+soma . #15
Morte, sacrifício e recomeço são temas constantes em todas as artes. Isso, para alguns, tem a ver com a capacidade que a arte tem de tocar a alma humana em profundidades nebulosas, indizíveis. É por isso que as manifestações artísticas incitam as paixões mais incandescentes e os desentendimentos mais irracionais. A se levar isso tudo em conta, esta primeira década do século XXI, em vias de se encerrar, foi um banquete temático para o mundo das artes. Uma a uma, certezas cristalizadas na centena passada foram caindo por terra: a inevitabilidade prática do neoliberalismo, o progresso dos valores democráticos ocidentais, a liderança insular dos EUA, a estabilidade do clima na Terra, a nossa capacidade de produzir comida, energia e outros recursos por tempo e em quantidade ilimitada. A +Soma 15 – meio sem querer, o que é ainda mais significativo – acabou reunindo artistas e trabalhos que trazem essas questões no âmago de suas propostas. A decepção com o american way of life, e a certeza de seu esgotamento, foi o que levou o quadrinista Robert Crumb a trocar seu país de nascimento por uma vila bucólica no interior da França. Lá, ele criou seu Gênesis, ambiciosa obra de ilustração do mito geracional de duas das maiores religiões monoteístas do mundo. Em entrevista exclusiva, Crumb mostra porque ainda é, aos 66 anos, um dos artistas mais visionários e geniais da história. Um olhar semelhante está na obra de Dave Longstreth, líder dos Dirty Projectors, uma das bandas mais importantes de 2009. A relação predatória da humanidade com seus recursos o levou a “Cannibal Resource”, uma das letras mais emble-
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máticas dos últimos anos. Ele fala sobre essa e outras faixas do multicolorido Bitte Orca, disco fundamental deste final de década.
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Beleza e morte também são centrais no trabalho da paulista Tatiana Blass, que cria perturbadoras esculturas em cera e metal, além de telas e outros tra-
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balhos, que a colocaram no topo da nova geração artística brasileira. Vindo da ponta oposta da cultura, mas atingindo resultados tão contundentes quanto ela, o curitibano Rimon fala de liberdade e inquietação por linhas literalmente tortas. Entre idas e vindas, o lendário crew de rap paulistano RZO já foi dado como morto, mas conta em detalhes como está se reinventando para uma nova era musical. Como o fez a cidade de Seattle, que da decadência e falta de perspectivas de uma geração mudou a cultura dos anos 1990. O fotógrafo Michael Lavine estava lá desde 1982 e registrou tudo com olhar privilegiado. A decadência urbana também é o que atrai Formiga, que assina o ensaio de fotos desta edição e dá mais uma prova inconteste de que o belo está nos olhos de quem vê. E não foi outra convicção que levou Mônica Nador a abandonar uma carreira promissora nas artes para criar um centro de convivência revolucionário no Jardim Miriam, um dos bairros mais pobres de São Paulo. Em 2010, a +Soma deseja que todos (nós, você, o Brasil e o planeta Terra, tudo junto e misturado) encontrem a força, a coragem e a visão necessárias para começar a construir, das cinzas de um mundo que já tem cheiro de velho, um outro mundo. E que, nesse mundo, mais e mais pessoas dotadas de olhares privilegiados passem de espectadores a atores de transformações reais.
4detalhe da obra “antes da briga #2” . acrílica sobre tela . 2009 . foto por tatiana blass
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sangue bom.. . sa, * ca
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Lançamento do novo album $ 1,99 Faça o download gratuito do album na integra em www.cemporcentoskate.com.br/afilial
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O projeto +Soma é uma iniciativa da Kultur, estúdio criativo com sede em São Paulo. Para informações acesse: www.maissoma.com
Iniciativa .
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Kultur Studio Rua Fidalga, 98 . Pinheiros 05432 000 . São Paulo . SP www.kulturstudio.com
REVISTA SOMA #15 Janeiro 2010
Fundadores . Kultur Alexandre Charro, Fernanda Masini, Rodrigo Brasil e Tiago Moraes
Editor . Mateus Potumati Assistente Editorial . Marina Mantovanini Fotografia . Fernando Martins Revisão . Alexandre Boide Projeto gráfico . Fernanda Masini Arte . Jonas Pacheco e Rodolfo Herrera
Conteúdo áudio-visual . Alexandre Charro e Fernando Stutz
Colunistas . Gustavo Mini, Tiago Nicolas, Ricardo “Mentalozzz” Braga & Daniel “Ouriço” Peixoto, Stêvz e Rafael Sica
Gostaríamos de agradecer a Lora Fountain, Rogério de Campos, Marcos Sacchi e Luis Guidi; Jake Lovepump, Sérgio Ugeda, Fabrício e Larissa Nobre, Leo Razuk, Marília Assis e Priscilla Deretti; Lucas Pexão e Ana Ferraz; Clarissa Campolina, Daigo Oliva, Marcos Diego, Nathalia Birkholz, Amanda Louzada, Rafael Argemon, Fabio Zimbres, Agência Alavanca, a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha, anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado! Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início. Capa Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de
Auto Retrato - R. Crumb . 2001
seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. Periodicidade . Bimestral Publicidade . Cristiana Namur Moraes cris@kulturstudio.com
Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros culturais, shows, eventos e casas noturnas. Veja os endereços em: www.maissoma.com/info
Para anunciar ou enviar material para review, entre em contato através do e-mail redacao@maissoma.com.
Impressão . Prol Gráfica Tiragem . 10.000 exemplares
Foto: Gabriela D`Andrea l Arte: Renato Petillo
santapinup.com.br
+colaboradores
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Rafael Sica
Fernando Eichenberg
Daniel Tamenpi
É de um lugar frio e selvagem. Correu
Jornalista, há doze anos vive
Jornalista, pesquisador musical
atrás do tempo perdido, mas trocou
em Paris, de onde colabora para
e DJ especializado em soul, funk
as pernas. Vestiu as mãos antes que
diversas publicações brasileiras. É
e hip-hop. Escreve o blog Só
perdesse os dedos e se ergueu sob
autor do livro Entre Apas - Diálogos
Pedrada Musical, onde apresenta
um pequeno ponto de luz. Radicado
Contemporâneos (ed. Globo, 2006),
lançamentos e clássicos da
no mesmo lugar, desenha com seu
compilação de entrevistas com 27
música negra.
par de luvas de boxe.
personalidades europeias.
Lucas Pexão
Amanda Louzada
Marcos Diego
Skatista, jornalista, curador
Fotógrafa , já fez trabalhos para
É jornalista, gosta de som alto,
independente, art dealer.
Editora Globo, Grupo Estado e
cerveja gelada e camisa xadrez.
Proprietário da galeria FITA TAPE,
X-Games, entre outros. Mas também
Não à toa, entrevistou o fotógrafo
sócio do escritório noz.art e escreve
faz as vezes de cinegrafista. Clicou
que documentou a cena Grunge
para as revistas Vista e Void. No
os caras do RZO na laje e com
entre os anos 80 e 90.
tempo livre, conspira pela abolição
uma ajudinha do tempo – parou de
do sistema monetário.
chover só na hora de fazer as fotos.
Nathalia Birkholz
Tiago Mesquita
Arthur Dantas
Jornalista, produtora e fã de rap
Tiago Mesquita é crítico de
31 anos. O capitalismo roubou minha
nacional. Teve textos publicados por
arte, professor e está fantasiado
virgindade e atualmente sou contra
veículos como O Estado de S. Paulo,
de pirata.
TUDO que tá aí. Ama Crass, 4 Walls
revista Joyce Pascovitch, DJ Mag
e Itamar Assumpção. A favor da
etc. Às vezes acaba na frente das
paz, do amor e da esperança.
câmeras, mas seu negócio mesmo é batucar linhas.
Rafael Argemon
Lauro Mesquita
Nik Neves
Jornalista, cocacólatra, toxicômano,
Jornalista, foi vocalista e guitarrista
Misto de ilustrador e viajante, tem
cinéfilo, gamer e não vive sem
do Space Invaders. Nas horas
nos quadrinhos seu porto. Produz
geleia de mocotó de copinho.
vagas escuta um som e aproveita
com o grupo Bestiário a revista
a vida em Belo Horizonte, Pouso
PICABU 5. A história desta edição
Alegre e na idílica Heliodora.
é uma homenagem ao universo das
Apesar de negar com veemência, é
BD europeias, especialmente Hergé
roqueiro brasileiro nato.
e seu Tintin.
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COM CHRiS COuTO por tiago nicolas
uMA TRiLHA SONORA A do filme Flores Partidas, com o Mulato
uM DiSCO DE MãE The Miseducation of Lauryn Hill
uM DiSCO DA SOM LivRE Aquelas trilhas de novelas antigas, tipo Véu de Noiva, Selva de Pedra, Cavalo de Aço... só tranqueira!
DiSCãO REi DO GADO On the Beach – Neil Young
uM DiSCO DE éPOCA Band on the Run – Paul Mc Cartney
DiSCO quE DEvERiA SER ANuNCiADO NO PLANTãO DO JORNAL NACiONAL Enter the 37th Chamber – El Michels Affair
DiSCO POLíTiCO PARA A GLóRiA PiRES PODER DANçAR Midnight Band: The First Minute Of A New Day – Gil Scott-Heron/ Brian Jackson
Sem querer ser Bozó, muito menos amigo do Boni, mas a entrevistada da Shuffle deste mês é atriz e já fez bastante novela pra Grobo. CHRiS COuTO é de formação teatral, mas faz carreira na TV desde a extinta e saudosa TV Manchete (que saudade do Scala) e, além das novelas, foi VJ da MTV. Atualmente pode ser vista como entrevistadora do programa A Fazenda, da Record, e tem um gosto musical parecido com o meu ou o seu. Ah, e a Chris é a primeira mina que responde as perguntas da coluna direto da caixa de sonhos da sua sala para as páginas da +Soma: 9 discos, mais um. Os essenciais da Chris Couto. Plim, plim! 1
uM DiSCO FEiTO POR uM AMiGO Velha Guarda 22 – Mamelo Sound System
DiSCO DE uM CANTOR/ ATOR AMiGO Ou NãO The Ecstatic – Mos Def
DiSCO quE Eu DARiA DE AMiGO SECRETO NO FANTáSTiCO Fluorescent Black – Anti-Pop Consortium
2TiAGO NiCOLAS é 1/6 DA CHAKA HOTNiGHTZ 17
POR FERNANDO EiCHENBERG . iMAGENS CEDiDAS POR CONRAD EDiTORA . RETRATOS POR PETER POPLASki.
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pítetos não faltam para qualificar Robert Crumb: papa da cultura underground dos comix americanos, iconoclasta, um dos artistas mais importantes do século XX, e por aí vai. Seu precioso portfolio é composto de personagens que se tornaram lendas, como Mr. Natural e Fritz the Cat, e de revistas emblemáticas como Zap Comix e Weirdo. Neste final de ano, o infatigável Crumb reapareceu nas prateleiras com o que definiu como sua magnum opus: a aguardada versão ilustrada dos 50 capítulos do Gênesis bíblico (um livro de 224 páginas e capa dura na edição brasileira da Conrad; leia review nesta edição). A obra, que teve lançamento simultâneo em 12 países (dez na Europa, mais EUA e Brasil), consumiu quatro laboriosos anos do quadrinista. Do sarcástico e sexualmente obcecado Crumb, exconsumidor de LSD e de anfetaminas, esperava-se uma adaptação livre do Gênesis, com cenas de sexo explícito e legendas de humor corrosivo. Porém, ao se associar ao Deus de Abraão na história da criação do Universo – da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, passando pela Arca de Noé e a destruição de Sodoma e Gomorra, até a morte de José no Egito –, o autor manteve fidelidade absoluta ao texto original. Além disso, mergulhou em uma profunda pesquisa histórica e pictórica antes de começar a rabiscar seus traços bíblicos. O desenho, obsessivo nos detalhes e extremamente corporal, não explicita órgãos sexuais nem recorre a ilustrações sexualmente ousadas. Suas principais fontes escritas foram a versão da Bíblia do Rei
James (do século XVii) e a recente tradução The Five Books of Moses (2004), de Robert Alter, crítico literário norte-americano e professor da Universidade de Berkeley (EUA). Na entrevista coletiva à imprensa internacional em outubro no Centro Georges Pompidou, em Paris, seu editor francês, Jean-Luc Fromental, afirmou: “Todos que amam os quadrinhos se darão conta de que pela primeira vez todo comentário, interpretação e exegese se dão pelo desenho. É um trabalho mudo. Ele é subversivo porque nos remete à Bíblia de uma forma até hoje nunca feita, não religiosa, mas como um texto fundamental, que vem de nossas origens”. Ao seu lado, Crumb, a silhueta delgada, espessos óculos de grau e a barba grisalha de seus 66 anos, exclamou em concordância: “That’s beautiful!”, provocando risos na sala. Longe de satirizar a Bíblia, sua intenção primeira foi a de “iluminar” o texto, que para ele se trata de uma criação do homem e não da “palavra de Deus”. “Muitas pessoas ficarão surpresas com as histórias contidas no Gênesis”, resumiu. Crumb vive recolhido há 18 anos no Sul da França, em Sauve, uma aldeia medieval encravada nas colinas de Languedoc-Roussilon, ao lado da mulher e parceira de HQs, Aline kominsky-Crumb, da filha Sophie, também quadrinista – que acaba de lhe dar um neto –, e de sua invejável coleção de mais de cinco mil discos raros de 78 rotações. De passagem por Paris, onde mantém um pequeno apartamento, a caminho da turnê de lançamento do Gênesis nos EUA, Robert Crumb conversou com a + Soma sobre seu mais recente trabalho, o governo Obama, a França e os EUA, sua condição de gnóstico e, claro, sua adoração por discos antigos. 1 19
Desde o lançamento de Gênesis, você já soube de alguma reação adversa de fundamentalistas ou de outros grupos mais radicais? Ainda não. E não tenho certeza de que eles irão atacar o livro ou a mim. É possível, mas não tenho ideia. Não sei o que poderá acontecer quando for a Austin, no Texas, onde há cristãos fundamentalistas. Não estou ridicularizando o Gênesis. Quem ler o livro verá um trabalho de ilustração bastante rigoroso. Fui muito cuidadoso, não queria de forma alguma ridicularizar nada, mas que o texto falasse por si mesmo por meio de ilustrações. Dei o melhor de mim e tentei ser o mais fiel possível na interpretação do que realmente estava escrito. O texto abre espaço a várias interpretações. Quando Deus, desapontado e enojado com a raça humana, provoca o Dilúvio, ele não o explica. Está decepcionado com o comportamento do ser humano, com a fraqueza de seu coração, mas não diz especificamente o que o incomoda tanto. Então tive que inventar, mostrei pessoas sendo cruéis umas com as outras. Há muitas situações assim, abertas a diferentes interpretações visuais, e eu tentei o máximo que pude não desviar os desenhos do texto. Eu me contive em colocar qualquer tipo de piada ou outras coisas que pudessem distrair as pessoas. Não é uma abordagem irônica, mas completamente fiel. E fui criticado por isso. Alguns críticos não gostaram, esperavam que eu fosse escandaloso. Uma das peças de propaganda da versão inglesa dizia: “Crumb fez uma sátira escandalosa da Bíblia”. Obviamente, a pessoa que escreveu isso não leu o livro. Falei para minha agente, Lora Fountain: “Diga para não usarem isso, não é uma sátira escandalosa, não foi isso que eu fiz”. Mas era o que as pessoas esperavam, já que sou conhecido por isso. Um articulista afirmou no Washington Post que era um absurdo alguém como eu, conhecido pelo trabalho artístico escandaloso, pornográfico, de imagens racistas malucas e tudo o mais, fazer uma ilustração correta da Bíblia. Ele não entendeu: “O que ele está fazendo, qual o objetivo disso?”. De certa forma, é uma boa pergunta, à qual não posso responder claramente. Não sei. A verdadeira subversão reclamada pelos críticos está na fidelidade ao texto original? Exatamente. A coisa mais subversiva é a exposição do texto. O objetivo de todo o trabalho que tive foi esse, iluminar um texto tão importante para a civilização ocidental. isso nunca havia sido feito antes: ilustrar cada palavra desse texto. Assim, ele é revelado mesmo em suas partes estranhas e esquisitas, que as pessoas na maioria das vezes leem de forma rápida e superficial. Elas geralmente pulam as partes bizarras, que não fazem sentido para as pessoas da nossa época. Por exemplo, quando Abraão oferece sua mulher ao Faraó. Mas que diabo é isso? Normalmente, as pessoas não atentam para isso. Não faz sentido para pessoas modernas. O Brasil é o maior país católico do mundo. A editora brasileira de Gênesis fez para o livro uma capa que procurasse não ferir suscetibilidades e evitar eventuais reações contrárias, sem mostrar a imagem de Deus. É, fiquei sabendo disso, a Lora me mostrou a capa. Mostra só a palavra “Gênesis” no meio daquele vazio negro que dá voltas, não é? Eles têm medo de mostrar a imagem de Deus na capa? É engraçado porque, de todos os cristãos, os católicos são os que mais mostram a imagem de Deus. Você pode ir à Capela Sistina, em Roma, e ver a imagem de Deus por Michelangelo, de barba branca. É o mesmo cara (risos). Eu não entendo isso, mostrar Deus não é considerado blasfêmia na tradição católica. Na tradição ortodoxa judaica não é permitido. Na tradição islâmica não se pode fazer nenhuma imagem de Maomé, muito 20
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m articulista afirmou no Washington Post que era um absurdo alguém como eu, conhecido pelo trabalho artístico escandaloso, pornográfico, de imagens racistas malucas e tudo o mais, fazer uma ilustração correta da Bíblia. Ele não entendeu: “O que ele está fazendo, qual o objetivo disso?”. De certa forma, é uma boa pergunta, à qual não posso responder claramente. Não sei.
