Erga Omnes_5ª edição

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Escola de Magistrados da Bahia Ano I | Nº 5 | Novenbro 2009 | Salvador | BA

www.emab.com.br/ergaomnes

Escola dos Magistrados (EMAB)

Diretor: Rosalvo Augusto Vieira da Silva Coordenadores:

Ícaro Almeida Matos

Márcio Reinaldo Miranda Braga Graça Marina Vieira da Silva

Associação dos Magistrados da Bahia Gestão – 2008/2009

Presidente: Ubiratã Marinello Pizzani Revista Erga Omnes

Diretora Executiva: Graça Marina Vieira da Silva Articulistas convidados: Aidê Ouais

Graça Marina Vieira da Silva

Jamille Pinheiro Freire Lima João Batista

Jorge Barretto

Julyana Lantyer Esquivel Lavigne Maria das Graças Almeida

Moacir Reis Fernandes Filho Moacyr Montenegro Souto. Paulo Furtado

Sérgio Ricardo de Souza Suélvia dos Santos Reis Conselho Editorial:

Aurelino Otacílio Pereira Neto Edson Pereira Filho

Graça Marina Vieira da Silva Walter Américo Caldas

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Ficha Técnica Jornalista Responsável: Vânia Lima (DRT 2170)

Textos: Ana Rosa Passos (DRT 3197) e Jan Penalva Revisão de Textos: Rita Canário

Fotos: Juscelino Pacheco, Mateus Pereira

acervo do Tribunal de Justiça e acervo da AMAB

Direção de Arte: Aline Cerqueira, Juliana Lima e Laís Vitória-Regis

Capa: Aline Cerqueira e Juliana Lima ISSN: 1984-5618

Projeto: Lima Comunicação

Pauta e Sugestões: Ana Rosa Passos

imprensa@emab.com.br / 71 3321-1541 Atendimento:

Lomanto Prazeres (71) 9118-1291

Lima Comunicação

(71) 3240-6344 / 3240-6366

Esta revista é uma publicação educativa realizada pela Escola dos Magistrados da Bahia, com tiragem de 2.000 exemplares.

Os artigos e reportagens assinados não expressam necessariamente a opinião da EMAB e são de responsabilidade de seus autores.

Rua Arquimedes Gonçalves, nº 212, Jardim Baiano, CEP.: 40.050-300 | Salvador – BA www.emab.com.br


Nesta edição

Luiz Alberto Silva Coluna Olho Vivo | 5

Artigo: “Hipóteses de Exclusão da Responsabilidade do Transportador de Cargas”

Desembargador Paulo Roberto Furtado | 6 Artigo: “Mediação e conciliação: eficazes

instrumentos de complementação ao sistema judicial clássico”

Juiz Sérgio Ricardo de Souza | 13

Sentença: “Ação Declaratória de Reconhecimento e Dissolução “causa mortis” de União Estável” Juiz Jorge Barretto | 18

Artigo: “A função social como princípio norteador da atual interpretação dos contratos”

Advogada Julyana Lantyer Esquivel Lavigne | 23 Justiça.com | 31

Sentença: “Decretação da nulidade do ato

administrativo que culminou em demissão” Juíza Aidê Ouais | 32 Notícias | 41

Entrevista | A historiadora Vanda Machado fala sobre a situação do negro no País | 42

Artigo: “Reflexões sobre o dia da consciência negra”

Juíza Graça Marina Vieira da Silva | 46

Artigo: “ A síndrome da alienação e da morte parental: breves considerações”

Advogada Maria das Graças Almeida | 48

Paulo Furtado

Artigo: “O direito de antena em face da tutela jurídica do rádio e da televisão no âmbito dos direitos difusos”

Juiz Moacir Reis Fernandes Filho | 54 Direto ao Ponto | 60

“Estatuto da Igualdade Racial: caminho tortuoso no Congresso”

Luiz Alberto - deputado federal do PT Sentença: “Ação de execução”

Juiz João Batista Pereira Pinto | 63 Notícias | 66

Artigo: “Direito ao sobrenome do padrasto - Os novos contornos da filiação afetiva”

Advogada Jamille Pinheiro Freire Lima | 67

Artigo: “Transferência entre Instituições de Ensino Superior”

Juíza Suélvia dos Santos Reis | 73 Mensagem | 79

Artigo: “O legislador e o aplicador da lei” Juiz Moacyr Montenegro Souto | 81

Cultura | 83

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Editorial

Chegamos ao quinto número da nossa revista ERGA OMNES com muita alegria, e já podemos dizer que isto representa um marco interessante dos magistrados da nossa querida Bahia, pois com eles é que iniciamos a jornada de trazer os grandes debates, as discussões e decisões que estão em voga, não só no mundo jurídico, mas também na sociedade como um todo.

No presente número, que já deságua nas comemorações da abolição da escravatura, o leitor irá se deparar também com textos envolvendo a temática dos afro-descendentes, suas conquistas e lutas por uma sociedade menos discriminatória e mais democrática no País. E dentro dessa ambiência de trazer novas discussões e inovações salutares, a nossa entrevistada é a historiadora e educadora baiana Vanda Machado, personalidade reconhecida nacional e internacionalmente, que vem desenvolvendo um trabalho de pesquisa muito interessante e profundo, no qual enfoca a grandiosa contribuição do pensamento africano para a formação cultural do povo brasileiro, especialmente aquela advinda da Nigéria e do Daomé na época do tráfico de escravos (entre os séculos XVI e XIX, no Brasil). Vanda Machado tem diversos livros e artigos publicados, sendo a sua concepção pedagógica um exemplo que deve ser levado em conta. A entrevista que ela nos concedeu destaca o que a interpretação da Constituição Federal pode fazer para atenuar as discriminações étnicas e os demais preconceitos ainda existentes no País, bem assim assegurar um amplo processo educacional de crescimento material, moral e espiritual. A coluna “Direto ao Ponto” traz importante colaboração do deputado federal Luiz Alberto, abordando o processo legislativo para aprovação do Estatuto da Reparação. Peço vênia para recomendar a mensagem em que prego a unidade da magistratura.

Finalmente, honra-nos contar com os artigos do desembargador Paulo Furtado (convocado para o STJ) e do juiz Sérgio Ricardo Souza, representante da magistratura na ENFAM. Erga Omnes. AXÉ!

Rosalvo Augusto Vieira da Silva Diretor –EMAB

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Coluna olho vivo Procon de João Pessoa explica direito do consumidor através do teatro O Procon de João Pessoa (PB) promoveu uma aula diferente para alunos de 5ª e 6ª séries da Escola Municipal de Ensino Fundamental Fenelon Câmara. Os estudantes receberam informações sobre seus direitos garantidos de consumidor, conhecendo um pouco da Lei no 8.078/1990, através de uma peça de teatro apresentada pela Cia de Teatro Boca de Cena. A encenação faz parte do projeto Arte e Alegria, desenvolvido pelo Procon do Estado desde 2006. Após a apresentação foi realizada uma palestra sobre direitos e deveres do consumidor, com distribuição de folders e cartilhas educativas.

Fidelização pode ser cancelada sem multa O Departamento de Defesa do Consumidor (DPDC) do Ministério da Justiça determinou que, quando o prestador de serviço de telefonia e internet descumprir as normas do contrato, o consumidor poderá interromper o vínculo, sem qualquer ônus, mesmo que a fidelização ainda esteja valendo. O objetivo desta determinação é fazer com que as prestadoras cumpram as condições de qualidade preestabelecidas. Fique de Olho!

Fique atento quando for adquirir um ingresso O valor do ingresso pode variar conforme o tipo de acomodação e a distância do local da apresentação, mas este preço deve estar afixado de forma visível. Em locais onde existam setores diferenciados, as casas de espetáculos devem manter mapas com as localizações exatas das poltronas em relação ao palco. A dica é sempre consultá-lo na bilheteria, no ato da compra. Caso o espetáculo seja cancelado, tenha sua data de realização alterada ou a lotação esgotada, você tem direito à devolução do valor pago. Olho Vivo! 5


Artigo HIPÓTESES DE EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR DE CARGAS

Paulo Roberto Furtado Desembargado

Ministro convocado pelo Superior Tribunal de Justiça

O

Brasil, com 8.511.965 km2, é o país mais extenso da América do Sul, o terceiro das Américas e o quinto do mundo, perdendo apenas para a Rússia (22.402.200 km2), o Canadá (9.970.610 km2), a China (9.517.300 km2) e os Estados Unidos (9.372.614 km2). Natural, portanto, que possua este país de extensão continental uma das maiores malhas rodoviárias do Planeta, podendo-se afirmar que praticamente todo o transporte de mercadorias é realizado em rodovias no Brasil, diante da falta de políticas públicas para incentivar a utilização do transporte aquático, embora tenhamos grandes recursos hídricos, e considerando o elevado custo do transporte aéreo, especialmente para o cidadão comum. Por isso, contamos atualmente com numerosa frota de caminhões e carretas trafegando intensamente pelas rodovias, transportando nossas riquezas e gerando, em consequência disso, a necessidade de regulamentação sobre o tema, extremamente relevante para a economia nacional. A Lei Federal 6.813, de 10/07/1980, regulava o transporte rodoviário de cargas, dispondo timidamente sobre esta questão tão importante em apenas 5 (cinco) artigos, nada falando sobre a responsabilidade do transportador de cargas. Contudo, com o advento da Constituição Federal de 1988, o segmento dos transportadores de cargas começou a se movimentar, buscando a edição de lei federal que abordasse todos os ângulos desse tema, com a adoção de regras claras em relação à responsabilidade de todos os envolvidos nesta questão, evitando-se, também, a atuação predatória e irresponsável 6

em mercado tão rentável e com grande potencial de crescimento. É apresentado, então, o Projeto de Lei 4.358-B, de 2001, de autoria do deputado federal Feu Rosa, do qual destaco a seguinte justificativa, que resume os anseios daqueles relacionados ao transporte de cargas em nosso país: “Já era tempo de o Executivo preocupar-se com o assunto e dar um passo decisivo nesse sentido, porque não existe norma legal regulamentando o transporte de cargas e seus desdobramentos a serviço do contratante. Ainda o projeto define a forma e a prestação do serviço, bem assim informações para a completa identificação das partes, natureza fiscal com a expedição do contrato ou conhecimento do transporte, assumindo o contratante a responsabilidade do negócio jurídico, cobrindo o período compreendido entre o momento do recebimento da carga e de sua entrega ao destinatário.” (Diário da Câmara dos Deputados – edição de 21/12/2001 – p. 67.523) II Lei Federal 11.442/2007 Marco Regulatório do Transporte Rodoviário de Cargas Após seis anos de tramitação nas duas Casas Legislativas, finalmente é sancionada pelo Presidente Lula, em 05 de janeiro de 2007, a Lei 11.442, dispondo sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração, revogando a mencionada Lei 6.813/1980. O novo diploma legal, segundo especialistas da área, tem por escopo primordial com


bater a informalidade do setor, fato gerador de insegu- 9º); h) a responsabilidade do transportador cessa rança jurídica e econômica. A Lei 11.442/2007 responde satisfatoriamente quando do recebimento da carga pelo destinatário, sem aos reclamos do setor de transportes, consagrando, protestos ou ressalvas (parágrafo único do art. 9º); i) há causas que excluem a responsabilidade dos em seus dispositivos, posicionamentos estabelecidos transportadores e seus subcontratados (art. 12); no Código Civil de 2002 e na jurisprudência dos Tribuj) seguro contra perdas ou danos causados à nais Pátrios, podendo-se destacar, dentre os 24 articarga, de acordo com o que seja estabelecido no congos que a compõem, os seguintes pontos: a) o Transporte Rodoviário de Cargas – TRG é trato ou conhecimento de transporte (art. 13), também considerado atividade econômica, de natureza comer- é excludente da responsabilidade do transportador; k) a responsabilidade do transportador por prejucial, exercida por pessoa física ou jurídica em regime ízos resultantes de perdas ou danos causados às merde livre concorrência (arts. 1º e 2º); cadorias é limitada ao valor declab) o exercício da atividade em rado pelo expedidor e consignado tela depende de prévia inscrição do no contrato ou conhecimento de interessado no Registro Nacional de transporte, acrescido dos valores Transportes Rodoviários de Cargas do frete e do seguro corresponO transportador é – RNTR-C, da Agência Nacional dentes (art. 14); de Transportes Terrestres – ANTT, responsável pelas l) há hipóteses nas quais o cabendo a esta instituição a regulaações ou omissões de expedidor da mercadoria indenizamentação deste cadastro (arts. 2º e seus empregados, gentes, rá o transportador rodoviário (art. 3º); 17); c) o Transportador Autônomo prepostos ou terceiros m) define-se o prazo presde Cargas – TAC, pessoa física, e contratados ou cricional de 1 (um) ano para o ajuia Empresa de Transporte Rodoviásubcontratados para a zamento da ação de reparação de rio de Cargas – ETC, pessoa jurídica constituída por qualquer forma execução dos serviços de danos relativos aos contratos de transporte, estabelecido como terprevista em lei, têm no transporte transporte, como se essas mo inicial da contagem do prazo rodoviário de cargas sua atividade ações ou omissões fossem o momento do conhecimento do profissional (art. 2º); dano pela parte interessada (art. d) as relações decorrentes próprias 18º); e, por fim, do contrato de transporte de cargas n) faculta-se aos contratansão sempre de natureza comercial, tes a solução de conflitos pela arnão ensejando, em nenhuma hipóbitragem (art. 19). tese, caracterização de vínculo de emprego, competindo, portanto, à Justiça Comum o julgamento das ações relativas a este diploma legal (art. 5º); e) o transportador é responsável pelas ações ou omissões de seus empregados, agentes, prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados para a execução dos serviços de transporte, como se essas ações ou omissões fossem próprias (art. 8º); f) o transportador tem direito a ação regressiva contra os terceiros contratados ou subcontratados, para se ressarcir do valor da indenização que houver pago (parágrafo único do art. 8º); g) a responsabilidade do transportador cobre o período compreendido entre o momento do recebimento da carga e o de sua entrega ao destinatário (art.

III Responsabilidade do Transportador de Cargas Inovando o ordenamento jurídico, a Lei 11.442/2007 regula, de maneira clara e detalhada, a responsabilidade das partes envolvidas no transporte rodoviário de cargas: o transportador, seus prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados, o expedidor e o recebedor da mercadoria. O novo diploma legal estabelece, em seu art. 8º, que o transportador é responsável pelas ações ou omissões de seus empregados, agentes, prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados para a execução dos serviços de transporte, como se essas ações ou omissões fossem próprias, tendo ele, contudo, di 7


Hipóteses de Exclusão da Responsabilidade do Transportador de Cargas

reito à ação regressiva contra os terceiros contratados ou subcontratados, para se ressarcir do valor da indenização que houver pago, na dicção do parágrafo único do mencionado dispositivo legal. Pode-se afirmar que o art. 8º consagra a responsabilidade objetiva do transportador de cargas em relação ao expedidor e ao recebedor da mercadoria, resguardando, porém, o direito daquele à ação regressiva contra terceiros contratados ou subcontratados. O art. 9º preconiza que a responsabilidade do transportador abrange o período compreendido entre o momento do recebimento da carga e o de sua entrega ao destinatário, cessando (a responsabilidade) quando do recebimento da carga pelo destinatário, sem protestos ou ressalvas, conforme o parágrafo do artigo mencionado. Finalmente, a responsabilidade do transportador por prejuízos resultantes de perdas ou danos causados às mercadorias é limitada ao valor declarado pelo expedidor e consignado no contrato ou conhecimento de transporte, acrescido dos valores do frete e do seguro correspondentes, segundo o art. 14. IV Hipóteses de Exclusão da Responsabilidade do Transportador de Cargas A par de regular os fatos que ensejam a responsabilidade do transportador de cargas, a Lei 11.442/2007 sabiamente estabeleceu, nos arts. 12 e 13, as hipóteses de exclusão da responsabilidade do protagonista do transporte rodoviário no Brasil, adotadas, ipsis literis, na Resolução 3.056, de 12/03/2009, da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, que, regulamentando o diploma federal, dispõe sobre o exercício da atividade de transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração, estabelece procedimentos para inscrição e manutenção no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas – RNTCR e dá outras providências. Seja como for, é de se ter presente, inicialmente, que o transporte rodoviário de cargas não se sujeita à outorga de autorização, concessão ou permissão, pois a Lei 11.442/07 estabelece expressamente a natureza comercial do transporte rodoviário de cargas, pelo regime de livre concorrência. Como consequência, tem-se que o contrato de transporte rodoviário de cargas subsume-se ao regime jurídico de direito privado, o que, de antemão, exclui a sujeição passiva da ANTT em demandas que não 8

envolvam o RNTRC – Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas. Em casos tais, a responsabilização do transportador será apurada mediante o cotejo do contrato de transporte, segundo as disposições da lei específica e, subsidiariamente, do Código Civil, dentro do campo jurisdicional da Justiça Comum. As relações jurídicas relativas ao transporte rodoviário de cargas têm natureza comercial (res inter alios) e, portanto, a resolução dos litígios decorrentes são, via de regra, de competência da Justiça Comum, excluindo a atuação da Justiça Federal. Feitas essas considerações iniciais, passemos às hipóteses da Lei 11.442/2007, repetidas no § 7º do art. 25 da Resolução 3.056/2009. Cumpre esclarecer, pontualmente, que as hipóteses de exclusão de responsabilidade previstas na Lei são explícitas e, em grande escala, encerram questões de interpretação direta, literal, o que dificulta sobremaneira o aprofundamento dos temas. 1)inciso I do art. 12 – Ato ou Fato Imputável ao Expedidor ou Destinatário da Carga Se o dano resultante do transporte rodoviário de mercadoria resultar de ato ou fato ocasionados pelo expedidor ou destinatário, é afastada a responsabilidade do transportador de cargas. Exemplo: o expedidor passa ao transportador endereço incorreto para a entrega da carga, ocasionando grande atraso e prejuízos ao destinatário. Por óbvio, os fatos imputáveis exclusivamente aos polos expedidor e recebedor da carga esvaziam elemento crucial da responsabilidade civil, qual seja: o nexo de causalidade entre a conduta específica do transportador e o denominado evento danoso. 2) inciso II do art. 12 − Inadequação da Embalagem, quando Imputável ao Expedidor da Carga A premissa desta hipótese é que o encargo relativo à embalagem da carga é do seu expedidor, não podendo o transportador ser responsabilizado por avarias no transporte. Contudo, deve-se ressaltar a importância da conferência, pelo transportador, das condições da carga no seu recebimento, sendo imprescindível o registro de quaisquer ocorrências neste sentido, no Contrato ou Conhecimento de Transporte, previsto no art. 6º da


Lei 11.442/2007. Também aqui se verifica o esvaziamento do nexo de causalidade, pois a escolha da embalagem, bem como os fatores ligados à sua qualidade e adequação, são elementos alheios à atividade do transportador e não guardam, portanto, correlação com o serviço prestado.

cadoria. 5) Inciso V do art. 12 – Força Maior ou Caso Fortuito

De modo geral, os conceitos de força maior e de caso fortuito não recebem tratamento diferenciado pelo legislador, o que se repete no presente caso. Justamente por isso não nos deteremos no ri3) Inciso III do art. 12 – Vício Próprio ou Ocul- gor técnico para distinguir força maior de caso fortuito, to da Carga desde que a Lei 11.442/2007 utiliza estas expressões como sinônimos, embora haja grandes debates doutriNão há responsabilidade do transportador se a nários a respeito do tema, com diversas opiniões resmercadoria entregue pelo expedipeitáveis. dor possui vício próprio, expressão Em geral, entende-se que consagrada no art. 102 do Código a diferença se assenta na denoComercial, entendida pela doutrina minada irresistibilidade pelo hoe jurisprudência como o problema mem. Nessa perspectiva, ambos inerente à própria mercadoria ou à os conceitos seriam marcados O caso fortuito, embalagem inadequada e defeituopela imprevisibilidade, mas havenpois, é acontecimento sa, quando esta couber ao expedido possibilidade de ser o obstáculo imprevisto e dor, favorecendo, tais situações, a removível, haveria caso fortuito. De ocorrência de avarias. Como exemoutra banda, sendo completamente inevitável. Força plo de vício próprio podemos citar o irresistível, haveria a força maior. maior é o vencimento do prazo de validade. O caso fortuito, pois, é aconacontecimento O vício oculto, por sua vez, tecimento imprevisto e inevitável. é aquele escondido numa mercaForça maior é o acontecimento ineinevitável, doria, incapaz de ser prontamente vitável, irresistível. Para o jurista irresistível identificado pelo transportador, leHélio Tornaghi, “nessa inevitabilivando à exoneração de sua respondade reside a característica da forsabilidade. Como exemplo de vício ça maior, e nisso ela se distingue oculto podemos citar eventual falha do fato casual, o acaso ou caso na resistência mecânica de deterfortuito, que é o sucesso imprevisíminado metal componente de um vel”. (in Comentários ao Código de produto. Processo Civil, vol.2, p.320-321, RT, 1975). Como o transportador não integra a cadeia de Daí decorre distinção generalista mais comum, produção, por óbvio a sua responsabilidade sobre relacionando o conceito da força maior àqueles eveneventuais vícios em relação à carga transportada é eli- tos oriundos da natureza e, ao caso fortuito, aqueles dida pela Lei. advindos da ação humana. Estabelecida tal premissa, podem-se considerar 4) Inciso IV do art. 12 – Manuseio, Embarque, abrangidas nestas hipóteses as situações da vida, cauEstiva ou Descarga Executados Diretamente pelo sadas pelo homem ou pela natureza, conforme o caso, Expedidor, Destinatário ou Consignatário da Carga caracterizadas pela inevitabilidade e imprevisibilidade, ou, ainda, pelos seus Agentes ou Prepostos podendo-se citar como exemplo, consagrado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o roubo de A premissa adotada neste caso para liberar o carga transportada, conforme se pode verificar no pretransportador da responsabilidade é o fato de o expedi- cedente abaixo: dor, destinatário ou consignatário, ou ainda os agentes “Processo civil e comercial. transporte de carga. e prepostos destes, terem o encargo exclusivo relativo contrato verbal. Roubo à mão armada. prescrição da ao manuseio, embarque, estiva ou descarga da mer- pretensão ressarcitória. Dies a quo. Ciência inequívoca 9


Hipóteses de Exclusão da Responsabilidade do Transportador de Cargas

do expedidor. responsabilidade da transportadora. inexistência. Caso fortuito. - Havendo roubo da mercadoria, não há mais de se falar na entrega desta. Em tal hipótese, o prazo prescricional da pretensão ressarcitória deve ser contado da data em que houve ciência inequívoca do expedidor acerca do assalto. - Tendo o contrato de transporte sido celebrado verbalmente e não havendo alegação das partes no sentido de ter sido acordada qualquer condição especial, aplicam-se apenas as regras gerais atinentes a tal contrato. - O roubo de mercadoria transportada, praticado mediante ameaça exercida com arma de fogo, é fato desconexo ao contrato de transporte, e, sendo inevitável, diante das cautelas exigíveis da transportadora, constitui-se em caso fortuito ou força maior, excluindose a responsabilidade desta pelos danos causados ao dono da mercadoria. Precedentes. Recurso especial conhecido e provido.” (Resp 904.733/MG, Rel. ministra Nancy Andrighi, terceira turma, julgado em 09/08/2007, DJ 27/08/2007 p. 249) “direito civil. transporte de mercadorias. roubo. fortuito e força maior. inevitabilidade. força maior. exclusão da responsabilidade do transportador de indenizar regressivamente a seguradora que cobriu os prejuízos do contratante do transporte. precedentes da corte. Recurso Provido. I − A presunção de culpa da transportadora pode ser ilidida pela prova da ocorrência de força maior, como tal se qualificando o roubo de mercadoria transportada, como ameaça de arma de fogo, comprovada atenção da ré nas cautelas e precauções a que está obrigada no cumprimento do contrato de transporte. II − Na lição de “Clóvis”, caso fortuito é “o acidente produzido por força física ininteligente, em condições que não podiam ser previstas pelas partes”, enquanto que força maior é “o fato de terceiro, que criou, para a inexecução da obrigação, um obstáculo que a boa vontade do devedor não pode vencer”, com a observação de que o traço que os caracteriza não é a imprevisibilidade, mas a inevitabilidade.” (Resp 160.369/SP, Rel. ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, quarta turma, julgado em 25/06/1998, DJ 21/09/1998 p. 190) Cumpre divisar, a propósito do tema, do singular tratamento conferido pela jurisprudência pátria, especialmente nas relações de consumo, aos conceitos de 10

fortuito interno e externo, para fins de responsabilização civil. De modo geral, tem-se afastado a responsabilidade do fornecedor de determinado serviço apenas nos casos de fortuito externo, este entendido como aquele absolutamente alheio à rotina da atividade econômica desenvolvida. Ou seja: são acontecimentos que refogem à normalidade do processo de produção ou são completamente alheios às rotinas e procedimentos utilizados na execução do serviço. Exemplo da aplicação desse entendimento encontra-se estampado no julgamento, pelo STJ, do Recurso Especial nº 726.371, de relatoria do saudoso Min. Hélio Quaglia Barbosa, no sentido da exclusão da responsabilidade do transportador decorrente de assalto ocorrido em ônibus, cuja ementa restou assim consignada: “Processo civil. recurso especial. Indenização por danos morais, estéticos e materiais. Assalto à mão armada no interior de ônibus coletivo. Caso fortuito externo. Exclusão de responsabilidade da transportadora. 1. A Segunda Seção desta Corte já proclamou o entendimento de que o fato inteiramente estranho ao transporte em si (assalto à mão armada no interior de ônibus coletivo) constitui caso fortuito, excludente de responsabilidade da empresa transportadora. 2. Recurso conhecido e provido.” (STJ, REsp 726.371/RJ , Rel. ministro Hélio Quaglia Barbosa, DJ 05/02/2007). Por outro lado, os casos considerados como de fortuito interno, isto é, aqueles que guardam íntima relação com a atividade econômica desenvolvida, não afastariam a responsabilização do transportador. Aprofundando tal raciocínio, ainda em relação ao chamado fato de terceiro, a jurisprudência tem admitido claramente que, mesmo ausente a ilicitude, a responsabilidade existe, ao fundamento de o fato de terceiro exonerador da responsabilidade ser aquele que com o transporte não guarde conexidade. Vigora no âmbito da jurisprudência do STJ o princípio geral de o fato culposo de terceiro vincular-se ao risco do transportador, que responderia pelo dano em decorrência, exatamente, do risco da sua atividade, preservado o direito de regresso. Tal não ocorreria se o caso fosse, realmente, fato doloso de terceiro. Portanto, o fato de terceiro, per si, não seria determinante para a exclusão do nexo causal, em razão do alargamento da aplicação da teoria do risco, ressalvado, contudo, o direito de regresso contra o terceiro


causador do dano. de do transportador é afastada quando o expedidor da Nas palavras do eminente ministro Castro Fi- mercadoria contrata seguro. De fato, nos termos do inlho, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº ciso I do art. 13 da Lei, há a obrigatoriedade de toda 469867, “em se tratando de responsabilidade de empre- operação de transporte estar protegida com seguro sas transportadoras, a caracterização do fato de tercei- contra perdas e danos causados à mercadoria, seguro ro como excludente de responsabilidade só se mostra este a ser custeado pelo contratante do transporte ou possível quando ausente relação de conexidade com o pelo próprio transportador. transporte, o que não se verifica em caso de acidente Como é cediço, o Código Civil disciplinou o conde trânsito, dada a previsibilidade desse tipo de evento trato de transporte de pessoas e coisas, afastando, a por parte de quem atua na área; exatamente por isso priori, celeuma concernente à existência de excludente é que deve ser inserido, no próprio risco da ativida- de responsabilidade do transportador fundada na culde, como consequência da disposição das vantagens pa de terceiro. e dos resultados produzidos, o que Nesse ponto, é de se ter em é denominado pela doutrina de rismente que, apesar de o Código de co-proveito. Destarte, ocorrências Defesa do Consumidor dispor em como a descrita no caso em apreço seu art. 14, § 3°, II, que o fornecenão podem ser consideradas súbidor de serviço “só não será restas e imprevisíveis, por não serem ponsabilizado quando provar a culA redação alheias às possibilidades e perigos pa exclusiva do consumidor ou de da nova Lei é correntes do trânsito. terceiro”, tanto a doutrina, quanto a inovadora e afasta Esse o entendimento que, a jurisprudência, eram unânimes ao meu ver, melhor resguarda a posafirmar não ser a responsabilidade a responsabilização sibilidade de indenização das vítido transportador afastada por culde terceiros mas. E é questão que não pode ser pa de terceiro. pelo fato relegada a segundo plano, tendo A propósito, vale a ressalva em vista que os critérios de responde que orientação jurisprudencial sabilidade fundada na culpa nem majoritária converge no sentido de sempre se mostram aptos a soluo Código de Defesa do Consumicionar o grave problema da reparador só ser aplicável aos contratos ção de danos, mormente diante da de transporte de forma residual, complexidade dos casos verificapois o Código Civil vigente é lei dos nos dias atuais. posterior e trata do tema de forma E embora não compartilhe específica. da visão plena e incondicionada de alguns objetivistas Com efeito, com a nova redação do Código Civil, no sentido de que o risco está na base de tudo, tenho adveio a solução para a antiga polêmica relativa à resque a interpretação favorável à manutenção do nexo ponsabilidade do transportador, nos casos de evento causal, mesmo em sendo a vítima pedestre, é a que lesivo ocasionado por culpa de terceiro, preceituando o melhor traduz o juízo de equidade necessário para o art. 735 do Código Civil: “A responsabilidade contratual caso concreto.” do transportador por acidente com o passageiro não Nesse particular, a redação da nova Lei é ino- é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação vadora e afasta a responsabilização de terceiros pelo regressiva.” fato, em razão de um processo de securitização dessa Nesse ponto, indaga-se: tal dispositivo teria apliatividade econômica, como veremos a seguir. cação, por analogia, quanto ao transporte de cargas? A resposta a essa questão encontra-se na dic6) Inciso VI do art. 12 – Contratação de Segu- ção da própria Lei 11.442/2007, em seu art. 13, que ro pelo Contratante do Serviço de Transporte, na assim dispõe: forma do Inciso I do Art. 13 desta Lei “Sem prejuízo do seguro de responsabilidade civil contra danos a terceiros, previsto em lei, toda operaComo se infere do texto legal, a responsabilida- ção de transporte contará com o seguro contra perdas 11


Hipóteses de Exclusão da Responsabilidade do Transportador de Cargas ou danos causados à carga, de acordo com o que seja estabelecido no contrato ou conhecimento de transporte (...).” De fato, o inciso VI, do art. 12, exime integralmente a responsabilidade do transportador, uma vez contratado seguro pelo próprio contratante dos serviços. Obrigação, todavia, que ficará a seu cargo, caso não seja cumprida pelo contratante, por ser providência obrigatória. 7) Parágrafo Único do Inciso VI do art. 12 – Não obstante as excludentes de responsabilidades previstas neste artigo, o transportador e seus subcontratados serão responsáveis pela agravação das perdas ou danos a que derem causa. Este dispositivo fecha o rol de causas excludentes da responsabilidade do transportador de cargas, advertindo que, mesmo configurando-se quaisquer das hipóteses previstas no art. 12, o transportador e seus prepostos serão responsabilizados pela agravação das perdas e danos por eles provocados, vale dizer, cabe ao transportador que não provocou avarias, vícios ou danos à carga zelar para impedir a piora da situação

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da mercadoria. IV Conclusão - A Lei 11.442/2007 é efetivamente o marco regulatório no setor de transporte rodoviário de cargas, diante da inexistência de diploma legal anterior que regulamentasse de forma tão pormenorizada o tema, especialmente em relação à responsabilidade das partes envolvidas nesta temática, diminuindo a informalidade no setor, favorecendo a circulação da riqueza nacional. - Naturalmente, a Lei Federal 11.442/2007 somente terá seus contornos bem delineados quando devidamente esmiuçada pela doutrina e analisada pela ótica dos tribunais, notadamente do Superior Tribunal de Justiça, responsável por uniformizar a interpretação da legislação federal. - Não se tem dúvida da alta relevância do tema Transporte Rodoviário de Cargas na atual conjuntura econômica do Brasil, nação que ocupa papel cada vez mais decisivo no cenário mundial, possuidora de incontáveis riquezas circulando pelas suas inúmeras rodovias.


Artigo MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: EFICAZES INSTRUMENTOS DE COMPLEMENTAÇÃO AO SISTEMA JUDICIAL CLÁSSICO Sérgio Ricardo de Souza Juiz de Direito

O

Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, Mestre e Doutor em Direito, Diretor da Escola da Magistratura do Estado do Espírito Santo

presente ensaio em forma de paper busca analisar o modelo tradicional de distribuição da tutela jurisdicional e a sua incapacidade de, isoladamente, apresentar respostas satisfatórias, rápidas e eficazes aos anseios sociais por justiça. Analisa, também, a viabilidade da inserção de meios alternativos de solução de conflitos no contexto do sistema judiciário brasileiro, a partir dos frutíferos debates deduzidos do “Curso de Formação de Multidisciplinares em Mediação e Técnicas Autocompositivas¹”, realizado por feliz iniciativa da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados² em parceria com a Secretaria Nacional de Reforma do Judiciário, e que teve como principal finalidade a formação de quadros para divulgar e reproduzir no seio da Magistratura Nacional informações sobre como desenvolver e aplicar complementarmente as modernas técnicas de composição de conflitos e facilitar a conscientização sobre a relevância do desenvolvimento e da aplicação desses modelos, superando o histórico desafio republicano de tornar efetiva a justiça como instrumento de cidadania. Tais técnicas apresentam-se como essenciais para a complementação da formação dos magistrados brasileiros, os quais, enquanto bacharéis em direito, recebem no bacharelado a tradicional visão do processo judicial como ferramenta única de solução de conflitos sociais, equívoco este que pode e deve ser superado através de uma formação contínua que a Escola Nacio-

nal de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados deve orientar e incentivar as Escolas Estaduais e Federais de Magistratura a oferecer aos juízes, ao longo de sua carreira. As Escolas de Magistratura possuem, assim, o relevante papel de suprir a carência existente nas Universidades, principalmente no bacharelado em Direito, no que diz respeito à formação para a pacificação dos conflitos sociais através do consenso obtido por intermédio da conciliação e também da mediação, não só através do oferecimento de cursos de formação e de aperfeiçoamento contínuo, mas também pela constante publicação de revistas e outras formas de divulgação que potencializem e democratizem a produção científica desenvolvida no seu âmbito.

