ser e estar no mundo e, ao observar a realidade que o cerca, interage nesse universo de forma consciente e plena. Neste sentido, a arte se faz parceira da cidadania. No Brasil, o modelo acadêmico estético e educacional foi importado da Europa, principalmente da França, cuja capital sempre exerceu um fascínio especial no imaginário nacional. Mesmo hoje esse fascinio perdura, mas nos séculos XIX e XX essa atração era especial. E não sem razão. Paris era um efervescente centro cultural. Vitrine para o mundo, era ali que artistas do mundo todo, em diversas áreas, divulgavam os seus trabalhos. Esse modelo perdura até o início do século XX. Algumas das principais estéticas artísticas se nao nasceram, floresceram na França. Impressionismo, Expressionismo (de origem alemã), Cubismo, Dadaísmo, Simbolismo, Surrealismo etc. Inaugurada em 1826, a Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, se tornariacentro referencial para os movimentosestéticos
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A Educação Artística no Brasil
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do pais, constituindo-se como marco histórico importante para a história das Artes. Os nomes mais significativos da pintura dessa época são Victor Meirelles (na escultura) e Pedro Américo (na pintura). Esses artistas estavam comprometidos com o governo de Dom Pedro II e, certamente, não é obra do acaso que a produação deles verse sobre temas nacionalistas, indianistas e históricos. São, nesse sentido, reveladores os nomes de algumas pinturas da época: A Batalha de Guararapes, de Victor Meireles; O Grito do Ipiranga, de Pedro Américo, etc. Arte, educação e projetos sociais Existem, hoje, inúmeros projetos que veem na arte um meio de atuação eficiente para, interdisciplinarmente, interferirmos no processo educacional. Projetos que, evidentemente, extrapolam a sala de aula. Reza o dito popular que “gosto não se discute”. Em se tratando de arte,é questionável. Sabemos, até por experiência própria, que gosto se educa, se aprimora, se melhora através do tempo.Daí, talvez, advenha a necessidade de levarmos a arte a todas as camadas sociais para que, solidariamente, possamos construir uma sociedade mais bela e - por que não? - mais justa.Há, graças a incentivos governamentais, inúmeros projetos que promovem atividades inclusivas. É o caso, por exemplo, de ONGs, ou de projetos comunitários que trabalham para propiciar ocupação, formação específica e lazer a diversas camadas às populações com menos acesso às modalidades artísticas. São muitos os que poderiam ser arrolados:projetos na área da formação musical, deformação ou valorização profissional, de inclusão de pessoas portadoras de necessidades especiais, de inclusão artística visando à sensibilização do indivíduo através de inúmeras manifestações artísticas: música (canto, aprendizado de um instrumento), pintura (desenhos, caricaturas, ilustrações), artesanato (com massas, argila, madeira, e outros materiais), teatro (atuação, iluminação, figurino, direção, artes cênicas), dança (individual ou de grupo, tradicionais ou modernas), artes circenses (malabarismo, acrobacias, representação etc), ginásticas rítmicas e acrobáticas etc.
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Na sociedade contemporânea, são amplas e complexas asinserções no mundo da arte. O mundo atual precisa, cada vez mais, de cidadãos ativos e atuantes. A nossa realidade é complexa e essa complexidade, como não poderia deixar de ser, se reflete, naturalmente, no ambito das artes. Por força da velocidade com que se
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A função social da arte na sociedade contemporânea
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processam as informações, tudo está presente, tudo faz parte do aqui e do agora. Tempo e espaço são minimizados. O mundo se tornou muito pequeno. A arte, direta ou indiretamente, reflete tal contexto. Ligada ao universo capitalista, a indústria da arte, como outro ramo industrial qualquer, cresceu e se consolidou. Violência, conflitos, insegurança, desigualdades sociais profundas, guerras, terrorismo, corrupção, instabilidade política e econômicasão marcas da vida contemporânea. No Brasil, Gilberto Freyre, em sua obra Casa Grande & Senzala, presenciamos um confronto entre o Brasil que,ancorado em vestígicos do passado, aponta para uma possível Modernidade. A Semana de Arte Moderna, de 1922, veio para demarcar uma ruptura entre o nosso passado cultural e o as aspirações de modernização no universo da arte. Freyre denuncia, de forma contundente, a nossa dívida moderna em relação à tradição cultural. A modernidade, ainda que pesem os processos de ruptura, segue, sem dúvida, alimentada pela tradição. Sem o respeito às origens, às raízes regionais identitárias e particulares, não poderíamos dar face à nossa Modernidade. No mundo caótico da globalização, há que se preservar o particular, o individual, o regional, o diferente.A entrada do Brasil na Modernidade foi parte de um processo lento, ousado e complexo em que se entrecruzaram dinâmicas diferentes. Assistimos, no início do século XX, ao desenvolvimento da industrialização, da urbanização, do crescimento do proletariado e do empresariado. De outro lado, permaneceram,firmes e fortes, a tradição colonialista, os latifúndios, as desigualdades sociais, o desenvolvimento desigual das regiões. A Semana de Arte Moderna, ocorrida em fevereiro de 1922, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, exemplificou singularmente a proposição desse contexto social que passava por mudanças, por rupturas e que, contestando o marasmo vigente, ansiava por uma modernização. Na Semana, algumas modalidades artísticas marcaram presença: a Literatura, representada por Mário de Andrade, Graça Aranha, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia; a Pintura, com Tarsila do Amaral, Anita Malfatti; a Escultura, na figura de Victor Brecheret; a Música, com Guiomar Novaes, pianista e Villa-Lobos, compositor. Nesse contexto, o grande ausente foi o teatro. O Teatro só representaria uma adesão à Modernidade vinte anos depois, com Nelson Rodrigues e a sua célebre peça, Vestido de Noiva. Ainquietação em relação à necessidade da promoção da Semana de Arte Moderna não surgiu do nada. Na rasteira do que se fazia na Europa, o contexto brasileiro se encaminhava para tal. Na literatura, expoentes como Lima Barreto, Monteiro Lobato, Graça Aranha, Augusto dos Anjos e Euclides da Cunha, entre outros, já retratavam um Brasil em transformação. O livro de Lima Barreto Triste fim de
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Policarpo Quaresma cria um herói que, através de seu nacionalismo exacerbado, faz uma crítica contundente ao país. Em Os Sertões, Euclides da Cunha expõeum Brasil marginalizado, oscilando entre o conservadorismo da monarquia perdida e o advento da república com todas as suas mazelas. Neste livro, entra em cena o sertanejo até então ausente do repertório literário. Com Canaã, Graça Aranha dá destaque ao imigrante alemão, explorador da ingenuidade nacional. Com Monteiro Lobato, nome maior da nossa literatura infanto-juvenil, ganha a cenaa personagem Jeca-Tatu, caboclo ingênuo e interiorano que, através do seu comodismo exagerado, mostra o retrato de um Brasil rural e muito brasileiro. Com o advento da Modernidade não perdemos o nosso espírito nacionalista, mas deixamos de ser ingênuos. Agora o nosso nacionalismo é observador, é crítico, é contestador.
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O impacto das novas mídias, no final do Século XIX e início do Século XX, influenciou a vida social moderna de forma cabal. O cinema, com pouco mais de cem anos, amadureceu e se consolidou como arte, ganhou uma linguagem nova, incorporou novas técnicas e, paralelamente,procura se consolidar como indústria. Muitas são as tendências da Sétima Arte. Ao lado do cinema norte americano, referência universal, outras tendências, merecidamente, conquistaram espaço. Citamos, a título de exemplificação, o cinema russo, o polonês, o japonês, o francês, o italiano, os hispano-americanos e, também - é claro! - o brasileiro.Ganhamos já o reconhecimento mundial. Nossos filmes têm figurado entre os grandes representantes do gênero. É o caso, para exemplificar, de O pagador de promessas, Central do Brasil, Bye Bye Brasil, Cidade de Deus, Carandiru, O que é isso companheiro?, Dona Flor e seus dois maridos, etc. Na música, o Brasil sempre foi considerado um modelo positivo. A nossa música se tornou referência desde a década de 50, quando a Bossa Nova brilha nos palcos do mundo. Garota de Ipanema foi uma das composições brasileiras que alcançou notoriedade universal. Nomes de compositores e intérpretes como os de Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Maysa, Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento e outros muitos, são reverenciados em todo o planeta. A produção da televisão brasileira é alvo de muitas, muitas críticas. Em que pesem os aspectos negativos (inegáveis!), temos, por outro lado, aspectos altamente positivos, angariando, cada vez mais, reconhecimento internacional. Arte e indústria se aliam para atingir o grande público. Orson Wells, cineasta americano, afirmava com sua
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As novas mídias artísticas e suas influências sociais
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habitual irreverência: “odeio a televisão. Odeio-a tanto como aos amendoins. Mas não consigo parar de comer amendoins.” É bem verdade que, como ocorre no mundo todo, a nossa programação televisiva oscila entre a banalidade máxima e a qualidade maior. No entanto, em algumas modalidades conseguimos marcas de excelência, marcas notoriamente reconhecidas. É o caso, por exemplo, das telenovelas brasileiras. Algumas delasconquistaram público no exterior. É o caso de A escrava Isaura, sucesso em dezenas de países, inclusive no Oriente. Os documentários brasileiros feitos pela nossa indústria televisiva também se tornaram famosos no exterior. As minisséries primam por um padrão de qualidade que extrapolam em muito o teor (mais generalizante e apelativo) das telenovelas. Isso é reconhecido, inclusive, pelos nossos intelectuais da academia. Os Maias, ou O Primo Basílio, por exemplo, minisséries transpostas para a TV, baseadas na obra do escritor realista Eça de Queirós, foram consideradastraduções intersemióticas importantes. Outras muitas minisséries mereceriam ser citadas. Descentralizando um pouco, se considerarmos as comunidades situadas na periferia dos grandes centros, constatamos que, ali, florescem diversos tipos de manifestações, principalmente de jovens, cujas produções reivindicam o status de arte. São manifestações ainda marginais, que se posicionam abertamente contra os modelos tradicionais. As pichações são exemplos latentes disso. As danças comunitárias, nos bailes de periferia, com movimentos sincronizados mostram a criatividade dos integrantes dessas populações. Também as manifestações Hip-Hop vêm ganhando intensidade. As diversas representações musicais encontram expressão própria nas diversas camadas da população carente, indo desde os mais jovens até a camada mais madura, formando os mais variados ritmos e marcações, apresentando as mais diversas tendências. É o caso de ritmos importados que se aliam aos ritmos nacionais e de origem afrobrasileira, dos ritmos urbanos que se misturam aos ritmos do interior: Dance Music, Ciranda, Moda de Viola, Música Sertaneja, Rock,Rock andRoll, Blue,Reggae, Axé-Music, Brega, Funk Carioca, Gospel, Spiritual, Jazz, Forró, Punk, Maracatu, Dança de Roda, Coco, Break, Pagode, Partido-Alto, Samba deRaiz, Samba-Rock, Afoxé, Mambo etc. Todas essas manifestações artísticas, de uma forma ou de outra, representam, retratam, interferem e influenciam as mais diversas camadas da sociedade. A Televisão, presente na maioria dos lares brasileiros, dita moda, propaga e cristaliza jargões e modelos de linguagem, interfere nos hábitos culturais, nos hábitos alimentícios. Anúncios publicitários, veiculados por diversas mídias, alimentam o
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Joel Cardoso Arte e formação social do indivíduo
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sonho de consumo da classe média e vivem na imaginação dos menos favorecidos. Astros e estrelas damúsica popular criam estereótipos, valorizam ou jogam no esquecimento um repertório que movimenta o público jovem.Artistas populares, da noite para o dia, se tornam ídolos, arrastando multidões aos shows, aos rodeios, aos comícios. As pichações, retrato da rebeldia de uma população que se quer e se sabe marginal, veiculam, através de códigos cifrados, mensagens que têm a ver com as suas realidades.
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“Ucpicturapoesis”, máxima horaciana, literalmente, “como a pintura, assim é a poesia. In: HORÁCIO, Arte Poética.
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A arte sempre agrega, sempre tem um quê de inclusão.Propiciar o conhecimento do universo da arte é já a assunção de uma postura inclusiva. Se não conhecemos, não damos o devido valor. Quando nós nos debruçamos sobre um determinado assunto, tal assunto ganha vulto, ganha dimensão e relevância, passando a fazer parte integrante da nossa trajetória de vida. Ninguém passa pelo universo da Arte impunemente. Todos saímoscontagiados pela magia do belo, pela leveza do descobrimento estético, maravilhados com o que desconhecíamos. Todos nós nos sensibilizamos ante o belo, ante aquilo que nos toca, seja através da identificação com a beleza, mas. também, com o lado indizível do ser. O feio, o horrendo, o desconfortável, o nauseante, isso tudo pode se constituir como pontos de partida para a representação artística. Portanto, acreditamos que não há como passear pela História da Arte sem ser tocado sensivelmente por esse percurso. Por outro lado, conhecer mais profundamente uma determinada modalidade artística é, sem dúvida, investir em uma experiência única. Na pintura, encontramos momentos mágicos, depoimentos maravilhosos que modificaram profundamente a vida de seus artistas, de seus executores. Pintar é, segundo Horácio1, a arte de se fazer com tintas uma poesia. E, por sua vez, fazer literatura é, ainda na concepção desse autor, pintar um quadro com palavras. Somos seres do discurso. Nós nos comunicamos através das palavras e das imagens. Toda imagem se transforma em discurso e todo discurso só pode ser traduzido por imagens que se formam no nosso interior. Há, na arte, os que se contentam em apreciar, mas há, também os que, inconformados, querem pôr a mão na massa. Ambas as posturas são inclusivas. Ambas despertam a reflexão. O Cinema é arte coletiva; coletiva no fazer e no apreciar, quando vamos às salas de cinema. No repertório fílmico,temas sociais e
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individuais estão presentes. Afloram, aí, dramas, interpretações de vida pessoais e coletivas. Há inúmeros projetos em que a sensibilização das pessoas se dá através dos filmes. As temáticas podem ser as mais variadas: religião, violência, sexo, drogas, criminalidade, dramas familiares, problemas de relacionamento, descoberta do amor, velhice etc. Promover apresentações em que se aprecie o cinema pode ser uma atividade altamente inclusiva.Vinicius de Moraes, poeta carioca, compositor e músico, em seu livro O cinema dos meus olhos, já indagava: Não será o interesse pelo Cinema como arte um sinal da profunda diferença que marca as duas gerações de intelectuais existentes no Brasil?(MORAES, 2006, p. 28). Ainda que a TV possacontribuir para o processo de alienação, por conta de uma programação destituída de objetivos, pode, também, se adotada conscientemente, promover a inclusão. Repensar, analisar, discutir os programas televisivos podem se transformar emalternativas viáveis e criativas para a prática docente. O mal se instaura quando o diálogo nos lares fica só por conta da televisão, quando ela dita as regras, quando ela passa a ser a soberana. Qualquer tipo de programa (jornalístico, fílmico, musical, novelístico etc.) pode ser ponto de partida para que se instaurem diálogos tanto em casa como na escola. Quando não podemos vencer o inimigo, uma das estratégiasseria se unir a ele. Agindo assim, a televisão pode interferir positiva e inclusivamente em nossas vidas. O mesmo, por extensão, é válido para programas de rádio, clipes, propagandas, charges (impressas ou não) etc. O problema maior se efetiva quando abdicamos do nosso poder de dialogar, de questionar, de raciocinar em conjunto. Seria desejável que a inclusão pela arte - pensamos, principalmente, nosjovens - ocorresse em sintonia com as mudanças pelas quais passa a modernidade. Acreditamos na utopia. Ousamos, ainda, sonhar. Acreditamos em um mundo melhor em que todos poderão, num futuro não muito distante, usufruir do prazer da arte, do belo, do estético (e seus desdobramentos). Que arte não se constitua em privilégio para poucos, mas que, democratizada, possa estar ao alcance da sensibilidade do homem comum.“O povo ainda vai provar do fino biscoito que fabrico”, dizia o poeta Oswald de Andrade. A arte faz com que enxerguemos o mundo com novas lentes, que descubramos nas coisas mais simples novas modalidadesse não de beleza, de significação, de oferta estética. Par a par com a natureza, cenário diversificado e mutante, a arte propicia contrapontos para a criação, propõe desafios ao espírito humano, vence os entraves do meio. Assim, também, nós, como docentes, deveríamos pensar.
