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4Detalhe da obra Tetraktys de Ernesto Bonato
+SOMA . #12
Dois anos mudam muita coisa. E ao mesmo tempo, como passam rápido. Quando nos damos conta, as pequenas mudanças de todos os dias se somaram e são impossíveis de ignorar. Perseguidas com afinco, recebidas com surpresa, aceitas com naturalidade ou engolidas a contragosto, elas estão à nossa frente: nos filhos que nascem, falam e andam; nos cabelos brancos que teimam em se multiplicar; na tecnologia que nos escorre por entre os dedos; nas covas que o homem cava para si mesmo pela ganância e pela estupidez; nos parceiros que nos enchem os olhos ao crescer e crescer. Entre bolhas efêmeras e raízes sólidas, o mundo nunca mais será o mesmo. A +Soma também mudou nestes dois anos. Nossa equipe cresceu e se modificou, com a saída de amigos queridos e a chegada de novos parceiros. Nosso alcance pelo país aumentou (são 57 pontos de distribuição), ganhamos uma sede nova, uma loja, um café. Mais do que isso, a inauguração do Espaço +Soma, na Vila Madalena, em São Paulo, iniciou uma nova era: agora é possível conferir em carne, osso, telas, cores, cheiros e sons tudo que circula pelas páginas da revista. Novos parceiros comerciais apostaram em nós e se somaram aos que caminham junto conosco desde o começo. Por fim, nossa rede de colaboradores se diversificou, indo ao encontro da nossa vontade de criar uma revista cada vez mais abrangente e conectada a uma cultura desprendida de caprichos e modismos. Mas é bem verdade que mantivemos algumas velhas manias. Uma delas é comemorar cada aniversário com um presente para você. Nesta edição, como há um ano, temos o prazer de entregar em suas mãos a +Soma Amplifica #2. No CD encartado, você conhecerá 14 faixas de artistas que representam, para nós, o que há de melhor na música brasileira contemporânea. Outra mania é seguir levando até você, de forma gratuita, informação e crítica sobre música, arte, cinema, quadrinhos, fotografia e outras formas de expressão relevantes. Para comemorar esses dois anos somando, nada mais oportuno do que resgatar a memória de Billy Argel, artista que estava esquecido até recentemente, mas que tem uma importância seminal à contracultura brasileira, ao skate e a quase tudo criado em arte urbana no Brasil a partir dos anos 1980. Igualmente incomparável é o resgate realizado pelo etnomusicólogo Obashanan, pesquisador incansável da música de terreiro brasileira e das suas relações com nossa música popular. Na busca pela essência da manifestação artística, o grupo indie argentino Onda Vaga e o artista paulistano Ernesto Bonato têm insights particulares e complementares. A força dos quadrinhos está presente no perfil com André Dahmer, cartunista e artista plástico carioca de gênio irascível e sucesso estrondoso, e na nossa nova seção dedicada ao gênero. O rap segue presente nos perfis com DJ King e El Michels Affair. E ainda temos uma bela homenagem ao maestro Arthur Verocai, um dos maiores arranjadores da música brasileira. Compartilhando manias e mudanças conosco, você ajudou a fazer destes dois anos um período memorável. Obrigado e esperamos que você continue por aí.
+Soma
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+CONTEÚDO
2/12 A Energia Experimental +Agenda Cosmos Direto da Câmara 37 Entre Outros Keke e Lu Maestro do Sol Malvado S/A O Desenho Essencial O Som da Banda +Quadrinhos +Quem Soma Rei da Noite Reviews Seleta Só os Mortos Não Reclamam Som, Poesia e Volume no Graffiti +Soma Amplifica Vol.2 Vagabundagem por uma Questão de Classe Versões e Subversões
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SOUND MOVEMENT SOCIETY
THE GROWLERS MY PET SADDLE GANTEZ WARRIOR and special guests
THE MUSLIMS
www.ezekielusa.com www.myspace.com/ezekielsoundmovement
+COlAbOrADOrES
O projeto +Soma é uma iniciativa da Kultur, estúdio criativo com sede em São Paulo. Para informações acesse: www.maissoma.com
Iniciativa .
ssssssssssssssssss
Kultur Studio Rua Fidalga, 98 . Pinheiros 05432 000 . São Paulo . SP www.kulturstudio.com REVISTA SOMA #12 Julho 2009
Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. Publicidade . Cristiana Namur Moraes cris@kulturstudio.com
Chico Felix Gaúcho de Curitiba, faz cartuns politicamente canalhas no seu zine Gente Feia na TV
Para anunciar ou enviar material para review, entre em contato através do e-mail info@kulturstudio.com.
Fundadores . Kultur Alexandre Charro, Fernanda Masini, Rodrigo Brasil e Tiago Moraes Editor . Mateus Potumati Redação . Natércia Pontes Fotografia . Fernando Martins Revisão . Alexandre Boide
Capa BILLY ARGEL
Projeto gráfico . Fernanda Masini Arte . Jonas Pacheco e Rodolfo Herrera Conteúdo áudio-visual . Alexandre Charro e Fernando Stutz Colunistas . Gustavo Mini, Keke Toledo, Lu Krás, Ricardo “Mentalozzz” Braga & Daniel “Ouriço” Peixoto Gostaríamos de agradecer a Paulo Beto, Liv Brandão, Cláudio Cologni, Fotonauta, Rodrigo Guedes, Fred Leal, Pedro Potumati, Sésper, Agência Alavanca, Azul for Mochilla e B+, Obashanan e Faculdade de Teologia Umbandista, às revistas Prego e Gente Feia na TV, a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha, anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado! Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início. 10
Periodicidade . Bimestral Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros culturais, shows, eventos e casas noturnas. Veja os endereços em: www.maissoma.com/info Impressão . Prol Gráfica Tiragem . 10.000 exemplares
Erratas Edição #11: No sumário, o título “Música das Montanhas” foi grafado incorretamente. No painel de colaboradores, faltou a menção à Cia de Foto. Na matéria “FilmeFobia”, os nomes da cineasta Tata Amaral e do roteirista Hilton Lacerda foram grafados incorretamente. Na matéria sobre o “Duo Moviola: Música Para os Olhos”, Padê na verdade é o nome do disco de Kiko Dinucci com Juçara Marçal, não de um projeto dos dois, como ficou sugerido.
Gustavo Rates Meio que obcecado por música e imagens. De vez em nunca, pra dar uma descontraída na glândula pineal, faz um podcast insuportável e irritante ou se envolve com alguma banda que não vai pra frente.
Fotonauta
Alex Vieira
Arthur Dantas
O Coletivo Fotonauta é: Andrea Marques, Daryan Dornelles e Eduardo Monteiro.
Estudante de Artes Visuais da UFES, criador e editor da revista Prego. Possui uma máquina copiadora no quarto e atualmente produz uma série de colagens para sua primeira exposição individual, intitulada Lote 64.
30, acredita que, para cada detalhe da vida, Mano Brown escreveu uma rima. No momento, escreve uma HQ autobiográfica.
Sabrina Duran
Daniel Tamenpi
Arnaldo Branco
É jornalista e tem 28 anos. Em julho, lançou Pequena Biografia da Mulher Ordinária Que Desejava Ser Um Agrião, livro feito à mão, com edição limitada e numerada, distribuído aleatória e desorganizadamente nos becos da capital paulista.
Jornalista, pesquisador musical e DJ especializado em soul, funk e hip-hop. Escreve o blog Só Pedrada Musical, onde apresenta lançamentos e clássicos da música negra.
É cartunista, roteirista, jornalista, flamenguista, carreirista, oportunista.
+COlAbOrADOrES
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Bento Araújo
Claudio Cologni
Stêvz
É jornalista e editor do Poeira Zine. Não deixa ninguém chegar perto de sua coleção de vinis do Grand Funk Railroad.
Sócio da Nitrocorpz, fotógrafo por hobby, roqueiro por herança e adora pamonha com linguiça.
Desenha, faz música e escreve. Já publicou algumas coisas pela editora independente Pégasus Alado, de Brasília, e atualmente mora no Rio.
Debora Pill
Gabriel Renner
André Maleronka
É jornalista, produtora cultural e apresentadora do programa “Conexões Urbanas”, na rádio Eldorado FM.
Criador do Estúdio Pinel e da revista Letal Mágico, também trabalha como ilustrador e infografista de jornal.
É jornaleiro, não sabe cozinhar e gosta de comer strogonoff de carne frio às três da manhã.
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Por Mentalozz & Ouriço
bom Pra K7
Nesta edição da “Seleta”, falamos com o colecionador de cassetes Paulo Sobrinho. Este rapaz de 36 anos arquiva em sua casa nada menos do que 1352 fitas cassete, todas de rock nacional. Paulo ainda possui dois walkmen das antigas e um aparelho toca-fitas no carro. A paixão pelo cassete surgiu pelo mesmo motivo que levava todo mundo a comprar fitas: elas eram bem mais baratas que os vinis. Atualmente Paulo vende fitas repetidas no centro de São Paulo, mas as exclusivas ele não empresta nem para a própria mãe.8
O primeiro cassete Psicoacústica, do Ira! Custou aproximadamente R$ 5 e o legal é que, além de ter uma música que não saiu no vinil, dá pra olhar o efeito na fita com óculos 3D, que não veio junto. Roubei os óculos do vinil de um amigo (risos). Um cassete especial Longe Demais das Capitais, Engenheiros do Hawaii. Em 2004, fui a um show deles e entrei na fila para pedir autógrafo. O Humberto estava lá, autografando centenas de CDs. Quando parei na frente dele e mostrei o cassete, ele não acreditou: nem ele tinha a fita. Cassete lacrado Time Will Burn, Pin Ups. Esse cassete foi lançado em 1990 e eu comprei em 2000 e poucos. Fiquei tão emocionado por ainda estar lacrado que não tive coragem de abrir até hoje.
Raridades Os discos e CDs do Little Quail and the Mad Birds já são raros, por isso comprei todas as fitas deles que encontrei. O barato é que atualmente o cliente da minha loja que mais procura por essas fitas é o próprio vocalista da banda, Gabriel Thomaz. Música extra Uma peculiaridade do cassete é que, para preencher o rolo inteiro, as gravadoras colocavam músicas extras, remixes e versões inéditas. Um caso engraçado é o do disco Cardume, do Nenhum de Nós. Já imaginou ouvir versões de “Camila” em castelhano? Nem queira... (Risos.) Cassete bizarro Virgulóides? Como todos sabem, o único sucesso dos caras foi “Bagulho no Bumba”. No CD, obviamente, ela é a primeira faixa. Mas no cassete fica no lado B! Se marcar você nem escuta... (Risos.) Peça única: Série Bom Pra K7. Em 1996, algum gênio teve a ideia de lançar uma coletânea de cassetes em plena era do CD. Saíram várias coletâneas de bandas nacionais, como Kid Abelha e outras. Acho que inventaram isso só pra mim. Curiosidade Música Para Acampamentos, Legião Urbana. O único cassete duplo que eu já vi. E inclusive veio com o pôster, igual ao CD duplo. O curioso é que o Duplo Sentido, do Camisa de Vênus, que era duplo, saiu em só uma fita cassete.3 15
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Por Tiago Moraes
4desenho original, model Thronn, 1988
Fontes ilustrativas por
era, até alguns anos atrás, um herói praticamente esquecido. Uma injustiça para alguém que criou, praticamente sozinho, toda a estética do skate, do surf e do punk no Brasil na década de 1980.8 17
4original capa LP da banda finlandesa Massacre, 1985
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4primeiro desenho Mr. Fink, 1985
embro até hoje da sensação incrível que era, no auge da minha pré-adolescência, entrar em uma loja de skate e olhar para aquelas paredes imensas, forradas de shapes incrivelmente coloridos, com desenhos de cruzes, adagas, dragões, morcegos, caveiras e todos os tipos de monstros e criaturas bizarras. Billy sabia como ninguém representar graficamente a verdadeira atitude e rebeldia que o skate representava, em um mercado em que muito se copiava e pouco se criava. Aprendi com o skate e com o punk-rock muito mais do que qualquer professor poderia me ensinar na escola, e o mais interessante é que a arte sempre esteve presente nisso tudo, seja na capa de um disco, num pôster de show ou na parte de baixo de um skate. No ano passado, no suntuoso espaço Santander Cultural em Porto Alegre, um dos segredos mais bem guardados da arte underground brasileira foi finalmente revelado para o mundo. As artes de Billy, que antes eram literalmente massacradas em corrimãos e bordas até praticamente sumirem, ganharam agora status de obra de arte. Quando que você começou a desenhar skates? Eu já desenhava desde moleque. Foi uma coisa natural, eu ficava desenhando na classe – quando você não tem muita motivação na aula, fica desenhando. Já tinha feito algo embaixo de um skate, mas nada sério. Quando eu vi os skates da Dogtown, achei do caralho. Aquelas cruzes eram um símbolo muito forte. Como rolou o seu primeiro desenho para um shape? Foi o model do Porquê para a Urgh, não foi? Foi. Conheci o Porquê na época da Wave Park, quando deram esse apelido. Ele ficava o dia inteiro na pista fazendo perguntas do tipo “por que essa roda é boa?”, “ah, porque é boa”, “mas por que é boa?”, “porque tem rolamento?”, “por que isso?”, “por que aquilo?”, e a gente “Ô, Porquê, dá um tempo”. Outro dia ele apareceu com o irmão, aí todo mundo falou, “esse aí então é o Poisé”. O pessoal não perdoava (risos). O Porquê me deu o shape e falou: “o model não está definido, mas eu quero que você faça um desenho”. Eu topei, só que trabalhava numa agência e não dei muita atenção. Eu ia fazer quando tivesse uma folga. Um dia ele me ligou e perguntou se já estava pronto. Eu disse que sim. Aí ele disse: “tô passando aí, o shape já vai ser lançado e estamos em cima da hora”. Peguei um papel na hora e desenhei umas caveiras. Fui colocando embaixo do vegetal, copiando com um pincel, escrevi o Porquê, fiz a outra cor no pincel, com traços grossos. Pra época ficou muito bom, tanto é que o Jorge [Kuge, dono da Urgh!] me encomendou uma nova série logo depois.
4desenho original, model Lance, 1989
Foi aí que começou a Highgraph? Isso, eu saí da agência e montei o estúdio. Aí não parou mais de chegar trabalho. Também montei uma marca, a Mr. Fink. A minha ideia era vender por reembolso postal, em revistas como a Bizz. A marca vendia bem, chegou até a ser vendida na [extinta rede de lojas] Fruto Verde. Eu atendia muitas marcas de skate e surf, como Urgh!, Lifestyle, Caos, Stanley, Superphen, Cush, Anarquia, Slide, Varial, Billabong, Mango. Pensei “eu entendo desse mercado, sei do que ele precisa: de tudo que é contrário, contracultura”. Na época eu nem sabia o que era isso, mas eu vivia, saca? Depois chegamos até a trabalhar para empresas maiores, como a Vasp e a Hobby (antiga rede de clubes esportivos de São Paulo). Tinha umas dez pessoas comigo, mas o meu negócio era o skate. Quer coisa melhor do que fazer o que gosta e ainda ganhar uma grana? Os caras pagavam bem por esse tipo de trabalho na época? Pagavam, a gente vivia bem. Eu costumava dizer que brincava de ganhar dinheiro. Além de ter uma demanda muito grande, o mercado estava favorável, e nossos trabalhos efetivamente faziam as vendas aumentar, então os caras sempre voltavam. Além disso, rolava identificação, porque a gente falava a mesma língua. Você ia atrás de trabalho ou essas marcas vinham até você? Elas vinham. No começo simplesmente não tinha concorrente. Depois começou a pintar gente querendo ensaiar algumas coisas no computador, e eu falava: “meu, o negócio é fazer na mão mesmo!” Mas a real é que eu também queria ter um computador, só que não tinha grana, nem sabia 19
onde comprar. E eu sempre pirei em letras, para mim a tipografia é 80, 90% do design. Então [com o surgimento do computador], eu pensei: “agora vou poder pegar todos esses livros de fontes, jogar no computador e sair escrevendo o que eu quiser”. E agora a minha pira é criar fontes. Fiquei uns seis meses só fazendo fonte, sem botar a cara fora de casa. Queria fazer uma quantidade legal e sentir a resposta na internet. Tenho muitas inéditas, estou para montar um site.
Quais eram suas maiores influências e inspirações na época? Sem dúvida alguma todas as artes do Jim Phillips para a Santa Cruz, as da Powell... Meu estilo até hoje é o que eu via quando moleque, arte que pegava na veia mesmo. Eu gostava de coisa horrorosa, impressionante. A revista Heavy Metal, que veio quando eu já era adolescente, tinha tudo que estava rolando de mais foda: Moebius, Ranxerox... Era a bíblia do desenho. Na época não tinha internet, precisava juntar uma puta grana para comprar um livro e ter acesso. Outra influência sem dúvida foi o Big Daddy (Ed Roth), com aqueles carros envenenados, os dragsters e o Rat Fink. E depois veio o punk. Como foi a tua incursão no punk? Foi uma coisa de identificação mesmo. Lembro quando eu li a primeira matéria sobre os Sex Pistols, na Manchete, falando de um novo fenômeno na Europa. Vi as fotos dos caras e falei “caralho”. E não era aquele som pesado, hardcore, que veio um pouco depois. Era um som mais com ideias. Nessa época eu estava ligado numa coisa mais imediata, eu vinha do rock pesado anterior ao metal e percebi que tinha a ver com os desenhos em nanquim do punk. Foi um negócio do caralho, você via um Duane Peters, um Steve Olson Olson (skatistas ligados ao movimento skate-punk). Eu já gostava de All Star, e os caras usavam. Quando você vai ver, está tudo interligado. E aí você já quis montar banda, tocar? Eu queria tocar Black Sabbath, mas como andava com os punks não podia falar que gostava de Ozzy, AC/DC. Só que eu gostava muito. Depois de um puta tempo, fiquei sabendo que os punks que andavam comigo também gostavam de Sabbath, só que ninguém falava. Nessa época não podia, senão você era execrado (risos). 20
4Progress, 2009
Qual foi a sensação quando você viu alguém usando um shape que desenhou pela primeira vez? Sabe o que eu pensava? Eu quero mais! Queria ver a minha parede cheia de skate. Coleciono várias coisas, como você pode ver: guitarra, anel de caveira, moto, lata de spray. Acho que é um pouco de medo, porque quando eu era moleque não tinha as coisas. Lembro que a gente já passou dificuldades – não fome, mas saía do colégio pago e ia pro do governo, não tinha grana pra comer lanche no recreio. E de bandas nacionais, o que você curtia? Ratos de Porão foi uma puta referência pra mim, Olho Seco, Desordeiros, Fogo Cruzado. Sabe o que foi legal do punk? Foi a primeira galera que eu vi fazer sem ter condição nenhuma. Todo mundo pode fazer o que quiser, basta querer!
Teve um período em que você se afastou um pouco da cena. Algum motivo em especial? Não foi nada com relação à minha arte, foram problemas pessoais. Nem gosto muito de falar disso. Fui embora porque me decepcionei com muita gente, mas quero deixar claro que não foi nada em relação à minha arte e ao skate. Foi um lance muito foda, de traição mesmo. Não que eu tenha raiva de alguém hoje, mas algumas pessoas não precisavam ter feito o que fizeram. Mas acho que o mais legal de tudo é que eu dei a volta por cima e hoje acredito nas pessoas como acreditava antes. Acho que a verdade prevalece sempre. Eu fechei a Highgraff, mandei todo mundo embora, vendi meu apartamento e fui pro interior. Fiquei numa fazenda, junto com os peões, trabalhando, dormindo cedo, acordando de madrugada. Apartava o gado, levava pro leilão, ia comprar alfafa no Paraná... Mudei completamente de vida. Continuei desenhando, só que para aquele mercado: fiz logotipo de Haras, fiz logotipo da Rádio Cultura de Dois Córregos, que é o mesmo até hoje, fiz o logotipo da prefeitura. E Floripa, foi depois disso? Isso, quando nasceu meu segundo filho. Eu já estava de volta, trabalhando com várias marcas de novo – Billabong, Stanley. O pessoal da Stanley estava em Floripa e eu ia lá duas vezes por ano. Aí meu casamento não deu certo. Já tinha nascido o segundo filho, eu tinha um apartamento, estava estruturado de novo. Fiz uma mala de roupa e fui pra lá dar um tempo. Acabei ficando quase 5 anos.
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4detalhe do desenho original, model PorQ, 1985
Quais outros artistas dessa nova geração você admira? Sou fã do Sesper, Speto, Pato, Tinho, Herbert... Tem um monte de gente. E lá fora? Robert Williams, Rick Griffin, esses caras pra mim estão no céu. Quando eu era moleque, fiz uma viagem e voltei com um livro do Griffin. Vi aquele livro com um olho na capa e falei: “Olha só, igual ao que eu faço! Esse livro é meu!” Foi um negócio impressionante!
Você acompanhava o que estava rolando por aqui? Não. Não que tenha esquecido, é difícil esquecer a origem. E eu tinha um patrimônio, minha mãe sempre morou aqui e cuidou das minhas coisas. Tenho originais guardados, fotolitos, letrasets, até xerox. Procurei sempre ser correto, não tenho vergonha de nada que fiz. Meu espaço já estava conquistado, não tinha que provar nada pra ninguém, sacou? Então eu pensei, “as próximas gerações vão escrever a história delas”. Agora eu voltei porque conheci o Farofa, Danielone, você, Pexão. A Transfer, por sinal, foi uma das maiores, senão a maior mostra de arte urbana no Brasil até hoje. Você teve uma forte participação nela. Fale um pouco a respeito. Ali havia pessoas que vivenciaram aquela época, mas do outro lado. Achei legal a oportunidade de poder mostrar o lado de quem produziu, e a razão disso.
Eu, que comecei a andar de skate em 85, 86, fui profundamente impactado pela sua arte e pela estética de skate que você ajudou a moldar. Antes de presenciar isso na Transfer, você tinha noção da força das coisas que tinha criado e do impacto que isso teve em toda uma geração? Eu sabia que tinha, sim, exercido algum impacto. Mas não tinha noção do quanto. Na abertura da Transfer eu não conhecia ninguém, não tinha nem convite. Cheguei e falei “sou o Billy, tô entrando aí”. Entrei e não dava pra andar lá dentro.