Contextualização Histórica e Sociológica Com o advento da Constituição de 1988, a sociedade brasileira viu surgirem novos direitos, concebidos internacionalmente, principalmente a partir da 2ª Guerra Mundial, e que ultrapassam os limites conceituais das tradicionais demandas de cunho individual, tradicionalmente solucionados em conformidade com as diretrizes da lógica formal, típicas do modelo cartesiano e do positivismo, com predominância da ideia de que ao Poder Judiciário cabe aplicar a lei ao caso concreto, solucionando formalmente a lide, sem lhe caber questionar ou pretender analisar aspectos sociológicos vin-

1-Realizado por iniciativa da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, em parceria com a Secretaria de Reforma do Judiciário, no período de 15 a 17 de dezembro de 2008, em Brasília-DF. 2 - A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) foi criada através da Emenda Constitucional nº 45, que a inseriu o nciso I, do Parágrafo único, do art. 105, da CRFB, “cabendo-lhe, dentre outras funções, regulamentar os cursos oficiais para ingresso e promoção na carreira”. 13


Mediação e conciliação: eficazes instrumentos de complementação ao sistema judicial clássico

culados à efetividade da intervenção jurisdicional, no que concerne à pacificação social. Vários desses direitos (saúde, educação³, lazer, transporte) conduzem inclusive a necessidade de judicialização das políticas públicas (BARACHO, Editora Fórum, 2008) e as demandas a eles vinculadas têm contribuído significativamente para obstaculizar a eficácia da tutela jurisdicional, pois a sociedade aprendeu o caminho dos Tribunais, em busca da tutela desses direitos previstos constitucionalmente, mas não realizados voluntariamente pelo Estado, em evidente omissão no que concerne à implantação dos direitos fundamentais. A essas demandas características da judicialização das políticas públicas somam-se aquelas decorrentes da complexa multiface do mercado contemporâneo e de sua vocação para a produção em massa, gerando, também, a busca de tutelas jurisdicionais voltadas para a solução dos conflitos oriundos dessas relações sociais e obrigacionais múltiplas e repetitivas. O Poder judiciário brasileiro, instrumentalizado historicamente em uma estrutura burocrática desenvolvida na concepção da Europa Continental para as soluções daquelas já mencionadas demandas individuais, através da lógica cartesiano-formal fomentada pelo Positivismo, viu-se, a partir do advento da “constituição cidadã”, na contingência de ter que se adequar a um novo modelo de tutela jurisdicional, vinculada a princípios como o devido processo legal e “justo” (MORELLO, 2005), razoável duração do processo (EC 45/2004) e a uma nova concepção voltada para a instituição de um Estado de Direito Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (PIOVESAN, 2008).

Deparou-se, assim, o Judiciário brasileiro, a partir de 1988, com o paradoxo de ter alcançado uma importância social jamais experimentada ao longo de sua existência institucional, saindo da condição histórica de mais fraco dos três poderes (HAMILTON et alii, 2005) para a de protagonista, sendo provocado, através de milhões de ações, para a solução de demandas das mais diversas ordens, buscando o reconhecimento de direitos invocados pelos mais variados segmentos da sociedade do período pós-ditatorial, mas, ao mesmo tempo, sendo incapaz de dar vazão ao excesso de demanda, por falta de estrutura apropriada e também em razão de seus quadros profissionais não estarem preparados cultural, sociológica e mesmo juridicamente para aplicar o novo modelo de Justiça instituído. Diante dessa indesejável realidade, o Poder Jurídico Nacional, através de ações desenvolvidas no âmbito de seus diversos segmentos, tem procurado, ao longo dessas duas décadas de implantação do novo modelo constitucional, adequar a sua estrutura funcional e implantar novos modelos de solução dos conflitos, de modo a cumprir a sua função constitucional com vocação para a efetiva (e não apenas formal) solução dos conflitos sociais, e, mais recentemente, a chamada Justiça comum (Federal e dos Estados), seguindo exemplo já desenvolvido no âmbito da Justiça laboral, passou a adotar com mais ênfase modelos baseados em técnicas conciliatórias, judiciais e extrajudiciais, as quais têm sido incentivadas em âmbito nacional por praticamente todos os Tribunais e também pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sendo exemplo disso a denominada “semana da conciliação”. A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), órgão criado através da Emenda Constitucional nº 45/2004 e integrado à estrutura orgânica do Superior Tribunal de Justiça, considerando a necessidade de formação dos magistrados para atender a essa nova realidade, tem buscado contribuir decisivamente para alcançar esse objetivo,

3 - STF: 1. A educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo artigo 205 da Constituição do Brasil. A omissão da Administração importa afronta à Constituição. 2. O Supremo fixou entendimento no sentido de que “[a] educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental [...]. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional”. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 594018 AgR, Relator(a): Min. Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 23/06/2009, DJe-148 Divulg 06-08-2009 Public 07-08-2009 Ement vol-02368-11 PP-02360). 14


capacitando professores para atuarem nas Escolas da Magistratura, com vistas a suprir a carência notória de magistrados e servidores que não contaram, na sua formação acadêmica, com disciplinas voltadas para a valorização das técnicas alternativas de solução de conflitos, já que tradicionalmente os cursos de direito preparam seus alunos para a atuação em situações de conflito e não para a pacificação, mantendo-se alheias à necessidade de dotar os magistrados e demais profissionais do direito de conhecimentos vastos e diversificados (econômicos, sociológicos, políticos), para bem cumprirem a sua missão (SANTOS, 2001).

Mediação e conciliação: definição e aspectos culturais

A doutrina não encontrou conceitos ou classificações que justifiquem tratamentos distintos entre os institutos da mediação e da conciliação, havendo inclusive autores que os tratam como sinônimos, o que parece razoável, até porque o importante no aspecto pragmático é que ambos podem ser utilizados como forma alternativa à tutela jurisdicional clássica. De qualquer sorte, merece destacar que predomina o entendimento de que a conciliação se utiliza de um terceiro imparcial que busca compor os interesses em A Mediação ou conciliação como modelo rota de colisão, participando e atuando no mérito da complementar à tutela jurisdicional tradiquestão geradora da discórdia, ao passo a mediação cional. visa principalmente alcançar a mudança do comportamento conflituoso dos envolvidos, O novo modelo proposto não através da superação das tensões faz parte do sistema tradicional im(despolarização das tensões), sem portado pelo Brasil da experiência que ocorra o envolvimento direto Predomina o romano-germânica ou modelo eudo mediador no mérito do acordo a entendimento de ropeu-continental, sendo mais deser alcançado pelas partes, sendo senvolvido e aplicado no sistema do que a conciliação se também denominada de “autocomcommom law anglo-saxão, com ênposição mediada ou assistida”, em utiliza de um terceiro fase para os sistemas jurídicos dos contraposição à “autocomposição imparcial que busca Estados Unidos e Inglaterra, mas direta”, desenvolvida diretamente a exemplo da integração de regras compor os interesses pelos interessados, sem mediação desse sistema com as do civil Law, (AZEVEDO, 2004). em rota de colisão, o que vem sendo observado em reAmbos os métodos têm sido participando e atuando aplicados com sucesso em paílação aos diversos ramos do direito (GUARNIERI, 2001), a experiência no mérito da questão ses que elegeram a mediação e da conciliação pode e deve ser ina conciliação como mecanismos geradora da discórdia troduzida de forma complementar e integrantes do sistema judiciário abrangente em nosso modelo proou mesmo de um sistema privacessual, como ocorreu no sistema do e pré-processual, devendo-se japonês (CAPPELLETI, 1988), atuobservar, entretanto, que esses ando como um democrático sistema métodos já se encontram incorpode filtros que precisam ser implantados como forma de rados na cultura desses povos e não se pode, de forma reduzir o impressionante grau de litigiosidade, que tem simplista, pretender importar os modelos alienígenas e se constituído, juntamente com fatores internos (ausên- querer impô-los ao nosso povo, como já se pretendeu cia de planejamentos estratégicos de gestão, nepotis- com o juízo arbitral (Lei 9.307/96), o qual, no âmbito mo etc.) e externos (recursos orçamentários insuficien- das divergências entre pessoas físicas ou mesmo nas tes, processo caracterizado por excesso de formalismo quais pelo menos uma das partes seja pessoa física, e de recursos etc.) ao Poder Judiciário, obstáculo a praticamente não teve qualquer influência na questão uma prestação jurisdicional que atenda aos anseios do da pacificação social e não atendeu às expectativas de jurisdicionado (lentidão, ineficácia etc.) e colocado em seus defensores, em um claro exemplo de que é esxeque a própria legitimidade desse indispensável Po- sencial o respeito aos valores históricos e culturais de der, o qual tem se apresentado como último bastião na cada povo, quando da implantação de um novo modelo proteção dos direitos fundamentais. jurídico ou mesmo de aspectos que alteram o modelo 15


Mediação e conciliação: eficazes instrumentos de complementação ao sistema judicial clássico

vigente, para evitar as leis que “não pegam”.

Implantação de rede de experiências de solução alternativa de conflitos Há necessidade de implantação urgente, mas gradual e organizada, desses novos modelos alternativos de realização da justiça, conscientizando-se não só os profissionais do direito, mas também influenciando a formação para a cultura da conciliação e da paz, em todos os níveis escolares, incentivando a disseminação dessa cultura no seio social e, concomitantemente, desenvolvendo uma rede extensa de agentes mediadores e conciliadores que atuem preferencialmente por iniciativa da própria sociedade civil organizada (SANTOS, 2001), sem abandonar as valiosas experiências de conciliação tuteladas pelo Poder Judiciário, através de juízes de paz, juízes leigos, conciliadores e até mesmo através dos juízes profissionais, embora este pareça ser o sistema menos desejável, pois pressupõe a inexistência ou a ineficiência dos filtros, que devem ser prestar a evitar o ajuizamento daquelas demandas conciliáveis. Qualquer modelo que se idealize exige aportes financeiros e materiais para a efetiva implantação e funcionamento, mas pode-se visualizar na experiência estrangeira e mesmo na ainda embrionária experiência brasileira que o modelo da tutela jurisdicional tradicional, baseado na movimentação da máquina burocrática do Poder Judiciário mesmo através dos meritoriamente festejados Juizados Especiais –, é caro, mais lento e, nos casos onde a solução extrapola as questões jurídicas e alcança aspectos sociais, apresenta-se insuficiente para alcançar a almejada pacificação do conflito, solucionando o processo e as questões jurídicas, mas mantendo-se acesa a chama que originou a desavença. Os meios alternativos de solução de conflitos devem incorporar outros profissionais, além dos bacharéis em direito, com ênfase para a multidisciplinaridade que possibilite a atuação direta de mediadores e conciliadores com conhecimentos específicos na área onde se situa o objeto da discórdia, sem excluir a atuação dos leigos. Devem ser valorizados os profissionais ou leigos com domínio, ou pelo menos com noções básicas, nos campos da psicologia e da sociologia, com vistas a propiciar análise das reações das pessoas que controvertem, bem como das causas e concausas que contribuem para o aumento da tensão; quando, então, 16

identificadas essas particularidades, será possível a aplicação de técnicas apropriadas para superar os aspectos conflituosos e buscar o restabelecimento da harmonia. Obviamente há situações onde o conflito ou tensão não é propriamente subjetivo, como nas relações entre empresas, nas relações de consumo onde uma das partes ofendidas é o consumidor e a outra é tãosomente o preposto da empresa, dentre outras. Entretanto, mesmo nesses casos, a oportunidade de realização de mediações ou conciliações desenvolvidas com técnicas apropriadas pode auxiliar para minimizar a tensão, ainda que a questão seja insuperável fora da esfera jurídica tradicional. Há ramos do direito e das próprias relações sociais onde as relações interpessoais são muito fortes, como acorre nas relações de família, relações de vizinhança, na maioria das relações de trabalho, nas relações entre clientes e prestadores de serviços individuais (cabeleireiros, manicures, costureiras), e nelas, antes de eclodir a tensão que leva ao conflito, existem afinidades entre as partes que podem e devem ser valorizadas e recuperadas. Esse trabalho não é desempenhado com excelência pelo modelo tradicional de solução de conflitos lastreado no processo judicial, já que este se desenvolve e termina dentro de canais formais, os quais criam sérios obstáculos à espontaneidade das partes, na maioria das vezes com receio de que possa ser reconhecida alguma espécie de confissão em sua atitude de ceder e reconhecer pontos positivos em favor da outra parte, prejudicando-a “processualmente”. Ao contrario do processo formal tradicional, principalmente nessas situações onde afloram as relações interpessoais e o subjetivismo, é que se apresenta extenso campo para a atuação da mediação, ou da conciliação, como métodos de filtro a evitar a solução judicial. Deve-se ter em conta que mesmo naquelas outras relações onde predominam aspectos objetivos, não raro o desenvolvimento da espiral conflituosa é caracterizado por relações subjetivas, como ocorre sistematicamente com as relações de consumo, onde o defeito do produto ou do serviço às vezes representa menos para o consumidor do que a afronta e o desrespeito experimentados ao buscar a solução do problema e não ter a devida atenção por parte dos serviços de atendimento ao cliente; aqui também é relevante a aplicação de métodos de solução que possibilitem identificar essas concausas e, quando possível, superá-las, mormente através de técnicas que permitam a ambas as partes


reconhecerem que estão em um ambiente imparcial, no qual podem se manifestar em pé de igualdade e expor com razoável liberdade as suas angústias, sem preocupações quanto ao reflexo no âmbito do processo formal. Contudo, deve-se estar atento, nestes casos, para o risco de “deterioração da posição jurídica da parte mais fraca” (SOUSA, 2001). Para alcançar o objetivo de viabilizar efetivamente um sistema de filtros que atue antes da busca pela tutela jurisdicional do Estado, necessário se faz avançar no fortalecimento e aperfeiçoamento dos mecanismos de mediação e conciliação já existentes e implantar novos modelos, na busca da formação de uma rede nacional envolvendo iniciativas privadas e oficiais que difundam e disponibilizem em larga escala esses métodos alternativos de solução de conflitos. O Poder Judiciário vem dando relevante contribuição, pois aquelas iniciativas tímidas e isoladas de busca pela pacificação social por meio da conciliação agora encontraram eco no órgão encarregado de criar e gerir as políticas gerais de gestão desse Poder, o Conselho Nacional de Justiça, o qual, através de diversos atos 4, vem criando uma identidade nacional para o Judiciário e estabelecendo métodos capazes de identificar as “boas práticas” isoladas, difundindo-as entre os diversos tribunais.

atue como filtro diante dos diversos conflitos sociais, minimizando os efeitos maléficos da grande litigiosidade hoje existente no País e criando uma nova cultura, baseada na busca pela harmonia, solidariedade e pacificação social, sem pretensão de substituição do direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário. O Poder Judiciário, os agentes que atuam no sistema judicial clássico (magistrados, advogados, promotores) e as escolas devem incorporar os valores trazidos pela Constituição Federal de 1988, atuando de forma a evitar a cultura do conflito, dando preferência à solução negociada dos conflitos sociais e buscando alternativas que valorizem as soluções simples e de baixo custo financeiro, incentivando também as iniciativas de participação popular, de índole democrática (SOUSA, 2001) e de cunho educativo e transformador da tradicional cultura do litígio, que podem atuar como filtro das questões a serem efetivamente jurisdicionalizadas.

Conclusão

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito Processual Constitucional:

O sistema judicial clássico tem demonstrado a sua insuficiência para, isoladamente, propiciar ao jurisdicionado brasileiro o acesso à ordem jurídica justa e eficaz dentro de prazo razoável, conforme lhe garante a Constituição Federal de 1988, em decorrência de ter contado com a confiança do legislador constituinte, que o elegeu como garantidor da efetividade dos diversos direitos inseridos nos âmbitos constitucional e infraconstitucional, sem lhe propiciar, entretanto, a necessária estrutura para o eficiente cumprimento de sua missão. Tornou-se premente a necessidade de implantação de novos métodos de solução extrajudicial de conflitos, os quais, interligados aos modelos hoje existentes de Mediação e a Conciliação, podem formar uma rede nacional de solução alternativa de conflitos, que

Referências Bibliográficas AZEVEDO, André Goma de (org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. V. 13. Brasília: Grupos de Pesquisa, 2004. AZEVEDO, André Goma de, BARBOSA, Ivan Machado (orgs.). Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. V. 14. Brasília: Grupos de Pesquisa, 2007. Aspectos Contemporâneos. 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2008. CAPPELLETTI, Mauro. O Processo Civil no Direito Comparado. Belo Horizonte: Cultura Jurídica. Ed. Líder, 2001. _____________. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988. GUARNIERI, Carlo. Judicialismo. 1ª ed. Buenos Aires: Harmmurabi, 2003. HAMILTON, Alexander, John Jay, James Madison. O Federalista. 2ª ed. Campinas: Russell Editores, 2005. MORELLO, Augusto M. El Proceso Justo. 2ª ed. La Plata: Librería Editora Platense, 2005. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva 2008. SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice: O Social na PósModernidade. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.

4 -Exemplo disso é a Resolução Conjunta nº 01/2009, que dispõe sobre a adoção de medidas destinadas à redução da taxa de congestionamento nos órgãos judiciários de primeiro e segundo graus, especialmente no que se refere ao cumprimento da Meta de Nivelamento nº 2, estabelecida no II Encontro Nacional do Judiciário. (Publicada no DOU, Seção 1, em 5/8/09, p. 66, e no DJ-e nº 132/2009, em 5/8/09, p. 2).

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Sentença AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHEIMENTO E DISSOLUÇÃO “CAUSA MORTIS” DE UNIÃO ESTÁVEL

Jorge Barretto Juiz de Direito

3ª Vara de Família, Pós-graduado em Direito, Justiça e Cidadania Vistos etc. Intentada a presente Ação Declaratória de Reconhecimento e Dissolução “causa mortis” de União Estável cumulada com pedido de meação da pensão previdenciária vitalícia junto ao órgão de previdência do TRT da 5ª. Região, bem como meação dos benefícios da Previdência Privada da Faelba, pela requerente em epígrafe, em face de M. A. A. J., ambas devidamente individualizadas, qualificadas e representadas. Constatou-se que o processo seguiu e cumpriu regular tramitação, ouvido o Ministério Público em todas as fases e em especial relevo colhendo-se o seu parecer final, que se lê às fls. 883/ 886 dos autos. A ora requerente apresentou o pedido em tela, asseverando ter convivido, em tempo integral, com o Sr. F. A. J., em União Estável, por mais de vinte e seis anos, e tudo mais que se lê da sua inicial de fls. 02/14, anexando a esta os documentos de estilo. Contestação, tempestivamente apresentada, também com diversos documentos No transcorrer do processo de cognição, a requerida agravou de instrumento da decisão deste Juízo, que determinou, por precaução, o bloqueio do percentual de 50% dos rendimentos auferidos pela agravante junto ao Tribunal Regional do Trabalho da 5ª. Região, valendo ressaltar que o “decisum” em tema foi integralmente mantido em Superior Instância. Foram realizadas as Audiências de Conciliação, sem êxito, e de instrução, com o depoimento pessoal das partes e oitiva das testemunhas que ali depuseram. Após a instrução probatória, foi aberto o prazo para apresentação dos memoriais, que foram levados a efeito, em tempo hábil e reiterativo. Parecer do Mi18

nistério Público, conforme vimos, constante dos autos (fls. 883 a 886). Sendo este o relatório, passo a decidir:

Fundamentação Elementar, entre nós, que para se configurar de modo efetivo o modelo legal da União Estável esteja comprovado nos autos a dualidade de sexos, a estabilidade, a coabitação, a assistência moral e a inexistência de impedimentos ao enlace matrimonial. Isto posto, à luz do quanto disposto no art. 226, parágrafo 3º. da nossa Carta Magna, e nos arts. 1.52l c/c 1723, parágrafo primeiro, todos do vigente Código Civil Brasileiro. Na situação vertente dos autos, de modo indiscutível, inexistiu qualquer ruptura judicial entre o falecido e a sua esposa, ora requerida, Sra. M.. Mesmo levando-se em conta a flexibilização trazida a lúmen pela Doutrina e Jurisprudência dos Nossos Tribunais, de modo a reconhecer em alguns casos o pedido exordial, incomensurável que se configure, em última hipótese, um rompimento fático do casamento; fato este que foi sobejamente rechaçado com a oitiva das testemunhas ouvidas. Afinal, configura-se como de evidente impossibilidade física ter estado o falecido em dois lugares e com a mesma unicidade de tempo. Importante ressaltar que a autora, em seu depoimento, reconhece que após alguns poucos anos de convivência teve efetivo conhecimento de ser o Sr. F. um homem casado, permanecendo assim por mais de vinte anos, o que implica a impossibilidade jurídica do pedido, consoante asseverado, pois, segundo doutrina e jurisprudência, impossível haver de forma simultânea o reconhecimento de uma União Estável na constân-


cia de Casamento, posto que, se assim fosse levado a de segurado legalmente casado. Por maioria, a Sexta efeito, ficaria a instituição familiar absolutamente des- Turma do STJ reformou acórdão do Tribunal Regional provida dos seus valores jurídico e moral. Federal (TRF) da 5ª Região que entendeu que a penAo longo da instrução probatória, provado res- são deveria ser rateada entre a viúva e a concubina, tou que o Sr. F. era casado e sempre residiu com sua diante da demonstrada dependência econômica da esposa e filha, embora tenha sido objeto de prova tes- companheira. temunhal o fato de que o mesmo, no transcorrer desta, O acórdão do TRF entendeu que o estado civil houvera tido um relacionamento com a autora; porém, de casado do segurado não impedia a concessão do não há aqui que se falar em União Estável, pois esta benefício à concubina em conjunto com a esposa, já não pode ser reconhecida; a uma, que ficou comprovada a existência sob a égide do casamento; a duas, de união estável e a relação de dena constância fática da relação mapendência econômica. Sustentou, trimonial. ainda, que, embora desconheciO Estado deve zelar A nossa melhor doutrina aponda pela esposa, filhos e parentes ta diferenças entre o concubinato de pela família, e esta deve próximos do segurado, a relação má-fé e o de boa-fé. Concubinato de amorosa com ele durou 28 anos e se reger por princípios boa-fé seria a chamada “união esera notória na localidade em que a morais legais e tável putativa”, ocorre quando uma concubina residia, o que caracteridas partes ignora o outro relacionaza uma união estável. constitucionais; ainda mento do parceiro, acreditando que A esposa do segurado recorassim, não pode o está vivendo um relacionamento reu ao STJ, alegando que não há moderno operador do diúnico, sem perceber que está vivencomo se conferir status de união do uma união paralela. Já o concureito se restringir a ape- estável a uma aventura extraconbinato de má-fé é aquele em que jugal, que não configura entidade nas aplicar o a concubina tem ciência de outra familiar. Também argumentou que, que está na Lei relação anteriormente estabelecida ao reconhecer a relação estável pelo seu parceiro. Esta espécie é, entre um homem e duas mulheres normalmente, deixada à margem do e permitir a divisão equânime do Direito de Família, e grande parte da benefício, o TRF violou vários disdoutrina e jurisprudência alega que positivos legais. não pode ser reconhecido nenhum direito à relação, O relator do processo, ministro Nilson Naves, sob pena de infringir o princípio da monogamia, sendo negou provimento ao recurso da esposa por entender esta última a hipótese dos autos. que o acórdão protegeu a boa-fé de uma relação conCom efeito, o Estado deve zelar pela família, e cubinária de quase 30 anos. Em voto vista que abriu a esta deve se reger por princípios morais legais e cons- divergência, o ministro Hamilton Carvalhido acolheu o titucionais; ainda assim, não pode o moderno operador recurso para reformar o acórdão recorrido. do direito se restringir a apenas aplicar o que está na Citando vários dispositivos de diversas leis, HaLei, é preciso que cada situação seja analisada dentro milton Carvalhido ressaltou que, mesmo diante da evode suas particularidades, posto que e conforme sabe- lução legislativa, o legislador manteve como exigência mos, nada em direito é absolutamente estanque; é pre- para o reconhecimento da união estável que segurado ciso dar lugar às mudanças que nos impõe o tempo, e companheira sejam solteiros, separados - de fato ou porém jamais sem nos deixar afastar do firme conven- judicialmente - ou viúvos, que convivam como entidade cimento de que a evolução, enfim, não é a destruição familiar, ainda que não sob o mesmo teto, excluindodo “velho” para criação do “novo”, mas, sim, a continui- se, para fins de reconhecimento de união estável, as dade nascida da tradição... situações de simultaneidade de relação marital e de Vejamos, a seguir, o que pontificam os Tribunais concubinato. Pátrios em situação de idêntico jaez: “Assim, o reconhecimento impuro, concubinaO Superior Tribunal de Justiça negou a uma con- gem ou concubinato adulterino, simultâneo à relação cubina o direito ao recebimento de pensão por morte de casamento, mantém-se à margem da legislação 19


Ação declaratória de reconhecimento e dissolução “causa mortis” de união estável

previdenciária”, ressaltou em seu voto. Para ele, mesmo com a vigência de uma nova visão de valores em matéria familiar, o instituto da união estável efetiva importante distinção entre relações livres e relações adulterinas. Segundo Hamilton Carvalhido, a jurisprudência reconhece à companheira de homem casado, desde que separado de fato ou de direito, divorciado ou viúvo, o direito na participação dos benefícios previdenciário e patrimonial, decorrentes do seu falecimento, concorrendo com a esposa ou até mesmo excluindo-a da participação. “De sorte que a distinção entre concubinato e união estável hoje não oferece mais dúvida”, destacou. Para o ministro, mesmo diante da incontroversa relação oculta de 28 anos entre a concubina e o segurado, e do casamento estável de 30 anos com a esposa, a verdade é que se trata de situação extravagante à previsão legal. Também em voto vista, a ministra Maria Thereza de Assis Moura votou pelo provimento do recurso. O julgamento foi concluído com o voto desempate do ministro Paulo Gallotti, que acompanhou a divergência aberta pelo ministro Hamilton Carvalhido. Ficaram vencidos o ministro Nilson Naves e o desembargador convocado Carlos Mathias.

Notas da Redação A Sexta Turma do STJ reiterou seu entendimento e, por maioria de votos, reformou o acórdão do TRF da 5ª Região, negando à concubina o direito ao recebimento de pensão por morte de segurado legalmente casado. O entendimento do TRF da 5ª Região é de que a pensão deveria ser rateada entre a viúva e a concubina, diante da demonstrada dependência econômica da companheira, e de comprovação da união desta com o segurado casado durante 28 anos. Mesmo diante da evolução legislativa, mantevese como exigência para o reconhecimento da união estável que segurado e companheira sejam solteiros, separados - de fato ou judicialmente - ou viúvos, que convivam como entidade familiar, ainda que não sob o mesmo teto, excluindo-se, para fins de reconhecimento de união estável, as situações de simultaneidade de relação marital e de concubinato. “Assim, o reconhecimento impuro, concubinagem ou concubinato adulterino, simultâneo à relação de casamento, mantém-se à 20

margem da legislação previdenciária”. Nos dizeres de Flávio Tartuce e José Fernando Simão (Direito Civil, v. 5: Família. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2008), “é imperioso verificar que há uma tendência de ampliar o conceito de família para outras situações não tratadas especificamente pelo Texto Maior”; nesta mesma linha de pensamento, a desembargadora do TJRS, Maria Berenice Dias, fala em Famílias Plurais: “O novo modelo de família fundase sob os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudomonismo, impingindo uma nova roupagem axiológica ao direito de família (...)”. Ela traz as seguintes modalidades de entidades familiares: a) família matrimonial: decorrente do casamento; b) família informal: decorrente da união estável; c) família homoafetiva: decorrente da união de pessoas do mesmo sexo; d) família monoparental: constituída pelo vínculo existente entre um dos genitores com seus filhos, no âmbito de especial proteção do Estado; e) família anaparental: decorrente “da convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade e propósito”; f) família eudemonista: conceito utilizado para identificar a família pelo vínculo afetivo. Apesar de a decisão tomada pela 6ª Turma do STJ representar entendimento predominante, o Min. Fontes Alencar, da 4ª Turma, no julgamento do Resp 57.606/MG, reconhece que o imóvel em que residem duas irmãs é bem de família, pois ambas constituem entidade familiar. Portanto, reconhece como entidade familiar algo que não se enquadra no conceito de família contido no art. 226 da CF/88. Pode-se dizer que o rol do art. 226 seria meramente exemplificativo e não taxativo. O atual Código Civil traz expressamente a diferença entre união estável e concubinato: CC, Art. 1.723. “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1o “A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.” CC, Art. 1.727. “As relações não eventuais entre


o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem do nosso País, porém casais em situação de compaconcubinato.” nheirismo. Até porque o concubinato implicaria discriAo concubinato se aplica o disposto na Súmula minar os eventuais filhos do casal, que passariam a ser 380 do STF, por tratar-se de sociedade de fato e não rotulados de ‘filhos concubinários’. Designação pejorade entidade familiar. tiva, essa, incontornavelmente agressora do enunciado STF, Súmula 380: “Comprovada a existência de constitucional de que ‘Os filhos, havidos ou não da resociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua lação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adqui- direitos e qualificações, proibidas quaisquer designarido pelo esforço comum.” ções discriminatórias relativas à filiação’ (§ 6º do art. Mais uma vez concordamos com o posiciona- 227, negritos à parte). 13. Com efeito, à luz do Direito mento de Maria Berenice Dias, que diz: “Situações de Constitucional brasileiro o que importa é a formação fato existem que justificam consiem si de um novo e duradouro doderar que alguém possua duas faméstico. A concreta disposição do mílias constituídas. São relações casal para construir um lar com um de afeto, apesar de consideradas subjetivo ânimo de permanência adulterinas, e podem gerar conseque o tempo objetivamente conAo concubinato quências jurídicas”. firma. Isto é família, pouco imporNo RE 397.762- 8/BA, j. tando se um dos parceiros mantém se aplica o disposto 03.06.2008, o STF abordou a quesuma concomitante relação sentina Súmula 380 do tão de um sujeito que tinha duas mental a dois. No que andou bem a STF, por tratar-se de uniões concomitantes, em que amnossa Lei Maior, ajuízo, pois ao dibas, a esposa e a “companheira”, reito não é dado sentir ciúmes pela sociedade de fato e requeriam pensão previdenciária parte supostamente traída, sabido não de entidade do falecido. No caso em julgamenque esse órgão chamado coração familiar to, o falecido nunca se separou de ‘é terra que ninguém nunca pisou’. fato da esposa, portanto, era casaEle, coração humano, a se integrar do de fato e de direito, tendo com num contexto empírico da mais ela 11 filhos; mas mantinha relação entranhada privacidade, perante o duradoura de 37 anos com outra qual o Ordenamento Jurídico somulher, da qual nasceram 9 filhos. mente pode atuar como instância Diante desses fatos, o Min. Carlos protetiva. Não censora ou por qualAyres Brito assim conclui: quer modo embaraçante (...) 17. No “12. Minha resposta é afirmativa para todas as caso dos presentes autos, o acórdão de que se recorre perguntas. Francamente afirmativa, acrescento, porque tem lastro factual comprobatório da estabilidade da rea união estável se define por exclusão do casamento lação de companheirismo que mantinha a parte recorcivil e da formação da família monoparental. É o que rida com o de cujus, então segurado da previdência sobra dessas duas formatações, de modo a constituir social. Relação amorosa de que resultou filiação e que uma terceira via: o tertium genus do companheirismo, fez da companheira uma dependente econômica do abarcante assim dos casais desimpedidos para o ca- seu então parceiro, de modo a atrair para a resolução samento civil, ou, reversamente, ainda sem condições deste litígio o § 3º do art. 226 da Constituição Federal. jurídicas para tanto. Daí ela própria, Constituição, falar Pelo que, também desconsiderando a relação do casaexplicitamente de ‘cônjuge ou companheiro’ no inciso mento civil que o então segurado mantinha com outra V do art. 201, a propósito do direito a pensão por porte mulher, perfilho o entendimento da Corte Estadual para de segurado da previdência social geral. ‘Companhei- desprover, como efetivamente desprovejo, o excepcioro’ como situação jurídica ativa de quem mantinha com nal apelo. O que faço com as vênias de estilo ao relator o segurado falecido uma relação doméstica de franca do feito, ministro Marco Aurélio.” estabilidade (‘união estável’). Sem essa palavra azeda, Tem prevalecido nos Tribunais Superiores o enfeia, discriminadora, preconceituosa, do concubinato. tendimento de não se admitir uma relação de concomiEstou a dizer: não há concubinos para a Lei Mais Alta tância entre casamento e união estável; em contrapar 21


Ação declaratória de reconhecimento e dissolução “causa mortis” de união estável

tida, o Tribunal Gaúcho já decidiu o seguinte: “Apelação. União dúplice. União estável. Possibilidade. A prova dos autos é robusta e firme ao demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante ao casamento de ‘papel’. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre a esposa, a companheira e o de cujus. Meação que se transmuda em ‘triação’, pela duplicidade de uniões. Deram provimento, por maioria, vencido o des. Relator” (TJRS, Apelação Cível 70019387455, 8ª Câmara Cível, Rel. Rui Portanova, j. 24.05.2007). Neste sentido, o mesmo Tribunal contempla outros julgados: Apelação Cível 70011962503, 8ª Câmara Cível, Rel. Rui Portanova, j. 17.11.2005 e Apelação Cível 70009786419, 8ª Câmara Cível, Rel. Rui Portanova, j. 03.03.2005. A doutrina ainda se subdivide e aponta diferenças entre concubinato de má-fé e de boa-fé. Concubinato de

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boa-fé seria a chamada “união estável putativa”, ocorre quando uma das partes ignora o outro relacionamento do parceiro, acreditando que está vivendo um relacionamento único, sem perceber que está vivendo uma união paralela. Já o concubinato de má-fé é aquele em que a concubina tem ciência de outra relação anteriormente estabelecida pelo seu parceiro. Esta espécie é, normalmente, deixada à margem do Direito de Família, e grande parte da doutrina e jurisprudência alega que não pode ser reconhecido nenhum direito à relação, sob pena de infringir o princípio da monogamia. Ante tudo quanto exposto, como se aqui estivesse literalmente transcrito, Julgo A Ação Improcedente, de modo a não reconhecer a união estável pretendida, determinando ao Cartório deste Juízo que Oficie ao Órgão Competente, revogando o bloqueio determinado na pensão percebida pela viúva; porém, somente após transitada em julgado esta sentença. Deferido o pedido de Assistência Judiciária Gratuita. Honorários Advocatícios conforme e se pactuado.