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Referências
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AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22.2ª ed.São Paulo: Perspectiva, 1972. BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e mudanças no ensino da Arte. São Paulo, Perspectiva, 2003. SANTOS, Maria das Graças Vieira Proença dos. História da Arte. 16ª ed.São Paulo: Ática, 2005. FERRAZ, Maria Heloísa C. de T. & FUSARI, Maria F. de Rezende. 2ª ed.Metodologia do ensino de arte. São Paulo: Cortez, 1999. FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Trad. de Leandro Konder. 3ª ed.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971. FISCHER, Ernst. Sociologia da Arte: 2ª ed.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971. KELLY, Celso. Arte e Comunicação. 2ª ed.Rio de Janeiro: Agir, 1978. MORAES, Vinicius de. O Cinema dos meus olhos. 2ª ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ORTEGA Y GASSET. A desumanização da arte. Trad. de Ricardo Araújo. 3ª ed.São Paulo: Cortez, 2001.
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Francisco Pereira Smith Júnior Jogos infantis: uma geografia erótica
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Francisco Pereira Smith Júnior Jogos infantis: uma geografia erótica
JOGOS INFANTIS: uma geografia erótica Francisco Pereira Smith Júnior
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A obra literária Jogos Infantis (1986) do escritor paraense Haroldo Maranhão faz um percurso pelo espaço urbano de Belém nos anos 30 e 40, demonstra ficcionalmente a sexualidade de crianças e de adolescentes e de forma lúdica constrói um roteiro de experiências sexuais, em que, também valoriza as referências locais, construindo um texto que situa o leitor a uma referência espacial. Assim, a cidade de Belém é “desenhada” pelo narrador através de narrativas curtas, que mostram a cidade como pano de fundo, permitindo noção ficcional do espaço da cidade. Pelas narrativas de Jogos Infantis (1986) é possível que o leitor construa uma visão mais profunda dos aspectos culturais e históricos da cidade e para isto, o narrador se utiliza de prédios (colégios, cinemas, farmácias e hospitais), praças, ruas, bosques, bairros e até lugares do interior do estado. São referências locais que servem de recurso estilístico para reforçar o caráter verossímil da obra e para estreitar os laços com o leitor. Os contos misturam sexualidade, cultura
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Resumo: O presente artigo apresenta a obra Jogos Infantis(1986) de Haroldo Maranhão como um texto dotado de uma linguagem ousada no limiar de uma discussão dialética a respeito de sexo. O estudo propõe uma análiseda forma como os narradores tratam da sexualidade nos quinze contos da obra. O humor e a ironia exercitam com dinamismo e simplicidade a linguagem do texto e tentam filtrar os fatos sexuais das narrativas, de maneira que possam explicar a sexualidade com senso de humor e que interprete o cotidiano com mais naturalidade, típica proposta pelos escritores do Modernismo Brasileiro. Para isso, serão utilizados os textos de Maranhão (1986). Palavras-chave: narrativa, sexualidade, infância, metáfora
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e a história de Belém, proporciona ao leitor uma visão do passado num ritual de revivescência, em que o narrador assume uma presença no tempo da narrativa, em um diálogo de conhecimento e se revela conhecedor das experiências narradas. A narrativa de Haroldo Maranhão apresenta uma literatura que se destaca pela sua linguagem lúdica repleta de expressões que criam imagens, com linguagem que proporciona dinamismo e simplicidade, no qual há um jogo das imagens (ou entrelaçamento) do mundo ficcional com as imagens do mundo real. Percebe-se que o escritor procura tecer relações impensadas, que multiplica imagens e se dá por gestos sensíveis, estabelecendo novos campos de consistência e sentido. Em Jogos Infantis (1986) há um jogo que reorganiza o valor do signo, combinando ideais que possibilitam uma inversão na estrutura literal de certas construções lexicais. Carlão aproximou-se, os olhos brilhavam, facilitava: — Pega. Segura pra ver como parece aço, só parece, que o aço é frio e o meninão tá fervendo. Delicadamente Luizinho segurou. (Maranhão, 1986, p. 18). Foi quando percebi que uma cortina de papel se rasgava e eu entrei por um corredorzinho ensopado. (Maranhão, 1986, p. 9) Presta atenção Gastão, foi o que me disse o Ápio, a gente deve dar alegrias ao catzo, tratar ele a pão-de-ló, sabe como é, ser amiguinho do catzo da gente, agradar, fazer fosquinhas. (Maranhão, 1986, p. 47). Eu sei que é, que eu sei fazer ele gozar até a última gozada, eu sugo tudo o que ele tem dentro, sugo todo o creme. “Vamo fudê?” (Maranhão, 1986, p. 60)
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Sabe-se que a linguagem depende da lógica estabelecida aos signos pelos seus usuários, para que haja uma compreensão, é necessário que seus falantes sirvam de “intérpretes” e sejam capazes de realizar a decodificação de palavras muito peculiar dos falantes. Através da sequência coerente, regular e necessária de acontecimentos e de coisas, junto da língua haverá uma sugestiva explosão de sentidos. O signo poderá ser plurívoco, com vários significados derivados de um
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Eu fingia sempre que dormia, mas estava em brasas, aposto se ela não enxergava logo que eu estava em brasas, o tempo todo em que o Nando montava nela eu me revirando na cama. (Maranhão, 1986, p. 12).
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significado primeiro, assim, a metáfora é uma das aliadas para se entender a lógica do discurso das personagens, executando uma translação, consistindo em uma transferência de significado de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do objeto por ela designado. Dessa mesma forma, sabemos que outros sistemas de signos revelam seu sentido diferenciado dependendo de seu usuário e a vontade de expressão depende da forma como é conduzida por este indivíduo. Ela metia o peruzinho lá nela, mas metia mesmo, enfiava, entrava todo, e era uma carne que queimava, a carne dela, como se tivesse um molho apimentado de quente, que aquilo me apertava, isto é, a Tatá não me agarrava com as mãos, era o buraco dela que me apertava. (Maranhão, 1986, p.14). “ai, ai, ai, ai”, mas ele, não sei por quê, dizia: “mais, mais, depressa, depressa” é ela aumentava a pulação de sapa. (Maranhão, 1986, p. 23).
A linguagem figurada dos contos de Jogos Infantis (1986) constrói um jogo com as palavras que permitem encontrar um tom cômico nos textos, em função do trabalho de reelaboração de valores das palavras, utilizando em algumas vezes a oposição por contrariedade, ou por contradição, entre dois termos, além de paradoxos, absurdos e coloquialismos.
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Jogos Infantis (1986) é uma obra inovadora, pois reconstroi o léxico da língua portuguesa, utilizando-a funcionalmente a uma abordagem que se refere à sexualidadede em uma perspectiva psicanalítica, desta forma consegue fazer com que o leitor atento perceba o potencial criativo do texto e tire conclusões de suas próprias
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O corpo se arqueava como os gatos se arqueiam, e aquela flor escura abriu-se para mim, por onde entrei. Nem conto nada! Foi a minha primeira decepção na vida, que quando arriei o corpo a impressão é de que tinha desabado sobre uma gelatina de côco mole-mole, mole não, molíssima, parecia que a bunda da Lenira tinha um recheio de coalhada. Eu não sei por que idealizava carne dura, e a bunda dançava desengonçada, a bunda mais frouxa que até hoje encontrei, nunca vi coisa ao menos parecida, uma bundona daquelas toda aguada, que duvido quem desconfiasse, duvido mesmo. Há bundas sólidas, que a gente agarra, belisca, morde. Bundas gasosas, que são as que a gente imagina no banheiro. E bundas líquidas, como a porcaria daquela bunda da Lenira. (Maranhão, 1986, p. 39).
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interpretações. Sabe-se que o grande problema de entender os signos é compreender as diferenças de lugar para lugar, ou seja, de código para código, já que esse tem seu valor em um sistema e, além desta dificuldade que sabemos existir, há também uma necessidade de afinamento do leitor com a obra, pois em alguns momentos é necessário malícia e experiência de mundo, já que o discurso do textoconstrói um sentido metafísico a respeito da sexualidade. Aí não sei por que me deu uma vontade maluca não de beijar mas de passear a língua e secar o melzinho, que eu fui bebendo como se engole mingau, e saí atrás da lasquinha até que encontrei e ajeitei a língua na lasquinha que eu já nem entendia direito o que fazia, era uma coisa parecida com sonho, dava a impressão que eu sonhava, mas que sonhar, nada, eu agarrava com as mãos aquele mar de coxonas e eu ali no meio do mar. (Maranhão, 1986, p. 63).
No conto “Como as rãs” há uma referência ao antigo prédio das Centrais Elétricas do Pará, na Avenida Magalhães Barata, cujo nome, à época, era Pará Elétrica, nome substituído em sua história, no ano de
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No primeiro dia de aula a gente vê logo quem vai ser amigo da gente e quem não vai. Muito difícil se errar, basta só olhar as caras. Pois foi só bater o olho que vi que o Luizinho era um menino bom, e era. Ele é que se aproximou: — Tu estudou no Grupo ou em casa? — No “Vilhena Alves”. (Maranhão, 1986, p. 14).
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O narrador de Jogos Infantis (1986) discute a temática da sexualidade e estabelece uma união de elementos para constituir seu texto, a ideia de identidade aliada àexperiência popularconstrói os elementos do imaginário ficcional da obra eservem como base cultural para produzir as narrativas.A obra nos revela cenários encantatórios por sua beleza exuberante da região amazônica que fazem com que as personagens se movimentem em uma narrativa nos limites entre o fictício e o real. Isso revela ilusoriamente personagens-narradorque estabelecem a comunicação e o encontro com os leitores. Estes inconscientes da sua participação na narrativa se permitem construir a imagem e o espaço ficcional a partir de sua própria referência local. O conto “Cachorro doido” inaugura a obra fazendo uma referência à uma escola tradicional de Belém, o conhecido “Vilhena Alves”, um prédio inaugurado em 1938, em estilo moderno, no bairro de São Brás, que serve de ícone para a lembrança de muitos paraenses que nele estudaram.
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1947. A cidade de Belém neste período já iniciava seu processo para transformar-se em uma cidade moderna. “Mas o Lauro sempre teve dessas bobagens, grandíssima bobagem, que mal ele dormia vinha nossa avó e apagava a lâmpada, que ela dizia que nós não éramos sócios da Pará Elétrica” (Maranhão, 1986, p. 21-22). O conto “Movimento no porão” alude à ilha de Algodoal como cenário onde ocorrerá a narrativa. Apresenta a localidade a partir de sua importância turística, revelando-se um lugar destinado ao descanso, aos passeios e recanto aprazível para férias anuais, por ser um lugar de belas praias e ar pitoresco. A região é conhecida pelo misticismo, fala-se até em um lago encantado por uma princesa. “Minha avó me punha no porão para dormir quando eu ia passar as férias em Algodoal. O porão praticamente se achava entupido de livros” (Maranhão, 1986, p. 25). O texto faz referência à esquecida Praça da Estação, que hoje deu lugar à Praça do Operário, também revela a existência de um teatro de marionetes e da imagem das pessoas que iam pegar trem e que acabavam passeando no local, enquanto esperavam a sua saída. O narrador descreve o comportamento dos garotos que se divertiam com liberdade nos espaços públicos, sem a procupação com a violência da modernidade. Aos domingos eu gostava de ir à Praça da Estação para ver um teatrinho de marionetes, os garotos daquele tempo eram mais soltos, não havia essas mães cheias de nove-horas, algumas, né?, que até sufocam as coitadas das crianças. Pipoca havia, pirulito havia, sorvete havia. Nada de cokas-kolas e xicabôs, esses sorvetes americanos que nem gelados são, sendo feitos de preparados químicos onde as frutas nem comparecem, os sorvetes de antigamente é que eram.(Maranhão, 1986, p. 25).
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Depois, a Narcisa já era uma professora, ensinava num Grupo, não lembro o tal de Grupo da Narcisa, parece que para o lado dos Covões, sei lá!, acho que nos Covões não tinha nada de Grupo, penso que até hoje não puseram lá um miserável de um Grupo que fosse (Maranhão, 1986, p. 31).
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Quanto aos “Covões”, apresentados na narrativa de “Rede de quatro pés”, tratava-se de um local no bairro de São Brás, em que as pessoas retiravam barro e areia para utilizar em suas construções. Com o tempo, a cavidade ficou tão profunda que os moradores e os animais passavam a se instalar no local.
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Ainda em “Rede de quatro pés” há uma outra referência ao espaço de Belém, o Hospital da Ordem Terceira, um dos poucos hospitais daquela época. Além deste existiam apenas a Santa Casa e o Hospital D. Luiz I, também conhecido como “Beneficente Portuguesa”. O Hospital da Ordem Terceira continua localizado em um antigo prédio na travessa Frei Gil de Vila Nova, no bairro do Comércio. É ainda de um importante referencial médico no tratamento das pessoas da capital e do interior do estado. A Narcisa ia passar uns dias conosco, que Dona Giselda foi acompanhar Seu Pernamanca no hospital; Seu Pernamanca teve não sei o quê nas pernas, não andava, e a Dona Giselda ficou com ele na Ordem Terceira uns não sei quantos dias. (Maranhão, 1986, p. 33).
Enfim, a referência espacial à cidade de Belém “desenha”uma geografia de antigas ruas, avenidas, travessas, espaços públicos e logradouros da cidade e constrói uma sensação de intimidade com o
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A Pindoba tem umas coxas cheinhas de penugem, é aquela penugenzinha na pele morena, que eu sei que ela tem casa no Mosqueiro, mas nunca vou para o Mosqueiro, que lá ela deve ficar de maiô, mas aí não tinha a mínima vantagem, vantagem é a gente ver de relance, o vento bateu na saia, mostrou um bruto pedaço e eu vi, tudo foi muito rápido (Maranhão, 1986, p. 46).
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O conto apresenta ainda uma cidade turística do interior do estado, chamada Salvaterra, na ilha de Marajó, região de atrativos naturais e um ambiente místico. “A “Joana-sem-braço” tinha mandado para a casa do tal tio em Salvaterra e a Dona Giselda pediu à minha mãe que a Narcisa ficasse conosco” (Maranhão,1986, p. 33). O Bosque Rodrigues Alves também foi cenário para a imaginação de escritor, pois a narrativa “Mar de coalhada”, apresenta um narrador encantado com a beleza de uma mulher, comparando seu “encanto” ao das árvores do Bosque. “Lenira não raspava, de modo que aquilo é que me excitava, eu imaginando que as coxas seriam também, e mais acima a glória das glórias, a floresta, o Bosque Rodrigues Alves no centro daquele mundo” (Maranhão, 1986, p. 37). A Ilha de Mosqueiro também serviu de referência na narrativa “O Ápio, a mosca”, o pequeno distrito é lembrado como local para o qual as pessoas da capital se deslocavam a fim de aproveitar suas praias de água doce e passar o período de férias ou os finais de semana prolongados.
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Período artístico, cultural e político do Brasil que começou em fins do Império e que se prolongaria até fins da República Velha (18891931).