A receptividade que você teve na Transfer te deu um gás pra falar “agora é hora de fazer uma produção nova, cravar de vez meu nome nessa história que está rolando e crescendo?” Nos últimos anos, experimentei bastante com novos estilos, tentei fórmulas mirabolantes, mas a real é que não posso sair do meu riscado, sabe? Estou fazendo produções novas, lógico, mas um tipo de desenho que eu sei fazer – usando novas influências, técnicas, mas tem aquela espinha dorsal. O meu estilo é o meu estilo, eu não vou mudar. Fiz umas experiências, simplifiquei, e agora voltei a criar nessa pegada mais old school mesmo, preto no branco. Hoje, não dou tanto valor não para exposição na mídia, essas coisas, mas sim para amizades verdadeiras. É muito fácil se perder, como eu já me perdi, envolto em ego, essas besteiras de querer ser melhor que os outros. Precisa tomar muito cuidado com isso, porque a fama é efêmera. O principal é a arte em si, que tem que vir da alma, ser visceral. Fazer um bonequinho qualquer, um personagem, qualquer um pode. É só um desenho. Qual a importância do Farofa (Sesper) nessa sua nova fase? Pô, o cara é foda! Ele me levantou de verdade na época que eu mais precisava, me fez ter coragem de sair de um emprego em que eu estava ganhando uma puta grana, mas estava infeliz. O Farofa chegou e disse: “Mano, você tá perdendo tempo!” Eu não entendia o que ele falava, mas a real é que eu estava vivendo que nem um merda. Perdi minha mulher e de repente me vi sozinho – voltei de Floripa, com dois filhos pra cuidar e completamente sem nada. Vendi minhas coisas lá, paguei as contas e vim embora. E pra aprender a ser pai? E de repente o Farofa chega do nada, falando um monte de coisas... O cara me deu uma lição de vida muito fodida, começou a me apresentar coisas, pessoas, me deu uma aula sobre a importância do meu trabalho. Foi quando eu vi que estava longe, enterrado numa firma, resignado. Que tipo de mensagens você quer passar com a sua arte? Não que eu seja um cara pessimista, me considero mais para realista, e eu vejo que o buraco é bem mais embaixo. O maior problema que vivemos hoje é a quantidade de gente no mundo: merda pra caramba, poluição pra caramba, não tem emprego para todo mundo, não tem comida para todo mundo. Eu não tenho nenhuma mensagem mirabolante para passar, meu berço é o punk, o inconformismo. Só os mortos não reclamam, já dizia aquela música do Lobotomia.3
8Saiba mais: billyargel.com billyargel.blogspot.com Confira uma seleção especial com trabalhos de Billy Argel em maissoma.com/galeria 23
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O Som da Banda. Raízes, Louvações e Outros Segredos Esquecidos da Música Brasileira. Por André Maleronka . Colaborou Erica Gonsales
“Se parar pra analisar, pelo menos 80% da estrutura básica da música brasileira, seja na harmonia, na melodia ou na parte rítmica, principalmente, vêm dos terreiros”, dispara o mestre Obashanan. Partindo desse recorte, ele compila, grava e lança música de terreiro por sua gravadora, Ayom Records.8
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bashanan se descreve como “alabê, baterista, percussionista, etnomusicólogo, escritor, umbandista e brasileiro”. Acima de tudo, é um perseverante: numa época em que o interesse pela música sacra afro-brasileira e suas ramificações parece restrito a nichos de interesse como o folclore ou a própria religião, e em que as diferentes expressões religiosas identificadas com ela sofrem ataque constante dos cultos neopentecostais, sua gravadora já lançou quatro títulos e caminha para muitos mais. No primeiro deles, Ayom Lonan – O Caminho dos Tambores, ele apresenta os 22 principais toques executados nos terreiros do Brasil, em sua opinião. Os outros três abrem séries: um dedicado a gravações pioneiras, outro de pontos (cantigas) dedicados aos espíritos conhecidos como encantados (o volume 1 trata de Ciganos e Malandros) e outro que comemora os 100 anos da umbanda. Ele também mantém um blog, Acervo FTU, no qual publica verbetes com amostras sonoras sobre as gravações de música de terreiro e relacionadas que coleciona. Sua coleção, ele avalia, tem “mais ou menos 20 mil fonogramas”. Partindo da umbanda, seus LPs, CDs, fitas cassete e arquivos digitalizados de discos de goma-de-laca (78rpm) e até de cilindros incluem balanço dos anos 60 e 70, MPB, samba e toda sorte de rituais afro-brasileiros e indígenas, além das mais insólitas combinações entre eles. “Minha avó era guarani e fazia os rituais em casa. Ela falava que era umbanda, mas hoje em dia eu sei que [a música] era [o ritmo indígena] toruá – um culto a Jurema, algo assim. Mas ela dizia umbanda, assim como muitos outros no Brasil inteiro. Existem grupos de terreiro que fazem uma coisa próxima das nações [de candomblé] ou de cultos católicos e falam que é umbanda. É tudo muito diversificado.” 26
Música esquecida, música reprimida O Ruy Maurity fez muito sucesso nos anos 1970, e todo disco dele tem ponto de umbanda. Ele participou de pelo menos três trilhas de novelas da Globo, mas quem não é da época não conhece. Quando você fala que a música de terreiro foi esquecida, é disso que está falando? Não, o que eu quis dizer é que nunca houve uma pesquisa. Grandes artistas foram atrás dessa música – Baden Powell e Vinicius (de Moraes),Villa-Lobos –, mas [existe também] a forma como ela é feita dentro dos templos. Quem não é do santo (iniciado no candomblé ou na umbanda) vê esses ícones da música e entende tudo como folclore brasileiro – o que é certo, também. Mas há pouca informação sobre o pessoal que faz música de terreiro. Há diferenças entre a música original e as versões – ambas podem ser completamente diferentes e, para esse tipo de música, se perde muito. As gravações de Clara Nunes, talvez a maior divulgadora das religiões afro-brasileiras na música, Ruy Maurity e Jorge Ben, entre tantos outros, podem ser consideradas religiosas? Não, porque não são entoadas ritualisticamente. [Canta trecho de “Nem Ouro Nem Prata”, de Ruy Maurity:] “Eu vi chover, eu vi relampear, mas mesmo assim o céu estava azul/ Samborê Pemba Folha de Jurema Oxóssi reina de Norte a Sul.” Esse ponto é de raiz, mas cantado desse jeito perde suas propriedades. Ele é assim, na verdade [canta a mesma letra, alongando as frases], é outra coisa. Quando você canta desse jeito a coisa treme, tem gente que chora. É outra função. Na história da música brasileira, a conexão mais imediata da música de terreiro é feita com o samba, já que o gênero tem origem bantu.
Grandes artistas foram atrás dessa música – Baden Powell e Vinicius (de Moraes), VillaLobos –, mas [existe também] a forma como ela é feita dentro dos templos. Quem não é do santo (iniciado no candomblé ou na umbanda) vê esses ícones da música e entende tudo como folclore brasileiro – o que é certo, também. Mas há pouca informação sobre o pessoal que faz música de terreiro. “O samba vem das angolas, do [toque] congo de ouro”, diz Obashanan, citando um dos três polirritmos de origem africana bantu que formam a base de rituais das nações de candomblé angola, que, ao contrário das nações ketu, têm maior aceitação de cânticos em português. O congo de ouro é também o toque mais conhecido da umbanda, segundo Obashanan. “As marchas vêm do candomblé avania (toque rápido também conhecido como avamunha, tocado para todos os orixás), os lundus vêm diretamente dos ritmos bantus”, ele explica. “É tudo muito variado, mesmo dentro dos cultos. Há muitos terreiros no Nordeste em que o pessoal usa o triângulo no lugar do agogô, porque o ferro tem que estar presente no ritual. Existe baião de cura, as barquinhas, que são ritos em que os encantados baixam e tocam viola. É uma festa. E essa história tem que ser recontada.” Qual a diferença entre esses dois tipos de música? Existem três momentos da música: modal, tonal e serial. A modal é primeva, das primeiras manifestações humanas. O baião, a música indiana, a judaica e a africana são assim. E a música de terreiro também. Há uma diferença muito grande entre escutar [a música, enquanto ela é criada] dentro da coletividade e a coisa burilada, colocada dentro de arranjos, que matam um pouco da espontaneidade que existe dentro do terreiro. Lá não tem hora: a música é circular, acaba quando tem que acabar, quando todo mundo sente que o ponto acabou. É diferente de uma musica tonalizada, que tem começo, ápice e fim. Essa música original de raiz foi muito registrada, mas as pessoas se esquecem que a música popular deve muito a ela. Como coloca o entrevistado, a música modal é, por definição, mutante e improvisada. Se a música tonal é baseada em acordes – variações de 27
O último disco do J.B. Carvalho, O Rei da Macumba, que tá ali (aponta pilha de LPs), foi produzido pelo Guto Graça Mello, o rei da discoteca. A pressão sonora é impressionante. Ele sempre acompanhou muito as novidades. Começou nos anos 1930, aquela coisa do samba antigo – as primeiras gravações ainda são de samba com banjo, e ele veio acompanhando.
alturas melódicas –, na música modal quem manda é o pulso, onde os elementos são, ao mesmo tempo, melódicos e rítmicos. É a partir da introdução de escalas modais em sua música (no álbum Kind of Blue, quando ainda tocava com Miles Davis) que o saxofonista John Coltrane encontra os novos caminhos que vão informar seu free jazz e o de grupos como o Art Ensemble of Chicago. “Há muitos terreiros pelo Brasil que fazem coisas importantes hoje, cantam músicas antigas, de 100, 200 anos atrás, e a gente quer gravar direito. Nos registros antigos não há nem identificação de quem canta ou toca”, ele aponta. “A gravadora começou em cima da minha pesquisa para o acervo. Na verdade, eu comecei despretensiosamente. Tô na umbanda desde os sete anos, tomei contato com a música de terreiro, com discos, foi uma coisa natural. Fui juntando, colecionando, e vi que esses discos estavam perdidos, no ostracismo. A ideia da gravadora e do acervo é manter uma cultura musical presente”, Obashanan explica. “Até hoje em Cuba o pessoal de música popular – da salsa, latin pop – dedica uma faixa pro santo nos discos. Aí você pega o povo daqui, cadê? Quem fez foi Martinho da Vila, a Clara Nunes fazia, mesmo nos [discos] do J.B.” Obashanan se refere a J.B. de Carvalho, cantor de voz forte morto em 1979, que no início da carreira também atendia pela alcunha Maciste. “O que ele fazia? Transformava pontos de raiz em pontos de louvação e gravava. Mudava muito a métrica da canção.” J.B. gerou polêmica ao assinar a autoria de pontos de domínio público, e produziu discos dos mais variados. 28
“Ele tem discos com instrumentação tradicional e misturada. Unia os ritmos (religiosos e populares) a vertentes de cultos – fez até uma versão de ‘Jesus Cristo’, do Roberto Carlos, muito interessante. Eu acho que ele queria se manter atual. O último disco do J.B. Carvalho, O Rei da Macumba, que tá ali (aponta pilha de LPs), foi produzido pelo Guto Graça Mello, o rei da discoteca. A pressão sonora é impressionante. Ele sempre acompanhou muito as novidades. Começou nos anos 1930, aquela coisa do samba antigo – as primeiras gravações ainda são de samba com banjo, e ele veio acompanhando. Os discos dele da década de 1940, [época da] Invasão Cubana no Brasil, têm muitas coisas com estrutura caribenha”, conta. O primeiro sucesso de J.B. foi com seu Conjunto Tupi, no qual Herivelto Martins começou sua carreira. J.B. foi o primeiro a gravar uma composição de Herivelto, “Da Cor do Meu Violão”. Os dois fizeram sucesso com o samba “Preto no Branco”, que fazia alusão à dupla intérprete. Durante a década de 1930, o Conjunto Tupi fazia com muito sucesso o que iria nortear a carreira de J.B.: versões de música de terreiro. Apresentações nas rádios cariocas (o circuito de sucesso de então) foram diversas vezes interrompidas pela polícia, que prendia o cantor. Até a década de 1960, pelo menos, as práticas afro-religiosas eram duramente perseguidas pelas delegacias de costumes. Dizia-se à boca miúda que J.B. só conseguia sair da prisão devido à amizade do presidente Getúlio Vargas. Você vai lançar o J.B.? Foi você quem me mandou essa sugestão? [Respondo que não]... É uma ideia. Inicialmente eu colocava [o acervo] pra download no blog. Mas teve
gente falando que era pirataria, [não entenderam que] a ideia era deixar pra todo mundo. Queria ter um lugar para as pessoas visitarem e escutarem. Não sei nem como estruturaria isso. Isto aqui (mostra fita cassete) eu ganhei do pai Demétrio, um dos mais antigos de São Paulo, morto recentemente. É uma gravação com o Caboclo das Sete Encruzilhadas. Um dos primeiros registros históricos da umbanda se deu no bairro das Neves, em 1908, com essa entidade, por meio do médium Zélio Fernando de Moraes. Essa gravação é a primeira com a palavra umbanda. A gente tá gravando um violonista e uma cantora, ambos negros, que fazem música erudita com temas africanos. Chama-se Duo Abanã.Vamos lançar também a Mãe Iberecy, uma senhora desconhecida de Campinas. Ela canta muito bem, é maravilhoso o que ela faz, e ela recebe os pontos de forma mediúnica. Essa é uma categoria da mediunidade praticamente extinta dentro dos terreiros. Hoje em dia as pessoas compõem, mas é um tipo de composição meio profano. As pessoas compõem como se faz samba, e não era assim antigamente. Tem o [disco dos] Boiadeiros, com um senhor do Amazonas, que tá pronto. Ele veio fazer uns exames no HC, um conhecido meu de lá fez o contato. Não quis tirar foto – “Tô gravando, já tá bom demais!” (risos). Tem ainda um de violas e atabaques que gravei, além de um apanhado de pontos recolhidos no interior de São Paulo. Pelo menos um de seus lançamentos levanta novos dados para a pesquisa desse tipo de música no Brasil. Deixa a Gira Girar! As Gravações Pioneiras da Música de Terreiro Volume 1: 1900 – 1940 não tem os pontos gravados pelo fundador do Império Serrano Mano Elói ao lado do Conjunto Africano em 1930, apontados por estudos como os primeiros gravados 29
“Vocês não conhecem essa história? Baixou o santo nas Chacretes, auditório, produção, câmera! Depois uma delas entrou incorporada num carro e foi pro programa do Flávio Cavalcanti, onde aconteceu a mesma coisa. Deu confusão isso aí.” com estrutura e instrumentação de terreiro, e nem “Candomblé”,de Chiquinha Gonzaga, lançado em 1888, que era um batuque. Mas as faixas, provenientes da digitalização do acervo do falecido colecionador de cilindros e discos 78 rpm Pietro Agostini de Biachi, contrariam essa bibliografia. “Preto Velho no Terreiro”, cujo cilindro original assinalava a data de 1900, é uma peça instrumental de piano e acordeom de influência francesa, com os baixos do piano em cadência próxima à dos lundus e batuques da época. Os dois pontos de quimbanda, cuja interpretação por João Quilombô datam de 1907, trazem arranjos de metais claramente influenciados por choro e dixieland. Mas as gravações de Pai José Espínguncla e o Terreiro de Rae Alufã, “Macumba de Ochocê” e “Macumba de Inhasã” (grafados assim), de 1920, são cânticos com instrumentação de terreiro: xequerê, palmas e atabaques do tambor de xangô nordestino. Ambas são anteriores às gravações de Mano Elói, segundo a pesquisa de Obashanan. A verdade é que a relação entre poder e religião sempre deu caldo. “Vocês não conhecem essa história? Baixou o santo nas Chacretes, auditório, produção, câmera! Depois uma delas entrou incorporada num carro e foi pro programa do Flávio Cavalcanti, onde aconteceu a mesma coisa. Deu confusão isso aí.” Rindo, Obashanan comenta o que parece ser apenas um fato engraçado da história das religiões afro-brasileiras. Mas a passagem da mãe-de-santo Dona Cacilda de Assis pelos maiores programas de auditório do Brasil, em 1971, com o país sob a ditadura militar, foi classificada à época pela mídia como “o acontecimento televisivo mais importante do ano”. As apresentações de Dona Cacilda de Assis com os integrantes do seu terreiro nos programas do Chacrinha e Flávio Cavalcanti foram a gota 30
d’água na discussão que então se chamava “Qualidade na TV”, e geraram crônicas indignadas de intelectuais em periódicos (algumas assinadas pelo escritor Nelson Rodrigues), reprimendas da igreja católica e ameaças de controle governamental da programação por parte do então ministro das Comunicações Hygino Corsetti – segundo consta, refreadas por Médici, cuja esposa entrou em transe assistindo ao espetáculo. Obashanan diz que os rituais apresentados degringolaram em ritos de quimbanda, que trabalhariam com os espíritos situados no plano mais baixo da escala espiritual – e que Seu Sete Rei da Lira, entidade incorporada pela médium, não gostou da coisa toda e resolveu bagunçar o coreto. Estudiosos acrescentam que essa foi a primeira mostra em âmbito nacional de uma religiosidade vista até então como subalterna – uma afronta à mentalidade eurocêntrica que a elite e parte da população brasileira gostam de envergar. Seja como for, a discussão se inscreve na polêmica cíclica que envolve não só a produção nacional audiovisual de massa, hoje com a bandeira “Baixaria na TV”, mas na forma como os brasileiros querem se mostrar e ver o Brasil representado. Tudo isso desembocou na entrada em vigor do “Código de Ética da Televisão Brasileira”, um protocolo de autocensura que a Globo e Tupi assinaram no mesmo ano. Durante o período em que a música foi forte veículo divulgador das religiões afro-brasileiras, os imbróglios enfrentados por conta da rejeição de parcela da sociedade eram comuns. Curiosamente, é no mesmo ano de 1971 que a cantora Clara Nunes, que já gravara músicas de inspiração umbandista, viaja à África e inicia pesquisa que a torna uma das principais divulgadoras dos cultos afro-brasileiros. Sua iniciação, no ano seguinte, foi acompanhada em detalhes pelas revistas de maior circulação da época. Em viagem a Cannes, a cantora interpretou canções de seu repertório afro-religioso na praia, para a imprensa. A exposição pública de sua fé,
Os discos de pontos são divididos em duas categorias: de raiz e de louvação. “O ponto de raiz é trazido por uma entidade incorporada dentro de um transe, e por ele vem o fundamento da entidade. Por isso, possui poder de invocação e evocação – invocar é pedir, evocar é ordenar. O ponto de louvação é quando alguém – um compositor ou qualquer pessoa – cria um com um intuito (“quero louvar Xangô”, por exemplo). cuja filiação ao longo da vida transitou entre a umbanda, o candomblé e o xangô nordestino, resultou em generalizações grosseiras e na construção de um estereótipo. Diferenças cruciais – o culto aos pretos-velhos da umbanda não existe no candomblé, por exemplo – foram agrupadas sob o nome macumba, que denota outras práticas específicas, mas que no jargão difundido carrega o traço de preconceito eurocêntrico. Isolando-se o rock nacional, a música brasileira como um todo nunca foi tão pouco ambiciosa. O grosso da música nacional exibe uma crise de qualidade e abandonou a intenção de dialogar com a música mundial, aderindo a uma postura quase servil às diferentes escalas de pop global, que, portanto, pouco propõe diretamente à população. Entre os conceitos que determinam a produção de jornalismo cultural, por exemplo, esses capítulos da vida brasileira são relegados ao campo do meramente folclórico. Em se tratando de espalhafato, não se avançou muito. Quando do lançamento do álbum Candombless, de Carlinhos Brown, a crítica de um grande jornal de São Paulo desqualificava a obra como má mistura de timbres eletrônicos e “a ancestralidade” dos ritmos de candomblé, também adjetivados como rústicos, demonstrando desconhecimento da vitalidade de algo que foi, ao menos em termos de artefatos culturais, tão forte no cotidiano dos brasileiros. Se nos anos 1970 a busca pelas raízes se concatenava a uma vontade de construção da identidade nacional, ela também vinha de uma vontade de se comunicar com as pessoas em geral – não com um ou outro grupo em determinados nichos. Obashanan, assim como outros músicos e pesquisadores, tenta registrar alguns capítulos da nossa memória sonora. No mais, ficamos por enquanto como declarou Mano Brown, em entrevista no documentário Aqui Favela, o Rap Representa, de 2003: “Andando com roupa de americano. Agora, preto brasileiro, ninguém quer ser”.3
8Saiba Mais acervoftu.blogspot.com ayomrecords.blogspot.com www.ftu.edu.br 31
OndaVaga
Vagabundagem Por Uma Questão de Classe Por Mateus Potumati . Fotos divulgação
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“Punk sem microfone, rock sem patrocinadores, candombe próprio de tango alegre. Os tempos não estão mudando, e no final do caminho não há nada: por isso a festa, porque chega até nós, como quem não quer nada, uma onda sem esperança nem promessas, puro presente louco em voz alta. Quanto preconceito com a vagabundagem, senhores! Eles não creem muito em nada, mas um pouco em tudo, se jogam ao canto como ao mar, são o último folclore do mundo por acidente. É tempo de outra canção – cante quem ficou por perto, qualquer um pode levar um ritmo e dançar um pouco. Se você não percebe é porque está ocupado demais com sua vida de merda. Sua vez chegará, para nossa voz. Seu tempo é depois.” Pablo Dacal 8 33
“Eu estava muito envolvido com rock, tocando rock, pensando rock, e ver essa banda à luz da lua, sem microfones, cantando no chão, bateu forte, mexeu muito comigo. Pensei e senti que a música recuperava uma força gigante, se reduzindo à sua expressão mais simples. Isso me fez ter muita vontade de ter minha própria banda acústica.” Na noite do primeiro show, o dono do bar perguntou que nome deveria colocar na lousa. Um deles respondeu “Onda Vaga” (algo como “estilo vagabundo”, em espanhol portenho), e o nome grudou. A “vagabundagem”, então, virou o Dogma do grupo, seja na atitude informal nos shows, seja no próprio ethos de trabalho. Em entrevista publicada no jornal Crítica de La Argentina, eles revelam que, durante a estadia na praia, se deram conta de “como era divertido ter uma banda e não precisar passar som nem colocar cabos, só chegar e tocar. Estávamos ensaiando com um tambor, mas nos demos conta de que não poderíamos carregá-lo. ‘Você vai levar?’ ‘Não.’ ‘Nem eu.’ Aí, paramos de ensaiar com o tambor.” Desde então, o Onda Vaga só faz shows com os instrumentos que cada músico consegue carregar e que caibam no carro da banda, junto com eles. Há cinco anos, durante as comemorações da virada de ano em Buenos Aires, um incêndio destruiu a República Cromañón, badalada casa de shows no bairro de Balvanera, perto do centro político e financeiro da cidade. A tragédia deixou 194 mortos, 714 feridos e um efeito devastador para a música independente portenha: reprovadas em requisitos de segurança, casas noturnas foram caindo uma a uma. O surgimento de novos espaços também foi fortemente desencorajado, devido aos altos custos de cumprir com as exigências – muitas delas descabidas – de uma fiscalização endurecida pelo trauma nacional. Os poucos espaços que restaram, saturados, dificultaram o acesso a bandas iniciantes, alguns até cobrando para fechar datas. Mesmo grupos com mais público e experiência, como Babasónicos, El Mató a um Policia Motorizado, Los Natas e outros foram diretamente afetados pelo que ficou conhecido como “efeito Cromañón”. Ao melhor estilo bonaerense, grupos e associações de músicos organizaram protestos e outras formas de pressão política nos últimos anos, mas até agora o panorama não mudou consideravelmente. No meio disso tudo, no verão de 2007, integrantes de duas dessas bandas iniciavam uma reação insólita, quase acidental. Ignácio “Nacho” Rodríguez e Marcelo Blanco (que formavam a banda de indie rock Doris), mais Marcos Orellana e Tomás Justo (do Michael Mike, de pegada mais experimental) buscaram inspiração na paisagem rústica de Cabo Polonio, destino bicho-grilo no litoral uruguaio sem rede elétrica e povoado por lobos marinhos – uma espécie de Jericoacoara ou Caraíva de décadas passadas. “Cabo Polonio é um lugar lindo, iluminado por velas, pela lua e pelo sol”, define Nacho Rodríguez. Ali, os quatro montaram um set acústico (cajón flamenco, violão, cuatro venezuelano, trompete e maracas) para tocar músicas das duas bandas e composições do grupo em formação (criadas por aqueles dias). “Nesse cenário”, segue Rodríguez, “conheci uma banda acústica uruguaia de que faziam parte, entre outros grandes músicos, Martin Buscaglia e Martin Moron”. 34
Com relação à música, no entanto, o comportamento é outro. A limitação autoimposta de recursos fez o grupo se concentrar no trabalho de cordas e, especialmente, nos vocais. Arranjos intricados, às vezes com três ou quatro vozes distintas, fazem melodias contundentes para letras marcadas ora pela mais pura malandragem (“Desde arriba abajo/ Desde esquerda a derecha/ Hace vários dias/ Que no emparcho tu brecha”, em “Sequía de Amor”); ora pelo nonsense psicodélico (“Es de dia/ Y yo de noche/ Quiero volarme la cabeza”, em “Parque”); ora por um lirismo romântico maduro (“Regame el patio a manguera/ Niña de la primavera/ Niña de la primavera/ Regá mi patio de amor”, na releitura de “Como Que No” do compositor uruguaio El Principe). A adesão de Germán Cohen (Satélite Kingston, Orquestra de Salón), em maio de 2007, trouxe outra voz com extrema habilidade melódica, além do grave elegante do trombone. Desde então, o Onda Vaga desenvolveu uma musicalidade que une gêneros sul-americanos (cumbia, tango, candombe uruguaio) e caribenhos (rumba, reggae, reggaeton) ao folk, ao rock e à bossa nova. “Tudo aconteceu de forma muito natural. A instrumentação nos deu um limite saudável, dentro do qual podemos fazer canções diferentes com temas e estilos diferentes”, diz Marcos Orellana, responsável principalmente pelo cajón e pelas maracas (na banda, na verdade, quase todos os instrumentos são intercambiáveis). “Sempre nos sentimos familiarizados aos folclores latino-americanos, carregamos esses ritmos dentro da alma. Com o rock é a mesma coisa: é um mundo em que sempre quisemos estar, que entendemos e amamos.” O gosto pela música brasileira também é manifesto. “Sou fascinado por música brasileira”, diz Nacho Rodríguez. “Entre meus discos favoritos estão Jóia, do Caetano Veloso, e Estudando o Samba e Se o Caso é Chorar, do Tom Zé. Temos muita vontade de tocar ‘Vai Passar’, do Chico Buarque. Quem sabe um dia.”