Artigo A FUNÇÃO SOCIAL COMO PRINCÍPIO NORTEADOR DA ATUAL INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS Julyana Lantyer Esquievel Lavigne Advogada

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Especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Bahia, Pós-graduanda em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Bahia e aluna da EMAB

lterações profundas no instituto do contrato há muito denunciam o desenvolvimento de uma nova teoria contratual, originada, prima facie, da tendência moderna de se flexibilizar o exercício dos direitos subjetivos em nome e por causa da ideia de solidariedade social. Nestas primeiras linhas do breve debate que aqui se anuncia, há que se pontuar que, tomando-se como marco histórico-cronológico a primeira metade do século passado, mais precisamente, os contornos da nova sociedade que passou a se desenvolver após o período bélico, os institutos de direito civil perderam muito da carga de patrimonialidade que ostentavam adrede. Isso porque aquela sociedade profundamente desestruturada urgia por modificações que alterassem, de fato, a ordem jurídica e econômica então vigente, a fim de que se restabelecesse certa harmonia nas relações intersubjetivas. À primeira análise, se diria que a questão da evolução da dogmática contratual requer, tão-somente, uma necessária revisita dos princípios que se tornaram ultrapassados por conta das novas figuras contratuais que surgem por imperativo dos novos acontecimentos sócio-político-econômicos. Em verdade, mas sem que se perca de vista a complexidade do tema, é esta a noção básica de adequação que se encontra por trás dessa mudança de paradigmas com que se depara, a todo instante, não apenas na seara contratual, ou, ainda, no âmbito jurídico, mas nas relações sociais como um todo. No que tange ao direito contratual, em específico, substanciais foram as alterações provocadas por essa

nova ótica solidarista, traduzida pelos princípios do Estado Democrático, instaurado, por sua vez, pela Constituição Federal vigente e pelo movimento de constitucionalização do Direito Civil que a acompanhou. Por certo, essas necessárias modificações – sobretudo no que concerne à busca da igualdade substancial, em detrimento daquela meramente formal sustentada pela teoria clássica do instituto – vão além de uma simples adequação, pois consistem, em última instância, num mecanismo de consecução da tão almejada equidade contratual. Assim, a nova ordem constitucional, que instaurou o Estado Democrático tal qual o conhecemos, assumiu uma postura eminentemente intervencionista, de forma a resguardar os direitos dos reconhecidamente mais frágeis no âmbito das transações contratuais. Diante, pois, dessa saudável interpenetração do direito privado pelo direito público, é forçoso notar que o Código Civil de 1916, de inspiração revolucionária, quer em virtude da reforma constitucional de 88, quer por intermédio da atuação positiva da magistratura e do legislador especial, passou a perder, paulatinamente, o papel de centralizador do ordenamento jurídico, tal qual se verificava enquanto predominante a ordem liberal oitocentista. Nessa esteira, e ainda à luz do impacto constitucional sobre os institutos de direito privado, não se pode olvidar a relevância da criação de um Código de Defesa do Consumidor, especialmente diante do claro descompasso em que andava a legislação civil com a realidade socioeconômica do País. Assim, a despeito das críticas endereçadas ao Código Civil de 2002, seja em razão de seu silêncio

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A função social como princípio norteador da atual interpretação dos contratos

quanto a temas de grande discussão, seja por repre- absorvendo, paulatinamente, uma tendência humanisentar um passo em sentido contrário à tendência da zadora, como se verá adiante. descodificação, o recente estatuto civilístico trouxe consigo um importante ponto de referência interpretati- A nova perspectiva trazida pela Constituiva, consignado – pela primeira vez – de forma expres- ção Federal de 1988 sa na cláusula geral do artigo 421. A Constituição vigente consagra resultados e Ao lado da boa-fé objetiva, a função social do contrato, ao engendrar um novo parâmetro herme- tendências de um longo processo histórico, alterando, nêutico, calcado em valores diferentes daqueles que de forma radical, a ordem jurídica pátria. Em outras panortearam o estatuto por ele revogado, despertou a lavras, rompe com o modelo liberal e instaura um Estado social comprometido com os doutrina contratual para o desenvolinteresses da coletividade, pondo vimento de uma cultura jurídica pósde lado o individualismo que conmoderna¹, voltada para a consecuduziu a ideologia liberal. ção da justiça social. Norteado por tal pensamenSob essa ótica, a noção de A noção de função to, durante os séculos XVIII e XIX, função social do contrato convida social do contrato o princípio da intangibilidade dos o intérprete a abandonar a leitura ajustes era, inquestionavelmenclássica do Direito Civil, baseada na convida o te, a fórmula para garantir a sedoutrina voluntarista, e debruçar-se intérprete a gurança jurídica que se esperava sobre valores sociais existenciais do abandonar a leitura das relações intersubjetivas, imhomem, tendo em vista a realização prescindível para a manutenção da dignidade da pessoa humana. clássica do da prosperidade do comércio e, Neste contexto, “é a função Direito Civil consequentemente, para a masocial do contrato que torna o connutenção do poder com a classe trato um fenômeno transcendente burguesa. dos interesses dos contratantes inTodavia, com a massificadividualmente considerados [...]”. ção das relações sociais, acentuTrata-se, no dizer de Cláuada após a Revolução Industrial, dia Lima Marques, da socialização aquela liberdade de escolha que do contrato, com o fito de adequar outrora justificara satisfatoriaeste instituto, indispensável à vida cotidiana, à realidade social, observando-se, destarte, mente a força obrigatória dos contratos, olvidando a noções de equidade, justiça e boa-fé. Eis o posiciona- desigualdade substancial entre os sujeitos do vínculo, passou a mostrar-se ilusória, diante da agora evidente mento da autora: A nova concepção de contrato é uma concep- desigualdade de condições fáticas existentes entre as ção social deste instrumento jurídico, para o qual não partes. Tal conscientização desencadeou-se mais espesó o momento da manifestação da vontade (consenso) cificamente diante das mazelas em que se materializou importa, mas também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde o enorme prejuízo social que significaria a legitimação, a condição social e econômica das pessoas nele envol- por omissão do Estado, da submissão do economicamente mais débil à sorte do mais forte, ainda que sob vidas ganha importância. (apud TEPEDINO, 2000). Dentre as inovações propiciadas por essa nova o pálio daquela liberdade, que começava a ser quesdiretriz constitucional de solidariedade social, median- tionada. Tendo em vista o estabelecimento do Estado te uma inevitável superação das matrizes filosóficas e políticas da concepção voluntarista dos contratos, brasileiro como um Estado Social, é compreensível o especificamente, o ordenamento jurídico pátrio vem fundamental papel da nossa Constituição, pois que, 1 - A denominação é de Tepedino, que acredita que a técnica legislativa contemporânea deixa-se guiar pela garantia de maior efetividade dos critérios hermenêuticos. (TEPEDINO, 2002, p. XX-XXI). 24


retratando fielmente aquele momento social de me- passara a relativizar o exercício dos direitos individutamorfose, criou o arcabouço jurídico necessário ao ais, com base na noção de justiça social. estabelecimento daquela nova ordem, que propiciaria, De certo, o termo relativizar não foi aqui eminevitavelmente, uma modificação inédita na forma de pregado corretamente, e não o será sempre que se se conceber os institutos de direito privado. estiver referindo a princípios, uma vez que preceitos A Constituição Federal de 1988 proporcionou, dessa natureza não gozam de caráter absoluto, sequer portanto, uma intensa alteração na concepção tradi- conflitam ou negam a existência de outros princípios. cional do contrato, inaugurando no direito brasileiro a Entenda-se, portanto, relativizar no sentido de mitigar, tendência ocidental que se convencionou denominar perder a força de outrora. uma fase de constitucionalização ou publicização do Dessa forma, passariam as cartas promulgadas direito civil. no mundo ocidental a consagrar os ideais de solidarieIsto porque o estatuto privatista vigente à época dade e justiça social como verdadeiras metas daquele da promulgação da Carta Política novo Estado emergente que, a fim de 88, o Código Civil de 1916, de de efetivá-los, teria de ingerir, obriorientação eminentemente indivigatoriamente, nas relações interdualista, estava em explícito despessoais, com o louvável intuito de compasso com a realidade da socoibir abusos até então cometidos O termo relativizar ciedade de então, passando, pois, em nome da liberdade de contratar, seus dispositivos a serem interpreemanada do dogma liberal da vonnão foi aqui tados com estrita observância aos tade autônoma. empregado valores sociais sufragados pela A esse respeito, o autor sucorretamente, e não o Constituição. pracitado preceitua, com muita proDestarte, sendo a Lei Maior priedade, que: será sempre que de um Estado Capitalista, a Consti[...] a Constituição define a se estiver referindo a tuição de 88 prevê e garante a livre tábua axiológica que condiciona princípios iniciativa (art. 170, caput), que, no a interpretação de cada um dos entanto, deve ser exercida com obsetores do direito civil. E, por isso servância ao maior dos princípios mesmo, os princípios insertos no fundamentais, e do qual decorrem Código de Processo Civil, de prinos demais: a dignidade da pessoa cípios coerentes com a nova orhumana. dem pública constitucional (...) jusConforme leciona Tepedino tamente por expressarem valores (2002), constitucionais, não podem deixar À luz do texto constitucional, a função social de incidir sobre toda a teoria contratual. São dotados torna-se razão determinante e elemento limitador da de verdadeira vocação expansionista. (TEPEDINO, liberdade de contratar, na medida em que esta só se 2001, p. 203). justifica na persecução dos fundamentos e objetivos da Nessa esteira da interpretação dos valores consRepública (...).² titucionais no universo das relações intersubjetivas, Diante, pois, da nova concepção de unidade do ganha relevo a previsão da função social da propriesistema jurídico, não obstante a existência dos deno- dade, instituto de característica privada acentuada, exminados microssistemas, é incontestável que o Código pressão maior do individualismo exaltado pela teoria Civil de 1916, estatuto privatista por excelência, em vir- voluntarista oitocentista, ora concebida sob o prisma tude da consagração da ordem constitucional inaugu- coletivo. rada pela Carta vigente, perdeu o seu status de centro Destaque-se, ainda, a previsão da função social das relações de direito privado, pois que a Lei Maior da ordem econômica, razão pela qual não mais se po

2 - O autor aponta como os objetivos relacionados à função social do contrato a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF), o valor social da livre iniciativa (art. 1.º, IV, CF), a solidariedade social (art. 3.º, I, CF) e a igualdade substancial (art. 1.º, III, CF). 25


A função social como princípio norteador da atual interpretação dos contratos

deria negar, ainda no final da década de 80, a adoção de mecanismos similares à função social do contrato. De tais considerações, é intuitivo que, estabelecida a nova ordem constitucional, com contornos nitidamente sociais, o negócio jurídico cujos fins se mostrem contrários ou ameaçadores dos interesses sociais será tido como ilícito, por ferir as normas constitucionais, com as quais devem harmonizar-se as demais leis integrantes do ordenamento jurídico, inclusive a legislação extracodificada.

O código civil de 2002 Enquanto o voluntarismo consagrado pelo Código Civil Francês elevou a vontade ao mesmo plano da lei, a sociedade de agora, fruto de profundas e estruturais modificações no campo socioeconômico, requer uma nova concepção da autonomia da vontade, que seja condizente com os demais valores albergados pelo ordenamento jurídico. Assim, o entendimento que ocasionou o reconhecimento da função social do contrato foi reflexo da quebra do paradigma liberal, ocasionada, por sua vez, pela percepção de que, diante das mudanças socioeconômicas decorrentes da transição daquele Estado liberal para o Estado de direito, a ética individualista do século XIX havia sido superada pela nova realidade emergente, à qual se adaptava uma concepção solidarista e protecionista das relações privadas. Isto porque os princípios do Estado liberal ausente camuflavam a explícita dominação da classe emergente, que, além do capital que já detinha, almejava o poder político, em nome do prestígio que precisava manter. Naquele contexto, o contrato assumiu a feição de um instrumento de poder, como definiu, com muita propriedade, Jussara Meirelles (apud FACHIN, 1998). São da autora as considerações que seguem: Com a evolução da economia, outros fatores oriundos da sociedade de massas marcaram, indelevelmente, a incapacidade da legislação contratual clássica em enfrentar de modo adequado os problemas trazidos à realidade. O modelo liberal e tradicional estruturado como negócio jurídico não corresponde aos anseios da sociedade de consumo, cujos fundamentos são bastante diversos daqueles que norteavam a teoria contratual clássica. Diante, pois, da constatação de que a justiça e o equilíbrio nas relações contratuais como ora se nos 26

afiguram requer uma regulamentação jurídica voltada para o reconhecimento das desigualdades reais entre os contratantes, era fundamental que se pusesse à disposição do magistrado, na apreciação do caso concreto, mecanismos de tutela à existência efetiva e pactos eivados de equidade, justiça e ética, princípios pouco valorizados pela legislação anterior. A Constituição de 1988, como já foi dito, no seu papel de Lei Maior, instaurou a nova ordem constitucional democrática, com a qual muitos dos dispositivos consubstanciados no Código Civil de 1916 não se harmonizavam, perdendo, dessa forma, a sua eficácia, já bastante questionada na casuística. A nova Carta inovou ao prever a função social da propriedade e da ordem econômica, possibilitando, portanto, que o mesmo raciocínio fosse desenvolvido em relação aos contratos, instrumentos inarredáveis da economia, e cujos princípios tradicionais necessitavam passar por uma revisão que os adequasse à realidade social. Assim, seguindo tal orientação constitucional, sobretudo no que tange ao reconhecimento e à garantia dos direitos transindividuais ou de terceira geração, observou-se, mais precisamente a partir da década de 90, a edição cada vez mais acentuada de textos de lei especial que intensificaram o processo de descentralização do direito privado. Nesse prisma, com o fito de atender às emergências sociais daquele contexto, destaca-se a criação do Código de Defesa do Consumidor, que dedicou significativa atenção à condição de hipossuficiência econômica do consumidor nos contratos adesivos e necessários. Para tanto, previu a observância da boa-fé objetiva por ambas as partes contratantes, sendo intuitiva, embora não tenha sido expressamente dita, a concepção do contrato de forma a atender às exigências do bem-estar coletivo, já que foram reputadas nulas de pleno direito quaisquer cláusulas que se manifestem abusivas por expressarem a prevalência dos interesses do fornecedor em detrimento dos interesses do consumidor. Seguindo essa tendência constitucional de se conceber institutos do direito privado sob o ponto de vista da dignidade da pessoa humana, de modo a relativizar o exercício dos direitos individuais por valores sociais que norteiam a democracia aqui instaurada, bem como os princípios consagrados pela legislação especial protetiva do consumidor, o Novo Código Civil


de 2002 trouxe, expressamente, nos seus artigos 421 e longas no processo legislativo que o originou, o Código 422, os princípios da boa-fé objetiva e da função social de 2002 tem ampliado nos últimos sete anos o campo do contrato. das discussões a respeito de temas correlatos à figura É de Tepedino a definição de função social do contrato no novo milênio. como Destaque-se, ainda, que a inédita previsão ex[...] o dever imposto aos contratantes de atender pressa da função social do contrato veio a possibilitar ao lado dos próprios interesses individuais persegui- a efetivação das disposições inseridas na carta consdos pelo regulamento contratual – a interesses extra- titucional, que ocasionaram um choque frontal com o contratuais socialmente relevantes, dignos de tutela sistema de direito civil clássico ao estabelecer limites jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por de ordem pública para matérias até então tratadas exele atingidos. clusivamente por estatutos privatistas, de orientação Ademais, identifica o autor que tais interesses burguesa. contratuais são facilmente perceptíveis ao se deparar Ocorre, no entanto, que a alteração daqueles pacom a situação jurídica do consumidor, com a neces- drões tradicionais previstos na Constituição vigente hasidade de proteção da livre concorvia de ser garantida, caso a caso, rência, ainda que mitigada pelo imo que dependia de uma verdadeira perativo de igualdade substancial, revolução no pensamento jurídico bem como do meio ambiente e das pátrio, de forma que a nova codirelações de trabalho, que envolficação foi decisiva, não obstante vem, igualmente, interesses insusa perda da centralidade que lhe foi A entrada em vigor cetíveis de apreciação estritamente conferida no passado. do Novo Código, individual. Após a entrada em vigor do Nessa esteira, a entrada em Código Civil de 2002, pode-se ditrouxe uma nova vigor do Novo Código, após vinte e concepção de institutos zer, os contratos passaram a cumoito anos de trâmite no Congresso prir não apenas a função de instrujurídicos antes Nacional, trouxe uma nova conmentalizar a circulação de riquezas, cepção de institutos jurídicos antes mas também a de funcionalizar diconcebidos sob a ótica concebidos sob a ótica exclusivareitos subjetivos e de atuar como exclusivamente mente individualista. instrumento condicionante do prinindividualista No particular, erigiu a boa-fé cípio da liberdade contratual. objetiva e a função social à categoAo dispor que “a liberdade ria de cláusulas gerais de interprede contratar será exercida em ratação e revisão dos contratos, em zão e nos limites da função social reconhecimento à diversidade cado contrato”, o artigo 421 do Códiracterística da sociedade contemgo vigente traduz que a atividade porânea, na qual a conquista da contratual não pode ser exercida justiça social depende, inexoravelmente, de artifícios senão em estrita observância do interesse social. que tais, capazes de amenizar as disparidades natuDesta forma, a percepção atualmente assumiralmente existentes. da de que as relações interpessoais têm reflexos que Nitidamente inspirado na teoria econômica da transcendem as próprias partes contratantes, de modo função social da propriedade, agasalhada pelo artigo a influir no bem-estar da coletividade e no próprio de5.º, incisos XXIII e XXIV, e pelo inciso III do artigo 170, senvolvimento econômico do País, é resultado de uma o novo estatuto privado trouxe uma previsão inédita – saudável superação da dicotomia oitocentista, que não quer no direito pátrio, quer no direito comparado – des- admitia a interpenetração dos universos do direito púses dois princípios informadores do direito contratual blico e do direito privado entre si. da contemporaneidade. Assim, ao mesmo tempo em que o texto constiNão é sem razão que, não obstante as críticas a tucional consagra a livre iniciativa e resguarda o direito ele endereçadas por conta de sua omissão relativa a de propriedade, pedras de toque da economia do merpontos ainda obscuros do direito, decorrentes das de- cado, o Código Civil de 2002 funda-se na premissa 27


A função social como princípio norteador da atual interpretação dos contratos

de que inexiste aquela liberdade contratual propalada pelo estado liberal, uma vez que a realidade contemporânea atesta que o ajuste de interesses privados não mais se dá de forma linear. É certo que não mais se está diante de um Estado provedor como aquele que atuou no pós-guerra, efetivador dos direitos sociais e interventor. Na era neoliberal, em que a sobrevivência de uma nação depende da sua adaptação aos ditames da globalização, volta a preocupar o poder da iniciativa privada sobre a massa de consumidores. Daí falar-se em funcionalizar o exercício dos direitos subjetivos, ou seja, possibilitar, por previsão legal, a ingerência do aparato estatal nas relações particulares, a fim de obstar o equilíbrio nas contratações de natureza comercial, haja vista a indispensabilidade que tais ajustes vêm assumindo na vida moderna. Isso significa não apenas a previsão de cláusulas a serem observadas quando da pactuação, no instante da expressão de vontades e do ajuste de interesses. Além desse aspecto, vale dizer que o supracitado artigo permite que sejam judicialmente revistos contratos em que se constate a inobservância da função social que lhes é afeta. Nesse prisma, a função social do contrato, da forma como foi definida por este que ainda hoje ostenta o rótulo de “novo” Código Civil, ultrapassa a esfera hermenêutica, pois que não surge para o intérprete apenas no momento da colmatação de eventuais lacunas existentes no contrato, quando individualmente apreciado. Mais que isso, a ideia de funcionalidade afeta o próprio conceito primitivo do instituto, de forma a condicionar a existência do vínculo jurídico à consecução dos valores que norteiam o ordenamento jurídico. O que acontece é que o contrato, que já possuía intrinsecamente uma função econômica, consubstanciada na sua concepção como instrumento que por excelência possibilita aos sujeitos de direito a segura regulação dos seus interesses, passaria, então, a assumir uma função social, que se estabelece a partir do entendimento de que também os interesses dos demais membros da sociedade devem por ele ser tutelados. Em contrapartida, se cada uma das espécies contratuais traz consigo uma função econômica específica, a função social, recentemente albergada pelo ordenamento brasileiro, é comum a todas elas. Pode-se dizer que essa novíssima ideia de funcionalidade – considerando-se a cronologia milenar do instituto – melhor traduz as demasiadamente vagas e 28

subjetivas noções de ordem pública e bons costumes, até então únicos limitadores do exercício dos direitos subjetivos. A esse respeito, há quase cinquenta anos, Orlando Gomes (1959, p. 30) escreveu que “os contratos que têm causa contrária às leis de ordem pública e aos bons costumes são nulos”. Já naquela primeira edição de seu Contratos, o professor concluía suas considerações acerca dos princípios do direito contratual asseverando que “essas limitações à autonomia privada, que sempre existiram, não eram suficientes para coibir a prática desses abusos”. Quarenta e três anos após aquele parecer, que já reconhecia a inadequação da lei civil antiga em prevenir os abusos não raro praticados em nome da falácia da liberdade contratual, a função social do contrato, bem como a boa-fé objetiva vieram a ser reconhecidas no texto do próprio diploma privatista, de forma a contribuir, ainda que lentamente, para a consecução dos fins sociais dos quais o contrato não deve se distanciar. Desta forma, considerando-se que o elemento volitivo, na grande maioria dos negócios jurídicos da contemporaneidade, muito pouco tem em comum com aquele dos moldes liberais, o grande ponto de mutação que abre espaço para o desenvolvimento dessa nova teoria contratual reside em se entender que o essencial do contrato não mais coincide com a prevalência absoluta da vontade inicial, mas com a efetiva realização da justiça comutativa, atendendo-se à manifestação das necessidades das partes diretamente envolvidas no ajuste, entendimento que se ajusta à concepção de funcionalidade externada por Luís Renato Ferreira da Silva (2001, p. 38). Assim, o conteúdo dos artigos 421 e 422 do Código de 2002, nitidamente inspirados nos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados, constituem a base de uma nova teoria contratual, que busca, em última instância, relativizar os princípios que tradicionalmente vêm sustentando o instituto, como forma de imprimir-lhe a função de instrumento do bem-estar coletivo. Nada obstante a previsão expressa da função social e da boa-fé objetiva como cláusulas gerais de interpretação dos contratos, a aplicação dos dispositivos não se deu de maneira automática.

A questão da aplicação da cláusula geral


da função social do contrato nos tribunais pátrios

O novo Código Civil, por sua vez, nas disposições gerais dos contratos, no artigo 421, é incisivo ao afirmar que a liberdade de contratar será exercida em Ainda considerando essa humanização do di- razão e nos limites da função social do contrato e, no reito, verificada mais precisamente a partir de meados artigo 422, dispõe que os contratantes são obrigados a do século passado, vale ressaltar que a relativização guardar, assim na conclusão do contrato como em sua dos direitos subjetivos, ou melhor, do exercício desses execução, os princípios de probidade e boa-fé. É de se notar que a técnica direitos, afetou contundentemente utilizada pelo legislador no código a roupagem tradicional do instituto recém- vigente em nada se assedo contrato. melha àquela própria do estatuto Ao lado de outros institutos anterior. basilares do direito civil, como a faA relativização dos Enquanto o Código Civil de mília e a propriedade, outrora livres 1916, que vigorou por quase um da regulamentação pelo direito púdireitos subjetivos, século, adotou um sistema fechablico e hoje constitucionalmente ou melhor, do exercício do, colocando o Direito Positivo relativizadas em nome do interesdesses direitos, afetou acima da mutabilidade dos fatos, se coletivo, também o contrato soe com pouquíssimas referências freu profundas transformações, já contundentemente a princípios éticos como a equidana primeira metade do século XX, a roupagem de e a boa-fé, o Código de 2002 com o prestígio conferido aos direitradicional do inovou o direito contratual, regulatos sociais, e atualmente, na era da mentando-o com base numa técniglobalização, com o reconhecimeninstituto do contrato ca utilizada pelas legislações mais to dos direitos transindividuais. desenvolvidas a respeito do tema. No que tange à proteção dos Assim, percebe-se que ao direitos coletivos, já se teve opormesmo tempo em que os valores tunidade de ressaltar o importanindividualistas foram sendo substíssimo papel do Código de Defesa tituídos pela preocupação com o do Consumidor para a formação de uma mentalidade jurídica norteada pela visualização do social, o princípio da tipicidade, calcado na descrição direito contratual através de uma ótica social, de forma minuciosa, pela norma, da situação fática a ela subsua se reconhecer não somente a fragilidade das partes mida, foi sendo substituído pela previsão de cláusulas nas relações de consumo, mas também, e principal- gerais que, ao contrário da codificação anterior, permimente, a necessidade de mecanismos legais eficazes te que a nova lei se mantenha sempre atualizada, porno sentido de promover, ainda que artificialmente, uma que capaz de acompanhar a velocidade das frequentes situação de equidade entre as partes envolvidas no ne- mudanças sociais. Essa problemática importa, ainda, numa delicagócio jurídico contratual. Em outras palavras, levando-se em considera- da discussão política acerca da separação das funções ção que vínculos que tais, por envolver classes econô- estatais, que se encontrava historicamente compromemicas antagônicas, cujos interesses são, por natureza, tida pelo modelo liberal-burguês, à luz do qual o madivergentes, é incontestável que a uma negociação gistrado tinha seu campo de atuação deveras restrique venha a resguardar o livre ajuste de vontades há to, uma vez que, em virtude das especificidades das que preceder a garantia de uma igualdade substancial previsões legislativas, limitava-se a aplicar o quanto ali estabelecido. entre os contratantes. De fato, e conforme já foi tratado no capítulo que Tal reconhecimento, registre-se, perpassa pelos anseios de uma sociedade plural sustentada por dife- cuidou da evolução das teorias contratuais, foi este o rentes realidades que nela coexistem e ciente, no en- modelo encontrado pela burguesia francesa do século tanto, do irreparável prejuízo social que se veria caso XIX para dominar a magistratura, pois que a maioria se continuasse fomentando a igualdade formal dos dos seus membros – como de toda a elite intelectual da época – pertencia à nobreza, antiga classe domi moldes liberais. 29


A função social como princípio norteador da atual interpretação dos contratos

nante. Atualmente, inquestionavelmente mais adequado e em plena harmonia com as modificações já efetivas até agora o sistema das cláusulas gerais, pois que permite, ainda além da interpretação das mesmas pelo aplicador do Direito, uma verdadeira criação da norma mais pertinente ao caso concreto, respeitando, caso a caso, as peculiaridades da situação-conflito levada a juízo. Trata-se, na verdade, de uma louvável evolução do Direito, no sentido de reconhecer a já alardeada impossibilidade de plenitude do Direito Positivo e, portanto, da necessidade de certa margem de mobilidade para que o intérprete possa, de fato, alcançar a desejada plenitude do ordenamento jurídico. Contudo, essa flexibilidade do sistema não tem agradado unanimemente aos operadores do Direito. Inúmeras críticas hostilizam a estrutura aberta consubstanciada pelas cláusulas gerais justamente no que tange à eventual insegurança jurídica que representa essa subsunção do fato concreto a norma demasiadamente genérica. Infundadas tais considerações, pois que a doutrina e a jurisprudência, na condição de inegáveis fontes jurígenas, como já se verificou em tantas outras situações análogas, trataram de consolidar a real amplitude das citadas cláusulas, inclusive à luz do notável princípio da legalidade, principal limitador de eventuais atitudes discricionárias por parte do julgador. Nesse sentido, é interessante demonstrar o conceito de Celso Antonio Bandeira de Mello [545-546], que ensina ser o princípio “o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.” Em última análise, é imperioso constatar que o atual estágio evolutivo do Direito, mais especificamente na seara dos contratos, não pode exigir do juiz um raciocínio puramente dedutivo, limitado à aplicação da norma – em sentido estrito. Mais do que uma alternativa capaz de manter o estatuto civil atual e eficaz, ainda que diante de todas as mudanças que vão continuar surpreendendo os ope30

radores da lei, essa nova técnica permite a realização da justiça material, porque aproxima, por assim dizer, a previsão legislativa da relação conflitiva, tomando-a como molde para a sua incidência, o que se acredita culminar numa decisão logicamente mais justa. Se, por um lado, a técnica legislativa utilizada na criação do Código de 2002, consistente em estabelecer cláusulas gerais, tem a enorme vantagem de não engessar o Direito, de modo a oferecer ao seu intérprete maior mobilidade no momento da sua aplicação a quantas situações análogas venham a se enquadrar àquele preceito, é certo, também, que surge para o aplicador do direito o desafio de sopesar princípios, ao invés de julgar conforme comandos específicos. Com efeito, Gustavo Tepedino é categórico ao dizer que: A fragmentação dos conceitos (...) é acompanhada de técnica legislativa, que se utiliza de cláusulas gerais, exatamente para que o intérprete tenha maior flexibilidade, no sentido de, diante do fato jurídico concreto, fazer prevalecer os valores do ordenamento em todas as situações novas que, desconhecidas do legislador, surgem e se reproduzem como realidade mutante na sociedade tecnológica de massa. (2001. p. 207). A despeito desse real entrave à adequação da nova ordem jurídica à situação fática da sociedade do século XXI, é certo que decisões judiciais em conformidade com a esperada justiça contratual serão capazes de, ainda que a longo prazo, desencadear o amadurecimento dessa “nova” teoria contratual, capaz de elidir, mediante a realização da justiça do caso concreto, os conflitos entre partes notadamente desiguais.

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Sentença DECRETAÇÃO DA NULIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO QUE CULMINOU EM DEMISSÃO Aidê Ouais Juíza de Direito Titular

8ª Vara Fazenda Pública

Vistos etc. XXXXXXXXXXXXXX, qualificado na inicial, por intermédio de advogado legalmente habilitado e constituído, fulcrando-se no princípio constitucional de que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, consagrado no art. 5º, XXXV, ajuizou a presente ação, sob o rito ordinário, contra o ESTADO DA BAHIA, pleiteando a decretação da nulidade do ato administrativo que culminou em demiti-lo, a bem do serviço público, do cargo de defensor público, do quadro de pessoal da Secretaria da Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia, e, conseqüentemente, neste ser reintegrado. Preliminarmente, requereu os benefícios da Justiça Gratuita, sob a justificativa de que está passando por dificuldades financeiras, não dispondo da mínima condição de arcar com as despesas processuais ou outras da natureza. Informa que paralelamente à presente ação, com base nos artigos 242, 245 e seguintes da Lei 6.677, de 26.09.94, atravessou pedido de revisão junto à Secretaria da Justiça do Estado da Bahia, o qual encontra-se paralisado por quase dois anos na sede da Defensoria Pública, pendente de parecer e exame, razão porque recorre à Justiça para anular o ato administrativo que de forma desumana e ilegal lhe imputou a autoria de ato de improbidade, sem que o tenha praticado. Dando seqüência, pede vênia, para antes de adentrar no mérito, transcrever o seguinte trecho do parecer da Procuradoria Especializada no Combate a Atos de Corrupção e Improbidade Administrativa do Estado da Bahia, prolatado nos autos do inquérito administrativo. “A gravidade das acusações fincadas neste processo, conducentes à pena máxima em sede discipli32

nar, exige prova cabal e extreme de dúvidas dos fatos em que as mesmas se apóiam, a fim de assegurar absoluta convicção do julgador no acolhimento da denúncia. Não é, todavia, o que se nos afigura presente, data vênia da ilustre comissão processante. Pelo contrário, o processo em tela teve início e veio até aqui, no rumo da decisão final, lastreado, única e exclusivamente, nas palavras das duas supostas vítimas, ex-assistidas pelo defensor público acusado, a primeira das quais, confusamente, deixou-se flagrar em frontal contradição, a ponto de reformular totalmente seu depoimento, do sim para o não, ao sabor de influências externas e das confessadas pressões exercidas pela autoridade policial do lugar. E foi de tal modo atabalhoada sua participação no processo, que a comissão optou, simplesmente, por ignorá-la na fundamentação do relatório final, para ancorar todo o seu convencimento no depoimento do filho dessa acusadora. Não observaram os ilustres membros da comissão processante, entretanto, que nas declarações por este prestadas nada havia de ciência própria: tudo lhe haveria sido relatado pela própria genitora, confessadamente. Restaria a palavra da segunda “vítima”, de quem o defensor público acusado teria recebido trinta reais. È possível que tenha feito, mas também é possível que não, pois não há evidências materiais. As palavras da acusadora contrapõem-se as do acusado, num cenário emoldurado por estranha e sintomática coincidência de datas na tomada dos depoimentos das “vítimas”, na polícia e perante a comissão; na polícia antes da comissão... Não é menos estranhável a inexistência de quaisquer outros elementos indiciários, quando menos, que viesse somar-se às únicas palavras de acusação a que


se cingiu todo o processo, isto é, às palavras das “víInforma que, inobstante tais intimidações, as sutimas”, que nada provaram, seja por documentos, seja postas vítimas declararam expressamente à Comissão por testemunhas, seja por qualquer outro meio. Administrativa que não eram verdadeiras as acusações Temos que a administração não dispõe de ele- feitas ao autor/acusado, no que foram corroboradas mentos comprobatórios inconcussos para lastrear o pelas demais testemunhas ali ouvidas. Que inobstanato demissionário recomendado pela ilustre comissão te tais declarações, de que não eram verdadeiras as processante. E, se não as possui, nenhuma penalidade acusações, a Comissão Processante, embora formada poderá ser aplicada, devendo o processo ser, conse- para apurar os fatos, estranhamente deturpou a veraciqüentemente, arquivado. dade colhida nos depoimentos, para concluir pela culA nosso sentir, cabia à adpabilidade do autor, e conseqüente ministração, diante da notícia cridemissão, a bem do serviço públiminis, abrir sindicância para colher co, descartando a inexistência de maiores e melhores informações provas materiais da insidiosa acuderredor das atividades funcionais sação, que, aliada à farta prova do acusado e de sua conduta no testemunhal colhida na instrução, A administração não meio social, dentre demais alvos unânime quanto à inocência do endispõe de elementos pertinentes aos fatos investigados, tão acusado, ensejaria o arquivacomprobatórios inclusive junto à autoridade policial mento do inquérito administrativo, presidente do inquérito instaurado como se constata no parecer da inconcussos para com o mesmo fim. Não o fazendo, lavra do procurador-chefe da Prolastrear o ato tornou-se refém das palavras de curadoria Especializada de Atos de demissionário supostas vítimas, sem nada, absoCorrupção da PGE-BA, o qual, enlutamente nada, conseguir trazer a tretanto, também foi desconsiderarecomendado pela lume em apoio à acusação.” do pela indigitada Comissão. ilustre comissão Seguindo, relata que em 02 Assegura que o afã acusatóprocessante de outubro de 1997, quando derio emanado da Comissão Processempenhava as funções de defensante foi de tal modo contundente sor público na Comarca de Santo que conseguiu induzir a erro o cheAntônio de Jesus-BA, a Promotoria fe da Defensoria Pública e o prode Justiça local oficiou à autoridacurador-geral do Estado, no que foi de policial daquela cidade a abertura de inquérito para acompanhado pelo Ex.mo governador, cujos pronunapurar eventual delito funcional que , segundo ela, teria ciamentos foram lastreados tão-somente no relatório sido praticado pelo autor, que na qualidade de defen- elaborado pela referida Comissão, que, lamentavelsor público estaria percebendo vantagens indevidas, mente, encadeou dados inverídicos, indo contra o que consubstanciadas no recebimento de importâncias de o direito ensina e a justiça repele. pessoas a quem tinha o dever funcional de promover a Em defesa da sua pretensão, assevera que a defesa jurídica gratuitamente. punição ocorreu de forma arbitrária, porquanto não Assegura que, por cultivar birras e trato imperti- se logrou comprovar, durante a instrução do processo nente com o autor, o delegado dedicou-se a conseguir administrativo disciplinar, a materialidade do ato ilícito depoimentos que o incriminassem, convocando poten- que lhe fora imputado, haja vista que a prova testemuciais denunciantes para prestar testemunho, chegando nhal foi unânime em proclamar a inexistência do delito ao extremo de mantê-los detidos sem tomar quaisquer que lhe fora atribuído. declarações, assim procedendo por vários dias, até a Conclui reafirmando que o ato absolutista da Coinstauração do processo administrativo disciplinar, ora missão gerou uma grande mentira para o autor, pelo sub judice, ocasião em que a referida autoridade po- que requer a total procedência do pedido, com a delicial passou a “liberar” as testemunhas para prestar cretação da nulidade do ato administrativo que deu depoimento perante a comissão processante, não sem pela sua demissão, reintegrando-o no cargo do qual antes ameaçá-las de prisão, acaso não confirmassem foi desalojado, com a determinação para que receba o que teriam dito no inquérito policial. todas as vantagens inerentes ao cargo e vencimentos 33