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texto de Haroldo Maranhão. A narrativa se manifesta por intermédio de uma relação histórica-cultural e estabelece um significativo reconhecimento do espaço urbano de Belém e das cidades do interior do estado. “Ninguém atrapalhou batendo na porta, estava um calor do rabo, em casa dormiam a sesta e mais que depressa pensei na Pindoba que eu tinha visto tomando o bonde na Serzedelo” (Maranhão,1986, p. 46-47). Outro conto que explora o espaço urbano de Belém é “Viagem ao curro”. A partir do imaginário de um garoto, desenha-se o mapa de um ponto de encontro em pleno centro da cidade de Belém; é apontado no texto um determinado local à guisa de um marco, um registro espacial dentro da narrativa, que fixa no leitor uma consciência física da cidade, proporcionando um melhor reconhecimento da cidade e a consequente valorização e reconhecimento desse espaço. “Nós se encontra às duas da tarde, mas em ponto, no canto da Caripunas” (Maranhão,1986, p. 52). Um fato interessante a ser observado no conto “Viagem ao curro” é a referência à capital do Estado do Amazonas, Manaus. O texto “traz a cidade” na figura de uma personagem manauara e sugere características negativas ao comportamento da personagem. Talvez isso aponte para uma antiga “rivalidade” entre manauras e paraenses existente desde os tempos da Belle Époque1. “Dona Celuta, ela enfrentou de igual para igual a minha mãe, o que achei insolência nunca vista, que enfim ela era hóspede, passava dias conosco vinda não sei de onde, parece que de Manaus” (Maranhão, 1986, p. 52). Neste conto o escritor continua apresentando o espaço urbano da cidade, rememorando o meio de transporte pioneiro da cidade e esclarecendo certos trajetos que os moradores desta época poderiam realizar. “Eu tinha conseguido aquelas notas amarrotadas, que ela desamarrotou e foi lá para dentro com a tal de amiga, e depois nós saímos e pegamos de novo o bonde para o Jurunas” (Maranhão, 1986, p. 56). O Bosque Rodrigues Alves é novamente relembrado no conto “A violinista” enquanto lugar aprazível em meio à cidade que crescia. Era pois o lugar predileto para os passeios dominicais das famílias e agradabilíssimo para as brincadeiras infantis. “A Lastênia era um anjo de delicadeza e um domingo me levou para passear no Bosque” (Maranhão, 1986, p. 64). Esse conto também menciona o cinema Iracema, local que era
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Manifestação religiosa Católica do Brasil em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré e um dos maiores eventos religiosos do mundo.
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destinado aos mais variados filmes na época, inclusive com programações matinais e vesperais para crianças. O lugar apresentava gêneros de filmes diferentes dos que estão sendo apresentados na atualidade. “No outro dia eu estava tão cansado que perdi o seriado ‘A mão que aperta na matinê do Iracema’” (Maranhão, 1986, p. 64). Novamente o narrador se refere aos bairros de Belém, reconstruindo o desenho espacial dessa cidade imaginária, reconstruída pelas lembranças do narrador, e fazendo referência a uma bebida que à época, era a mais conhecida, já que liderava o comércio dos refrigerantes e possuía uma grande fábrica na rua Tiradentes. “Me lembro direitinho do bonde que a gente pegou, o ‘Sousa’ (Maranhão,1986, p. 64). “Aí nós fomos tomar guaraná Simões num bar que ficava no ponto final do ‘Sousa’, aquelas mesas embaixo das mangueiras (Maranhão, 1986, p. 65). O texto de Jogos Infantis (1986)traz ao leitor o Círio de Nazaré2, como uma manifestação religiosa do povo da região norte do Brasil. Hoje, o evento é símbolo religioso e referência cultural do povo paraense para o mundo. Há ainda uma referência à vinda a Belém de artistas famosos da era do rádio (Dircinha Batista) e que se apresentavam em um teatro popular (o Poeira), como parte da programação cultural das noites de arraial dos festejos da Santa Padroeira. “A gente pega com amor tudo o que se ama, como eu, que agarrava com o maior dos cuidados o meu trem que a Tia Cota me deu no Círio daquele ano que a Dircinha Batista veio cantar no ‘Poeira’” (Maranhão, 1986, p. 65). O escritor faz citação a uma das lojas mais antigas e tradicionais do comércio esportivo da cidade de Belém, que hoje ainda continua disputando o mercado de vendas da cidade. “Quando ela foi embora, ela comprou de presente uma bengalinha numa loja da João Alfredo, parece que no ‘Ao Ganha Pouco’” (Maranhão, 1986, p. 65). Em “Os três mosqueteiros” tem-se uma narrativa que elege o espaço urbano de Belém com facilidade, pois o autor já havia apresentado alguns locais nos contos anteriores. Além de esse conto fazer uma retomada referencial da ilha de Mosqueiro, nela se relembra o único transporte existente na época, que servia aos moradores e visitantes da Vila. “Pedrão soltou uma gargalhada de escutar na Cremação” [...] “Ele caprichava no vai-e-vem, igualzinho ao pistão da caldeira do navio do Mosqueiro” (Maranhão, 1986, p. 69). As últimas citações ao espaço da cidade de Belém encontradas na obraJogos Infantis (1986) estão no conto “Menino que faz menino”
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e se referem a uma rede de farmácias que dominava a cidade e ao ainda existente Colégio Moderno. Para mim era — e ainda é — camisa-de-vênus, que uma vez me deram de troco na Farmácia Beirão. Mas usar mesmo só usei uma única vez, que para mim o bom está na esfregação, na molhação (Maranhão, 1986, p. 71). Quando o Nivaldo foi empinar curica no canto do “Moderno” (Maranhão, 1986, p. 72).
O Largo da Pólvora, a atual praça da República, é o espaço destinado ao lazer de namorados, mas lugar de prostituição, de feiras ambulantes nos finais de semana e passeios familiares aos domingos, também é lembrado no conto. “Quer dizer que tu já tem namorada?” “Nada disso. Namorada não, que eu não sou de perder tempo, sabe? Não sou desses bobocas de passearem no Largo da Pólvora de mão dada, entendeste? Gosto de ir logo ao fundo do fundão, dá pra entender? (Maranhão, 1986, p. 72).
O que se observa em Jogos Infantis(1986) são referências a uma geografia erótica construída pelas experiências de narradores que parecem ter “vivido” essa narrativa ficcional, são atores de uma narrativa pulsante que se utiliza de uma linguagem que reconstroi uma consciência sociocultural e estabelece uma troca de experiências com o leitor e o faz inconscientemente investigarsua própria sexualidade.
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Na obra Jogos Infantis (1986) identifica-se uma interatividade de vários elementos que integram cultura, identidade, experiências, sexualidade e História. Todos esses recursos culminamem quinze contos com linguagem visceral e de tom erótico que leva o leitor a ser provocado por uma linguagem marcante e provocante, em que são propostas experiências sexuais de adolescentes em um espaço que faz parte das próprias memórias do escritor. A estrutura narrativa de um texto e os elementos que a compõem se unem como em um processo de costuras. Um exemplo disto são as personagens de cânones literários que possuem valor reconhecido, estas emitem idéias ao leitor de uma ficção próxima da sua realidade, fazendo-nos avançar para os mais variados campos, como o da Psicologia, permitindo-nos ter noções do subconsciente e inconsciente, para entendermos melhor a relação do homem com o
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Considerações Finais
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Citem-se as obras Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu, A vida como ela é, de Nelson Rodrigues e Devassos no Paraíso, de João Silvério Trevisan, que podem, futuramente, ser meio para estudos literários comparativos à obra Jogos Infantis (1986), de Haroldo Maranhão.
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espaço, como é o caso da obra Dom Casmurro de Machado de Assis. A obra Jogos Infantis (1986) ao ser interpretadapela ótica da sexualidade, atravessa os campos da narrativa, da história, da estética da recepção e da psicologia, para deixar claro que os quinze contos podem ser entendidos além dos seus elementos da narrativa, pois explora também aspectos psicologicos do homem que são fundamentais para a discussão da literatura. O texto ao promover uma abordagem da sexualidadeque enfrenta “tabus”em uma sociedade que preza pela mudança nos seus comportamentos e revê hábitos antigos. A obra Jogos Infantis (1986) discute o universo sexual da família e se utiliza de uma simbologia muito especifica que por vezes se confunde com o “falar paraense”, às vezes faz a sexualidade diferenciar-se da genitalidade, além de ter se voltado para a observação do autoerotismo como algo inseparável da natureza do homem. “Olha lá, hein! Daqui a pouco eu vou conversar um particular com a mãe do Valdo e passo por lá. Mas eu era também passado na casca do alho e sabia que era tudo ameaça” (Maranhão,1986, p. 53). A observação do homem e da mulher como elementos sociais responsáveis por suas ações e pela imagem que constroem no momento em que buscam encontrar um equilíbrio entre o psíquico e o social, também foram elementos experimentais para a discussão dentro da obra. Várias obras já exploraram a temática da sexualidade em curtas histórias, são as mais variadas histórias que falam de pedofilia, de infidelidade, de doenças contagiosas, de lesbianismo, de homossexualidade e outros pontos de discussão. Outras obras na literatura brasileira, já possuem seu reconhecimento literário, em função da firmeza e seriedade com que exploram o tema da sexualidade.3 O que se propõe é uma reavaliação do valor da obra Jogos Infantis(1986) sob outro prisma, observando o potencial de comunicação da obra em discutir e fazer o leitor refletir sobre sexualidade na adolescência, para que não exista uma avaliação precipitada ou que se faça um levantamento de valores, levando em consideração apenas o grau erudito da linguagem, sem considerar o quanto esta poderá desobedecer à norma culta. Assim talvez se possa contribuir para um novo olhar que “desmitifique” esse preconceito
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literário sobre obras tachadas de estarem à margem literária, em virtude da evidente espontaneidade coloquial, tal como o recurso estilístico e de linguagem. As inovações trazidas na linguagem de Jogos Infantis (1986) e em outras obras de Haroldo Maranhão são confirmadas no dinâmico e coloquial discurso de seus personagens e reforçam o potencial do autor em saber conduzir uma escrita, que se aproxima da imagem de um cotidiano urbano, familiar, que se repetiria por décadas em uma sociedade burguesa, acomodada e decadente. Ao analisar a obra que se pauta na ambigüidade de sentidos, no relato de diversas formas de experiências sexuais, percebe-se a inquietação em discutir o universo da criança e do adolescente enquanto objeto de análise do homem. Talvez esta proposta possa encontrar respostas através de reflexões coerentes, por meio de uma relação do lúdico com a realidade. Isto nada mais é que uma proposta de aproximar o homem de si mesmo, tornando-o objeto de sua própria análise. As metáforas encontradas na obra Jogos Infantis(1986) permitem sentido de extremo valor dialético, a partir do momento em que servem de ferramenta do autor para construir um texto instigante, no qual possibilita que a sociedade encontre um progresso a respeito do pensamento sexual e traga a rediscussao da sexualidade na família. A invenção, a criação literária, tem função de aproximar os sentidos do leitor e permitir que este viaje pelos campos da imaginação e da memória, desencadeando neste processo uma aliança entre o ficcional e a realidade, estabelecendo um diálogo da obra com o receptor, permitindo-lhe suas interferências interpretativas e tornando o leitor um mediador entre a literatura e a “vida vivida”, aproximando os fatos da obra como os acontecimentos do passado,ou do presente do próprio receptor; a obra dá liberdade a este receptor para deixar de permanecer em um lugar de simples destinatário do texto, para ocupar um importante espaço de “interventor” e crítico das situações e experiências sexuais narradas nos contos estudados. Jogos Infantis(1986) é uma obra que reúne quinze contos de profunda reinvenção artística sobre a temática da sexualidade, e tenta contribuir para um esclarecimento profundo e coletivo, reavaliando os valores de discussão da educação, de questões éticas e morais, procurando deixar evidente o interesse pelo caráter informativo da obra; o autor formula, sobretudo, reflexões nos seus receptores, já que apresenta uma linguagem coloquial e inventiva que conduz o leitor a perceber os caminhos que os protagonistas da obra percorrem para ter, no registro de sua memória ficcional, uma história que relata suas experiências sexuais muito próximas da realidade do homem de qualquer tempo.
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Referências
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José Sena Filho Um lugar para o cinema na periferia da modernidade
UM LUGAR PARA O CINEMA NA PERIFERIA da modernidade: o caso da amazônia na primeira metade do século XX
José Sena Filho Isso porque uma experiência de modernidade Seja, antes de tudo, Uma experiência de visibilidade do moderno. Fábio Castro
Resumo: O trabalho discute a presença do cinema em duas capitais da periferia da modernidade, Belém e Manaus. Em busca de fazer um brevíssimo panorama da presença do cinema em tais capitais na primeira metade do século XX, a proposta é ler a dinâmica local-global a qual teria efeitos sobre a presença do cinema na Amazônia Marajoara, na segunda metade do século XX. Ampara-se nas pesquisas desenvolvidas pelo projeto Memórias do Cinema no Marajó (ver Sena Filho, 2012; 2013; 2014), assim como nos trabalhos fundamentais de Veriano (2006), Selda Costa (2006) e Petit (2011a; 2011b; 2012), sobre a história do cinema na Amazônia brasileira. Palavras-chave: cinema; modernidade; Amazônia.
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A “chegada tardia” da modernidade em lugares como a Amazônia, legou a condição local, uma recepção diferenciada do movimento global que acompanhou o cinema na sua trajetória de penetração nas áreas urbanas durante o século XX. Na periferia da modernidade (Castro, 2010), o urbano ia sendo forjado tendo no cinema um importante signo dessas transformações sociais que agregavam o político, o econômico, o cultural. No encalço de capitais como Belém e Manaus, muitas cidades pequenas do interior da Amazônia também entraram no circuito, fazendo das salas de cinema espaços de sociabilidade e (re)narração da
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Belém e Manaus O cinema surge na Amazônia brasileira em 1897, final do século XIX, tendo como cenário político e econômico o auge da
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vida social, ao lado de práticas sociais de um mundo rural. Como tenho demonstrado em outros textos (ver Sena Filho, 2014; 2013; 2012) “a chegada” da modernidade na Amazônia Marajoara se deu como uma refração de signos sobre cidades constituídas por uma vida urbana restrita as áreas portuárias onde as atividades econômicas, como a extração do látex, da madeira e de pequenos cultivos, davam as condições de sua existência. Ao lado das atividades econômicas, uma vida emotivovolitiva era tecida nas relações sociais em diferentes espaços, perpassando as escolas, os locais de trabalho, a igreja, os espaços de lazer. Partindo da compreensão de que essa dinâmica microscópica da vida social foi determinante para que o cinema se tornasse um importante signo do moderno nessas cidades, é que a pesquisa tem se dedicado predominantemente a coleta de narrativas orais e de material visual. Além disso, o estudo tem demonstrado a escassez de dados documentais que discutam a presença do cinema no Marajó. A primeira década do século XX ainda faz parte do que se considerou como auge da economia seringueira na Amazônia, que Pere Petit (2003) situa precisamente entre os anos de 1850 e 1912, tendo especial destaque o município de Breves que foi o maior produtor de borracha no arquipélago marajoara no período de 1900 a 1910 (Weinstein, 1993). No período em torno de 1930 e 1940, Breves, a capital econômica do Marajó, chegou a ser conhecida como o “Celeiro Mundial da Madeira” (Leão, 2009), o que demarca a importância do arquipélago no trânsito de pessoas e negócios que certamente legaram a região influencias de diferentes alcances. Nas principais capitais do Marajó não houve uma vida artístico-cultural vinculada ao cinema antes de 1960, diferentemente do que ocorreria nas capitais, Belém e Manaus. Entretanto, levando em consideração o fluxo de pessoas e mercadorias entre as capitais e o arquipélago Marajoara, é possível afirmar que esteve cercado de uma atmosfera artístico-cultural que viria a influenciá-lo. É nesse cenário, que o presente texto segue em busca de fazer um brevíssimo panorama da presença do cinema na Amazônia na primeira metade do século XX, com destaque as capitais Belém e Manaus, tendo o objetivo de ler dimensões importantes que contingenciam a realidade social do cinema antes da sua passagem pelo arquipélago marajoara.