Nuevos PuNks
De volta a Buenos Aires, ainda em 2007, a epifania de Cabo Polonio gerou mudanças em pouco tempo. A facilidade de locomoção, a informalidade e a renúncia à amplificação libertaram o grupo da dependência do viciado circuito roqueiro portenho. O Onda Vaga passou a tocar em lugares incomuns para o que, na opinião de alguns, seria a primeira superbanda indie argentina – os cinco se apresentavam até nas ruas, à moda dos tradicionais grupos de milonga locais. Em entrevista à Rolling Stone argentina, Tomás Justo, que se reveza no violão e no cuatro venezuelano com Nacho e Marcelo Blanco, descreveu o approach da banda no começo: “chegávamos às festas e falávamos: ‘Oi, falaram que tinha uma festa aqui e trouxemos os instrumentos. Podemos tocar?’” Em seguida, começaram a surgir ofertas para tocar em mostras de arte e em toda sorte de festas de amigos e conhecidos. A combinação entre uma atitude nada exigente e músicas irresistíveis gerou empatia imediata com o público. A base de fãs foi crescendo, boca a boca. Um dos convertidos foi o veterano roqueiro argentino Fito Páez: “O Fito foi ver o show do Pablo Dacal e [naquela noite] nós abrimos”, lembra Orellana. “Depois do show ele veio falar que tinha curtido a banda, e perguntamos se gostaria de gravar umas vozes [para o nosso disco]. Ele aceitou, e também gravou o piano em ‘Como Que No’. Ficou muito bom.” O disco, o ótimo Fuerte y Caliente, saiu em 2008 e figurou nas listas mais importantes da música argentina naquele ano. Além do piano, Fito Páez emprestou a voz a “Va al Oeste” e a “Gilda”, em que canta os atributos físicos de uma morena colombiana e rima “encandilan” com Bob Dylan. Outro convidado é o talentoso Pablo Dacal (voz em “Mambeado”), entusiasta da banda desde o início.
“Sempre nos sentimos familiarizados aos folclores latinoamericanos, carregamos esses ritmos dentro da alma. Com o rock é a mesma coisa: é um mundo em que sempre quisemos estar, que entendemos e amamos.” O gosto pela música brasileira também é manifesto. “Sou fascinado por música brasileira”, diz Nacho Rodríguez. “Entre meus discos favoritos estão Jóia, do Caetano Veloso, e Estudando o Samba e Se o Caso é Chorar, do Tom Zé. Temos muita vontade de tocar ‘Vai Passar’, do Chico Buarque. Quem sabe um dia.”
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“Me divirto com essa menção a nuevos punks, já que isso não existe mais para mim, o rock deixou de ser rebelde, está completamente cooptado. A mim, parece que o Onda Vaga criou seu próprio lugar, o inventou, saindo para tocar na rua, aparecendo em festas, violentando de alguma maneira os espaços para poder cantar. Nisso talvez tenhamos algo de punk, de ir contra o que está estabelecido, de como um show deve ser – às vezes tocamos sem palco, às vezes na rua, um lugar onde falta música, pessoas que querem tocar e que querem escutar.”
Após o lançamento do disco, a fama do Onda Vaga cresceu ainda mais rápido. Em pouco tempo, a convite de Páez, eles faziam seu primeiro show amplificado, para um público de 7 mil pessoas. Depois vieram apresentações fora do país e, enfim, o interesse – agora remunerado – do circuito de festivais e casas nobres portenhas. Em um show realizado em maio deste ano no Niceto Club (parecido em dimensões e status com o Clash Club, de São Paulo), no badalado bairro de Palermo Hollywood, em Buenos Aires, mais de mil pessoas cantavam todas as faixas de Fuerte y Caliente com o grupo. Na plateia, a presença de um público mais amplo não alienou a base indie que acompanha o grupo desde o começo. Com as atenções voltadas para o grupo, vieram as comparações – a primeira, óbvia e inevitável, com Manu Chao. “Claro que Manu Chao é uma referência para nós, tanto musicalmente como na mensagem das letras”, disse Marcelo Blanco a um jornal. Há, no entanto, vários elementos que impedem o grupo de cair num mero revisionismo manuchaísta – especialmente o trabalho vocal, os sopros e o cuatro venezuelano. Mais curioso, porém, foi o termo difundido em parte da imprensa portenha: “nuevos punks”. O uso de tal figura em um país como a Argentina – onde a cultura do rock é tão forte que deu aos Ramones o tratamento de rockstars tardios com que eles sempre sonharam – chama a atenção. (Aliás, coincidência ou não, os Ramones são homenageados no disco com um cover de “Havana Affair”, em que o hino sobre a Guerra Fria ganha um balanço entre a bossa nova e a música havaiana, dando um clima maconheiro à levada paranóica de Johnny Ramone.) Se não há propriamente um alinhamento estético ou de conduta com o punk, é inegável que o dogmatismo acústico e a busca por novos espaços para tocar têm sua dose de subversão e resistência. “O rótulo soa simpático, mas não é muito real, um pouco fantasioso”, reconhece Marcos Orellana. Nacho Rodríguez se aprofunda mais: “Me divirto com essa menção a nuevos punks, já que isso não existe mais
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para mim, o rock deixou de ser rebelde, está completamente cooptado. A mim, parece que o Onda Vaga criou seu próprio lugar, o inventou, saindo para tocar na rua, aparecendo em festas, violentando de alguma maneira os espaços para poder cantar. Nisso talvez tenhamos algo de punk, de ir contra o que está estabelecido, de como um show deve ser – às vezes tocamos sem palco, às vezes na rua, um lugar onde falta música, pessoas que querem tocar e que querem escutar.” A constatação ecoa outra declaração de Marcelo Blanco ao Crítica de La Argentina: “Hoje se cobra abertamente das bandas para tocar, mas eu me nego por princípio. Reconheço que, quando começamos, com o Doris, fazíamos acordos de merda e não estávamos nem aí porque queríamos tocar. Hoje também não estamos nem aí, mas não queremos ninguém montando em cima. E hoje me parece que a revolução passa por não ter amplificação e poder tocar onde nos chamem. Se ninguém chamar, tocamos na rua, e tocamos do mesmo jeito se não tiver luz”.
vaNguarda da Melodia?
A cruzada pela melodia, somada à ausência de guitarras e outros instrumentos diretamente associados às vanguardas do indie rock, também traz outro desafio: evitar o desgaste do rótulo “trovadores acústicos latinos”, que marcou o rock simpático mas insípido de bandas como a colombiana Aterciopelados, ou, pior, caricaturas como o Gypsy Kings. É um caminho que a banda inevitavelmente deve enfrentar, especialmente se vier a despertar interesse acima da linha do Equador. O propósito segue firme, garante Blanco: “Há uma busca por relaxar o rock e tirar o que é desnecessário. As músicas têm apenas o imprescindível, sua essência. Não há glamour. É algo mais hippie mesmo, como as canções dos Babasónicos do começo”. A declaração, que poderia soar pretensiosa, soa simplesmente como uma constatação prática.
Certamente, o otimismo em relação às intenções aqui se deve ao fato de que o abandono desses elementos em prol da canção e da celebração coletiva produz um resultado admirável. É impossível ignorar a beleza dilacerante extraída de “Cómo Que No”, do uruguaio Gustavo “El Principe” Pena Casanova. A versão original de El Principe, compositor tão heroico quanto desconhecido da música uruguaia, tem um lirismo nada óbvio, escondido por trás de um fiapo de voz e da precariedade típica do rock alternativo latino dos anos 1980, atraente apenas àqueles interessados pelo que não é atraente. Na versão de Fuerte y Caliente, a faixa explode em uma melodia dramática, saudosa, menor, enquanto a levada reggaeton acústica – estilo citado por El Principe na letra original, mas que não fazia parte da música – soa ao mesmo tempo mais simples e mais moderna. A letra ainda traz pequenas sutilezas, como a troca de “poco” (“pouco”) por “paco” (gíria para pasta base de cocaína). Essas sutilizas permitem sugerir que, apesar das escolhas minimalistas já citadas, a forma de atingir a música essencial aproxima o Onda Vaga de bandas contemporâneas importantes. “Acho que há uma busca comum com Beirut, Vampire Weekend, Fleet Foxes e muitas outras bandas do mundo que estão vivendo este momento de mudança junto conosco”, afirma Blanco. “Não creio que, só por terem todos os holofotes apontados para si, eles sejam muitos distintos de nós musicalmente.” Em tão pouco tempo de estrada, ainda é difícil imaginar aonde esse caminho possa levar. Mas este é um daqueles casos em que o trajeto já vale a viagem.3
8Saiba Mais www.ondavaga.com.ar myspace.com/ondavaga 37
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4Tetraktys . Gravuras em Metal, 2005
ernesto bonato
e o desenho essencial Por Gustavo Rates . Colaborou Rodolfo Herrera
Há 16 anos, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, um grupo de artistas recém-formados resolveu montar um espaço em que todos pudessem trabalhar coletivamente. Nasceu então o Piratininga, que segue firme até hoje. Dos membros originais, apenas Ernesto Bonato continua no coletivo. Quando perguntei onde estavam os outros fundadores, ele respondeu calmamente que todos “seguiram o movimento natural da vida: mudaram de cidade, de país, se ligaram a outras pessoas, enfim”. Em seguida, porém, ressaltou que, para onde quer que tenham ido, seus excolegas certamente levaram consigo o “espírito Piratininga”. É exatamente esse espírito, creio eu, o que de melhor Ernesto tem a ensinar – um ethos que permeia tudo o que ele faz e que podemos absorver de várias formas, seja trabalhando com ele, seja como seu aluno, como amigo ou, claro, conhecendo sua obra.8 39
4Deambulatório IV . Xilogravura, 2006 40
4Deambulatório I . Xilogravura, 2006
É isto que eu gostaria de ver mais nas manifestações de arte urbana: o que toca fundo dentro de cada indivíduo. Sair um pouco dessa guerrilha e entrar em outro nível, que é realmente transformador e revolucionário, em um sentido mais amplo: voltar-se para si mesmo e descobrir ali o que é fundamental.
Como você se envolveu com arte? Na verdade, eu nunca pensei em fazer outra coisa (risos). Uma das coisas que eu mais gostava de fazer quando criança era desenhar e ficar de bobeira, olhando coisas interessantes como uma carreira de formigas indo do formigueiro para uma planta e voltando, ou a chuva caindo. Então, acho que tudo surgiu desse interesse e amor pela natureza, o gosto pela quietude da observação, aliados à minha inclinação pelo desenho – acho que posso chamar de inclinação, porque você é levado a fazer isso, acaba pegando gosto e se desenvolve. Também sempre gostei de ler e ouvir histórias. Desde criança, gostava muito de ouvir as histórias que minha mãe ou os adultos mais velhos contavam, e também lia bastante. Creio que as três coisas fermentaram meu gosto pela construção da imagem. Associei esse contato direto com a natureza e o universo simbólico das histórias ao desenho. Quando chegou a hora de aproximar a prática, que já existia, de uma decisão sobre o que fazer da vida, foi mais ou menos natural escolher artes plásticas. Mas eu não considero que minha escolha se deu no momento em que entrei numa faculdade, foi muito antes. Sobre sua formação: como era naquela época? Quando você decidiu viver de arte? A faculdade teve um papel importante, tive a felicidade de encontrar bons professores e alguns mestres. O Evandro Carlos Jardins teve um papel muito importante na minha formação. Ele também tinha esse amor pela observação da natureza e pelo desenho e me estimulou muito a seguir por um caminho que eu já intuía como meu – mas, quando você é mais jovem, é sempre importante receber um apoio, uma confirmação de que você já é. Então, a minha passagem pelo curso de Artes Plásticas da ECA foi importante para ter contato com esses mestres, com um ateliê, com os trabalhos, com os colegas e aprender técnicas que eu desconhecia até então. Foi só na universidade que eu tive contato com gravura, e o Evandro era justamente o professor de gravura. Comecei a trabalhar com gravura mesmo antes de ter que fazer isso como disciplina, logo no primeiro semestre, e me encantei pela técnica. Hoje, analisando, imagino que isso se deva a alguns motivos. Um deles é que a gravura te leva para um contato muito direto com a natureza das coisas – a madeira, o metal, as ferramentas de corte. Isso me encantou desde o começo. Outro é que a gravura ajudou muito a desenvolver meu desenho. Como na gravura, o desenho acontece por um corte, uma incisão, isso te leva a uma consciência e economia de gestos e meios. A gravura pode te levar a uma essência do desenho e a uma compreensão maior da forma. Na verdade, eu considero a gravura uma manifestação do desenho em uma matéria especifica.
Trabalhando com gravura em madeira, e depois em metal, fui descobrindo uma gramática, todo um código associado a essas técnicas.
Você acha que a evolução digital interferiu no processo criativo do gravador? A gravura ainda se utiliza de processos, técnicas e materiais antiquíssimos – que se desenvolveram a partir do século XIV, pelo menos no Ocidente. Mesmo com a transformação na tecnologia da indústria gráfica, que trouxe recursos realmente inovadores e muito precisos de gravação e impressão, ainda continua sendo válido, do ponto de vista da manifestação, pegar um pedaço de madeira, lixar e cavar com uma goiva, para posterior impressão em papel. Gravar uma figura numa chapa de cobre com um processo químico também remonta à Antiguidade. Então é interessante ver como essas coisas permanecem e ganham novos sentidos.
Fala do Piratininga: como surgiu e como está agora? O Piratininga é um ateliê coletivo com 16 anos de existência. Começou como um grupo de jovens artistas ainda mal saídos da faculdade, em 1993, em um galpão abandonado na Alameda Barros, na Santa Cecília (bairro na região central de São Paulo). Reunimos rapidamente um grupo de artistas, que já vinham de experiências em ateliês públicos, coletivos ligados a museus ou a escolas, como os ateliês de gravura do museu Lasar Segall, do MAC e da ECA. Essa vivência nos ateliês públicos levou esse grupo a pensar em um ateliê que fosse realmente coletivo, porque, até então, o que se tinha eram grupos de artistas que alugavam uma casa. Para rachar as despesas, um pegava uma sala, outro pegava outra. Quais são seus projetos no momento? Meus projetos seguem dentro dessa postura, de que
o artista não é só o cara que fica enfurnado no ateliê trabalhando, sem conexão com o mundo. Como sempre tivemos essa postura de estabelecer uma ponte entre arte e meio social, desenvolvemos inúmeros projetos artísticos coletivos. Um deles é o projeto Lambe-Lambe, que começou em 1997 e acabou ganhando mais força e atraindo vários artistas entre 2003 e 2006. Reunir as pessoas é difícil, porque o artista plástico tem uma natureza individualista – não é como o músico, que precisa se reunir para tocar junto, ou como o ator. O projeto consistia em criar cartazes em xilogravura, imprimir e colar na rua. Isso foi muito antes da Lei Cidade Limpa. Hoje em dia você ainda acha que isso seria permitido? O projeto nunca teve apoio, sempre foi totalmente bancado e gerido pelos artistas. A gente fez muita coisa assim, e é incrível o que dá para fazer sem dinheiro. Às vezes fico surpreso em ver como se gasta dinheiro com coisas de tão pouca envergadura. A ideia do projeto era justamente tomar lugares que eram ocupados pela publicidade de forma ostensiva e predatória. Na época, era uma situação de sujeira mesmo, então a ideia era chamar atenção, oferecendo imagens mudas no lugar dos anúncios. Normalmente, o cartaz sempre “fala” muito, sempre tentando te empurrar alguma coisa. Uma imagem silenciosa gerava estranhamento e questionamento, e o instante do questionamento é muito precioso, porque as pessoas saem do amortecimento e se
As imagens agiam como lacunas, como pontos cegos, e as pessoas se viam nelas. A relação com o lugar mudava. Com o tempo, fomos percebendo que poderíamos estabelecer uma relação de qualidade com o meio urbano e com as pessoas. Poderíamos não só atingir as pessoas que
veem ali.
passavam e viam casualmente o cartaz, mas envolver comunidades, desde a produção até a autorização para colar o cartaz. Em vez de colar cartazes na madrugada, sobre áreas tomadas por publicidade, passamos a ir até as comunidades, explicar o projeto, convidar as pessoas a participarem e pedir autorização para pregar. Aí, o alcance e a duração dos efeitos do projeto eram muito maiores, porque a iniciativa era acolhida pela comunidade. Chegamos a colar cartazes em um lugar, voltar um ano depois e ainda encontrar o cartaz lá. Aqui, entra de novo o sentido educativo de que eu falei. A atitude do artista – uma mudança de atitude – pode trazer reflexão, isso não acontece só em sala de aula. Entre 2005 e 2006, nos dedicamos a levar esse projeto a vários lugares – estivemos na Holanda, na França, no Rio Grande do Sul, no Ceará, no Pará, na Paraíba, no Rio de Janeiro.
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Como você vê a relação entre o graffiti, muito em alta hoje, e seus projetos de intervenção urbana? Eu percebo basicamente três abordagens muito claras em relação a isso. Uma se dá em um nível muito básico – e não estou fazendo juízo de valor, apenas partindo da minha percepção sobre o tema. A primeira manifestação nasce da necessidade de afirmação em uma sociedade que realmente brutaliza e esfacela o sentido individual. Identifico muito isso na pichação, que é a assinatura, o nome, o “Eu existo”. É a primeira afirmação, fundamental, em nível muito básico – a resistência do indivíduo a esse esfacelamento. Sem entrar nas implicações éticas, até que ponto você tem direito de fazer isso? Em que proporção? Esse primeiro nível é o que você mais vê. O segundo nível, que já se vê menos, pode ser resumido a outra frase: “Eu penso”. “Eu me coloco frente a tudo isso que me é oferecido, tenho um pensamento sobre isso, uma opinião, e a manifesto.” Grande parte do que a gente chama de graffiti pode ser incluída nesse nível, que é a afirmação de uma ideologia, de um credo ou de uma postura política ou estética. Isso pode se dar não só textualmente, mas por meio de uma imagem ou ação. A maior parte
Agora, muito raramente você vê trabalhos que se incluem em um terceiro nível, que eu chamaria de um nível amoroso, além do “eu sou”, “eu penso”. Seria o “eu amo”, “eu sinto” – trabalhos que têm a capacidade de convidar o sujeito para essa verticalidade, não para numa afirmação do indivíduo ou do grupo, não para a aceitação de uma ideologia ou de uma ideia, mas para um lugar muito mais abrangente. Trata-se de uma relação mais cuidadosa e receptiva com o próprio meio urbano, com a cidade e consigo mesmo. Esses trabalhos
da chamada arte urbana pode ser incluída nesses dois níveis.
têm o poder de despertar aquilo que é de fato mais individual, não é só a afirmação do indivíduo como ser social – o nome que você recebeu ou o nome da gangue de que você participa –, mas aquilo que é essencial, intrínseco. Permanente e universal ao mesmo tempo. É muito raro ver trabalhos que atuam nesse nível de significação, e talvez seja por conta disso que a arte urbana não consiga ainda ocupar o papel que ela merece. Porque, de fato, a cidade é um espaço privilegiado de experiência e expressão artística hoje. Mas ela propõe mecanismos que, de alguma forma, só são reproduzidos pelos trabalhos expostos ali: a afirmação do ego, do poder, do conflito. No final, o conflito está presente todo o tempo, e a arte, apesar de ter o papel de questionar e trazer desequilíbrio, também tem a função importantíssima de unir o que não pode ser unido. Por isso que eu chamo [o terceiro nível] de uma qualidade amorosa. É fazer com que gregos e troianos consigam conviver harmonicamente – porque, de repente, identificam algo em comum, que possa ser compartilhado. É isto que eu gostaria de ver mais nas manifestações de arte urbana: o que toca fundo dentro de cada indivíduo. Sair um pouco dessa guerrilha e entrar em outro nível, que é realmente transformador e revolucionário, em um sentido mais amplo: voltar-se para si mesmo e descobrir ali o que é fundamental.