Decretação da nulidade do ato administrativo que culminou em demissão

que deixou de auferir, além das promoções a que teria direito se ativo estivesse, com a condenação do acionado nas cominações de estilo. Protesta pelos meios de provas necessários e junta os documentos de fls. 20/63, inclusive procuração. Regularmente citado, fls. 65, o Estado da Bahia, através de um dos seus procuradores, ofereceu a contestação de fls. 67/80 e documentos de fls. 81/277, e nessa oportunidade sustenta que o processo administrativo disciplinar, cuja cópia junta aos autos, não deixa dúvida de que foi respeitado o princípio constitucional do contraditório e a ampla defesa, e que o ato de demissão foi lastreado nas provas testemunhais nele produzidas, colhidas pela Administração, que foram uníssonas em atribuir ao autor o ilícito noticiado, consistente na cobrança de honorários para defender os interesses das Sras. XXXXXXXX e XXXXXXXXX, cidadãs carentes, para quem o suplicante tinha o dever funcional de promover-lhes a defesa de forma gratuita. E mais: que a transação ilegal era intermediada pelo Sr.XXXXXXXX, um dos beneficiados pelo trabalho do suplicante, mediante a paga de R$ 800,00 (oitocentos reais), desembolsados pelo seu genitor. Transcreve trechos de depoimentos prestados pelas mencionadas vítimas, em fase de acareação perante a Comissão Sindicante, que, segundo a ótica do contestante, comprovam os ilícitos funcionais atribuídos ao acionante; acrescenta nada haver de estranho no fato de no mesmo dia em que as testemunhas prestaram depoimento frente à Comissão processante, também o tenham feito diante do delegado de polícia, com vistas ao inquérito policial. Que, ao inverso, a presença da Comissão na Comarca serviria para maior transparência e legitimação do inquérito citado. E que não houve coação sobre as testemunhas, apenas receio destas em relação ao acusado, porque o mesmo as teria procurado para conseguir mudança de depoimentos. Recorrendo a fartos posicionamentos doutrinários, tece comentários a respeito da discricionariedade do ato administrativo impugnado e da limitação do controle judicial ao exame da legalidade, oportunidade em que afirma que a exclusão foi precedida de todas as exigências impostas pelos princípios da legalidade, da moralidade administrativa e do devido processo legal. Que, no caso, os meios empregados pela administração estão em compatibilidade com a situação fática, porque no caso dos autos, tendo sido o autor acusado de cobrança indevida de honorários pela prestação 34

de assistência gratuita, função que caracteriza o cargo de defensor público, não se poderia colher outra prova que não a testemunhal. E, nesse particular, houve até acareação, quando as testemunhas mantiveram os depoimentos, os quais foram suficientes para a administração usar do poder discricionário, no exercício do poder de fiscalização sobre o servidor, e, em conseqüência, do poder disciplinar do jus puniendi, com vistas à manutenção e consecução do serviço público, principalmente encontrando-se o servidor em estágio probatório. Que caracterizado o poder disciplinar como ato discricionário, o exame da legalidade da punição aplicada far-se-á segundo a razoabilidade e a racionalidade inferíveis na hipótese concreta. Que, nessas condições, o controle judicial limita-se à existência de motivação, analisando se houve provas, se foram apontadas as razões de convencimento, a norma infringida e a base legal da sanção pela autoridade competente. Que, afora isso, qualquer outro meio de controle externo exorbitará do exame da legalidade, adentrando no campo da discricionariedade administrativa, violando o princípio da independência entre os poderes, consagrado na Constituição de 1988, art. 2º. Concluindo, requereu o contestante a improcedência do pedido, com a ratificação do ato administrativo, diante da sua legalidade. Requereu os meios de provas e a condenação do autor nos ônus sucumbenciais, não afastados pelo benefício da gratuidade. Usando da réplica de fls. 279/290, o autor rebateu os argumentos expendidos na contestação, chamando a atenção para outro parecer trazido à lide pelo réu, fls. 271, através do qual a PGE, novamente, pugna pela sua inocência. Ademais, reafirma que a análise da prova testemunhal conduz à impertinência do ato castrense que lhe foi aplicado, porque os testemunhos atestam a sua inculpabilidade, e sustenta que o Poder Judiciário pode adentrar no mérito da punição administrativa, por ser esta um ato administrativo vinculado e não discricionário. Tomando o processo para análise, de modo a imprimir-lhe o regular andamento, entendo que é caso de julgamento antecipado da lide, considerando que a situação concreta se amolda ao teor do art. 330, I, do CPC.

É o relatório. D E C I D O. Cuida-se de ação intentada sob o rito ordinário, através da qual o autor pleiteia ser reintegrado no car-


go de defensor público do quadro de pessoal da Se- houve exata aplicação da lei, força é que examine o cretaria da Justiça e Direitos Humanos do Estado da mérito da sindicância ou processo administrativo, que Bahia, com a percepção de todas as vantagens e direi- encerra o fundamento legal do ato” (TJSP, in RDA tos contemplados pela figura da reintegração, depois 27/214); de decretada a nulidade do ato que resultou na sua “Se das provas colhidas na instrução não ficademissão a bem do Serviço Público, com base no pro- ram evidentes as acusações que motivaram a punição cesso administrativo disciplinar instaurado pela Por- do policial militar, tem-se que o ato é arbitrário e pastaria n. 19/97, datada de 14.10.97, publicada no DOE sível de ser anulado” (Ap. Cível nº 42/87, 1ª C. Cível do de 16.10.97, firmada pelo defensor-chefe da Defenso- TJBA, rel. Des. Dermeval Bellucci. ria Pública do Estado da Bahia (fls. 92), que designou “Cabe mandado de segurança contra ato discicomissão para apurar os fatos relatados por pessoas plinar, para exame dos aspectos extrínsecos e tamcarentes, residentes na Comarca bém da sua legalidade intrínseca, de Santo Antônio de Jesus, através quando se deve apurar se sanção de declarações em que acusam o imposta ao servidor é legitima, acionante, na qualidade de defenconhecendo-se dos motivos da pusor público, de ter recebido verba nição” (TRF-MS 88.911-DF, Ac DJ O conceito de honorária indevida. 16.10.80, rel. Min Guerreiros Leite, Ao que se depreende da vesin Oliveira, Francisco Antônio de, ilegalidade ou tibular, o demandante entende que Mandado de Segurança e controilegitimidade, para a motivação emprestada para a le jurisdicional, 3ª edição, RT, São fins de anulação prática do ato castrense não guarPaulo, 2001, p. 37; negrito nosso)”; da sintonia com as provas colhidas Dentro da mesma linha anda do ato administrativo, durante a instrução do processo a doutrina: não se restringe administrativo disciplinar e que, por “Nota-se, pois (seja qual for somente à violação isso, o ato foi praticado ao arrepio a posição que se adote na matéria), da ilegalidade e arbitrariedade, deque, de toda sorte, ao Judiciário frontal da lei vendo ser corrigido pelo Poder Jucaberá, quando menos, verificar se diciário. a intelecção administrativa se manEm rebate ao entendimento teve ou não dentro dos limites do do autor, o Estado da Bahia afirma razoável perante o caso concreto e que a prova colhida durante o profulminá-la sempre que se vislumbre cesso, pela Comissão Processanter havido uma imprópria qualificate, foi plena e suficiente para a aplicação da punição ção dos motivos à face da lei, uma abusiva dilatação do acusado, ao tempo em que ressalta o caráter discri- do sentido da norma, uma desproporcional extensão cionário do ato punitivo, e que, como tal, encontra-se do sentido extraível do conceito legal ante os fatos imune ao controle jurisdicional, porque tem a ver com a a que se quer aplicá-lo. É que, como diz Laubadère, oportunidade e a conveniência da Administração. reportando-se à jurisprudência francesa, à autoridaDe início, creio não ser demais repetir e deixar de jurisdicional se reconhece o direito “não apenas de aqui transcrito o enunciado do inciso XXXV, do artigo perquirir-se se os motivos legais realmente existiram, 5º, da Constituição Federal de 1988, no qual se pautou mas, ainda, se eram suficientes para justificar a medio suplicante para clamar por justiça: da editada e se a gravidade dela era proporcionada à “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judi- importância e às características (... dos fatos ...) que a ciário lesão ou ameaça a direito”; provocaram. Por sua vez, também não se constitui em sobra O conceito de ilegalidade ou ilegitimidade, para os seguintes julgados: fins de anulação do ato administrativo, não se restringe “É lícito ao Judiciário examinar os motivos do ato somente à violação frontal da lei. Abrange, não só a disciplinar, mediante exame do processo administrati- clara infringência do texto legal, como também o abuvo” (TJSP, in RDA, 48/150); so, por excesso ou desvio de poder, ou por relegação “Para que o Judiciário bem possa verificar se dos princípios gerais de direito. Em qualquer dessas 35


Decretação da nulidade do ato administrativo que culminou em demissão

hipóteses, quer ocorra atentado flagrante à norma jurí- to. E naquela manhã, o delegado a ameaçou de prisão, dica, quer ocorra inobservância velada dos princípios acaso não mantivesse a acusação. Às fls. 88/89, consta o primeiro depoimento de do direito, o ato administrativo padece de vício de ilegiXXXXXXXXXXX, prestado à Promotoria, no qual retimidade e se torna passível de invalidação pela própria Administração, ou pelo Judiciário, por meio de anula- lata que entregou ao defensor público os originais de documentos necessários ao ajuizamento de uma ação ção. “A ilegitimidade, como toda fraude à lei, vem de tutela e a quantia de R$ 30,00 (trinta reais), que lhe quase dissimulada sob as vestes da legalidade. Em foi solicitada pelo defensor/acusado para “a aquisição tais casos é preciso que a Administração ou o Judiciá- de pasta, classificador e para xerocopiar e autenticar rio desçam ao exame dos motivos, dissequem os fatos os documentos”, acrescentando que a referida impore vasculhem as provas que deram origem à prática do tância, em dinheiro, foi entregue ao defensor, sem a presença de outras pessoas. No ato inquinado de nulidade” (Hely depoimento prestado à Comissão, Lopes Meirelles, Direito Adminisfls. 168, a mencionada senhora reatrativo Brasileiro, 16ª ed., Rev. dos firma os fatos e afirma que o defenTribunais, São Paulo, 1991, p. 181sor, após ajuizar a ação, cujo trâmi182; negrito nosso); te durou cerca de dois meses, lhe “Ao Poder Judiciário cabe a O ato administrativo devolveu os documentos originais. apreciação das provas, nas quais padece de vício de Já no depoimento prestado à Prose baseou a Administração para ilegitimidade e motora, esta testemunha assegura punir o servidor. Com esse exame o que retornou à Defensoria quinze Judiciário verificará da legitimidade se torna passível dias após ter entregue o dinheiro ao da punição” (ROBERTO ROSAS, de invalidação pela defensor e, lá estando, foi recebida Direito Sumular - Comentários às própria Administração, pela secretária, Srª XXXXX, que Súmulas do STF, 4ª ed., Rev. dos não lhe prestou qualquer informaTribunais, São Paulo, 1989, p. 203; ou pelo Judiciário ção sobre o processo, limitando-se negrito nosso). a avisar que o defensor estava de Pois bem. Depois de conslicença. Por esta razão, resolveu tatar que não havia divergências denunciá-lo ao juiz, que a encamientre as peças do processo adnhou à Promotoria. ministrativo juntadas pelo autor e Às fls. 169, repousam as deaquelas anexadas na contestação, clarações de XXXXXXXXXX, filho li, reli e analisei atentamente todos de XXXXXXXXXX, que estava os depoimentos colhidos no procedimento administrativo e que serviram de fundamento preso, acusado de homicídio, cujo teor se constitui no para a aplicação da punição demissória, conforme se segundo subsídio invocado no relatório da Comissão infere do relatório da Comissão Processante, especi- Processante para a punição do autor. Diz XXXXXXX, ficamente os depoimentos de XXXXXXXXXXX e de em resumo, que soube, pela própria mãe, que esta pagou ao defensor público a quantia de R$ 1.375,00 (hum XXXXXXXXXXXXX. Nota-se que a Comissão desprezou a acusa- mil, trezentos e setenta e cinco reais) para atuar em ção feita por, XXXXXXXXXX, fls. 42/43, certamen- sua defesa, embora soubesse também que dois outros te porque inquinada de dúvidas e incertezas, e tam- advogados, doutores XXXXXXXXX, pai e filho com o bém porque foi desmentida categoricamente por mesmo nome, atuavam na mesma causa e também reXXXXXXXXXXXXXXX, no seu depoimento de fls. ceberam honorários pagos por sua mãe. Observa-se, 44/45. E durante a acareação de fls. 46/48, conduzida portanto, que XXXXXXXX não afirma ter pago imporde forma atécnica, apenas se colheu novamente os de- tâncias ao acusado, apenas informa que a sua mãe lhe poimentos dos acareados, que mantiveram suas decla- falou do indevido pagamento. Mas há de observar-se, rações anteriores, à exceção de Maria do Amparo, que também, que existem na história dois outros advogaacrescentou ter permanecido detida na Delegacia, ao dos trabalhando particularmente. No depoimento prestado à Promotoria, fls. 86/87, menos por uma noite, apenas para prestar depoimen36


XXXXXXXXXXX assegura apenas que pagou ao de- sitas do defensor, a XXXXXXX, para que este o repasfensor a quantia de R$ 1.375,00 (hum mil, trezentos e sasse ao defensor; ora que o defensor, nas vezes em setenta e cinco reais) em três parcelas, respectivamen- que foi à sua casa, não pediu dinheiro, ora repete que te R$ 400,00 (quatrocentos reais), R$ 600,00 (seiscen- ia ao Fórum com XXXXXX para pagar ao defensor; ora tos reais) e R$ 375,00 (trezentos e setenta e cinco re- diz que pagou R$ 350,00 ao advogado XXXXXXXXX, ais), e que este a procurou na residência várias vezes ora diz que pagou R$ 350,00 ao defensor; ora diz que para cobrar o dinheiro, uma delas em companhia de ninguém a pressionou para formular a acusação, ora XXXXXXX, ocasião em que tomaram R$ 25,00 (vinte diz que o delegado a ameaçou de prisão e processo e cinco reais) para comprar cigarros. criminal para que ela prestasse depoimento repetindo Já no depoimento prestado à Comissão, fls. tudo o que houvera dito à Promotoria; ora afirma que 160/162, se contradiz quando afirma que a terceira tem medo do delegado, mas não ficou detida na deleparcela para ao defensor foi de gacia, ora afirma que foi conduzida R$ 350,00 (trezentos e cinqüenta numa viatura e permaneceu detida reais) e não de R$ 375,00 (trezene sem alimentação; enfim, um vertos e setenta e cinco), como antes dadeiro emaranhado de ditos e não havia declarado à Promotora. Se ditos, mentiras e meias-mentiras, contradiz, também, quando declara verdades e meias-verdades, incaque o defensor foi à sua residênpazes, pela própria natureza dúbia, Não é difícil cia apenas para cuidar de dados de atribuir certeza quanto à matepara um desafeto do processo de XXXXXXXXX, rialidade do ilícito imputado ao demascarado acusar jamais para lhe pedir dinheiro. Se fensor e mais ainda em relação à contradiz, ainda mais, quando, por culpabilidade deste. outrem, seja por vezes, afirma que o defensor era Cumpre atentar, que da forvingança ou por quem se dirigia à sua residência ma como as coisas se passaram e insatisfação para receber dinheiro. Noutro modo resultado produzido, não é dimento, afirma, que ela era quem fícil para um desafeto mascarado momentânea ia ao gabinete do defensor para acusar outrem, seja por vingança fazer o pagamento. Noutra oporou por insatisfação momentânea, tunidade, afirma que o defensor ia como parece ter sido o caso vertenà sua residência acompanhado do te, posto que, as evidências deixam Sr. XXXXXXXXXX, para receber o dúvidas quanto à veracidade das dinheiro. Por fim, afirma que ela ia acusações e quanto à idoneidade ao Fórum, acompanhada do Sr. XXXXXXXXX, o qual dos personagens por elas responsáveis. Observe-se ficava encarregado de entregar o dinheiro para o de- que os autos demonstram que os acusadores não são fensor, enquanto ela esperava do lado de fora. Tam- pessoas totalmente leigas, nem humildes no sentido bém há contradição com relação ao depoimento de intelectual, pois souberam muito bem procurar o órgão seu filho XXXXXXXXXX, quando afirma que jamais certo para atingirem os intentos processuais. pagou honorários aos dois advogados particulares. Ante tais circunstâncias, assevera o defensor Ainda, há contradição se relevadas as declarações de público que jamais recebeu dinheiro de quem quer que XXXXXXXXXX, fls. 163/164, que nega, com veemên- seja, em contraprestação à sua atuação como preposto cia, todas as acusações e demais argumentos apre- do Estado, na defesa jurídica da população carente. A sentados pela Sra. XXXXXXXXX. bem da verdade, é uma prova difícil, senão impossível Na acareação de fls. 165, enquanto XXXXXXXX de ser feita, ao não ser levadas em conta as declaramantém discurso coerente com as declarações ante- ções das diversas pessoas que foram pelo profissional riores, XXXXXXXXX volta a protagonizar um verda- atendidas, sem que tenham desembolsado numerário deiro espetáculo de contradições, a exemplo de que: para conseguir o atendimento. ora pagou dinheiro ao próprio defensor público, nas Observe-se que, se bem analisados os depoitrês vezes em que este esteve em sua residência, ora mentos, nota-se que a esperteza dos acusadores reveque entregou o dinheiro, nas mesmas ocasiões das vi- la que todos tinham conhecimento de que os defenso37


Decretação da nulidade do ato administrativo que culminou em demissão

res públicos trabalham gratuitamente para a população pro reo. No caso em apreço, é evidente que a admissibilicarente e não podem, nem devem, receber dinheiro a qualquer título. Sabiam, ainda, que se por acaso se dade da acusação, pela Administração Pública, estava vissem obrigadas a entregar algum dinheiro ao defen- condicionada apenas à existência dos depoimentos das sor, teriam que se valer de alguma testemunha para pessoas que o acusaram. E em respeito ao princípio in comprovar o pagamento. No caso, XXXXXXXX não dubio pro societate, o qual não exige certeza quanto à tinha testemunha, mas sabia também que uma acusa- autoria, nem quanto à materialidade do ilícito, bastando ção nesse sentido teria o condão de, eventualmente, a notícia da infração, a instauração do processo admiprejudicar quem lhe promovera a insatisfação. Dentro nistrativo foi um acerto. Todavia, a aplicação da punidesse raciocínio, bastou entrar no Cartório da Vara Cri- ção em contradição com as provas colhidas durante a minal da Comarca de Santo Antônio de Jesus e lançar instrução foi um desacerto, porque conforme se depreende do seguinte pronunciamento, ao vento a acusação frente ao sué nula a demissão do funcionário bescrivão, XXXXXXX, que assesem que tenha sido apontada, com gura ter ouvido uma senhora falar base em fatos concretos, a mateque entregou R$ 30,00 (trinta reais) A acusação rialidade do crime e a certeza da ao defensor público, que defendia tomou corpo e sua autoria. o seu filho Dionísio Pinto. A acusa-

se transformou no “É nula a demissão do função tomou corpo e se transformou cionário sem que tenha sido aponno processo que serviu para fundaprocesso que tada, expressamente, a sua falta mentar um decreto de demissão a serviu para funcional” (TJSP, RDA, 70/172). bem do Serviço Público. Note-se fundamentar Nesse particular, razão asque a Sra. XXXXXXX, apontou siste ao demandante. Por mais que testemunha do suposto pagamenum decreto de o Estado da Bahia, através da sua to de honorários. Só que essa tesdemissão a bem ilustre e conceituada procuradora, temunha, ao ser inquirida, negou do Serviço Público tenha se esforçado para proteger peremptoriamente o recebimento o ato de demissão hostilizado, ele dos honorários pelo defensor, sob apresenta-se eivado de arbitrarietodos os aspectos possíveis. dade, sob a máscara da legalidade A fórmula parece simples. e legitimidade, se amoldando àqueBasta que se perceba e atente-se, la situação já destacada anteriorpara inibir a prática de arbitrariemente neste julgado, extraída das dade, que qualquer servidor público, no particular, está sujeito a passar por tal situa- bem postas colocações do grande, saudoso e sempre ção. Basta, por exemplo, que alguém, insatisfeito por lembrado mestre Hely Lopes Meireles: A ilegitimidade, como toda fraude à lei, vem quaqualquer razão, chegue ao balcão de algum Cartório e diga: - Paguei ao servidor fulano-de-tal determinada se dissimulada sob as vestes da legalidade. Em tais quantia para que agilize meu processo. Perguntar-se- casos é preciso que a Administração ou o Judiciário desçam ao exame dos motivos, dissequem os fatos e ia: - Quem? Como? Onde? Quando? Responderá o acusador: - Paguei ali, naquele vasculhem as provas que deram origem à prática do gabinete, quando estávamos nós dois, a sós. Pergun- ato inquinado de nulidade” (Hely Lopes Meirelles, Ditar-se-ia, também: De que defesa poderia socorrer-se reito Administrativo Brasileiro, 16ª ed., Rev. dos Tribuo servidor apontado, que jura inocência? Negar, sim- nais, São Paulo, 1991, p. 181-182; negrito nosso); plesmente, é caso para reflexão! É que a severa punição adotada no processo adO acusador pode dizer também: - Paguei na pre- ministrativo sob análise encontra-se desprovida de corsença ou por intermédio de fulano ou sicrano. E fulano relação lógica e legalmente adequada, entre o quanto ou sicrano afirmar nunca ter presenciado tal pagamen- apurado na instrução e na punição aplicada, o que já to, não deve ser levado em consideração? De qual tiro- basta para a declaração de sua inexistência jurídica. cínio deve se valer o julgador diante de tais circunstânVale ressaltar que a Administração Pública cias? Obviamente que no princípio jurídico de in dubio está jungida às normas constitucionais processuais e 38


subfensores públicos trabalham gratuitamente para a cias? Obviamente que no princípio jurídico de in dubio população carente e não podem, nem devem, receber pro reo. dinheiro a qualquer título. Sabiam, ainda, que se por No caso em apreço, é evidente que a admissibiliacaso se vissem obrigadas a entregar algum dinheiro dade da acusação, pela Administração Pública, estava ao defensor, teriam que se valer de alguma testemunha condicionada apenas à existência dos depoimentos das para comprovar o pagamento. No caso, XXXXXXXX pessoas que o acusaram. E em respeito ao princípio in não tinha testemunha, mas sabia também que uma dubio pro societate, o qual não exige certeza quanto acusação nesse sentido teria o condão de, eventual- à autoria, nem quanto à materialidade do ilícito, basmente, prejudicar quem lhe promovera a insatisfação. tando a notícia da infração, a instauração do processo Dentro desse raciocínio, bastou entrar no Cartório da administrativo foi um acerto. Todavia, a aplicação da Vara Criminal da Comarca de Santo Antônio de Jesus punição em contradição com as provas colhidas due lançar ao vento a acusação frenrante a instrução foi um desacerto, te ao subescrivão, XXXXXXX, que porque conforme se depreende do assegura ter ouvido uma senhora seguinte pronunciamento, é nula a falar que entregou R$ 30,00 (trinta demissão do funcionário sem que reais) ao defensor público, que detenha sido apontada, com base em fendia o seu filho Dionísio Pinto. A fatos concretos, a materialidade do acusação tomou corpo e se transcrime e a certeza da sua autoria. O mérito do formou no processo que serviu “É nula a demissão do funato administrativo, para fundamentar um decreto de cionário sem que tenha sido aponentendido como demissão a bem do Serviço Públitada, expressamente, a sua falta co. Note-se que a Sra. XXXXXXX, funcional” (TJSP, RDA, 70/172). juízo de oportunidade apontou testemunha do suposto Nesse particular, razão ase conveniência, pagamento de honorários. Só que siste ao demandante. Por mais que é próprio da essa testemunha, ao ser inquirida, o Estado da Bahia, através da sua negou peremptoriamente o recebiilustre e conceituada procuradora, Administração mento dos honorários pelo defentenha se esforçado para proteger sor, sob todos os aspectos possío ato de demissão hostilizado, ele veis. apresenta-se eivado de arbitrarieA fórmula parece simples. dade, sob a máscara da legalidaBasta que se perceba e atente-se, de e legitimidade, se amoldando para inibir a prática de arbitrariedaàquela situação já destacada antede, que qualquer servidor público, no particular, está riormente neste julgado, extraída das bem postas colosujeito a passar por tal situação. Basta, por exemplo, cações do grande, saudoso e sempre lembrado mestre que alguém, insatisfeito por qualquer razão, chegue Hely Lopes Meireles: ao balcão de algum Cartório e diga: - Paguei ao serA ilegitimidade, como toda fraude à lei, vem quavidor fulano-de-tal determinada quantia para que agi- se dissimulada sob as vestes da legalidade. Em tais lize meu processo. Perguntar-se-ia: - Quem? Como? casos é preciso que a Administração ou o Judiciário Onde? Quando? desçam ao exame dos motivos, dissequem os fatos e Responderá o acusador: - Paguei ali, naquele vasculhem as provas que deram origem à prática do gabinete, quando estávamos nós dois, a sós. Pergun- ato inquinado de nulidade” (Hely Lopes Meirelles, Ditar-se-ia, também: De que defesa poderia socorrer-se reito Administrativo Brasileiro, 16ª ed., Rev. dos Tribuo servidor apontado, que jura inocência? Negar, sim- nais, São Paulo, 1991, p. 181-182; negrito nosso); plesmente, é caso para reflexão! É que a severa punição adotada no processo adO acusador pode dizer também: - Paguei na pre- ministrativo sob análise encontra-se desprovida de corsença ou por intermédio de fulano ou sicrano. E fulano relação lógica e legalmente adequada, entre o quanto ou sicrano afirmar nunca ter presenciado tal pagamen- apurado na instrução e na punição aplicada, o que já to, não deve ser levado em consideração? De qual tiro- basta para a declaração de sua inexistência jurídica. cínio deve se valer o julgador diante de tais circunstânVale ressaltar que a Administração Pública está 39


Decretação da nulidade do ato administrativo que culminou em demissão

jungida às normas constitucionais processuais e sub- ário substituí-la. Contudo, a possibilidade de analisar missa ao princípio da adequação legal, quanto à neces- se os fundamentos da decisão administrativa guardam sidade da fundamentação e motivação do ato punitivo, respaldo jurídico encontra-se contemplada no inciso sem deixar de olvidar que “a condição deflagradora ou XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, a nossa motivo de invalidação é a existência de um ato, de uma Lei Maior. Indubitavelmente, não existe nos autos do prorelação jurídica ou de ambos, em desconformidade com a ordem jurídica” (Zancaner, Weida; Da Conva- cesso disciplinar prova irrefutável de atos ilícitos pralidação e da Invalidação dos atos Administrativos, 2ª ticados pelo demandante a justificar a aplicação da gravíssima e drástica punição disciplinar da demissão, ed., Malheiros, 1993, p. 66). Nesta intelecção, mesmo tratando-se de ato dis- a bem do serviço, penalidade que só deve ser imposta cricionário, subsistindo, entretanto, sanção vinculada, em situações extremes, haja vista as conseqüências danosas e irreparáveis, com reflemalgrado a reconhecida impossixos nas áreas física, emocional, bilidade do Judiciário adentrar no social, econômica e moral do apemérito dos referidos atos adminisNa instrução do nado, diante de si próprio, dos seus trativos discricionários, faz-se necessário o exame da materialidade feito o Estado não logrou familiares e dentro da sociedade, no nosso caso, por demais discrido delito, com vistas a aferir se “não

provar a existência de

minatória e impiedosa. há a correlação lógica necessária ilícitos funcionais que, Em face do exposto, com entre os fatos que se tornaram esbase no exame das provas existentribo para o ato punitivo e a extendevidamente são do conteúdo deste” (MELLO, comprovados, pudessem tes nos autos, Julgo Procedente o pedido, para decretar, como efetiCelso Antônio Bandeira de; Discrijustificar as razões vamente decreto, a nulidade do ato cionariedade e Controle Jurisdicional, Malheiros, 1992, p. 95). do ato punitivo extremo administrativo que culminou com a Desta forma, restando indeperpetrado em desfavor demissão do autor, XXXXXXXXXX, do cargo de defensor público, do monstrada a prática, pelo autor, do acionante quadro de Pessoal da Secretaverifica-se a desproporcionalidade ria da Justiça e Direitos Humanos entre o ato punitivo com os fatos do Estado da Bahia, na data de efetivamente apurados através da 27.02.1998. prova testemunhal, pois, os autos Conseqüentemente, determostram que a Comissão Processante desconsiderou, solenemente, todos os diversos mino ao acionado que promova a reintegração do dedepoimentos que poderiam ser favoráveis à defesa do mandante no cargo do qual foi despojado ilegalmente, acusado. Justamente daquel’outras pessoas que de- pagando-lhe com efeito retroativo à data do ato os venclararam com firmeza o atendimento sério e idôneo do cimentos e vantagens, inclusive promoções a que teria direito, se trabalhando regularmente se encontrasse. autor, no desempenho do seu papel de defensor. Considerando que o processo se desenvolveu Em suma, na instrução do feito o Estado não logrou provar a existência de ilícitos funcionais que, sob o beneplácito da Justiça Gratuita, sem a incidência devidamente comprovados, pudessem justificar as ra- de custas processuais, fica o demandado condenado zões do ato punitivo extremo perpetrado em desfavor ao pagamento de verba honorária de sucumbência, do acionante, e mesmo que o fizesse, não suprimiria que fixo em 15% (quinze por cento) sobre o valor que a obrigatoriedade da apuração de todos os fatos que couber ao suplicante, a título de atrasados. justificaram a punição através de procedimento disciP.R.I. plinar em que se observe o devido processo legal, asDecorrido o prazo de recurso voluntário, subam securatório do direito à ampla defesa do indiciado, que, os autos à instância superior, para o reexame necessáevidentemente, não cabe ao Poder Judiciário suprir. rio, em atenção ao art. 475, inciso II, do CPC. Como já ressaltado, o mérito do ato administrativo, entendido como juízo de oportunidade e conveni Salvador, 25 de abril de 2005. ência, é próprio da Administração, vedado ao Judici40


Notícias Sede da EMAB é reformada A sede da Escola de Magistrados da Bahia − EMAB está de cara nova. Durante três meses as dependências do estabelecimento foram reformadas para melhor atender o alunado. Agora, a Escola conta com auditórios climatizados, equipamentos para transmissão de curso telepresencial, sala de reuniões, copa, película de proteção solar nas janelas, portas de vidro, iluminação adequada, sanitários com acesso para deficientes físicos, área de convivência, reestruturação dos setores, modernização da fachada e melhorias elétricas e hidráulicas. Além das novas instalações, a EMAB inaugurou uma galeria de fotos para homenagear seus exdiretores. Estão expostas no espaço as fotografias dos desembargadores Mário Albiani, Luiz Pedreira, Paulo Furtado, José Abreu Filho (já falecido), João Santa Rosa, Gérson

Pereira Santos, Sílvia Zarif, Manoel e deixaram seu legado”. Moreira e do juiz Edmílson Jatahy Atualmente, mais de 850 alunos Fonseca Júnior. Segundo o diretor dos cursos preparatórios e das pósda EMAB, Rosalvo Augusto Vieira graduações (presencial e telepreda Silva, a criação da galeria tem sencial) em Direito Civil e Processo o objetivo de promover um resgate Civil circulam pelas dependências histórico da Instituição, que foi fun- da EMAB. O principal objetivo da dada em 1982. “Não existe presente Instituição é disseminar informasem passado. A Escola alcançou ções atuais e pertinentes sobre o este grau de credibilidade graças universo jurídico, atuando como diaos diretores que passaram por aqui vulgadora de inovações.

1ª Jornada da Magistratura promove o conhecimento jurídico

Magistrados atentos as palestras realizada na jornada

Em agosto, a Escola de Magistrados da Bahia – EMAB realizou a 1ª Jornada da Magistratura, em parceria com a Faculdade Baiana de Direito. No encontro os juízes debateram a função de julgar, a individualização da pena, a execução provisória da pena, a reforma processual, a interpretação da Constituição e as novas súmulas do Superior Tribunal de Justiça – STJ na perspectiva do Direito Civil.