menos de Alá. Mas entre os católicos as imagens estão em todo o lugar, em todas as igrejas. É engraçado que eles tiveram medo de mostrar isso. Não sei que tipo de reação poderia ocorrer no Brasil. Não tenho ideia. Considerando o fato de que quase nenhuma palavra do texto original do Gênesis foi alterada, que não há ilustrações de pênis em ereção ou cenas de sexo explícito, por que a advertência inserida na capa da edição americana: “Supervisão adulta recomendada para menores”? imagine um pai indo na [rede de livrarias] Barnes & Noble: “Oh, uma versão em quadrinhos da Bíblia, vou comprá-la para o meu filho”. Aí chegam em casa e veem pessoas fodendo no livro. Não se mostra nenhum pênis, mas há pessoas fazendo sexo, mulheres nuas, corpos nus. Cristãos e pessoas conservadoras nos EUA poderão ficar bastante inquietas ao ver isso, e na verdade eles compraram o livro para o filho. Eles vão reclamar, vão chamar a polícia para prender o coitado que está trabalhando na loja, que vendeu o livro para uma católica de direita que achou que fosse uma HQ para crianças. Essa é a razão da advertência na capa. Foi engraçado, porque quando colocaram, o Norton (da editora Norton) disse: “Que ótimo, agora a criançada vai querer comprar mesmo!” (risos). Foi minha ideia incluir isso, pela experiência que tive anteriormente com os quadrinhos, sabe? Eram os vendedores que iam presos e não os artistas ou a editora. Era o coitado que trabalhava na loja. Ao fazer esse trabalho, você ficou surpreso com a força e a importância do papel desempenhado pelas mulheres no Gênesis? Sim, foi algo bastante surpreendente. Eu li o Gênesis antes de fazer meu livro, mas você faz uma leitura geral e não foca nisso ou naquilo. Então, peguei um livro chamado Sarah The Priestess - The First Matriarch of Genesis, de Savina Teubal. Ela apresenta tudo isso de forma bastante forte, com argumentos muito incisivos. Há mapas e representações gráficas nesse livro mostrando que o clã iniciado por Abraão é matrilinear, e que são as mulheres que decidem quem vai herdar a aliança com Deus. Ela apresenta detalhes do contexto histórico daquela época, de 2000 a.C., dos sumérios, que tinham um poder patriarcal e matriarcal. 21
E os dois eram iguais – tinham atribuições diferentes, mas eram iguais. Muito mais tarde isso mudou, e a sociedade se tornou inteiramente patriarcal. Mas a tradição desse sistema matriarcal ainda era bastante forte em 2000 a.C. Havia uma sacerdotisa responsável pelos celeiros. O sacerdote era um tipo de dalai lama, homem sagrado e governante ao mesmo tempo. Seu traço em Gênesis apresenta um detalhismo maior em relação a obras anteriores. você mudou sua maneira de desenhar? Aprendi muito. Acho que aperfeiçoei minhas habilidades em alguns aspectos. Nunca tinha desenhado animais de forma tão realista – burros, camelos, ovelhas, cabras. Aprendi a me educar nesse sentido. Primeiro, copiava de outras fotografias e de outros desenhos. Com o tempo passei a desenhar sem copiar. Aprendi a desenhar camelos e burros muito bem. Nunca tinha desenhado um camelo na vida (risos)! Também melhorei no desenho da anatomia humana. Desenhei tantas e tantas figuras humanas, em diferentes posições de ação, que acabei progredindo. Também desenhei muito essas roupas drapeadas. Todos eles vestem roupas compridas, soltas e drapeadas. Acho que minhas qualidades nessa área ainda são toscas, nunca consegui atingir um alto nível no entendimento da ciência das dobras das roupas. Em ilustração, isso se chama “conceito das dobras”. É uma ciência aprender a desenhar tecidos drapeados. Nunca estudei em escolas de artes, onde se tem aulas só para isso. Eles aprendiam a desenhar aquelas dobrinhas. Se você pegar a arte europeia do período pré-Renascentista, entre 1300 e 1400, muitas vezes os artistas ficam completamente absorvidos nesse conceito das dobras. São temas religiosos, mostram a Virgem Maria ou alguém assim, mas os artistas dedicavam a maior parte do tempo a essas dobras, era algo novo. Se você deixa cair um tecido no chão, como seriam as dobras? É muito complicado tentar desenhar isso (risos)! No começo, passei muito tempo corrigindo erros em relação a roupas drapeadas e à anatomia das pessoas. No início, desenhava braços longos demais, havia muitas coisas a ser corrigidas. Usava corretor líquido sem parar. Você teve a ajuda de seu amigo e ilustrador Peter Poplaski na pesquisa iconográfica. Ele é um ótimo ilustrador. Entende o que é preciso para fazer as coisas direito. Por iniciativa própria, passou bastante tempo assistindo para mim a todos esses DVDs de filmes bíblicos antigos como Os Dez Mandamentos (Cecil B. DeMille, 1956) e fazia fotos da tela da TV. Eu tinha centenas de fotos espalhadas na minha mesa enquanto trabalhava. Os Dez Mandamentos foi realmente o que mais me ajudou. Eles gastaram muito dinheiro nos detalhes desse filme. Mas você também se inspirou em referências hollywoodianas menos previsíveis, como O Céu que nos Protege (1990), de Bernardo Berlotucci; A Ultima Tentação de Cristo (1998), de Martin Scorsese, e A Múmia (1999) e O Retorno da Múmia (2001), de Stephen Sommers. Em que esses filmes ajudaram? Os cenários e figurinos bíblicos não eram tão bons como em Os Dez Mandamentos, porque foram filmes feitos com orçamentos bem menores. Mas, mesmo assim, o meu modelo para o Faraó do Egito veio do filme A Múmia (risos). Embora os figurinos sejam meio inventados e feitos de qualquer jeito, ainda assim funcionava para os quadrinhos. Não é possível chegar à exatidão histórica, não há informação visual sobre o período dos sumérios, de 2000 a.C., na Mesopotâmia. Encontraram uma caixa com figuras incrustadas de um veículo de quatro rodas puxado por bois, desenhadas de uma forma bastante rústica. É bem estilizado, não 22
dá para ver os detalhes. Mas ainda assim é bem útil. Os filmes maquiaram alguns detalhes, mas são úteis. Desde o início dos anos 1980, você tem feito uma série de adaptações literárias, de autores como James Boswell, Richard von Krafft-Ebing, Jean-Paul Sartre ou Franz Kafka. Sua versão do Gênesis já foi definida como o ápice de seu “impulso de ilustração clássica”. você concorda? Sim, é o meu maior impulso de ilustração clássica. Precisamente. É certamente o meu maior trabalho em muito tempo. É o maior trabalho que já realizei para um único livro desde quando tinha 19 anos, quando fiz aquele livro colorido, The Big Yum Yum Book (risos). Foi o meu maior projeto desde aquele tempo. Especialmente a partir dos anos 1990, tem havido uma reavaliação da sua obra, com destaque para o célebre texto do Robert Hughes que o compara a Pieter Bruegel. Como você vê esse tipo de abordagem à sua obra e em relação aos quadrinhos em geral? A minha abordagem com os quadrinhos é bastante conservadora. Não uso layouts extravagantes e o meu traço é tradicional. Não uso efeitos cinematográficos e dramáticos, como fazem muitos outros. Alguns críticos dizem que é cansativo ler meus quadrinhos. Mas não se pode agradar a todos.
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prendi muito. Acho que aperfeiçoei minhas habilidades em alguns aspectos. Nunca tinha desenhado animais de forma tão realista – burros, camelos, ovelhas, cabras. Aprendi a me educar nesse sentido. Primeiro, copiava de outras fotografias e de outros desenhos. Com o tempo passei a desenhar sem copiar. Aprendi a desenhar camelos e burros muito bem. Nunca tinha desenhado um camelo na vida (risos)!
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Depois da turnê americana do Gênesis, você pretende começar um novo projeto de livro com Aline [Kominski, esposa de Crumb]. Como será? Queremos usar algumas das coisas antigas que fizemos para a New Yorker. Já temos muitas ideias, e com a Aline é tudo muito fácil, o livro se faz sozinho. Quando começo a trabalhar com ela, o humor judeu começa a jorrar. Ela é uma comediante stand up como Lenny Bruce, tem ideias o tempo todo. Uma herança judaica nova-iorquina (risos). O problema é organizar aquilo tudo e editar, cortar, porque tem sempre muito material. você ainda lê quadrinhos? que artistas atuais você aprecia? Não tenho nenhum artista favorito. Procuro ver novas coisas, mas também leio HQs antigas. Há muita coisa interessante sendo criada por jovens artistas, desconhecidos, e tento acompanhar o que se passa na EUA e também aqui na Europa. você ainda tem contato com Harvey Pekar, com quem colaborou no passado? Não nos falamos mais com tanta frequência. Fico feliz por ele estar bem de saúde e vivo, após quase ter morrido de câncer há alguns anos. Ele fez um livro ótimo, chamado Our Cancer Year, cem páginas sobre sofrer de câncer. É um grande contador de histórias, na tradição judaica. quais as principais mudanças que você notou nos EuA e na França desde que passou a morar aqui? Vivo numa pequena aldeia no Sul. Cheguei em 1990 e não tenho visto tanta modernização por lá. Era um lugar bem atrasado para a França, que é considerado um país ocidental desenvolvido. A eletricidade e as linhas de telefone não funcionavam muito bem – era como se fosse o Terceiro Mundo da França. Mas está cada vez mais moderno, melhoraram bastante as estradas, construíram supermercados. Por um lado é bom; por outro, é ruim. Tempos atrás, eu e a Aline nos envolvemos numa luta contra a instalação de um supermercado em nossa aldeia. Vários moradores queriam o supermercado, ficaram maravilhados, eram ingênuos, não entendiam o que estavam fazendo para a cidade. Mas conseguimos embargar o supermercado. Algumas pessoas que também eram contra me pediram para fazer um cartaz contra o supermercado. Eu fiz um desenho e ele foi espalhado por toda parte. As pessoas que eram a favor direcionaram toda a raiva contra mim. Cheguei a ser agredido fisicamente por um jovem que estava arrancando os cartazes. Houve essa mudança pela modernização. Agora o lugar está mais parecido com os EUA – eles se vestem como americanos, estão mais gordos, a dieta mudou, comem mais snack food. A cultura consumista está na moda. As crianças da nova geração são mais obesas. As coisas acontecem muito rápido, é espantoso. você pretende retornar aos EuA? Não. Eu volto com bastante frequência, pelo menos uma vez por ano. Sinto falta dos meus amigos e da família, gostaria de vê-los mais vezes. É muito complicado viajar de avião hoje, os aeroportos são horríveis. Mas para rever essas pessoas tenho que voltar de vez em quando. Para mim, a cultura dos EUA está se tornando ainda mais corporativa. É repugnante. Dentro ou fora de casa, você é constantemente bombardeado por propaganda corporativa, para consumir. Começou com o Reagan, mas acredito que nos anos Bush houve um impulso muito agressivo em direção a um estado fascista corporativo. Não acho que conseguiram, mas 26
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empos atrás, eu e a Aline nos envolvemos numa luta contra a instalação de um supermercado em nossa aldeia. Vários moradores queriam o supermercado, ficaram maravilhados, eram ingênuos, não entendiam o que estavam fazendo para a cidade.
tentaram. Espero que Obama e sua equipe possam interromper isso, pelo menos um pouco. Essa máquina destruidora que é o estado fascista corporativo tem muita força nos EUA, e o Obama não pode pará-la sozinho. Mas ele representa uma esperança em relação a isso. O mundo inteiro espera que ele possa parar essa máquina. Aqui na França, todos o amam, o mundo ama Obama. É uma esperança de que o estado fascista corporativo não vingue. você votou pela primeira vez na vida nas últimas eleições presidenciais americanas, em Obama. Como vê o primeiro ano de seu governo e todas as reações que começam a aparecer contra ele? É assustador. Ele pode ser morto. Posso imaginá-lo sendo assassinado por brancos racistas. Mas por trás desses racistas pode haver um amplo programa do estado fascista corporativo, instigando e provocando racistas a matá-lo, sem que isso afete a reputação delas, sem que prejudique a imagem de pessoas que não gostam dele, mas que estão no topo desse sistema. Tudo depende de o quanto Obama conseguir ser eficaz. A eficácia dele pode gerar grande raiva e ressentimento na direita. Se ele não for tão eficiente, provavelmente não vão querer matá-lo. Não sei. A única coisa que sei é que a maior parte das pessoas que gostam do Obama esperam que ele não seja atingido por essas coisas, mas os americanos estão bastante preocupados e o resto do mundo também. Já ouviu falar de uma ideia dos neocons, o “Projeto Para Um Novo Século Americano”? Um think tank formado no governo Bush por nomes como Dick Cheney, Paul Wolfowitz e Richard Pearl elaborou, no ano 2000, um relatório intitulado “Defesas Americanas”, algo assim. Há cerca de um mês, alguém baixou o texto para mim no computador; eu li, e é chocante. Eles afirmam de forma bastante clara que os Estados Unidos são, desde o fim da União Soviética, a única superpotência do mundo, e que essa é a oportunidade para os EUA dominarem militarmente todo o planeta. Está escrito ali. E não somente o planeta, mas o espaço: eles querem dominar militarmente o espaço, e também o ciberespaço. Durante anos essas pessoas influenciaram o governo Bush para efetivar um programa de dominação do mundo. De onde vinham os recursos, quem estava pagando por isso? Eles tiveram que ignorar liberdades civis, a democracia teve que sofrer. isso é fascismo na forma mais simples e literal, como defendido por Mussolini. Não podemos confundir com nazismo, mas é fascismo. quando entrevistei Claude Lévi-Strauss (1908-2009), ele manifestou sua inquietação pelo fato de que, quando nasceu, havia 1,5 bilhão de homens sobre a Terra; quando entrou na universidade de São Paulo, eram 2 bilhões; hoje, há quase 7 bilhões, e daqui a 20 ou 30 anos teremos 9 bilhões. você diz ter a mesma preocupação com o rápido aumento da população mundial. isso certamente terá um efeito significativo no planeta e em nossas relações sociais. Mas, às vezes, penso que essa grande multiplicação de seres humanos também possa ter um lado positivo. Haverá mais energia mental no planeta, como nunca houve, por causa desse crescimento. A energia mental humana poderá atingir uma massa crítica e provocar um salto na evolução da inteligência. Essa é a teoria mais otimista em relação à explosão populacional: coletivamente, poderemos atingir um ponto em que nos tornaremos mais sensíveis ao bem-estar coletivo ou à nossa intenção coletiva. Mas também podemos regredir e nos tornar novamente bárbaros. É difícil dizer (risos). 27
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urante anos essas pessoas influenciaram o governo Bush para efetivar um programa de dominação do mundo. De onde vinham os recursos, quem estava pagando por isso? Eles tiveram que ignorar liberdades civis, a democracia teve que sofrer. Isso é fascismo na forma mais simples e literal, como defendido por Mussolini. Não podemos confundir com nazismo, mas é fascismo.
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você se define como gnóstico. Gnóstico é alguém que busca o conhecimento de Deus. Sou alguém em busca desse conhecimento. Não tenho a pretensão de dizer que possuo algum conhecimento, mas o procuro. Quando você medita, tenta compreender a natureza da realidade, da nossa existência, da vida. Tenta unificar o todo da vida. isso é muito gnóstico. Existe um texto gnóstico descoberto nos anos 1940, chamado “Nag Hammadi”, que é muito interessante. Fui bastante reprimido. A igreja cristã e outras não gostavam de gnósticos – é algo muito vago, solto, sem doutrina suficiente. Os primeiros católicos se doutrinaram muito rapidamente. Queriam verdades absolutas, e todos que não concordavam com essas verdades eram excomungados. Por volta de 300 d.C., um bispo decidiu que todos que não reconhecessem Jesus como a encarnação de Deus não eram cristãos. Foi aí que começou o conflito em torno da heresia e dos hereges, de quem discordava da igreja, milhões de pessoas perseguidas ao longo dos séculos. Ser gnóstico é não se limitar e não ter doutrinas. É diferente de ser agnóstico. Agnósticos duvidam da existência de Deus. Não são exatamente ateus, mas é um jeito de dizer “isso não é comigo”. Mas os gnósticos são interessados e praticam essa busca, na forma de meditação. você medita? Sim, tento meditar todos os dias. Às vezes estou muito ocupado e não consigo, mas tento meditar todos os dias. É algo muito benéfico e útil. você ainda é um colecionador compulsivo de 78 rotações? Ainda coleciono, tenho mais de cinco mil discos. Pouco antes da nossa entrevista, estava ouvindo alguns 78 rotações que consegui aqui em Paris, há três dias, com um cara que os garimpa em feiras de antiguidades. Troquei os discos por desenhos (risos). Ele achou ótimos discos – franceses, da África do Norte, Turquia e um disco grego fabuloso. Coisas desconhecidas, perdidas. É como se você resgatasse esses discos do esquecimento. Muitas vezes é preciso lavá-los, porque estão sujos, ninguém cuida. você também já mencionou que aprecia discos brasileiros. Sim, coisas antigas. Mas é muito difícil de encontrar fora do Brasil, muito pouca coisa saiu em alguns raros CDs. Aqui na França há muito mais interesse do que nos EUA. Tenho amigos que colecionam discos de 78 rotações e um deles conseguiu achar alguns brasileiros excelentes. Há diferentes estilos e tipos de música. Acho muito interessante o período do final dos anos 1920 e começo dos anos 1930. É música de primeira linha. Gostaria de ouvir mais, mas, mesmo para mim, que sou colecionador, é muito difícil de achar. Esse amigo encontrou discos brasileiros em Portugal. Como você avalia a música brasileira desse período? Ritmicamente é muito avançada, uma combinação de música africana com influências europeias, tudo misturado. É genial. Há ótimos músicos de instrumentos de cordas, e mesmo grupos que tocam um tipo de jazz e coisas com sopros. Mas não posso falar com autoridade, não lembro de nomes, minha familiaridade é limitada. Mesmo tendo ouvido tão pouco, a qualidade me espanta. Provavelmente há colecionadores sérios de 78 rotações daquele período no Brasil. Tenho certeza de que deve existir no Rio ou em São Paulo. Se você pudesse contatar alguns deles e conseguir cópias eu agradeceria. Mas discos do tempo da Carmem Miranda não me interessam (risos)! 3
2SAiBA MAiS crumbproducts.com 29
dirty projectors
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indie rock de breque
POR MATEUS POTUMATi
Sentado à mesa em um restaurante de Goiânia, naquele que é provavelmente seu primeiro almoço decente no Brasil – no dia anterior, quando chegou, ele teve que se contentar com o aeroporto –, Dave Longstreth explica a seus colegas de banda, animado, os ingredientes dos pratos locais. O cardápio não é bilíngue, e ele não fala português, mas se sai surpreendentemente bem. Não pergunto para não interromper o momento, mas arrisco que a familiaridade com as palavras venha de seu grande interesse pela música brasileira. Semanas antes, pelo telefone, ele havia me dito que cresceu cercado por MPB e que já foi “fanático pelos discos de Tom Jobim e Caetano Veloso”. Não é por acaso que o Dirty Projectors escolheu o Brasil para encerrar a turnê de um ano memorável, em que saltou da condição de banda interessante, mas ainda um tanto hermética, para o posto de um dos grupos mais importantes e influentes da música norte-americana neste fim de década. 1
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“A músicA deles tem elementos fAmiliAres, e mesmo Assim muitAs vezes soA como músicA pop feitA por Alguém que leu sobre A formA, mAs nuncA ouviu As músicAs, e depois pegou os elementos básicos pArA compor. mAs isso não é verdAde, porque dAve tem um conhecimento profundo sobre músicAs e seus respectivos Autores. mesmo Assim, o som dA bAndA segue sendo completAmente estrAnho e estrAnhAmente fAmiliAr Ao mesmo tempo.” DaviD Byrne
O salto se deu com o lançamento, em junho, de Bitte Orca (“bitte” do alemão “por favor”), que ampliou o estilo peculiar de composição de Longstreth em direção a um pop de vanguarda – algo como um indie-rock com déficit de atenção, que une de forma inteligente estilos como punk/ pós-punk, no-wave, rock progressivo, música africana, r&b, hip-hop e a composição europeia contemporânea. Antropofagia tropicalista pura, versão Brooklyn do século XXi. Quando entrevistei Longstreth, horas antes de seu show no Goiânia Noise 2009, comentei que, na minha opinião, o Dirty Projectors fazia um som mais “brasileiro” do que a maioria das bandas do festival. “Vou encarar isso como um elogio”, ele disse, se divertindo com a ideia. Quatro dias depois, no final de seu show apoteótico em São Paulo, ele diria: “É uma honra para nós ter encerrado nossa turnê tocando para vocês. Os brasileiros são capazes de qualquer coisa. Vocês são o povo mais musical do mundo”. Bitte Orca, sexto álbum do grupo (excluídos EPs e singles), fisgou pesospesados como David Byrne, Arto Lindsey e o já citado Caetano – que, para felicidade geral dos Projectors, compareceu ao show da banda no Rio de Janeiro. Em seu blog, Byrne disse: “A música deles tem elementos familiares, e mesmo assim muitas vezes soa como música pop feita por alguém que leu sobre a forma, mas nunca ouviu as músicas, e depois pegou os elementos básicos para compor. Mas isso não é verdade, porque Dave tem um conhecimento profundo sobre músicas e seus respectivos autores. Mesmo assim, o som da banda segue sendo completamente estranho e estranhamente familiar ao mesmo tempo”. Quem assistiu a algum show sabe que é como pagar por uma banda e ver umas 40 ao mesmo tempo. Muito disso é culpa de seu conjunto magnífico, formado por Amber Coffman (voz e guitarra), Angel Deradoorian (voz, teclados, guitarra e baixo), Brian Mcomber (bateria), Haley Dekle (voz) e Nat Baldwin (baixo). A dinâmica entre os seis gera resultados tão impressionantes – no disco e mais ainda ao vivo – que fica claro estarmos diante de um desses encontros que não acontecem com muita frequência. 32
Dave Longstreth falou com a +SOMA, na única entrevista que deu durante sua passagem pelo Brasil, depois de uma escapada para comprar vinis. Nacionais, é claro. “Cannibal Resource” tem uma letra bastante forte sobre os problemas que o mundo vive hoje – que basicamente se resumem ao uso predatório dos recursos humanos e naturais –, e sobre a postura de cada um de nós a respeito. Ao mesmo tempo em que é pessimista, tem uma certa dose de esperança. é possível ficar bem com o mundo no ponto em que chegamos? Não sei. Não sei dizer se os nossos dias estão definitivamente contados por conta do que fizemos com o clima. A consciência está aumentando, mas a responsabilidade não segue o mesmo ritmo. O planeta está irremediavelmente fodido? Não sei. O que é certo é que a forma como vivemos – ou melhor, como as Américas e a Europa vivem e o resto do mundo se inspira – não é sustentável, exige muito da Terra. Parece impossível pensar em melhorar a qualidade de vida na Terra com a população aumentando de forma tão acelerada como está agora. É mais lógico pensar em uma diminuição acelerada como fruto das nossas próprias ações. Houve um ponto em que você decidiu partir de uma visão mais idiossincrática, como em Rise Above [disco de 2007 em que a banda faz uma releitura do clássico álbum punk Damaged, do Black Flag], para tratar de assuntos mais abrangentes como esse? Até você ter colocado dessa forma eu não tinha pensado nisso, e talvez nunca pensasse em organizar as coisas sob essa lógica progressiva. Acho que a música tem a capacidade de falar sobre todos os tipos de coisas que encontramos pela frente na vida, e desde que comecei a compor é assim que eu penso. Mesmo Rise Above, que tem esse conceito mais idiossincrático, acho que trata de coisas tão amplas e universais como qualquer coisa no disco novo. Ainda falando sobre letras, “Stillness is The Move” é inspirada em um diálogo de Asas do Desejo, do Win Wenders, que fala sobre um anjo que se apaixona por uma mulher e quer se tornar humano. é um filme importante pra você? Eu não vi o filme, na verdade, porque não tive tempo. Mas queria ver e li a respeito, e parece o tipo de filme com o qual a Amber [Coffman, vocalista, para quem Longstreth compôs a música] se identificaria muito. Aí, como uma forma de assistir sem assistir, pedi a ela para lembrar as frases do filme que mais chamaram sua atenção e elas foram inseridas no esqueleto vocal, que já existia. um pouco parecido com o que você fez em Rise Above. isso, um pouco. O que na história se parece com a Amber, para você? Eu sei só o básico do roteiro: um anjo se apaixona por uma mulher e quer se tornar humano, com todas as imperfeições. É uma história bonita. É difícil verbalizar, mas a Amber é uma pessoa muito apaixonada. As primeiras frases vão do ponto mais grave do alcance vocal dela, e os vocalises no final atingem as notas mais agudas, então também é feito pra ela nesse sentido. E o clima r&b da música também é totalmente pensado nela. A Amber ouvia muito esse tipo de música quando era adolescente. Acho interessante a forma incomum como você encaixa os acentos das palavras nessa música. Às vezes é como se a criança do começo da letra estivesse cantando, tentando encaixar no ritmo coisas que ela acabou de inventar. Eu não ousaria cantar aqui agora, mas você sabe do que eu estou falando, não? (Risos) Sei, sim. Obrigado pelo comentário. Não sei explicar, é minha forma de compor. Tentar encaixar música e ideias verbais.