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Você, que sempre pensou e valorizou o desenho, sente falta dele na arte hoje?
Acho que a dificuldade atual em entender a importância do desenho não tem muito a ver com a questão da prática, mas talvez com uma dificuldade de pensar a arte como manifestação de uma consciência. O desenho, no fundo, é consciência, é a percepção de que existe uma organização por trás das coisas, que, por mais caótica que pareça ser, é harmônica. Existe uma organização, e essa organização é definida por um desenho. Então, o movimento em direção ao desenho é um movimento em direção à essência das coisas, e isso só pode ser consciente.
Você acha que esse desenho essencial deixou de existir? Acho que nunca deixou de existir. Às vezes existe um grande deslumbramento com determinados meios e técnicas, mas logo as pessoas percebem que a coisa vai além: substituir ponta seca por vídeo não aumenta seus recursos para atingir a essencialidade. É claro que cada meio traz consigo uma especificidade importante, e compreendê-la faz parte do processo. Todos os meios são válidos, e eu acredito que hoje em dia, no contexto da produção de arte urbana, há uma valorização do desenho maior do que antes. As pessoas estão mais interessadas pela figura. Hoje, é mais fácil ver pessoas se desenvolvendo do ponto de vista do desenho do que há dez ou vinte anos, quando a arte era restrita a contextos acadêmicos, com abordagem mais conceitual e intelectual.
Quando falamos dessa ordenação em três níveis – o ser, o saber e o afeto –, é interessante pensar no trabalho artístico não como uma coisa especializada (“eu só desenho, só pinto, só faço graffiti e dane-se o resto”). Acho que, quando você começa a tomar contato com essas essencialidades, chega a uma compreensão muito mais ampla sobre o seu fazer no mundo. Isso envolve uma percepção consciente do seu corpo no momento que você está desenhando, por exemplo, ou quando está com uma câmera fotográfica na mão. A manifestação nasce dessa base harmônica, então ela precisa ser harmônica. Isso é fundamental. Às vezes, você vê muita gente se envolvendo com arte, pensando em projeção, em reconhecimento, em ganhar dinheiro ou em ser aceito, que são preocupações justas, mas no fundo isso é secundário. A questão fundamental é que você pode. Todo indivíduo tem a opção de escolher para si um caminho sustentado por um fazer especifico, que pode levá-lo ao desenvolvimento dessa harmonia, dentro da qual ele se coloca e a partir da qual ele se manifesta. Essa é a grande história.3
8Saiba Mais atelierpiratininga.blogspot.com Leia a entrevista completa e assista a um +Somacast com trabalhos de Ernesto Bonato em maissoma.com
Ernesto Bonato, Fabrício Lopes, Flávio Castellan, Fernando Vilela, Francisco Maringelli, Paulo Camillo Penna, Ana Elisa Dias Baptista, Luciano Ogura Buralli.
4Projeto Vamos Gravar o Rinoceronte do Dürer! . Xilogravura, 2004
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4Projeto Visagens: Visões Comuns, Visões Sublimes . Xilogravura Policromada, 2008
É muito simples fazer música nos dias de hoje. Os saltos cada vez mais velozes da tecnologia e a onipresença digital tornaram a produção de bons discos possível a qualquer um que tenha um home-studio básico. Mas, paradoxalmente, o romantismo da música está cada dia mais em baixa. E nem todos estão satisfeitos com isso: uma cena emergente, com nichos nos Estados Unidos, na Inglaterra, no Japão, na Austrália e em outros lugares, anda na contramão da tecnologia para tentar manter a chama acesa. Os new grooves, como vêm sendo chamadas as criações do movimento, são uma síntese de referências musicais como funk, soul, afro-beat, reggae, trilhas sonoras e derivados. Gravados em equipamentos antigos, sua sonoridade lembra os timbres das gravações dos anos 1960/70, o que resulta em um sabor ao mesmo tempo nostálgico e atual. Selos como Ubiquity, Truth & Soul, Daptone e Freestyle Records são os principais entusiastas desse cenário, formado por músicos beirando os 30 anos de idade.8
EL MICHELS AFFAIR
Por Daniel Tamenpi
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U
m dos principais nomes da nova safra é o El Michels Affair, formado em 2002 pelo saxofonista e pianista Leon Michels, o baterista Nick Movshon e o técnico de áudio Jeff Silverman. Os integrantes da banda estão em diversos outros projetos bem-sucedidos, como The Dap Kings (que acompanha Amy Winehouse e Sharon Jones), Antibalas e Budos Band. Anos de experimentações do trio fundador resultaram em um novo estilo de soul instrumental, baseado em trilhas sonoras cinematográficas, que posteriormente viria a ser chamado de cinematic soul. Em 2005, eles lançaram o resultado dessas experiências no elogiado álbum Sounding Out The City, gravado, mixado e masterizado pelos próprios integrantes do grupo e lançado pelo selo da banda, Truth & Soul Records. Com a boa repercussão do álbum, o El Michels começou a receber convites para novos projetos. Um deles, com membros do Wu-Tang Clan: acompanhados pelos MCs Raekwon, GZA, Inspectah Deck e U-God nos microfones, a banda reproduziu ao vivo versões instrumentais de músicas do lendário grupo de hip-hop americano. O resultado foi tão bom que surgiu a ideia de um novo projeto: gravar um disco com versões orgânicas dos instrumentais do Wu-Tang Clan. Enter The 37th Chamber, o resultado dessas gravações, contém quinze faixas hipnóticas, entre versões de músicas do grupo (o nome do disco é uma homenagem a Enter The Wu-Tang: 36 Chambers, clássico de 1993) e faixas da carreira solo de seus integrantes. O som enfatiza tanto os beats quanto os originais sampleados por RZA. Leon Michels, líder e fundador do grupo, falou conosco sobre o projeto, alfinetou o hip-hop norte-americano atual e ainda revelou sua paixão pela música brasileira. Confira. Quando o groove do funk começou a fazer parte da sua vida? Eu cresci ouvindo jazz, já ouvia no ginásio. No 2º grau, conheci o jazz mais funkeado – Lou Donaldson, Lonnie Smith – e a partir daí deslanchou.
Quando conheci Phillip Lehman (dono do extinto selo Soul Fire), fui apresentado ao funk mais pesado. Antes do El Michels Affair, você fazia parte do The Mighty Imperials, que lançou apenas o álbum Funky Chicken, em 2001. Por que a banda terminou? Na verdade a banda nunca se separou oficialmente. Nós apenas amadurecemos e perdemos o interesse no som que fazíamos. Eu ainda colaboro e toco com todos os caras que eram do The Mighty Imperial. Eu e Homer (baterista do grupo) nos juntamos ao The Dap-Kings. Nick Movshon (baixista) foi para o Antibalas e Sean Solomon ainda toca guitarra em vários álbuns da Truth & Soul. Qual era sua função dentro da Soul Fire Records? Eu era basicamente um músico da casa, como acontecia antigamente em selos como Motown e Stax. Nós simplesmente gravávamos vários sons loucos, e Phillip Lehman foi doido o suficiente para lançar alguns deles. E como foi a história da Truth & Soul Records? É verdade que você comprou o estúdio e os equipamentos da Soul Fire e montou seu próprio selo? Na verdade, nós herdamos o estúdio. Phillip Lehman se mudou para a República Dominicana e nós começamos a Truth & Soul. A gente já pensava em ter um selo próprio, porque nossa estética sonora era um pouco diferente da estética da Soul Fire. Basicamente herdamos o espaço e acabamos preenchendo-o com mais equipamentos. E como surgiu o El Michels Affair? A gente gravou um single para a Soul Fire chamado “Easy Access”, há uns seis anos, usando o nome El Michels Affair. Pouco depois, comprei uma mesa Tascam 388 e montei no meu quarto, ainda na casa dos meus pais. Eu e Nick Movshon começamos a gravar música todos os dias em um período de uns dois anos, e assim surgiu o álbum Sounding Out The City (lançado em 2005). 45
A sonoridade que vocês conseguem tirar nas gravações tem uma timbragem especifica dos anos 1970. Como funciona o processo de produção e gravação da banda? Nossa engenharia sonora é feita inteiramente por Jeff Silverman. Nós usamos um gravador de rolo de uma polegada e vários equipamentos externos. Um amigo nosso faz a maioria dos compressores e limiters. Nós também piramos nos reverbs e delays dos anos 1970 e 80. Muito do nosso som vem da forma como gravamos, mas eu acho que também vem da nossa sensibilidade e da forma como nossos músicos tocam. Você pode ter todos os equipamentos top vintage do mundo e seus álbuns ainda soarem mal, se você não sabe o que está fazendo.
“O hip-hop que
está nas rádios é, em grande parte, um lixo.
”
Fale um pouco dessa sonoridade que vocês chamam de “cinematic soul”. Cinematic soul significa uma música que tenha um sentimento épico, cinematográfico. Às vezes nossa música é totalmente instrumental, mas tem uma vibração e uma narrativa mais fortes do que se tivesse vocais. Essa é uma das razões por que eu acho que o El Michels Affair e o Wu-Tang Clan foram uma combinação tão boa. Como foi a historia com o Raekwon? Foi a Scion (marca associada da Toyota para o mercado americano, que, além de carros, faz diversos projetos culturais) que fez o convite, depois de ouvir as suas versões do Wu-Tang? O convite da Scion surgiu por causa do álbum Sounding Out The City. Os singles do Wu-Tang vieram um pouco depois, eles estavam em turnê na época. Primeiro fizemos umas coisas com o Jeru (The Damaja), depois com Slick Rick e finalmente com o Raekwon. O show do Raekwon foi tão bom que rolaram mais quatro shows e uma mini turnê. E uns seis meses depois desses shows decidimos gravar uma versão instrumental de “C.R.E.A.M.” e “Glaciers Of Ice”. E disso tudo veio a ideia do álbum Enter The 37th Chamber? O disco veio dessa experiência. O single vendeu tão bem para nossas expectativas que foi até natural gravar um álbum inteiro de covers
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do Wu-Tang. Uma coisa que nos aterrorizava era a possibilidade de os sons ficarem cafonas, principalmente porque o original é pesadão e praticamente perfeito. Como apreciador de produtores como RZA, Pete Rock, J. Dilla, o que você acha da cena atual do hip-hop nos Estados Unidos? O hip-hop que está nas rádios é, em grande parte, um lixo. Eu concordo que o gênero deve evoluir musicalmente, mas esses beats tocados com teclado com uma produção dita futurística no hip-hop moderno me irritam. Eu ainda acho que existem coisas boas, tanto no underground quanto no mainstream, mas é pouco. Conhece música brasileira? Eu amo música brasileira, principalmente dos anos 1960 e início dos 70. Meus favoritos são Tom Zé, Wilson Simonal, Gal Costa. Eu também piro nas coisas da Tropicália. Tem tanta música brasileira boa que eu me sinto um iniciante no assunto. Eu precisaria de anos colecionando obsessivamente para conhecer bem. Por sorte, tenho amigos brasileiros em Nova York que me apresentaram ótimos discos do Brasil. Então vocês têm vontade de fazer shows no Brasil? Quem dera! Nós estamos a postos aqui. É um sonho que temos há um bom tempo.3
8Saiba mais www.truthandsoulrecords.com/el-michels
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4E.M.A em estĂşdio
4E.M.A com Raekwon
Por Sabrina Duran
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Dois moleques acabam de sair da aula e descem a Rua Vergueiro a pé, levando na mochila latas de spray e um caderno com desenhos. Vão parando de casa em casa e pedindo aos proprietários autorização para pintar ali, no muro deles. “Vocês vão pintar o quê?”, pergunta o dono de uma das casas, com um olhar enviesado sobre os meninos que não parecem ter (e não têm) 18 anos ainda. “Isso aqui, ó”, diz um dos moleques, abrindo o caderno na página onde se lê MITO. “Humm”, resmunga o dono. “Tá, pinta aí.” E eles pintam. “Lembro até hoje: a gente estilizava as letras, que eram cinza, com um contorno prateado e uma fumacinha vermelha. Putz, era feio o negócio, mas feeeeio... (risos)”, recorda Roberto de Oliveira Gonçalves Júnior, um dos moleques, hoje com 27 anos e formado em publicidade pela Faculdade Cásper Líbero. 8
BiETO Som,Poesia e Volume no Graffiti
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Os traços de Bieto mudaram substancialmente desde aquele seminal MITO na Vergueiro. Apesar de ainda assinar MITO em desenhos que faz com amigos, ele não pinta mais letras, mas bonecos estilizados que criou à sua imagem e semelhança – ou melhor, numa deformação da própria imagem. “Uma vez fui ao açougue e, por acaso, me vi refletido numa parte metálica do freezer. Aquela parte estava amassada, então me vi com um puta narigão, todo deformado. Desenhei aquela imagem e vi que parecia a Alice, do Popeye. Comecei a desconstruir aquela Alice, parte por parte, até chegar no que o boneco é hoje”, ele conta.
Foi pego na hora. A EScriVã quE AnOTOu SEuS dAdOS nO diSTriTO POliciAl – umA SEnhOrinhA cOm cErViz dE GEnErAl – dErrETEu-SE TOdA quAndO BiETO mOSTrOu A ElA, ESTrATEGicAmEnTE, umA TElA Em TinTA AcrílicA dA SAnTA cEiA quE hAViA PinTAdO há AlGum TEmPO. “EnTãO, SEnhOrA, nãO SOu PichAdOr, Eu fAçO iSSO Aqui, ó”, ElE diSSE. “Ai, quE lindO! ESPErA um POucO... ” (A SEnhOrinhA dEixA BiETO E VAi ATé A SAlA dO dElEGAdO.) “dElEGAdO, OlhA quE BOniTO quE O mEninO fAz...” BiETO fOi liBErAdO E ATé hOjE nãO rEcEBEu mAiS nEnhum cOmunicAdO dO dP PArA dEPOr SOBrE O cASO.
Com cabelo raspado e guarda-roupa sem estampa xadrez (ele aboliu as sandálias e agora passa a maior parte do tempo descalço), Bieto, ainda hoje, mantém a rotina de procurar muros. Quando encontra um, às vezes pede autorização ao dono da casa, às vezes não, e “aparece” no muro sem mais, pra alegria (ou ira) do proprietário. Já teve que depor na delegacia por conta disso – grafitou um muro do metrô, que acreditava ser liberado para graffiti por conter alguns desenhos.
Roberto Júnior, ou Bieto (lê-se Biêto), como é conhecido hoje, começou a ganhar os muros de São Paulo como MITO ao lado dos amigos com os quais pintava. O muro da Rua Vergueiro foi, oficialmente, seu primeiro graffiti. Aconteceu em 1998, quando ele ainda estava no colégio, tinha cabelo comprido, usava sandália de couro, calça xadrez e cumpria uma rotina: sair da escola no fim das aulas à caça de paredes para pintar com os outros MITOs. “Teve uma vez que a gente andou do Jabaquara até a Vila Mariana (bairros na Zona Sul de São Paulo) até encontrar um muro”, conta, relembrando os tempos de andarilho com layout meio hippie.
OuTrO TrAçO dE BiETO quE O idEnTificA cOmO “um BiETO” AuTênTicO SãO AS fOrmAS ABSTrATAS dE linhAS lOnGAS E SinuOSAS, OrA Em PrETO E BrAncO, OrA Em cOrES, quE PArEcEm quErEr ExTrAPOlAr OS limiTES dOS cOnTOrnOS E dO murO. “Eu fAziA umAS fOrmAS mEiO GOTA, mEiO fEijãO, umA idEiA dE cAldA GrOSSA, mAS ESSAS imAGEnS nãO mE diziAm muiTA cOiSA. há POucO TEmPO cOmEcEi A fAzEr AS GOTAS cOm um TrAçO mAiS ElABOrAdO, Aí Vi quE PArEciAm umA BOrBOlETA. fOi quAndO cOmEcEi A fAzEr ESSE TrAçO cOm GOSTO, POrquE Vi quE dAVA PrA cOnTAr VáriAS hiSTóriAS cOm ElE”, explica. Além dos muros paulistanos, os bonecos narigudos e as linhas abstratas salpicam também a maioria das paredes do apartamento de três quartos, sala, cozinha e banheiro onde Bieto vive, na Pompeia. Ao todo, são sete desenhos de 4x3m no mínimo, alguns em spray, outros em látex, fora as telas em tinta acrílica com temáticas folclóricas que o artista vai deixando espalhadas aqui e ali, enquanto não termina de pintá-las.
*múSicA dE SPrAy*
Durante a entrevista, Bieto cita uns quantos nomes de amigos, parceiros, gente que começou com ele no graffiti e caras que o influenciaram. Preocupa-se em fazer jus à parcela que cada um tem em sua vida. O artista plástico Vitché é uma das principais referências, diz Bieto, que o conheceu há uma década – ele com 18 anos, Vitché com 30 – e ficou maravilhado ao vê-lo pintar. Tempos depois daquele primeiro encontro, Bieto, que estudava perto do Cambuci, descobriu onde morava o artista e, cara-de-pau, baixou lá pra conversar.
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8Saiba Mais www.flickr.com/photos/bieto
A produtora de vídeo Luciana Araújo de Souza, parceira de Bieto, documenta tudo com uma câmera e completa, assim, o quadro de colaboradores. Para um futuro não muito distante, Bieto e os parceiros querem criar um livro, um CD e um DVD com todo o material (graffiti, poesia, trilha sonora e documentário) produzido ao longo do ano pelo Cuidado, Tinta Fresca. “O que me move hoje a fazer qualquer coisa é conseguir socializar o que eu tenho. Acho importante permitir essa troca entre as pessoas.” Bieto quer também que um amigo seu, escultor de bonecos para carros alegóricos, faça uma intervenção em 3D num muro grafitado por ele. “Tipo o boneco saindo do muro, interferindo no desenho, sabe?” Se depender de seu gosto pela coletividade, o graffiti ganhará, literalmente, novos sons, formas e volumes.3
cOm OuTrO rOdriGO, O ScArcEllO, criOu O PrOjETO cuidAdO, TinTA frEScA. TrATA-SE dE umA PErfOrmAncE – Em GErAl rEAlizAdA nA ruA, ESPAçOS culTurAiS Ou EScOlAS – durAnTE A quAl ScArcEllO, quE é múSicO, imPrOViSA um SOm inSTrumEnTAl BASEAndO-SE nA fOrçA E nA VElOcidAdE dOS TrAçOS dO dESEnhO fEiTO nA hOrA POr BiETO, dE imPrOViSO; BiETO, POr SuA VEz, inSPirA SEuS TrAçOS nO SOm AlEATóriO dE ScArcEllO. O ArTiSTA chEGA A uSAr O “PSSSSS PSSSSS” dA lATA dE SPrAy PrA AcOmPAnhAr AS mElOdiAS dO AmiGO.
“Como eu nunca fiz aula, nunca aprendi com ninguém, considero o Vitché um dos caras que me ensinaram de fato. Pô, o cara consegue pegar um pedacinho de muro e arrepiar naquele espaço mínimo. Comecei a gostar ainda mais do trabalho dele por causa do contato humano que me proporcionava. Uma vez ele estava pintando na avenida 23 de Maio num andaime monstruoso. Ele me viu chegando junto com um amigo e, mesmo sem identificar a gente, desceu e foi perguntar se a gente estava curtindo. Pensei: caralho, ele não precisava fazer isso. Às vezes eu mostrava meus desenhos para ele e ele nunca dizia ‘faz assim ou assado’ – só olhava, e isso de ser visto já bastava. Nas nossas conversas, o Vitché nunca ficou rotulando nada, sempre foi uma coisa positiva, de autoconhecimento, e eu voltava pra casa feliz por ter aprendido alguma coisa. Ele foi o cara que mais se doou.”
E, se no passado há referências, no futuro há parcerias. Bieto é adepto da coletividade e da agregação e, volta e meia, une o trabalho de amigos aos seus. Nos muros que tem feito, inclui trechos de poemas do amigo Rodrigo Domingos.
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A ENERGIA
EXPERIME NTAL E IMEDIA TA DE DAMO SUZUKI por Bento Araújo
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O
nome de Damo Suzuki está mais associado aos anos setenta, onde se concentraram suas parcerias musicais mais famosas. Mas, enquanto seus olhos deslizam por estas palavras, ele provavelmente está em algum canto do mundo, criando sua música imediata de cada dia, sua arte com rubrica, mas também transferível a quem quiser se apossar dela – como bem entendeu Mark E. Smith na canção “I Am Damo Suzuki”. Além de ser beatificado pelo líder do The Fall, Suzuki é ídolo também de gente como John Lydon (PiL), Pete Shelley (Buzzcocks), Omar Rodriguez Lopes (The Mars Volta) e David Bowie. A quem não faz parte do culto, um breve resumo: Damo foi homem de frente da banda de vanguarda Can, um dos pilares do rock experimental alemão da década de 1970, que ficou conhecido mundo afora como krautrock, termo que prefere não utilizar. Ao lado do Can, gravou quatro álbuns: Soundtracks (1970), Tago Mago (1971), Ege Bamyasi (1972) e Future Days (1973), todos obrigatórios na coleção de quem se interessa por sons com um mínimo de transgressão. Future Days foi o único que saiu em LP no Brasil, pelo selo United Artists, e ficou um tempão jogado em sebos e saldões. Hoje, virou peça de colecionador. O álbum também é constantemente acusado de ser o marco zero da ambient music. Em 1974, Damo se casou com sua namorada alemã, largou tudo e virou testemunha de Jeová. Sobreviveu a um câncer e só voltou aos palcos dez anos depois, com suas jams de música instantânea. Desde então, toca com uma banda de apoio diferente em cada cidade – sua network, como ele prefere.