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produção do látex na região. Sua primeira exibição aconteceu nas capitais Amazônidas Manaus, no Teatro Amazonas, no mês de abril (Costa, 2006), e Belém, no Teatro da Paz, no mês de dezembro (Veriano, 2006). Nascido na Europa com os irmãos Lumiére, o cinema acompanhou o grande fluxo migratório estrangeiro para o Brasil. Chegando à Amazônia brasileira, apresentou características similares nas capitais Belém e Manaus. Pere Petit (2011a) registra a presença de um “Cinema ambulante e Sazonal”, entre os anos de 1897 a 1908, no qual se fazia projeção de filmagens em diversos locais da cidade como praças públicas, circos, feiras, vaudevilles, teatros, salões, bordéis e cafés-concertos. Selda Costa (2006) registra que em Manaus “o cinema passeou por hotéis e confeitarias, feiras e arraiais, circos e cafésconcertos, teatros de variedades e, por vezes, em pleno espaço aberto, nas praças públicas” (2006, p. 07) sendo recebido pelo Teatro Amazonas, desde quando iniciou suas exibições até a finalização dessa fase itinerante. Nesse contexto de exibição mais popular e itinerante de cinema, Pedro Veriano destaca a pessoa de Nicola Parente como um dos pioneiros do cinema no Pará, que além das exibições que fazia em 1905 no bairro de Nazaré, esteve presente em outros momentos na cidade, especialmente no Círio de Nazaré. Embora não haja registro preciso de sua produção, o italiano veio para o Brasil em meados do século XIX, “depois de comprar um aparelho Lumiére” (Veriano, 2006, p. 22), “viajou e residiu em diferentes estados brasileiros, exibindo filmes, trabalhando como fotógrafo e filmando alguns documentários, até se fixar no Pará, concretamente na cidade de Abaetetuba” (Petit, 2011b, p. 6). Em Manaus, a exibição de 1897 não teve sucesso entre o público presente. A recepção manauara ao cinema melhorou três anos depois com a intervenção da imprensa e com o deslocamento da sala de exibição para “um dos mais agitados bordéis da cidade, o Hotel América” (Souza, 1999, p. 78). A esse tempo, despontava em Belém o principal cineasta de Manaus, Silvino Santos. Nascido em Portugal em 1886, Silvino passa a morar em Belém a partir dos 14 anos. Aos 15 anos começa a trabalhar como assistente do fotógrafo e pintor Leonel Rocha, passando a morar em Iquitos, no Peru, onde aprende as técnicas de uso da câmera fotográfica. Em 1910, segue para Manaus onde vive grande parte de sua vida (Souza, 1999). Em Belém, na mesma época, foi Joaquim Llopis, gerente de compras espanhol, que percebeu a importância do cinema como veículo de divulgação. Fundou dois cinemas: o Politheama e o Odeon (Veriano, 2006). Tinha o empresário interesse em mostrar como se
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dava o trabalho nos seus seringais. Foi o contato com a empresa Hispano Films, em Barcelona, que tornou real o desejo de Llopis, o qual contratou e embarcou, em 31 de agosto de 1911, para Belém, Ramon de Baños. O jovem catalão, para além das atividades de cineasta, criou a empresa Para Filmes, “e passou a editar um cinejornal, naturalmente com exibições asseguradas nos cinemas do conterrâneo” (Veriano, 2006, p. 25; Petit, 2012). De acordo com Selda Costa (2006), foi em 1909, em Manaus, que a indústria do cinema passa a se desenvolver com mais intensidade criando a necessidade de construção de salas fixas de exibição de filmes. Foi no contexto desse grande crescimento do interesse pelo cinema em Manaus que Silvino Santos chega à cidade, sendo contratado, anos mais tarde, como cineasta pelo Seringalista Júlio César Araña. Apesar de Silvino não conhecer as técnicas cinematográficas, foi financiado pelo seringalista para estudar em Paris nos estúdios da Pathé-Frères dos irmãos Lumière. Quando retornou, Silvino filma um documentário para o seringalista mostrando o trabalho no seu plantio de goma elástica. O documentário nunca foi exibido, mas gerou efeito suficiente sobre a importância da produção cinematográfica para a época em Manaus, garantindo ao cineasta outros convites, inclusive, para filmagem dos trabalhos no seringais (Souza, 1999). Ao mesmo tempo em que os cineastas da Amazônia viveram uma efervescência cultural de produção cinematográfica nos tempos da Borracha, nas cidades de Belém e Manaus as sessões de filmes eram cada vez mais assistidas e ganhavam notoriedade entre a população. Em Belém, durante o círio de 1911, “eram doze as salas ou barracas nas quais eram exibidos, diariamente, filmes, a maioria europeus, o que demonstra o crescente interesse dos paraenses pelo cinema e também a renhida concorrência que existia entre os diferentes cinematógrafos” (Petit, 2012, p. 4). Após o Círio, três documentários de Ramon de Baños foram exibidos no Teatro Odeón: Embarque do eminente Dr. Lauro Sodré, O Círio e o Dia dos Finados em Santa Izabel. Era 10 de novembro de 1911, estavam presentes personalidades e jornalistas de Belém, as quais se mostraram atentas e interessadas, tendo em vista não só a produção audiovisual em si, mas a presença de familiares e amigos, pela primeira vez, na tela de um cinema. Incentivadas, também, pelo sucesso entre as personalidades da época, no dia seguinte, seis sessões foram realizadas para o público em geral, despertando entre estes um sucesso maior ainda: “Era tanta gente que queria ver os nossos interessantes filmes, que a polícia foi obrigada a intervir várias vezes
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para conter alguns espectadores (...) que não conseguiam reprimir a sua impaciência” (Baños, 1991, p. 68, apud. Petit, 2011b). Em 1912, com o crescente estabelecimento do cinema como atividade artístico-cultural em Belém, os empresários Antônio Martins e Carlos Teixeira, com o propósito de atrair a elite local, inauguram o cinema Olympia, que passou a funcionar regularmente a partir de 24 de abril daquele ano (Veriano, 2006; Petit, 2012). Por toda a primeira década do século XX, o cinema expandiu em numero as salas de exibição e expectadores na Amazônia. Não se tratava apenas de uma expansão cultural, pois muito da produção tinha um fim político, assim como, configurava importante mídia, uma vez que era um meio determinante de fazer circular, por exemplo, informações sobre um mundo em tensão de guerra. Dentre as variadas salas de cinema da capital paraense como o Cine Olympia, Palace Theatre, Avenida, Iracema, o Nazaré, dentre outras, Pedro Veriano destaca o curioso “Cine Fuzarca”, localizado no bairro de São Braz, mas que não perdurou muito. Era um cinema de caráter popular inaugurado em 1930 e que atendia bairros mais afastados do centro (Veriano, 2006). Havia uma grande movimentação em torno das salas de cinema nas capitais Belém e Manaus, assim como, uma crescente influência sobre cidades do interior. Destaca-se a presença das salas de exibição em Santarém, que possuía um cinema também com nome Olímpia. Além de Santarém, as vilas de Icoaraci e Mosqueiro, mantiveram salas de cinema ainda nos primeiro 50 anos do século, com destaque ao Guajarino, em Mosqueiro, criado em 1923 (Veriano, 2006). Para além da produção local, o cinema teve uma forte influência na vida da cultura na Amazônia seguindo, de um modo ou de outro, o roteiro de uma Indústria cultural como um processo histórico e de midiatização sociocultural (Sena Filho, 2013).
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Enquanto na Amazônia brasileira o cinema gerava um público espectador e reproduzia, em grande medida, os filmes realizados no estrangeiro, em 1912, os Estados Unidos da América, firmava sua indústria cinematográfica que se estruturava visando grandes investimentos. Dentre os importantes nomes daquele tempo, Charles Chaplin surgia como o artista mais famoso do cinema mudo. A supremacia da indústria cinematográfica Norte Americana sobre a Europeia se daria em 1914, em decorrência da Primeira Grande Guerra (BIBLIOTECA EDUCAÇÃO É CULTURAL, 1980).
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Dinâmicas da produção cinematográfica
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Petit destaca, entre os anos de 1913 a 1918, o impacto da crise financeira e comercial da borracha na Amazônia, inclusive sobre a produção cinematográfica local, e destaca a influência do cinema norte americano na região.
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Apesar da crise, a contribuição dos “cineastas da borracha” para a produção cinematográfica local é notória. Com o catalão Ramon de Baños e o português Silvino Santos, localizamos os pioneiros de uma cultura de produção cinematográfica na Amazônia. Outros cineastas apareceram, neste início de século na região, mas certamente estes dois cineastas marcaram o período com a produção e investimento dos seus trabalhos. A produção cinematográfica de Ramon de Baños na Amazônia se deu até 1913 quando este foi acometido pela malária, momento em que retorna a Barcelona e continua sua produção cinematográfica na Catalunha e Espanha. Sobre a Amazônia, Ramon produziu de 1911 a 1913 diversas filmagens entre as quais se pode dar destaque a: Viagem de Lisboa ao Pará; Embarque do eminente Dr. Lauro Sodré; O Círio; Dia de Finados em Santa Izabel; Concurso Hípico; Fim de Secção; Funeral do Barão do Rio Branco; Festival de Natação e Remo; Revolução; A moda; Os Sucessos de Maio; Os Sucessos de 29 de agosto; Recolecção da Borracha no Estado do Pará (para o Ministério da Cultura e Comércio); Fitas Marajoaras (Petit, 2011a; Veriano, 2006). Silvino Santos iniciou sua produção cinematográfica, efetivamente e coincidentemente, quando Ramon de Baños deixava a Amazônia. Foi em 1913 que iniciou sua produção que seguirá até, aproximadamente, 1934, tendo produzido, com temática amazônica, 22 filmes, entre curtas e médias-metragens, entre os quais podemos destacar: No País das Amazonas; No rastro do eldorado; Chegada e estadia em Manaus do Dr. Washington Luiz. Além dos filmes de temática amazônica produziu 35 curtas-metragens portugueses e 31 de temáticas familiares (Ramos; Miranda, 1997). Como se viu, o cinema na Amazônia, na primeira metade do século XX, esteve diretamente atrelado à renda gerada a partir da
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Nesses anos, entretanto diminuíam algumas atividades lúdicoculturais em Belém, a crise também influenciou negativamente a expansão das atividades cinematográficas em Manaus e Belém. É de destacar também que a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) favoreceu a crescente influência, no Brasil e em outros países, da produção cinematográfica dos Estados Unidos em detrimento da européia. (Petit, 2012, p. 2).
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produção seringueira. Em Manaus a crise econômica da borracha impulsionou uma série de projetos políticos e econômicos que colocou o cinema como meio de divulgação de interesses do governo. Assim, foi criada a Seção cinematográfica Amazônia Cine-Film, que elaborou os curtas-metragens O Horto Florestal, Festa da bandeira e Manaus e seus arredores, no intuito de repassar uma imagem de progresso e recuperação da economia da região (Costa, 2006). Conforme Selda Costa (2006),
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De todo modo, tanto em Belém quanto em Manaus, a produção cinematográfica nesse início do século XX esteve fortemente vinculada à propaganda. A autora destaca que em Manaus era praticamente impedida a produção ficcional, que embora existente, foi reconhecidamente frágil. Em Belém, a produção ficcional ganhou um certo espaço somente a partir dos anos 1930, tendo em vista o surgimento de novos personagens no cenário do cinema Brasileiro. Se por um lado, a nível nacional e local, o cinema estava mais voltado a uma produção mais documental, os EUA produziam filmes ficcionais e se firmavam diante de um público popular crescente, com uma ampla produção visando a venda do produto cinema. Já na Europa, havia, para além da vendagem massificada, uma preocupação em conquistar um público mais elitizado (BIBLIOTECA EDUCAÇÃO É CULTURAL, 1980). O desenvolvimento de uma cultura cinematográfica na Amazônia, ganha, a partir de fins de 1930, importante personalidade: o paulista Líbero Luxardo. Nascido em 1908, Líbero, que já trazia “heranças” cinematográficas do pai, amadureceu profissionalmente desenvolvendo diversas atividades com cinema durante os anos de 1929 e 1939, fixando-se, após esse período, em Belém. Arthur Altran destaca que, ao chegar a Belém, Líbero “abriu um laboratório cinematográfico, produziu um cine-jornal e dirigiu diversos documentários de curta-metragem ao longo dos anos de 1940 e 1950”
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O interesse da Amazônia Cine-Film, entretanto, era a realização de um longa-metragem que mostrasse “lá fora o que é este colosso amazônico em todos os seus pormenores e fazer a maior e melhor propaganda inteligente desta região” (A Capital, 11.05.1918). O filme seria Amazonas, o maior rio do mundo, idealizado e realizado por Silvino Santos, que levou dois anos percorrendo o território amazônico. O filme consumiu todo o capital da empresa e não chegou a ser exibido, pois os negativos foram roubados e levados para Londres, onde foram vendidos a empresas de turismo! ( p. 11).
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Os jornais da época registraram a passagem por terras amazônicas de expedições e comissões científicas e culturais, acompanhadas por cinegrafistas, que documentaram os trabalhos técnicos e captaram imagens de povos indígenas, os cursos dos grandes rios e as riquezas florestais e minerais,
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(CENTUR, 2008, p. 12). Atuou como jornalista, político e escritor, além das atividades cinematográficas que desenvolveu até a década de 1970 tendo realizado entre 1932 e 1973 sete filmes longa- metragem, três no Ciclo Matogrosense, Alma do Brasil (1932), Caçando feras (1936) e Aruanã (1938), e quatro no estado do Pará, em seu Ciclo Amazônico, Um Dia Qualquer… (1962), Marajó – Barreira do Mar (1964), Um Diamante e Cinco Balas (1968) e Brutos Inocentes (1973). Passada a fase do cinema mudo, no outro lado da América, os irmãos Warner davam voz em 1927 ao primeiro filme completamente falado: The Jazz single. Apesar de algumas objeções ao novo cinema, inclusive no Brasil, o cinema sonoro se estabeleceu no mundo de modo irrevogável. Além disso, os anos de 1930 seriam extremamente produtivos para Hollywood, pesar da produção em massa. Já na Europa, o investimento em uma estética fílmica gerou também bons frutos, entretanto, a produção Europeia logo entraria em um novo recesso por ocasião da II Grande Guerra, circunstância que firmou em definitivo o cinema americano, onde, porventura, ainda não tivesse se implantado (BIBLIOTECA EDUCAÇÃO É CULTURAL, 1980). Em Belém, na década de 1930, o cinema, estabelecido, também sofria influência direta da produção norte americana. Dos EUA vinham 65% dos filmes exibidos, enquanto a produção nacional detinha a segunda posição no mercado, com 26% (IBGE, 2013). Apesar disso, resistiu certa influência europeia. A produção brasileira também se mostrava crescente, tendo destaque, na década de 30, o cineasta Humberto Mauro. Na produção local, Líbero Luxardo foi o mais importante cineasta da década de 1940 na Amazônia tendo produzido uma série de curtas-metragens, tendo em vista sua entrada na vida política ao lado de Magalhães Barata, Interventor Federal no Estado do Pará. (Veriano, 2006). O cineasta dedicaria seu trabalho, entre política e produção cinematográfica, até a morte de Barata em 1959. Seguindo a produção de diversos documentários de encomenda baratista, Líbero realizaria, ainda, importante cobertura cinematográfica da atuação de Barata pelos municípios do interior do Estado. O fluxo de produção cinematográfica do Brasil foi intensificado, mas não o suficiente para superar a produção estrangeira na região. Conforme Costa (2006, p.12):
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imagens que é necessário recuperar e trazer de volta ao Brasil e à Amazônia. Nos anos 30, produtoras nacionais, principalmente a Fan-Film, de Líbero Luxardo e Alexandre Wulfes, visitaram a região, trazendo na bagagem filmes como A restauração do Pará e O Círio em Belém no ano de 1934, e produziram inúmeros curtas-metragens, especificamente após a promulgação da lei de obrigatoriedade da exibição do complemento brasileiro nas sessões de cinema, a conhecida “lei dos 100 metros”, de 1932.
Foram os norte-americanos que se empenharam em representar a Amazônia e seu estranho mundo: “monstros préhistóricos, aventuras inacreditáveis, caçadas perigosas, formigas, aranhas e piranhas gigantes, índios canibais e estranhas pirâmides escondendo os tesouros do rei Salomão” (Costa, 2006, p. 12), e até romances dos mais ardentes, tiveram como cenário um imaginário construído sobre a Amazônia brasileira. Para a autora, “o cinema foi o criador e divulgador dos mais loucos e absurdos mitos sobre a Amazônia” (idem).