“o que me preocupA sobre consciênciA ecológicA nos euA é que elA tem um Aspecto fetichistA. As grAndes empresAs estão nA ondA de se definirem como ‘verdes’. é A pAlAvrA dA modA, e eu não sei Até que ponto os produtos [dessAs empresAs] são diferentes do que já temos disponível.” 33
Gosto de um verso em “Temecula Sunrise” em que você canta “i know the horizon is bright and motionless/ Like an EKG of a dying woman” (“Sei que o horizonte é brilhante e imóvel/ Como o eletrocardiograma de uma mulher que está morrendo”). é trágico, mas ao mesmo tempo tem uma ironia. Nos EUA, muita gente muda para o Sul quando fica velha e se aposenta, porque lá é quente. Como na Flórida, no Sudoeste ou no Sul da Califórnia. isso é uma coisa. E a outra é que a primeira vez que passamos de carro pela região de Temecula (cidade ao sul da Califórnia, próxima a San Diego), durante a primeira turnê de Rise Above, uma garota chamada Susanna [Waiche], que canta no disco com Amber e é de San Diego, ficou surpresa com o desenvolvimento, as casas novas. Ela dizia “nossa, lembro de vir aqui quando era criança, na primavera, com a minha avó, fazer piquenique na colina, entre os arbustos”. Acho que pensei na imagem da avó dela, velha, morrendo no deserto. você fala sobre morte aí e em “Cannibal Resource”. Acha que há uma ligação entre as duas nesse sentido, de começar a sentir de forma mais concreta a proximidade da morte? Talvez. “Temecula Sunrise” também é uma música sobre o fim do mundo, à sua maneira. Certamente sobre o fim dos EUA. Faz sentido estabelecer essa ligação. Os EUA estão perto do fim, isso é muito visível agora. O espírito está cansado – o espírito da nação, da democracia participativa. Não há muita inspiração hoje, as pessoas não percebem que têm o poder de mudar as coisas. um ano atrás, com Obama, estava um pouco diferente. O Obama é um cara incrivelmente carismático, e depois do Bush nós todos levantamos a cabeça e percebemos que precisávamos de alguma mudança nominal. Mas estou falando... Sinto que o tipo de mudança que produz um crescimento recíproco real é a soma das tarefas pequenas que as pessoas realizam em sua vida diária. Algo para poupar energia, usar menos água, menos papel, gerar menos lixo, esse tipo de coisa.
Muito pouca gente faz isso. Exato. Mas se você tiver 35 milhões de pessoas mudando seus hábitos cotidianos, para fazer algo... O que me preocupa sobre consciência ecológica nos EUA é que ela tem um aspecto fetichista. As grandes empresas estão na onda de se definirem como “verdes”. É a palavra da moda, e eu não sei até que ponto os produtos [dessas empresas] são diferentes do que já temos disponível. Por outro lado, a História é muito extensa. A janela de 23 anos de consciência que eu tive até agora (o músico tem 27 anos) é muito pequena para julgar o cenário inteiro. Na história do meu país, houve outras vezes em que a nação e a União estiveram fracas, e as pessoas choraram pelo fim dos EUA da mesma forma que fazem agora. Então, não sei. Realmente não sei. Mas acho que nós realmente precisamos mudar as coisas. você faz alguma coisa para ajudar, na sua vida diária? (Pensativo) Tento usar menos papel. Mas não estou envolvido em nenhuma forma de ativismo. E, claro, nós [gastamos muita energia] nos locomovendo o tempo todo de avião e van em turnê. É difícil conciliar ações com crenças.
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“é umA ótimA épocA pArA fAzer músicA, os discos não são mAis posicionAdos como produtos como Antes, não há prAticAmente mAis interesse em discos como produtos. por isso, estAmos provAvelmente mAis livres do que nuncA pArA criAr o que quisermos. “
O que você acha de pessoas como Thom Yorke e Bono, que criaram essa persona pública imensa, ativista e às vezes caricata? Sem levar em conta o que você pensa da música deles. Você diz a posição do rockstar como um tipo de autoridade social, uma persona em prol do ativismo? Especificamente em relação ao meio-ambiente? Em princípio, acho legal. [É legal] usar a plataforma que eles têm para atrair atenção a uma área tão importante. Acho ótimo, na verdade. Acho que o Bono tem feito um trabalho imenso na África, em relação à AiDS, ao perdão da dívida externa. É algo grande demais para ser realizado por um homem só. Por outro lado, não sei muito a respeito, talvez seja cheio de furos e eu não esteja ciente de tudo. O mesmo vale para Thom Yorke. Há uma linha nebulosa entre ser consciente, chato e hipócrita, de certa forma, porque ambos usam caminhões imensos – 50, 100 por show – e levam centenas de milhares de pessoas, que às vezes dirigem duas horas, até arenas gigantes. É difícil não se tornar uma força desse tamanho na Terra, com um impacto ambiental tão grande, quando sua música é tão conhecida. uma escritora brasileira, Hilda Hilst, diz em um de seus livros que “os gigantes devem ser mortos porque são gigantescos”. Há uma certa aura revolucionária por trás dessa frase, uma força, uma intensidade agressiva na forma como essa escritora colocou a coisa. Em geral, penso que gigantes tendem a tropeçar, cair e quebrar o pescoço por si próprios. Não é necessariamente preciso acabar com eles. Como na história do sonho de Nabucodonosor, na Bíblia, em que ele é uma estátua com pés de barro. Não conheço isso, em que parte da Bíblia é? No livro de Daniel, acho. A estátua é gigante, com cabeça de ouro etc., mas os pés são de barro. Aí uma pedra gigante cai do céu bem nos pés e derruba tudo. A interpretação bíblica tem a ver com o futuro do judaísmo, a chegada de Cristo e tal, mas independentemente disso é uma imagem interessante. Oh, eu não sabia disso. Parece legal, vou procurar me informar. Acho que isso costuma acontecer com muita frequência. A sua voz foi uma das mais influentes na música americana este ano. você se imagina crescendo a ponto de estar em uma posição parecida no futuro? Não sei. Foi um grande ano para nós, fizemos uma turnê muito extensa, o público nos nossos shows é muito maior do que antes. Mas eu ainda me sinto como se o nível de relacionamento fosse de pessoa para pessoa. É difícil imaginar qualquer banda ou artista hoje ocupando o espaço cultural que aquelas bandas tiveram no passado, porque tudo é bem menor. É uma ótima época para fazer música, os discos não são mais posicionados como produtos como antes, não há praticamente mais interesse em discos como produtos. Por isso, estamos provavelmente mais livres do que nunca para criar o que quisermos. Sem contar que dez, quinze anos atrás seria inimaginável uma banda como vocês tocando no Brasil. Com certeza. Todos nós na banda sabemos que temos muita sorte por estarmos onde estamos hoje, e por podermos tocar no Brasil. Somos muito gratos por isso. É a primeira vez de todo mundo, estamos todos muito empolgados. 3
2SAiBA MAiS dominorecordco.com/artists/dirty-projectors
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n達o 辿 assim que as coisas s達o: obscurantismo e raz達o na obra de Tatiana Blass POR TiAGO MESQUiTA .
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Cinema é feito de imagens recortadas e coladas. Por vezes, os cortes são tão suaves que passamos de uma cena a outra sem perceber que o foco saiu de um lugar e foi para o canto oposto, criando uma ilusão perfeita. Mas também existem cortes secos, bruscos. Mesmo que suponham uma continuidade da ação que se desenrola diante da câmera, notamos o intervalo entre uma cena e outra. Na segunda metade da década de 1960, Andy Warhol fazia os seus Screen Tests, com a câmera parada com um personagem posando diante dela. Um dos filmes mais bonitos dessa série é um em que ele retratou Dennis Hopper. O ator se mexe pouco, olha para a lente como quem espera o tempo passar. Em um dado momento, a imagem é interrompida por um desses cortes violentos. Menos de um segundo depois, a cena volta, quase sem nenhuma modificação. Mesmo assim, entre um negativo e outro, temos a impressão de que perdemos alguma coisa na escuridão. 1 4avião . acrílica sobre tela . 2009 . foto por tatiana blass
B
oa parte dos trabalhos de Tatiana Blass lida com essas interrupções, intervalos bem marcados que parecem ter rompido formas, objetos e ambientes que tinham alguma integridade. São pernas de cavalo em metal ou mármore distribuídas simetricamente que nos fazem notar a falta do corpo do animal que deveria estar sobre elas (como em Páreo, Patas e na Cabine da Monga); ou uma sala, como a de Zona Morta (2007), que passa a ter uma faixa branca entre a parte debaixo e a de cima. A lacuna nos traz a impressão de um espaço recriado, farsesco, que também parece ter perdido algo de sua realidade. isso porque Tatiana não se interessa pela realidade, ela fala é da ilusão. Do que parece ser subtraído do mundo quando transformamos as experiências em um código. Desde suas colagens de 2005, sempre achei que esses intervalos imitavam, em certa medida, um movimento que fazemos mentalmente ao converter o que vivemos ou o que os outros viveram em uma imagem, uma narrativa ou uma descrição científica. Era como se a artista mostrasse os lapsos e o que ignoramos ao passar uma série de acontecimentos descontínuos, simultâneos e insondáveis em relações coerentes, bem narradas, com começo, meio e fim, causa e consequência.
No ano passado, a editora espanhola Dardo, de Santiago de Compostela, publicou um pequeno volume com os melhores textos sobre a artista e imagens da sua obra. A partir do livro, tornou-se possível a quem não conhece Tatiana apreender algo de sua trajetória. Alguns trabalhos eu não via há algum tempo. Deparei-me com eles no livro e fiquei surpreso ao constatar retrospectivamente como algumas relações falseadas sempre interessaram a artista. Como as imitações do que parece “natural” podem se mostrar verdadeiras na sua obra. Por exemplo, desde as pinturas de 2003 e 2004, seu interesse é pelo que não é verdadeiro. Nos trabalhos daquela época, Tatiana figurava relações formais artificiais, com cores parecidas com corante de balas. Não por acaso, os trabalhos tinham nomes como Eno e Tobogã.
Uma consciência cada vez maior das qUesTões da imiTação inverossímil do mUndo fez com qUe a arTisTa se aprofUndasse na pesqUisa e TraBalhasse com as razões qUe nos fazem aTriBUir às figUras peso de realidade, verdade à ilUsão. Como se não fosse nada, era como se ela perguntasse: por que dizemos que tal bala ou tal sorvete é de abacaxi?
De certa forma, era como se ela, diante dos nossos olhos, fizesse e desfizesse os esquemas da ilusão. Sobretudo o das ilusões racionalistas, que nos fazem tomar a descrição de alguma coisa como verdade. No intervalo entre uma coisa e outra, as melhores explicações se eclipsavam, tornavam-se obscurantismo. Nesse sentido, a ilusão mais ilusória seria aquela que se pretende como verossímil. Aquela que explica as coisas como se insistisse em dizer: “é assim que as coisas são”.
Como, mesmo com a distância entre o gosto do doce e o gosto da fruta, conseguimos colocá-los dentro da mesma família? Porém isso não é mostrado como engano, mas como algo curioso, que faz com que os significados sejam mais maleáveis do que parecem. Por isso, ao tentar responder ao dilema, a artista não recorre a respostas científicas ou filosóficas, mas cria novas ilusões.
4c達o cego #2 . parafina preta . 2009 . foto por andrew Kemp
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4cão cego #1” . latão fundido e parafina . 2009 . foto por andrew Kemp
4teatro para cachorros . acrílica sobre tela . 2009 . foto por milene rinaldi
e
m uma pintura feita em 2007, chamada Xadrez Prata, ela pinta formas que parecem ser positivo e negativo umas das outras sobre uma estampa regular de um xadrez pequenino. Poderíamos supor que a artista descamou uma cor e encontrou imagens soltas, que no fundo são lâminas da mesma cor, mas também podemos imaginar que são peças desencaixadas, soltas, que só sugerem a relação de continuidade entre uma e outra parte por estarem próximas.
Boa parTe de sUas pinTUras, aliás, se comporTa como colagens. a arTisTa é Uma virTUose na Técnica. emBora nos seUs primeiros e úlTimos TraBalhos a pincelada e a escolha da cor sejam fUndamenTais, exisTe a ideia de reTirar Uma forma oU figUra de Um lUgar e colar em oUTro e fazer com qUe ganhem senTido diferenTe. Ela já fez isso com cavalos, com um faisão empalhado e agora faz com silhuetas de cachorro e de humanos que, dispostos como estão, parecem contemplar uma cena, como se estivessem ao redor de um palco. Na última exposição que fez, em 2009, no Museu de Arte Moderna da Bahia, Tatiana Blass mostrou cachorros figurados por todos os lados: nas pinturas, nos desenhos, nos volumes e nos textos. Porque a artista, tal como Nuno Ramos e Bruce Nauman, também lida com a palavra como elemento visual. No caso de Tatiana, não se trata da dedicação ao ofício das letras, mas do uso do texto como elemento expositivo. Nesses textos, descobrimos, aliás, que os bichos, como o cachorro de Goya, são cegos. Circulam por lá confiando em outros sentidos. Tatiana é precisa: “são cães cegos que não se pode adestrar para se tornarem cães guia. São como atores da vida comum, que vagam pela cena, sem um comportamento predestinado”. Nas telas, eles estão sobre um palco de teatro, algumas vezes com plateia. Parece-me que tal tema tem relação direta com o interesse da artista na ilusão. Se antes, como nas colagens da série Páreo, ou na Cabine da monga, partes de um corpo de cavalo nos sugeria a imagem
integral do bicho, aqui se trata da conversão daquelas silhuetas em uma mancha, que faz com que os cachorros se tornem mais indefinidos do que as patas de cavalo dispostas regularmente nas escadarias de um museu. Quando vi as duas esculturas que a artista mostrou na exposição, as imagens dos cães me pareceram mais violentas, selvagens e corrosivas. São esculturas hiper-realistas em cera e metal. Ambas as peças se parecem muito com o animal, são cópias perfeitas. imitam os pelos, as marcas das costelas e os detalhes da pele do cachorro. O bicho dorme, mas deve estar morto. São dois, um preto, outro dourado e branco. O preto é todo de cera, sua cabeça se derrete, enquanto ele, impassível, espera todo o seu corpo tornar-se mancha pelo chão. É muito aflitivo. Já o outro cão tem mais cara de escultura. Feito sobre uma base de latão, recebe um volume de parafina branca no seu interior. O metal fundido constitui a cabeça, o pescoço, a parte de trás, o rabo e a ponta das patas do cão. A parafina faz o resto. No decorrer da exposição, a peça se deforma. A parafina também se tornou uma mancha disforme. Sobraram os restos de metal. Assim, a representação das partes não é mais só incompleta, como tendia a ser nos outros trabalhos, mas mórbida. Não se trata mais de fissura, mas de decomposição e mutilação. Tatiana Blass figura a morte. Porém não é o cachorro cego que morre, mas a imagem que tenta eternizá-lo. Em um dos seus textos a artista anota: já não consigo esconder meu desespero. a cada minuto que passa sou engolido pelo chão! de que serve este inútil amigo que por mim nada pode fazer a não ser observar com seus olhos mórbidos meu desaparecimento. late cão! late! Ele não late, desaparece, deixa uma mancha informe como lembrança. Algo que não dá nem para nomear. Talvez como nossa ilusão de compreender o mundo diante da tragédia, do inevitável. Não sobra muito mais do que resíduos quando o fato se põe diante de nós. Embora Tatiana mostre cães cegos, quem fica no escuro ao lado deles somos nós.