Suzuki esteve no Brasil em junho e fez shows em Goiânia, Florianópolis, Rio de Janeiro e São Paulo. Pouco antes da apresentação na capital paulista, ele nos recebeu em seu quarto de hotel, exibindo sua calma e educação tipicamente nipônicas. O músico não gosta muito de falar sobre o passado, então começa explicando seu trabalho atual: “Desde 2003 venho fazendo uma espécie de ‘tour que nunca acaba’. Durante todo esse tempo, toquei com músicos de várias partes do mundo, fazendo música instantânea. A forma de comunicação mais usada no meu mundo é a música, e essa é a minha network, minha cadeia de amigos e músicos ao redor do planeta”. Nostalgia, por sinal, é algo que definitivamente não o afeta: “A melhor música está sendo feita exatamente agora, e a música como um todo é muito melhor agora do que antigamente”, define. “Sou privilegiado, porque vivo de música e viajo o mundo todo fazendo música nova e diferente a cada dia e em cada lugar por onde eu passo.” O rótulo “rock progressivo”, que sempre acompanhou o Can, sugere que pelo menos parte do público de Damo seja formada por senhores de meia-idade, mas segundo ele não é bem isso o que tem acontecido. “Muitos jovens vêm aos shows. Recebo e-mails de garotos e garotas de 14 anos de idade, e isso é muito interessante. Na Inglaterra, em especial, meu público é bem jovem; sempre reparo que uma garotada cada vez mais nova e empolgada vem aparecendo. Tem um guitarrista que se apresenta comigo por lá de apenas 15 anos.” Os alemães acolheram Damo Suzuki em finais dos anos 1960, quando era um músico de rua em Munique. Foi ali, em frente a um café, que conheceu Holger Czukay, baixista e cérebro do Can, e o baterista Jaki Liebezeit. “Eles disseram: ‘somos de uma banda de rock experimental e temos um show hoje à noite, você gostaria de tocar conosco?’.” Damo aceitou e fez seu primeiro show com o Can para uma plateia enorme. No palco, ficou um bom tempo murmurando como um monge tibetano em transe. Minutos depois, irrompeu em um ataque de fúria. Muitos, em estado de choque, abandonaram o local. Anos mais tarde, novamente para um grande público, a reação seria bem diferente. Em 3 de fevereiro de 1972, os pioneiros do krautrock se apresentaram no gigantesco Sporthalle, em Colônia, base do grupo na Alemanha. A popularidade crescia imensamente naqueles tempos e com esse show, transmitido em rede nacional para toda a Alemanha, o hype fugiu ainda mais do controle. Ao criar versões estendidas
de temas como “Spoon”, o grupo criou a trilha sonora de uma das maiores viagens transcendentais em massa da história da música pop. Mas, apesar da importância e influência, a fase de Suzuki ao lado do Can não faz muito sua cabeça hoje em dia. “Eu não escuto mais esses discos. Quando eu saí do Can e abandonei a música, em 1974, foi um bom momento. Minha mente estava confusa. Estávamos nos tornando estrelas, e isso nunca me interessou.” Nosso tempo com Damo Suzuki vai chegando ao fim, mas ele faz questão de falar sobre o Brasil. “Na primeira vez que estive por aqui foi uma loucura”, ele lembra. “Fiquei poucas horas no país, porque tinha show marcado em Buenos Aires na sequência, mas desta vez foi maravilhoso. Foram quase duas semanas, e fiquei seis dias no Rio de Janeiro. O lugar de que mais gostei foi Santa Tereza, que tinha ótimo astral, ótima energia e uma bela vista de toda a cidade... Me lembrou muito Portugal. Foi um choque de culturas: andar pendurado naquele bonde sem ter que pagar nada foi demais, assim como ver as garotas quase peladas em Copacabana! Acabei perdendo a praia... Acho que estou um pouco velho demais para isso (risos).”3
8Saiba mais: www.damosuzuki.de
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Low_res nyc notes mobile cam shots por Keke Toledo e Lu Krรกs
+especial
Um ano depois da primeira edição, a +Soma Amplifica está de volta! Nossa ideia continua a mesma: divulgar o melhor da música brasileira de vanguarda, independentemente de rótulos ou gêneros. Para nós, o sucesso do primeiro volume – que teve mais de doze mil downloads, além dos dez mil CDs encartados na revista – é outra prova de opiniões que já se cristalizaram neste fim de década: as coordenadas da indústria fonográfica estão mudando, as grandes gravadoras seguem em crise, o consumo é cada vez mais ditado pelo público e as possibilidades são vastas para os artistas que enxergam o copo meio cheio.
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Nesta segunda edição você encontra 14 faixas de artistas brasileiros contemporâneos, com trajetórias já estabelecidas ou novíssimas, que, somados, compõem uma paleta variada de estilo, propostas e origens. São nomes que passaram por um crivo desinteressado em padrões mercadológicos de sucesso, mas afinado com a qualidade e vibração que só os trabalhos verdadeiros possuem. Alguns deles já apareceram nas páginas da +Soma, que entra na 12ª edição, e os outros você certamente verá por aqui. Como na + Soma Amplifica vol. #1, você pode baixar esta coletânea gratuitamente no nosso site – sem ninguém te acusar de pirataria. Esperamos que se divirta tanto ouvindo como nós nos divertimos escolhendo cada faixa.
1. Mental Surf Psilosamples . 2009
2. Super Violão Mashup Lucas Santtana & Seleção Natural . 2009
Autoria . Zé Banda . Psilosamples
Autoria . Lucas Santtana, Gustavo Lenza e Lucas Martins Banda . Lucas Santtana, Regis Damasceno, Rian Batista, Bruno Buarque e Dustan Gallas
Psilosamples relembra vários temas, cantigas, texturas e remixes no meio de colagens sampleadas, em favor de um ambiente sonoro abstrato e bemhumorado. Uma essência brasileira e folclórica tempera o ritmo e as melodias, que têm seu ponto alto ao vivo. Com um computador, Zé cria infinitas batidas por meio de sequenciadores, drum machines e outros recursos clássicos do techno. Seu primeiro trabalho, o álbum digital As Aventuras de Zé No Planeta da Roça, foi lançado em 2009 pelo netlabel Okiru.org sob licença Creative Commons.
Lucas Santtana faz parte de uma geração da música brasileira que está a léguas dos antigos ranços da MPB. Suas músicas e seus discos demonstram interesse na canção popular, com cadências harmônicas, melodias diretas e forte apelo rítmico. Mas o que lhe interessa mesmo é o que envolve tudo isso: as texturas e experimentações sonoras. É sob essa perspectiva que ele funde estilos, ritmos e tempos musicais de diversas épocas e procedências geográficas.
Sobre a música: Essa faixa pertence ao disco homônimo que está em produção. O trabalho do disco todo é construído por uma máquina, mas aqui eu tento experimentar novas técnicas de me relacionar com elas. Procuro a simplicidade de compor uma canção em que, por alguns segundos, sejam notáveis o carinho e a originalidade.
Sobre a música: Ela foi toda feita usando samples de violão da MPB. O desejo, assim como em todo o resto do disco, era se divertir e esticar o formato clássico de voz e violão, utilizando para isso os novos instrumentos que usamos cotidianamente, como máquinas, softwares e diferentes tipos de microfonação.
Produzido, Mixado e Gravado por Zé 8 Ouça mais em myspace.com/psilosamples
Produzido e Mixado por Lucas Santtana, Gustavo Lenza e Lucas Martins no estúdio Fine Tuning . Gravado no estúdio Atrás do Armário . Álbum Sem Nostalgia 8 Ouça mais em www.diginois.com.br e www.myspace.com/santtana
3. Pai de Família Flora Matos . 2009
4. Laura Te Espera Com Uma Arma na Mão Stela Campos . 2009
Autoria . Flora Matos Banda . Flora Matos Participação . Stereodubs (LX e Leonardo Grijó)
Autoria . Stela Campos e Luciano Buarque Banda . Stela Campos, Clayton Martin, André Édipo, Missionário José e Vini Pardinho
Nascida em Brasília em 1988, a MC Flora Matos se notabiliza pela levada original, cheia de influências de música jamaicana e brasileira. Seus versos levantam a pista e conquistaram os Racionais MCs. “O que inspira minha música é o que eu vivo, e tenho vivido momentos muito bons. Minhas letras transmitem amor entre as pessoas, o amor do mundo, para o mundo”, ela resume. Depois de percorrer o Brasil e a Europa, Flora iniciou o ano de 2009 com o single “Jogo da Velha”, produzido pelo DJ King. Sobre a música: Essa música nasceu no final do ano passado, quando eu vivia um momento confuso, mas cuja conclusão foi muito esclarecedora. Escolhi a faixa porque achei que ela somaria nesta segunda edição da +Soma Amplifica. Espero que gostem! Produzido, Mixado e Gravado por Stereodubs 8 Ouça mais em myspace.com/cslindaflor
Nos anos 1990, Stela Campos integrou o cultuado projeto de um disco só Funziona Senza Vapore, formado por ex-integrantes do Fellini. Durante a longa estadia em Recife, no nascimento do mangue beat, colaborou com os principais nomes da cena e participou da trilha do filme Baile Perfumado. A riqueza de suas referências, que vão do jazz e do guitar rock à psicodelia, resultou em Mustang Bar, seu quarto álbum e o mais visceral de sua carreira. Sobre a música: Mustang Bar é um divisor de águas: o exorcismo de uma estética garageira-psicodélica que eu ainda não havia tido a chance de mostrar.“Laura Te Espera...” não é exatamente uma síntese do disco, mas antecipa bastante coisa. Nela estão a bateria em primeiro plano, as guitarras estridentes, a tônica psicodélica, sessentista, acrescida de synths new wave. Produzido por Stela Campos, Clayton Martin e Missionário José . Mixado por Clayton Martin . Gravado por Stela Campos, Clayton Martin e Missionário José . Álbum Mustang Bar 8 Ouça mais em myspace.com/stelacampos
5. El Hueco Juliana R . 2009
6. Cascaio Porto . 2008
Autoria . Juliana R. Banda . Felipe Maia, Dustan Gallas, Demétrius Carvalho e Juliana R.
Autoria . Richard Ribeiro Banda . Richard Ribeiro e Renato Ribeiro
Nascida em Sorocaba, Juliana R. faz parte do que se costuma chamar “população flutuante” da capital. O banjo e o maneirismo poético de suas canções a aproximam do novo folk. Mas seu EP de estreia contém um tempero misterioso, dosado por programações eletrônicas, ruídos, piano, trompete e violoncelo. Assim, do alto de seus 22 anos, a voz de Juliana R. produz um intrigante paradoxo: soa confortavelmente intimista e irremediavelmente perdida. Sobre a música: “É a única música que escrevi em espanhol – língua que não domino – e a mais bem-humorada, apesar de ser sobre tentar se comunicar e se confundir. O nome é inspirado num livro do Ernesto Sábato.” Ao samplear uma locução de Julio Cortázar, Juliana reforça a ambiguidade de suas canções. O que poderia soar lamurioso ganha humor com o tom sóbrio da voz, o trompete de Paulinho Viveiro e a guitarra mariachi.
Porto é o projeto do baterista e compositor Richard Ribeiro, que também atua no SP Underground, ao lado do trompetista Rob Mazurek e M. Takara, entre outros. Aqui, ele parte da perspectiva rítmica para construir um trabalho instrumental que mescla elementos do jazz, do rock e da livre improvisação. Além dos arranjos e das bases pré-programadas, destaque para as belas melodias de metalofone. Sobre a música: “Cascaio” remete a dinheiro – ou melhor, à falta dele. Para mim, a música tem um certo humor. É como estar num país cuja língua você não sabe falar, num frio de três graus, há um mês longe de casa, sem banho e com 2,44 dólares para jantar. Parece engraçado? Produzido e Mixado por Devin Ocampo . Gravado por Devin Ocampo e Fernando Sanches no estúdio El Rocha, em São Paulo . Álbum Fora de Hora 8 Ouça mais em myspace.com/richardribeiro
Produzido e Mixado por Fabio Pinczowski. Gravado no Estúdio 12 dólares (SP), em 2008 8 Ouça mais em myspace.com/juerre
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7. Maruimstad Nuda . 2009
8. Zoltan Ri Elma . 2009
Autoria . Roberto Scalia Banda . Artur Dossa, Henrique Caçapa, Raphael Pinteiro e Roberto Scalia
Autoria . Bernardo Pacheco, Fernando Seixlack, Paulo Cyrino e Ricardo Lopes Banda . Bernardo Pacheco, Fernando Seixlack, Paulo Cyrino e Ricardo Lopes
O Nuda é um grupo singular, que transita pelo rock, pela música experimental, pelo jazz, pelo blues e pela música regional brasileira. O primeiro álbum do quinteto recifense, Menos Cor, Mais Quem, saiu em formato SMD em 2008 e foi uma das grandes surpresas do ano, ao dialogar abertamente com propostas afeitas a bandas como Beirut ou Fleet Foxes. Sobre a música: Gravada para o programa Radiola, da Trama, “Maruimstad” é uma de nossas primeiras músicas. Fala sobre o lado oculto da metrópole pernambucana, vice-campeã de assaltos e mortes – o Recife que não aparece nas campanhas, tal qual a maioria das capitais, traído e subtraído pelos interesses capitais de poucos. Produzido por Nuda . Mixado por Pablo Lopes, no estúdio Fabrica, em Recife . Gravado por Ronaldão nos estúdios da Trama 8 Ouça mais em myspace.com/sitionuda
Sobre a música: Levou uns dois anos pra gente terminar “Zoltan Ri”, que começou como uma introdução para shows e virou nossa música mais simples. É também a nossa única gravação em estúdio, que aconteceu em São Bernardo do Campo – cidade cuja culinária teve influência decisiva no Elma. Produzido e gravado por Elma no estúdio Sonic House, São Bernardo do Campo . Mixado por Bernardo Pacheco no estúdio Fuego, São Paulo 8 Ouça mais em myspace.com/hellma
9. Garange Velho de Câncer . 2009
10. Mas é o Fim MoMo . 2008
Autoria . Velho de Câncer Banda . Zé Ulisses, Jonas Dornelles e Lucas Richter Participação . William Dias (contrabaixo)
Autoria . Marcelo Frota e Caetano Malta Banda . Bruno Braggion, Caetano Malta, Fabio Pizzo, Regis Damasceno e Marcelo Frota
Uma banda que afirma ter se inspirado na história e na filosofia de um mendigo – “Mestre Saddam” – tem mesmo que se autodefinir como “desocupados fazendo um som”. Mas por trás disso está um trio que produz um hardcore sujo e direto, marcado por influências como Hüsker Dü, Wipers e Agent Orange. Crueza e transtorno mais do que bem-vindos. Sobre a música: “Garange” representa bem a ideia geral da banda, tanto na questão musical, com acordes abertos e os intervalos que usamos, como na letra, que fala sobre um elemento do nosso universo – “garange” é como um vizinho chama a garagem da casa dele. Isso fala muito sobre nosso gosto pelo errado, pelo torto, feio e incerto. Produzido por Velho de Câncer . Mixado e gravado por Fábio Lentiono, no Estúdio Mil, em Porto Alegre . Álbum Velho de Câncer 8 Ouça mais em myspace.com/velhodecancer
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O quarteto paulistano surgiu em 2002 e optou por se firmar como uma banda instrumental, opondo-se ao formato convencional do metal. O Elma faz um rock que une estruturas complexas e originais, com referências como Helmet, The Jesus Lizard, Fugazi, Melvins e Sonic Youth. Tem um EP lançado pelo selo Amplitude e está trabalhando no repertório do seu primeiro álbum.
MoMo, alcunha musical de Marcelo Frota, nasceu em 2006, fruto da união entre o músico mineiro radicado no Rio e alguns amigos de infância. O projeto já conta com dois discos na bagagem: A Estética do Rabisco (Dubas/Universal), lançado no fim de 2006, e o independente Buscador, de 2009. O folk psicodélico sofisticado das composições é marcado por influências como Tim Buckley, Charles Aznavour e Clube da Esquina. Sobre a música: A faixa é resultado de uma parceria entre Marcelo Frota e Caetano Malta, a primeira após o disco Buscador. Em busca de uma gravação extremamente simples, foram utilizados poucos instrumentos, entre eles um Arp Solina da década de 1970. Produzido por Marcelo Frota . Mixado por Daniel Medeiros no Estúdio Buena, Rio de Janeiro . Gravado no Estúdio do Caetano, em São Paulo . Álbum Buscador 8 Ouça mais em myspace.com/momoproject
11. Maluisa A Filial . 2009
12. Pra Não Ter Tempo Ruim Emicida . 2009
Autoria . Edu Lopes Banda . Pacato, Edu Lopes, DJ Castro, Ben Lamar e Flávio 52
Autoria . Emicida Banda . Programações Emicida. Baixo, Guitarra e Teclados por Bruno Pompeo Participação . Mariana Timbó
A Filial foi formada em 2000 pelo MC, produtor e compositor Edu Lopes, dissidente do grupo The Funk Fuckers, que integrava a famigerada Hemp Family nos anos 1990. A banda faz uma MPB contemporânea que mistura rap, bossa nova, samba, baião, maracatu, funk, soul, jazz e música erudita com letras inteligentes e temas incomuns. Seu último disco, $1,99, foi lançado em 2008 nos EUA pelo selo Verge Records e será lançado no Brasil este ano. Sobre a música: A música faz parte do nosso último disco, mas não foi composta junto com as outras – é um pouco mais antiga, estava guardada na gaveta e acabou entrando na última hora. Tem uma sonoridade bem particular, por conta da captação do áudio ambiente – cigarras, pássaros e crianças acabaram fazendo parte do arranjo. “Maluisa” é o apelido da minha sobrinha de três anos. Produzido, Mixado e Gravado por Edu Lopes . Mixado por Michael Fossenkemper . Álbum $1,99 8 Ouça mais em myspace.com/afilial
Emicida é um MC paulistano de 23 anos, morador da Zona Norte de São Paulo e vencedor de boa parte dos torneios de freestyle do país. É uma das promessas da nova safra do hip-hop brazuca e tem colhido os bons frutos com a Mix Tape Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe..., lançada em 2009.
Sobre a música: Sou amigo de Bruno Pompeo há anos, e acredito que esse foi o experimento que me deixou mais satisfeito com o resultado. Após programar algumas baterias em casa, levei ao estúdio e ele trouxe esse baixo, que acabou re-definindo os rumos da música: um dia frio, um toca-discos e a intenção de homenagear um dos grandes mestres da música brasileira. A melodia desse refrão traz Dorival Caymmi na bela voz de Mariana Timbó. A letra diz o que se grita na rua há anos, que estamos em guerra. Produzido por Emicida e Bruno Pompeo . Gravado no estúdio Maria Fumaça por Filipe Tixamen e Bruno Pompeo . Mixado por Felipe Vassão e Thiago Brancalião na Loud Estúdios. 8 Ouça mais em myspace.com/emicida
13. Psico Análise ProjetoNave . 2009
14. Moenda Marcelo Armani . 2009
Autoria . Akilez Banda . Akilez, Alex Dias, DJ B8, Daniel Gralha, Flavio Lazzarin e Marcopablo Participação . Adriano Grineberg
Autoria . Marcelo Armani Banda . Marcelo Armani
O ProjetoNave surgiu em Santo André e já tem doze anos de estrada. Uma das gratas surpresas do nu-jazz brasileiro nos últimos anos, a banda já tocou para 45 mil pessoas – ao lado de Offspring e Bad Religion – e se caracteriza por um show denso, etéreo e transcendental. Sobre a música: faixa faz parte do álbum Vol. 2, nosso segundo disco oficial, que está em fase de lançamento. Unimos um espírito blueseiro à sonoridade moderna de samples e programações. Gravada ao vivo, a música reflete bem a dinâmica da banda nos palcos. Produzido por Akilez . Mixado por Guilherme Simonsen, no Reset Studio . Gravado no Studio Nimbus e Mamute Station . Álbum Vol. 2 8 Ouça mais em myspace.com/projetonave
Ainda criança, por influência do avô – o multi-instrumentista gaúcho João Armani –, Marcelo Armani descobriu a percussão nos jogos de panelas e objetos plásticos de casa. Já tocou com os grupos SOL e Girlish, com os instrumentistas argentinos Diego Souto e Fernando Perales, formou um duo de improvisação com Guilherme Darisbo e acompanhou o norte-americano Nathan Bell em suas apresentações pelo Rio Grande do Sul. Em seu projeto solo, agrega influências que vão de Piazzola e Zimbo Trio a Johnny Cash e Racionais MCs. Sobre a música: “Moenda” foi produzida especialmente para a coletânea e explora a comunhão entre meu universo musical e os sons e a movimentação mecanizada das pessoas. Cada voz incorporada surge como uma pequena peça fundamental para compor toda essa unidade motriz. Produzido, Mixado e Gravado por Marcelo Armani 8 Ouça mais em myspace.com/marceloarmani
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Marcelo Gandhi 8 flickr.com/marcelogandhi
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ENTRE (OUTROS) é um espaço aberto e democrático para que artistas mostrem seu talento. A cada edição, publicamos trabalhos desenvolvidos a partir de um tema sugerido no número anterior. Nestas páginas, você confere o trabalho de seis artistas que interpretaram o tema “Ar”. Para a edição #013, o tema é “Revolução”. Como você traduziria isso em sua arte? Basta enviar suas artes, ilustrações, desenhos, pinturas e fotografias para o e-mail entreoutros@maissoma.com. Envie imagens de seus trabalhos em baixa resolução (72 dpi) até o dia 10/08/09. Se você for selecionado, entraremos em contato pedindo uma versão em alta resolução. Os trabalhos mais bacanas serão publicados, e uma galeria especial, com seleção mais ampla, será publicada simultaneamente no site. Participe!
ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A +SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO QUE MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO QUE CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.
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Deveras 8 estudiodeveras.com
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Estenio 8 flickr.com/napalmer
Patricia Rahde 8 flickr.com/patriciarahde 63
Mundano 8 flickr.com/artetude 64
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Felipe Rocha 8 flpr.com.br
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Mav alvado SA S/A OCAPITALISMOACIDENTAL DEANDRÉDAHMER Por Arnaldo Branco . Fotos por Fotonauta
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“Se a verdade fosse um objeto palpável, ela seria uma massinha de modelar.”