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A cidade moderna está impregnada de uma infinidade de títulos, rótulos, formas, fórmulas, enfim, um mundo de materialidades e signos que refletem uma dimensão do urbano não apenas como lugar, mas como imaginário, sensação, temporalidade, espelho e encarnação da Modernidade (Castro, 2010). Em 1950, a Amazônia Marajoara destoava quase completamente do cenário descrito acima, restrito aos bairros em torno das áreas de exportação de produtos, as margens dos rios. O cinema, que chegaria ao início dos anos 1960, configuraria um signo importante da ideia do moderno, instaurando naquela realidade social outros modos de produção de discursos e circulação de conhecimento e comportamento social, outra recepção. Em Manaus, o projeto modernizador expulsava a parcela da população que não se encaixava no modelo que se impunha. A cidade da borracha foi assim adquirindo outra fisionomia, e de encontro às construções que não se adequavam nem às condições naturais nem à cultura dos habitantes locais. o espaço transformou-se à custa da correção dos terrenos naturalmente acidentados, para que o nivelamento do espaço urbano adquirisse condições de receber novos projetos de construção. Ampliaram-se ruas, aterrando-se indiscriminadamente igarapés, os quais, “muitas vezes, eram usados
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Uma periferia da periferia da modernidade
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como via de comunicação, fonte de abastecimento d’água e local de lazer”. (Oliveira; Magalhães, 2003, p. 48). Em Belém, de modo semelhante a Manaus, a demanda social e cultural da elite é um dos fatores que impulsionam uma série de mudanças no ponto de vista urbanístico, e pode-se dizer, motivaram até uma “limpeza social”, com o afastamento das classes pobres das áreas do centro da cidade, no período da administração de Antônio Lemos. Nesse cenário, Belém, copiando hábitos europeus, torna-se o local de uma elite que implanta novos hábitos e novos modos de relação social, tendo uma vida cultural que se servia de uma diversidade de divertimentos como cafés, bares, bilhares, prostíbulos, circos e teatros (Castro, 2010). Como se pode ler, nas capitais da periferia da modernidade, Belém e Manaus, ao lado de teatros, circos, cafés etc. o cinema constituiu um signo do moderno na primeira metade do século XX, dinamizando a vida social nas cidades da borracha. Conectadas as transformações globais, buscaram copiar um modelo de sociedade que pudesse ser chamada de moderno. As margens do processo europeu, não poderiam viver senão uma sensação do moderno, forjado na base de suas transformações econômicas. Foi às margens da efervescência cultural, econômica e política porque passava Belém e Manaus, que a Amazônia Marajoara foi tecendo seu lugar na periferia da periferia da modernidade. Distante do frenesi das grandes transformações globais e de sua atmosfera moderna, tendo em vista seu lento desenvolvimento urbano, e com isso, a ausência de elementos e sociabilidades de uma cidade moderna, o Marajó responderia a esse processo de outro modo, como uma resposta de valor para sua historia local e que nos ajuda a compreender a dinâmica cultural da cidade no decorrer da segunda metade do século XX.
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BIBLIOTECA EDUCAÇÃO É CULTURA. Cinema. Rio de janeiro: Bloch: FENAME, 1980. CASTRO, Fábio Fonseca. A cidade Sebastiana: Era da borracha, memória e melancolia numa capital da periferia da modernidade. Belém: Edições do autor, 2010. CENTUR. 100 Anos de Líbero Luxardo. Belém – PA: SECULT, 2008. CINEMATECA PARAENSE. Disponível em: <http:// cinematecaparaense.wordpress. com/realizadores-2/libero-luxardo/>. Acesso em: 20 dez. 2012.
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Referências
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A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA a partir do grafismo corporal da cultura indígena Ka’apor
Resumo: A pesquisa foi realizada com os alunos da etnia ka’apor do 6º ao 9º ano durante as alternâncias de estudo que ocorreram em dois Polos de Ensino: Aldeia Xiépihurenda, município de Centro Novo-MA e Aldeia Jupu’y Renda, município de MaranhãozinhoMA. Por meio da observação participante, no decorrer das aulas do componente curricular da Etnomatemática. O processo de escolarização compõese de uma equipe de educadores formadores no projeto de Educação Escolar Indígena - Aprendendo com a Floresta- visando o avanço da escolaridade de indígenas da etnia ka’apor, no estado do Maranhão. A experiência é fundamentada na pedagogia de alternância, que consiste em um sistema de ensino alternado sendo que o mesmo busca adequar-se a essa pedagogia respeitando o tempo e a cultura de cada povo inserido no mesmo. E durante essa experiência de ensino e aprendizagem, observou-se a desenvoltura e o conhecimento matemático dos alunos, os quais os aplicam de acordo com a cultura e a dinâmica do cotidiano de suas aldeias. O desenvolvimento desse trabalho nos levou a pensar em uma proposta de ensino-aprendizado que pudesse fazer com que os alunos tivessem uma visão da educação matemática sendo aplicada em seu dia a dia, assim como a arte do grafismo corporal que possui uma conceituação geométrica em seus traços. Valorizando o conhecimento matemático do aluno, sua forma de subsistência, sua vida sociocultural, seu contexto cultural e seus saberes. Com a realização da pesquisa constatou-se que é possível um diálogo entre os
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saberes culturais do povo Ka’apor e os assuntos matemáticos vistos por uma ótica mais ampliada da visão em sala de aula. Palavras-chave: Educação escolar indígena. Etnomatemática. Grafismo corporal. Educação matemática Ka’apor. Saberes Ka’apor.
O presente trabalho está fundamentado em uma experiência de educação escolar indígena da etnia ka’apor, povo da Família TupíGuaraní que habita na Terra Indígena Alto Turiaçu. Os Ka’apor vivem atualmente no Estado do Maranhão compondo o total de doze aldeias distribuídas ao longo da terra indígena. Esta experiência é fruto do exercício da função de educadora formadora no Ensino Fundamental Maior – 6º ao 9º ano no Componente Curricular Etnomatemática com ênfase no Tempo e Lugar Indígena. Embora constituísse uma atuação profissional por processo seletivo no Estado de atuação desses indígenas – o Maranhão, não havia por parte da Secretaria de Educação diretriz definida para esse fim. Por essa razão, iniciei o trabalho de docência considerando atividades de planejamento pedagógico, semanas pedagógicas de formação em Educação Escolar Indígena, entre outros eventos de organização escolar indígena. Esta experiência faz parte de um processo de avanço da escolarização de indígenas de um projeto fundamentado na valorização cultural, defesa territorial e ambiental indígena com destaque para defesa da fauna e floresta, elementos essenciais para a manutenção da vida e reprodução sociocultural indígena. Antes das atividades de ensino foram realizados três encontros de avaliação cognitiva com aproximadamente 92 educandos Ka’apor, visando identificar um perfil escolar de educandos indígenas para o Ensino Fundamental Maior, no sentido de sugerir à SEDUC Maranhão a emissão de documentos escolares a esses educandos indígenas. Todo esse processo pedagógico veio sendo coordenado por uma Comissão de Educação Ka’apor (04 professores indígenas e 02 lideranças indígenas) com assessoria de um antropólogo e uma linguista. Essa experiência de ensino vem considerando o Ensino da Língua Materna (língua ka’apor) e o Ensino Bilíngue (língua ka’apoor e língua Portuguesa), assim como o acompanhamento do processo de encaminhamento para o início das atividades do Ensino Fundamental Maior (6º ano), que vem acontecendo em dois Polos de Estudos (Aldeia XiéPihun Renda, município de Centro Novo do Maranhão e Aldeia Ximbo Renda, município de Maranhãozinho).
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Introdução
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Após varias reuniões, debates e estudos sobre a organização e funcionamento desse nível de ensino, definiu-se, em acordo com a Secretaria Adjunta de Projetos Especiais (SAPE), a qual está vinculada à Superintendência de Educação Escolar Indígena, que a seleção de professores indígenas e educadores formadores (não indígenas) que atuariam na educação escolar Ka’apor não se submeteria ao Edital Geral da Secretaria, tendo em vista as especificidades e diferenças dessa sociedade. Desta forma, ocorreu um “Processo Seletivo Especifico e Diferenciado”, considerando o currículo específico e diferenciado e o calendário indígena. A proposição foi acatada pela SAPE e os procedimentos legais tomados por esta secretaria. Mas, fundamentado na legislação estadual de educação e legislação nacional de educação escolar indígena, as peculiaridades seriam consideradas em um novo processo seletivo especifico, considerando o público da educação escolar das aldeias em seus diferentes níveis de ensino. Contudo, elaborou-se um edital diferenciado com a participação paritária (técnicos da SUPERIND, SAPE e indígenas).
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Após o processo seletivo, aconteceram atividades formativas, como a “Oficina de Diversidade Linguística”, reuniões de planejamento para a elaboração de ementário dos componentes curriculares a serem trabalhados1. A educação da etnia ka’apor chama atenção pelo fato de possuírem um processo de manutenção cultural muito forte, uma vez que os mesmos mantem viva a própria língua ka’apor em suas aldeias e essa característica própria nos remete a pensar como estabelecer uma relação educando-educador necessária para que haja uma comunicação e entendimento entre ambos durante o processo de ensino aprendizagem da matemática. Objetivo desse trabalho é fazer um diálogo entre o grafismo corporal da cultura Ka’apore o Componente Curricular Etnomatemática nas alternâncias de estudos, fazendo assim um acompanhamento dessas práticas culturais através da observação participante,em queencontro-me na condição de educadora. Nessas circunstâncias, surgiu o interesse em pesquisar essa dinâmica da educação matemática indígena de modo que os momentos de encontro de escolarização indígena fossem proveitosos e pudessemcontribuir com a formação acadêmica dos mesmos, construindo uma experiência de educação escolar indígena e respeitando a educação e pedagogias indígenas, que têm muito a nos ensinar e subsidiar as práticas pedagógicas em nosso cotidiano não indígena. Dessa maneira, comecei a pesquisar sobre educação indígena e educação escolar indígena, destacando que as mesmas estão
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conceituadas no primeiro tópico deste artigo, no qual faço uma abordagem geral e local sobre o povo ka’apor, etnia observada neste trabalho. Assim como sobre a educação escolar ka’apor fazendo uma descrição da educação matemática sobre uma visão Etnomatemática. No segundo tópico faço uma abordagem culturaldo grafismo corporal da etnia ka’apor. Descrevo no terceiro tópico,os recursos práticos que foram utilizados para o desenvolvimento da pesquisa. EducaçãoIndígena De acordo com Mandulão (2006), a educação indígena está relacionada às características comuns aos diversos povos indígenas do Brasil, no que se refere ao seu modo de ensinar, uma vez quea educação é repassada, pela tradição oral, mesmo sofrendo grande influência dos brancos ao longo dos anos. Os mais velhos buscam manter suas tradições repassando para os mais jovens as histórias de seus costumes antigos, nesse exercício se transmitem as normas de conduta de uma aldeia e suas concepções de mundo. E descreve a respeito da cultura indígena
Falar em educação indígena é inseri-la em todas as relações cotidianas, de modo que devemos usá-la em defesa da própria comunidade. Tornando essa educação uma ponte entre a aldeia e o mundo, considerando os aprendizados dentro das casas junto com os pais e avós, nas relações de trabalho com o roçado, nas atividades do plantio, da colheita, nos cuidados com as plantas medicinais, na participação dos rituais comemorativos e sagrados, assim como o envolvimento nas reuniões e organizações da sociedade, das rezas, dos benzimentos e principalmente, o respeito com a natureza. É esse embasamento teórico e prático que fortalecerá os interesses comuns da comunidade indígena na construção do ser, pelo fazer, testado dentro de um contexto real (Mandulão, 2006).
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No que se refere ao seu modo de ensinar: a nossa educação própria transmitida secularmente pela tradição oral e que foi e ainda é praticada nas aldeias indígenas, não obstante o contato violento que as populações indígenas sofreram ao longo dos anos. Os mais velhos sempre tiveram um papel muito importante na transmissão dos conhecimentos aos mais jovens. São eles os responsáveis pelo relato das historias antigas, das restrições de comportamento, das nossas acepções de mundo (Mandulão, 2006, p. 218).
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Essa concepção de que a Educação Indígena é uma prática de conhecimentos que ultrapassam os limites de uma sala de aula, nos dá suportepara pensarmos numa proposta pedagógica de ensino que valorize a carga cultual dos saberes indígenas que cada educando traz em sua identidade cultural. Essa extensão de saberes que passade gerações em gerações é a educação indígena, visão esta que não fica restrita a uma sala de aula, mas vai além. Os mais velhos têm essa função de repassar para os mais novos os conhecimentos e as práticas do dia a dia indígena e essa dinâmica acontece desde muito cedo, quando a criança é livre e transita nesse universo da aldeia aprendendo com a praticidade. E na cultura indígena do povo ka’apor não é diferente. Para Silvia (2008), não é fácil biografar-se, existencializar-se e historicizar-se, quando se observa que no geral, não há muito espaço para se trabalhar esses momentos em sala de aula, uma vez que o que é familiar, ou seja, o que se faz no dia a dia, não desperta tanto interesse, não soa como novo ou tampouco é interessante de ser historicizado. É na perspectiva de mudar essa realidade que a pesquisa que desenvolvemos com o povo ka’apor está embasada, em manter viva a cultura e saberes indígenas fazendo com que a cada dia suas práticas culturais sejam vistas com mais valor e que os mesmos estejam dispostos a lutar pela manutenção de seus saberes. Sendo assim, a educação vem responder aos anseios dessa etnia à medida que contribui para o reconhecimento de sua identidade e a valorização da sua cultura, fornecendo ferramentas para que os mesmos possam discutir ou solucionar questões relacionadas com a própria comunidade como: saúde, território, autossustentação e autogestão.
Para Peggion (2002), cerca de 60% do povo ka’apor é monolíngue (falam apenas a língua Ka’apor), os outros 40% falam, além de sua língua materna, falam um português tosco ou regional, sendo assim denomina-se o Povo Ka’apor ou “gente ou povo do mato”, como expressa a língua Tupi, o povo que sai do Pará, passando por longa migração forçada pelas frentes de atração e contato do Estado e conflitos interétnicos, atravessando os Rios Tocantins, Acará, Moju, Capim, Guamá, Coaracy e Gurupi, se instalando, consequentemente, no século XVIII, no noroeste do Maranhão.2 2
Ocupando a região noroeste do Estado, região do Gurupi e Alto Turiaçu, com sentido noroeste-sudeste quase paralela à rodovia BR-316 perfazendo um território de 530.524,000ha, superposta em seis (06)
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Educação Indígena Ka’apor
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Assim como os demais indígenas existentes no Brasil, os ka’apor que habitam a fronteira maranhense da Amazônia, mudaram bastante no decorrer de cinco séculos de encontro com o homem branco, mas ainda assim buscam guardar e preservar sua identidade cultural3. A técnica de transformação pela qual o povo ka’apor se desenvolve se modifica, é a forma de preservar sua identidade, por torná-la acessível aos novos tempos e às novas situações a serem vividas, nesse sentido temos a dinâmica da educação indígena passandode gerações em gerações e autenticando a existência do povo ka’apor. O processo de transfiguração étnica estuda a maneira pela qual os povos se formam e se transformam, porque é transfigurando-se que eles mantêm sua identidade, por torna-la viável aos novos tempos e às novas condições que enfrentam (Ribeiro, 2010, p. 74).
municípios (Centro Novo do Maranhão, Centro do Guilherme, Maranhãozinho, Nova Olinda do Maranhão, Araguanã e ZéNovo do Maranhão, Centro do Guilherme, Maranhãozinho, Nova Olinda do Maranhão, Araguanã e Zé Doca), sendo doze (12) aldeias Ka’apor, somando um número de aproximadamente 800 habitantes (em 1998). 3 De fato essas observações são concretas mesmo que havendo um intenso processo de migração impulsionado pela perseguição dos colonizadores o povo ka’apor, é um exemplo de resistência e coragem, sentimento esse que faz com que até hoje mantenham suas tradições culturais, como o cerimonial na confecção dos artefatos culturais, o grafismo corporal, dentre outros, sendo a manutenção da língua mãe uma das principais formas de resistência ao contato com o branco.