2SAiBA MAiS www.tatianablass.com.br 40
4cachorros molhados . acrílica sobre tela . 2009 . foto por milene rinaldi 4Zona morta . instalação com móveis e objetos seccionados . 2007 . foto por everton ballardin
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“Eu não compararia com essa geração, não sei... Cada artista tem um traço diferente, mas o que admiro no desenho dele é como ele cria, é bem fluido e criativo. Gosto das situações e de como usa as linhas. E ele é um desenhista de verdade. Eu, ao contrário dele, não me considero um desenhista, não sei desenhar como ele e admiro isso. Ele é mais solto do que eu, sou mais acadêmico.” A afirmação do jovem artista Pjota faz todo sentido em relação ao igualmente jovem curitibano RiMON GUiMARãES, ou simplesmente RiM, cujo trabalho de linhas sinuosas apresenta figuras dissolvidas em meio ao entrelaçamento de formas obtusas, linhas irregulares e padronagens mil. O preto no branco predomina, mas é a cor que o diferencia, o que imprime o traço de personalidade do autor, que a usa com certa parcimônia. “Sempre desenhei e sempre busquei me aprimorar nisso. Só de estar 99% do dia ativando essa prática, mesmo que seja desenhando em meu cérebro, já é um bom exercício”, explica o artista sulino de apenas 21 anos, assinando embaixo a máxima de Thomas Edison: “a genialidade é fruto de 1% de inspiração e 99% de transpiração”. 1
livre e inquieto
por arthur dantas retrato por jaime vasconcelos
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Sou um pouco índio, africano, italiano, português – não consigo especificar ao certo. Curitiba, acima de tudo, é uma cidade brasileira, mas com muitos gringos im é tranquilo – nas poucas vezes que que fugiram de o vi parecia observar algo que não nos guerras e situações era possível ver. “Aqui tá tranquilo”, escreveu, quando me desculpei pelo avançar das desconfortáveis em horas madrugada adentro. A indeterminação de seu país de origem. seus desenhos é transposta em seu discurso. “As organizações naturais, que vão além do físico, Racismo tem sido a pura intenção de uma semente crescendo, essa imaterialidade do impulso que nos mantém um problema tão infinitos” foi sua resposta ao perguntar o que era bobo no mundo necessário para um trabalho lhe inspirar. No caso de um artista autodidata tão jovem, inteiro... Ainda mais é natural e importante que o imponderável aja no Brasil. sobre seu discurso e prática. Como você gostaria de ser lembrado pelos que te conhecerem no futuro? Gostaria de ser lembrado pelos meus atos, e não só por palavras. Atos de liberdade e inquietação.
Acompanhar isso te influenciou de alguma maneira? Sim, tem essa coisa de fazer com as próprias mãos, não pegar as coisas prontas, entender todo o processo industrial.
Seu trabalho expressa isso em algum sentido? Sim, em todo o processo.
você falou sobre pesquisa contínua. Tem algo que te interesse em particular? Alguma questão ou temática? Estou fazendo muitas experiências com sons, composições atmosféricas. Também sempre gostei de fazer vestimentas – desenho minhas próprias roupas e às vezes lanço algo em pequena escala pra ser vendido.
Como é sua rotina de trabalho? Disciplinada ou caótica? O seu estúdio é daqueles que parecem um hospital ou quarto de moradia estudantil? Minha rotina é bem volúvel, nunca é igual – até fujo disso. A disciplina que tenho é natural, sempre estou desenhando algo ou observando de maneira investigativa as coisas. Meu ateliê mais parece uma instalação em processo contínuo. Sendo autodidata, como tomou conhecimento de todo esse mundo das artes, ateliê, galerias etc? Sempre transitei nesses espaços, busco o que me instiga no momento. Tenho uma pesquisa permanente. Alguém de sua família é envolvido com artes? Minha mãe sempre foi criativa, fazia minhas roupas quando era menor. Na costura ela não tem limites (risos). 44
Seu foco no momento é mais em música do que em artes plásticas? Não, o lance é muito mesclado: sempre se cria uma relação. É algo de percepção, com várias vias novas e distintas. vi uma foto sua tocando trompete. que instrumentos você toca? Flauta barroca de bambu com palheta de sax e piano. Com o trompete ando meio parado – às vezes arrisco um violão. Mas os instrumentos vocais são os meus prediletos. quais seus interesses em música? Experimentar, descobrir, compor, ampliar, desmistificar, gravar, remixar etc.
Se eu olhasse no seu mp3 player ou iPod, o que encontraria? Música espanhola e latina, Axel krieger, Juana Molina, afrobeat, novos compositores brasileiros, Moacir Santos, Bonobo, Tosca Tango Orchestra, tudo do Evard. Muita coisa de vários estilos. A produção de pôsteres e flyers é algo presente na vida de vários artistas. Como você se interessou por esses meios? quais os critérios que usa para ilustrar esse tipo de material? Geralmente ilustro flyers e pôsteres de festas que eu ou algum amigo meu promove. O critério é liberdade e calma. O fato de ser negro influencia de alguma forma seu trabalho? Para você, isso é um assunto a ser discutido em uma pintura? Na realidade, sou uma grande mistura, como a grande maioria no Brasil.
4TABULEiRO ROM達, 2008
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Creio que espaços expositivos têm que ser livres pra manifestações totalmente novas e desconcertantes – é bom que tenha uma mutação no espaço de acordo com o que o trabalho vem discutir, e que essa discussão seja pertinente à quebra de formalidades >
qual é a mistura, no caso? Curitiba é conhecida pela migração europeia e tem fama de ser uma cidade bem racista. Sou um pouco índio, africano, italiano, português – não consigo especificar ao certo. Curitiba, acima de tudo, é uma cidade brasileira, mas com muitos gringos que fugiram de guerras e situações desconfortáveis em seu país de origem. Racismo tem sido um problema tão bobo no mundo inteiro... Ainda mais no Brasil, onde tem essa mescla maravilhosa. você participa do interlux, um coletivo formado por pessoas das mais variadas áreas que criam arte interativa. qual o propósito de vocês? Essa formalidade dos museus e galerias, sobretudo daquelas em que há uma separação rígida entre obras e espectadores, te incomoda de alguma forma? O interlux, além de interagir, é vivencial. Creio que espaços expositivos têm que ser livres pra manifestações totalmente novas e desconcertantes – é bom que tenha uma mutação no espaço de acordo com o que o trabalho vem discutir, e que essa discussão seja pertinente à quebra de formalidades tradicionais e provincianas. Às vezes, o que me incomoda é a posição do artista de abaixar a cabeça diante dessa imposições. Conta como você se juntou aos outros três sócios do estúdio de criação Banzai. Onde se conheceram? Como é o mercado em Curitiba? Conheci o Luan na escola, morávamos perto, e o Thales e o Fernando através dele. O mercado é morno e raramente busca algo novo. Trabalhamos com a OUS, marca curitibana de tênis, MTV, Nike etc. é comum que artistas façam trabalhos direcionados à publicidade, com finalidade comercial imediata. você fez um trabalho para 46
meticulosamente a disposição dos elementos na tela (na rua sempre é mais livre, penso eu), seu traço é muito solto. é como se não respeitasse nunca a ideia do esboço, tem uma indeterminação no ato em si. Sim, meus desenhos falam coisas que eu não sabia, muitas descobertas e novos ângulos. Lembro da parede que você pintou com a Nina Moraes em Porto Alegre: pintava, preenchia uma parte do rascunho, começava uma nova linha e parava, observava, depois continuava. é como se tivesse uma ideia inicial, mas que se transformava na ação, por isso suas formas parecem mais livres, menos arquitetadas. Tem muito o lance de auto-observação nas composições visuais e também nas reflexões filosóficas e espirituais, e ambas acabam se ligando. isso é muito rico e fértil, acabam surgindo consciências aleatórias e ao mesmo tempo providenciais.
4FêMEA GUiLHOTiNA OU MANHã GÉLiDA COM CABEçA NA MãO, 2009
a Nike, por exemplo. Existe diferenciação entre trabalho para publicidade e para galerias etc? Claro! As questões são outras, mas é só saber como se trabalha. Na publicidade há muitas limitações de clientes, às vezes. A galeria, em tese, seria um espaço de arte mais livre para mostrar o trabalho pessoal.
> tradicionais e provincianas. Às vezes, o que me incomoda é a posição do artista de abaixar a cabeça diante dessa imposições.
Tem gente hoje que acha que vai pintar um ou dois muros e já vai expor em galeria. Como foi para você alcançar certa notoriedade, ir para exposições, galerias? isso te assusta? O que se alterou na sua visão de mundo e na sua rotina com tudo isso? Foi natural – com 17 anos já estava expondo. Antes disso já pintava. Claro que o raciocínio e a visão de mundo se altera naturalmente quando se decide viver disso. Na real, é um lance de adaptação, depende das coisas que vão se apresentando na sua frente. Acho que essa mudança é sempre pro bem, sempre pra cima. Seu trabalho encontra certo parentesco com alguns nomes de destaque na cena de arte urbana nacional. Mas, ao contrário da maioria, que parece planejar
Rimon começou como todo garoto: desenhando distraído na sala de aula, observando revistas em quadrinhos e o grafitti nas ruas, e muito rapidamente passou a espalhar seus trabalhos em desenhos colados na rua. Poucos fizeram tão rapidamente a transição para galerias e museus, em exposições como a individual Madrugada, na Galeria Polinésia (SP) e a Volúvel – em parceria com o artista Pjota, no Museu de Arte Contemporânea do Paraná e na Transfer, no Santander Cultural, em Porto Alegre.
Os poucos tons e mesmo a disposição e formas de elementos da natureza de um artista botânico como Ernest Haeckel encontram reflexos em seu trabalho. Mas é a chamada arte primitiva que move seus desenhos. A liberdade e inquietude da juventude sintetizam uma poética em que a aparente simplicidade, ingenuidade e inobservância dos padrões eruditos esconde um trabalho que ganhou um refinamento absurdo em pouquíssimo tempo. Tudo diluído num frenesi de linhas tortas. 3
2SAiBA MAiS: banzaistudio.com.br flickr.com/photos/rimon 47
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é no ínfimo que vejo a exuberância ensaio fotográfico por formiga
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É com a epígrafe de Manoel de Barros que o ensaio (em constante construção) do fotógrafo paulista Formiga se apresenta. Um olhar curioso e incansável, que enxerga a beleza em locais onde a maioria das pessoas prefere simplesmente desviar o olhar. Paredes corroídas que não resistiram à ação do tempo, metais enferrujados e outros materiais em processos de degradação reverenciam a obra de artistas como Miró, Munch, Picasso e Turner. Um projeto que vem amadurecendo a cada dia em dois anos de produção e que já conta com mais de 1000 imagens captadas com uma singela câmera digital portátil de 6.2 megapixels. Um registro intenso de cores e texturas que aguçam (e às vezes confundem) nosso olhar e nos levam a crer que beleza, na fotografia, é ponto de vista. por fernanda masini
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4SAiBA MAiS flickr.com/photos/-formigaVeja a exposição no mezzanino do Espaço +Soma até 23 de Janeiro de 2010.
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por lauro mesquita . imagens divulgação
Existe um cinema novíssimo sendo feito no Brasil. Uma produção que acontece fora do eixo Rio-São Paulo e é coletiva. Os grupos realizam filmes, organizam mostras, promovem debates e publicam suas reflexões sobre o audiovisual. Ao contrário das produtoras independentes da tal “retomada do cinema brasileiro dos anos 1990”, a ideia não é criar para o mercado televisivo de sempre e nem levar a estética das propagandas e dos filmões hollywoodianos para as telas refrigeradas brasileiras. 1
cinema em grupo A +SOMA conversou com pessoas de três desses coletivos: Alumbramento, de Fortaleza, Filmes de quintal e Teia, ambos de BH. Em todos eles, o entusiasmo com a nova produção audiovisual brasileira é grande. O trabalho em conjunto – apesar de todas as dificuldades administrativas e de organização – é encarado como a melhor possibilidade de produzir um cinema independente mais barato e menos atrelado aos sabores do mercado. “Os grupos garantem as condições de produzir trabalhos autorais com independência. A vantagem é que a gente consegue fazer muitas coisas sem tanto dinheiro”, explica Junia Torres, antropóloga, documentarista e uma das integrantes da Filmes de Quintal.
A organização em coletivos, como explica Clarissa Campolina, diretora e montadora da Teia, também oferece a possibilidade de trabalhar fora de um esquema cruel, que acaba arrastando os profissionais do cinema para a publicidade e outros trabalhos comerciais. Para o diretor cearense ivo Lopes Araújo, do Alumbramento, além da questão dos custos, “Esse nosso trabalho em grupo aca56
ba potencializando o que a gente tem de melhor”. ivo, que também trabalha como diretor de fotografia, explica: “Quando é um filme no esquema mais tradicional, cada pessoa cumpre seu papel e a equipe técnica acaba não tomando muito parte do processo criativo dos filmes. É tudo muito especializado, bem no esquema de indústria. Quando a gente faz em conjunto não há como escapar. Todo mundo cria, interfere, mesmo que respeitando a vontade do diretor”.
Todos os três coletivos já têm um currículo com muitos filmes. Para se ter uma ideia, no Alumbramento, só os irmãos Ricardo e Luiz Pretti – conhecidos pelo furor criativo – já produziram mais de quatro filmes este ano. Um deles, o longa Rumo, foi totalmente captado com imagens de celular. Os filmes em geral são feitos com verbas dos editais que se multiplicam pelos estados e municípios ou com a cara e a coragem. É por isso que quase sempre as equipes são pequenas e as ideias na cabeça, bem grandes.
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As produções não estão no circuito comercial: são exibidas nos mais de 150 festivais de cinema no Brasil, em mostras, universidades, cineclubes e outros espaços que raramente contam com bilheterias ou lanterninhas. “O Alexandre Veras (diretor cearense que é uma espécie de mentor do Alumbramento) faz um cálculo do número de salas de aula em que ele exibiu o filme dele, Vilas Volantes, e de acordo com os números o público do filme já é bem maior do que o de muitos festivais e filmes em circuito comercial. Porque o que mais tem é sala de cinema vazia”, diz Fred Benevides, montador e um dos diretores do Alumbramento. E é nesse circuito que os filmes começam a fazer barulho. Radical e sem nenhuma concessão, o longa Sábado à Noite, de ivo Lopes Araújo, foi o vencedor do prêmio do júri jovem do último festival de cinema de Tiradentes. Aboio, primeiro longa-metragem de Marília Rocha, da Teia, recebeu o prêmio de melhor filme brasileiro no É Tudo Verdade em 2005. Já Trecho, de Clarissa Campolina e Helvécio Martins Jr., também da Teia, recebeu os prêmios de curta-metragem, fotografia e montagem no festival de Brasília no ano seguinte. Outros trabalhos seguem recebendo prêmios e sendo discutidos em vários eventos no Brasil. Eles se reproduzem pela internet e em DVDs copiados nas faculdades e entre os jovens cinéfilos. Mas, para além disso, esses coletivos têm construído uma nova dinâmica de produção, em que os filmes e o pensamento sobre cinema andam de mãos dadas, sem formalismo e de maneira absolutamente natural.
Filmes de Quintal A Filmes de Quintal tem um papel importante nisso. O grupo vai além dos filmes e nasceu para explorar o diálogo constante entre cinema e antropologia. O Forumdoc.bh é a produção mais vistosa deles. Organizado desde 1997, o evento, que carrega o subtítulo de Festival do Filme Documentário e Etnográfico, é reconhecidamente um dos espaços mais ricos de discussão sobre antropologia, documentário e cinema com proposta estética mais inovadora. “Criamos o Forumdoc pra assistir aos filmes que a gente não via. Até hoje é um pouco assim”, diz Junia. Doze anos depois, o festival extrapola Belo Horizonte e vai a várias cidades do interior de Minas e grandes centros como São Paulo e Barcelona. Na capital mineira, arrasta multidões. A programação conta com um público majoritariamente jovem. As mostras não se fecham no documentário etnográfico. “Tem muita ficção e filmes experimentais que carregam reflexões parecidas com a do documentário”, diz Junia.
Em Minas Gerais e no Ceará, a preocupação com filmes mais livres, em que o processo de realização é tão importante quanto o produto final, é cada vez mais forte em termos de produção e de público. Muito diferentes entre si, os três grupos parecem ter pontos comuns muito fortes: o primeiro deles é a vontade de pensar através dos filmes que fazem ou assistem. Os filmes ainda propõem uma relação mais direta entre a tela e a vida das pessoas.