André Dahmer, carioca de 34 anos, é um artista plástico diferente. Não é, como vários de seus pares, um segredo entre poucos marchands, que compram e vendem suas obras por fortunas. Ao contrário: tem milhares de fãs, que poderiam adquirir os quadros diretamente do artista – se ele os vendesse de forma sistemática. Tudo porque estendeu seus dotes de desenhista para uma arte considerada menor, os quadrinhos, e simplesmente se tornou o melhor de sua geração. 8
Criança-problema, com síndrome de déficit de atenção aguda, teve a infância marcada pela repetência (“eu era aquele clássico [caso do] garoto grande demais em uma turma de crianças pequenas”), evasão escolar involuntária (“fui expulso do colégio Corcovado por não conseguir ficar parado por 40 minutos”) e por visitas a terapeutas (“não deu certo, entrava na sala já pensando ‘você tá fodido, vovô!’”). Seus pais tentaram “curá-lo” com o judô (“Graças a Deus não receitavam Ritalina naquele tempo”), mas o que funcionou foi a Escola de Artes de Maria Teresa Vieira. Lá, Dahmer sossegou e encontrou sua vocação. Mas ainda levaria um tempo para achar seu caminho: matriculado no curso de Belas Artes, não gostou dos rigores da academia e, após uma nota baixa em coerência, foi fazer Desenho Industrial na Pontifícia Universidade Católica. Pior: antes, chegou a prestar vestibular para Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Passou, mas não cursou. Uma matéria eletiva o salvou: conheceu o professor Urian Agria, que o mandou jogar fora a borracha e lhe ensinou uma lição que ele adotou como lema: “Quem pensa não pinta; quem pinta não pensa”. Dahmer então se despediu dos retângulos áureos, das curvas francesas, das medidas de ouro e passou a viver feliz com seu traço imperfeito. Mais tarde, um de seus personagens diria:
“Deus me fez mal desenhado para ressaltar minhas qualidades morais”.
Ainda na faculdade, resolveu se arriscar nos quadrinhos, inspirado pela tira “Os Ácaros”, de um colega que levaria suas ambições artísticas para outra área: Rodrigo Amarante, ex-Los Hermanos e atual Little Joy. “Foi uma série curta, de cinco ou seis tiras. Tinha um elefante que voava e um pássaro que ficava preso ao chão. Foi a primeira vez 68
que vi que dava para fazer algo diferente em quadrinhos.” Autodidata, confessa que lia poucos gibis: “Lembro assim de cabeça de Mortadelo e Salaminho, que herdei de um primo. Só fui descobrir mestres como Laerte e Fábio Zimbres depois, mas ainda a tempo de fazer a cabeça com eles”. Nascia então, em 2001, a tira on-line Malvados (malvados.com.br). O site, que surgiu sem estardalhaço (“Era uma época em que você tinha a impressão de que não havia ninguém na internet”, ele lembra), hoje tem um milhão e meio de acessos por mês e mais de 1300 quadrinhos publicados. Nas histórias, duas flores – margaridas ou girassóis, há controvérsias – conversam sobre o sentido da vida e outros temas espinhosos como matéria-prima humorística. “Vida?”, diz uma delas, “vou procurar no Google”. Prolífico, nos primeiros anos Dahmer fez uma tira por dia. Cada link trocado entre novos leitores ajudou a sedimentar uma base de fãs que passou a interferir na própria criação. As opiniões do público (favoráveis ou para lá de ofensivas) o inspiram a fazer gags com o comportamento obsessivo de alguns leitores. Além de cobrar assiduidade como se estivessem pagando pelo serviço, alguns chegam a propor temas – não foi à toa que Dahmer batizou sua caixa de comentários de “Falsa Democracia”. Com o tempo, não só a audiência como o universo dos Malvados cresceu: surgiram outros personagens, como a solitária Sara Sofrida, o vidente Mestre Barbará das Boas Notícias e Emir Saad, o ditador de Zazanov, sempre em guerra contra outros países fictícios, cuja inexistência não impede que suscitem discussões reais. Há até uma comunidade no Orkut, entre várias outras sobre os quadrinhos de Dahmer, para discutir a “geopolítica do Ziniguistão”. Um de seus personagens mais populares é autobiográfico: na série Mini Dahmer, o
“Deus sabe que não faço esses quadrinhos por mal.”
cartunista costuma desenhar a si mesmo em situações hilárias. Aos poucos, também foi conquistando a admiração dos colegas de
“O Dahmer é o cara que mais se destaca nessa geraçao que se libertou da obrigaçao de comentar a política nacional com o fim da ditadura”, diz Nani, cartunista do primeiro escalão e cria d’O Pasquim, que
quadrinhos:
moldou o humor moderno brasileiro. “Ele tem boas preocupações, uma anarquia correta, está sempre questionando, o que é muito importante hoje, quando a arte não questiona nada”, completa. Allan Sieber, outro representante da geração à qual Nani se refere, concorda: “É um frasista genial, além de ter um desenho personalíssimo e classudo, que mantém enjaulado para não atrapalhar o fluxo de seus pensamentos”, diz, comentando o traço quase caligráfico de Dahmer. Não só seu estilo minimalista chama atenção, mas também seu método pouco ortodoxo de criação: desenhar primeiro e pensar na piada depois. Os quadrinhos não fizeram André parar de pintar, nem inventar outras formas de exprimir sua visão de mundo. Junto com o artista plástico Rodrigo Linares, amigo íntimo e irmão em talento, criou um site (malvados.com.br/obras) para expor seus trabalhos de intervenção urbana – como uma cruz de maços de cigarro erguida em frente a uma igreja ou a placa indicando o uso obrigatório de máscara de gás, pregada em uma praça para horror das velhinhas passantes. Mas são ainda melhores as ideias que ficaram só no papel: “Eu queria parafusar em um banco do metrô uma placa de metal com a inscrição ‘Homenagem a Jean Charles’. Seria lindo”. Na mesma linha, lançou
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o Normal Project, em que distribui tarefas de intervenção urbana aos leitores. A Galeria de Heróis no site dos Malvados exibe fotos e vídeos dos que toparam levar mendigos para comer em um McDonald’s ou recitar, em via pública e aos berros, o poema “A Morte do Leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade. Mas um de seus projetos de mobilização foi longe demais: uma paródia do site que contabiliza os mortos na Guerra do Iraque, o Iraq Body Count, só que apontando os assassinatos no Rio de Janeiro registrados pela mídia. Um trabalho de
cão, atualizado durante meses com a ajuda de amigos. Só nao imaginava que o Rio Body Count acabaria no telao eletrônico do programa sensacionalista Brasil Urgente, logo atrás do apresentador José Luiz Datena. “Olha aqui, governador! A gente quer polícia!”, ele dizia, indignado. Dahmer: “Que mané polícia, estamos comprando armas de guerra desde os anos 1990, esse é o problema”.
O site virou matéria em todo o Brasil e até no exterior. “Foi a primeira vez que senti o que é a bola de neve da informação”, ele avalia. Quando se deu conta, estava recusando uma entrevista para um grande órgão da imprensa estrangeira (“New York Times, The Guardian, CNN, um desses”), incomodado por ter sido chamado de “herói” pela repórter. Pouco depois, acabou com o serviço, mas seguiu comentando o clima de violência na Cidade Maravilhosa com a série de tiras Cidade do Medo. André começou a vender produtos relacionados a seus personagens na internet de forma tímida, na seção Malvadoscorp. Hoje é necessário 70
um espaço no apartamento em Botafogo só para armazenar camisetas, cinzeiros, canecas e bonecos com os desenhos dos Malvados e turma, encomendados todo dia – sem contar os originais, pelos quais cobra caro, tendo a consciência aliviada pelo fato de que muita gente os compra. “A minha mulher, Tina, é quem cuida disso. Ela não aguenta mais ir ao correio.” Das pinturas, ele tem mais ciúmes – dá mais de presente do que vende, quase todos os amigos têm pelo menos uma. A figura de um garoto de rosto rechonchudo – eventualmente com um barquinho de papel na cabeça – aparece em tantas delas que o artista até já fez piada com isso em uma tira: “Esse quadro tem valor afetivo, mas eu o venderia por trezentas cervejas/ Ele é igual a outros dez mil que você já fez!/ Dez mil vezes trezentas...” Dahmer tem uma relação tumultuada com o dinheiro. Desaprova que o usem como medida de mérito artístico e gosta de ser perdulário (tente pagar uma conta de bar com ele por perto), mas sem ser
consumista. “Em toda entrevista que fazem comigo, essa palavrinha ‘sucesso’ está sempre associada à questao da grana ou da visibilidade, do que eles chamam de ‘capital social’, essa expressao horrível.” Uma das brigas de muitas que costuma comprar no site dos Malvados e em sua conta no Twitter (twitter.com/malvados) é contra pessoas que vendem espaço publicitário em blogs e redes sociais. “Não sou contra propaganda, sou contra publicidade não caracterizada como publicidade, vendida como se fosse opinião”, define.
“O que está vendendo bem são os produtos contra o consumismo.
Com o tal sucesso, veio o assédio das publicações tradicionais – ele já fez quadrinhos para a Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil, entre outros. Esses trabalhos, porém, não o impediram de alfinetar o meio: “Jornal é uma espécie de internet de pobre”, já disse um de seus personagens; “Afogar o último dono de gravadora nas lágrimas do último dono de jornal” também já apareceu em um balão. Coincidência ou não, atualmente nenhum veículo impresso mantém Dahmer entre seus colaboradores (ele ainda segue publicando no portal G1, das organizações Globo).
Ainda assim, é um passional. Para quem já escreveu “Os ricos sentem medo, os pobres sentem raiva – este é um país emotivo demais”, Dahmer se deixa levar bastante pelos sentimentos. Seus amigos (o autor desta matéria pede licença para se incluir na lista) conhecem sua mania de se empolgar com o que fala e acabar discursando – sem ser chato, diga-se. Quem o conhece, concorda que ele é desses sujeitos que deveriam ser seguidos por um estenógrafo, para não deixar suas frases de efeito (“para mim, sapato tem decote”) sem registro.
Ao contrário do que possa parecer, porém, o cartunista não tem nenhum preconceito contra o papel. Afinal, acaba de lançar A Cabeça é a Ilha, seu quarto livro e o terceiro pela editora Desiderata. Nele, compila várias tiras de todos os personagens, com exceção das flores do mal – algo que já tinha feito em 2007 com O Livro Negro de André Dahmer. A Cabeça é a Ilha também é sua coletânea mais estranha, com tiras experimentais, algumas até bem sérias e poéticas. “Quando a Gabriela Javier, minha editora, mostrou o livro pronto, fiquei assustado com o que produzi ultimamente”, ele lembra. “Foram os anos mais bagunçados da minha vida.” Para Dahmer, o marco zero desse período atribulado foi o suicídio de uma ex-namorada. “Tive uma crise nervosa depois da morte da Carolina, em 2007, e isso mudou meu trabalho.” A instabilidade emocional se refletiu em algumas das séries criadas posteriormente, como a saga de Ulisses, um apaixonado crônico que rouba um navio lotado de garrafas de vinho para tentar esquecer sua amada Rebeca, ou Os Últimos Dias de Helmut H, que retrata um suicida. “Mas superei, com ajuda da Tina. Não vou ficar lamentando meus mortos para sempre.” Ele garante que não é tão angustiado como seus quadrinhos fazem parecer.
Apesar do grande círculo de amizades, André Dahmer é um notório recluso. Um de seus projetos futuros é fazer uma coletânea de mensagens em mp3 de conhecidos que o ameaçaram na secretária eletrônica (“eu sei que você está aí, Dahmer, atende essa porra!”). Além de se esconder em casa, tem um sítio em Nova Friburgo onde cultiva orquídeas, sua grande paixão. Aliás, mais dois dos seus planos por uma maior qualidade de vida: morar no mato, em uma espécie de comunidade hippie com banda larga, ou comprar um quiosque de florista. “Meu sonho é chegar para trabalhar a cavalo em pleno Rio de Janeiro”, diz, beijando o ar repetidamente, como se guiasse um pangaré imaginário. Às vezes, porém, age de forma oposta: como um sujeito gregário com medo de ser abandonado pelos amigos. Depoimento pessoal: certa vez me ligou e, antes que pudesse falar qualquer coisa, contei que ele, um tanto alterado pelo álcool, tinha deixado uma nota de R$ 50 para pagar uma lata de refrigerante, a única coisa que bebeu no último de uma série de bares percorridos na noite anterior. “Meu Deus!”, ele reagiu, surpreso, “estava ligando para saber por que você não saiu comigo ontem”. 71
“Amigos... só servem para deixar o Orkut mais lento.”
Dahmer tem uma dívida de gratidão com a bebida. Além de render grandes frases para seus quadrinhos (“não posso deixar o desenho atrapalhar o meu alcoolismo”, “o álcool é o Gelol da alma”), ele acredita que o vinho é um excelente combustível para a criação. É claro que estabelecer níveis seguros para o consumo dessas substâncias é difícil, e ele guarda, como todo mundo, algumas experiências traumáticas de porres. Uma vez, quase foi eletrocutado quando chegou desorientado da rua e urinou em cima do gabinete do seu computador. Ele também tem um vício (moderado) em jogo: bate ponto no Jóquei Clube da Gávea, em mesas de sinuca e rodas de pôquer. “Gosto de apostar, gosto da sorte, faz parte da minha culpa com o dinheiro, do meu plano de vingança contra ele.” Mas Dahmer não tem medo de perder o controle: “para isso, tenho esposa”. Já o déficit de atenção que o levou a pintar continua firme e forte. Se cumprimentar efusivamente um interlocutor, mas depois chamá-lo de “querido”, pode ter certeza de que esqueceu seu nome.
“Nao escuto um terço do que deveria; ouço uma pessoa durante um tempo, me distraio, só pego o final do que ela fala e nao entendo nada.”
Assim na vida, assim na arte: Dahmer é um distraído em tempo integral. Não tem hábitos de leitura, não sabe de nada do que está acontecendo na música (só abre exceção para o trabalho de amigos, como Marcelo Camelo) e quase não vê filmes. Tem interesse por política, mas seus comentários sobre os acontecimentos quase nunca são pontuais. Se considera de esquerda, postura que às vezes passa batida aos leitores: “tem gente que interpreta errado uma tira mais cínica, como se eu 72
“Poupe ao menos meu senso de justiça, ele é só uma criança.”
estivesse defendendo o fim do estado de direito ou algo assim. Já me chamaram inclusive de nazista e misógino, um absurdo”. Ele rejeita os modelos tradicionais (“Não sou bobo de achar que o ideal é o Estado organizar fila de sopa para todos, todo mundo usando o mesmo sapato”) e faz coro com os que sonham com um “modelo de esquerda que nunca veio”. Dado a julgamentos sumários (experimente defender articulistas conservadores como Diogo Mainardi para ver sua reação), o humor de Dahmer também passa um clima de tribunal de exceção – existe o certo e o errado no universo das suas tiras. Talvez nisso resida a explicação para a enorme repercussão do seu trabalho: só um mundo materialista em excesso transformaria em sucesso comercial uma crítica tão violenta às suas contradições. “Avatar Moraes, meu professor de Filosofia da Estética, dizia que o burguês compra a arte porque é incapaz de fazer.” André Dahmer faz arte porque é incapaz de se vender.3
8Saiba mais: www.malvados.com.br www.pintura.com.br
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4Nelson Leiner . Por Cia de Foto, +Soma #06
Nestes dois anos de vida, a +Soma apostou em muita gente boa. Mas a revista nunca teria chegado até aqui se muita gente boa não tivesse apostado na gente. Nas nossas 12 edições, tivemos o orgulho e o prazer de contar com a presença infalível de alguns dos fotógrafos mais talentosos do Brasil. Nesta edição, nosso ensaio de fotos presta homenagem a eles com uma seleção de outtakes de alguns dos melhores ensaios já publicados aqui. Como a lista de colaboradores felizmente é imensa, fizemos um recorte baseado em retratos feitos especialmente para nossas matérias. Já nos desculpamos de antemão pela indelicadeza de não publicarmos todos esses artistas. Mas, claro, você sempre pode conferir o trabalho de cada um deles ali na estante, em uma das edições da +Soma, ou no nosso site.
2/12 Nossos agradecimentos mais especiais a Alexandre Vianna, Aline Tissot, André Sader, Autumn Sonnichsen, Boris Bendikov, Caroline Bittencourt, Cauê Ueda, Cia de Foto, Daigo Oliva, Ênio César, Fabiano Rodrigues “Lokinho”, Fernando Martins, Flávio Samelo, Fotonauta, Guillermo Rivera, Janaina Felix, João Castilho, João Wainer, Jozzú, Keke Toledo, Klaus Thymann, Leandro Cunha, Louise Chin e Ignacio Aronovich/Lost Art, Lu Krás, Mariana de Luca, Marina Chevrand, Maya Hayuk, Pedro Bruno, Pedro David, Rafael Assef e a Fill Photografic, Rafael Dabul, Renato Larini, Rogério Canella e Ronaldo Franco.
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4Nilson Primitivo . Por Cia de Foto, +Soma #04
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4Mr. Catra . Por Fotonauta, +Soma #11
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#1 . Apo Fousek . Por Fabiano Lokinho, +Soma #07 #2 . Bonnie “Prince” Billy . Por Fernando Martins, +Soma #09 #3 . Victor Rice . Por Caroline Bittencourt, +Soma #10 #4 . Jaca . Por Cia de Foto, +Soma #07 #5 . Herbert Baglione . Por Cia de Foto, +Soma #05 #6 . Ordinária Hit . Por Daigo Oliva, +Soma #03 #7 . Debate . Por Flávio Samelo, +Soma #02 #8 . Cooperifa . Por João Wainer, +Soma #05 #9 . Os Gemeos . Por Cia de Foto, +Soma #02 #10 . Titi Freak . Por Alexandre Viana, +Soma #08 #11 . Fernando Catatau . Por Fernando Martins, +Soma #10 #8
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4Nathan Bell . Por Fernando Martins, +Soma #11
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4MZK . Por Fernando Martins, +Soma #09
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Por André Maleronka
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A cada três dias de 2008, King discotecou em dois. Num momento em que o rap brasileiro tenta superar uma crise de identidade que tem desembocado numa dicotomia simplificada entre temas de festa e de protesto, a própria existência do DJ King prova o absurdo da forma como a questão é colocada. O DJ de rap mais requisitado do Brasil afirma: “Eu tenho que tocar rap nacional, senão muitas coisas não fazem sentido pra mim”. King, que acaba de se lançar oficialmente como produtor, começou aos 11 anos em Suzano. Depois de integrar o Comando DMC, ganhou notoriedade como DJ do Xis antes do estouro de “Us Manos e as Minas”, um hit malandro que, apesar de ser um sucesso massivo até fora do circuito do rap, não serviu de molde para outros sucessos gestados no mesmo habitat. O plano de inserção para o rap nacional no cenário musical brasileiro que King vem armando parece muito afeito ao hit inclusivo do Preto Bomba, e ainda conta com um disco de novos artistas, outro de remixes (estreando selo próprio) e todas as pistas de dança do país.8
ocê é de Suzano? Não, sou da Zona Leste, nasci aqui no Belenzinho. Aos 11, em Suzano, tive meu primeiro contato com equipamento de festa, molecão, na escola. Fiquei pilhadão na parada. Eu tinha um trampo paralelo na época: até poder trabalhar só como DJ, em 99, fui bancário por dez anos. Nesse meio-tempo trabalhei com algumas bandas de rap – uma bem conhecida, que é o Comando DMC, da primeira geração [do hip hop brasileiro]. Na sequência, fui trabalhar com o Xis – daí era o Xis & Dentinho (do sucesso “De Esquina”, regravado por Cássia Eller). Eu tenho uma formação de bailes de periferia, equipes: Chic Show, Zimbabwe, Circuit Power, Black Mad. Então foi uma fusão de baile com grupo de rap. Você é um dos caras que mais tocam na noite, e em todo tipo de lugar. Tem muito DJ que não consegue isso. Por que você consegue? Primeiro a gente tem que dividir os DJs. Tem DJ que é só de campeonato, de performance, geralmente não toca nem com grupo, nem em festas. Tem os DJs só de festa, que não têm técnica de campeonato e nem de banda. E tem o DJ de banda. No meu caso, eu faço as três coisas, então já tenho uma bagagem mais ampla pra poder trabalhar. A minha bagagem de festa me deu isso de saber do que as pessoas gostam, que tipo de música tocar, qual vertente, qual faixa etária trabalhar. Tem essa sacada, entendeu?
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Você tem que adaptar muito seu repertório (de festa para festa)? Olha, eu toco cerca de 25 datas por mês. Tenho que trocar todos os dias. O meu repertório nunca é o mesmo. Ano passado, foram 242 vezes. Dá um show a cada dois, três dias. Só um exemplo: na Mood eu toco
há sete anos. Imagina eu tocando 150 sextas-feiras por ano há sete anos. Tem gente que vai todo dia e fala “mano, eu não vi você repetir a parada!” Só que toda
semana eu tenho que me renovar. Seja em São Paulo, no Rio, em Floripa... O circuito que você mais faz é esse... É, hoje o mercado do Sul abriu bastante. Nordeste eu vou pouco porque lá é um segmento mais reggaeton, os BPMs mais altos, acima de 100 – uma linha que eu particularmente não gosto de trabalhar muito –, então vou menos pra lá. E aqui em São Paulo, né, é onde tudo acontece. Sou residente em três casas: o Clash de terça-feira, o Glória de quinta e a Mood na sexta. Nos outros dias eu tô viajando. Você sempre toca junto rap nacional e gringo e foi responsável por impulsionar “Jaçanã Picadilha”, do Relatos da Invasão. Por quê? Tem dois lados: o de quem faz e o do ouvinte. O público não tem muita paciência [com músicas nacionais], o beat às vezes não é tão agradável como o de uma música gringa – a gente tem essa deficiência no rap ainda. Quando você consegue colocar um som no meio e manter a mesma linha, as pessoas começam a aceitar. Comecei há um tempo esse trabalho: quando a pessoa tá agitada, dançando a gringa, viro a nacional junto. As pessoas tomam aquele susto, ouvem – você não pode ficar muito tempo naquilo. Depois que a música acontecer, beleza. É um trampo complicado de fazer, que eu já faço há 5, 6 anos. Mas por que você resolveu fazer isso? Porque sou do rap nacional. A minha parada, o que eu curto fazer, de onde eu venho, a minha influência, é do nacional. Sou um cara que defende esse lado. Eu tenho que tocar rap nacional, senão muitas coisas não fazem sentido pra mim. Como você começou a produzir? Em 1999, fui trabalhar no estúdio do Paulo Boy, que era da galera da Banca Forte. Lá comecei a gravar algumas coisas, aprendi bastante, tive acesso ao [software de edição de áudio] Logic. Aí, comecei 84
a gravar grupos. Fiz três produções pra um CD da 105 [FM], uma coletânea de revelações do Nuno Mendes. Eu tenho duas naquele disco Xis Apresenta Hip-Hop São Paulo. Agora tô mais firme nisso. Nem me lancei como produtor ainda, algumas paradas vazaram e agora não tem como segurar. A realidade é essa. Por que batizou seu estúdio de Quilombo? Porque não tá registrado ainda (risos)! Ficou pronto há seis meses. Na verdade eu montei ele pra ser um home studio – não tenho a ambição de usar ele pra vários grupos e grandes negócios. É pra desenvolver trilhas e fazer o que eu curto. Não é pro mercado. Você tá trampando com samples nessas coisas novas? Na verdade passei por várias fases de produção, até pela MPC. Eu adoro sampelar, mas dá muito problema. Como gosto de som mais limpo (R&B e Los Angeles), sampleio e toco depois, igual, do jeito que eu cortei. Isso evita uma série de problemas com direitos autorais ao longo do caminho.