Na ocasião, o diretor da EMAB, Rosalvo Augusto Vieira da Silva, agradeceu aos presentes e ressaltou a importância da união dos juízes para a construção de uma nova trajetória. “Devemos caminhar juntos, para defender os nossos direitos. É preciso dividir para governar”, concluiu. A abertura do evento foi realizada pela presidente do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ BA), desembargadora Sílvia Zarif, e o encerramento ficou a cargo do presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Mozart Valadares. A 1a Jornada da Magistratura também contou com a presença do presidente da AMAB, Ubiratã Pizzani. 41


Entrevista

A historiadora Vanda Machado fala sobre a situação do negro no País

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om muita receptividade e um brilho contagiante nos olhos, a historiadora e doutora em Educação Vanda Machado abriu as portas de sua casa para a equipe da Erga Omnes. Atuando há mais de 40 anos na área de Educação, Vanda trabalha na Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, que em parceria com a Secretaria de Educação, através do Instituto Anísio Teixeira (IAT), contribui para formação de educadores e educadoras, fazendo valer a Lei Federal 10.639/03, que obriga a inclusão da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da rede de ensino.

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Erga Omnes: Como viviam os negros no Brasil, depois da abolição da escravatura? Vanda Machado: Esta pergunta demanda uma resposta impossível de ser elaborada numa única entrevista. Há um déficit, uma assimetria nacional a ser transformada. Há um labirinto desnorteante, com múltiplos espelhos refletindo a pobreza socioeconômica, as desigualdades, os baixos índices de escolarização e outras iniquidades, num racismo estrutural que desmoraliza os sentidos. De outro modo, acreditamos que a nação brasileira acumula características capazes de infundir a confiança mundial, isto é fato. Sinto que há um esforço do governo, que está escutando as necessidades sem excluir as possibilidades dos nossos “parentes” quilombolas, por exemplo. Às vezes, tenho a sensação de que, para muitos, a escravidão terminou na semana passada. Nas minhas andanças, fico tomada de um misto de dor, ansiedade e desapontamento, ao perceber como essas criaturas continuam vivendo com tanta ausência de tudo. É como se estivessem paradas no tempo? Vanda Machado: É como se estivessem vivendo o momento do “acabou a escravidão, e agora, quem vai pagar pelo meu trabalho? Em que terra eu vou plantar para o sustento de minha família? Vou viver de quê? Cadê a terra que eu não tenho?”. Há uma parte importante do povo negro que vive nessa situação de insegurança. Por outro lado, há um esforço muito grande dos próprios quilombolas e dos diversos movimentos negros, lutando por políticas públicas, que tem chegado parcimoniosamente. É como brincar de cabo-de-guerra: de um

“O que está naturalizado é que o lugar do negro é o lugar da subalternidade”

lado, negros e negras que lutam para sair de uma situação de lástima. Do outro lado, uma força escondida que ainda consegue barrar o avanço para uma vida com dignidade. Os negros têm certa dificuldade de assumir suas origens, sua cor. O que a senhora acha das nomenclaturas moreno, moreno claro, moreno escuro, chocolate etc.? Vanda Machado: E é fácil ser negro no Brasil? Qual o cognitivo da sociedade em relação à pessoa negra? E as piadas? E as brincadeiras racistas? E a representação do negro na sociedade? Um domingo desses, eu estava saindo de casa e, ao entrar no elevador, uma senhora entrou também. Muito simpática, ela começou elogiando o perfume que eu estava usando. Repetiu o elogio várias vezes. De repente, ela falou: você já vai? Eu respondi: para onde? Ela disse: você não trabalha aqui? Eu respondi: não, eu moro aqui há 23 anos, sou sua vizinha. A questão não é ser confundida com uma empregada doméstica. O que está naturalizado é que o lugar do negro é o lugar da subalternidade. Aliás, são justamente as mulheres negras, jovens ou maduras, que vivem a cuidar dos filhos e bens alheios para a realização pessoal de outras mulheres, não necessariamente brancas e ricas. Então não é fácil ser negro ou negra, quando o que se sabe são histórias de subalternidade ou histórias do ponto de vista do colonizador, justificando a desdita de negros que são empurrados para frente da bala. Fale um pouco sobre a Lei 10.639, que instituiu o ensino obrigatório de História e Cultura Afro-Brasi43


Entrevista | Vanda Machado

leira nos ensinos fundamental e médio. Vanda Machado: Foi uma luta de quase quarenta anos, travada por educadores, pesquisadores, movimento negro e “gente do povo”. A lei que ajudamos a construir reconhece a coexistência histórica e cultural da nação brasileira. Nesta perspectiva, a referência à história da África não se desenha como volta ao passado, mas como necessidade fundamental para compreender a contemporaneidade. É preciso encarar as contradições internas que dividem o Brasil em dois, desvelando o racismo institucional guardado a sete chaves num canto qualquer do cognitivo da sociedade. É o que nos impede de saber quem somos, qual a real contribuição do povo africano escravizado no Brasil e a que ponto da história da humanidade estamos imbricados. Esse equívoco não é encravado apenas no Brasil. Chegou-se a afirmar, a res-

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peito do continente africano, que as civilizações do Egito faraônico tiveram origem em misteriosos povos brancos. Mas basta reparar nas artes egípcias e você verá que eles se autorretrataram como negros. É simples. A Lei provocou o crescimento da “consciência negra” no País? Vanda Machado: Vamos inverter esta ordem. Foi exatamente a consciência negra que propiciou a criação da Lei. O povo negro nada recebe gratuitamente. A Lei que hoje nos afeta positivamente é fruto do esforço dos diversos movimentos negros e seus militantes. Houve um tempo em que militantes se reuniam exaustivamente e pensavam: não queremos a escola desse jeito. Não queremos uma escola onde os livros não contemplam a história do menino e da menina negra, da sua comunidade, sua ancestralidade. Rejeitamos uma escola que não

contempla a importância dessas pessoas como construtoras deste país. Pensávamos: não queremos uma educação em que a imagem do negro está sempre associada a situações de inferioridade. Hoje, descolonizar os currículos é uma necessidade para se compreender a complexidade da nação brasileira, que é plural. O povo negro se transforma em cidadãos também à medida que conhece a sua história, reconhece a importância dos ancestrais escravizados que encheram o País de riquezas. Encheram esta cidade de obras de arte, encheram as igrejas de ouro e produziram toda música clássica do Brasil colônia. Isto é bom para a autoestima de crianças e jovens negros e negras. Esperamos que a pátria amada mãe gentil tome no seu colo a população de 50% de negros e negras, seus diletos filhos, para o equilíbrio econômico, paz na sociedade e qualidade de vida das


“As cotas não vão resolver o problema nacional sem uma mudança estrutural na educação” pessoas, sem restrição. Como a senhora vê as cotas para negros e para estudantes vindos do ensino público? Vanda Machado: Uma coisa é o que o sujeito sabe, outra coisa é a possibilidade que ele tem para aprender. Os estudantes cotistas são estudantes aprovados com a mesma média dos outros concorrentes. Vale considerar que as escolas oferecidas aos negros não são as melhores em equipamentos e ensino. Isto significa que por mais capaz que seja a criança ou o jovem, eles terão uma educação pela metade, uma educação de segunda categoria ou sem categoria nenhuma. Muitos jovens conseguem burlar o racismo institucional fincado no meio do caminho educativo. Outros evadem das escolas de segundo grau e dos cursos noturnos. Eles perceberam que se trata apenas de um tempo de escolarização que não lhes propicia formação para o trabalho, muito menos para passar no vestibular. É uma escola que ainda está aprisionada numa fôrma em que não cabe a cultura do povo, nem a cultura negra, nem

qualquer outro valor capaz de estruturar pessoas. Precisamos compreender a violência, tecida com o abandono das necessidades básicas, das misérias centenárias e das iniquidades que constroem muros entre jovens negros e a dignidade humana. As cotas não vão resolver o problema nacional sem uma mudança estrutural na educação. Até agora nos atemos à mudança de terminologias, o que não corresponde efetivamente à possibilidade de lidar com outras formas mais fluidas, provocando a elaboração de conteúdos transformadores. Estamos caminhando para fazer diferente. O que pode acontecer com as cotas é reparar, considerando a possibilidade que este sujeito tem de ser. Essa reparação não precisa ser eterna.

mação na sociedade multirracial. É preciso compreender a finalidade da nossa própria existência. É isso que nos dá força para afrontar o destino imposto pela consciência dominante, na sua pretensa hegemonia. Gostaria de concluir esta minha fala com a poesia de Thiago de Melo: Saber seguir junto com os outros sendo e noutros se prolongando e construir o encontro com as águas grandes do oceano sem fim. Muda em movimento, mas sem deixar de ser o mesmo que muda.

Quão avançado está o movimento negro hoje? Vanda Machado: Os movimentos vivem muito mais que a eliminação de estruturas históricas de uma sociedade escravagista. Assim, é preciso inventar, o tempo todo, outras formas de luta para driblar o racismo e criar mecanismos de transfor45


Artigo REFLEXÕES SOBRE O DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA

Graça Marina Vieira da Silva Juíza de Direito

10ª Vara de Família e substituta no Tribunal de Justiça; Coordenadora Pedagógica da EMAB

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atas comemorativas não servem apenas para festejar. Mais do que isso, tais ocasiões representam justas homenagens a pessoas, eventos, conquistas, momentos históricos importantes. Neste contexto, podemos dizer que a escolha do dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, para celebrar o Dia da Consciência Negra, foi mais do que acertada. Ora, não se trata de comemorar a morte de alguém. Trata-se, isto sim, de lembrar a data de sua morte como um marco importante na luta de um líder que defendeu seu povo com bravura e heroísmo. E mesmo esta justa lembrança ainda é pouco para traduzir o simbolismo e os valores embutidos na data. Seria injusto reduzir a luta de Zumbi ao maniqueísmo do conflito entre o bem e o mal, o negro e o branco, o oprimido e o opressor. O herói lutou pela preservação de uma cultura, por um ideal de liberdade, justiça e paz. Em outras palavras, pelo reconhecimento da diversidade. O ser humano, ao longo de toda sua existência, mantém o comportamento atávico de olhar sempre para o próprio umbigo, numa visão narcisista que só reconhece beleza onde há espelho. Esta característica individual extrapola para as coletividades e cada grupo social, étnico, religioso, ou seja lá de que natureza for, tende a atribuir-se importância superior aos demais. Desde que o primeiro hominídeo desceu da árvore e lançou-se à conquista do planeta, diversos grupos se formaram e cada um desenvolveu sua própria linguagem, seus padrões de convivência, seus conceitos e preconceitos. A comunicação foi evoluindo e, finalmente, através da palavra, os humanos puderam se libertar do presente, aprendendo com o passado e

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A comunicação foi evoluindo e, finalmente, através da palavra, os humanos puderam se libertar do presente, aprendendo com o passado e planejando o futuro

planejando o futuro. Assim caminhou a humanidade ao longo dos milênios, até os dias de hoje. Espalhando-se por sobre o planeta, os humanos acabaram por seguir a tendência natural do ambiente, adaptando-se ao meio para sobreviver. E da adaptação decorre a diversidade. As diferenças, portanto, não são um privilégio nem uma maldição, mas, antes, uma necessidade, uma maneira de sobreviver às condições impostas pela natureza. E em seu instinto de sobrevivência, o ser humano acabou superando os obstáculos naturais e desenvolvendo tecnologias capazes de proporcionar conforto, bem-estar, segurança, ainda que pagando o preço da destruição que hoje ameaça o futuro do planeta.


Da mesma diversidade que proporciona a preservação da espécie humana, também resulta a intolerância, o preconceito, a discriminação. Intolerante, o ser humano fomenta a desigualdade e vai de encontro à lei de Deus e contra a lei dos próprios homens, cujo enunciado afirma que “todos são iguais”. Por paradoxal que pareça num primeiro momento, a igualdade perante a lei implica, necessariamente, o reconhecimento e respeito à existência da diversidade. Tais reflexões nos levam a julgar oportuna a celebração do Dia da Consciência Negra para olhar com mais atenção um aspecto fundamental da natureza humana: a consciência. Conhecer-se a si mesmo é o primeiro e decisivo passo para que o ser humano compreenda o seu papel na coletividade. É preciso entender o que é ser humano para, a partir de tal compreensão, ser cidadão. E, como cidadão, o indivíduo se insere no contexto da sociedade, do viver em sociedade, o que requer respeito aos direitos do outro, reconhecimento das diferenças, consciência. Consciente, o ser humano vai perceber que em sua longa odisséia na Terra as pessoas desenvolveram crenças, costumes, culturas, e que nenhuma delas é mais ou menos importante que as demais. Tamanha pluralidade é, talvez, uma das maiores riquezas da humanidade. Desta forma, o Dia da Consciência Negra nos proporciona um excelente momento para refletirmos sobre a diversidade. Podemos dizer que o Brasil é o país da diversidade e, no Brasil, o Estado da Bahia, especialmente a capital, Salvador, abriga um dos mais expressivos exemplos de diversidade. Mais do que isso, na Bahia a diversidade convive, se mistura e se multiplica em novas formas. Com tais afirmações não queremos, no entanto, negar a existência de intolerância, preconceito, segregação. Não se devem fechar os olhos para as distorções que ainda existem na sociedade e que precisam ser corrigidas. Mas também não se pode negar o saudável desenvolvimento de uma consciência plural que fortalece e dignifica o nosso povo. Seria, no mínimo, ingênuo supor que apenas a celebração de uma data iria tornar as pessoas conscientes e acabaria com as desigualdades. O fato de celebrarmos o Dia da Consciência Negra, porém, nos fortalece como seres humanos conscientes, nos enriquece como cidadãos livres e, sobretudo, nos proporciona uma reflexão sobre o papel de todos e de cada um para o bem de toda a sociedade.

Conhecendo-nos a nós mesmos seremos mais tolerantes com o outro, respeitaremos as diversas formas de pensar e agir, exigiremos os nossos direitos. Ser humano é também ser consciente

A cultura afro-descendente está representada em todos os setores da sociedade baiana. Está nas universidades, no governo, nas entidades artísticas e culturais, na vida e na história do Estado da Bahia. É natural, portanto, que a voz da Bahia seja escutada em todos os cantos onde se celebra o Dia da Consciência Negra. Não que o Estado reivindique para si importância maior do que a dos demais. Não se pode deixar de registrar, no entanto, a ampla diversidade cultural da Bahia, a força dos movimentos de luta aqui sediados, a inegável consciência do nosso povo. Já dissemos antes que há distorções, intolerância, preconceitos. Já dissemos também que há o combate a tais distorções e, principalmente, que eles ocorrem pela consciência do próprio povo que se organiza e se mobiliza em defesa da cidadania. Para conviver em harmonia com a diversidade é preciso entender de onde viemos, quem somos, para onde vamos. Conhecendo-nos a nós mesmos seremos mais tolerantes com o outro, respeitaremos as diversas formas de pensar e agir, exigiremos os nossos direitos. Ser humano é também ser consciente. E é com esse espírito que conclamamos a todos para uma ampla reflexão sobre o Dia da Consciência Negra.

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Artigo A SÍNDROME DA ALIENAÇÃO E DA MORTE PARENTAL: BREVES CONSIDERAÇÕES Maria das Graças Almeida Advogada

Servidora do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e aluna da EMAB

Alienação parental X síndrome da alienação parental Matéria pertinente ao Direito de Família, a síndrome da alienação parental (SAP), também chamada de implantação de falsas memórias (DIAS, 2009), apresenta-se, em adultos como “transtornos psicológicos, dificuldades de relacionamento, dentre outros problemas” (MORAIS, 2009, p.1). Mas já pode ser identificada em adolescentes ou crianças “com baixa autoestima, comportamentos regressivos como queda de rendimento escolar e urinar nas vestes, inadaptabilidade aos ambientes sociais em que devem interagir, agressividade imotivada” (LEIRA, 2009, p.1). A partir da verificação de tal sintomatologia, a existência da alienação parental (AP) deve ser inquirida. Esta consiste, segundo o psiquiatra americano Richard Garder¹, que a identificou e nomeou, em “programar uma criança para que odeie o [a] genitor [a], sem qualquer justificativa” (DIAS, 2009, p.1). Tal comportamento, em regra, dá-se na separação conflituosa do casal, quando o cônjuge que fica com a guarda da prole (genitor alienante) busca se vingar do genitor alienado (o que fica sem a guarda) através dos filhos. Com esse intuito, lança mão de uma variedade de expedientes escusos para afastar os filhos da convivência com aquele em quem pretende usar de

represália.

Ansiedade e temor Dias (2009, p.2) faz uma explanação sobre o que denomina “processo de destruição, de desmoralização, de descrédito do ex-cônjuge”. Trata-se de verdadeira campanha para desmoralizar o[a] genitor[a]. O filho é utilizado como instrumento da agressividade direcionada ao[a] parceiro[a]. A[O] mãe[pai] monitora o tempo do filho com o outro genitor e também os seus sentimentos para com ele[a]. A criança, que ama o[a] seu[sua] genitor[a], é levada a afastar-se dele[a], que também a ama. Isso gera contradição de sentimentos e destruição do vínculo entre ambos. Restando órfão do genitor alienado, acaba identificando-se com o genitor patológico, passando a aceitar como verdadeiro tudo que lhe é informado. O detentor da guarda, ao destruir a relação do filho com o outro, assume o controle total. Tornam-se unos, inseparáveis. O[A] pai[mãe] passa a ser considerado[a] um invasor, um intruso a ser afastado a qualquer preço. Este conjunto de manobras confere prazer ao alienador em sua trajetória de promover a destruição do[a] antigo[a] parceiro[a]. Neste jogo de manipulações, todas as armas são utilizadas, inclusive a assertiva de ter sido o filho vítima de abuso sexual (Dias, 2009, p.2).

1 - Richard Alan Garder foi um respeitado médico psiquiatra norte-americano. Suicidou-se aos 72 anos de idade, em 2003, por perturbações causadas pelo avançado quadro de Distrofia Simpático-Reflexa/SDCR. Escreveu mais de 40 livros e publicou mais de 250 artigos na área da psiquiatria infantil. 2 - Possíveis condutas do genitor alienante: a) denigre a imagem da pessoa do outro genitor; b) organiza diversas atividades para o dia de visitas, de modo a torná-las desinteressantes ou mesmo inibi-las; c) não comunica ao outro genitor fatos importantes relacionados à vida dos filhos (rendimento escolar, agendamento de consultas médicas, ocorrência de doenças etc.); d) toma decisões importantes sobre a vida dos filhos, sem prévia consulta 48


Leira (2009) também se detém nas formas em que se p.2). dá a alienação parental²: Fato é que eventualmente a criança vai internaO genitor alienante é indivíduo superprotetor e lizar tudo e perderá a admiração e o respeito pelo pai, tem o desejo de possuir o amor dos filhos com exclusi- desenvolvendo temor e mesmo raiva do genitor. Mais: vidade. É comum que o genitor alienante, para manipu- com o tempo, a criança não conseguirá discernir realilar o afeto do filho, use de expressões como: ‘seu[sua] dade e fantasia e manipulação e acabará acreditando pai[mãe] abandonou vocês’; vocês deveriam ter ver- em tudo e, consciente ou inconscientemente, passará gonha de seu[sua] pai[mãe]’; seu a colaborar com essa finalidade, [sua] pai[mãe] não se importa com situação altamente destrutiva para vocês’; ‘seu[sua] pai[mãe] não dá ela e, talvez, neste caso específidinheiro suficiente para manter voco de rejeição, ainda maior para cês’ etc. Ainda, o genitor alienante o pai[mãe]. Em outros casos, nem costuma impedir qualquer contato mesmo a[o] mãe[pai] distingue mais A criança vai entre o filho e os parentes do exa verdade da mentira, e a sua verinternalizar tudo e cônjuge, aumentando o sentimendade passa a ser ‘realidade’ para perderá a admiração to de perda da criança, já abalada o filho, que vive com personagens com a separação dos pais (Leira, fantasiosos de uma existência aleie o respeito 2009, p.2). vosa (PINHO, 2009, p.3). pelo pai, Com efeito, observa Leira desenvolvendo A AP e o novo ordenamen(2009), pode-se dizer que a criança to familiar tem a SAP quando começa a nutrir temor e mesmo sentimento de aversão ao genitor raiva do genitor Era comum que o genitor aliealienado, não querendo mais o ver, nado, embora continuasse amane mais, passando a contribuir para do seus filhos, em geral adotasse desmoralizá-lo³. atitude passiva5, na esperança de, Num mecanismo de autodeno futuro, reconstruir as relações fesa, os filhos negam o conflito e prematura e abruptamente rompipassam a acreditar que rejeitam o 4 genitor alienado por conta própria e não por indução das. Enquanto isso não acontecia, sofria imensamente com a falta de convívio com os filhos. Mas com as do genitor alienante. “Ter de ‘tomar o partido’ do genitor alienante faz mudanças que têm se operado no cerne familiar – com a criança pensar que perderá para sempre o amor do a progressiva, senão definitiva superação da estrutura genitor alienado, o que gera um sofrimento mental in- patriarcal, em que apenas o pai trabalhava e à mãe cadescritível. [...] podendo causar na criança depressão, biam as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos – perturbações psiquiátricas e até suicídio” (Leira, 2009, chegou-se a um momento em que, indistintamente, os ao outro genitor (por exemplo: escolha ou mudança de escola, de pediatra etc.); e) viaja e deixa os filhos com terceiros sem comunicar ao outro genitor; f) apresenta o novo companheiro à criança como sendo seu novo pai ou mãe; g) faz comentários desairosos sobre presentes ou roupas compradas pelo outro genitor ou mesmo sobre o gênero do lazer que ele oferece ao filho; h) critica a competência profissional e a situação financeira do excônjuge; i) obriga a criança a optar entre a mãe e o pai, ameaçando-a das consequências, caso a escolha recaia sobre o outro genitor; j) transmite seu desagrado diante da manifestação de contentamento externada pela criança em estar com o outro genitor; k) controla excessivamente os horários de visita; l) recorda à criança, com insistência, motivos ou fatos ocorridos pelos quais deverá ficar aborrecida com o outro genitor; m) transforma a criança em espiã da vida do ex-cônjuge; n) sugere à criança que o outro genitor é pessoa perigosa; o) emite falsas imputações de abuso sexual, uso de drogas e álcool; p) dá em dobro ou triplo o número de presentes que a criança recebe do outro genitor; q) quebra, esconde ou cuida mal dos presentes que o genitor alienado dá ao filho; r) não autoriza que a criança leve para a casa do genitor alienado os brinquedos e as roupas de que mais gosta; s) ignora em encontros casuais, quando junto com o filho, a presença do outro progenitor, levando a criança a também desconhecê-la; t) não permite que a criança esteja com o progenitor alienado em ocasiões outras que não aquelas prévia e expressamente estipuladas. 3 - De acordo com pesquisa desenvolvida pelo Departamento de Serviços Humanos & Sociais do Governo Norte-Americano, há 10 anos, mais de ¼ de todas as crianças não viviam com os seus pais. Meninas sem um pai em suas vidas teriam quase 3 vezes mais propensão a engravidarem na adolescência e 50% mais chances de cometerem suicídio. Meninos sem um pai em suas vidas teriam 60% mais chances de fugirem de casa e 40% mais chances de utilizarem drogas e álcool (PINHO, 2009, p.3). Meninos e meninas sem pai teriam 2 vezes mais chances de abandonarem os estudos, 2 vezes mais chances de serem presos e aproximadamente 4 vezes mais chances de necessitarem de cuidados profissionais para graves problemas emocionais e comportamentais(PINHO, 2009, p.3). 49


A síndrome da alienação e da morte parental: breves considerações.

cônjuges dividem, ou se veem cada vez mais na contingência de dividir, as atribuições da vida em comum. Tanto no que tange ao sustento da casa quanto à faina diária que ela exige com arrumação, comida, educação e cuidados com os filhos. Essa nova disposição familiar trouxe, entre outras consequências, um estreitamento da parceria dos cônjuges na educação dos filhos, com ambos trabalhando fora e se revezando nesses cuidados. Natural, então, que finda a sociedade conjugal ambos tenham todo interesse em manter a mesma relação de forças no que diz respeito ao contato com a prole. Mas como em geral uma separação, ao menos num primeiro momento, é uma situação conflituosa, é esperado que não se estabeleça de pronto um entendimento sobre essa questão. É nesse momento de tensão e ânimos exaltados que pode surgir por parte daquele que transitoriamente ficou com a guarda dos filhos a intenção de induzi-los a preferi-lo em detrimento do outro cônjuge. Eis então a razão do aumento das denúncias de alienação parental: a nova estrutura familiar, e não um suposto crescimento nos casos de AP, como se depreende em Dias (2009). Os pais, que comumente eram alienados e agiam passivamente diante disso – porque nunca tiveram mesmo muito contato com os filhos –, passaram, nesta recente configuração de família, a pleitear a manutenção do vínculo parental nos mesmos moldes em que se havia estabelecido quando da vigência da sociedade conjugal. Resta considerar que, ao fim e ao cabo, a alienação parental sempre foi muito comum, sobretudo se considerarmos que as separações, em regra, eram sempre muito sofridas e danosas para a mulher (geralmente o cônjuge deixado), que se via de uma hora para outra, além de vilipendiada em sua autoestima e status, às voltas com uma drástica redução no orçamento familiar e a árdua tarefa de prosseguir sozinha com a

criação dos filhos. Nesse contexto, promover uma rancorosa, sistemática e atemporal desmoralização do cônjuge era quase um lugar-comum.

O Projeto de Lei nº 4.053 No bojo dessa nova realidade familiar e de suas recentes demandas no campo jurídico, foi aprovado em 15 de julho, por unanimidade, o Projeto de Lei 4.053, que visa combater a alienação parental. Nas palavras dos seus relatores, a Alienação Parental, por representar abuso no exercício do poder familiar e um desrespeito aos direitos de personalidade da criança em formação, é questão de interesse público, e tem com a proposição legal definição jurídica, o rol de condutas em que se manifesta, bem como as punições cabíveis, que vão desde advertência e multa até a perda da guarda da criança e prisão. No que tange à perda da guarda da criança, considerando decisão de uma juíza da Catalunha proibindo o convívio de uma menor com sua mãe, que mesmo advertida em juízo mantinha comportamentos clássicos de alienação parental, Ullmann (2009) observa que do mesmo modo que a justiça, em atenção ao “melhor interesse da criança”, antes de qualquer aferição de veracidade da denúncia, proíbe a visita à criança de pai acusado de abuso sexual, deve similarmente proceder, seguindo o mesmo princípio, diante da evidência do abuso psicológico ou moral proveniente do comportamento do ente alienador. Outro importante avanço no combate à AP será a inclusão da SAP na próxima atualização do ‘Manual de diagnóstico e estatístico das perturbações mentais ̶ DSM’, feita pela Associação Americana de Psiquiatria, dando-lhe status de doença específica, o que deve pôr fim ao argumento de que a SAP era algo vago, impreciso e, por que não, ilusório, por sequer constar no referido manual (PINHO, 2009).

4 - A criança com SAP apresenta como comportamento: 1. Uma campanha denegritória contra o genitor alienado. 2. Racionalizações fracas, absurdas ou frívolas para a depreciação. 3. Falta de ambivalência. 4. O fenômeno do “pensador independente”. 5. Apoio automático ao genitor alienador no conflito parental. 6. Ausência de culpa sobre a crueldade a e/ou a exploração contra o genitor alienado. 7. A presença de encenações ‘encomendadas’. 8. Propagação da animosidade aos amigos e/ou à família extensa do genitor alienado. (GARDNER, 2009, p.1) 5 -De acordo com o IBGE (2002), cerca de 1/3 dos filhos de pais divorciados acabam perdendo contato com seus pais, sendo alijados do afeto desse convívio o que tem sérias conseqüências com o comprometimento do seu desenvolvimento psicossocial (LEIRA, 2009).

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Como agir

o genitor agora ausente, seria simples para o genitor que tem a guarda incentivar os contatos, em vez do Ao perceber que o filho mudou a sua conduta contrário. Só a hostilidade implacável impede o genipara com ele, deixando transparecer indícios de alie- tor guardião de sinceramente incentivar a criança a ter nação parental, o genitor alienado deve solicitar a um contato com o outro. advogado o encaminhamento ao Centro de Apoio Psi- 3. É importante apelar à consciência [dos filhos] de que cossocial do Tribunal de Justiça, encarregado de in- o que estão fazendo é rejeitar, ferir e humilhar um genivestigar as acusações. Em se verificando indício da tor inocente que se preocupa com ela. prática de alienação parental, cabe ao juiz determinar 4. É importante atender [os filhos] inicialmente sozinhos, para obter algumas informações a realização de perícia psicológica sobre o modo como ela se sente a na criança ou adolescente, sendo respeito do genitor ausente, e tamouvido o Ministério Público. O parebém atender separadamente tanto cer, com base em ampla avaliação, o genitor supostamente alienador deverá ser apresentado em 90 dias, quanto o alienado. Eventualmencom a indicação de eventuais medite o psicólogo ou mediador deve das visando à manutenção da inteVerificando indício atender a criança e o genitor augridade psicológica da criança. da prática de sente em conjunto, a fim de tentar Mas o que fazer diante da mudar tanto atitudes e comportaalienação parental, Síndrome da Alienação Parental estabelecida? Quando o ente alienacabe ao juiz determinar mentos racionais quanto sentimentos através de psicoterapia. Muitas dor parece ter atingido o seu intento a realização de perícia vezes é necessário, nesse procese estabelecido uma aparente irreso, que exista uma atitude firme na psicológica na criança conciliável cisão entre o[a] genitor[a] comunicação. não guardião e seus filhos? Muitos ou adolescente 5. É importante fazê-los [os filhos] anos já se passaram e a indiferenentenderem que um parente de ça ou mesmo a aversão marcam o sangue faria por eles muitos sacricomportamento dos filhos criados? fícios que ninguém mais faria. Lowenstein (2009) apresenta uma 6. É importante alertar o genitor relação de procedimentos que o pai que está alienando os filhos, para ou mãe alienado(a) deve exercer, os danos que está lhes causando, inclusive com o apoio da Justiça, não apenas no momento presente, na tentativa de reaproximação com mas também no futuro. E de que isso também poderá seus filhos: 1. É importante, para destruir o efeito da depreciação lhe trazer problemas quanto à sua guarda, assim que [sofrida pelo outro], tornar [os filhos] conscientes da eles percebam que estavam sendo manipulados por história feliz que havia antes de a acrimônia e a sepa- ele. 7. É importante que se apele ao senso crítico ou interação ocorrerem. 2. É vital tentar obter a cooperação do genitor alienador ligência [dos filhos], no sentido de tornar as decisões para que pare com a alienação, caso esse processo certas sobre o pai ausente. A criança deve estar ciente já tenha sido iniciado, ou para impedi-lo de dar início da injustiça e da crueldade que há em se rejeitar um a ele, se possível. Isso é mais fácil de dizer do que de pai amoroso que poderia fazer muito por ela, tanto agofazer, e muitos alienadores que sofrem de uma impla- ra quanto no futuro. cável hostilidade para com os seus antigos parceiros 8. É importante conscientizar [os filhos] de que eles irão se recusar a cooperar, ou aparentarão cooperar, precisam de ambos os pais, e não apenas de um, e mas realmente não o fazem. Eles alegam que fizeram que isso não irá pôr em perigo, de forma alguma, a sua tudo o que puderam para convencer o filho a estar com relação com o genitor guardião. o genitor ausente, mas que a criança se recusou, então 9. É importante fazer [os filhos] terem conhecimento de não podem obrigar a criança a fazer o contrário. Como que eles podem perder um bom pai[mãe], se o procesjá foi dito, se a criança tiver tido uma boa relação com so de alienação continuar e o genitor ausente desistir 51


A síndrome da alienação e da morte parental: breves considerações.

de tentar fazer contato com a criança após ter sido re- dião ou que não querem ter contato com ele/ ela. petidamente rejeitado. 17. No caso de alienação severa, é melhor para o geni10. Os filhos devem estar cientes de que a família es- tor alienado nunca se aproximar da casa do alienador, tendida do genitor alienado também está sendo injus- devido à acrimônia que existe entre eles, mas que haja tamente rejeitada e está muito ansiosa para ter um ver- uma pessoa neutra que possa intermediar o contato dadeiro contato com os seus netos. entre a criança e o[a] pai[mãe] ausente. Esse interme11. É importante encorajar os filhos não só a dialogar diário poderá transferir os filhos de um genitor para o com o genitor alienado, como também com a família outro. estendida deste, incluindo avós, avôs, tias, tios, primos 18. É importante recordar que os filhos que foram vítietc. mas de manipulação mental precisam saber que é se12. Isso também irá ajudar a reverguro estar com o genitor alienado, ter o processo alienante, e todos sem que isso implique redução de irão trabalhar juntos para tornar sua lealdade e compromisso para os filhos conscientes de que todos com o outro progenitor que tenha aqueles que lhes são próximos os a guarda. Então, o genitor alienado amam e desejam vê-los regulardeve fazer o máximo possível para mente. tranqüilizar os filhos de que não Os filhos que 13. É importante reduzir ou eliminar existe desejo de separá-los do geforam vítimas de as chamadas telefônicas e outras nitor guardião. Se ambos os pais fimanipulação mental comunicações do genitor alienante zerem isso, há uma boa chance de com os filhos enquanto eles estiveque, eventualmente, eles venham a precisam rem com o outro genitor, isto é, ducolocar o bem-estar da criança acisaber que é seguro rante uma visitação. ma de seus próprios sentimentos estar com o 14. É vital para os filhos que foram de mágoa. alienados passarem tanto tempo 19. Genitores alienados não degenitor alienado quanto possível sozinhos com o vem desistir facilmente, mas, sim, genitor alienado, para que se posperseverar nos seus esforços para sa desenvolver ou redesenvolver o fazer e manter bom contato com relacionamento entre eles. Quanto seus filhos. Há o risco de que a mais ocorra esse contato individurejeição constante da criança seja al, maior a probabilidade de que o humilhante e desmoralizante, mas, processo de alienação seja revertipor vezes, a persistência, com a do ̶ esperamos que de forma perajuda de um especialista e o apoio manente. dos tribunais, leva ao sucesso. Nunca é demais enfati15. A passividade e a tolerância são ineficazes quando zar o papel do tribunal, juntamente com o do perito ou se trata de alienação parental. O que é necessário é mediador, a fim de encontrar a melhor solução possíum confronto de natureza muito poderosa, tanto para vel para evitar um maior abuso emocional da criança contrariar os efeitos da alienação quanto para inverter através da hostilidade implacável que leva à alienação esse fenômeno. Tribunais, infelizmente, vão ouvir com parental (Goldstein, et al., 1973 ). freqüência os filhos mais velhos, os quais afirmam que não desejam qualquer contato com o[a] pai[mãe] au- A morte inventada sente, mas sem dar boas razões para isso. O tribunal, O documentário A morte inventada, de Alan Miem tais circunstâncias, deve agir no sentido de inverter a inegável alienação, se for provado que esta tem tido nas, com duração de aproximadamente 80 min, tem seguido uma rica agenda de exibições públicas, acomlugar. 16. O poder da corte deve voltar ao mediador, que está panhadas de debates, em todo o Brasil. Nele, um tratentando eliminar os efeitos alienantes, e não trabalhar balho rico e bem elaborado, faz-se uma série de entrecom o alienador, não aceitando as declarações dos fi- vistas com pessoas que desenvolveram a SAP, bem é lhos de que não desejam ver o[a] genitor[a] não-guar- mostrada a opinião de especialistas sobre o assunto, 52


constituindo-se num importante instrumento de divulgação e reflexão sobre a Alienação Parental. É indispensável a sua audiência, para se ter a noção exata do severo comprometimento que a Alienação Parental acarreta ao pai ou à mãe alienada e, por extensão, a sua família, sobretudo à criança, que sem poder defender o ente alienado e nem a si mesma é vítima por anos a fio, talvez, da mais atroz tortura psicológica a que se pode submeter uma criança.