4público durante exibição no forumdoc.bh 57
4sábado à noite, de ivo lopes araújo
A Filmes de Quintal ainda produz e publica livros, e o catálogo do festival se tornou uma referência bibliográfica sobre cinema e humanidades. Um exemplo disso é a caixa Imagem-Corpo-Verdade: Trânsito de Saberes Maxakali, que traz livros e DVDs com mais de seis horas de imagens de cantos gravados durante cerimônias rituais. “É a primeira vez que se publica no Brasil um repertório inteiro de ritual indígena, sem cortes”, destaca Rafael Barros, também da Filmes de Quintal. Nessa variedade de trabalhos, cada membro do coletivo contribui como pode. A união desse monte de gente que pensa as coisas sob um ponto de vista específico faz toda a diferença, que se reflete no ver e no fazer. “A coisa da interdisciplinaridade é fundamental na Filmes de Quintal”, diz Paulo Maia, antropólogo e um dos fundadores do grupo mineiro. “Tem antropólogo, escritor, artista plástico, diretor de filmes, todos com interesses muito diferentes no cinema, e isso é uma das nossas riquezas.” A Filmes também já promoveu oficinas com os jovens das aldeias Maxacali, do Vale do Mucuri, em Minas Gerais, e com os Caxixó, da região metropolitana de BH. Alguns dos resultados são os documentários Caçando Capivara, Acordar do Dia e o longa Tatakox Vila Nova, realizados pelos Maxacali, e Casca do chão, realizados pelos Caxixó. Re58
4imagem do filme Roda, de carla maia
“no Brasil, existe muito Festival de cinema, mas pouco espaço pro deBate da produção audiovisual.", clarissa campolina
forçando essa vocação, a Filmes elaborou um projeto para se tornar um ponto de cultura e inaugurou um cineclube, que exibirá semanalmente parte do enorme acervo de filmes que já passou pelo Forumdoc. Apesar de muito heterogêneas, as obras produzidas pelo grupo têm um interesse grande pelo que Junia define como filme etnográfico: “são filmes que partilham uma relação de aproximação entre quem filma e quem é filmado”. isso pode ser visto em Pelos Olhos de Mariquinha, de Cláudia Mesquita e Junia Torres, Agosto de Minha Gente, de Ruben Caixeta, Roda, de Carla Maia, Memórias de Um Tipógrafo Partideiro, de Pedro Portella, e em muitos outros títulos produzidos pelo núcleo. A Filmes de Quintal também produz filmes com outros diretores mineiros, como Tiago Mata Machado e Affonso Uchoa. “Ao longo do tempo, muita gente do cinema daqui participou do Fórum com assiduidade. Gente como o Cao Guimarães, a Marília Rocha, o Leandro HBL não são do coletivo, mas têm muitos interesses em comum com a gente”, explica Paulo Maia.
teia Vários dos filmes produzidos pela Teia foram exibidos no Forumdoc, e muitos dos seus realizadores estão entre a plateia cativa do Festival. A já citada Marília Rocha foi até curadora de uma das mostras do festival em 2007. O coletivo surgiu quando os seis jovens realizadores resolveram dividir as salas de uma antiga e espaçosa casa na Zona Oeste de Belo Horizonte. Todos eles eram envolvidos com linguagens audiovisuais, mas cada um tinha uma perspectiva diferente. “Quando nos juntamos na casa, muita gente achava que não podia dar certo. Afinal, somos todos realizadores e cada um tem o seu projeto. O curioso foi que a coisa funcionou justamente por causa dessas diferenças”, diz Leonardo Barcelos, diretor de vídeos experimentais, VJ e integrante da Teia. De acordo com Clarissa e Leonardo, as produções não são necessariamente desenvolvidas em conjunto, mas, com a proximidade dentro da casa, é inevitável que a opinião dos outros interfira no resultado final. O grupo ainda é bastante ativo na cena dos jovens realizadores e neste ano organizou um grande evento justamente para discutir o cinema brasileiro mais autoral. A mostra Tecer teve curadoria de Sérgio Borges e Clarissa Campolina, da Teia, e do professor André Brasil, da PUC-MG. “No Brasil, existe muito festival de cinema, mas pouco espaço pro debate da produção audiovisual. O projeto a princípio foi uma maneira de criar uma discussão acerca dessa nova produção”, explica Clarissa. 59
4cinco dos seis integrantes do coletivo teia, de bh
No encerramento do Tecer, o documentarista João Moreira Salles desistiu de falar sobre sua filmografia e preferiu perguntar à plateia: “por que Minas Gerais tem uma filmografia tão singular e diferente do resto do Brasil?” O silêncio da plateia e da mesa durou longos segundos e mostrou que a resposta não era fácil. Sem dúvida, o estado parece ser um dos poucos lugares onde cineastas e pensadores como Jean Louis Commolli, Pedro Costa e documentaristas como Jean Rouch parecem ter mais público e adesão do que em qualquer outro lugar no país. “BH não tem uma indústria de produção. Esse é um fator que propicia um ambiente adequado para produções menores, um ‘cinema de cozinha’”, diz Clarissa, citando a expressão de Cao Guimarães. A diretora ainda aponta a proximidade dos realizadores com a universidade e a tradição de eventos de cinema na capital mineira como fatores decisivos para esse debate profundo sobre o audiovisual.
alumBramento Talvez tenha sido esse mesmo tipo de ambiente que estimulou a criação do Alumbramento, em Fortaleza. Em nenhum dos grupos a expressão comunidade pode ser mais bem aplicada. Até dois anos atrás, quase todos os seus treze integrantes dividiam o mesmo espaço no Sítio Sabiá, em Sabiaguaba, 30 km a leste de Fortaleza. Os primeiros filmes feitos pelo grupo – antes mesmo que ele existisse formalmente – como Sábado à Noite, de ivo Lopes Araújo, surgiram nas reuniões nesse lugar. Essa convivência intensiva também se repetiu no longa Praia do Futuro, em que quinze curtametragens são exibidos em sequência e sem divisão entre um e outro. Os integrantes do Alumbramento se conheceram no Espaço Cultural Alpendre, um centro de referência em dança, cinema e artes visuais na capital cearense. O espaço é capitaneado ainda hoje pelo professor e diretor Alexandre Veras. Essa convivência em parte se aprofundou nos cursos da Escola do Audiovisual da Vila das Artes, de Fortaleza, e depois na produção de Vilas Volantes, do próprio Veras. “Esse longa era do Alpendre, não tinha nada formalizado, mas foi quando começamos a trabalhar todos juntos”, conta Fred Benevides. O grupo tinha crescido no Alpendre com influência decisiva da volta de ivo Lopes Araújo ao Ceará e a chegada dos gêmeos cariocas Ricardo e Luiz Pretti que, segundo o jornalista carioca Marcelo ikeda, do blog Cinecasulofilia, “desistiram da politicagem mauricinha do cinema carioca e desembocaram em Sabiaguaba, 60
4tRecho, de clarissa campolina e helvécio marins jr.
“esse nosso traBalho em grupo acaBa potencializando o Que a gente tem de melhor”, ivo lopes araújo
4aboio, de marília rocha bairro interiorano de Fortaleza”. A produção segue em velocidade total e hoje envolve mais de trinta pessoas. “Eu já nem sei quem é e quem não é do Alumbramento. A coisa funciona coletivamente mesmo, e isso é muito bom”, diz ivo. Além da produção coletiva, outra tônica do Alumbramento é a intervenção na cidade de Fortaleza e no estado do Ceará. Os filmes falam bastante da localidade dos cineastas, em todos os projetos já citados e em outros como As Corujas, Road Movie ou Longa Vida ao Cinema Cearense. A dinâmica, no entanto, funciona de maneira mais radical em projetos como Livro Livre e Supermemórias. No primeiro, o grupo espalhou cem exemplares de um livro de cem páginas em branco e acompanhou sua trajetória em filme. Dessas cópias, só uma voltou para a exposição, onde todos os registros eram exibidos simultaneamente. Toda semana, o grupo ainda promove um cineclube na escola da Vila das Artes, convidando um realizador independente para exibir e discutir seu filme. “Os debates têm duas horas e meia e continuam depois nos bares e na casa do pessoal”, diz Fred. Essa relação se ampliou na última edição do Festival UFC de Cultura, que contou com representantes de coletivos como Símio e Trincheira, de Recife, Teia, de Belo Horizonte, e outros do Rio, de São Paulo, da Paraíba e do Piauí. “Foi bem bacana o encontro. Parecia que faltava ligar uns pontos pra gente integrar essa produção nacionalmente”, conta Fred Benevides. O grupo ainda pensa em um projeto de residência artística colaborativo que rode Ceará, Paraíba, Pernambuco e Minas. “A ideia é tentar criar uma rede em que as pessoas exibam seus filmes nesses estados e interfiram diretamente no processo artístico local”, explica o diretor, músico e técnico de som Danilo Carvalho. Essa articulação pode ser o pulo do gato para esse cinema, que já influencia realizadores e chega ao público mais especializado via mostras e festivais. “O público tem interesse nisso, só precisa chegar. O pessoal cansou do Homem-Aranha”, diz Fred Benevides. 3
2SAiBA MAiS ALUMBRAMENTO . revistaetcetera.com.br/24/sessao_cinema/index.php FiLMES DE QUiNTAL . filmesdequintal.org.br TEiA . teia.art.br 61
Quer publicar seu trabalho na revista e expor no nosso espaço? Mande um email para entreoutros@ maissoma.com com amostras da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!
ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A +SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO QUE MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO QUE CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.
JAiME BREGANTiN
4FLICKR.COM/PHOTOS/BREGANTIN
HERMANN
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4FLICKR.COM/PHOTOS/EASy_GOING
BRuNA CANEPA
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4FLICKR.COM/PHOTOS/BRUNACANEPA
MATEuS BAiLON
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4FLICKR.COM/PHOTOS/MATEUSBAILON
MATEu vELASCO
4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/MATEU 67
rZO
por nathalia birKholZ . fotos por amanda louZada
parte 2 O retOrnO
“Está na hora de voltar”, afirmou kL Jay, DJ dos Racionais MCs, se referindo ao RZO em entrevista publicada na + Soma 6, em fevereiro de 2008. Pouco tempo depois, a Rapaziada da Zona Oeste estava nos palcos. Na época da dissolução do grupo, em 2004, muita fofoca rolou, mas a verdade é que Helião, Sandrão e DJ Cia sempre estiveram lado a lado, mesmo quando decidiram investir em projetos solo. “O povo fala coisas sem nem saber o que acontece. Diziam que a gente não se falava mais. Eu fiz a música ‘Respeito Oriental’, que apresentei com o CiA e a cantora japonesa Miss Mayume no VMB de 2007, mas quem fez o refrão? O Hélio!”, conta Sandrão. 1
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A pressão para o retorno das atividades do grupo vinha forte dos amigos e fãs. Afinal de contas, o RZO é um grande ícone do rap nacional, um dos pouquíssimos nomes que transcenderam a barreira do underground e foram parar no mercado de massa. “Temos uma boa relação com a imprensa e hoje podemos dizer que estamos nas revistas, na TV. Mas infelizmente o rap ainda não tem vez na grande mídia”, lamenta Sandrão. Em 2000, o grupo – que já se posicionava como um dos mais conhecidos no cenário hip-hop e colecionava hits de seu primeiro disco, Todos São Manos (1998) – ganhou os holofotes do mainstream ao gravar a faixa “A Banca (Ratatá é Bicho Solto)”, no terceiro disco do Charlie Brown Jr., Nadando Com os Tubarões – bem na época em que a banda de Chorão estava em todas as rádios e na boca do povo. Negra Li, que na época fazia parte do RZO, também gravou com o quinteto de Santos a faixa “Não é Sério”, uma das mais tocadas do disco. Pronto, o RZO tinha ganhado a “playboyzada”, como dizem eles.
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O balanço e a ironia dos caras passeia por um amplo leque de temas: da dura rotina na periferia à tiração de onda nas festas, sempre com uma perspectiva de orgulho favelado, de boemia e loucuras, mas levantando a bandeira do respeito ao próximo e sem papas na língua para defender o uso da maconha. O último disco, Evolução é uma Coisa (2001) – produzido no melhor estilo faça-você-mesmo, em cima da laje da casa do Helião com um Pentium 4, groovebox e teclado insonic –, foi um dos mais vendidos no subsolo da Galeria 24 de Maio e trouxe uma enxurrada de hits como “A Blazer”, “Quem não é Cabelo Voa” e “Titititi”, com participação de Sabotage, grande amigo do grupo, assassinado em 2003. Afinal, foi o RZO quem projetou o rapper na cena. Sandrão relembra a história: “Ele me deu uma fita com um pedaço da música ‘Rap é Compromiso’. Ouvi no walkman no meio de uma festa e disse que um dia ia buscar ele pra fazer um negócio com o RZO. Ele não acreditou. Depois de um ano eu fui com o Rappin’ Hood pra Zona Sul achar o cara sem nem saber onde ele morava, perguntando aqui e ali. Trouxemos ele pra Pirituba, fizemos a música na hora e ‘Rap é Compromiso’ estourou na sequência. Fomos de bike até o Capão Redondo, na casa do [Mano] Brown e levamos o som pra ele, que também decidiu dar uma força. Depois de uns dias fomos para o estúdio com o Ganjaman, o Zegon, Tejo, Quincas [do instituto], e em 2001 o disco (homônimo) estava aí”.
“Demos a viDa numa paraDa e agora estamos colhenDo frutos. e a gente quer se cuiDar: ir pra acaDemia, vestir roupas legais. a molecaDa curte o nosso som e os pais Deles estão olhanDo. se esses pais veem que nós estamos bem, vão falar que o rap faz bem.”
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O RZO leva muito a sério um dos conceitos mais banalizados do hip-hop: coletividade. E foi há um ano e meio que Helião, Sandrão e o DJ Cia voltaram, juntos, a figurar nos flyers de rap. Entre um trago e outro, os três falaram da segunda parte da caminhada. As faixas “Você Já Sabe” e “Louco” já estão nas pistas e no MySpace do grupo. Um disco novo está a caminho, mas ainda sem previsão para lançamento. Mas, para sentir um gostinho do que vem por aí, logo os fãs verão o clipe de “Louco”, que está sendo produzido pela Olldog Filmes e deve estrear na TV até o final do ano. Segundo Helião, trata-se de uma grande produção, na qual os realizadores estão investindo pesado. Outros dois clipes estão em negociação e, paralelamente, Sandrão trabalha a banda na web. Outro tema que deve permear o disco novo é a questão ecológica: temas como água e sustentabilidade estão em pauta. No menu de assuntos novos figuram também reflexões sobre o sucesso. Nada de ostentação pimp (que passa longe do perfil do trio), mas falar das conquistas profissionais e materiais também é válido. “Estamos ganhando um dinheirinho, o Cia e o Sandrão compraram seus carros, eu estou prestes a ter o meu também e a gente quer comentar isso”, afirma Helião, o principal letrista do RZO. “Demos a vida numa parada e agora estamos colhendo frutos. E a gente quer se cuidar: ir pra academia, vestir roupas legais. A molecada curte o nosso som e os pais deles estão olhando. Se esses pais veem que nós estamos bem, vão falar que o rap faz bem”, completa o rapper, ostentando o símbolo do Santos F.C. da cabeça aos pés. Helião está com 40 anos; Sandrão e Cia, com 36. Eles amadureceram, assim como o rap – afinal, a cada dia surgem novas batidas e métricas. Entre os novos nomes do hip-hop nacional, eles destacam Emicida, Flora Matos, Sevenlox, Wu-Furmigueiro, Família Madá, MC Nathy e U-inversu. O trio entende que a música eletrônica e o funk carioca aterrissaram nas festas de rap – assim como o rap faz parte da programação de muitas baladas “de boy” – e que hoje todos disputam espaço nas mesmas pistas. Curtem o funk carioca e admiram sua evolução. Sandrão afirma ter sido o primeiro a subir no palco com cantores de funk, no auge do Proibidão, quando São Paulo ainda nem conhecia essa linha. “Acho que a música está aí pras pessoas optarem pelo que querem”, pensa. O rapper chegou a gravar com Mr. Catra a música “As Cachorras”, do disco WX (2006). “O funk é envolvente pra caramba, as batidas, a dança... E a gente está estudando uma forma de fazer um som nessa pegada também”, conta o rapper. “É importante passar mensagens para todos os tipos de público, mas também para
os maiores de 18 anos. A gente tem nossos momentos de descontração, né? (risos)” Sobre a competitividade e as dificuldades do rap e da música em geral no século XXi, ele é direto: “quem não fizer um bom disco ou não tiver um bom show não vai vender”. Apesar do espírito de concorrência velada que vez por outra desanda o caldo no rap brasileiro, o RZO segue apostando na união de talentos que sempre caracterizou o grupo. “Procuramos trazer pessoas novas para participar, tanto nas composições quanto nos shows”, explica Sandrão. O show é uma verdadeira reunião entre amigos, que acontece de forma quase imprevisível. Na tarde chuvosa em que o RZO recebeu a + Soma na laje da casa de Helião em Pirituba, (a mesma onde produziram o clássico Evolução é Uma Coisa), haveria uma apresentação gratuita do grupo no Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, como parte da programação musical do Outubro independente (projeto da Secretaria da Cultura de São Paulo nascido no CCJ). O show estava marcado para as 20h, e às 17h ainda não se sabia quem iria participar. “Não tem nada programado, vamos dar uma ligada pro pessoal pra saber quem está por aí”, diz Sandrão. “Do pessoal que cola, cada um tem seus hits e o Cia tem acesso a todos os instrumentais de tudo quanto é grupo de rap”, completa. Os amigos MCs Dom Quixote, Du Bronk’s, Nego Jam, Sombra, Tio Fresh são habitués dos shows do RZO. E a Negra Li? “Com certeza vamos fazer alguma música com ela”, afirma Helião.
“o funk é envolvente pra caramba, as batiDas, a Dança... e a gente está estuDanDo uma forma De fazer um som nessa pegaDa também. é importante passar mensagens para toDos os tipos De público, mas também para os maiores De 18 anos. a gente tem nossos momentos De Descontração, né? (risos)”
Além disso, o RZO também está com os dois pés no Big Bang Jhonson (escrito assim mesmo), um coletivo de all-stars do rap inventado pelos Racionais MCs. A base é formada pelos dois grupos ícones do rap nacional, mas conta com o reforço de Rosana Bronk’s, Consciência Humana, Conexão do Morro, Nego Jam, Quelynah, entre outros. E nem é preciso dizer que o combo vem lotando shows para cerca de 10 mil pessoas no Brasil inteiro. “Estamos num recomeço”, admite Cia, que concilia o RZO e o Big Bang com outra agenda bem agitada de apresentações solo. O beatmaker está colecionando gravações preciosas que realizou com gente como Nature, Ching, U-God (do Wu Tang Clan) e outros rappers gringos para compilar num disco. Mais um lançamento que com certeza vai bombar no mercado é o disco póstumo do Sabotage, que está sendo produzido por Daniel Ganjaman. “Só falta terminar as faixas do Helião e do Mano Brown”, conta Sandrão. Com tantas possibilidades nas mangas, o retorno era iminente. Da mesma forma como começaram em 1990, cantando nas festas da Chic Show e da Black Magic, o RZO está de volta à cena. Afinal, quem é, é; quem não é cabelo voa! 3
2SAiBA MAiS: myspace.com/rzobrasil 71
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O ano de 2009 teve ótimas novidades na música, e o cantor, produtor, arranjador, multi-instrumentista e engenheiro de som mayer hawthorne foi uma das principais, tornando-se a nova sensação da música soul. Natural de Ann Arbor, Michigan, o rapaz de 29 anos roubou a cena com o lançamento de seu primeiro disco, ótimos videoclipes e ideias criativas, como um single em vinil vermelho com formato de coração. O mais engraçado é que Mayer jamais imaginou ser cantor. Nunca participou de coral de igreja e nem teve aulas de canto quando criança. Suas fichas estavam investidas no hip-hop, como produtor dos grupos Now On e Athletic Mic League, sob o nome DJ Haircut. O codinome Mayer Hawthorne (seu nome é Andrew Mayer Cohen) não passava de uma brincadeira caseira, onde experimentava estilos de gravação vintage em seu homestudio, tocando todos os instrumentos: da bateria ao piano, passando pelos metais e por linhas de baixo que surpreendem.