E esse disco de remixes de rap nacional? Antes dele, o primeiro projeto é o Quilombo Volume 1. A intenção é resgatar o rap da rua, mostrar novos talentos. Depois vem o disco de remixes. Tem “Picadilha” remix, “Na Brisa do Rap” do Carlos Avontz. Racionais eu não posso dizer porque tá em negociação. MV Bill também. Tem Rappin’ Hood, Emicida, Criolo Doido, De Leve, entre outros. O foco é dar uma roupagem nova na discotecagem, porque aí eu consigo tocar mais nacional na noite. A intenção é que os DJs que não têm compromisso com a cultura comecem a tocar. Esse lance de o funk ter crescido muito em São Paulo tem a ver com isso? Eu lembro de quando só tinha baile funk forte em Santos. Agora você vai a qualquer quermesse aqui e tem. Ah, sim. A minha opinião particular é que o funk tem
uma batida indiscutivelmente boa. O funk fez uma função que o rap não fez, de falar sobre outras coisas além de protesto – veio falando de pudor, de mulher, e com a batida. Ao mesmo tempo, tá acontecendo uma troca. No Rio o funk já não tá com essa força que tinha. Lá o rap tá muito mais forte do que em São Paulo. Então é uma troca cultural, [no RJ] eles querem consumir letras, e não têm. Eu
O público não tem muita paciência [com músicas nacionais], o beat às vezes não é tão agradável como o de uma música gringa – a gente tem essa deficiência no rap ainda. Quando você consegue colocar um som no meio e manter a mesma linha, as pessoas começam a aceitar.
trabalho com vários DJs de funk e é foda, a qualidade é muito maior. Mas acho que não é uma coisa que atrapalhou, tomou mercado ou substituiu, mas no caminho que tá, com certeza vai substituir. No meu caso, e no de vários caras, acho que é complicado ser da primeira geração. A gente não teve tempo pra documentar o que fez, a estrada de cada um, então você tem muito pouca informação. O rap vem sendo narrado de 2000 pra frente. A gente teve que fazer tudo sem ninguém pra ensinar. E hoje a gente sente falta disso. Hoje, para eu montar um levantamento do que fiz em TV e rádio, é um absurdo. Fiz milhares de coisas. E isso pra várias pessoas da minha geração. Hoje vários veículos de comunicação estão indo atrás, e muita gente tá tendo chance de falar. Isso tá mudando a mentalidade de várias pessoas em relação ao segmento. Várias fases do rap. É verdade que quando saiu o som “Política”, do Athalyba e a Firma, muita gente torceu o nariz porque a letra não era na gíria? O rap tem um grande problema, que é o ego. As pessoas não sabem separar as vertentes. Eu acompanhei toda a parte sofrida da parada, na época que tinha que andar armado. Tinha que andar, morô mano, o [deputado estadual e ex-integrante da ROTA] Conte Lopes seguindo a gente, eu acompanhei essa fase. Hoje você tem MCs de internet, MCs underground que não viveram isso e não respeitam isso. Mas foi o começo, a gente precisou apanhar pra caralho pra chegar nesse ponto. Então fica assim: um não gosta do estilo do outro, tem o underground, o gangsta, o que canta R&B. Sempre vai ter o cara que vai falar com a linguagem mais intelectual, o que vai falar mais popular, o que vai falar mais na gíria. Só que tudo isso é o rap, não é um deles. Sempre teve isso também. Região Abissal com certeza passou por isso, e outros grupos também foram mal interpretados por terem outra linha de raciocínio. A gente tá tentando consertar isso também.3
8Saiba mais: www.djking.com.br www.myspace.com/djkingbrasil 85
8Foto por Azul for Mochilla 86
Você certamente já ouviu o som dele. Mas muito provavelmente nunca ouviu falar de seu nome. Ele faz parte daquele grupo de músicos geniais que ficam fora do esquemão comercial e que exigem certo esforço para ser encontrados. Mas você não precisa ir muito longe: é só pegar ali na estante um disco do Jorge Ben ou da Elis e dar uma espiadinha na contracapa. O nome do maestro do Sol certamente está lá.8
rthur Verocai nasceu no Rio de Janeiro em 17 de junho de 1945. É compositor, arranjador e violonista de altíssimo nível. Aprendeu violão erudito com Léo Soares e Darci Villaverde, harmonia com Nair Barbosa da Silva, violão popular com Roberto Menescal e piano com Vilma Graça. Criou arranjos em discos de Marcos Valle, Elizeth Cardoso, Ivan Lins, Jorge Ben, O Terço, Gal Costa, Quarteto em Cy, MPB4, Célia e Nelson Gonçalves, só para citar alguns. Teve suas composições interpretadas por divas como Elis Regina, Beth Carvalho e Maria Creuza. Seu álbum de estreia homônimo, de 1972, é um tesouro ainda desconhecido do grande público. Nele, Verocai acaricia nossos ouvidos com soul, jazz e toques psicodélicos, embalados por letras, arranjos e produção em perfeita harmonia. Mais de 35 anos depois da estreia em disco, o som do maestro ainda inspira produtores do mundo inteiro, principalmente do universo hip-hop. Redescoberto por DJs que garimpam sons obscuros, Verocai já foi sampleado pelo menos cinco vezes. O sample mais conhecido é o da música “Na Boca do Sol”, realizado pelo produtor 9th Wonder para a faixa “Do The Right Thang”, do rapper Ludacris. Outro que se inspirou no maestro para criar um som novo foi MF Doom, em “Orris Root Powder”. Aqui no Brasil, o responsável por esse resgate foi o DJ Nuts, que há tempos pesquisa a fundo a música brasileira e promove tesouros esquecidos. Foi graças a ele, também, que Verocai tocou em Los Angeles em março deste ano, como parte do projeto Timeless. O evento compreendeu uma série de shows em homenagem a compositores que influenciaram o hip-hop de maneira ímpar. Para se ter uma ideia do nível da brincadeira, a estreia ficou por conta de ninguém menos que Mulatu Astatke, lendário jazzista etíope. Na sequência, rolou um concerto para Ma Dukes, mãe de J Dilla, em que as músicas do falecido rapper foram reinterpretadas por uma orquestra, sem as batidas originais. Depois de Verocai, o último homenageado seria David Axelrod, que infelizmente teve problemas de saúde e cancelou sua participação. Foi a primeira vez que Verocai apresentou seu disco de 1972 em um show. Uma plateia de 1500 privilegiados lotou o teatro Luckyman Fine Arts Complex para ver o maestro reger uma belíssima orquestra com trinta músicos, especialmente montada para acompanhá-lo. O time contou com instrumentistas de diferentes idades e nacionalidades:
maeStrO dO
SOL Por Debora Pill
japoneses, filipinos, colombianos, norte-americanos, africanos, portugueses. Entre talentos de vinte e poucos anos, havia pesospesados que tocaram com ícones como Roy Ayres e Fela Kuti, todos eles bastante familiarizados com a obra de Verocai. E, sobretudo, sedentos por executá-la. Da parte do maestro também vieram nomes de vulto: o baterista Mamão e o tecladista Bertrame, ambos do Azymuth, Airto Moreira, Clarisse Grova, o “mister suingue” Carlos Dafé (movimento Black Rio e Tim Maia, entre outros) e Diana Moreira, filha de Airto. Para completar, a abertura da noite ficou a cargo do produtor e multi-instrumentista Madlib, que fez um set totalmente inspirado na obra de Verocai. Nesta entrevista, que fiz com ele logo após o show de Los Angeles, o maestro fala sobre a homenagem, sobre sua história (nem sempre de amor) com o disco e sobre um certo violão com alma de Sol. Como surgiu a ideia de ir para LA e como foi a experiência? Tem um tal de Rodrigo (DJ Nuts), que começou com essas ideias malucas de resgatar uns sons que eu fiz no passado… (risos gerais) O negócio acabou acontecendo! Rolou o maior evento da pesada, foi uma coisa muito linda. Engraçado que todas as almas que participaram do show estavam muito bem integradas. De corpo e alma, sabe? Incrível isso. Teve uma união, um astral que uniu as pessoas. 87
8Verocai no Spazzio Jazz Club. Ao fundo, Aloísio Aguiar, pianista que tocou no disco de 1972. Foto por B+
E você nunca tinha tocado esse disco ao vivo? Eu nunca tinha tocado o disco, nem “ao morto” nem ao vivo (risos)! Eu só tinha tocado ele na vitrola, e muito raramente. Fiquei anos sem ouvir esse disco. Por quê? Eu fiquei bronqueado. Investi muita vontade nesse disco, fiz a coisa toda com um cuidado legal, me dediquei. E depois não aconteceu nada. Essa situação me desanimou muito. Aí fiquei na bronca e guardei o disco. Não ouvia de jeito nenhum. E quando foi que voltou a ouvi-lo? Só quando meu filho Ricardo começou a querer ouvir. Eu deixava ele bem escondido, aí ele pegava sem eu saber, eu descobria, tirava o disco, escondia de novo… Maluquice, né? Depois pensei: “Quer saber duma coisa? Tô em outra!”. E saí da área de arranjos. Passei a trabalhar com jingles e trilhas, num estúdio. Eu fazia um jingle e ganhava uma grana! Com um jingle, eu ganhava a mesma coisa que num LP inteiro fazendo arranjo, entendeu? Num jingle de 30 segundos! Se passaram 37 anos e chegou um momento, em 2002, que eu resolvi fechar o meu estúdio, porque se tornou um negócio ruim, tinha muita concorrência. Aí eu gravei um CD (Saudade Demais) e lancei naquele ano. Criei um site e logo a Ubiquity Records me chamou pra relançar o disco de 1972. Ele foi relançado aqui nos Estados Unidos em 2003. 88
Como foi a repercussão do relançamento aqui? Foi bem positiva, porque finalmente o disco estava nas mãos dos caras. Eles podiam fazer sample do jeito que queriam, como qualquer outro disco de vinil, entendeu? Acho que foi esse relançamento que difundiu minha música no universo dos DJs e colecionadores. Quem foi o primeiro rapper a te samplear? Foi o Little Brother, em 2005. E como foi isso pra você? Ah, eu fiquei espantado. Pra mim foi muito diferente, essa história de pegar um pedacinho da música e ficar repetindo a música inteira e sair falando, falando, falando… Ainda mais numa língua que eu não entendia, porque eu não sou bom de inglês [a ponto de] entender um rapper falando do jeito que eles falam. Achei estranho. Mas fui me acostumando. Conta um pouco da construção das músicas desse disco e das letras. Bom, em “Silvia” eu criei uma célula rítmica no violão com a linha harmônica, juntei com o baixo, as batidas e a percussão com uma orquestração bem suave, dividida em blocos (quatro trompetes e uma flauta) mais um toque delicado de cordas (doze violinos, quatro violas e quatro cellos). “Presente Grego” é a faixa mais funk do disco, influência do funk e soul norte-americanos. Por causa da nossa exposição a diversas influências, a gente se distanciou dos estilos mais convencionais de gravação. O nome foi em protesto à ditadura, já que foi um presente
E os convidados? Bem, Clarisse é minha convidada principal, ela é uma pessoa que sempre trabalhou muito comigo lá no estúdio. Tecnicamente perfeita. E, além disso, é uma tremenda intérprete, então só podia ser ela mesma a escolhida para a dura tarefa de cantar minhas músicas. Teve também o Carlos Dafé, grande cantor e compositor de soul music. Tive o prazer de fazer o arranjo para a primeira musica dele, “Verônica’. Ele participou do disco de 1972, fazendo vocal.
8Camarim do show em LA. À frente, Frank Bush e Derrick Harvey (Frank n Dank); ao fundo, Madlib. Foto por B+
O Aloísio… O Aloísio eu já conhecia há tempos, ele fez parte da minha primeira banda. É um grande pianista e também tocou no disco de 1972. Outro convidado foi o Bertrami, band leader do Azymuth. Ninguém toca igual a ele, é um cara único. Talento fenomenal. E eu fiz arranjo de cordas pro Azymuth, fui parceiro do Zé numa música… E o Mamão é outra fera, também, que dispensa comentários – o cara já trabalhou com todo mundo, Stanley Jordan, Elis. É do Azymuth também, um conjunto que tá aí há mais de 30 anos. E teve também o Airto né? Pô, quem sou eu pra falar de Airto Moreira? Conheci ele na época do Quarteto Novo. Tinha o Hermeto, o Theo de Barros, Eraldo Dumonte e o Airto, imagina! Naquela época pintou um quarteto só de músicos bons com outra concepção musical, que integrava mais o Nordeste. Muito legal. O Airto veio pros EUA e fez o maior sucesso, um cara criativo pra caramba. E ainda teve a participação da filha dele, Diana, que foi uma surpresa. Ela não sabia de nada e de um dia pro outro pegou tudo. Menina inteligente pra caramba, fantástica. É super afinada, tem uma musicalidade espantosa. O que agrada os ouvidos do maestro no momento? Só ouço música erudita ou jazz da melhor qualidade. Minhas preferências musicais vão de J.S. Bach e Villa-Lobos a músicos de jazz como Tom Jobim, Milton Nascimento, Miles Davis, Herbie Hancock, Oscar Peterson, Wes Montgomery e Bill Evans.
8Camarim do show em LA. Da esquerda para a direita: Carlos Dafé, DJ Nuts e José Bertrami (Azymuth), com o disco original de 1972 (da coleção de Nuts) nas mãos. Foto por B+
grego que o Brasil recebeu na época. Outra música que tem letra contra a ditadura é “Pelas Sombras”. Você não entende a letra direito, ela é nebulosa. Porque era assim que o governo ditatorial agia: na surdina, polícia secreta cercando… Então era aquele… (canta) “Quem viaja nas sombras/ por detrás dos seus ombros/ por detrás dessa luva de lã/ Ensaiando a morte/ encolhendo o corpo/ pro seu bote ou golpe final”. Voltando ao show, o que você achou da orquestra? Foi uma bela surpresa. A orquestra meteu bronca! As cordas soavam maravilhosas ali na frente, com aquele cuidado todo de articular o arco, todo mundo juntinho. O pessoal do trompete e do trombone jogou toda energia para fora, maior suingue… Mandava na lata, o som saía legal, bonito e forte. E com suingue.
E o que podemos esperar de você para o futuro? Semana passada, fiz arranjos para Ana Carolina. Estou compondo uma peça para violão, quarteto de cordas e flauta. E também recebi convites para fazer concertos com a orquestra em Londres e Amsterdam. E estou com um projeto que é composto do meu concerto para violão e orquestra e outras peças para violão (quartetos, duos e violão solo). Você tem muitos violões? Tenho alguns, sim, mas sou muito volúvel com eles. Não me apego assim fácil. Só tenho um fiel, que eu tenho há quarenta anos. Foi meu pai quem me deu. Esse violão, realmente, é a paixão da minha vida. Tem um negócio que, quando você toca ele, sente uma coisa diferente. Uma luz, o Sol. É da alma dele. Porque todo instrumento tem uma alma, certo? Só que umas são mais especiais que outras. E essa é muito especial.3
8Saiba mais: www.myspace.com/arthurverocai 89
+quem soma . Fabrício Nobre .
E
m um país com atividade cultural tão mal distribuída como o nosso, qualquer iniciativa fora dos grandes centros já é digna de louvor. Adicione um ponto para cada um destes quesitos: a) suar a camisa pela cultura independente; b) manter a continuidade em longo prazo; c) integrar diferentes regiões; d) não perder o clima família. O goianiense Fabrício Nobre, 30, não só reúne todas essas características, como também é dono de uma personalidade carismática, que molda desde sua performance provocativa nos palcos – ao lado de sua banda, MQN – até sua paixão declarada por bacon. Há 13 anos, meio por acaso, ele iniciava uma carreira que ajudou a redesenhar o mapa do rock independente no Brasil. “O primeiro show que fiz foi a formatura da minha turma de segundo ano. O presidente da comissão tinha dado um golpe, aí eu e um amigo juntamos a galera e fizemos nós mesmos.” Mais do que salvar a festa do fiasco, a ideia era colocar o MQN no palco. “Claro!”, ele assume, aos risos. 90
Por Mateus Potumati
. Fotos Cláudio Cologni
“MQN é o começo de tudo! A gente sacou bem cedo que pra tocar na cidade, fazendo rock em inglês, teríamos que nos produzir.” Em seguida, ele montaria seu primeiro selo/produtora, Me And My Monkey Records. “A gente também sacou que, pra tocar no Rio ou em Brasília, teríamos que intercambiar, trazer as bandas para tocar aqui e mostrar que a gente é bom de jogo. Trouxemos primeiro o Relespública, depois Autoramas, Wry.” A internet, que ainda engatinhava no Brasil, já fazia a cabeça de Fabrício e foi fundamental no processo. “Ainda não tinha MSN, mas tinha Poplist, Indie Brasil (listas de discussão por email), tinha como ver o catálogo da Estrus, da Matador, da Rough Trade. E dava pra trocar figurinha com gringos e brazucas.” Nessa época, nascia também um circuito de shows internacionais no Brasil, e não demorou muito para Fabrício fazer as contas: “Trazer bandas gringas pra cá poderia não dar grana, mas sairia mais barato do que ir
em oito pra SP. E a gente ainda poderia tocar junto!” O anúncio dos shows do Man Or Astro-Man? no país foi o pretexto ideal: decidido, ele foi atrás dos produtores da turnê e fechou uma data em Goiânia. Nem todo mundo demonstrou a mesma empolgação, naturalmente: “Nego caiu na risada, achou loucura. Mas, na hora que deu 700 pessoas numa casa que cabia 300, todo mundo pirou.” Na sequência, em 1999, ele criou o festival Bananada e depois se uniu a um amigo, o jornalista Leo Razuk, com quem levou à cidade bandas como Superchunk e Mudhoney. No mesmo ano, finalmente, os dois juntaram os trapos com Leo Bigode e Márcio Jr., fundadores da Monstro Discos. A fusão criou um mini-império indie que atualmente inclui dois festivais (além do Bananada, o Goiânia Noise), um dos selos com maior alcance no Brasil e uma produtora de bandas que aos poucos expande seus tentáculos para fora do país. “A Monstro tinha um contato excelente de distribuição, e eu e Razuk entramos com a manha dos shows,
bom público e muita cara-de-pau (risos)!” No começo, fechar no azul já era motivo de festa. “Quando sobrava R$ 200 pra cada um, a gente achava que estava ganhando dinheiro. Dava pra comprar um microfone, fazer uma tour, ou torrar no sábado nas férias da faculdade.” Com o tempo, as responsabilidades cresceram – Fabrício é casado há cinco anos e espera o segundo filho (“produtor eu não sou dos melhores, eu sou bom mesmo é reprodutor!”) – e ele ampliou os horizontes. Hoje, faz curadoria, dá consultoria, promove eventos para empresas e dá palestras, entre outras atividades. Desde 2005, ainda, preside a ABRAFIN, associação que reúne 38 festivais independentes e exerce papel central na troca de experiências entre produtores e no fomento musical. “A ABRAFIN não me paga salário, mas me coloca em contato com coisas bacanas, como o Projeto Rumos, o Red Bull Academy e o prêmio do British Council. É uma sequência de tudo que comecei em 1999. Eu faço as mesmas
coisas, toco na mesma banda, namoro a mesma menina (risos). Só mudaram os patamares.” O crescimento e a relação com órgãos políticos e entidades privadas de interesse público, como MinC, AMBI, BM&A, SENAES e SEBRAE – sem falar nas Leis de Incentivo – suscita questionamentos de quem tem uma visão mais ortodoxa sobre “ser independente”. Fabrício é direto: “Não tem politicagem com rock. Eu amo música – a minha música, a dos meus amigos, a das bandas com quem trabalho. Usamos a produção, política, mídia, web, todas as ferramentas à disposição – e criamos outras – para que essa música se desenvolva, chegue às pessoas, e para que as pessoas envolvidas possam se ocupar mais dela. É nisso que acredito. Antes de mais nada, sou doente por música. Tenho milhares de discos, revistas, vejo duzentos shows por ano, escuto essa porra o dia inteiro (risos).” Na mesma toada, ele desconversa quando pergunto qual, na sua opinião, é sua função. Por que, afinal, ele é necessário? “Cara, não
sei se sou necessário. O que eu sei é que faço as coisas com dedicação, curto viver de música e para a música, curto ser goiano da cidade e tento trazer as coisas foda que vejo em outros lugares, para que isso aqui cresça. Curto ser família e ter suporte da família, e sou grato por ter grande parceiros, na banda, no selo e em casa.” Fica pensativo por um instante e arremata: “No Orkut tá: Ana, Gabriela, os de Almeida Nobre, os Nobres, rock, MQN, Monstro, Abrafin, garage raw soul hard rock blues, o diabo é feito de bacon... (risos)”.3
8Saiba Mais www.monstrodiscos.com.br www.abrafin.org www.myspace.com/mqn 91
Por Gustavo Mini . Ilustração Guilherme Dable
Quando João estava alinhado com o cosmos, haviam lhe dito, tudo funcionava. Se ele não tinha dinheiro, aparecia. Ou desaparecia a preocupação que o perrengue gerava. Por isso, João pegou uns reais e foi até a casa de um amigo comprar o DVD do Cosmos que ele tinha. O pai do cara gravou todos os episódios. A voz do Sérgio Chapelin retumbava nas paredes de ótima acústica das lembranças de infância de João. Ele precisava daquilo.