Considerações finais “Fica decretado que a maior dor foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor” (Art. VIII, Estatuto dos Homens, Thiago de Mello). De todo o sofrimento que vem à mente quando se pensa em Alienação Parental, resta a certeza de que essa tão antiga quanto nociva prática, trazida à baila desde que devidamente nomeada, deve ser cada vez mais alvo de um intenso repúdio da sociedade e da Justiça, num efetivo e sistemático combate, até que seja extinta.

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Artigo O DIREITO DE ANTENA EM FACE DA TUTELA JURÍDICA DO RÁDIO E DA TELEVISÃO NO ÂMBITO DOS DIREITOS DIFUSOS Moacir Reis Fernandes Filho Juíz de Direito

Mestrando na UNIMES - Universidade Metropolitana de Santos/SP), Juiz de Direito de Salvador no Sistema dos Juizados Especiais - Bahia O Direito Material Ambiental Constitucional A Constituição Federal de 1988 materializou o direito ao meio ambiente ao dispor no artigo 225 que: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondose ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Com base nesse dispositivo é que se afirma que o Direito Material Ambiental encontra nascedouro em terreno constitucional, tendo a Carta Magna como sua fonte. Com efeito, o direito ambiental deve ser interpretado através das disposições contidas no artigo 225, em consonância com os princípios fundamentais constitucionais, de forma harmônica e sistemática. Especialmente, os princípios fundamentais da soberania, da dignidade da pessoa humana (piso vital mínimo) e dos valores essenciais do trabalho e da livre iniciativa. Por sua vez, os princípios fundamentais constitucionais são aqueles que se caracterizam por encontrarem-se inseridos em normas da Constituição Federal, razão pela qual são chamados princípios constitucionais positivos. Particularmente, estão contidos nos artigos 1º. a 4º. do título I da Constituição. Nesse particular, o artigo 1º. da Carta Magna inaugura, portanto, alguns dos princípios basilares da nossa Constituição: “Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: 54

I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre ini ciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Como se vê, o caput do artigo 1º já traz os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado que foi adotado no País, ou seja, não resta dúvida de que o Brasil é uma república federativa e que a federação é composta da união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal. Todos, portanto, são entes federados, que devem conviver em pé de igualdade entre si, guardadas suas peculiaridades e competências definidas pela Constituição Federal. Além disso, o dispositivo deixa claro, também, que o tipo de Estado é o democrático e que o Estado está submetido às leis, uma vez que é Estado Democrático de Direito. Dentre os demais valores que fundamentam a República Federativa do Brasil está a soberania (artigo 1º., inc. I), de forma que o Estado possui poder político supremo e independente. Supremo porque o poder estatal não encontra limitação de nenhum outro poder no âmbito interno; independente porque assim se manifesta em relação aos demais países e entes internacionais. Não só, o gerenciamento do ordenamento jurídico, entendido através do controle de sua validade e eficácia, bem evidencia a soberania de um Estado. No inciso II, encontra-se presente o princípio da cidadania, que está diretamente relacionado com


o conceito de soberania popular, segundo o qual o Es- do direito ao meio ambiente, conforme materializado tado deve se submeter à vontade do povo e do povo é no artigo 225 da CF. Para melhor compreensão, o reque deve emanar todo o poder. Neste tópico, revela o ferido dispositivo pode ser dividido em quatro partes, a professor Fiorillo 1 que a noção de cidadania não mais serem separadamente analisadas. se compadece com a visão restritiva que a vincula ao A primeira parte assegura a “todos” o direito ao exercício de direitos políticos, notadamente porque meio ambiente ecologicamente equilibrado. Entretancontrária aos ditames constitucionais da igualdade e to, a expressão “todos” pode ser interpretada de duas da dignidade da pessoa humana. formas, conforme correntes de entendimento que se Já o inciso III do artigo 1º. traz aquele que talvez formaram a respeito do assunto. seja o princípio constitucional mais A primeira corrente entende importante: o princípio da dignidade que a expressão “todos” deve ser da pessoa humana. Este é um verinterpretada, sistematicamente, dadeiro princípio fundamental, até em consonância ao artigo 5º. da para os demais princípios, pois conCF, razão pela qual brasileiros e grega todos os direitos do homem, estrangeiros residentes no País Todos os demais desde o direito à vida até os direipoderiam ser considerados titulaprincípios da tos mais singelos. Todos os demais res desse direito material. Constituição devem ser princípios da Constituição devem Já a segunda corrente conser entendidos e aplicados tendo sidera a expressão “todos” de forentendidos e aplicados sempre em vista o princípio da digma mais ampla, sustentando que tendo sempre em nidade da pessoa humana. Como qualquer pessoa poderia, em tese, vista o princípio consequência, todo dispositivo legal ser titular desses direitos, pouco presente na Constituição Federal ou da dignidade da pessoa importando tratar-se de brasileifora dela somente pode fazer senro ou estrangeiro, ainda que esse humana tido se atender, antes de qualquer último jamais tivesse residido ou coisa, a este princípio. viesse um dia a residir no Brasil. O princípio da dignidade da Ocorre que, embora imbuída de pessoa humana está intimamente lilouvável ideal humanista, o fato gado aos direitos sociais resguardaé que essa teoria, caso posta em dos no artigo 6º. da CF, denominado prática, certamente atentaria con2 piso vital mínimo , tendo em vista que o respeito a es- tra o princípio fundamental da soberania, podendo, ainses direitos é o mínimo necessário para a manutenção da dignidade da pessoa humana. Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, estabelecidos no artigo 1º, inc. IV, são valores fundamentais que dizem respeito à ordem econômica. Assim, logo de início, o legislador constituinte deixou claro que o trabalho possui valor social e deve ser protegido dentro de uma sociedade capitalista com a livre iniciativa que dela decorre, bem assim, que o capitalismo encontra limites nos valores sociais, cabendo ao Estado dirigente o controle e intervenção em face dos excessos. Dessa forma, tendo em mente os princípios constitucionais fundamentais, passaremos à análise

da, transformar-se em instrumento de indevida interferência da comunidade internacional sobre situações que só ao nosso povo dizem respeito (Ex: a discussão acerca da soberania em relação à Amazônia). Além disso, afora a questão da soberania, “o povo, enquanto conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e hábitos assemelhados, afinidades de interesses, história e tradições comuns, é quem exerce titularidade do meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Até porque, o artigo 225 da CF define o bem ambiental como “bem de uso comum do povo” 3 . A segunda parte do artigo 225 está relacionada à compreensão do bem ambiental. Isto porque, conforme descrito na no artigo 225, o bem ambiental não se

1 - CELSO ANTONIO PACHECO FIORILLO, in Princípios do Direito Processual Ambiental. São Paulo: 2a. ed., Saraiva, 2006. 2 - Idem, O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 60. 3 - Cf. Celso Antonio Pacheco Fiorillo, in Curso de direito ambiental brasileiro. São Paulo: 8ª ed., Saraiva, 2007, p.13. 55


O direito de antena em face da tutela jurídica do rádio e da televisão no âmbito dos direitos difusos

adapta aos conceitos tradicionais de “bem público” e O Direito de Antena “bem privado”, razão pela qual, em face da sua natureza jurídica, a Constituição criou um terceiro gênero: o Com base na análise acerca do disposto no arbem de natureza difusa. tigo 225 da CF, podemos destacar o surgimento, de Com efeito, a inovação exige uma nova interpre- forma pioneira no direito constitucional brasileiro, de tação acerca do artigo 20 da CF, restando superada a um bem que possui duas características: uso comum ideia de que a União seria proprietária de bens ambien- do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Desta tais (bem público), como rios, lagos, ilhas fluviais, mar forma, o direito positivado criou uma terceira espécie territorial, devendo ser adotada a interpretação mais de bem, como acima visto, a qual não se confunde com adequada, segundo a qual a União, enquanto impos- os públicos e privados. sibilitada a apropriação dos bens ambientais, é mera Este o ingrediente necessário à compreensão do gerenciadora de tais valores. direito de antena enquanto um bem difuso. Diz o mes A terceira análise do artigo tre Fiorillo, in verbis: 225 da CF diz respeito à estrutura “Baseado tanto na transmisfinalística do direito ambiental. Para são da comunicação como na capque um bem ambiental possa ser tação desta por meio de ondas, o É impossível assim considerado deve, obrigadireito de antena encontra no estoriamente, ser essencial à sadia pectro eletromagnético sua razão desvincular o integral qualidade de vida. Nesse particude ser: através das ondas eletrocumprimento de tais lar, é necessário interpretar o artigo magnéticas a pessoa humana enmandamentos à 225 em conjunto com os artigos 1º. contra uma nova possibilidade de a 6º. da CF, ficando, assim, estaberepartir, partilhar e trocar informaconsecução da lecido um piso vital mínimo. ções com seus semelhantes. finalidade ambiental ca De fato, um dos princípios É exatamente no contexto racterizada como fundamentais da República Brasido direito constitucional positivo leira é o da dignidade da pessoa que a Carta de 1988 estabelece qualidade de vida humana, estatuído no artigo 1º., inacesso às ondas eletromagnéticiso III, da CF, cujo princípio deve cas, enquanto bem de uso comum ser interpretado em consonância do povo e em decorrência de sua com o disposto no artigo 6º. da CF, característica de ser essencial à onde se encontram estatuídos os sadia qualidade de vida, visando, direitos sociais formadores do piso dentre outras possibilidades estavital mínimo, quais sejam: direitos belecidas pelo Estado Democrátisociais à educação; à saúde; ao trabalho; à moradia; co de Direito, captar ou transmitir comunicação” 4 . ao lazer; à previdência social; à proteção à maternidade e à infância; e à assistência aos desamparados. A Assim, ainda com base nos ensinamentos do cisimples leitura deste dispositivo demonstra, de plano, tado professor, o direito de antena pode ser conceituque é impossível desvincular o integral cumprimento ado como sendo o direito de captar e transmitir ondas. de tais mandamentos à consecução da finalidade am- Para tanto se utiliza de um meio para captação e/ou biental caracterizada como qualidade de vida. Afinal, a transmissão das ondas, que é o espectro eletromagausência de dignidade da pessoa humana ou a absten- nético, o qual paira sobre nossas cabeças, porquanto ção do piso vital mínimo afiguram-se óbices absolutos que o ar é o caminho “pelo qual viajam as ondas elepara a pretendida qualidade de vida. tromagnéticas, as quais transportam um número cada O quarto e último ponto relevante acerca do vez maior de sinais (de rádio, de televisor, de telefone, artigo 225 da CF diz respeito à preocupação de se as- entre outros)”5. Ela é “chamada de portadora porque transporta segurar o direito ao meio ambiente equilibrado para as uma mensagem embutida na variação de sua amplitu presentes e futuras gerações. 4 - Ibid., p. 209. 56


de e na frequência com que oscila. Para alguém transmitir um sinal qualquer basta fazer com que um pulso de corrente elétrica passe por uma antena. Como a energia elétrica pode ser uma corrente alternada – porque está constantemente alternando sua polarização entre positivo e negativo -, no momento em que o pulso é positivo a corrente provoca uma oscilação magnética no campo à volta da antena em certo sentido. Quando o pulso fica negativo, a oscilação é no sentido oposto. Assim, a constância desse movimento alternado cria uma onda” 6. Com isto, temos definida a natureza jurídica das ondas eletromagnéticas como um bem ambiental, difuso, o qual não comporta apropriação, de quem quer que seja, uma vez que de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Sendo de uso comum poder-se-ia cogitar a razoabilidade de as rádios piratas possuírem interesse legítimo na sua utilização. Isto não ocorre pelo fato de que cabe ao Poder Público a administração dos bens ambientais, notadamente para viabilizar a sua utilização em proveito de todos, o que não ocorreria acaso inexistente o controle. A estação pirata pode alterar e adulterar a frequência de captação, gerando distúrbios ao pleno exercício do direito de captação da informação, conforme revela o professor Fiorillo7. O art. 21, XII, da CF, garante à União a administração deste bem ambiental, que tem no povo a sua titularidade. 2.1 Como acima visto, o direito de antena se dinamiza através da transmissão e captação de comunicação, por via de ondas, através do espectro eletromagnético. Inicialmente, a transmissão da comunicação por meio do referido bem ambiental oportuniza o exercício de direito fundamental de brasileiros e estrangeiros residentes no País, quando manifestam os seus pensamentos (art. 5º, IV), quando anunciam suas convicções religiosas, filosóficas, políticas (art. 5º, VIII), ou até mesmo quando propalam suas convicções intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação (art. 5º, IX). É certo que a liberdade de expressão não pode sofrer restrições, senão aquelas ditadas pela própria carta política. Nesse passo, incontroverso se afigura o fato de que o art. 1º da CF, ao tratar dos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito, inibe incursões que violem ou até mesmo ameacem valo-

res concernentes à soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, sociais do trabalho e da livre iniciativa, e que digam quanto ao pluralismo político. Não só, de maneira honesta e, sobretudo, destituída de falsos purismos, sustenta o professor Fiorillo que há perfeita harmonia com o Estado Democrático a circunstância de o texto constitucional estabelecer censura ou limitações à liberdade de expressão, uma vez contido no seu corpo as referidas balizas ao pensamento e consequente propagação das ideias. Assim é que “o conteúdo da comunicação é limitado pelo preceito do art. 221 da Constituição, o que importa dizer que, ao transmitirem sua programação através do espectro eletromagnético, seja através do rádio ou da televisão, todos devem dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. Além disso, devem procurar promover não somente uma cultura nacional, nos moldes estabelecidos pelos arts. 215 e 216 da Carta, como regional, dando particular importância à programação de rádio e televisão, a partir dos Municípios, em face dos assuntos que dizem respeito às necessidades locais, dentro de uma visão constitucional e reiterada pelos incisos I a III do art. 221” 8. Diante desse quadro, observado os limites dispostos no art. 1º, da CF, à transmissão de comunicação por via do espectro eletromagnético, a releitura dos arts. 223 e 222 da Carta Política vai ao encontro do limite de conteúdo, na utilização do bem ambiental, a fim de que seja observada proteção aos valores da soberania, cidadania e dignidade da pessoa humana. Se assim o é, a utilização das ondas eletromagnéticas pressupõe “estudo prévio de impacto ambiental, dentro de um critério destinado a assegurar a todos a proteção do meio ambiente cultural, artificial, do trabalho e natural em face do direito de antena” 9. Desta forma não somente as pessoas jurídicas de direito público ou privado, bem como qualquer cidadão brasileiro nato ou naturalizado há pelo menos dez anos (art. 222, CF), estão vinculados, em face da utilização de um bem ambiental, ao estudo prévio de impacto ambiental, ao qual será assegurada ampla publicidade (art. 225, IV, da CF). 2.2 De outro lado, a utilização das ondas eletromagnéticas se dá por meio da captação da transmissão exercida por qualquer brasileiro ou estrangeiro residente no País, enquanto detentor do direito à informação.

5 - Ibid., p. 211. 6 - Celso Antonio Pacheco Fiorillo. O direito de antena, cit., p. 131. 7 - Ibid., passim. 57


O direito de antena em face da tutela jurídica do rádio e da televisão no âmbito dos direitos difusos Este se concretiza, por vezes, através da utilização do Insere-se, portanto, àqueles que captam transespectro eletromagnético, caso do rádio e da televisão, missões de rádio e televisão no contexto da ordem juos quais possuem característica bastante invasiva. Aí rídica do capitalismo, enquanto tema a ser controlado é que reside eventual ofensa à pessoa em virtude de pelo Estado no tópico concernente à ordem econômica agressão, ocorrida quando da utilização do menciona- e financeira (art. 170 da CF). do bem ambiental, à sua moral ou à sua imagem (art. 5º, V, CF), ou porque violadas pelas transmissões de Definição Legal e Classificação do Meio Ambiente rádio e televisão sua intimidade, vida privada ou honra (art. 5º, X). O artigo 3º, inciso I da Política Nacional do Meio Daí que o espectro eletromagnético desempe- Ambiente (Lei 6.938/81) define o meio ambiente da senha papel informativo da população quando baliza a guinte forma: sua utilização nos limites impostos pelos arts. 215, 216 “Art. 3º. Para os devidos fins previstos nesta lei, e 221, todos da CF, em que se conentende-se por: cebe a formação educacional da I – meio ambiente, o conjunpopulação enaltecendo-se valores to de condições, leis, influências e culturais e morais, observando-se interações de ordem física, químia realidade local, onde se exerce o ca e biológica, que permite, abriga direito à vida. Nesse diapasão, suse rege a vida em todas as suas forO conceito de meio tenta o professor Fiorillo o seguinmas”. ambiente é te: unitário, já que “Isso demonstra novamente Assim, a expressão “meio a importância dos bairros nos Muambiente” tem significado muito todo o sistema nicípios, os quais ganham destaque mais amplo do que comumente se jurídico é regido por conta da proximidade com os imagina, relacionando-se à ideia por princípios, problemas e dificuldades locais e de tudo aquilo que nos circunda. da possibilidade de as necessidaPortanto, o direito ao meio ambiendiretrizes e objetivos des da população serem atendidas te ecologicamente equilibrado não comuns através de serviços via espectro se resume ao âmbito do meio am10 eletromagnético” . biente natural. Em um segundo momento, a Nesse mesmo sentido, a CF captação de mensagens por meio refere-se ao bem ambiental como das ondas eletromagnéticas tambem essencial à sadia qualidade bém sofre controle quando se verifide vida. Dessa forma, não restrinca sob os contornos da publicidade. O CDC dispensou ge o conceito de bem ambiental ao bem natural, posto especial atenção àqueles que captam transmissões de que o bem artificial, cultural, o meio ambiente do trabarádio e televisão cujo conteúdo sinaliza anúncio publi- lho e o patrimônio genético são, também, essenciais à citário em face do seu potencial conteúdo lesivo aos qualidade de vida do homem. interesses da população, enquanto consumidora de Assim, o meio ambiente pode ser dividido em diprodutos e serviços lançados no mercado. A hipótese ferentes aspectos apenas para facilitar a identificação evidencia controle decorrente de disposições prescri- da atividade degradante e do bem agredido. Entretantas no CDC, as quais enaltecem o princípio da verdade to, o conceito de meio ambiente é unitário, já que todo e o da identidade da publicidade (art. 36).11 Em conse- o sistema jurídico é regido por princípios, diretrizes e quência, vedada se encontra a publicidade enganosa objetivos comuns, a teor do que proclama a Política ou abusiva, art. 37, parágrafos 1º e 2º, do CDC. Nacional do Meio Ambiente. De acordo com essa classificação, o ambiente 8 - . Celso Antonio Fiorillo, in Curso de direito ambiental brasileiro, cit., p.213. 9 - Idem, O direito de antena, cit., p. 186. 10 - Cf. Curso de Direito ambiental, p. 215. 11 - Cf. Rizzatto Nunes, in Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, passim. 58


natural ou físico é constituído por solo, água, ar atmosférico, flora e fauna. Já o meio ambiente artificial, por seu turno, é compreendido pelo espaço urbano construído, composto pelo conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e equipamentos públicos (espaço urbano aberto). O meio ambiente cultural é integrado pelo patrimônio cultural que traduz a história de um povo, sua formação e sua cultura, constituindo-se em elementos identificadores da sua cidadania, que é princípio fundamental constitucional. O meio ambiente do trabalho está relacionado ao local de trabalho onde as pessoas desempenham suas atividades laborais, remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores. O patrimônio genético é assegurado nos termos do artigo 225, parágrafo 1º, incisos II e V, da CF: Art.225 (...) Parágrafo 1º: Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...) II – preservar a diversidade e integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (...) V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que com-

portem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Na leitura desse dispositivo, observa-se que a proteção do meio ambiente não está vinculada apenas à vida humana, mas à vida em todas as suas formas, revelando, mais uma vez, a posição antropocêntrica da Constituição Federal de 1988. Conclusão O enquadramento do direito de antena vocacionado ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, propiciador de uma sadia qualidade de vida, tanto desta quanto das futuras gerações, passa, necessariamente, pelo diálogo com os demais bens ambientais a partir da análise, como a acima feita, dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito (positivados no art. 1º, da CF). Assim, temos que o controle estatal dos bens ambientais ocorre, no plano teleológico, a partir das normas fundamentais, cujo implemento, dentre outras medidas (busca ao judiciário pela via da ação popular ou das tutelas coletivas, iniciativa popular etc.), se verifica através do estudo prévio de impacto ambiental, o qual, além de assegurar a concretude do princípio da prevenção, possibilita a participação dos interessados (o brasileiro ou o estrangeiro residente no nosso país) por meio da publicidade de suas conclusões (RIMA – Relatório do Impacto Ambiental). À sociedade cabe vigiar, de forma perene, a utilização dos bens ambientais.

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Direto ao ponto ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL: CAMINHO TORTUOSO NO CONGRESSO

*Luiz Alberto Silva dos Santos O tortuoso percurso legislativo do Estatuto da Igualdade Racial começou em 07 de junho de 2000. O então deputado federal Paulo Paim (PT/RS) apresentou o Projeto de Lei 3198/2000 na Câmara dos Deputados. Este texto trata, por exemplo, de questões como reparação, saúde da população negra, direitos das comunidades remanescentes dos quilombos, da presença da população negra nos meios de comunicação e assistência judiciária. O PL 3198/2000 é anterior à III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, que aconteceu em setembro de 2001, na cidade sul-africana de Durban, evento ao qual estive presente na condição de deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores. O impacto de Durban sobre esse texto inicial do Estatuto da Igualdade Racial foi fundamental para as versões seguintes da proposição. Em primeiro lugar, o Brasil pós-Durban assumiu um compromisso enquanto Estado, ao tornar-se signatário da Declaração e do Plano de Ação da III Conferência. O Plano de Ação de Durban apresenta o combate ao racismo como responsabilidade primordial do Estado. O artigo 99 é explícito e “incentiva os Estados a desenvolverem e elaborarem planos de ação 60

nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, equidade, justiça social, igualdade de oportunidades e participação de todos, através, dentre outras medidas, de ações e estratégias afirmativas ou positivas”. Em segundo lugar, após assinar a Declaração de Durban o Estado brasileiro se comprometeu a adotar, oficialmente, medidas que efetivem a equidade e a implantação de políticas públicas. Um compromisso assumido perante a comunidade internacional. A Declaração de Durban classificou a escravidão e o tráfico de escravos como crimes contra a humanidade e também reconheceu que os africanos e os afro-descendentes foram e continuam sendo vítimas desses crimes. Assim, as políticas públicas de ações afirmativas são uma maneira de saldar a histórica dívida com os descendentes de africanos escravizados no território brasileiro. O PL 3198/2000 foi debatido, a partir de então, sob essa nova perspectiva: uma proposição que, na medida do possível, seria um instrumento para regulamentar um conjunto de ações que já tinham amparo legal para serem estabelecidas em nosso país. Segundo a pesquisadora Rosana Heringer, numa avaliação da conjuntura pós-Durban publicada no Observatório da Cidadania-Brasil (Ibase, 2002): “O tema ganhou finalmente relevância no debate público nacional, e é necessário agora que sejam instituídas políticas permanentes destinadas a reduzir as desigualdades raciais e ampliar as oportunidades para grupos historicamente discriminados”. Neste novo ambiente, em junho de 2002, foi constituída uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados para proferir parecer ao PL 3198/2000. O relator da matéria foi o então deputado federal Reginaldo Germano (PP/BA). Houve, então, uma grande mobilização social – da qual fiz parte – para debater o Estatuto da Igualdade Racial. Os resultados da maior visibilidade, da pressão popular, do debate ampliado, da qualificação e do embasamento pós-Durban estão presentes no Relatório aprovado pela Comissão Especial, em dezembro de 2002. O substitutivo ao PL 3198/2000 está pronto para a pauta do Plenário da Câmara. Já integrou a Ordem do Dia em 2003, em 2004 e em 2005. Mas nunca foi


“As ações afirmativas permitem que as fronteiras negativas sejam menos evidentes, produzindo um novo patamar de inserção que, em médio prazo, pode tornar a sociedade brasileira menos desigual”

votado. Ainda em 2003, já no Senado Federal, o senador Paulo Paim (PT/RS) apresentou nova versão do Estatuto da Igualdade Racial. Após aprovada no Senado, a matéria chegou novamente à Câmara dos Deputados, iniciando nova tramitação como Projeto de Lei 6264/2005. Em 2005, 2006 e 2008, Atos da Presidência da Câmara criaram Comissões Especiais para proferirem Parecer, mas não chegaram a ser constituídas. Finalmente, em 2008, uma nova Comissão Especial foi constituída e, em setembro de 2009, aprovou-se o substitutivo do relator Antonio Roberto (PV/MG). A matéria ainda deve ser apreciada no Senado Federal. Este difícil e lento caminho legislativo diz muito sobre a Câmara dos Deputados brasileira. Bancadas conservadoras como a ruralista e os Partidos DEM e PSDB são notórios opositores do Estatuto. Questionam sua constitucionalidade, legalidade e o acusam de tentar “racializar” o País. Na verdade, são opositores das mudanças de status quo para mais de 90 milhões de brasileiros e brasileiras. O Estatuto, quando aprovado, vai estabelecer definitivamente um conjunto de políticas públicas em diversas áreas estratégicas, como saúde, educação, comunicação, acesso à terra e garantias para comunidades remanescentes de quilombos, dentre outras. O Estatuto realmente mudaria o País se fosse aprovado como foi originalmente debatido e melhorado no início

da tramitação. Nesta nova conjuntura, a invisibilidade do tema foi completamente superada, mas revelouse perniciosa para os que defendem a promoção da igualdade racial no Brasil a partir de políticas de Estado. A bancada conservadora assistiu impotente ao crescimento das cotas, ao enraizamento de políticas públicas e reagiu onde poderia, ainda: na Câmara dos Deputados. A bancada ruralista, alguns setores contrários às cotas nas universidades, a grande mídia e outros representantes das elites é que fizeram a pressão que resultou na atual versão do Estatuto, o substitutivo do relator, deputado federal Antonio Roberto (PV/MG). O texto atual está muito desfigurado, mutilado em relação ao texto original. Tenho sido um dos defensores históricos do Estatuto da Igualdade Racial, mas temo que o conteúdo aprovado resulte numa lei que não vai cumprir seu objetivo original. No final das contas, o que acontece é que nem o PL 3198/2000, que iniciou a tramitação na Câmara, nem o PL 6264/2005, que iniciou a tramitação no Senado, foram aprovados. É preciso registrar que o Governo Lula, com todos os percalços e críticas que possam advir – seja dos movimentos sociais ou das elites – avançou mais em relação às possíveis iniciativas decorrentes do Plano de Ação de Durban do que seus antecessores. Mas o PROUNI, a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), as cotas na maioria das instituições federais de ensino, o Programa Integral de Saúde da População Negra, a inédita visibilidade negra nas peças publicitárias de governo – em constância e qualidade –, assim como outras iniciativas contempladas no Estatuto da Igualdade Racial, não são políticas de Estado. Devemos ressaltar que não apenas o Governo Federal, mas diversos governos estaduais e municipais constituíram e implementam, desde 2001, órgãos como a Secretaria de Promoção da Igualdade do Estado da Bahia e a Secretaria Municipal de Reparações, só para citar exemplos próximos do povo baiano. Organismos como estes e políticas públicas de ações afirmativas se espalham pelo território nacional, mas dependem da vontade política de cada gestor público e não do 61


Estatuto da Igualdade Racial: Caminho tortuoso no congresso

cumprimento de dispositivos legais. O principal objetivo do Estatuto é transformar em política de Estado a promoção da igualdade racial no Brasil, ou seja, não importa quem esteja no governo, com a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial a lei deverá ser cumprida. Vale registrar o esforço da bancada negra do PT, através do Núcleo de Parlamentares Negros e Negras, desde que o primeiro Estatuto começou a tramitar. Nós, parlamentares negros, realizamos diversas audiências públicas e outros eventos de discussão, reuniões com ministros e ministras de diversas pastas, enfim, nos articulamos politicamente. Trabalhamos há quase uma década para que o Estatuto seja apreciado, votado e aprovado no Congresso Nacional, de acordo com as demandas da população negra. Entretanto, ressalte-se que os benefícios de promoção da igualdade atingiriam toda a sociedade, na medida em que o Estatuto da Igualdade

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Racial pode funcionar como um instrumento efetivo de diminuição das diferenças raciais e sociais. Ao contrário do que pregam alguns especialistas, alinhados com alas conservadoras do Congresso Nacional e que atacam as cotas e outras políticas de ações afirmativas, as políticas públicas de promoção da igualdade racial não traçam fronteira alguma que já não exista. As ações afirmativas permitem que as fronteiras negativas sejam menos evidentes, produzindo um novo patamar de inserção que, em médio prazo, pode tornar a sociedade brasileira menos desigual. Alguns, evidentemente, são avessos a essas mudanças.