Mayer A novA cArA (nerd) do Soul HawtHorne Primeiramente, como começou sua história com a música? Eu tive sorte de crescer em uma família musical. Meu pai é um grande baixista e me ensinou a tocar quando eu tinha seis anos de idade. Minha mãe toca piano e também canta. Dela, tirei as lições de piano. Toquei em várias bandas durante o colegial, mas era algo que ia mais pro punk rock. Até fiz coisas com o funk, mas o vício mesmo veio mais tarde. Depois me envolvi muito com o hip-hop e comecei a tocar como DJ e a produzir beats para MCs. Minhas influências são muito amplas. Vão de The Police a Smashing Pumpkins, passando por Steel Pulse, Stereolab, Public Enemy, Slum Village e, claro, os clássicos da Motown, Barry White, Curtis Mayfield e outros. você é de Michigan. Nos conte como o seu estado e, principalmente, a cidade de Detroit influenciaram a sua vida e sua música. Tenho muito orgulho de representar Ann Arbor e Detroit. A história musical dessa área é incrível. Boa parte da melhor musica já feita no mundo vem de Detroit. E falo de todos os gêneros, não só do soul, que é o mais citado. Acho que parte disso tem a ver com o frio intenso do inverno e a mentalidade trabalhadora das pessoas daqui. Detroit respira criatividade!
por daniel tamenpi fotos divulgação
Foi essa surpresa que o cabeça da Stones Throw, Peanut Butter Wolf, teve ao ouvir sua demo. Com apenas duas músicas, Hawthorne conseguiu um contrato com um dos selos mais criativos do mundo, que lançou, entre outros, Madlib, DOOM e o finado Jay Dilla. Seu disco de estreia, Strange Arrangement, foi lançado em outubro e teve ótimas críticas, com um estilo sweet soul que lembra clássicos da Motown e de produtores como Lamont Dozier. São 14 faixas em pouco mais de meia hora, nas quais o branquelo com jeitão de nerd conta histórias românticas em baladas, intercalando com músicas agitadas perfeitas para requebrar no salão. Em conversa com a +SOMA, Mayer conta tudo isso e mais um pouco.
Antes do Mayer Hawthorne, você tinha projetos diferentes. Conte-nos um pouco sobre suas outras facetas. Eu sou DJ de hip-hop e produtor há mais de dez anos. Lancei diversos projetos com o nome DJ Haircut. Você pode conferir no meu site (www. asideworldwide.com). Chegou um momento em que resolvi mudar pra Los Angeles e seguir com a música como uma carreira de tempo integral. Mas o meu foco era o hip-hop, não o soul. O Mayer Hawthorne era um projeto paralelo que eu estava gravando no meu quarto, experimentando, somente por diversão. Nunca imaginei que isso fosse me levar aos lugares aonde estou indo nos últimos meses, ou que me traria aqui pra essa entrevista pro Brasil. Sua musica é considerada retrô, mas pessoalmente a considero muito atual. Como você a define? As pessoas sempre vão tentar rotular, então eu não ligo muito. Não estou simplesmente fazendo musica retrô. Eu tento fazer uma música atemporal. Espero que as pessoas procurem meus discos daqui a trinta anos e que ainda soe atual. Esse é o objetivo. 73
quais instrumentos você toca no disco? Eu toquei a maioria dos instrumentos nas músicas do álbum. Bateria, baixo, guitarra, piano, sintetizadores, sopros, percussão, etc. Tento tocar o máximo possível, mas, ao mesmo tempo, tenho músicos convidados incríveis que complementam no que é necessário.
No clipe de “Maybe So, Maybe No”, vemos muitas referências ao skate. você se aventura nas rodinhas? Eu ando, mas não sou muito bom. Eu amo o skate, faz parte da minha vida desde sempre e faço o possível para apoiar e reverenciar essa comunidade. Só gostaria de andar melhor (risos).
Li declarações entusiasmadas de Peanut Butter Wolf falando do seu trabalho. Como foi o contato entre vocês? Conheci o PB Wolf numa festa. Fui apresentado a ele por um amigo em comum que havia escutado minhas demos de soul. Mas, pra falar a verdade, eu ainda estava muito focado no hip-hop naquele momento. Nunca havia nem pensado em gravar um álbum completo de música soul até o Wolf me chamar pra conversar e propor o álbum pela Stones Throw.
Sendo bem sincero, escutei seu álbum em mp3 fazendo download na internet. Aqui no Brasil, se não for através de blogs ou sites de música, as cenas alternativas não chegam ao público. Como você vê essa situação? Essa história de downloads ilegais está mudando a direção da música, quer a gente goste, quer não. Não tem como evitar. Tem tanto efeitos negativos quanto positivos, mas o principal é que veio para ficar e é melhor a gente aceitar e seguir em frente, pensar em alternativas pra lidar com isso.
E logo a Stones Throw, né? um dos selos mais interessantes da música atual. Como você se sente estando em uma das safras mais criativas da música americana? Falou tudo! Criatividade é definitivamente a palavra chave! É uma honra estar gravando para o selo de Jay Dilla, Madlib, MF Doom e todos os que fazem parte da equipe. Eu, pessoalmente, sou um grande fã do Dam-Funk e do James Pants. Existe um respeito mútuo e realmente é como uma grande família. Mas é perigoso quando todos nós vamos nos aventurar em lojas de vinis usados (risos). O single de “Just Ain’t Gonna Work Out” saiu em um formato de coração e fez muito barulho na cena pela inovação. Foi ideia sua? Foi ideia minha, sim. Eu queria fazer do meu primeiro disco algo especial para colecionadores de vinil como eu. A ideia já estava na cabeça, mas fazer um disco vermelho e em forma de coração é um processo bem caro e complicado. Fiz a proposta à Stones Throw sem muitas esperanças e fiquei surpreso quando eles concordaram com a minha ousadia. Como são as apresentações ao vivo? Estou em turnê com uma banda que pra mim tem os músicos mais talentosos do mundo. Eu os chamo de “The County”. Nós demos muito duro, ensaiamos horas por dia até chegarmos ao formato que queríamos. É o show mais divertido possível. 74
você conhece música brasileira? Eu simplesmente amo a música brasileira. É indescritível. Sou grande fã de Marcos Valle, João Donato, Azymuth, Tim Maia, Jorge Ben, Arthur Verocai e vários outros. Os ritmos e arranjos são muito criativos, e o português é uma língua linda para a música. Espero ter a oportunidade de conhecer o Brasil, fazer shows. Tomara que essa entrevista faça um barulho por aí pra que isso aconteça. Pra fechar, gostaria de pedir que você faça um top 5 pessoal da música soul. Minha lista muda toda semana, mas aqui está a desta semana: Danny Hunt – “What’s Happening to Our Love Affair” Dee Dee Warwick – “it’s Not Fair” Barbara Randolph – “You Got Me Hurting All Over” The Four Mints – “Row, Row, Row Your Boat” Frankie karl and the Dreams – “Don’t Be Afraid, Do As i Say”
1SAiBA MAiS stonesthrow.com/mayerhawthorne myspace.com/mayerhawthorne
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4trashed, do livro GRunGe. seattle, 1983 76
por marcos diego fotos por michael lavine/divulgação
Em 1983, MiCHAEL LAviNE tinha 19 anos e vontade de trabalhar com animações. Morador da então pacata Seattle, onde nada de muita relevância acontecia, era o fotógrafo da turma de skatistas, músicos e jovens que gastavam o tempo procurando algo para fazer. Mal sabia ele que, ao registrar esses grupos, documentava o surgimento de um dos momentos centrais no rock dos anos 1990. Agora, 26 anos depois, lança Grunge, com prefácio de Thurston Moore, em que mostra – em preto e branco – as bandas e as “pessoas comuns” que, influenciadas por heavy metal, punk e hardcore, mostravam em seu jeito de vestir e agir a mistura que mais tarde levou grupos como Nirvana, Mudhoney e Pearl Jam à fama internacional. 1 77
quando você decidiu ser fotógrafo profissional? Comecei a trabalhar em 1987, mas já fotografava bem antes, quando estava na escola. Acho que ganhei a primeira câmera aos 10 anos. Fotografava por hobby, e foi nessa época que fiz as primeiras fotos do livro. Se você não fosse fotógrafo, seria o quê? Eu estava decidido a estudar animação. Era o que eu gostaria de fazer, mas na última hora mudei de ideia e troquei as aulas de animação por fotografia. Sempre quis ser animador. quais são suas recordações da Seattle pré-grunge? Eu me mudei de Seattle para Nova York em 1985, então não me lembro exatamente do estilo de vida da cidade nessa época. O que eu me lembro é da música que veio de lá quando eu trabalhava para o escritório da Sub Pop aqui em Nova York. As bandas vinham de lá e eu as fotografava. Mas, sobre as coisas que mudaram, acho que foi uma questão de conscientização. As pessoas tomaram consciência da cena musical que existia por lá, e de uma hora para a outra o mundo inteiro ficou sabendo. Foi muito louco. Porque antes era uma cena muito pequena e independente, underground, em que todos se conheciam. Aí o Nirvana apareceu com “Smells Like Teen Spirit”, explodiu no mainstream, e de repente todos estavam envolvidos. Foi chocante para quem vivia isso, algo difícil de lidar. O que mudou na sua vida depois da explosão do grunge? Não sei. Acho que foi uma sensação de perda, de que a nossa comunidade havia sido de certa forma destruída. Mas, ao mesmo tempo, sem isso eu não teria conhecido as pessoas que conheci. Então é uma sensação amarga e doce ao mesmo tempo. Agora, a ideia do livro foi mesmo pontuar o fato de que o grunge não foi exatamente o que as pessoas pensam que foi. Esse livro é a minha visão pessoal, minha versão pessoal, sobre o que foi o grunge. Não é um livro sobre sua história definitiva.
4mudhoney, 1988
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E o que é o grunge para você? Grunge foi o rótulo dado pela imprensa tradicional para um amplo leque de estilos musicais que estavam rolando por todo o país. Eles basicamente juntaram algumas bandas de metal e punk sob esse rótulo. Não significa muita coisa, na verdade. É só um nome que alguém deu a uma cena muito diferente do que as pessoas imaginavam. As fotos ficaram no meu armário por 25 anos, e acho que é uma boa hora para olhar para trás e ver o que aconteceu de verdade. Existem muitos mal-entendidos e [o livro] é uma forma de redefinir, esclarecer e ajudar as pessoas a entender o que rolava por lá.
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4sonic youth, 1988
4dinosaur jr., 1989
O prefácio do seu livro é do Thurston Moore. Como ele entrou na história? A ideia inicial do livro foi dele. Ele é meu amigo há muitos anos, meu vizinho, e um dia, há uns dez anos, perguntou por que eu não fazia um livro. Há quatro anos, novamente, ele lembrou da ideia. Demorou três anos para que o livro ficasse pronto, o processo de seleção e compilação foi bem longo.
Todas possuem uma hisTória, mas fiquei muiTo feliz que as foTos dos jovens na rua Tenham saído. porque acho que ninguém conhece de verdade esse lado de seaTTle. Tempos aTrás recebi um e-mail de uma das foTografadas em 1983, dizendo que o livro era o anuário escolar que ela nunca Teve.
qual foi a banda mais difícil de fotografar? A mais difícil? Sonic Youth. (risos) Porque eles são difíceis, um pé no saco. [Folheando o livro] Nirvana foi explosivo, Pearl Jam foi ok, Soundgarden eu fotografei um milhão de vezes e todas renderam ótimas imagens, Butthole Surfers também... Vou te dizer, a maior parte das pessoas é fácil de fotografar, você raramente encontra alguém difícil. Até a Courtney Love não é assim, ela é divertida. Quer dizer, ela pode dar uma de louca de uma hora pra outra, mas sempre foi divertida. Pensei que sua resposta seria Kurt Cobain. Como era o relacionamento entre vocês? Pois é, kurt não foi difícil comigo porque era meu amigo. Ele me respeitava, eu acho, então foi uma boa relação de trabalho. você é uma espécie de Bob Gruen do grunge. Concorda com isso? (Risos) Eu conheci o Bob Gruen, e talvez ele não goste dessa comparação. Ele e o trabalho dele são uma grande influência, mas acho que para chegar lá ainda preciso ganhar mais alguns cabelos brancos.
As primeiras fotos do livro mostram jovens de Seattle e Olympia em 1983 vestidos sob influências de estilos variados. De onde vinha isso? Não existia internet naquela época, então as pessoas queriam se expressar de diferentes formas – para questionar a autoridade, por exemplo. É uma espécie de tradição usar roupas para enfrentar o sistema, se afirmar. Seja qual for a orientação política, isso ajuda a identificar grupos diferentes. Naquela época, em Seattle, a cena underground era bem pequena, e a música que se ouvia em geral era da Costa Oeste, de Londres, Nova York. O pessoal de lá acabou misturando todos os estilos e criou sua própria versão, que é o que as pessoas no mundo chamam hoje de grunge. Você pega pop, heavy metal, mods, skinheads, todos os tipos de rebeldia e transforma nisso. O som de Seattle também dizia isto naquela época: “nós não queremos ver The Go Go’s”, ou seja lá o que fosse o mainstream em 1983. Havia muitas bandas de heavy metal e new wave ruins, a política estava ruim, era o Rock Against Reagan, então a união chegava à esfera política também. Como você fazia para capturar momentos espontâneos das bandas, como o Mudhoney? você era amigo dos músicos? No caso específico do Mudhoney, eu ainda não os conhecia. Mas eu acho que, por causa da minha amizade com o Bruce [Pavitt], chefe da Sub Pop, todo mundo era amigo de alguém, então havia um certo conforto nas relações. E esse é um dos segredos para se tornar um bom fotógrafo. Se você se sente à vontade perto de mim, você me escuta, e fotografar se torna mais natural. Mas ser amigo da banda é importante para conseguir uma boa foto? Não, de jeito nenhum. Às vezes pode ser um problema, se você ficar conversando e não se concentrar no trabalho. (risos) 80
O que, para você, fez dele alguém tão especial? Se eu soubesse responder isso, estaria rico! (risos) Nós não sabemos. Ele vivia em Seattle, e é uma coisa mágica, é magia! Se você está numa sala com um cara desses, ele é só mais um, uma pessoa doce e amável. É exatamente como você e seus amigos. Quer dizer, ninguém sabia que o cara ia se tornar uma lenda. Ele era apenas um de nós. qual é o seu álbum favorito daquela época? Daydream Nation, do Sonic Youth. É um disco forte. Eu trabalhei nele e sinto sua força até hoje. O que você faz hoje em dia? Tenho um grupo de pessoas que eu fotografo e um trabalho com vídeo também. Acabei de finalizar o videoclipe do Heavy Trash, a banda nova do Jon Spencer. Trabalho também com a Cher, a Miley Cirus, fiz as promos para o álbum do TV on the Radio. Trabalho também para algumas emissoras, como a Fox. E o que você tem ouvido? Muitas coisas. Peguei o Them Crooked Vultures recentemente, gosto também do Spoon e do Heavy Trash. Já ouviu Fever Ray? É uma garota sueca que tocou no The knife e não sai do meu som. Não é rock, é algo mais viajante. qual é sua melhor foto, na sua opinião? Todas possuem uma história, mas fiquei muito feliz que as fotos dos jovens na rua tenham saído. Porque acho que ninguém conhece de verdade esse lado de Seattle. Tempos atrás recebi um e-mail de uma das fotografadas em 1983, dizendo que o livro era o anuário escolar que ela nunca teve. você planeja uma segunda edição do livro, ou outro com alguma banda específica? O livro tem uma versão em cores, que é completamente diferente. Fiz algo parecido no meu outro livro, Noise From the Underground: A Secret History of Alternative Rock (Fireside), lançado há 10 anos e que tem diversas bandas, de 1986 a 1996. 3
2SAiBA MAiS www.michaellavine.com
4nirvana, 1991
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s
air para farrear com Zé Ulisses é fundamental para entendê-lo: em voo rasante por ruas e bares obscuros da boemia portoalegrense, o jovem punk rocker de 25 anos concentra as atenções de conhecidos e incautos; bebe e fala em doses/volumes graúdos; tem acessos de ternura para com os seus ao mesmo tempo em que pragueja contra o mundo; tempera seu conhecimento de mundo típico de estudante de História com discursos niilistas contra tudo e todos; reconta a vida de seus pares com um esmero que dá às situações mais impossíveis verdade e profundidade; chama a atenção pelo aspecto corpulento e marcado por tatuagens horrendas (“Porra, sabe qual meu apelido? Porta de banheiro – meus alunos falam que eu sou grande e todo riscado”). Tudo nele é hiperbólico e parece empurrá-lo adiante numa espiral que junta rancor, desesperança e um tanto de reflexão. A seguir, com raras intervenções, o que se tem é a teogonia de Zé Ulisses, contada por um dos velhos de câncer típicos de certa classe média urbana que subverteu apatia e alienação em algo muito superior: música sincera e inspirada. Conta aquela história do seu irmão mais velho, primeiro desajustado, depois crente... Pô, cara, meu irmão sempre foi um cara totalmente perdido. Desde que minha mãe morreu, ele ficou malucão, começou a usar droga e o escambau. Ele foi tudo: clubber, skin, rockabilly, regueiro, do hip-hop. Daí um dia tava muito louco e acabou parando numa igreja, onde tá até agora. Só que a parada foi maluquélvis. Meu irmão é daquelas pessoas que são conhecidas pelo nome na Cidade Baixa (bairro boêmio da capital gaúcha), de treta e o caralho-a-quatro. Faz três anos isso, mas rolou muita treta. Pra ter noção, até eu tô lendo a Bíblia – mas fique tranquilo, é pra sacar o barato. A esposa dele morreu há duas semanas, minha melhor amiga, e adivinha de quê? CÂNCER! Daí vi que quem tava com ele nessa parada era nego com Bíblia na mão e amizade no coração. Os anarcorockers, revolta mamãe-com-Nescau, que eram os caras que colavam com ele, no máximo foram ao velório, e de má vontade. Hoje meus amigos são na maioria crentes, mas, pô: quero dar risada e andar com gente que não bate nas costas e depois te passa o rapa na esquina.
por arthur dantas foto por daigo oliva
De antemão, um aviso: se você nunca sentiu “raiva espiritual”, é desaconselhável continuar a leitura. Dito isso, comecemos. Existem assuntos que cabem melhor no campo da mitologia, do folclore. O Velho de Câncer, formado em 2006, uma das melhores bandas brasileiras de hardcore do século XXi, é um deles. Assim como Emicida, outro talento de um gênero
igualmente nevrálgico, no caso de Zé Ulisses – guitarrista exímio, cronista dileto da sarjeta e da desesperança e vocalista de timbre rasgado e decidido –, o imaginário construído ao redor de si mesmo importa mais do que a averiguação concreta dos fatos, da mesma forma como ninguém se importou por muito tempo com o passado construído por Joe Strummer. Narradores de suas próprias vidas, esses tipos de músicos dão eles mesmos a dimensão de quão pertinente é a performance de seus discursos. 1
E aquilo de ser o gordinho bobo da escola etc? Eu moro do lado da minha antiga escola de primeiro grau. Eu era gordinho, é aquele lance: pai durão, sem mãe e irmão doidão. Então era um saco, só que eu era um pouco grande pra minha idade. Dai a única coisa que me deixava feliz era ouvir Misfits no walkman. E, se os moleques na escola eram playboys, eu ia ser punk. Mas na minha escola ocorreu o oposto de filme de sessão da tarde: uma vez foram “porrar” um colega meu, viadinho, e eu fiquei puto, soquei uns moleques e enfiei a cabeça de um deles na privada. Daí os nerds da escola acharam foda, e a gente criou uma gangue de gente torta e zoada. você tocou em outras bandas. O que te levou ao velho de Câncer? Tinha acabado de chegar de Curitiba, onde morei um tempo, passava desgosto, boa parte por rolos com amigos e garotas. O que ligava
tudo isso era o fato de que para onde eu ia me sentia deslocado, inclusive na minha própria casa, como se a coisa estivesse dentro de mim. O lance do Velho é decepção com gente. Tava cansado de montar banda com fórmula, música assim, um faz as letras o outro não sei o quê. Fiz umas músicas sozinho, chamei uns amigos antigos, bem fora do círculo punk, mas que tinham raiva no coração, moravam na periferia e o caralho. O problema começou quando a banda começou a ser levada a sério pelos outros. A coisa foi para um lado que nunca se quer – me escreveram falando umas paradas pesadas etc. Sei lá se é esse o sentido da coisa. Sei que pelas músicas somos responsáveis. você me falou que tava numas de fazer um som mais emo... Ah, mano, uns chamam de emo, eu chamo de reflexão. Tô a fim de pensar um pouco, principalmente sobre o que e como dizer algumas coisas. Acho que um monte de coisa tem de ser desconstruída, falando especificamente sobre a cena punk. Tá tudo muito bonito, e o bizarro é que vejo gente muito mais tranqueira na igreja do que no punk. Ficou fácil, né? “vamos imitar as bandas skate punk, fazer como as bandas de Washington, tocar punk 77...” Porra, mano, o lance tá ridículo! Tá na hora da cena punk acabar e começar outra coisa. A mensagem do punk foi passada e hoje virou um estilo de vida. Me sinto tão deslocado em show punk quanto em um emprego de terno e gravata. Duvido que haja lugar na alma de um evangélico pra "raiva espiritual"... Lógico que não. Mas em show de hardcore você acha que tem? Eu não! Então pra quem é o som do velho de Câncer? Eu não sei mais, cara! Não faço a mínima ideia de quem é nosso público. Quem vai nos shows aqui são nossos amigos – é algo pela camaradagem e cerveja compartilhada. A única coisa que sei é que é a minha última banda punk! A parada ainda não teve um fim, porque acho que musicalmente ainda tem algo pra fazer. Vamos gravar algo entre março e abril, temos sete sons novos. 3
2SAiBA MAiS myspace.com/velhodecancer 83
+quem soma .