“QUANTO VOCÊ QUER NO DVD?” “Não vendo. Tá louco, João?” “Então me faz uma cópia.” “Não posso. Prometi ao meu pai no leito de morte.” Quem viu muito Cosmos fala coisas como “no leito de morte”.
“Deixa de ser mané. Me faz uma cópia.” “Não posso, já te disse. Qualé, João?”
“Qualé, nada. Não te custa. Te dou uma cimitarra.” “Cimitarra o cacete. Fiz uma promessa. Promessa é dívida.” 92
Já “promessa é dívida” não tinha nada a ver com excesso de Cosmos.
“Tá, meu. Sujou na minha. Era isso, tchau.” “Ô João, não fica assim. Volta aqui. Deixa eu ver a cimitarra.”
“Deixa quieto.” E João se foi. Pegou o ônibus circular e sem querer acompanhou a órbita de um satélite na trecosfera, muitos quilômetros acima da sua cabeça. O centro do satélite coincidia com o seu chacra coronário, aquele que fica no topo do crânio. Mas só por sete paradas. Depois disso, João desceu na frente do shopping e o satélite seguiu seu curso. Chinês, o satélite. Os satélites chineses foram criados no início da década para controlar o tempo. Dezesseis foram lançados e nenhum deles cumpriu direito sua função. Pelo menos era o que diziam os jornais ocidentais. As autoridades de olhos puxados e pele levemente amarelada contavam outra versão. Diziam que os aparelhos funcionavam sim, pô, só que o pensamento ocidental não entendia a lógica deles. Um dia, um satélite chinês caiu
sobre setenta vacas no Quênia. Fica difícil entender a lógica oriental desse jeito. Mas João sacava isso tudo quando estava alinhado com o cosmos. Por isso, queria tanto o DVD.
“Ah, que se desfaça aquele DVD...” Contornou o shopping e se embrenhou no mato. Lá, em certo ponto, o chacra coronário dele e o centro do satélite voltaram a se encontrar por breves instantes. Nesse ponto da história o bosque cai, derramando a paisagem em um barranco íngreme. Além, só uma cerca, vaquinhas, coxilhas e o sol se pondo. João sentou na ponta do barranco e ficou olhando a cerca, as vaquinhas, as coxilhas e o sol se pondo.
Respirou aquilo tudo, trouxe junto com o ar pra dentro dele. E veio junto a cerca, as vaquinhas, as coxilhas e o sol se pondo, entrando pelo nariz, percorrendo a traqueia, chegando aos pulmões, envolvendo os brônquios e inebriando o cérebro. João vangloriou-se, sentiu-se vivo e feliz por ter a oportunidade de sentar uns minutos ali e apenas estar calmo daquele jeito. Daí expirou e, para sua surpresa, a cerca, as vaquinhas, as coxilhas e o sol se pondo não foram embora de dentro dele. Cabreiro, inspirou novamente e, dessa vez, pareceu vir apenas ar. A cerca, as vaquinhas, as coxilhas e o sol se pondo continuaram lá, adiante. Mas a sensação boa, cerquícea, vaquícea, coxilhícea e solstícia permanecia dentro dele. Na falta de algo mais elaborado, só conseguia pensar em palavrões de satisfação. Então levantou, largou a cerca, as vaquinhas, as coxilhas e o sol se pondo e foi viver sua vida. Uma vaquinha mugiu ao longe.
A cimitarra ficou na grama, abandonada.
8 Gustavo Mini escreve em www.oesquema.com.br/conector
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8Dinosaur Jr . Farm Jagjaguwar . 2009
Até dois anos atrás, os órfãos trintões da geração slacker (ou indie, college rock, guitar, grunge, chame você como quiser) já tinham se acostumado a pensar no Dinosaur Jr. com aquela benevolência saudosa reservada a tempos que não voltam mais. Dadas as relações conturbadas entre os três integrantes – Lou Barlow foi demitido por J Mascis em 1989; Murph seguiu na banda até 1997, mas com participação criativa mínima –, era mesmo bem improvável que eles voltassem. Mas em 2007 o trio ressurgiu, na formação original e com um baita disco, Beyond. Para os receosos de que o retorno pudesse ser efêmero, o Dinosaur Jr. emendou uma série de shows pelo mundo, clipes e aparições públicas que incluíram de programas de TV a trilhas sonoras para videogames. Agora, cimentando de vez qualquer ceticismo, eles voltam com Farm, uma coleção de 12 faixas quase irrepreensíveis que apresentam o que a banda tem de melhor. Quando se fala no melhor, aqui, vêm primeiro à mente os anos de You’re Living All Over Me e Bug, clássicos da fase independente do grupo. De fato, Beyond e Farm recuperaram algo que estava perdido desde então: a coesão de criar e gravar em grupo. Mas é justamente o equilíbrio entre a crueza dessa fase e os hits mais polidos de discos como Where You Been e Without a Sound, praticamente trabalhos solo de J Mascis, que faz de Farm um disco tão bom. “Over It” é um exemplo perfeito do balanço entre peso, desleixo e melodias menores que fez o nome da banda. O wah-wah malandro do começo logo se converte na massa corpulenta que Mascis incrivelmente produz com apenas uma guitarra. A letra é um atestado da facilidade, inerte e quase cruel, com que ele se desprendeu do que o incomodou até hoje (“Can I make it here?/ Get over it”, “I’ve been feeling weird/ Get over it”). A faixa ainda tem um clipe hilário, que mostra os três fazendo manobras surpreendentes – Mascis num skate, Barlow e Murph em BMXs –, todos devidamente substituídos por dublês nas cenas não adequadas a roqueiros acima dos 40. Como no caso deles, Farm vai assegurar nossa adolescência tardia por mais alguns anos. 3Por Mateus Potumati.
8Milo Manara e Hugo Pratt . Verão Índio 8André Toral . Os Brasileiros Conrad Editora . 2009
Há vários pontos de comunhão entre Verão Índio, de Hugo Pratt e Milo Manara, e Os Brasileiros, de André Toral, que justificam uma resenha conjunta das duas obras. E isso transcende o fato de ambas serem novelas gráficas – HQ, cinema ou literatura, o que fica ao fim de cada obra é uma experiência de conhecimento e sensibilidade. De formas distintas, mas com o mesmo apuro de linguagem, os álbuns partem do encontro de culturas diferentes – o choque entre civilizados e “primitivos” – para resolver assuntos caros à poética particular de cada autor. A conquista do continente americano em Verão Índio (reedição de um clássico 1987, considerado por muitos uma das cem melhores HQs de todos os tempos) é o leitmotiv para Pratt desenvolver uma história primorosa em sua narrativa clássica – e classuda! – e um tanto cínica, que deu status de obra-prima para sua principal criação, a série Corto Maltese. Verão Índio não tem moral possível – agressão física e sexual se unem à falta de razão que a religião comumente desperta no comportamento social. O que por si só seria uma história de fazer inveja a um Joseph Conrad ganhou mais vigor e exuberância no traço insinuante e sensual de Manara – suas mulheres em estado de cio nos deixam perplexos e extasiados em cenas de violência sexual brutal. Assim o paradoxo dos valores expostos duplica-se, e o leitor termina a história desnorteado. Dois artistas em estado de graça, absolutamente. Toral também não é nenhuma criança – venceu dois prêmios HQ Mix com as graphic novels O Negócio do Sertão (presente em Os Brasileiros) e Adeus, Chamigo Brasileiro – e, manipulando sua bagagem de historiador e antropólogo a favor de pequenos contos vivazes (um contraponto à placidez de tons e traço) que, como diz o autor, “mesmo sendo baseado em fatos reais é tudo mentira, criação subjetiva”, cria histórias feitas para ser lidas com o prazer de quem lê um Pratt, um Hergé ou um Alberto Breccia – todos heróis do autor. Os Brasileiros mostra índios não tão inocentes, não tão subjugados pelo branco, o que por um lado desmistifica a visão corrente e por outro amplia nossa percepção sobre seres humanos tão estigmatizados. Por fim, o que o autor nos comunica, em tom adulto, estimulante e nada afeito aos ditames da HQ estadunidense ou do cinema comercial, é que, no final, um homem é um homem, e o que nos faz humanos é o mesmo que nos torna monstros. Obra crucial para nós brasileiros e desafio para os quadrinistas de hoje. São esses paradoxos, o revés da moeda do maniqueísmo fácil, que garantem a permanência e o desafio proporcionados pelos dois álbuns: Manara, Pratt e Toral nos cativam por nos lembrarem que não somos estúpidos e nos atiram ao desafio de não nos imbecilizarmos. 3Por Arthur Dantas. 8Você encontra estes e outros livros na loja da +Soma7 94
8J. Dilla . Jay Stay Paid Nature Sounds . 2009
8Bruno Morais . A Vontade Superstar YB Music . 2009
É sempre estimulante ouvir um trabalho que exala beleza. Em A Vontade Superstar, essa beleza se revela em tom menor, tal qual a voz de Bruno Morais. Autor de canções de amores desiludidos (“Corações partidos/ sigam-me”, sentencia na abertura do disco), ele, como quem não quer nada, nos comunica todo um universo em que o ordenamento das coisas se dá na forma de pequenos toques (como poemas de uma Alice Ruiz, por exemplo), que conferem força ao álbum esmerado e quase barroco. Quando um músico jovem alcança a completude de um imaginário tão bem acabado, temos que sentar, relaxar e ouvir o que ele tem a dizer com muita atenção. Cada participação em suas canções presta-se a algo. Bocato, Marcos Suzano, Guizado, Rômulo Fróes, Marcelo Jeneci e Régis Damasceno, entre outros, aparecem para dar estofo suficiente para que a tímida exuberância instrumental se case engenhosamente com o canto medido, talvez obra da herança bossa-novista, mas muito mais provável herança de alguém que aprendeu lições de mestres do samba como Monarco e Nelson Cavaquinho – que aparece na sintomática “Pode Sorrir”, parceria com Guilherme de Brito. O que era dor pela humilhação da mulher que abandona o lar torna-se cinismo, o erguer o queixo de alguém que não demonstra a dor que de fato sente. E essa música acaba por definir a alma de todo o trabalho e seu engenho. Talvez o único porém seja o balanço rarefeito de uma canção como “Planos”, na qual o autor parece tentar resolver algo de seu trabalho inicial, devedor da tradição black, que funciona tanto quanto a musica de baile de um Max de Castro ou similares. Ainda que para algum ouvinte isso possa dizer algo, embarcar em tradição tão infrutífera é um despropósito em uma obra de resto tão bem acabada. A Vontade Superstar, como entrega o título, exprime a vocação de um trabalho em que, tal qual a máxima gramsciana, o pessimismo da inteligência tornase otimismo pela vontade, conferindo um discreto porém definido lugar na tão incensada nova música brasileira, que muitas vezes se apresenta com muita pompa para tão pouca circunstância. 3Por Arthur Dantas
J. Dilla é um dos nomes mais respeitados no hip-hop atual. Mesmo três anos depois do seu falecimento, o produtor de Detroit continua presenteando nossos ouvidos com instrumentais que parecem ter vida própria, independentemente das rimas. Jay Stay Paid é uma parceria entre o produtor, Pete Rock e Maureen Yancey, mãe de Dilla. O álbum é conduzido por uma narrativa de rádio, apresentada por Pete Rock, que também fez a mixagem das músicas. O som segue o estilo imposto por Dilla antes de sua morte: beats lisérgicos, criativos, cheios de experimentalismo e com um conceito próprio e original. O produtor transformava música em algo inédito para nossos ouvidos, com seus loops sampleados de coisas pouco prováveis, mas que em suas mãos davam muito certo. São 28 faixas, entre instrumentais, que poderiam ser apelidados de novos “donuts” pela semelhança com o disco póstumo do mesmo nome, e faixas rimadas por craques do porte de Black Thought (The Roots), DOOM, Havoc (Mobb Deep), Raekwon, Phat Kat, seu irmão Illa J e o novato Blu, entre outros amigos, admiradores e, acima de tudo, fãs. Mais um disco conceitual em sua excelente discografia. Que essa fonte demore muito a secar. 3Por Daniel Tamenpi
8Lee Fields & The Expression . My World Truth & Soul Records . 2009
Lee Fields é mais um desses talentos esquecidos da música soul dos anos 1960/70. Gravou diversos singles de pouco sucesso entre 69 e 79, além do disco Let’s Talk It Over, que também não decolou. Por ter uma performance no palco e um timbre de voz bem parecido com James Brown, Fields ganhou o apelido de “Little J.B.”. Viveu em um período de ostracismo até os anos 90, quando foi redescoberto por colecionadores e produtores de hip-hop e, desde então, gravou alguns discos por selos como Daptone, Desco e Soul Fire. Mas nenhum deles é tão bom como o novo, My World, lançado com a banda The Expression, que também pode atender por El Michels Affair, já que conta com os mesmos integrantes. O projeto iniciouse em 2005, quando banda e cantor decidiram gravar um disco nos moldes específicos do Memphis Soul, o estilo mais roots da musica soul. Com uma sonoridade dramática, cheia de orquestrações com violinos e cellos e uma session de metais respeitável, o álbum lembra a produção da Stax e da Hi Records (as principais gravadoras do Memphis Soul), mas também moderniza o estilo para os dias atuais. Pra quem gosta de El Michels Affair e toda essa cena de renovação da musica soul, My World é um prato cheio. Ótimos beats para o futuro. 3Por Daniel Tamenpi 95
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8Marcello Quintanilha . Sábado dos Meus Amores Conrad Editora . 2009
Marcello Quintanilha quase foi excluído do primeiro concurso sério de quadrinhos do qual participou, nos começo dos anos 1990. Só não foi porque um dos jurados resolveu remexer na pilha de rejeitados e ficou embasbacado com o que viu. O traço realista, a narrativa à Nelson Pereira dos Santos, o retrato rasgado e inédito do cotidiano brasileiro de segunda, descartado pela agenda cosmopolita dos nossos centros urbanos: tudo ali parecia muito ousado, muito original, muito primoroso para ser descartado. Quintanilha acabou sendo premiado e, não por acaso, esse mesmo jurado, Rogério de Campos, seria seu editor anos depois na Conrad. No seu primeiro livro lançado por essa editora, Fealdade de Fabiano Gorila (na época o autor assinava como Marcello Gaú), a orelha do próprio Rogério de Campos e o prefácio de Aldir Blanc tentavam traçar paralelos com seu universo pictórico e narrativo. Rosselini, Loustal, Antonioni, Jacob do Bandolim, Elizeth Cardoso, Jaguar, Millôr, Henfil, Ivan Lessa, Barão de Itararé, a lista ia longe. A situação era tão nova que permitia lançar mão do clichê: Quintanilha tinha reinventado os quadrinhos. Dez anos depois, a mesma editora finalmente publica Sábado dos Meus Amores, segundo livro do autor no Brasil. A distância do país – Quintanilha vive há anos em Barcelona, produzindo quadrinhos e ilustrações para o mercado europeu – não diminuiu a verossimilhança de sua narrativa. Pelo contrário: o autor parece ainda mais imerso e abrangente. Em seis crônicas, ele transita por Rubem Braga (outra referência clara), pela tragicomédia suburbana carioca, pela relação entre negros e imigrantes italianos no começo do século, pelo candomblé no Nordeste brasileiro, pela crueza da vida em um circo de quinta categoria. Extremos e sutilezas de humor, demência, crueldade e sexualidade – sensações que saltam aos olhos em quadros vivíssimos produzidos com técnica mista (lápis de cor? Pastel? Aquarela?). E assim, mais uma vez, Marcello Quintanilha reinventa os quadrinhos. 3Por Mateus Potumati 8Você encontra este e outros livros na loja da +Soma7
8Mos Def . The Ecstatic Downtown . 2009
Após o fiasco de True Magic, de 2006, Mos Def finalmente retorna com The Ecstatic, que já vinha sendo anunciado havia dois anos. No disco, o ator e MC selecionou produtores que combinam com seu estilo e convidou nomes respeitáveis para as participações vocais. A espera valeu a pena: The Ecstatic é excelente disco. A influência da musica indiana e oriental é clara em várias músicas, com produções no melhor estilo Bollywood. Acompanhado de produtores como Madlib, Oh No, J. Dilla e Georgia Anne Mudrow, entre outros, o rapper conseguiu impor o estilo que o tornou respeitado em sua estreia, Black On Both Sides, de 1999. Em “Supermagic”, que abre o álbum, Mos Def solta suas rimas em cima de guitarras turcas alucinadas. Em “Auditorium”, o MC convida o old school Slick Rick, que, com uma levada tranquila, se imagina como um soldado no Iraque. O beat espetacular fica a cargo de Madlib, que já o havia lançado em sua série Beat Konducta, em homenagem à Índia. Em “No Hay Nada Mas”, Mos Def canta em um espanhol meio decorado, mas com ótimo resultado. Com o parceiro Talib Kweli, conta sua “History”, em mais uma produção inspirada de J. Dilla. O disco fecha com a música “Casa Bey”, no melhor estilo samba-soul, com loops do som “Casa Forte”, da Banda Black Rio. The Ecstatic tem 16 músicas com diversas influências e um discurso forte, com rimas de caráter pessoal e referências ao Oriente Médio. Mos Def está de volta! 3Por Daniel Tamenpi
8Nike AM1 Lanceiro Nike Sportswear . 2009
Acaba de pousar nas gôndolas mais exclusivas do país o Nike Air Max 1 Lanceiro. A edição, inédita e limitada, é a primeira versão brasileira do modelo e foi inspirada na cultura pernambucana – em especial, na geração mangue beat. O tênis foi idealizado pelo footwear designer Fabrício Machado e homenageia a terra natal de Ricardo Nunes, criador do site SneakersBR, que completa dois anos. A escolha do Air Max 1 não foi gratuita. Menina dos olhos dos sneakerheads, o modelo foi o primeiro a expor a cápsula com o sistema Air de amortecimento e dialoga com a própria essência mangue beat: o velho fundido ao novo. Cada detalhe do Air Max 1 Lanceiro foi pensado de modo a preservar a história do modelo e da cultura pernambucana: as cores da bandeira do estado, a sola respingada por uma padrão que simula a lama, o couro, o swoosh holográfico, a palmilha bordada como as capas de paetês do caboclo Lanceiro – personagem mítico do folclore pernambucano. O detalhe final é a chave de ouro: no calcanhar, cravado em refletivo tonal, a frase “Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”, lema imortal de Chico Science, brinca com o contraponto entre o passado e o futuro. 3Por Natércia Pontes
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uito tem se falado sobre o “momento do quadrinho brasileiro”, inclusive nestas páginas. Prêmios internacionais são comemorados pelos entusiastas, que também festejam a participação de dois artistas da nova geração na Flip 2009 (Festa Literária Internacional de Parati) e o consequente interesse despertado na imprensa. A dificuldade que os quadrinhos encontram historicamente para transitar nos âmbitos privilegiados da cultura diz algo sobre a natureza desse otimismo: seja justificando sua repetição, como necessidade justa de (auto)afirmação, seja colocando sobre ele a sombra do efêmero (quanto tempo esse “momento” vai durar?). Nós, aqui na +Soma, vemos esse otimismo com bons olhos. Mas queremos ir além de expectativas nutridas no frenesi midiático. O “momento” dos quadrinhos para nós significa, sobretudo,
a profusão de projetos de qualidade e de artistas maduros – muitos deles mal chegados aos 20 anos – escondidos pelos quatro cantos do país. Um desses projetos, a revista Prego, sempre mereceu nossa atenção. Sob a chancela “Quadrinhos, Arte Punk e Psicodelia”, a Prego opera num universo original, avesso aos maneirismos dos quadrinhos que se pretendem “artísticos” e aos vícios dos quadrinhos tradicionais. A partir desta edição, vamos exibir trabalhos de alguns desses artistas, que, como toda expressão digna de nota, vão falar por si mesmos. Nestas páginas, vocês conhecem obras inéditas de Gabriel Renner, Stevz, Alex Vieira e Chico Felix. No que depender de nós, você ainda ouvirá falar muito nesses e em outros nomes. Aqui, o “momento do quadrinho brasileiro” não tem prazo de validade. 99
Alex Vieira 8 revistaprego.blogspot.com
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Chico Felix 8 gentefeianatv-gentefeianatv.blogspot.com
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+vErSõES E SubvErSõES
Rodrigo Guedes Minha experiência com o Álbum Branco nasceu na pilha de discos que herdei de um tio. Na época, criança, era mais fácil ouvir A Hard Day’s Night, mas, confuso e curioso, eu sempre voltava aquele disco. Com o tempo esse retorno se tornou mais frequente, até o dia em que não conseguia mais parar de ouvir. Este provavelmente foi o álbum que mais me incomodou. Como músico, é impossível não se sentir medíocre perto de uma obra assim. Ao mesmo tempo, sua capacidade de explorar os limites da cultura pop foi fundamental para me encorajar a nunca parar num mesmo lugar, mesmo que dessa forma eu estivesse me arriscando a tropeçar com mais facilidade. Se eu tenho um pai em forma de vinil, é o Álbum Branco. Depois que você consegue entender como separar as cores misturadas que deram origem ao branco, o mundo ganha uma forma diferente. 102
+ENDErEÇOS Atelier Piratininga . Rua Fradique Coutinho . 934 Vila Madalena . São Paulo .SP atelierpiratininga.blogspot.com Conrad Editora . www.conradeditora.com.br Downtown Music . www.downtownmusic.com Element/Nixon . Rua Oscar Freire . 909 www.elementskateboards.com Engenharia do Vinil . Rua Barão de Itapetininga . 37 – lj 46 Centro . São Paulo . SP Ezekiel . www.ezekielusa.com Jagjaguwar . www.jagjaguwar.com Nature Sounds . www.nature-sounds.net Nike Sportswear . Praça dos Omaguás . 100 Pinheiros . São Paulo . SP www.nikesportswear.com
Rádio 105 FM . www.radio105fm.com.br Santa Pin-up . santapin-up.blogspot.com +Soma . Rua Fidalga . 98 Vila Madalena . São Paulo . SP www.maissoma.com Truth & Soul Records . www.truthandsoulrecords.com Volcom . Alameda Lorena . 1835 Jardins . São Paulo . SP loja@volcom.com.br YB Music . Rua Purpurina . 434 Vila Madalena . São Paulo . SP www.ybmusic.com.br
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KiKo dinucci e convidados
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01 As Mercenárias #7 07 guizado #8 08 Elma #9 15 Nuda #10 22 Comma #11 29 Culto ao Rim #12
Fotos divulgação
Rua Fidalga 98 Vila Madalena São Paulo SP 11 3031 7945 105
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APRESENTANDO: JUSTIN BROCK // DARYL ANGEL DAVID CLARK // GRANT TAYLOR // SHANE O’NEILL
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