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A educação indígena tem um duplo conhecimento, que envolve o que se aprende com os mais velhos, aprendendo coisas que já existiram no passado assim como a própria dinâmica da aldeia e da escola, que tem o papel de fundamentar alguns conceitos que possam ajudar na construção de uma vida melhor para esse povo sem que os mesmos dependam tanto dos não índios. A Educação indígena ka’apor, possui uma gama de saberes culturais, consistindo em um vasto e detalhado conhecimento da floresta, assim como a religiosidade que está pautada na pajelança, sobretudo o que mais fascinou o autor foi à convivência solidária que os mesmos compartilham em seu dia-a-dia. Assim como também o desejo de beleza e perfeição que faz com que os mesmos tenham
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enorme dedicação sobre o que fazem em suas aldeias seus artesanatos, suas pinturas corporais e etc. (Ribeiro, 2010). Quanto aos costumes dos ka’apor no que se refere aos meios de sobrevivência estão inseridos os hábitos de caçar, de pescar e, sobretudo da lavoura. Os mesmos realizam habitualmente o cultivo de aproximadamente umas quarenta plantas em suas roças, lembrando que até hoje essas mesmas são plantas que compõem o sustento básico do nosso povo, como é o caso da mandioca, do milho, do amendoim, dos feijões e de muitas outras plantas. Eles ainda domesticaram diversas plantas úteis, como o caju, o abacaxi, o pequi, o urucum etc. (Ribeiro, 2010). É na convivência com os ka’apor que passamos a sentir de perto a importância daculturae sua transmissão, através dos sentimentos busca-se nos mais velhos o livro dos conhecimentos para que as tradições sejam sempre duradouras, uma vez que percebemos essas ideias sendo repassadas para as crianças que serão futuras tradutoras dos saberes indígenas, estes que estarão sempre a serviço do povo. A Educação Escolar Indígena
As ações eram planejadas e efetivadas de forma sistemática, fundamentada em informações que subsidiavam a melhor maneira para que os colonizadores pudessem explorar a mãode-obra e as riquezas que havia nas terras indígenas. O relacionamento entre o estado brasileiro e os povos indígenas no Brasil tem uma história na qual se reconhecem duas tendências: a de dominação, por meio de integração e homogeneização cultural, e a do pluralismo cultural (PAREDES, 1999).
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De acordo com Paredes (1999) desde a colonização do Brasil o povo indígena enfrentou problemas no que diz respeito à educação, os mesmos eram forçados através da catequização e civilização a inserir-se em uma nova sociedade brasileira. O objetivo dos religiosos jesuítas e positivistas do serviço de proteção aos índios girava em torno de que, por meio do ensino catequético bilíngue, os indígenas acabassem com suas culturas deixando de ser o que realmente eram, e foi com esse intuito que surgiu a escola no país, não somente com fim catequéticos, mas sim tendo em vista o poder de exploração dessa gente como mão-de-obra e implantá-los decisivamente ao Estado brasileiro.
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Segundo informações obtidas pelos próprios alunos ka’apor, a realidade da Educação Escolar Indígena da comunidade passou por muitos problemas no que diz respeito ao comprometimento do Estado do Maranhão com o ensino-aprendizado dos mesmos, eles passaram 10 (dez) anos sendo desrespeitados por professores que não tinham formação para trabalhar com a educação indígena, não cumpriam com calendário escolar e não valorizavam os saberes da comunidade para o diálogo em sala de aula. O problema se intensificou, pois não existe um acompanhamento de fiscalização dos técnicos da SEDUC do Estado em relação a esse processo ou talvez não lhes interesse, uma vez que os mesmos nesses 10 (dez) anos não certificaram os alunos que frequentavam a escola indígena.
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Falar em educação escolar indígena hoje é pensar em uma proposta pedagógica de ensino que valorize o conteúdo cultural que existe em uma comunidade indígena, uma vez que é possível observar uma riqueza de conhecimentos que podem ser trazidos para a escola e contribuir para o ensino aprendizado. Correa (2001) nos traz uma visão de que o processo de educação escolar indígena baseia-se em um novo julgamento crítico para os conhecimentos educacionais diferenciados, que foram estabelecidos em contextos históricos passados tendo como pré-requisito fundamental a variedade de circunstâncias culturais e de propostas pedagógicas de ensino que são apresentadas pelos próprios grupos indígenas. Nos últimos tempos, professores indígenas assim como os professores não indígenas de inúmeras escolas brasileiras, vêm lutando por melhorias no que diz respeito a uma proposta curricular que esteja mais próxima de sua realidade com o intuito de atender às necessidades de seus povos. Esses profissionais lutam por essa proposta de mudança curricular devido à insatisfação com os modelos educacionais que lhes são impostos e que historicamente observa-se que os mesmos não atendem suas expectativas no âmbito político e nem as suas pedagogias culturais.4 E foi nessa perspectiva que as lideranças ka’apor lutaram para que acontecesse uma seleção por meio de um processo seletivo simplificado para a contração temporária de professores para atender ao ensino do (6º ao 9º), junto a Secretaria Estadual de Ensino do Maranhão. Objetivando um processo de avanço da escolarização de indígenas de um projeto fundamentado na valorização cultural, defesa territorial e ambiental indígena com destaque para defesa da fauna e floresta. Elementos essenciais para a manutenção da vida e reprodução sociocultural indígena.
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De acordo com nova realidade entre a teoria e prática sobre a educação escolar indígena surge, sobretudo depois da promulgação da atual Constituição da República Federativa do Brasil, em 1998, momento em que a educação escolar indígena passa por muitas mudanças especialmente no que diz respeito à transferência da coordenação das ações escolares de Educação Indígena, que estava sob responsabilidade da FUNAI, para o MEC, fato esse ocorrido em 1991.5 Educação Escolar Ka’apor As informações referentes à educação escolar ka’apor nos foi concedida através do PPCEBK, Projeto Pedagógico e Curricular da Educação Básica Ka’apor (PPCEBK, 2012), o qual nos descreve com muita precisão a elaboração do Projeto Aprendendo com a Floresta – Ka’anamõjumu’e há katu, que surgiu com participação e decisão das lideranças indígenas e demais ka’apor, assim como alguns coordenadores não indígenas, destacando que o apoio dessa organização está pautado na conquista da valorização dos saberes indígenas e na regularização da Educação Escolar Indígena. Alguns pontos principais da legislação de educação escolar indígena. Apresentamos os direitos indígenas que asseguram uma educação escolar indígena diferenciada e de qualidade6.
Logo em seguida em 1993 o MEC cria um comitê de Educação Indígena, o mesmo promove a publicação das Diretrizes para a politica Nacional de Educação Indígena no mesmo ano, a promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei de nº 9.394, esta instituída em 20 de Dezembro de 1996, estabelecendo a garantia de uma educação diferenciada para o povo indígena e alavancando discursões sobre a construção e publicação do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), em 1998. 6 Na Constituição Federal de 1988:Art. 210 - §2º - O Ensino Fundamental Regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem e; no Art. 211 - §3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no Ensino Fundamental e Médio. Já no Art. 215 - §1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e, de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional e; no Art. 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
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Sendo assim, o desenvolvimento das experiências pedagógicas Ka’apor durante o período de escolarização aconteceram sob a orientação de um processo formativo fundamentado na Pedagogia da Alternância de estudos em que experiências e pesquisa é a base para a formação dos educandos. Contudo, devem responder os anseios e projetos da sociedade Ka’apor. Nesse sentido, segue princípios e orientações a serem consideradas no desenvolvimento de uma educação escolar Ka’apor orientada por Alternância Pedagógica. Aonde o tempo do povo seja compreendido no decorrer as alternâncias de estudo e do tempo-aldeia. E respondendo aos anseios da comunidade que agora desfruta de uma educação escolar amparada legalmente pela legislação brasileira. O grafismo na pintura corporal ka’apor
A Portaria Interministerial MJ/MEC n. 559, de 16 de abril de 1991, cria a Coordenação Nacional de Educação Indígena e dá providências correlatas. Com tais conquistas, as escolas indígenas não seriam um instrumento de imposição de valores e normas culturais da sociedade envolvente, mas sim, um novo espaço de ensino-aprendizagem, fundada na construção coletiva de conhecimentos, que reflita as expectativas e interesses de cada grupo étnico. O objetivo dessa ação intergovernamental é garantir que as ações educacionais destinadas às populações indígenas fundamentem-se no reconhecimento de suas organizações sociais, costumes, línguas, crenças, tradições e nos seus processos próprios de transmissão do saber. No Art. 10 – Os Estados incumbir-se-ão de: IV – autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino. No Art. 15 – Os Sistemas de Ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram, progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira observada às normas gerais de direito financeiro público.
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Segundo Velthem (2010) a valorização do direito dos índios à diversidade cultural tem dado ênfase à importância da influência cultural dos povos indígenas no cenário da construção cultural do país. Uma vez que as movimentações artísticas indígenas têm se mostrado por meio do grafismo corporal, essas práticas têm provocado grandes interesses no que diz respeito à proteção dos patrimônios culturais indígenas. Pesquisadores do patrimônio indígena observam que é de
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fundamental importância a documentação dos registros, dos inventários e das coleções etnográficas, exercendo um papel fundamental para o fortalecimento das comunidades indígenas. O grafismo corporal ka’apor é exemplo de uma visualização simétrica, uma vez que a mesma obedece a traços geométricos que são cuidadosamente desenhados com o sumo do fruto do jenipapo (jyndypa) e em alguns casos utiliza-se também o urucum, sendo que, a primeira substância pode durar na pele por até quinze dias.7 Pintar é uma tarefa mais feminina, tanto as mulheres casadas quanto as solteiras, assim como as crianças exercem essa prática, empregando suas marcas e formas individuais, ou seja, cada desenhista define seus instrumentos de trabalho, o que dá sentido as características próprias de seus traços. Algumas desenhistas são bem requisitadas por possuírem seus traços bem definidos e precisos, para os ka’apor a prática do grafismo corporal fortalece a cultura e os deixa mais bonitos e enfeitados para o cotidiano na aldeia. Observamos que o grafismo corporal da etnia ka’apor representa para os mesmossua vestimenta natural. Vestimenta essa que tem suas denominações, como, por exemplo, usadas para a caçada, para a pescaria, para momentos de conflitos, para cerimoniais como o “batizado” ato de nomear, dar nomes aos ka’apor, assim como os rituais da pajelança e etc. Essas vestimentas naturais representam na peleka’apor, a forçacultural de cada um desses momentos dos mesmos. Aleveza de seus traços naturaisrepresenta também para o povo, sua harmonização com a natureza.Desse modo, percebemos que os ka’aportrabalham em seus grafismos traços precisos em que os desenhistas assemelham seus desenhos com alguns elementos da natureza, como: o casco do jabuti, animal muito utilizado por eles como fonte alimentar, as marcas da natureza existentes no coro das cobras e dos peixes, os grafos naturais do couro da onça e etc.Essas observações feitas pela grafista ManhõKa’aporé de relevante conceituação cultural e que podem ser relacionados com o conhecimento científico de conteúdos matemáticos, com os quais podemos fazer algumas relações com figuras geométricas.
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A técnica empregada na preparação do líquido do jenipapo consiste na retirada da casca do fruto e em seguida o mesmo é ralado e a massa obtida é torcida com própria mão facilitando assim a retirada do líquido.
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Figura 01: Grafismo Corporal Ka’apor, representando: Semicírculos, Triângulos e Retas Paralelas.
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Fonte: Estelita Barros (2013). Na figura 01, podemos observar que estão presentes no grafismo conceitos da geometria. Diálogo geométrico com a figura 01.
Fonte: Estelita Barros (2014).
Figura 02:. Grafismo Corporal Ka’apor, representando, Intersecção de Retas Paralelas e Hexágonos.
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Manhõ Ka’apor faz desenho à mão livre obedecendo auma proporcionalidade, uma simetria e uma inspiração com as formas da natureza para a criação dos mesmos.
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Fonte: Estelita Barros (2013). Na figura 02, observamos a riqueza de detalhes que obedece a traços inspirados na própria natureza, uma vez que o desenho nos faz lembrar a estrutura física do casco do jabuti. Diálogo geométrico com a figura 02.
Figura 03: Grafismo Corporal Ka’apor, representando: Círculos, Intersecção de Retas e Polígonos.
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Fonte: Estelita Barros (2014)
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Fonte: Estelita Barros (2013) Na Figura 03, que também representa oGrafismo corporalka’apor. Podemos perceber mais duas figuras geométricas. Diálogo geométrico com a Figura 03.
Desse modo observamos nas três figuras que podemos realizar esse diálogo entre os conceitos matemáticos e etnomatemáticos, que estão embasados em definições geométricas. Sendo asimetria o conceito mais explorado que podemos visualizar nos desenhos,uma vez que existe inspiração nas formas da natureza para a elaboração dos mesmos. Assim devemos valorizar cada aprendizado, cada conhecimento em sala de aula, e fazer com que os alunos também possam valorizar esses conhecimentos, colocando-os em prática. Percebemos que precisamos deixá-los mais atentos para essas observações, pois quando se grafa, constrói-se uma casa, realiza-se um plantio ou fabrica-se um colar, existe uma preocupação matemática
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Fonte: Estelita Barros (2014).
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com as dimensões, a simetria, a quantidade e a proporcionalidade dentre outros conceitos matemáticos que são em sua maior parte utilizados livremente em suas atividades realizadas. Recurso metodológico para o desenvolvimento da pesquisa A fundamentação metodológica da pesquisa realizada ancorou-se numa perspectiva da observação participante. este processo de apropriar-se, ou seja, sentir as atividades, os hábitos, os interesses, as relações pessoais do funcionamento das atividades da população em questão. Para que isso aconteça é necessária a integração do observador neste espaço em estudo.8 Lócus de pesquisa
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Fazemos parte de uma equipe de educadores formadores em um projeto de Educação Escolar Indígena visando o avanço da escolaridade de indígenas da etnia ka’apor, no estado do Maranhão. A experiência é fundamentada na pedagogia de alternância, que consiste em um sistema de ensino alternado sendo que o mesmo busca adequar-se a essa pedagogia respeitando o tempo e a cultura de cada povo inserido no mesmo, sendo esta uma proposta de estudos que, no Brasil, surgiu no final dos anos 1960 no estado do espirito santo. As atividades da pedagogia da alternância tem como princípio uma variedade de riquezas e saberes que realiza uma ruptura do espaço escolar com o dia a dia dos alunos, ou seja, é a escola indo até o aluno e levando em consideração não apenas a importância do conhecimento escolar, mas sim a prática dos mesmos nas atividades desempenhadas por cada jovem em suas propriedades. Portanto, nessa conjuntura, a pedagogia da alternância almeja a permanência das famílias em seu lugar de origem preservando a cultura local (Bagnami; Burghgrave, 2013, p. 169-170). Não sendo diferente para a alternância de estudos onde estou inserida na condição de educadora do “Componente Curricular Etnomatemática”, uma vez que também se leva em conta o tempo indígena.
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Partindo da vivência em três aldeiaska’por, por meio da observação participante com os alunos indígenas ka’apor, observamos de perto tanto a cultura quanto os saberes, incentivando um novo olhar sobre a dinâmica existente entre os saberes do povo ka’apor e a escola. A riqueza dos detalhes existentes no grafismo corporal da cultura ka’apor, em que homens e mulheres pintam o rosto e o corpo, representando desenhos naturais que fazem parte da sua cultura e a maneira como eles se relacionam empiricamente com essa matemática ka’apor, merece destaque para os fins dessa pesquisa.