MôNiCA NADOR . por marina mantovanini
e
u quase mudei de profissão porque achava muito difícil trabalhar no meio das artes plásticas. Arte é um saco. É uma competição, é só isso.”
Foi esse sentimento que levou a artista plástica Mônica Nador, 54 anos, a largar o circuito fechado das artes para levantar uma outra bandeira: a da socialização das técnicas de pintura entre os moradores das periferias. É no JAMAC, sigla para Jardim Miriam Arte Clube, na divisa de São Paulo com Diadema, que Mônica lembra sua trajetória: as visitas do artista Alfredo Volpi ao ateliê de seu pai em São José dos Campos, o curso de artes plásticas na FAAP e a mudança do bairro de classe média-alta da Vila Madalena para viver e montar seu projeto de vida na periferia. “Antes de vir para cá e colocar em prática as minhas ideias, eu me reuni durante um ano na casa do Mauro, que é uma das lideranças 84
do bairro, para explicar o projeto, mostrar as minhas intenções e conquistar a confiança. Não dava apenas para chegar, chegando. Eu queria mesmo é que eles participassem de tudo.” Paredes Pinturas: o Começo O projeto a que ela se refere é o Paredes Pinturas, que começou a ganhar vida em 1996, quando a artista leu, no curso de pósgraduação da ECA, o texto “O Fim da Pintura”, do crítico norte-americano Douglas Crimp. O documento faz uma análise sobre o esgotamento das relações do mercado das artes e sobre o futuro das obras versus museu. “Quando me formei na FAAP, saí de lá e fiquei tentando ser artista. Fazia exposições, participava do circuito, mas tinha uma preguiça... Não entendia muito bem as regras. A realidade não tinha nada a ver com o que eu havia estudado.
Fiquei maluca: não sabia se meu trabalho era bom porque era bom ou se valia alguma coisa porque um dia no futuro iria valer. E quando caiu a ficha de que eu ia criar obras para ficarem guardadas em um museu, sem que elas tivessem feito um percurso na sociedade, eu realmente não consegui mais pintar telas por dez anos. Fiquei em estado de choque.” Jardim Miriam Arte Clube Foi aí que a artista, de sólida formação esquerdista, resolveu transformar os muros e as paredes das periferias ou regiões bem pobres no seu ateliê a céu aberto. “Antes de ir para a FAAP, estudei arquitetura por três anos na antiga Faculdade de Urbanismo Eumano Ferreira Velos, em São José dos Campos.
“E u quasE mudEi dE profissão porquE achava muito difícil trabalhar no mEio das artEs plásticas. artE é um saco. é uma compEtição, é só isso.”
Era um ensino baseado no modelo marxista, tinha uns puta professores de sociologia, história e filosofia que jogavam a gente no meio da periferia para enxergamos o que realmente acontecia no país. Ali eu construí uma relação forte com habitação popular e, antes de montar o JAMAC, saí para pintar casas em Tihuana, no México, em assentamentos do MST, em uma favela em São José dos Campos e em algumas cidades do interior do Nordeste.” As primeiras experiências de embelezar lugares degradados e caóticos e aumentar a autoestima dos moradores deu certo. “O pessoal do bairro acabava participando do processo de criação. Eu sempre perguntava o que eles queriam na parede da casa deles e pintava em cima das ideias trocadas.” Esse intercâmbio reviveu a necessidade de compartilhar conhecimentos com quem não
tinha chances de frequentar uma escola de arte. “Senti que precisava viver na periferia para que os moradores se integrassem ao projeto. Eu queria fazer o Paredes Pinturas com gente do bairro. Então abri o JAMAC, que é um espaço de experimentação cultural e artística, e comecei a dar aulas de estêncil ao pessoal da comunidade.” Estêncil, café filosófico, literatura e debates A partir da linguagem da pintura e com a intenção de desburocratizar a arte, Mônica escolheu o estêncil pela variedade de possibilidades que a técnica abre: “O estêncil é mais simples, e você pode pintar de pano de prato a muro de museu. É importante ensinar algo que possa se tornar uma profissão. Se eles quiserem fazer um dinheiro com isso, rola. Para completar, sempre tive uma conexão com a coisa do padrão, tipo pintura islâmica. Foi o casamento perfeito”.
Sem perder o bom humor, Mônica ainda abre as portas do JAMAC para um café filosófico mensal com apresentações de literatura, palestras e debates e pretende transformá-lo em um ponto de cultura. “No ano que vem, queremos montar uma estamparia para os alunos do projeto.” Enfrentando obstáculos tremendos, mas muito satisfeita com as escolhas que fez, a artista conseguiu transformar o JAMAC no que ela queria: um local de passe livre para a comunidade do Jardim Miriam.
2SAiBA MAiS jamac.org.br
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por mentaloZZZ e ouriรงo
coisas que gostamos de guardar 86
quando foram lançados os bonecos? Esses bonecos foram lançados no EUA em 1964, mas só chegaram aqui, pela Estrela, no final da década de 1970. O cabelo “flocado” foi um diferencial. Por que você se dedicou a colocar cabelo no Falcon? De início foi para recuperar alguns dos meus bonecos, mas hoje restauro cabeças para colecionadores do Brasil todo. E por que eles ficam carecas? O fato é esse, com o tempo alguns Falcons ficam carecas. Os mais suscetíveis à calvície, muitas vezes até precoce, são os que foram submetidos a aventuras sub-aquáticas, porque, quando foram lançados no Brasil no final da década de 1970, não existia o respeito ao consumidor de hoje, e o reclame na TV mostrava as crianças mergulhando o Falcon. Mas a cola não era resistente a água, e logo vinha a queda dos cabelos. Como é o processo de reposição capilar do Falcon? Uso uma máquina de flocagem com algumas
4newton carlos e sua fantástica fábrica de falcons
adaptações mínimas para recolocar o cabelo.
A seleta desta edição é com o NEWTON CARLOS, que é coordenador regional do grupo moveleiro Todeschini e está aqui porque guarda muitos bonecos do tipo Action Man Gi Joe – ou, como foi batizado aqui no Brasil, Falcon.
O processo consiste em remover a cabeça (com secador de cabelo, usando o calor para amolecer cuidadosamente o plástico), que é espetada em um palito de madeira conectado a um pólo elétrico negativo. Em seguida, passa-se cola onde se deseja que tenha cabelo. Em uma bandeja, é despejada uma quantidade generosa de cabelinhos, onde se
Newton tem por volta de 100 aventuras (como eram chamados os packs com boneco e acessórios) e além de colecionador é também o responsável por uma clinica tipo hair center para os Falcons, porque, assim como seus donos, os bonecos sofrem com a ação do tempo. Para homens com altos níveis de testosterona como o Falcon, manter os cabelos na cabeça é algo que se torna difícil com o passar dos anos.
conecta o pólo positivo. Com o fechamento do circuito, ocorre a reação: os pelos da bandeja pulam para a cabecinha do Falcon, que fica parecendo um globetrotter. Deixo secar por quatro dias com muito cuidado para não amassar o cabelo. Aí vem a parte de corte, que pode ser com a tesoura ou fogo, para queimar o excesso. Essa fase requer algum dom, tempo de treino e algumas cabeças danificadas no início. E o cabelo, onde você consegue? O cabelo é feito de raspas de carpete, e eu,
O boneco tinha como um de seus diferenciais o fato de possuir vários tipos de cabelos, barbas e bigodes, fabricados por um processo de flocagem, o que conferia um toque especial ao brinquedo (eu tive um Falcon e hoje sou tricotilomaníaco). 1
depois de muitos anos, cheguei à receita correta para cada tom de cabelo que foi lançado com o Falcon – além do grisalho, uma invenção atual, porque muitos donos quando mandam restaurar aproveitam para reciclar o visual. Tenho que usar seis tipos de flocos de três tamanhos diferentes e três cores para fazer um único tipo de cabelo.
2mentalozzz e ouriço Sofrem de Síndrome do pânico e atuam na cenSura televiSiva. 87
Se os DJs podem navegar pelas suas coleções de música e se divertir colando trechos de canções, por que quem tem conexão com a palavra não pode fazer algo assim também? inspirado pelo documentário Scratch, ouvindo Endtroducing, do DJ Shadow, e sem a menor habilidade pra toca-discos, CDJs (ou pra escrever um romance), resolvi inventar minha própria forma de mixtape.
Em vez de browsear música, fui pra outra estante e comecei a buscar trechos de livros que eu pudesse fazer fluir juntos. Deixei a mente solta, cortei parágrafos e fui mixando... O resultado está aí. Vamos ver se funciona… 1
storymixtape .1
2GuSTAvO MiNi ESCREvE EM oesquema.com.br/conector
ilustração guilherme dable
Eu adoro música. Música profunda e clara, música com alma e suingada, música com melodias inspiradoras e harmonias acolhedoras. Música hipnótica, cheia de elementos etéreos, que te transporta para outros universos. Música dinâmica e dramática com uma orquestração rica, daquelas clássicas ou então das que fazem parte da trilha sonora de um filme.
Às vezes, é difícil definir o que é que realmente faz de uma música algo tão evocativo e emocionante. Talvez seja apenas a sua honestidade, através da qual o compositor conseguiu traduzir emoção em estado puro, sentimentos ou ideias em ondas sonoras. Como ouvintes, nós re-traduzimos as ondas que saem dos alto-falantes novamente em ideias, sentimentos ou emoção em estado puro. Cientificamente falando, isso tudo é apenas transferência de energia. Mas eu sei que é mais do que isso. No esquema de coisas de kathy Torrance, havia um desdém especial reservado para o cantor. Ela o via como um fóssil vivo, um sobrevivente inoportuno de uma era anterior, menos evoluída. Ele era ao mesmo tempo maciça e insignificantemente famoso, dizia ela, da mesma forma que era maciça e insignificantemente rico. kathy considerava a notoriedade um fluido sutil, um elemento universal, como o flogisto dos antigos, algo disperso uniformemente no momento da criação por todo o universo, mas com tendência a aglutinar-se, sob condições específicas, em torno de certos indivíduos e suas carreiras. Rez, na opinião de kathy, havia simplesmente durado demais. À medida que vivemos, caímos e somos destroçados por várias armadilhas. Ninguém escapa delas. Alguns até mesmo convivem com elas. A ideia é se dar conta de que uma armadilha é uma armadilha. Se você está numa e não se dá conta, está fodido. Acho que me dei conta da maioria das minhas armadilhas e escrevi sobre elas. Ainda não encontrei um preso que não conte os dias, todos os dias, muitas vezes ao dia. Estou cansado de ouvir planos de fugas mirabolantes, estou cansado de ouvir gente dizendo que, quando sair, a primeira providência vai ser roubar um automóvel na esquina. Cada nova linha é um começo e não tem nada a ver com as linhas que a precederam. Todos começamos como novos, a cada vez. E, é claro, isso não tem nada de sagrado. O ser humano já conseguiu ampliar bastante suas capacidades, a saber: aumentar seu tempo de vida, pulverizar sempre mais e mais suas marcas atléticas, quintuplicar os requintes de suas técnicas de extermínio mútuo, centuplicar o poder de se comunicar e outras conquistas tais que todos conhecem – tudo em progressão aritmética. Em progressão geométrica exponencial o ser humano só se supera constantemente na capacidade de se surpreender.
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Não há perdas em escrever: faz seus dedos do pé rirem enquanto você dorme, faz você andar como um tigre; ilumina seus olhos e coloca você frente a frente com a Morte. A sorte da palavra. Vá com ela, mande-a. Seja o Palhaço das Trevas. Morte é ausência definitiva. Tomei consciência desse fato aos quatro anos de idade, depois de ter ficado órfão. Estava sentado à mesa do café-da-manhã, encolhido por causa do frio. Minha avó espanhola, de vestido preto, vigiava o leite no fogão de costas para mim. imaginar a morte como um fardo prestes a desabar sobre nosso destino é insuportável. Conviver com a impressão de que ela nos espreita é tão angustiante que organizamos a rotina diária como se fôssemos imortais, e ainda criamos teorias fantásticas para nos convencer de que a vida é eterna. Nada transforma tanto o homem quanto a constatação de que seu fim pode estar perto. Existe acontecimento comparável? Um grande amor? O nascimento de um filho? Pior, muito pior do que as escandalosas tempestades eram os momentos de tensão e expectativas provocados por traiçoeiras calmarias, quando as águas calmas e o vento morto traziam consigo a certeza de mudanças no tempo e de mar agitado pela frente. Muitas pessoas me disseram que admiram Chris pelo que ele estava tentando fazer. Se tivesse sobrevivido, eu concordaria com elas. Mas isso não aconteceu e não há como trazê-lo de volta. Não tem conserto. Não sei se a gente supera esse tipo de perda. O fato de que Chris se foi é uma dor aguda que sinto todos os dias. É realmente duro. Alguns dias são menos ruins que outros, mas todos os dias pelo resto de minha vida vão ser duros. Quando a música terminar, apague a luz. Porque a música é um amigo muito especial.