* Luz Alberto Silva dos Santos Deputado Federal – PT, ex- secretário da Igualdade Racial


Sentença AÇÃO DE EXECUÇÃO

João Batista Pereira Pinto Juiz de Direito Titular Vara cível, Comarca de Guanambi-Bahia

xxxxxxxxxxxxxxxxx, devidamente qualificado nos autos, através de advogado(s) habilitado(s), ingressou, neste juízo, com a presente Ação de Execução de Título Extrajudicial em face de xxxxxxxxxxxxxxxxxx, também qualificado(s), alegando, em síntese: Que é credor(a) do(a) Executado(a) da importância de R$ 33.520,89 (trinta e três mil, quinhentos e vinte reais e oitenta e nove centavos), razão da emissão das Notas Promissórias juntadas às fls. 06 e 09, vencidas em 17/04/1995. Em 10/02/2007 foi proferido despacho, às fls. 61, determinando a intimação da parte Exequente para manifestar interesse no feito. Diante disso, a parte Exequente, por seu advogado, juntou petição às fls., 62 requerendo avaliações dos bens penhorados. A parte Executada propôs agravo de instrumento, entretanto o recurso supramencionado foi negado, uma vez que o mesmo não possuía a certidão de intimação da decisão. O processo ficou paralisado desde o seu último ato, em 02/04/2001. É o relatório. Decido: Trata-se de Ação de Execução de Título Extrajudicial. A petição inicial desta ação foi protocolizada em cartório, na data de 30/06/1995. Foram praticados atos processuais neste processo até a data de 02/04/2001, sendo o último ato o despacho de fls. 61. A parte Exequente, após anos e anos de paralisação do feito, limitou-se a protocolar petição em cartório, porém, a simples manifestação processual não produz o efeito jurídico para interromper a prescrição,

efeito que só ocorre na forma prevista no artigo 219 e parágrafos do CPC e no artigo 202 do CC. O prazo prescricional para o ajuizamento da ação de execução de nota promissória é de três anos. Vejamos a ementa abaixo, de decisão em caso semelhante ao dos autos: Execução – nota promissória – prescrição – decreto n. 57.663/66 – Reconhecimento de ofício – possibilidade – contrato – cobrança do crédito via ordinária – independência dos títulos – I- Incidindo o prazo prescricional de 03 (três) anos decorrente da Lei Uniforme, conforme previsão do art. 70, do Decreto nº 57.663/66, aplicável aos títulos executivos extrajudiciais, reconhece-se a incidência da prescrição intercorrente, uma vez paralisados os autos por mais de quinze anos, sem motivo plausível, sobretudo à vista da circunstância de que restou frustrada, por motivo de paradeiro ignorado, a tentativa de penhora dos bens do avalista, único citado na demanda, a sinalizar a não eficácia de atos executórios futuros. II- Não obstante a ausência de autorização legal, à época, do reconhecimento de ofício da prescrição pelo juízo, em se tratando de direito patrimonial, providência que, apenas ad argumentandum tantum, já se justificaria eventualmente na tarefa judicante de estabilização do conflito imposta pelo princípio da segurança jurídica, hoje, de qualquer sorte, essa discussão não mais convém, vez que com o advento da Lei nº 11.280/2006, que deu nova redação ao art. 219, §5º, do CPC, autorizado está, desde então, o reconhecimento ex officio da prescrição, inclusive, pelo juízo ad quem. III- Em que pese a ausência nos autos do contrato de empréstimo a sustentar a alegação de que se trata de execução de contrato e não de cártula cambiária, é certo que, o reconhecimento da prescrição das notas promissórias vinculadas a contrato de financia63


Ação de Execução

mento não retira, por si só, a eficácia deste como título citação do(s) Executado(s) (interrupção da prescrição), executivo extrajudicial, a ensejar a cobrança do crédito todavia, o processo prosseguiu seu curso regular até via ordinária (CF. STJ, RESP 1817, terceira turma, Min. a data de 02/04/2001, quando ficou paralisado até a Gueiros leite, j. 17/04/90, p. 28/05/90, pág. 4731; TRF presente data sem qualquer outra causa interruptiva da 4ª região, terceira turma, AC 199904010127934, des. prescrição, por mais de 08 (oito) anos. Paulo Afonso, j. 24/02/2000, p. 19/04/2000, pág. 69; Durante o prazo de paralisação deste processo TRF 1ª região, terceira turma, AC 01204460, juiz tou- não ocorreu qualquer outra causa de suspensão ou inrinho neto, d. 09/12/1991, p. 19/12/1991, pág. 32890). terrupção da prescrição intercorrente que se verifica (TRF 2ª R. – AC 98.02.17123-9 – 7ª T. – Rel. Des. Fed. no mesmo prazo de prescrição da ação de execução. Sergio Schwaitzer – DJU 16.01.2008 – p. 122) No caso dos autos – nota promissória – ,o prazo Frente ao que dispõe o §5º, artigo 219, do CPC, prescricional é de três anos e o processo ficou paralirevela-se intransponível o exame desses autos em face sado no Cartório Cível desta comarca, sem qualquer do instituto da prescrição incidente iniciativa do Exequente, por prazo no presente caso e do que prescresuperior ao que se verifica na presve o artigo 329 do mesmo diploma crição do título exequendo. legal. A prescrição, como se sabe, Consoante entendimento já é instituto de direito material e tem firmado nos executivos fiscais, aqui as causas de suspensão e interrupA prescrição, adotado em parte na mesma linha ção previstas nos artigos 197 e 202, como se sabe, é de raciocínio, tendo decorrido prarespectivamente, do CC/2002. instituto zo superior a cinco anos, sem imPor seu turno, o parágrafo pulsionamento válido da execução único do artigo 202 também prede direito material pelo credor, impõe-se a decretação ceitua: e tem as causas da prescrição intercorrente. “A prescrição interrompida de suspensão e É de se ressaltar que o prarecomeça a correr da data do ato zo prescricional flui normalmente que a interrompeu ou do último ato interrupção previstas da data do seu termo inicial, se indo processo para interrompê-la”. nos artigos 197 e 202 terrompe ou se suspende, porém, O Código Civil, portanto, é volta a correr após a data do ato preciso no que concerne ao termo que deu causa à interrupção ou em que reinicia o prazo prescriciosuspensão. nal, ou seja, último ato que a interNa verdade, a eternização do rompeu ou último ato do processo processo não condiz com o nosso para interrompê-la. sistema jurídico. Esse entendimento é pacífico e já se encontra É que trata-se de matéria de ordem pública, de sumulado pelo STJ, ao aplicá-lo às execuções fiscais: segurança jurídica e cujo escopo é o interesse social. 314 - Em execução fiscal, não localizados bens Ou ainda como afirma Yussef Said Cahali: penhoráveis, suspende-se o processo por um ano, fin“Em resumo, justificam a prescrição o interesse do o qual se inicia o prazo da prescrição quinqüenal social em que as relações jurídicas não permaneçam intercorrente. indefinidamente incertas; a presunção de que quem Por outro lado, não se pode argumentar afirmandescura do exercício do próprio direito não tinha von- do ter ocorrido desídia ou omissão do cartório, posto tade de conservá-lo; a utilidade de punir a negligência; que todos os atos de incumbência deste foram praticae a ação deletéria do tempo que tudo destrói”.(Pres- dos no tempo devido, restando ao Exequente o cumpricrição e decadência, Yussef Said Cahali, Ed. Rev. dos mento de diligências que lhe incumbiam, permanecenTribunais, p. 19). do os autos deste processo no cartório, sem qualquer No caso sob exame, temos a incidência da deno- manifestação da parte, demonstrando o mais pálido minada prescrição intercorrente porque verificada no interesse no prosseguimento do mesmo. curso do processo. Também não se pode afirmar ter a parte ExecuNa verdade, a prescrição foi interrompida com a tada dado causa à paralisação do feito porque inexis64


tente qualquer ato comprobatório neste sentido. determinada pela Lei nº 11.280, de 16-02-2006, viAssim dispõe o nosso Código de Processo Civil gente a partir de 17-05-2006, impõe-se decretar de em vigor: ofício a prescrição quando a parte é silente a esse Art. 219. A citação válida torna prevento o juí- respeito. (TRT 12ª R. – RO 00968-2006-030-12-00-6 zo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa; e, ainda – (00896/2007) – Rel. Juíza Lília Leonor Abreu – DJU quando ordenada por juiz incompetente, constitui em 11.12.2006) mora o devedor e interrompe a prescrição. Direito Processual Civil – Embargos à Execução § 5º O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição. – Débito Judicial – Nulidade da Execução – Ausência (Redação dada ao parágrafo pela Lei nº 11.280, de – Prescrição – Súmula 150/Stf – Prazo Qüinqüenal – 16.02.2006, DOU 17.02.2006, com efeitos a partir de Ocorrência – Sucumbência. 1. Rejeitada a preliminar 90 (noventa) dias após a data de de nulidade da Sentença, pois nos sua publicação.) termos do § 5º do artigo 219 do CóAqui, vê-se a ordem imperadigo de Processo Civil, com a retiva, de natureza processual, para dação da Lei nº 11.280/06, a presque se aplique a norma de naturecrição, enquanto matéria de ordem Não se pode za material incidente na hipótese – pública, deve ser decretada de a prescrição. ofício pelo juízo, em qualquer fase afirmar ter a parte Merece seja demonstrada do processo, com aplicação imeExecutada dado aqui a farta jurisprudência sobre a diata aos feitos em curso, na forcausa à paralisação matéria, posto que revela entendima da jurisprudência do Superior mento já manifestado no âmbito traTribunal de Justiça. 2. A execução do feito porque balhista, civil e tributário(execuções de sentença sujeita-se ao mesmo inexistente qualquer fiscais): prazo de prescrição da ação em ato comprobatório Prescrição – Alteração Leque constituído o título judicial (Súgislativa – Reconhecimento de Ofímula 150/STF), afastada a regra neste sentido cio – Tempus Regit Actum – A partir de redução do prazo, prevista no da vigência da Lei 11.280/06, que artigo 9º do Decreto nº 20.910/32, alterou a redação do art. 219, §5º que trata apenas dos casos de indo CPC, tem-se que cumpre ao juiz terrupção anterior no mesmo propronunciar de ofício a prescrição, cesso. 3. Proposta depois do prazo devendo-se ressaltar que a alterade cinco anos, contado da data do ção legislativa é de âmbito processual, prevalecendo a trânsito em julgado da condenação, encontra-se presregra tempus regit actum, o que significa dizer que esta crita a ação de execução da sentença. 4. Sentença tem efeitos imediatos sobre a ação em curso. (TRT 20ª mantida com relação ao reconhecimento de ofício da R. – RO 01019-2005-012-20-00-7 – Rel. Des. Suzane prescrição, e no tocante à fixação da verba honorária, Faillace Lacerda Castelo Branco – J. 20.09.2006) tendo em vista que os processos de conhecimento e Prescrição – Falência. Pedido formulado em de execução são autônomos, e a condenação em 10% 14.08.98. Citação válida que interrompeu a prescrição sobre o valor atualizado da causa encontra-se ajustada na data da propositura da ação. Transcurso, desde en- à jurisprudência da turma, em consideração ao artigo tão, de prazo superior a 3 (três) anos (artigo 18, inciso 20, § 4º, do Código de Processo Civil. 5. Precedentes. I, da Lei nº 5474/68). Prescrição decretada de ofício. (TRF 3ª R. – AC 2005.61.00.010155-1 – (1233046) – 3ª Exegese do artigo 219, § 5º, do CPC. Decreto de extin- T. – Rel. Des. Fed. Carlos Muta – DJU 09.01.2008 – p. ção mantido. Recurso improvido. (TJSP – AC 430.957- 228) 4/2-00 – Ribeirão Preto – Rel. Des. Romeu Ricupero Execução Fiscal – Imposto de Renda – Paralisa– J. 28.06.2006) ção por Prazo Superior a 5 anos – Prescrição IntercorPrescrição – Argüição de Ofício – Art. 219, § 5º, rente Declarada de Ofício – Inexistência de Decisão de DO CPC – A partir da data em que entrou em vigor Arquivamento – Suficiência da Decisão que Suspende o novo regramento do instituto prescricional, consubs- a Execução – Súmula 314-Stj – Apelação Improvida tanciado no § 5º do art. 219 do CPC, com a redação – 1. A Execução Fiscal foi protocolada em 14.05.98; 65


Ação de Execução

em 15.05.00, foi determinada a suspensão do feito nos termos do art. 40, da LEF (fls. 23); em 30.01.07, determinou-se a intimação da parte exeqüente para se manifestar sobre a possibilidade de consumação da prescrição (fls. 28); em 03.07.07, sobreveio sentença decretando a prescrição intercorrente. 2. Se a exeqüente deixar de movimentar o processo por mais de 5 anos, não pode tal falta ser imputada ao Poder Judiciário, se este praticou todos os atos que lhe competiam. 3. Sedimentando tal entendimento, a Súmula 314/STJ definiu que, em Execução Fiscal, não localizados bens penhoráveis, ao término da suspensão do processo por um ano reinicia-se o prazo da prescrição qüinqüenal intercorrente. 4. Após a suspensão da Execução por um ano, tem início a prescrição intercorrente, nos termos da Súmula 314-STJ, não se exigindo despacho de arquivamento para que a prescrição se inicie, sendo bastante para tanto a consumação da mencionada suspensão; a decisão de suspensão do feito é suficiente para posterior fluência e aferição do lapso prescricional intercorrente. (STJ, RESP. 613.685-MG, Rel. Min. Castro Meira, DJU 07.03.05, p. 216). 5. Ressaltese, ainda, que em razão das alterações decorrentes da Lei 11.280/06, o Juiz pronunciará de ofício a prescrição

(art. 219, §5º, do CPC), e que a mencionada Lei revogou a vedação a que o Julgador suprisse a alegação de consumação do lapso prescricional, oriunda do art. 194, do CC/2002. 6. Apelação improvida. (TRF 5ª R. – AC 2007.81.02.000108-5 – 2ª T. – CE – Rel. Des. Fed. Manoel de Oliveira Erhardt – DJU 21.01.2008 – p. 669). Por tudo quanto foi expendido, concluo que no presente caso não resta outra via senão decretar, de ofício, a incidência da prescrição, em cumprimento a determinação contida no §5º, artigo 219, do CPC. Posto Isso, e considerando tudo o mais que dos autos constam, julgo Extinto este Processo, e o faço com resolução do mérito, com fulcro no §5º, artigo 219, e artigos 269, inciso IV, 329, do CPC c/c os artigos 197 e 202 do Código Civil de 2002. For força desta sentença, cujos efeitos abrangem o processo em apenso, fica também extinto o processo n° xxxx/xxxx. P.R.Intime-se. Arquivem-se os autos com baixa após o trânsito em julgado.

GUANAMBI, 2 de setembro de 2009.

Notícias FGV e EMAB oferecem curso de extensão sobre juros

Com intuito de oferecer aos alunos das escolas de magistratura de todo país conhecimentos a respeito dos aspectos econômicos e jurídicos decorrentes das taxas de juros, a Fundação Getúlio Vargas – FGV e a Escola de Magistrado da Bahia – EMAB promoveram o curso de extensão “Juros – Aspectos Econômicos e Jurídicos”. As aulas foram ministradas na sede da EMAB, entre os dias 23 e 26 de novembro. O curso que é devidamente cadastrado na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) foi desenvolvido em parceria com Programa de Especialização e Educação Continuada – Gvlaw e o Instituto Brasileiro de Ciências Bancárias (IBCB).

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Artigo DIREITO AO SOBRENOME DO PADRASTO OS NOVOS CONTORNOS DA FILIAÇÃO AFETIVA Jamille Pinheiro Freire Lima Advogada

Servidora do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e aluna da EMAB

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presente trabalho visa à análise e discussão das inovações trazidas pela Lei nº. 11.924, que alterou dispositivos da Lei de Registros Públicos, permitindo ao enteado requerer ao juiz competente que, no seu registro de nascimento, seja averbado o patronímico do padrasto ou madrasta, desde que haja expressa concordância destes, e sem exclusão dos seus sobrenomes de família. O nome civil é o elemento que individualiza e identifica a pessoa na família e na sociedade. Sendo, pois, de fundamental importância o direito personalíssimo à identidade, especialmente quando envolve a criança ou o adolescente, pessoas ainda em formação. O Código Civil Brasileiro assegura proteção jurídica ao nome por tratar-se de um direito da personalidade que resguarda a dignidade da pessoa humana. Excepcionalmente, a Lei de Registros Públicos admite a alteração do nome, motivadamente, desde que não cause prejuízos para terceiros. Todo nascimento ocorrido no território nacional deverá ser levado a registro nos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais. Todavia, nem sempre o nome civil representa o aspecto afetivo que o seu titular vivencia, ficando limitado ao aspecto biológico da concepção. Conceitualmente a filiação é definida como a relação de parentesco consanguíneo, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, podendo, ainda, tal relação decorrer de inseminação artificial e adoção. A Constituição Federal de 1988 deu nova feição ao conceito de família, ampliando, consequentemente, o conceito de filiação, ao reconhecer a força do afeto

que une seus membros, mesmo inexistindo entre eles o vínculo sanguíneo. Os laços afetivos que unem pais e filhos, ausente o vínculo biológico, cunhou a paternidade socioafetiva, que se caracteriza pelo cuidado e proteção aos direitos e interesses da criança e do adolescente. Diante dos novos arranjos familiares, a Lei nº. 11.924, de 17 de abril de 2009, traz significativa inovação ao conceito de família à medida que procura dar enfoque jurídico a uma situação de fato, permitindo que o enteado usufrua de um nome condizente com sua realidade doméstica e familiar.

O nome O nome é de fundamental importância para a pessoa, uma vez que a identifica e individualiza dos demais membros da sociedade. Constitui um direito da personalidade, relacionado diretamente com o princípio da dignidade da pessoa humana. O nome compreende prenome, escolhido pelos pais no momento do registro do nascimento, e o sobrenome é formado a partir dos patronímicos dos pais, indicando, pois, sua procedência familiar. O Código Civil, nos artigos 16 a 19, expressamente tutelou o nome civil como extensão à tutela jurídica dos direitos da personalidade, cabendo ação indenizatória quando usado indevidamente. Recebe proteção jurídica não só o nome, mas também o pseudônimo. Este usado para a ocultação da identidade, geralmente de artistas, poetas, escritores e jornalistas. O nome, enquanto direito da personalidade, traz consigo algumas características: é inato ou originário, 67


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ou seja, é adquirido ao nascer, independentemente de anteriormente à celebração do matrimônio. qualquer vontade; irrenunciáveis, imprescritíveis, inaLogo, era de fundamental importância o estado lienáveis, indisponíveis, absolutos etc. Entretanto, sua civil dos pais, pois isso determinava a aquisição ou não principal característica é a imutabilidade relativa. do status de filho legítimo, que merecia ser protegido A Lei de Registros Públicos, em seu artigo 56, pelo Direito de Família. estabelece que a pessoa interessada, no primeiro ano Essa concepção unívoca da família cunhou a após ter completado a maioridade civil, poderá alterar expressão “paternidade jurídica”, onde eram consideseu nome, sem prejuízo dos sobrenomes de família e rados legítimos tão-somente os filhos nascidos da reladesde que não cause prejuízo a terceiros. ção de casamento ou aqueles cuja filiação pudesse ser Nos demais casos, apenas excepcionalmen- presumida, observadas algumas circunstâncias. te a Lei de Registros Públicos admite a alteração do Surgiu, então, a presunção legal da paternidade, nome. São algumas as situações ante a natural incerteza desta. Se em que é possível a alteração do o casamento pressupõe, dentre prenome e do sobrenome: quando outros, os deveres de coabitação existir erro gráfico, quando expuser e fidelidade, logo, o filho da mulher a pessoa ao ridículo ou a situação casada era do marido. Assim, a Se o casamento vexatória, para incluir apelido púfiliação era presumida legítima se blico notório, por força da adoção; o parto acontecesse, no mínimo, pressupõe, dentre pelo casamento, quando um dos nucento e oitenta dias da data em outros, os deveres de bentes opta por usar o patronímico que foi celebrado o matrimônio ou, coabitação e do outro; pela separação judicial ou no máximo, trezentos dias após a sua dissolução. divórcio, voltando o indivíduo a usar fidelidade, logo, Posteriormente, os avanços seu nome de solteiro; para inclusão o filho da mulher tecnológicos e científicos, espede sobrenome familiar porventura casada cialmente na área da genética, ignorado quando da lavratura do permitiram definir com precisão a registro, pela união estável e, mais era do marido relação de parentesco porventura recentemente, para averbar o nome existente entre duas pessoas. A do padrasto ou da madrasta. análise das cadeias de DNA posA Lei nº. 9.807, de 13 de julho sibilitou o conhecimento da pade 1999, que regulamenta a proternidade com 99% de acerto no teção à vítima e à testemunha que resultado; fazendo brotar a ideia houver colaborado em processo ou inquérito policial, dispõe que poderá a testemunha, de “paternidade biológica” ao lado da concepção de bem como seu cônjuge, ascendentes e descendentes, “paternidade jurídica” do Código Civil de 1916. O contínuo avanço científico, através da utilialterar seu nome por questão de segurança. zação das técnicas de reprodução assistida, suscitou Esboço das relações familiares no Brasil questionamentos também acerca da definição da paternidade utilizando-se apenas critérios biológicos. SeAo regulamentar as relações familiares, o Códi- não vejamos: aquele que doa material genético para go Civil de 1916 elegeu o casamento como único meio um banco de sêmen será o pai da futura criança? Nas para a constituição da família e a concepção dos fi- hipóteses de barrigas de aluguel, mãe é aquela que dá lhos. à luz? Apenas os filhos havidos do casamento eram Diante desses casos, mesmo o critério biológico, reconhecidos como legítimos, ficando excluídos da aparentemente tão seguro para definir a paternidade, proteção do Estado os relacionamentos fora do casa- passou a ser contestado. mento ou havidos entre pessoas impedidas de casar No tocante à filiação, a Constituição Federal de e, consequentemente, os filhos originados dessas re- 1988 promoveu avanço significativo à medida que pôs lações. O casamento tinha ainda o condão de legitimar fim às diferenças existentes entre os filhos havidos os filhos, de casais solteiros, nascidos ou concebidos dentro ou fora do casamento, estendendo a “filiação” 68


àqueles que até então eram tidos como filhos “ilegí- se pode negar. timos”. Essa nova ordem constitucional promoveu a Recentemente a Lei nº. 11.340, de 07 de agosto “constitucionalização” do Direito Civil e, consequente- de 2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, em mente, reformulou o Direito de Família. seu artigo 5º, inciso II, ampliou ainda mais o conceito A Constituição Federal de 1988 definiu as bases de família ao defini-la como “a comunidade formada para um novo conceito de filiação ao estabelecer a por indivíduos que são ou se consideram aparentados, igualdade entre todos os filhos, inclusive, os adotivos. unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade Ampliou, ainda, o conceito de família com o reconhe- expressa”. cimento de novas entidades familiares que não proveEsse dispositivo legal reconhece expressamente nientes do casamento e igualou homens e mulheres a parentalidade, e mesmo a paternidade socioafetiva, em direitos e deveres. na medida em que admite na definição de família pesVisando atender ao melhor interesse da criança soas que se consideram parentes, unidas, ainda que e do adolescente, a Constituição exclusivamente, pela afinidade e Federal de 1988 definiu, ainda, as pelos laços de afeto. bases da doutrina de proteção intePosse do estado de filho gral à criança e ao adolescente, reO afeto e a conhecendo e assegurando direitos A posse do estado de filho solidariedade que lhes são próprios, tais como consiste na relação afetiva, íntima direito à vida, cultura, alimentação, passam a ganhar e duradoura existente entre pessodignidade, convivência familiar e papel de destaque por as que agem como pai e filho, incomunitária, saúde e educação. dependentemente da existência de Como consequência da douserem elementos vínculos biológicos ou jurídicos. trina da proteção integral, o afeto e essenciais no O instituto da posse do estaa solidariedade passam a ganhar do de filho surgiu com o intuito de novo modelo papel de destaque por serem elevalorizar o caráter sociológico da mentos essenciais no novo modelo de família filiação, que se revela no comporde família consagrado pela Constitamento dos pais que assumem as tuição Federal de 1988. funções de educação e proteção A relevância jurídica do afeto dos filhos, sem que o vínculo biolóque une pais e filhos, mesmo inegico seja primordial. xistindo entre eles o vínculo biolóÉ, este instituto, requisito esgico, e que assegura à criança e sencial à caracterização da paterao adolescente o pleno desenvolvimento físico, moral, intelectual, espiritual e social lan- nidade socioafetiva, e decorre da convivência diária no seio familiar, sendo fortalecida pelos laços de afeto, çou as sementes da “paternidade afetiva”. A paternidade afetiva ou socioafetiva é aquela solidariedade e cooperação existentes entre os seus que, apesar de inexistir vínculo biológico unindo o fi- membros. A posse do estado de filho se caracteriza por lho ao pai, permite que este cuide, proteja, alimente, eduque, participe do crescimento físico, mental e mo- três requisitos: • o nome − que consiste no uso do patronímico ral daquele, assegurando-lhe o pleno desenvolvimento do pai pelo filho e não é requisito obrigatório para concomo ser humano. Não obstante o respaldo constitucional dado ao figuração da posse do estado de filho; • o trato − diz respeito ao tratamento a ser dado afeto e à solidariedade, a paternidade socioafetiva, diferentemente das paternidades jurídica e biológica, pelo pai ao filho, com a manifestação do afeto que permeia a relação paterno-filial; não foi positivada pelo Direito brasileiro. • a reputação ou fama – que representa a maneiBuscando legitimar a paternidade socioafetiva, criou-se o instituto da posse do estado de filho com a ra como o filho é visto no meio social, isto é, a notoriefinalidade de trazer para o mundo jurídico a paternida- dade social da filiação. Para caracterizar a posse do estado de filho os de socioafetiva como uma realidade social que já não 69


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critérios reputação e trato são suficientes, uma vez que tais elementos demonstram o caráter sociológico da filiação, revelado no comportamento dos pais de bem cuidar dos filhos.

relação de amor e afeto existente entre os filhos e seus pais biológicos se estendem aos padrastos e madrastas daqueles. Logo, o motivo ensejador do pedido de inclusão do sobrenome do padrasto ou da madrasta ao sobreA lei 11.924, de 17 de abril de 2009. nome do enteado, de que trata a Lei nº. 11.924, diz respeito à relação de afinidade, afeto e cooperação Em 17 de abril de 2009 o presidente Luiz Inácio existente entre eles e não somente ao escasso ou mau Lula da Silva sancionou a Lei nº. 11.924, originada do relacionamento com o pai biológico. Projeto de Lei 206/2007, de autoria do deputado CloO acréscimo do patronímico do padrasto ou madovil Hernandez, falecido em 16 de março deste mes- drasta ao nome do filho afetivo está inserido em um mo ano, que permite aos enteados contexto familiar, em face dos noadotarem o nome de família do pavos arranjos familiares que se estadrasto ou da madrasta. belecem diariamente na sociedade, A Lei nº. 11.924 acrescenta o e se constitui em um dos elemenA nobre e afetuosa parágrafo 8º ao artigo 57 da Lei nº. tos caracterizadores da posse do atitude do padrasto ou 6.015, de 31 de dezembro de 1973, estado de filho que vivenciam, qual conhecida como “Lei de Registros da madrasta ao dar seu seja, o nome. Públicos”, assegurando ao enteado Relevante salientar a nobre e nome de família o direito de requerer ao juiz da Vara afetuosa atitude do padrasto ou da aos filhos, seus ou de de Registros Públicos ou ao juiz madrasta ao dar seu nome de facompetente nas comarcas onde outros, visando com tal mília aos filhos, seus ou de outros, não existir a Vara de Registros visando com tal gesto assegurar gesto assegurar as Públicos, que em seu assento de as condições para que estes poscondições para que estes sam crescer com dignidade, tendo nascimento seja averbado o sobrenome do padrasto ou da madrasta, respeitados e observados todos os possam crescer com sem que haja alteração no seu pródireitos que são essenciais à sua dignidade prio nome de família. formação. Na justificativa do projeto, A parte legítima para requeClodovil Hernandez pretendia berer a retificação do assento de nasneficiar as pessoas que, já tendo cimento, o enteado, admissível a passado por mais de um casarepresentação e assistência nas himento, criam os filhos dos seus companheiros como póteses previstas legalmente, intentará a ação perante se fossem seus próprios pais ou mães. Para o então juiz competente para tal fim. Estabelece a nova lei que deputado, não se podia ignorar a relação de afinidade tal procedimento deverá observar os dispositivos conssurgida entre os enteados e a madrasta ou o padras- tantes da Lei de Registros Públicos. to, que “essas pessoas dividem uma vida inteira e na A Lei de Registros Públicos dispõe em seu artigo grande maioria dos casos têm mais intimidade com o 57 que “qualquer alteração posterior de nome, somenpadrasto do que com o próprio pai, que acabou por te por exceção e motivadamente, após audiência do acompanhar a vida dos filhos a distância”, sendo, pois, Ministério Público, será permitida por sentença do juiz uma consequência natural a vontade de trazer em seu a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o manpróprio nome o sobrenome de família daquela pessoa dado e publicando-se a alteração pela imprensa”. que lhe é tão cara. Como já dito, o nome civil é o elemento que inEm uma primeira leitura, o texto da justificati- dividualiza cada pessoa no meio social, estabelecendo va do Projeto de Lei pode nos remeter à restrita ideia o artigo 50 e seguintes da Lei de Registros Públicos de que a inclusão do patronímico do padrasto ou da a obrigatoriedade do registro de todo nascimento que madrasta só se justificaria nas hipóteses de descuido, ocorrer no território nacional, mesmo para a criança negligência ou abandono pelo pai biológico. Ao contrá- morta na ocasião do parto, que tenha respirado. rio. Muitos são os casos em que a sadia e satisfatória O nome, direito da personalidade que resguar 70


da a dignidade da pessoa humana, tem como principal característica a imutabilidade. Esta, no entanto, é relativa, vez que se admite a alteração do nome civil em hipóteses excepcionalmente previstas em lei, desde que haja justa motivação, e não implique prejuízo para terceiros. O artigo 8º da Lei nº. 11.924 aduz que: “O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2º e 7º deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.” Da leitura do artigo acima citado verifica-se que o legislador estabeleceu alguns requisitos a serem observados para a propositura da ação competente. Vejamos: A Lei nº. 11.924/09 exige a expressa concordância do padrasto ou da madrasta para que haja o acréscimo do sobrenome de família destes ao sobrenome dos seus enteados. O uso do patronímico do padrasto ou da madrasta por seus enteados é reflexo direto da afetividade existente entre eles e exteriorização da posse do estado de filho. Razão porque diz respeito tão-somente às partes diretamente envolvidas: o enteado, autor da ação, e o padrasto ou a madrasta, ao expressar seu consentimento. Não há que se falar em concordância por parte dos pais biológicos. Cumpre aqui destacar as hipóteses dos filhos ainda menores de idade e, portanto, representados ou assistidos por seus genitores. Nesses casos, bastará a vontade do genitor, representante ou assistente, para a formalização do ato válido no mundo jurídico. Outro requisito exigido em lei diz respeito à manutenção, pelos enteados, do sobrenome de família. A Lei de Registros Públicos exige que todo nascimento seja registrado, lavrando-se o assento e, posteriormente, extraindo-se uma certidão. Esta deverá conter o prenome do registrado, lançando-se adiante do prenome os sobrenomes dos pais. Ora, como já dito, a inclusão do patronímico do padrasto ou da madrasta ao nome do enteado independe da relação deste com seu pai ou mãe biológicos, não havendo que se falar em exclusão dos sobrenomes de família. É, antes de tudo, uma exteriorização da relação de amor e afeto entre enteado e padrasto ou madrasta.

A Lei de Registros Públicos estabelece semelhante faculdade à mulher, que poderá requerer ao juiz competente que averbe em seu assento de nascimento o patronímico de seu companheiro

Ademais, em face da imutabilidade relativa do nome, este somente poderá ser alterado por exceção e motivadamente. A Lei de Registros Públicos, em seu artigo 57, § 2º, estabelece semelhante faculdade à mulher, que poderá requerer ao juiz competente que averbe em seu assento de nascimento o patronímico de seu companheiro, sem prejuízo dos seus apelidos próprios de família. Estabelece o § 3º da Lei de Registros Públicos que: “O juiz competente somente processará o pedido se tiver a expressa concordância do companheiro e se da vida em comum houverem decorrido, no mínimo, cinco anos ou existirem filhos da união.” Diante da exigência legal de cinco anos de vida em comum para averbação do patronímico do companheiro, seria de se perguntar se tal prazo também seria exigível para aplicação do artigo 8º. Seriam necessários cinco anos de vida em comum entre o padrasto ou a madrasta e o pai ou a mãe biológica do enteado, ou mesmo cinco anos de configuração da posse de estado de filho? A Constituição Federal de 1988, ao tratar da união estável, não estabeleceu um prazo para seu reconhecimento, outrora fixado em cinco anos. Por esta razão, claro está que a exigência legal de cinco anos de convivência prevista no § 3º, foi revogada pelo texto constitucional, não podendo tal lapso temporal ser apli71


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cado ao § 8º por analogia. Por fim, o legislador condiciona o exercício de tal direito à existência de um “motivo ponderável”, devendo a motivação para o exercício deste direito ser, antes de tudo, a relação de afinidade, afeto, cooperação e amor existentes entre enteados e padrastos e madrastas. O relacionamento escasso ou mesmo o mau relacionamento entre filho e pai biológico não seriam motivos suficientes a ensejar tal pretensão. Caberá ao julgador cauteloso avaliar em cada caso os reais motivos que conduziram o requerente àquela pretensão, valendo-se, para tanto, dos elementos caracterizadores do instituto da posse do estado de filho. O trato e a reputação, a serem observados pelo juiz em cada caso concreto, seriam suficientes para fundamentar a sentença judicial e produzir, como efeito, o terceiro elemento da posse do estado de filho, qual seja, o nome. A partir da Lei nº. 11.924/09, os enteados e seus padrastos e madrastas poderão dar forma à relação de afeto que os une através da Certidão de Nascimento. O artigo 5º da Lei de Registros Públicos prevê a possibilidade do cancelamento da averbação feita no assento de nascimento do enteado. Não mais existindo entre enteado e madrasta ou padrasto os elementos (reputação e trato) que motivaram a averbação, não faz sentido o enteado levar em seu nome o patronímico daquele que já não exerce a função de pai ou mãe. Exigir-se-á em cada caso a análise criteriosa do juiz, uma vez que após a averbação o nome se incorpora à personalidade do enteado, identificando-o, não podendo ser retirado sem o seu consentimento. Vale salientar, que a existência da posse do estado de filho, elemento caracterizador da filiação socioafetiva, não é suficiente perante o ordenamento jurídico para o reconhecimento da paternidade ou maternidade. Logo, o acréscimo do patronímico da madrasta ou do padrasto ao nome dos filhos afetivos, não obstante ser mais um elemento de exteriorização da relação de afeto, não implica reconhecimento da paternidade ou maternidade perante as pessoas envolvidas, não havendo, portanto, consequências patrimoniais para os envolvidos.

Conclusão A Constituição Federal de 1988 deu nova feição à família. O reconhecimento, pelo legislador constitu72

cional, de novas entidades familiares, as uniões estáveis e as famílias monoparentais, deu margem ao surgimento de novos arranjos familiares, cujo alicerce é o afeto, o respeito, a proteção, o amor e a cooperação entre seus membros. Corajosa inovação trouxe a “Lei Maria da Penha” ao reconhecer expressamente a existência da parentalidade socioafetiva. Ao definir a família como uma comunidade formada por indivíduos que se consideram aparentados, unidos por laços de afinidade, a Lei claramente admite a paternidade socioafetiva que une os pais aos seus filhos afetivos. Admitir-se a paternidade socioafetiva na esfera jurídica é reconhecer a existência de verdadeira relação jurídica, que tem por fundamento o vínculo afetivo. Este, reconhecido pela Constituição Federal como um dos pilares do novo conceito de família. O reconhecimento pelo ordenamento jurídico da parentalidade socioafetiva trará como consequência a ampliação de muitos institutos, especialmente o da filiação, a fim de abarcar a realidade socioafetiva que se depreende dos novos arranjos familiares. A Lei nº. 11.924/09 inovou consideravelmente, na medida em que permite aos enteados e seus padrastos e madrastas dar forma à relação de afeto advinda de um novo arranjo familiar, através da Certidão de Nascimento. O enteado trará em seu nome civil, como expressão de sua dignidade, o patronímico do seu pai de sangue, bem como do seu pai de coração.