Estelita Araújo Barros A educação matemática a partir do grafismo corporal da cultura indígana
Desse modo, optamos em fazer um breve diálogo com “Manhõ”, artista do grafismo corporal ka’apor, que cria suaves traços com perfeita simetria, que se realiza a mão livre na confecção de seus desenhos corporais. Conversamos sobre seu desempenho na arte da pintura corporal, e ela me informou que pinta há muito tempo e faz as pinturas “porque gosta” e os “ka’apor gostam de se enfeitar”, sentindose bonitos ao serem pintados. Foi observando os detalhes dos traços do desenho, enquanto ela desenhava em minha perna, que surgiu o interesse de pesquisar essa relação de conteúdos matemáticos com o trabalho dografismo corporal da etnia, com o intuito de contribuir de acordo com o esclarecimento do resultado da pesquisa para o aprendizado dos alunos, fazendo com que os conhecimentos existentes no grafismo estabeleçam uma ligação entre o ensino aprendizado de traços matemáticos existentes na própria cultura ka’apor. Observamos que um ensino com essas características será muito relevante para o aluno, pois ele estará inserido em sua própria história de vida, tornando a matemática mais importante para sua leitura de mundo.
Esta pesquisa nos possibilitou identificar a existência na cultura ka’apor de uma rica ferramenta para o conhecimento matemático do aluno indígena, uma vez que a valorização da cultura e saberes servirá como alicerce para futuros questionamentos que possam aparecer no momento em que esse aluno passa a refletir sobre sua própria realidade. Nesse exercício, a educação escolar indígena começa a ter um novo significado para eles, não representando mais apenas um espaço isolado, mas sim proporcionando uma nova visão sobre sua própria realidade. Neste cenário, o conhecimento das práticas relacionadas ao grafismo corporal, assim como as experiências relacionadas com a dinâmica do dia a dia da comunidade indígena no que diz respeito à produção de seus alimentos, à arte e etc, torna-se objeto de aprendizado valorizando esse povo que vive na aldeia, com suas particularidades, e suas várias formas de organizações políticas, lutas e conquistas. Portanto, refletimos que devemos realizar a educação matemática com esses alunos da etnia ka’apor, criando meios para que sua presença e participação na escola sejam frequentes. Essa é uma maneira de identificarmos nessas metodologias de ensino, uma das metas que nós educadores do projeto “Aprendendo com a Floresta” – Ka’anamõjumu’e ha katu, almejamos com esse aluno que vive na aldeia indígena, o qual não deve ser desfavorecido por conta das
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Considerações finais
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dificuldades que enfrentamos para realizar as aulas, ou seja, diferenciadodo ensino-aprendizagem das cidades, traçando metas que propiciem ao aluno a conquista e o cumprimento de seus direitos e deveres enquanto cidadão brasileiro. Será pensando em uma educação diferenciada que valorize o conhecimento de mundo do aluno, seus saberes, o contexto social, sua forma de sobrevivência e sua dinâmica sociocultural que estaremos contribuindo para uma educação que ultrapasse os limites das salas de aula.
BAGNAMI, João Batista, BURGHGRAVE, Thiery, Pedagogia da alternância e sustentabilidade. Orizona: UNEFAB, 2013. BRASIL, Referencial curricular nacional para as escolas indígenas/Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. - Brasília: MEC/SEF, 1998. CORREA, Roseli de Alvarenga, A educação matemática na formação de professores indígenas: os professores Ticunas do Alto Solimões. Campinas, SP: [S.N], 2001. D’ AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática: Elo entre as tradições e a modernidade. Coleção Tendências em Educação Matemática (S\D). MANDULÃO, F. da S. Educação na visão do professor indígena. In: GRUPIONE, Luís Donisete Benzi (Org.). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. Brasília. MEC/SECAD, 2006. PAREDES, Pereira Bento Antônio e et al. A escola indígena: papel e expectativas, 1999 PEGGIO, Edmundo Antonio, Os índios do maranhão. Associação Carlos Ubbiali, Outubro, 2002. Projeto pedagógico e curricular da educação básica ka’apor território indígena alto Turiaçu. Aldeia Xié pihun renda. Centro Novo do Maranhão – MA, 2012 RIBEIRO, Darcy. Meus índios minha gente. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília DF: Editora UNB, 2010. .SILVA, Aparecida Augusta da. Em busca do diálogo entre duas formas distintas de conhecimentos matemáticos. São Paulo. s.n., 2008. VELTHEM, Lucia Hussak Van. Artes indígenas: notas sobre a lógica dos corpos e dosartefatos. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.7, n.1, 2010.
Sítios consultados:
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Referências
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www.academia.edu/.../Artes_Indígenas._Notas_sobre_a_lógica_dos_cor.. .Acesso:20/10/2013 Titulo: Artes Indígenas, Notas Sobre a Logica do Corpo e dos Artefatos. Autor:VELTHEM, Lucia Hussak Van, 2010. www2.fe.usp.br/~etnomat/teses/em-busca-dialogo-entre-duasformas.pdf. Acesso: 16\11\2013 Titulo: Em Buscado Dialogo Entre Duas Formas Distintas de Conhecimentos Matemáticos Autor: SILVA, Aparecida Augusta da, 2008.
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SOBRE OS AUTORES
ADRIANA DA SILVA LOPES Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Pará (2012). É especialista em Linguagens e Culturas na Amazônia (UFPA). Integra, ainda, o programa PPLSA (Mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia) também pela Universidade Federal do Pará. É membro do grupo de pesquisa Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo – NÚCLEO NORTE, da UFPA. ALCENY NUNES DE ARAUJO Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (2008), defendeu o seguinte tema “Violência na escola: bullying, brincadeiras de mau-gosto”. Iniciou pesquisa de campo com as comunidades tradicionais bragantina em 2014 com o intuito de observar a relação da produção da cerâmica local com a cultura indígena. Tem interesse pelo estudo da cultura popular, tradição oral e comportamento discente em contexto escolar.
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ANDRÉIA DA SILVA RIBEIRO Sou Andréia da Silva Ribeirograduada em Letras – Língua Portuguesa (2009) pela Universidade Federal do Pará (UFPA) onde participei do projeto “Vozes do Caeté” cuja pesquisa rendeu o estudo lexical dos termos da culinária. A níveis de pós-graduação cursei, pela Universidade Federal do Pará (UFPA), especialização em Linguagens e Culturas na Amazônia (2013) e ingressei em 2014 no Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na
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ALDILENE LOPES DE MORAIS Formada em Letras – Habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Tem Especialização em Linguagens e Culturas na Amazônia (UFPA) e está vinculada ao mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPGLS - UFPA). Faz parte do projeto de Pesquisa nomeado “Implantação de Estudos Clássicos no Pará: Estudos sobre Gênero, discursos, religiosidade e usos e costumes no passado na Antiguidade Clássica à Antiguidade Tardia”.
Amazônia (PPLSA) como bolsista (PROPESPA), com a pesquisa intitulada: A Terminologia da Culinária nos Rituais em Bragança: a alimentação como representação simbólica e identitária de uma sociedade. BRAYNA CONCEIÇÃO DOS SANTOS CARDOSO Possui Graduação em Licenciatura Plena em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (2012) e Mestrado em Letras na área de concentração em Linguística, pela Universidade Federal do Pará (2015). É integrante do grupo de pesquisa GeoLinTerm – Geossociolinguística e Socioterminologia, coordenado pelo Prof. Dr. AbdelhakRazky. Atuou como professora colaboradora na Universidade Federal do Pará.
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CAMILLA DA SILVA SOUZA Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPGLS/UFPA), na linha de estudos Memória e Saberes Interculturais, com graduação em Letras-Habilitação em Língua Portuguesa, ambos da Universidade Federal do Pará, Campus de Bragança-PA. Foi professora substituta da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Pará, Campus de Bragança. Coorganizadora do livro: Linguagens, Saberes e Interculturalidade (Pedro & João Editores, 2011). Foi contemplada no 8ª Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero CNPQ/MEC/SPM/MCTI/ONU Mulheres.
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CAMILA CLAIDE OLIVEIRA DE SOUZA Possui graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado do Pará (2008). Especialização em Psicologia Educacional com ênfase em Psicopedagogia Preventiva (2010), na Universidade do Estado do Pará. Atualmente mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, na Universidade Federal do Pará (2014). Atuando Profissionalmente como Professora horista e Assessora Pedagógica da Diretoria de Desenvolvimento do Ensino-DDE da Universidade do Estado do Pará. Bolsista CAPES e integrantee do grupo de pesquisa PHILIA Filosofia, Linguagem e Alteridade na Educação (UFPA) e no GPFEE – Grupo de Pesquisa Em Filosofia Ética e Educação (UFPA).
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CARLOS NÉDSON SILVA CAVALCANTE Possui graduação em Licenciatura Plena em Letras (UFPA, 2003) e especialização em Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa (UFPA, 2005). Atualmente é assistente em administração da Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de Lingüística atuando principalmente no ensino do português e variação linguística. Mestrando do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Letras e Comunicação (UFPA). CARMEN LÚCIA REIS RODRIGUES Doutora em Linguística pela Universidade Paris VII (França), e professora de Linguística da Universidade Federal do Pará, atuando na Graduação em Letras, do Campus Universitário de Castanhal, e no Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia. Tem interesse na investigação de línguas indígenas, e realiza pesquisas sobre a língua xipaya (família Juruna; Tupi), cujos estudos se voltam para a fonologia, morfologia e sintaxe da língua, como também para a sua diacronia. Atualmente, dedica-se também ao estudo do léxico tupi presente no português regional paraense, desenvolvendo o projeto sobre a toponímia paraense de origem tupi. DEYSE CARLA DA SILVA MOTA Graduanda em Letras com habilitação em Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Pará. Integrante do projeto de pesquisa “Alteridade e literatura: reflexões preliminares em torno de uma teoria para as narrativas amazônicas”. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando, principalmente nos seguintes temas: literatura fantástica e narrativas orais.
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ELENILDA DO ROSÁRIO COSTA Elenilda do Rosário Costa é graduada em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará no campus de Bragança. No mesmo campus também participou do curso de
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EDIANE MARIA GUIMARÃES MONTEIRO Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Pará (2008). Atualmente é professora do ensino básico (SEMED/VISEU). Tem experiência na área de Letras.
especialização Linguagens e Culturas na Amazônia no ano de 2013 defendendo o projeto intitulado: A Presença do Gênero Exemplum nas Narrativas Orais Bragantinas. Projeto este que a fez ser aprovada no programa de Pós-Graduação Stricto Sensu. Atualmente é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia com pesquisa sobre narrativas orais, literatura fantástica e medieval. ESTELITA ARAÚJO BARROS Possui licenciatura Plena em Matemática pela Universidade Federal do Pará, Campus Universitário de Bragança (2014). Como Trabalho de Conclusão de Curso, realizou sua pesquisa na área da etnomatemática, tendo como título de seu trabalho de pesquisa: A Educação Matematica a Partir do Grafismo Corporal da Cultura Ka’apor. Dois anos e cinco meses de experiência como educadora do componente curricular Etnomatemática, Projeto Aprendendo com a Floresta, Educação Escolar Indígena, da etinia Ka’apor – SEDUC-MA. Tem experiência na área de Educação, Etnomatemática, Formação de Professores Indígenas e Processo de Alfabetização Indígena.
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FRANCISCO PEREIRA SMITH JÚNIOR Graduado em Letras Língua Portuguesa (UFPA, 2001) e Lingua Inglesa (UFPA, 2003). Especialista em Língua Portuguesa (UFPA, 2004) e em História do Brasil: diversidade cultural (PUC/MG, 2012). Mestre em Letras (UFPA, 2004) e doutor em Planejamento do Desenvolvimento (PDTU/NAEA/UFPA, 2012). Pesquisador,
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FERNANDO ALVES DA SILVA JÚNIOR Possui graduação em Letras (UFPA, 2010), especialização em Linguagens e Culturas na Amazônia (UFPA, 2012) e mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia (UFPA, 2014). É autor do livro Não fala nada não, eu peguei a matintaperera (Paco Editorial, 2015) e organizador dos livros Interculturalidade e saberes: os diversos na contemporaneidade da Amazônia (Paka-Tatu, 2015) e Mídias e mediações culturais (Pipa Comunicação, 2014). Professor da educação básica de ensino (SEDUC-PA), interessa-se por fotografia e poéticas da floresta. Dedica-se aos estudos das poéticas orais da Amazônia, performance, etnopoesia e perspectivismo ameríndio.
vínculado ao grupo de pesquisa do Prof. Dr. Luis E. Aragón. Vinculado ao Grupo de Pesquisa de Meio Ambiente, População e Desenvolvimento da Amazônia (MAPAZ), do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA). Atualmente é também professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPLSA-UFPA). Professor Adjunto II (UFPA), editor chefe da Revista A Palavrada. Atua nas discussões acerca da memória, identidade e multiculturalismo. GEORGINA NEGRÃO KALIFE CORDEIRO Possui graduação em Pedagogia (UFPA, 1977), especialização em Metodologia do Ensino Superior (PUC-MG), especialização em Educação a Distância (UnB, 1997), mestrado em Educação (UFPA, 2001) e doutorado em Educação pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2009) na área temática Educação do Campo. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Formação de Professores e Movimentos Sociais. Atualmente é professora associada da Faculdade de Educação do Instituto Ciências da Educação (UFPA) e professora do Programa de Pós Graduação Linguagens e Saberes na Amazônia, vinculado ao Campus de Bragança/UFPA.
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GISELLE MARIA PANTOJA RIBEIRO Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará e Professora de Teoria do Texto Poético na Universidade Federal do Pará. Tem 5 livros de poemas publicados: Objeto Perdido (2004), 69 (2009), Pequeno Livro de Poemas Para Vestir Bem (2011), Isso
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GILCILENE DIAS DA COSTA Gilcilene Dias da Costa é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Adjunto III da Universidade Federal do Pará (UFPA-Campus Cametá). ViceCoordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura (PPGEDUC/UFPA-CAMETÁ) e docente do PPGED/ICED/UFPA. Coordenadora do Grupo de Pesquisa PHILIA – Filosofia, Linguagem e Alteridade na Educação. Pesquisadora nas áreas de Filosofia da Diferença, Estudos Culturais, Linguagem e Educação. Atualmente coordena o Projeto de Pesquisa “Uma educação no dorso do tigre: literatura e experiências formativas” (PROPESP/UFPA).
não é um livro. Isso é um Caracol (2013) e 69 (2ª. edição, 2014). Atualmente é Coordenadora do Projeto de Extensão MARLOM: Movimento de Assistência e Resistência da Literatura Oral e da Memória na Universidade Federal do Pará (ILC/FALE). GLAYCE DE FATIMA FERNANDES DA SILVA Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (UFPA, 2015), graduada em Licenciatura Plena em Pedagogia (UFPA, 2013), especialista em EnsinoAprendizagem de Língua Portuguesa e Literatura (UFPA, 2009) e graduada em Licenciatura Plena em Letras/Habilitação Língua Portuguesa (UFPA, 2008). HILDETE PEREIRA DOS ANJOS Hildete Pereira dos Anjos é doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia, mestra em Psicologia da Educação pela PUCSP e pedagoga pela UFPA. Docente da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade (ICH/UNIFESSPA).
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JOEL CARDOSO Joel Cardoso, doutor em Letras: Literatura Brasileira e Intersemiótica pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-SJRP / Munique, Alemanha). Professor da Graduação (Escola de Cinema) e Pós-Graduação em Arte. Projeto atual de pesquisa: “Poéticas da Modernidade”, que transita pelas áreas de Letras, Comunicação e Artes, com ênfase nas
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INGRID FERNANDES GOMES PEREIRA BRANDÃO Possui graduação em Pedagogia (UFPA, 2010), especialista em Educação Especial e Inclusiva. É professora da rede pública, atuando no Atendimento Educacional Especializado de alunos com Deficiência Visual. Faz parte do Grupo de Estudos e Pesquisas Dinâmicas Socioeducacionais, Políticas Públicas e Diversidade (UNIFESSPA). Atuou como coordenadora do Departamento de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação (SEMED) e como Membro do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Mestranda do programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia.
correspondência e diálogos entre signos e linguagens e relações entre palavra e imagem (Literatura e Cinema, TV, Teatro etc). JOSÉ GUILHERME DOS SANTOS FERNANDES José Guilherme dos Santos Fernandes – professor Associado da Universidade Federal do Pará; Doutor em Letras/Literatura Brasileira (UFPB, 2004); Pós-Doutor pela Universidad Nacional de Tres de Febrero ( Buenos Aires, AR, 2014); Vice-Coordenador do PPG em Linguagens e Saberes na Amazônia (Campus Bragança, UFPA); Coordenador de Pesquisas do Campus de Castanhal (UFPA); Coordenador do Projeto de Pesquisas Vozes da Amazônia Oriental (Universal/CNPq). JOSÉ SENA FILHO José Sena Filho é mestre em Linguagens e Saberes na Amazônia UFPA/CAPES (2011-2013/Bragança) e graduado em Letras UFPA/PROEX (2003-2007/Belém). Pela UFPA, foi Professor Substituto de Linguística (2013-2015), Professor-Formador I de Linguística Aplicada (2013-2015), Professor-tutor de Letras (20102011) e pesquisador do Programa Campus Flutuante/IFNOPAP (2008-2010). Foi, ainda, pesquisador do Instituto de Artes do Pará (2013). Atua nas áreas de Linguística Aplicada e Escrita Criativa tendo realizado a Intervenção artística ‘Cinema no Marajó, Breves Películas’ (2012), dirigido o documentário ‘Teatrinhos Elétricos Itinerantes’ (2013), publicado o livro ‘Olhares em Movimento: cinema e cultura na Amazônia Marajoara’ (2014), dentre outras atividades e publicações.