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Artigo TRANSFERÊNCIA ENTRE INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR

Suélvia dos Santos Reis Juíza de Direito

22ª Vara Cível da Comarca de Salvador

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transferência de alunos entre instituições de ensino superior admite diversas interpretações ante a quantidade de diplomas legais que regem a matéria, o que dá margem a jurisprudências das mais variadas a respeito do assunto, embora o Supremo Tribunal Federal, com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.324-7, tenha colocado um norte aos julgadores de primeiro grau quanto à observância da natureza da instituição de ensino de origem a ensejar a transferência pleiteada. Inicialmente, cumpre relembrar que a nossa Carta Magna elenca a educação como um dos direitos sociais, sendo direito de todos e dever do Estado e da família. A Lei nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, disciplina, no art. 99, que ao servidor estudante que mudar de sede no interesse da Administração é assegurada, na localidade da nova residência ou na mais próxima, matrícula em instituição de ensino congênere, em qualquer época, independentemente de vaga. No parágrafo único do mencionado dispositivo estende o direito ao cônjuge ou companheiro, aos filhos ou enteados do servidor que vivam em sua companhia, bem como aos menores sob sua guarda, com autorização judicial. O art. 49 da Lei 9.394/1996 (estabelece diretrizes e bases da educação nacional), que revogou a Lei 7.037/82, a qual, por sua vez, deu nova redação ao art. 100 da Lei 4.024/61, relativo à transferência de aluno, de qualquer nível, de uma para outra instituição de ensino, estabelece que “as instituições de ensino superior aceitarão a transferência de alunos regulares, para cursos afins, na hipótese de existência de vagas,

e mediante processo seletivo. Parágrafo único. As transferências ex officio dar-se-ão na forma da lei”. Posteriormente, foi editada a Lei 9.536/97, que regulamenta o parágrafo único do art. 49 da Lei 9394/96, estatuindo que a transferência ex officio seja efetivada entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano e independentemente da existência de vaga, quando se tratar de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu dependente estudante, se requerida em razão de comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio para o município onde se situe a instituição recebedora ou para a localidade mais próxima desta. Ressalta, no entanto, em seu parágrafo único, que tal benefício não se aplica quando o interessado na transferência se deslocar para assumir cargo efetivo em razão de concurso público, cargo comissionado ou função de confiança. Depreende-se, do quanto acima exposto, que o legislador quis premiar o funcionário-estudante e não o estudante-funcionário. Em outras palavras, é preciso ser previamente servidor público e, em momento posterior, ser transferido de ofício – jamais a pedido – por interesse da Administração, com mudança de domicílio. Note-se que a regra é a prevalência do interesse público sobre o privado, largamente utilizada em sede de direito administrativo. Assim já decidiu o Tribunal Regional Federal da 1ª Região: TRF 1ª Região: “Administrativo. Ensino Superior. Transferência (Lei n. 4024/61, artigo 100, com a redação dada pela Lei n. 7.037/82. 8.112/90, Artigo 90). Mudança de domicílio. 1. O aluno de curso superior não tem direito a transferência obrigatória se não mudou de 73


Transferência entre instituições de ensino superior

domicílio. 2. Na espécie o aluno tinha o curso deseja- gurando o citado direito, o Tribunal Regional Federal do na Capital onde reside, todavia, prestou vestibular editou a súmula de nº 03, que assim dispõe: “Os direiem cidade próxima e, obtendo êxito, sem mudança de tos concedidos aos servidores públicos federais relatiseu domicilio, pretendeu fosse amparada sua preten- vamente à transferência de uma para outra instituição são pelo Judiciário, que deve, porém, coibir burla à lei de ensino, em razão de mudança de domicílio, são exque protege o funcionário-estudante. 3. Recurso de tensivos aos servidores dos Estados, Distrito Federal, Apelação improvido”. (Apelação em Mandado de Se- Territórios e Municípios”. gurança nº 1992.01.07029-2/Pi (00036067), 2ª Turma O direito pretoriano divide opiniões, elastecendo TRF da 1ª Região, Rel. Juiz Mário César Ribeiro. j. do a interpretação legal para aceitar transferência do 06.09.1995, Publ. DJ 14.12.1995 p. 87023). servidor para cargo comissionado, por transferência a O supracitado dispositivo legal fez com que al- pedido e no interesse particular ou para assumir cargo gumas instituições de ensino superior só aceitassem a público (primeira investidura). transferência de alunos em se tratando de servidor púNo tocante à origem do servidor, há interpretablico federal. No entanto, o Estatuto ções diferenciadas por parte dos dos Servidores Públicos Civis do Tribunais, uma vez que os diploEstado da Bahia (Lei nº 6.674/94), mas legais referem-se sempre a Ao servidor estudante anteriormente à edição da Lei Feservidor público, não declinando deral nº 9.536/97, mas seguindo a se da Administração direta ou inque mudar de sede, linha da Lei 8.112/90, já havia esem virtude de interesse direta (autarquias, empresas públitabelecido, em seu art. 115, caput cas e sociedade de economia misda Administração, é e parágrafo único, que ao servidor ta). Entendo, tal como o Tribunal estudante que mudar de sede, em assegurada na localidade Regional Federal da 1ª Região já virtude de interesse da Administradecidiu, que se a lei não faz distinda nova residência, ção, é assegurada na localidade da ção é porque os iguala. ou na mais próxima, nova residência, ou na mais próxiTRF1: “administrativo. Enma, matrícula em instituição oficial matrícula em instituição sino superior. Transferência de e estadual de ensino, em qualquer empregado de sociedade de ecooficial e estadual de época, independentemente de nomia mista federal. Direito de deensino, em vaga, na forma e condições estapendente à transferência compulbelecidas em legislação específica, sória para instituição de ensino da qualquer época, estendendo-se o direito ao cônjuge localidade onde o cônjuge passou independentemente ou companheiro, aos filhos ou entea exercer suas funções. Art. 100 de vaga ados do servidor que vivam em sua da lei nº4.024/61. Arts. 205 e 214, companhia, assim como aos menoii, da CF/88. res sob sua guarda ou tutela com 1. A Jurisprudência do autorização judicial. TRF/1ª Região, na esteira de entendimento do extinDessa forma, ao menos no Estado da Bahia, a to TFR, orientou-se no sentido de que a transferência transferência de que se trata neste artigo ficou garan- compulsória de instituição de ensino, de servidor pútida não só aos servidores públicos federais, mas tam- blico que muda de domicílio, em face de remoção ou bém aos estaduais, todos civis ou militares, extensivo transferência de ofício, alcança os servidores da admiaos seus cônjuges ou companheiros, filhos dependen- nistração pública indireta, inclusive seus dependentes. tes, tutelados, menores sob sua guarda, desde que 2. Em face da remoção, no interesse do servicumpridos os demais requisitos legais, a saber, transfe- ço, do cônjuge da autora, empregado de sociedade de rência ex officio do cargo público que ocupavam, com a economia mista federal, para localidade onde existe o consequente mudança de domicílio, tudo no interesse curso da impetrante, o direito à transferência compulda Administração. sória, previsto no art. 100 da Lei nº 4.024/61 - então vi Na preocupação justa de igualar os jurisdicio- gente- a socorre, especialmente em face dos arts. 205 nados dos Estados que não tinham lei estadual asse- e 214, II, da Constituição Federal, que dispõem

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ser a educação direito de todos e dever do Estado e da família, cabendo ao Poder Público promover ações visando à universalização do atendimento escolar. 3. Apelação e remessa oficial improvidas.” (Apelação em Mandado de Segurança nº 1994.01.15468-6/MG (00050178), 2ª Turma do TRF da 1ª Região, Rel. Juíza Assusete Magalhães. j. 30.04.1997, Publ. DJ 30.05.1997 p. 38838). TRF1: “administrativo. Ensino superior. Transferência de estudante servidor da administração indireta. Art. 100, Parágrafo 1o, da lei n. 4024/61. Interpretação teleológica da norma. I. A jurisprudência pacífica do TRF-1ª região, na esteira de entendimento do extinto TFR, orientou-se no sentido de que a transferência compulsória de instituição de ensino, de servidor público que muda de domicílio, em face de remoção ou transferência de ofício, alcança os servidores da administração pública indireta. Ii. A interpretação teleológica do art. 100, par. da lei n.4024/61, vigente à época do pedido - com vistas a evitar prejuízo acadêmico a quem necessite mudar de domicílio, por motivo relacionado com atividade ligada ao serviço público em sentido lato, permite alcançar o empregado de sociedade de economia mista (Petrobras), estudante, que se viu transferido para outra localidade, no interesse do serviço.] Iii. Improvidas a apelação e a remessa oficial”. (Apelação em Mandado de Segurança nº 1996.01.18121-0/MG (00049474), 2ª Turma do TRF da 1ª Região, Rel. Juíza Assusete Magalhães. j. 16.04.1997, Publ. DJ 15.05.1997 p. 33578). No que tange a natureza jurídica das instituições de ensino de origem e a recebedora, vale relembrar que no art. 99 da Lei 8.112/90, fala-se em instituição de ensino congênere, o que significa dizer que a transferência somente pode ser feita de uma instituição de ensino superior pública para outra pública e de uma privada para outra privada. No entanto, como a Lei 9.536/97 fala em instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de se admitir a exceção se na localidade de recepção do aluno não existir estabelecimento público com o curso para o qual ele foi aprovado. Sobre esse assunto, o Tribunal Regional Federal também editou súmula, desta vez a de nº 43, que assim dispõe: “A transferência compulsória para estabelecimento de ensino congênere, a que se refere o art. 99 da Lei 8.112/90, somente poderá ser efetivada de estabelecimento público para público ou de privado para privado, salvo a inexistência, no local de destino,

de instituição de ensino da mesma natureza”. O tema aludido acima foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, tombada sob nº 3324-7, procedente do Distrito Federal, cujo requerente foi o procurador-geral da República e requeridos o presidente da República e o Congresso Nacional. Nesta, o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade, através do Plenário, em 16.12.2004, com publicação no DJ do dia 05/08/2005, acompanhando o voto do relator, ministro Marco Aurélio, pela inconstitucionalidade do dispositivo legal que permite a transferência de instituição de ensino privada para pública, se não houver na localidade nenhuma congênere, ante o argumento de que assim estaria se dando tratamento diferenciado entre cidadãos, porque se beneficiaria sempre quem fosse funcionário público em detrimento de quem não o fosse. Eis a decisão acima aludida, in verbis: “O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente, em parte, a ação para, sem redução do texto do artigo 1º da Lei nº 9.536, de 11 de dezembro de 1997, assentar a inconstitucionalidade no que se lhe empreste o alcance de permitir a mudança, nele disciplinada, de instituição particular para pública, encerrando a cláusula “entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino” a observância da natureza privada ou pública daquela de origem, viabilizada a matrícula na congênere. Em síntese, dar-se-á a matrícula, segundo o artigo 1º da Lei nº 9.536/97, em instituição privada se assim o for a de origem e em pública se o servidor ou o dependente for egresso de instituição pública”, tudo nos termos do voto do relator. Votou o presidente, Min. Nelson Jobim. Falou pelo Ministério Público Federal o Dr. Cláudio Lemos Fonteles, procurador-geral da República, e pela Advocacia-Geral da União o Dr. Álvaro Augusto Ribeiro Costa, advogado-geral da União. Plenário, 16.12.2004. Consoante destaques, em seu voto, o ministro ressaltou que a norma impugnada coloca em plano secundário a impessoalidade, a moralidade na Administração Pública e a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola superior. Disse também que o artigo contraria o princípio isonômico, pois trata de forma desigual civis e militares. Nesse diapasão, há outro aspecto a se analisar: como resultará o julgamento em Ação Ordinária dos transferidos através de sentença judicial em Ação Cautelar e que já estavam estudando no estabelecimento de ensino superior do novo domicílio por força de or 75


Transferência entre instituições de ensino superior

dem judicial. Em se mantendo a sentença procedente processuais. da Ação Cautelar, estaria, à prima facie, descumprin6. Negando-se a segurança neste momento, esdo a decisão da Suprema Corte na Ação Direta de In- tar-se-ia corroborando para o retrocesso na educação constitucionalidade. Na hipótese contrária, estaria se dos educandos, in casu, uma acadêmica que foi transprejudicando a parte por ato do Estado-Juiz, o qual ferida sob a proteção do Poder Judiciário e que já terautorizou a transferência e acabou por criar uma situa- minou seu curso. Pior, assim ocorrendo, a impetrante ção de fato que, por diversas vezes, consolida-se pelo estaria perdendo 05 (cinco) anos de sua vida freqüendecurso do tempo. tando um curso que nada lhe valia no âmbito universiEntendo que se o autor possuía o direito quando tário e profissional, posto que cassada tal freqüência. da sentença que lhe foi favorável (e só assim poderia Ao mais, ressalte-se que a mantença da decisão a quo ser transferido, diga-se de passagem), mantida pela não resultaria qualquer prejuízo a terceiros, o que é de instância superior, estando amparado na época pela bom alvitre. lei que garantia o direito a congeneridade das institui- 7. Cabe ao juiz analisar e julgar a lide conforme os ções de ensino superior, poder-se-ia aplicar somente acontecimentos passados e futuros. Não deve ele ficar a ele a teoria do fato consumado, adstrito aos fatos técnicos consamplamente utilizada pelo Superior tantes dos autos, e sim aos fatos Tribunal de Justiça, conforme decisociais que possam advir de sua são abaixo transcrita: decisão. Precedentes desta Casa a competência STJ: “Processual civil e Julgadora. passa a ser da Justiça administrativo. Agravo regimental 8. Agravo regimental improvido”. contra decisão que deu provimenFederal, em se tratando (Agravo Regimental no Reto a recurso especial. Ensino sucurso Especial nº 267854/MG de universidade pública perior. Estudante. Transferência. (2000/0072639-7), 1ª Turma do federal ou de caráter Conclusão do curso. Situação fátiSTJ, Rel. Min. José Delgado, j. ca consolidada por decisão judicial. 14.08.2001, Publ. DJU 24.09.2001 privado, uma vez Precedentes jurisprudenciais. p. 240). que a autoridade 1. Agravo Regimental contra Por fim, concernente à comimpetrada recebe decisão que, com amparo no art. petência para processo e julga557, § 1º, do CPC, deu provimenmento de tais ações, faz-se mister delegação federal to ao recurso especial ofertado a diferenciação entre as ações. pela agravada, determinando a sua Caso o remédio jurídico a ser utilimatrícula e permanência no curso zado seja o Mandado de Seguranuniversitário, em face da situação ça, a competência passa a ser da fática consolidada. Justiça Federal, em se tratando de 2. Liminar e sentença, no universidade pública federal ou de primeiro grau, e medida cautelar nesta Corte Superior caráter privado, uma vez que a autoridade impetrada que garantiram à recorrente o direito à transferência de recebe delegação federal, de acordo com o art. 109, Universidade, em face de a mesma, servidora pública inciso VIII, da Constituição Federal, e art. 10, inciso IX, federal, ter sido transferida de domicílio. da Lei 5.010/66 (organiza a Justiça Federal de 1ª ins3. Documentação trazida aos autos que atesta tância e dá outras providências), em cotejo com o § 1º que a acadêmica já concluiu o curso de Direito. do art. 1º e art. 2º da Lei 12.016/2009, que revogou a 4. Liminar concedida há quase 03 (três) anos, Lei 1.533/51 (regula o Mandado de Segurança), a qual determinando a transferência pleiteada, sem nunca ter se considera autoridade coatora como sendo federal, sido a mesma cassada. Ocorrência da teoria do fato quando as consequências de ordem patrimonial do ato consumado, aplicável ao caso em apreço. contra o qual se requer o mandado houverem de ser 5. Não podem os jurisdicionados sofrer com as suportadas pela União ou entidade por ela controlada. decisões colocadas à apreciação do Poder Judiciário, Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: em se tratando de uma situação fática consolidada “Recurso especial. Mandado de segurança. Ato de dipelo lapso temporal, face à morosidade dos trâmites retor de universidade particular. Competência da justi 76


ça federal. tadual. Compete à Justiça Federal o processamento e - “Compete à Justiça Federal decidir sobre a julgamento de mandado de segurança impetrado con- existência de interesse jurídico que justifique a presentra ato de dirigente de instituição particular de ensino ça, no processo, da União, suas autarquias ou empresuperior no exercício de suas funções, uma vez que se sas públicas” (Súmula 150 do STJ). trata de ato de autoridade federal delegada. Preceden- A jurisprudência desta Corte vem declarando a tes da 1ª Seção desta Corte Superior. Recurso espe- competência da justiça comum estadual para julgar as cial a que se nega provimento”. (REsp 661.404/DF, Rel. ações de rito ordinário ou cautelares relativas a ensino MIN. Carlos Fernando Mathias (Juiz Convocado do Trf superior, quando as entidades estatais elencadas no 1ª Região), Segunda Turma, julgado em 21/02/2008, art. 109 não demonstrarem interesse de figurar como DJe 01/04/2008). assistentes da entidade. Observe-se, todavia, que se o ato impugnado - Ressalva do ponto de vista do relator. for de reitor de universidade esta- Conflito conhecido para dual de ensino, a competência é declarar competente o Juízo de da Justiça Comum, através de uma Direito da 2ª Vara de Bom Jesus das Varas da Fazenda Pública, de de Itabapoana – RJ”. (CC 48.378/ Se o ato impugnado natureza administrativa, consoante RJ, Rel. Min. Francisco Peçanha for de reitor de o disposto na alínea “b” do inciso Martins, Primeira Seção, julgado universidade estadual II do art. 70 da Lei de Organização em 22/02/2006, DJ 03/04/2006 p. Judiciária do Estado da Bahia (Lei 201). de ensino, a 10.845/2007). “Conflito negativo de comcompetência é da Justiça Em se tratando de Ações petência – matrícula em instituiCautelar e Ordinária, a distinção Comum, através de uma ção particular de ensino superior será feita levando-se em considera– ação de rito ordinário − atividade das Varas da Fazenda ção o caráter público ou privado da delegada do poder público − comPública, de natureza instituição de ensino e o ente públipetência da justiça estadual. co a que está vinculada. A 1.ª Seção do Superior administrativa Sendo a ação proposta conTribunal de Justiça recentemente tra universidade federal de ensino, pacificou o entendimento de que a competência para processo e jul“proposta ação ordinária pleitegamento da ação é da Justiça Feando o deferimento de matrícula deral, a teor do disposto nos arts. em instituição estadual de ensino 109, inciso I, e art. 10, inciso I, da superior, independentemente do Carta Magna e da Lei 5.010/66, respectivamente. pagamento de mensalidades, sobressai inequívoca a Na hipótese de a ação ser dirigida contra insti- competência da Justiça Estadual” (CC 38130/SP, Rel. tuição de ensino superior pública estadual ou privada, Min. Teori Albino Zavascki, DJU 13.10.2003). Desse a competência é da Justiça Comum, sendo que, com modo, cumpre aferir a natureza da ação e a qualidarelação à primeira, o feito deve ser processado perante de das partes para, em seguida, definir a competência uma das Varas da Fazenda Pública, de natureza ad- para o julgamento da lide. ministrativa, consoante art. 70, inciso II, alíneas “a” da Conflito conhecido para declarar competente Lei de Organização Judiciária do Estado da Bahia (Lei o Juízo de Direito da 10.ª vara Cível de Santos-SP”. Estadual nº 10.845/2007); quanto à segunda, por uma (CC 45.275/SP, Rel. Min. José Delgado, Rel. p/ Acórdas Varas das Relações de Consumo, Cíveis e Comer- dão Min. Franciulli Netto, Primeira Seção, julgado em ciais. 10/11/2004, DJ 01/08/2005 p. 303). Esse é o entendimento de nossos Tribunais: “Conflito de competência. Ação ordinária. Matrí“Conflito de competência. Ensino superior. Enti- cula em instituição particular de ensino superior. dade particular. Indeferimento de matrícula. Interesse 1. A competência cível da Justiça Federal é defida união afastado pela justiça federal. Aplicação da nida ratione personae, sendo irrelevante a natureza da súmula 150 do stj. Competência da justiça comum es- controvérsia posta à apreciação. Não figurando, em 77


Transferência entre instituições de ensino superior

qualquer dos pólos da relação processual, a União, entidade autárquica ou empresa pública federal, a justificar a apreciação da lide pela Justiça Federal, impõe-se rejeitar a sua competência. 2. Hipótese em que foi proposta ação ordinária impugnando o indeferimento de matrícula em instituição particular de ensino superior, tendo em vista a ausência de comprovação de conclusão do ensino médio. 3. A Seção decidiu que à míngua da presença das pessoas jurídicas mencionadas no art. 109 da CF, não se firma a competência da Justiça Federal: “conflito de competência: ação de procedimento comum movida por aluno contra instituição particular de ensino superior – competência da justiça estadual. 1. A competência cível da Justiça Federal, estabelecida na Constituição, define-se, como regra, pela natureza das pessoas envolvidas no processo: será da sua competência a causa em que figurar a União, suas autarquias ou empresa pública federal na condição de autora, ré, assistente ou opoente (art. 109, I, a). 2. Compete à Justiça Estadual, por isso, processar e julgar a causa em que figuram como partes, de um lado, o aluno, e, de outro, uma entidade particular de ensino superior. No caso, ademais, a matéria versada na demanda tem relação com ato particular de gestão. 3. No que se refere a mandado de segurança, a competência é estabelecida pela natureza da autoridade impetrada. Conforme o art.109, VIII, da Constituição, compete à Justiça Federal processar e julgar

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mandados de segurança contra ato de autoridade federal, considerando-se como tal também o agente de entidade particular quanto a atos praticados no exercício de função federal delegada. Para esse efeito é que faz sentido, em se tratando de impetração contra entidade particular de ensino superior, investigar a natureza do ato praticado. 4. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Estadual, o suscitado.” (CC 38130/SP, 1ª Seção, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJU 13/10/2003) 4. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 5ª Vara Cível de Brasília-DF, o suscitado. (CC 43.297/DF, Rel. Min. José Delgado, Rel. p/ Acórdão Min. Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 22/09/2004, DJ 07/03/2005 p. 133). Em suma, a meu ver, as exigências legais para transferência entre instituições de ensino superior, longe de ser um obstáculo ao princípio constitucional de que a educação é direito de todos e dever do Estado, nada mais são do que a garantia de acesso de qualquer vestibulando ao ensino superior, em igualdade de condições, garantindo-se, deste modo, o acesso indistinto de indivíduos ao terceiro grau, mediante as mesmas regras, ou seja, aprovação em teste seletivo, comumente denominado exame vestibular (sem adentrar-se nas novas modificações introduzidas a esse acesso, através do ENEM), assegurando, de outra parte, àqueles que já haviam sido aprovados em exame anterior e tiveram, por interesse da Administração, seu domicílio alterado, a continuidade do curso na nova localidade.


Mensangem

D

Magistrados, UNI-VOS!

ividir para governar”. Como continua atual a máxima maquiavélica, principalmente quando se trata de buscar a diminuição da expressão político- constitucional do Poder Judiciário. Mas o interessante é que as manobras voltadas para as cisões encontram terreno fértil no seio da magistratura, que, desapercebida, deixa-se levar pelos caminhos do divisionismo, mediante o desinteligente método de criação de grupos que se digladiam e o fazem para proveito externo, já que, no seio da classe, saímos todos perdendo com as lutas internas. Lembremos da denominada Refor-

ma do Judiciário ocorrida há poucos anos, episódio que, apesar de alguns inegáveis benefícios, colocou em trincheiras opostas juízes estaduais, federais e trabalhistas. Ou seja, se nos colocam contra nós mesmos, magistrados lutando contra magistrados, que tipo de legitimação os distintos grupos terão? A quem, por exemplo, deve ouvir um parlamentar? Ao juiz estadual? Ao federal? São reflexões que precisam ser feitas, diante da seguinte indagação: a quem interessa nos dividir? Ouso iniciar o conjunto de respostas que podem ser dadas: a todos, menos a nós mesmos. Não nos devemos tratar como inimi-

gos. Talvez, esporadicamente, nas oportunidades em que se dão as eleições para a mesa do Tribunal e para a AMAB, talvez, repito, como opositores momentâneos e circunstanciais. Mas, sobretudo nessas ocasiões, porque somos magistrados e porque a nós é cometida a missão de reafirmar, consolidando, a democracia, devemos estabelecer um patamar compatível com aquilo que a sociedade espera de nós para, aí, situar o plano dos debates. Com efeito, nós, que devemos tratar as partes e os advogados com urbanidade, não podemos dispensar uns aos outros tratamento diverso. É possível sugerir, requerer, cobrar, divergir etc., sem que se vá ao chulo

“O interessante é que as manobras voltadas para as cisões encontram terreno fértil no seio da magistratura”

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Mensangem | Magistrados, UNI-VOS!

“Há momentos em que o pleito se universaliza para interessar não só a um segmento da magistratura, mas a toda ela e ao próprio Poder Judiciário”

do linguajar, ao limite da civilidade, à seara das insinuações. Nós temos os meios de fazer valer os nossos direitos, lutando com denodo e firmeza, utilizando, inclusive, os meios legais de que as demais pessoas se valem quando a nós submetem as suas postulações. Jamais nos qualificaremos como esteio e suporte do Estado Democrático de Direito – também Social, convém assinalar – se não nos valermos, nós próprios, dos instrumentos legais constitucionalmente assegurados para a manutenção e a proteção dos nossos direitos. Lembro, a propósito, o recém-ajuizamento de mandado de injunção pela AMB por conta do injustificável, desrespeitoso e inconstitucional retardamento da votação do Projeto de Lei de revisão dos subsídios. Ou seja, frustradas todas as ações persuasivas adotadas pela AMB, só restou o caminho que a Constituição se nos apontava para trilhar: buscar no guardião da Magna Carta, no Supremo Tribunal Federal, que determinasse o respeito ao Estado de Direito, em suma, à 80

Democracia. No plano local, é assim que devemos agir. Frustradas as ações administrativas, se e quando ocorrer, passaremos às judiciais. Além de democrático, é salutar porque nos faz ver o quanto é importante que se respeite a ordem jurídica. Nesse momento, peço permissão para deixar à reflexão de todos uma sugestão voltada para o redirecionamento da nossa linha de ação na defesa dos nossos direitos, todos eles, sejam os que se atrelam às questões pecuniárias, como os que passam pela necessidade de melhoria das condições de trabalho, tanto no plano do aparelhamento material, quanto do reconhecimento de que é indispensável a nomeação dos assessores para os juízes de todas as entrâncias. É hora de pensarmos em agir de forma articulada. A nova linha de ação passa, necessariamente, pela articulação das pessoas envolvidas nesse processo: nós, os magistrados. Articulação como ideia oposta à divisão e à dispersão. Há momentos em que as tensões

dialéticas que caracterizam culturalmente as relações entre os juízes e o Tribunal reclamam uma postura firme na reivindicação dos pleitos administrativos dos primeiros perante o segundo. Contudo, e aqui lembro o que disse anteriormente quanto ao divisionismo, há momentos em que o pleito se universaliza para interessar não só a um segmento da magistratura, mas a toda ela e ao próprio Poder Judiciário. Aqui, penso, devemos caminhar juntos, unidos. Vale dizer: quando for dispensável a forma adversária de resolução de um conflito, o bom senso, a ideia de preservação, a necessidade de engrandecimento do Poder Judiciário, que se deve mostrar sereno e equilibrado, principalmente no que tange às questões internas, não há porque, nesses momentos, pregar o dissenso e apreciar de longe, de maneira reprovavelmente omissa, o caminhar das “coisas”. Rosalvo Augusto Vieira da Silva Diretor Da EMAB


Artigo O LEGISLADOR E O APLICADOR DA LEI

Moacyr Montenegro Souto Juiz de Direito da Capital

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morosidade da justiça brasileira é tema antigo e muito debatido em todas as esferas da sociedade, desaguando, dentre outras causas, na criação do CNJ, Conselho Nacional da Justiça, que vem determinando inúmeras providências aos Tribunais Pátrios no sentido de debelar o atraso na prestação jurisdicional, a exemplo da “Semana Nacional da Conciliação” e, mais recentemente, da “Meta 2”, que se propõe a finalizar, neste ano, todos os processos distribuídos até dezembro de 2005, na justiça de primeiro grau e nos tribunais superiores, inobstante a falta de recursos materiais e humanos que afeta a estrutura do Judiciário no País, para cumprir com o desiderato. Afinal, não se pode acabar, em poucos meses, um acúmulo de processos que cresce há décadas, com os mesmos recursos disponíveis, cuja deficiência é sua causa principal. Por seu turno, o Poder Legislativo, pressionado pelas queixas de leis processuais ultrapassadas e burocráticas, vem promovendo alterações e reformas importantes que simplificam a tramitação dos processos judiciais, suprimindo ou dificultando procedimentos inúteis ou protelatórios. A profunda alteração introduzida no Código de Processo Civil com a edição da Lei de Execução de Sentença, Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, bem como das leis 11.276 e 11.277, ambas de 07.02.2006, é um exemplo de combate à tão propalada morosidade da justiça. Todavia, nem tudo são flores na atuação legislativa. Por vezes, são editadas leis que, embora atendam a interesses outros, geram em contrapartida um aumento considerável na demanda jurisdicional para os julgadores, como aplicadores destas leis, sem que estes recebam recursos materiais e humanos adicio-

nais para enfrentar o acréscimo, tornando-se inevitável o acúmulo de processos. Foi o que ocorreu em nosso Estado com a edição da nova Lei de Organização Judiciária pela Assembleia Legislativa. Havia antes, nesta capital, duas Varas Especializadas de Defesa do Consumidor, já assoberbadas com a monstruosa demanda de ações relativas às relações de consumo, uma média de setecentos processos novos por mês para cada uma, como consequência de outra lei, a que criou o Código de Defesa do Consumidor. Com o advento daquele diploma legal, as referidas Varas, como as demais em todo o Estado, tiveram sua competência ampliada, assumindo o julgamento de diversas ações que antes competiam às Varas Cíveis, sendo criadas, na Capital, mais quinze, todas denominadas de Vara de Relação de Consumo (Lei 10.845, de 27.11.2007, art.69), a serem instaladas progressivamente “e após a alocação de recursos na proposta orçamentária do exercício correspondente”, “não admitindo qualquer acréscimo de despesas com pessoal acima do limite de 6% previsto no art.20, II, b, da Lei Complementar 101/2000”, segundo disposição expressa dos arts. 312 e 316 da nova lei. Ocorre que, conforme amplamente divulgado, não há recursos orçamentários dentro do citado limite para custear as despesas decorrentes da instalação das novas Varas de Relação de Consumo, situação esta que já se verificava antes da vigência da nova lei, transparecendo a ideia de que o legislador não se preocupou com a eficácia dos citados dispositivos legais, ampliando a prestação do serviço jurisdicional sem o correspondente recurso financeiro para o custeio. A solução do impasse foi abrir mão do aumento da prestação do serviço judiciário preconizado pelo le81


O legislador e o aplicador da lei

gislador e atribuir competência cumulativa às já existentes Varas Cíveis para os feitos de relação de consumo, juntamente com as duas preexistentes desta área. No tocante à modificação da competência das Varas Cíveis, não me parece ter sido a melhor saída, porque representou um retrocesso na organização judiciária, na medida em que, ao invés de promover a especialização da jurisdição, reclamada por uma comarca de entrância especial, com quase três milhões de habitantes, como ocorre nas outras áreas da ciência, acumulou em um só juiz – que não dispõe de assessores jurídicos − competência em diversos ramos do direito, reduzindo-lhe a produtividade judicante, o que não ocorreria se a mesma alteração incidisse apenas em parte das Varas Cíveis existentes, até que surgissem os recursos financeiros para a instalação das outras Varas de Relação de Consumo. Na verdade, convém lembrar que é muito difícil administrar com insuficiência de recursos. Outro exemplo de atuação legislativa que agrava a morosidade da justiça ante a criação de novos recursos e procedimentos judiciais a serem julgados resultou da Nova Lei do Mandado de Segurança, Lei nº 12.016, de 07 de agosto de 2009. Confiram-se os seguintes exemplos. Em seu artigo primeiro, o novo estatuto ampliou o leque de pessoas que podem demandar e serem demandadas em ações mandamentais, incluindo entre aquelas as pessoas jurídicas de direito privado e, no outro pólo, os representantes de partidos políticos, o que implicará acréscimo de ações mandamentais nas mesas dos magistrados. Poder-se-á o mesmo afirmar em face das alterações contempladas no art.5º da nova lei, ampliando o objeto do mandamus, para permitir sua impetração quando o ato administrativo ou a decisão judicial não desafiar recurso com efeito suspensivo, inovação esta que, além de desnecessária, já que este mesmo efeito poderia ser obtido perante o julgador competente para apreciar o recurso, nos casos previstos pela lei processual civil, vai gerar também aumento de demanda judicial, sem o correspondente acréscimo de recursos aos julgadores, até porque há uma tendência em se resolver tudo através do remédio heroico, que não deve ser desfigurado de sua missão constitucional para substituir as vias judiciais típicas e previstas no sistema processual civil. Mas não é só na esfera cível que a atuação do legislador implica aumento de demanda por prestação 82

O novo estatuto ampliou o leque de pessoas que podem demandar e serem demandadas em ações mandamentais, incluindo entre aquelas as pessoas jurídicas de direito privado e, no outro pólo, os representantes de partidos políticos

jurisdicional. O mesmo efeito ocorre quando são editadas leis penais, tributárias ou administrativas, dando ensejo, por vezes, a ações diretas de inconstitucionalidade perante as Cortes Superiores ou mesmo nos Juízos de primeiro grau, onde a inconstitucionalidade é invocada como matéria de defesa, ou porque, simplesmente, criado por lei determinado direito ou obrigação, logo aparecem os interessados batendo às portas da justiça. Diante dessa realidade, depara-se com uma outra em direção contrária e que é o complicador de todo o sistema legislativo e judiciário. É que, diferentemente dos demais Poderes da República, o Judiciário não dispõe de autonomia financeira para enfrentar a crescente demanda por jurisdição, uma vez que está obrigado pela Lei de Responsabilidade Administrativa a respeitar o limite de 6% previsto na Lei Complementar 101/2000 para despesas com pessoal, verba esta que, no caso do Estado da Bahia, é insuficiente para custear até mesmo as necessidades básicas da justiça, impedindo a nomeação de novos servidores para preenchimento dos cargos vagos há anos, apesar do esforço heróico e constante da Presidência do Tribunal de Justiça em reduzir custos e despesas. A conclusão a que se chega é de que urge aumentar o percentual da receita ou brevemente o funcionamento da justiça entrará em colapso, salvo melhor juízo.


Cultura

O OLHO DO LINCE

A leitura de “Relâmpagos” (Ed. Cosac & Naify), livro do grande poeta brasileiro Ferreira Gullar, é um caminho percorrido com luz intensa o tempo todo. Renomado na sua área de atuação, a poesia, e também na crítica de arte, Gullar nos delicia com a sua faiscante sensibilidade e inteligência, fazendo um apanhado de algumas obras de arte que marcaram a humanidade (pinturas e esculturas), sob as suas possantes lentes de poeta. A forma como disseca as obras artísticas enfocadas nesse livro (Picasso, Calder, Matisse, Leonardo, Grassman, Iberê Carmarco etc.), sem pretensão alguma de esgotá-

TUDO A VER

Edson Pereira Filho

las, permite-nos entrar no maravilhoso mundo da percepção estética, sem que se caia na monotonia das cansativas teorizações ou explicações frias. É o próprio poeta quem expõe, no seu modo peculiar de enxergar o belo, apontando que os textos constantes do livro “são aqueles em que – suponho – consegui estar mais perto dessa experiência direta da obra, para tentar apreender-lhe o frescor, a verdade material e poética”, já que “toda a obra de arte atinge nosso olhar como uma inesperada fulguração, um relâmpago”.

“Quem gosta de Caetano Veloso não pode deixar de assistir ao documentário “CORAÇÃO VAGABUNDO”, do jovem diretor Fernando Grostein. É um belo apanhado sobre a turnê do álbum “Foreign Sound” do poeta e cantor, realizada em diversos países (a exemplo de Estados Unidos, Japão e Espanha), nos anos de 2003 a 2005. Na película, Caetano é mostrado de uma maneira simples e sem floreios, naquele clima mais inti-

mista dos camarins e dos momentos de descontração. Caminhando livremente pelas ruas de algumas grandes metrópoles mundiais, sob tomadas cinematográficas interessantes, opina, ao mesmo tempo, sobre política, antropologia, cinema, música, filosofia, religião, e dá recados muito interessantes sobre sua visão atual dos grandes acontecimentos do presente. Vale a pena procurá-lo nas lojas ou locadoras da nossa ‘city’.

POIESIS A poesia que brota do livro “CINEMATECA” (Editora Cia. das Letras), do poeta Eucanaã Ferraz, é um acontecimento de alta expressão nas nossas letras. Os poemas são tratados como se fossem filmes em que há um entrecruzar embriagante de personagens, imagens, diálogos, enredos; tudo isso debaixo da sua escrita mágica, que nos transporta

para o universo novo e sempre aberto da grande obra artística. Não é à toa que o poeta Eucanaã é festejado como um dos notáveis nomes da atual poesia brasileira, ao lado de Carlito Azevedo, Frederico Barbosa e Arnaldo Antunes, fazendo-nos enriquecer nesse caminhar de vida sempre adiante. Confira! 83


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