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JULIANA PATRÍZIA SALDANHA DE SOUSA Formada em Letras – Habilitação em Língua Inglesa pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Tem especialização em Linguagens e Culturas na Amazônia (UFPA) e está vinculada ao mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPLSA/UFPA). Professora de Inglês na rede Estadual e Municipal de ensino.
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JOSUÉ LEONARDO SANTOS DE SOUZA LISBOA É mestre em Letras, com ênfase em Linguística (UFPA, 2015). Possui graduação em licenciatura em Letras-Língua Portuguesa (UEPA, 2012). Atualmente é integrante do grupo de pesquisa Geossociolinguística e Socioterminologia (GeoLinTerm).
Professora e Coordenadora adjunta do Curso de Letras da Faculdade Pan Americana (FPA). Tem artigos publicados com os títulos: Metamorfose: a presença do fantástico nas narrativas de Quintino de Lira; Literatura de cordel: a interdisciplinaridade através das narrativas de Quintino Lira; A saga de Quintino Lira contada nos versos do cordel, como também, A representatividade das narrativas fantásticas de Quintino Lira para o povo luziense. KELRY LEÃO OLIVEIRA Kelry Leão Oliveira é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará, especialista em Gestão, Supervisão e Orientação Escolar. Atualmente está cursando Mestrado em Educação no PPGED (Programa de Pós-Graduação em Educação), no ICED (Instituto de Ciências da Educação) da UFPA, na Linha de Pesquisa: Educação: Currículo, Epistemologia e História. Também é integrante do Grupo de Pesquisa PHILIA (Filosofia, Linguagem e Alteridade na Educação) e está atuando profissionalmente como professora licenciada plena do município de Belém, no Estado do Pará, na área da educação infantil.
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LENA CLÁUDIA DOS SANTOS AMORIM SARAIVA Lena Cláudia dos Santos Amorim Saraiva, licenciada plena em Pedagogia (UFPA), especialista em Antropologia Cultural e Social (ICS/Lisboa), mestra em Antropologia Cultural e Social (UFPA). Tendo experiência docente na Faculdade Pan-Americana e atua nas seguintes linhas de pesquisa: Povos indígenas: saberes e praticas tradicionais; Cultura: poder e identidades. No curso de formação de professores índios do Pará-SEDUC; Na Plataforma Paulo Freire curso de Pedagogia. Parfor/UFPA. Organizou o livro: I caderno de Práticas Pedagógicas da Amazônia Bragantina. No âmbito da
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LARISSA FONTINELE DE ALENCAR Larissa Fontinele de Alencar é mestre em Linguagens e Saberes na Amazônia pela Universidade Federal do Pará, especialista em Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa e suas Literaturas, graduada em Letras-Língua Portuguesa desde 2005. Atualmente, exerce a função de professora substituta da área de Literatura, da Faculdade de Letras, Campus Universitário de Bragança/UFPa. Desenvolve pesquisas principalmente nas áreas de literatura, memória e cultura afro-brasileira.
produções acadêmicas, tem experiência em orientação, bancas de defesas de TCCs e publicações em anais. LUCIANA DE BARROS ATAIDE Mestra em Letras e especialista em Revisão de Textos pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Atua na área de Estudos Literários com as disciplinas de Teoria Literária, Literatura Comparada e Literaturas de Língua Portuguesa (Brasil, Portugal e África). Atualmente é docente horista nas turmas de Licenciatura Intercultural Indígena na Universidade Estadual do Pará (UEPA) na grande área de Linguagens e Artes. LUCIANE SILVEIRA RODRIGUES Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará (2000). Especialista em Educação Ambiental. Atualmente é professora na Educação Básica da rede estadual de ensino, lotada na unidade escolar - EEEFM Professora Argentina. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Métodos e Técnicas de Ensino. Integrante do Programa Institucional Incentivo a docência (PIBID) como supervisora na EEEFM Professora Argentina, com pesquisa na área da educação inclusiva de alunos com deficiencia.
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MARIA ADRIANA LEITE Possui Licenciatura Plena em Matemática pela Universidade Federal do Pará. Especialização em metodologia do ensino de Matemática e Física (2011), especialização em Matemática Fundamental pela Universidade Federal do Pará (2011) e Especialização em educação de Jovens e Adultos pela Universidade
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MÁRCIA SAVICZKI PINHO Márcia Saviczki Pinho é graduada em Letras - Língua Portuguesa e é especialista em Ensino Aprendizagem da Língua Portuguesa e Literaturas e em Educação Infantil. É mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia. Desenvolve pesquisa na área da Terminologia. Já atuou como professora colaboradora no curso de Pedagogia e no Programa Arte na Escola da UFPA, campus Bragança-PA, e é professora na Secretaria Municipal de Educação de Bragança-PA.
Federal do Pará (2013), mestranda em Linguagens e Saberes da Amazônia (PPLSA/UFPA), tem experiência na área de Matemática, com ênfase em Educação Matemática. MARIA DA CONCEIÇÃO AZEVÊDO Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); especialista em Linguística e Ensino da Língua Materna pela mesma instituição; Mestre em Letras (área de Linguística), pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Na Educação Básica, lecionou durante 14 anos as disciplinas Língua Portuguesa e Literatura. Atualmente, é Professora Assistente da Universidade Federal do Pará. Tem experiência nas áreas de Língua Portuguesa, Linguística Aplicada e Educação, principalmente nos temas: ensino e aprendizagem de português (língua materna), ensino de gêneros textuais, trabalho e formação docente.
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MICHELLY SILVA MACHADO Discente de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia PPGLSA-UFPA (2013); possui graduação em Letras - Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (2014); Graduação em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (2012). Atualmente é pesquisadora/bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Tem experiência nas áreas de História e linguística, com ênfase em História do Brasil Colônia, história indígena e línguas indígenas do tronco Tupi – etnia TembéTenetehára.
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MARIA SEBASTIANA DA SILVA COSTA Maria Sebastiana da Silva Costa é Mestra em Letras/ Linguística pela UFPA (2015), especialista em Linguagem e Educação: Uma abordagem Textual, Discursiva e Variacionista, pela UFPA (2010) possui graduação em LETRAS com Habilitação em Língua Portuguesa pela UFPA (2007). Atualmente é professora coordenadora de Língua Portuguesa na Escola de Formação Dom Romualdo de Seixas da Prefeitura Municipal de Cametá e professora colaboradora pela Universidade Federal do Pará/Campus de Cametá. É membro integrante do projeto AMPER-Norte, coordenado pela professora Dra. Regina Cruz, desde 2013.
MÍRIAN ROSA PEREIRA Possui graduação em Pedagogia (UFPA, 2009). Professora de Educação Especial, na Faculdade de Matemática, Instituto de Ciências Exatas (ICE), da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Faz parte do Grupo de Estudos e Pesquisas Dinâmicas Socioeducacionais, Políticas Públicas e Diversidade (UNIFESSPA). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Especial, atuando principalmente nos seguintes temas: acessibilidade, educação, educação especial, inclusão educacional, produção de materiais acessíveis e ciências naturais.
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RAIMUNDA BENEDITA CRISTINA CALDAS Possui graduação em Letras (UFPA) e mestrado em Letras: Lingüística e Teoria Literária (UFPA). Doutora em Linguística (UnB). Realiza estágio Pós-Doutoral pela Universidade Federal do Tocantins-UFT. Atualmente é professora Adjunta II do Campus de Bragança da Universidade Federal do Pará. Exerceu a função de vice-diretora da Faculdade de Letras do Campus de Bragança (UFPA) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação Linguagens e Saberes na Amazônia do Campus de Bragança (UFPA). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Linguística, atuando principalmente nos seguintes temas: família tupí-guaraní, educação indígena, variação linguística, bilinguismo e tradução, variação lexical e socioterminologia.
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MYRCÉIA CAROLYNE GUIMARÃES DA COSTA Graduada em Licenciatura Plena em Letras – Habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (2004), mestranda em Linguagens e Saberes na Amazônia pela Universidade Federal do Pará, especialista em EnsinoAprendizagem de Língua Portuguesa e Literaturas (2009), especialista em Metodologia do Ensino de Língua Inglesa (2005). Atualmente é professora efetiva de Língua Portuguesa do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Pará. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira e Portuguesa no ensino médio e superior.
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RAYNIERE FELIPE ALVARENGA DE SOUSA Rayniere Felipe Alvarenga de Sousa. Graduando em Letras com habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro dos grupos de pesquisas intitulados “Alteridade e Literatura: reflexões preliminares em torno de uma teoria para as narrativas amazônicas” e “Formas de melancolia na Literatura”. Desenvolve pesquisas na área de Literatura Brasileira. Tais estudos versam sobre a problemática da tradução, do gênero maravilhoso e do insólito ficcional, narrativas orais e alteridade.
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ROBSON DE SOUSA FEITOSA Graduado em Pedagogia e especialista em Metodologia do Ensino de História. Trabalhou como professor em cursos de formação de professores na UFPA e IFPA. É servidor do IFPA – Campus Bragança, como Técnico em Assuntos Educacionais onde assume a função de Coordenador Pedagógico. Acumula histórico de atuação na docência do ensino médio e superior, na coordenação pedagógica, e, na gestão de escolas e de redes municipais de ensino. Tem experiência na área de educação, com ênfase em história da educação, atuando principalmente nos temas relacionados à educação do campo e educação de jovens e adultos.
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REGINA CÉLIA FERNANDES CRUZ Professora Associado IV da Faculdade de Letras da UFPA e Bolsista Produtividade CNPq-PQ2. Doutora em Ciências Humanas pela Université d’Aix-Marseille I - França (2000), Mestre em Linguística pela UFSC (1992) e Graduada em Letras pela UFPA (1987). Coordena projetos de pesquisa na UFPA desde 1992, quando ingressou nessa IES, na condição de bolsista DCR-CNPq. É membro da equipe internacional AMPER. Membro do Conselho Editorial da Editora Cortez. Foi pesquisadora visitante da New York University (USA) na condição de bolsista FULBRIGHT. O centro de interesse de suas investigações compreende variação linguística, aspectos fonéticos, variação fonológica, fala espontânea, aspectos prosódicos.
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
ROMÁRIO DUARTE SANCHES Possui graduação em Licenciatura Plena em Letras/Inglês pelo Instituto de Ensino Superior do Amapá. Graduação em andamento em Bacharelado e Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Amapá. Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária pela Universidade do Estado do Pará. Mestrado em Letras, com ênfase em Linguística, pela Universidade Federal do Pará. Integrante dos projetos de pesquisa: Geossociolinguistica e Socioterminologia (GeoLinTerm), Atlas Linguístico do Amapá (ALAP) e Atlas Linguístico do Brasil (ALiB). Atua na área de Letras e Linguística, com pesquisas voltadas ao campo da Dialetologia, Geolinguística e Sociolinguística.
SABINE REITER
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
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ROSELI DA SILVA CARDOSO Roseli da Silva Cardoso, possui graduação em Letras Língua Portuguesa (UFPA) e Língua Inglesa (UNAMA). Especialista em Linguagens e Culturas na Amazônia (UFPA). Possui experiência em docência no nível superior pela UFPA (campus de Bragança), onde atuou como professora substituta nos anos de 2012 e 2013, com participação em várias bancas examinadoras de trabalhos de conclusão de curso como avaliadora e orientadora. Concluiu mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia (UFPA) em 2015. Atualmente é professora efetiva AD-4 da Rede Estadual de Ensino Fundamental e Médio.
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ROSANA BRITO DA CRUZ Graduada em História (Licenciatura) pela Universidade Federal do Pará (UFPA/2009). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPLSA/UFPA/2014). Participou como pesquisadora voluntária do Projeto de Pesquisa “Identidade e Alteridade na Antiguidade e no Medievo: uma análise comparativa de hagiografias”, coordenado pelo professor Me. Thiago de Azevedo Porto. Atualmente participa do projeto intitulado “Implantação de Estudos Clássicos no Pará: Estudos sobre Gênero, discursos, religiosidade e usos e costumes no passado na Antiguidade Clássica à Antiguidade Tardia”, coordenado pela professora Dra. Roberta Alexandrina da Silva.
Possui doutorado em Linguística Geral pela Christian-AlbrechtsUniversitätzu Kiel (2012). Professora do Programa de PósGraduação em Letras, na Universidade Federal do Pará (UFPA), também atua como Diretora da Casa de Estudos Germânicos, da mesma Universidade. Desenvolve pesquisas na área de descrição e documentação de línguas indígenas sul-americanas, como as línguas Tupi e Pano. Também realiza estudos no âmbito da Tipologia Linguística, prática e metodologia de documentação linguística, Sociolinguística, entre outros. SÔNIA MORAES DO NASCIMENTO Graduada em Letras Língua Portuguesa (UFPA, 2014). Professora da rede básica de ensino (SEMED/VISEU). Defendeu seu trabalho de conclusão de curso sobre a relação mítica da Pedra do Gurupi com a Ilha da Iara em Viseu (PA). Interessa-se pelos estudos das poéticas orais, sebastianismo, imaginário amazônico, principalmente no que concerne à relação com a religiosidade popular.
Inclusão e preservação de saberes para o bom viver
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TATIANA CRISTINA VASCONCELOS MAIA Mestra em Educação (UEPA), na linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Pedagoga hab. em Educação Especial, especialista em Gestão Educacional (UEPA) e em Educação Infantil (UFPA). Ocupa o cargo de especialista em Educação/SEDUC, na SEMEC é técnica da Educação Especial, atuando no AEE (Atendimento Educacional Especializado). Participa do grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão: A educação de Paulo Freire nos contextos Latino e Norte Americano e do grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão-GELPEA (Grupo de Estudos em
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SYLVIA MARIA TRUSEN Possui graduação em Letras pela Faculdade de Ciências e Letras Notre Dame (1983), mestrado em Letras pela Universidade Federal do Ceará (1995) e doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2006). Professora Associada da Universidade Federal do Pará e do Programa de PósGraduação Linguagens e Saberes na Amazonia. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: Conto Maravilhoso, Memória e Intertextualidade, Leitura e Tradução Intecultural.
Linguagens e práticas Educacionais na Amazônia). Contadora de histórias e membro do Movimento de Contadores de histórias da Amazônia (MOCOHAM).
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VIVIANE DOS SANTOS CARVALHO Viviane dos Santos Carvalho. Professora Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestranda do Programa de PósGraduação Linguagens e Saberes na Amazônia (UFPA), graduada em Pedagogia, com Especialização em Metodologia do Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação. Foi professora de Prática Pedagógica I e II do PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), na UNEB. Tem pesquisa na área de Currículo e Diversidade Cultural. Foi professora formadora do TOPA – Todos Pela Alfabetização, do Programa Brasil Alfabetizado. Desenvolve pesquisa sobre Juventude e Educação do Campo. Tem experiência nas disciplinas de Currículo, Prática Pedagógica, Didática, Metodologia da Alfabetização.
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