tracklist Tom Middletom . Texto do encarte do álbum The Sound of The Cosmos William Gibson . Idoru Charles Bukowski . O Capitão Saiu Para o Almoço e os Marinheiros Tomaram Conta do Navio J.B. Gelpi . Pankrác ECII – Crônicas do Cárcere de Praga Dráuzio Varella . Por Um Fio Amyr klink . 100 Dias Entre o Céu e o Mar John krakauer . Na Natureza Selvagem Jim Morrison . “When The Music’s Over”
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1GêNESiS . ROBERT CRuMB . Conrad Editora . 2009 Em 2005, uma notícia agitou o mundo editorial: Robert Crumb, lendário quadrinista norte-americano, um dos pais da contracultura, voltaria a produzir um livro inédito. Mais do que isso: produziria uma adaptação do livro bíblico do Gênesis, pedra fundamental na moral de duas das maiores religiões monoteístas do mundo. Em uma época de intolerância ascendente – religiosa, legal, de liberdades individuais –, o fato de um dos artistas mais ácidos e impiedosos vivos se dedicar a uma missão como essa provocou risinhos sarcásticos de contentamento entre os fãs, certos de mais uma obra-prima do escárnio e da imoralidade. Mas não era bem assim: logo no princípio, o artista deixou claro que faria um trabalho fielmente ilustrativo. Sua intenção não era parodiar o primeiro livro do Pentateuco, mas trazer à luz em imagens o teor da obra. O resto, ele dizia, o texto original faria por si só. Quatro anos depois, o livro chega ao Brasil – em lançamento simultâneo com outros onze países –, em edição de luxo, com capa dura e notas da ótima tradução brasileira. À primeira folheada, já fica claro que estamos diante de um outro Crumb: em vez de cenas explícitas com genitais, sugestões e relações indiretas; em vez de rompantes de revolta, um autor incrivelmente submisso ao texto original. Parte da crítica não demorou a condenar o livro como obra monótona (afinal, a linguagem empolada do Gênesis não é das mais divertidas), subserviente, sem sentido. Do outro lado, leitores incautos se chocaram com as imagens divulgadas na imprensa, em especial a de Adão e Eva nus – ele sobre ela, ela com o êxtase da primeira penetração da história humana irrompendo no rosto. Difícil imaginar situação mais gratificante para Robert Crumb. Em uma só tacada, traiu os que julgavam tê-lo entendido (domesticado?), chocou os neocons fregueses das listas de mais vendidos, e de quebra meteu uma bolada de dinheiro no bolso. Claro, no meio disso tudo produziu um deleite majestoso ao grande número de fãs que, como sempre, entenderam a piada. A grande subversão do Gênesis de Crumb é justamente sua sutileza – a primeira delas, fazer um monte de marmanjos hereges lerem a Bíblia pela primeira vez. Fruto de um trabalho hercúleo de pesquisa histórica, as ilustrações trazem o apogeu do desenhista até agora, exibindo um equilíbrio primoroso entre seus contornos sujos e seu detalhismo obsessivo. Assim, Crumb alcança um êxito silencioso, ao mostrar coisas que ficavam escondidas sob o texto protocolar. Deus finalmente aparece em toda sua humanidade, invertendo a célebre relação de imagem e semelhança, com poder criador e atitude irascível, mas cheio de dúvidas e incoerências em sua onisciência. As cenas de guerra e violência em geral – o assassinato de Abel, o Dilúvio, o fogo sobre Sodoma e Gomorra – aproximam o leitor de uma era muito mais crua do que o cristianismo politicamente correto atual. Vendas de mulheres, traições e figuras fálicas – como o cantil de couro sobre o peito de Ló durante o coito bêbado com suas filhas – expõem o senso prático de uma moral em que, enfim, resultados são mais importantes do que princípios. Quem diria, o registro definitivo de um livro santo, feito pelo menos santo dos artistas. Um epílogo essencial e oportuno à história do século XX. 3POR MATEUS POTUMATi 1vOCê ENCONTRA ESTE E OuTROS LivROS NA LOJA DA +SOMA
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1NA BOCA DOS OuTROS . KiKO DiNuCCi . Desmonta . 2009 Bastaria para kiko Dinucci ser apenas o talentoso compositor que é para torná-lo referência de boa música praticada em São Paulo e, por extensão, no Brasil. Chamá-lo de sambista– ainda que o rótulo seja pertinente – é diminuí-lo. O álbum Na Boca dos Outros vem para concretizar uma percepção a respeito de suas aptidões e colocar em cheque determinados matizes de seu trabalho. kiko vive a contemporaneidade – não se atrela a tradições estáticas, mantém o ouvido esperto e aberto, e se joga por aí, o que se comprova por sua participação em um grupo de samba e quetais, um trio de afro jazz, um duo de cabaré, improvisos e até um surpreendente grupo com o MC Sombra, por exemplo. A tônica é a generosidade e a amplitude desses voos: falta ego e sobram recompensas para todos os envolvidos. Mas, obviamente, seu talento e sua verve lírica, tão atrelada à enviesada tradição que comporta desde o escritor João Antonio até o gênio itamar Assumpção, se adaptam melhor a alguns contextos do que a outros. Em um álbum em que o compositor se arrisca em tantos gêneros e um tanto cansativo (14 faixas), vêm à tona tanto o brilho como os deslizes. Como itamar, suas composições brilham nas vozes femininas: na abertura fantástica com “Ciranda Para Janaína” (Fabiana Cozza), “Partida em Arujá” (na voz de sua contumaz intérprete Juçara Marçal) ou em “Bom Jesus da Cabeça” (Alessandra Leão, que lançou belíssimo álbum também este ano). O ponto alto do trabalho é “Forró do HomemBomba” (escrita em parceria com o grande Douglas Germano), na qual o gênero de Gonzagão encontra ressonâncias em uma queda livre violenta cuja grandiloquência encontra porto seguro na voz de Marcelo Pretto. Abstenho-me de apontar as falhas – kiko Dinucci é um talento novo tão estimulante que não merece censuras. 3POR ARTHUR DANTAS 1vOCê ENCONTRA ESTE E frente
OuTROS DiSCOS NA LOJA DA +SOMA
1LEFT 4 DEAD 2
. Valve Corporation . 2009
Como nas séries de filmes de zumbi de George Romero, o mundo dos games começa a ganhar mais uma boa linhagem de comedores de cérebro. Left 4 Dead 2 chega aos PCs e Xbox 360 com uma grande responsabilidade: superar seu antecessor. No começo pode-se achar que a Valve seguiu a filosofia de que em time que está ganhando não se mexe, porque a mecânica do jogo continua a mesma. Porém, muitos novos detalhes foram acrescentados ao conjunto. O sistema de quatro personagens que lutam para sobreviver a hordas de zumbis está lá, mas agora eles são mais bem acabados e conectados com a trama, ambientada na região Sul dos Estados Unidos. O jovem mecânico Ellis, a produtora de televisão Rochelle, o vigarista Nick e o técnico de futebol americano Coach arrancam membros e explodem crânios em pântanos, shoppings abandonados, cidades inundadas... Aliás, um dos capítulos (o game é todo dividido em episódios, como filmes trash com tramas independentes umas das outras, mas que seguem uma espinha dorsal em comum), “Hard Rain”, faz referência ao cenário de Nova Orleans durante o furacão katrina. Aqui, o companheirismo de pessoas totalmente estranhas entre si é o segredo. Capta a essência dos filmes de zumbi e dá mais emoção em momentos chave da narrativa, como desligar alarmes, coletar itens ou se encurralar em algum ponto até a chegada do resgate. Entre as diferenças entre o primeiro e este novo episódio da série, estão os modos Realism, que limita as mortes dos heróis e outros recursos normais de jogo; o Versus, que divide os usuários entre times de humanos e monstros; e o Scavenge, que coloca o time de humanos para coletar gasolina e alimentar geradores enquanto o grupo inimigo tenta atrapalhar. É claro que o Multiplayer é o grande barato de Left 4 Dead 2, mas não importa se você for jogar no modo single. Além de manter a diversão com altas doses de sustos, sangue e meleca, você nunca se sentirá sozinho cercado de amiguinhos doidos para chupar seus miolos. 3POR RAFAEL ARGEMON
1LORD NEWBORN AND THE MAGiC SKuLLS . váRiOS ARTiSTAS . Ubiquity Records . 2009 Projeto musical que envolve três das figuras mais criativas da música alternativa atual: Money Mark, conhecido por suas parcerias com os Beastie Boys, além de seus ótimos álbuns; Tommy Guerrero, skatista lendário da Powell Peralta, que ao se aposentar das rodinhas construiu uma carreira sólida como músico, com vários discos lançados; e Shawn Lee, o caçula da história, multi-instrumentista e arranjador de sua Ping Pong Orchestra, além de parcerias com o enigmático Clutchy Hopkins. No final de 2008, os três se trancafiaram durante duas semanas no estúdio de Money Mark, em Los Angeles, com um objetivo: criar uma aventura sonora. Em clima de trilha sonora, o resultado é eclético e de extremo bom gosto, unindo grooves do funk, do soul e do jazz, com pitadas de rock progressivo e temperos psicodélicos. Se uma boa trilha sonora sempre complementa a experiência de um filme, Lord Newborn And The Magic Skulls não precisa de filme para estimular a visão: a audição já se encarrega disso, através dos diversos climas sonoros. indicado para ouvidos com imaginação fértil e aguçada. 3POR DANiEL TAMENPi
1CRiSTALiNA . LuLiNA . Tratore . 2009 Ouvir as 18 faixas de Cristalina é embarcar numa curiosa viagem ao mundo de Lulina, também conhecido como “Lulilândia”. Difícil ficar indiferente. A imersão ocorre quase sem querer. Quando se dá conta, o ouvinte se pega sorrindo ao escutar as letras, batendo o pé ao ritmo contagiante das canções e sentindo um friozinho na barriga por causa da voz suave de menina, que conquista até o mais duro dos machões. O álbum, apesar de altamente psicodélico, seja pelas letras surreais ou pelas texturas sonoras pouco comuns, não demanda grande sacrifício para ser compreendido, pois é pop na essência. Composto por rimas fáceis e acordes simples de violão, além de referências que passam por Júpiter Maçã, Pato Fu, Os Mutantes e até mesmo Raul Seixas, o álbum flui sem maiores solavancos, com direito a vários momentos geniais, boas sacadas e inteligência ímpar. Lulina, alcunha de Luciana Lins, pernambucana de Recife radicada em São Paulo, lançou quase uma dezena de discos caseiros distribuídos em CD-R antes do álbum oficial, uma compilação das melhores canções dos discos anteriores, agora gravadas de forma mais profissional, daí o título Cristalina. Apesar de um tanto longo, percebe-se que o trabalho foi dividido em duas partes: a primeira, que vai até a nona faixa, aposta nas canções mais fofas e folclóricas de Lulina, enquanto o restante segue uma linha mais ácida, permeada por uma fina ironia. São dois lados que se completam, fazendo desse álbum um dos grandes destaques do ano.
3POR GiLBERTO CUSTóDiO JUNiOR
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1REvANCHiSMO . ROGéRiO DE CAMPOS . Amok . 2009 Quando uma obra vem com todas as etiquetas à mostra, recomenda-se desconfiança. A trama é contemporânea, urbana. A ação é envolvente, com cortes cinematográficos – tendência comum à maioria dos escritores novos metidos a ousados (com o atenuante de se tratar um livro de um gênero voltado por excelência à sétima arte, o policial) –, a protagonista tem até trilha sonora composta (“Laura Te espera Com Uma Arma na Mão”, de Stela Campos) e as referências à corrupção policial e à cultura pop agradam o público médio. Tudo isso seria sinal indicativo de fiasco, caso o autor não fosse Rogério de Campos, o editor-guerrilheiro midiático por trás da Conrad Editora, a mais importante editora de HQs do país. O passado de militante esquerdista do autor (“o nacionalismo tem razões que escandalizam a razão”) e o bom conhecimento da obra de autores como Valerio Evangelisti e Luther Blissett/Wu Ming acrescentam um componente de crítica política que agrada tanto aos caretas como aos radicais (“a gente descobre que a verdade da vida está em qualquer jornalzinho tosco, demagógico, de partideco de esquerda”, afirmação que, proferida por um policial federal, soa engraçada), já que se insere em um vácuo ideológico (para os padrões brasileiros) que o empurra para algo conhecido como autonomismo. Mas isso, enfim, é discussão para outro momento. A disputa eleitoreira entre velhos parceiros do passado que na atualidade militam em campos opostos (daí o revanchismo do título e o curioso jogo de falsa verossimilhança com a realidade brasileira) move personagens acossados e bem delineados por seus papéis sociais. Entre eles destacase uma nerd fã de cultura pop (Nick Drake, R. Crumb, Hagakure, Lênin, Lou Reed – o próprio universo do autor) e um policial honesto – personagens possíveis e ao mesmo tempo irreais. Todos tendo que lidar com situações em que a realpolitik os força a lidar com forças nem sempre desejáveis. Nesse cabo de guerra entre projetos pessoais e dinâmicas macropolíticas dispostas de forma mais ou menos bem acabada nesse romance de estreia – graças ao ponto de vista enviesado sugerido – Revanchismo sopra ares promissores ao gênero policial pós-Rubem Fonseca.. 3POR ARTHUR DANTAS
1BK ONE WiTH BENZiLLA . RáDiO DO CANiBAL . Rhymesayers . 2009 É complicado quando os gringos usufruem da nossa música e fazem um monte de besteira. E isso acontece com cada vez mais frequência. A realidade é que eles já dissecaram a música americana e, agora, estão atrás de outras fontes sonoras – como o Madlib com a música indiana ou o Onra com a música vietnamita. Podem prever: a música brasileira estará na lista das mais sampleadas nos próximos dez anos. Neste caso, felizmente , o resultado foi muito bom. Bk One, produtor e DJ conhecido por seu trabalho com Brother Ali, juntou-se ao parceiro Benzilla e criou um ótimo disco de rap, que tem como principal atração os samples de música brasileira. Em viagem ao Brasil, a dupla fez a limpa em sebos e levou o que há de melhor no nosso groove para transformá-lo em beats para nomes importantes do hip-hop rimarem, criando parcerias inesperadas como i Self Divine e Raekwon na faixa “The True & Living”, ou Brother Ali e Scarface em “American Nightmare”, que sampleia “Desengano da Visita”, de Pedro Santos. Rádio do Canibal ainda conta com veteranos como Black Thought (The Roots) e o grupo Haiku D’Etat das lendas Aceyalone, Myka 9 e Abstract Rude, além de nomes atuais do underground como Phonte (Little Brother), Slug (Atmosphere), Blueprint, e outros. O disco ainda tem depoimentos de ivan Tiririca (Trio Mocotó), Caetano Veloso, Tom Zé e Hyldon relatando casos da música brasileira. Bk One e Benzilla deram um bom exemplo de como usar a nossa música com bom gosto e, acima de tudo, respeito. Que assim seja. 3POR DANiEL TAMENPi 92
1SHENZEN, uMA viAGEM À CHiNA . GuY DELiSLE . Zarabatana . 2009 As histórias em quadrinhos sobre os três meses em que o canadense Guy Delisle passou trabalhando como chefe de uma equipe de animação em Shenzen, cidade no sul da China, foram publicadas separadamente em revistas antes de se tornarem o primeiro livro de uma série de “guias de viagem” do autor. Recémlançado no Brasil, Shenzen, Uma viagem à China faz um relato dessa experiência e retrata o cotidiano de Delisle em uma cidade que se transformou rapidamente de uma pequena vila de pescadores para uma megalópole de 14 milhões de habitantes voltada para os negócios. Quem já viajou nas duas outras histórias do autor, Pyongyang, Uma viagem à Coreia do Norte e Crônicas Birmanesas, vai sentir falta das situações bem detalhadas sobre os costumes e o modo de viver dos chineses, mas isso tem uma explicação: apesar de ser bem perto de Hong kong, a cidade é isolada por cercas elétricas e vigiada por guardas armados, o que dificulta a formação de círculos sociais e torna a vivência do autor fria e impessoal. A falta de relacionamentos com outras pessoas fez com que Guy Delisle sentisse diariamente na pele o sentimento perturbador da solidão, que aparece nas falas e nos traços sujos e empoeirados feitos com giz de cera em preto e branco. Mesmo sendo o álbum menos denso da série, foi em Shenzen que Delisle estreou a sua multiplicidade de estilos, que consegue ilustrar desde as experiências mais realistas até as mais fantasiosas. Neste primeiro quadrinho da série, o ponto mais notável é o modo como o artista usa habilmente sua arte para contar suas histórias: além dos desenhos autobiográficos, Delisle agrega aos quadrinhos um roteiro com base sólida permeado por seu humor suave.
3POR
MARiNA MANTOVANiNi
1vOCê
ENCONTRA
ESTE E OuTROS LivROS NA LOJA DA +SOMA
1ENTRE (OuTROS) vOL 1 . váRiOS . +Soma . 2009 Livros/catálogos, quando bem feitos, ainda são a melhor maneira de dar permanência a um projeto de arte. Livros têm peso, lugar na história e não evaporam quando alguém não paga a hospedagem do website. Pensando na publicação Entre (Outros) Vol.1, talvez “peso” seja um termo incompatível com o projeto gráfico leve e sutil, de capa lilás pastel e papel aveludado. Se não é pesado, sem dúvida é um objeto especial e precioso, suporte confortável para os trabalhos de 21 jovens artistas que passaram pelas páginas da seção homônima da revista e pelas paredes do Espaço +Soma, na primeira exposição anual do projeto. De maneira geral, o novo livro apresenta criadores influenciados pela street art e/ou pelo cenário independente, desenhistas antes de tudo, principalmente residentes em São Paulo, mas também de estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Entre os mais conhecidos estão P.Jota, Tinico Rosa, Luciano Scherer e Fernando Chamarelli – familiares ao menos para quem presta atenção ao vibrante panorama de arte gráfica atual. Trabalhos bem humorados e perturbadores, como os de Don Torelly, Dea Lellis, Pablo Etchepare e Rômolo, garantem algumas risadas nervosas durante a leitura, enquanto as diferentes técnicas de nomes como Binho Barreto, Eduardo Sancinetti, Renan Santos e Viti convidam à contemplação. Se Wagner doNasc, Cena 7, Emol e ignore por Favor trazem estilos e propostas que aumentam a diversidade da arte brasileira de raiz urbana, Dimas Forchetti, Lucas Biazon, Mariana Abasolo, Vital Lordelo e Leandro Schereder poderiam ser artistas de qualquer país, no compasso do desenho contemporâneo mundial. Tudo isso no livrinho lilás, com uma página de apresentação e breve análise, mais três páginas com reproduções de obras para cada um dos participantes. Entre (Outros) Vol.1 tem seu lugar garantido nas melhores estantes, mas, por constituir objeto tão agradável aos olhos, por dentro e por fora, provavelmente vai morar sobre mesas, no topo das pilhas de livros legais. 3POR LUCAS PEXãO 1vOCê ENCONTRA ESTE E OuTROS LivROS NA LOJA DA +SOMA
1CALL OF DuTY, MODERN WARFARE 2 (vERSãO PARA XBOX 360)
. infinity Ward . 2009
Primeiro, os fatos: Call Of Duty, Modern Warfare 2 tornou-se, em sua primeira semana de vendas, o maior fenômeno de entretenimento deste ínicio de século, considerando a quantia arrecadada por suas vendas (US$ 550 milhões de dólares). Agora os argumentos: embora o impacto não seja o mesmo causado pelo primeiro Modern Warfare, de 2007, esta nova versão é primorosa em quase todos os aspectos que envolvem a criação de um bom game. Se no primeiro MW os gráficos (até hoje impressionantes) eram ultrarrealistas, em MW2 é perceptível um polimento ainda maior. O cuidado com vidros, reflexos e outras “frescuras” que só gamers mais hardcore perceberão torna o jogo ainda mais imersivo. O sangue que brota na tela quando você é atingido por um inimigo chega a ser desesperador em cenas de muita ação (praticamente o jogo inteiro). A construção dos cenários é por si só um aspecto que deveria ser premiado com um Oscar ou qualquer prêmio que o valha para a direção de arte do jogo. Prova disso são as duas fases que se passam dentro de uma favela carioca. Cada detalhe é muito bem reproduzido no jogo: roupas, vozes, os caminhos intrincados com ruas sem saída, telhados quebrados, casas caindo aos pedaços etc. MW2 mostra algo que já vem acontecendo há algum tempo dentro dos games: chamar o roteiro de “cinematográfico” não é mais um elogio. Os roteiristas da infinity Ward encontraram um tom que vai além do cinema. Talvez os filmes ainda sirvam de inspiração para a construção visual da história, mas não mais para a narrativa. Esta tem uma dinâmica própria, que trabalha em cima de seus próprios clichês e peculiaridades técnicas para chegar ao resultado final. Além do modo campanha, no qual o jogador atravessa o mundo para destruir uma célula terrorista – enfrentando inclusive alguns aliados e se juntando a alguns inimigos –, MW2 conta também com um novo modo chamado SpecialOps, no qual o jogador faz pequenas missões, sozinho ou em dupla, e pontua de acordo com seu desempenho. Obviamente, o grande chamariz do jogo continua sendo seu modo multiplayer, que desde o primeiro MW consagrou Call Of Duty como um dos melhores jogos da atualidade. Novas armas e novas premiações fazem desta versão sem dúvida o melhor shooter multiplayer atual. 3POR RODOLFO HERRERA
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+especial
MELHORES DE 2009
E não há tempo para mais nada! 2009 foi definitivamente pro saco, e pra gente aqui vai deixar muitas saudades. Quer saber por quê? Então vai fundo nas listas de melhores do ano do staff e dos colaboradores da +Soma. 1
2MELHORES . LuCiANO vALéRiO (DESMONTA) Festa 1 . Terças-feiras na Engasgagato + Big Papa Records Festa 2 . Quartas-feiras no ó do Borogodó Filme . Um Homem de Moral . Ricardo Dias Disco 1 . O Alumioso . Di Freitas Disco 2 . Olho China . Doble CO 2MELHORES . DAiGO OLivA (G1) Jay Reatard (melhor show e melhor disco do ano) Bem Vindo e A Partida. Franceses e japoneses arregaçaram no cinema Sanduíche de funghi da Bella Paulista Táxi da alegria Descobrir o real significado da frase “flex your head” 2MELHORES . MARiNA MANTOvANiNi (+SOMA) Exposição do fotógrafo Guy Bourdin no Mis Conhecer a coleção de arte contemporânea de inhotim Margaret Mee na Pinacoteca Show do Radiohead em São Paulo Mark Lanegan e Greg Dulli no Bourbon Street 2MELHORES . ANDRé MALERONKA (viCE BRASiL) BUNiSLEYDE & o Bunismo. Editar a Vice. Várias músicas ótimas de rap brasileiro. Várias! A volta do Casatti + a lista Fistaile Lucky Bastards inc. 2MELHORES . DAGO DONATO (NEu CLuB) Disco . Merryweather Post Pavillion . Animal Collective Dois shows . Yo La Tengo no Pop Montreal e HEALTH no South by Southwest Revelação gringa . Hudson Mohawke Revelação nacional . Soul One Música . “Warm Heart of Africa” . The Very Best
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2MELHORES DiSCOS NACiONAiS . MARCELO viEGAS (CEMPORCENTO SKATE) She Science . Wry Trilha Sonora Intuitiva . Fotograma Money . Money Granada . La Carne (H)our . Barfly 2MELHORES . LAuRO MESquiTA (JORNALiSTA) Mostra . Jean Rouch (em BH, SP, RJ e BSB) Filme . Corumbiara, de Vincent Carelli Show 1 . Dom Quixote de Strauss, pela Orquestra Filarmônica de MG Show 2 . Maria Alcina no encerramento do Jambolada, em Uberlândia Show 3 . O emocionante retorno do Grupo imbuia, em Pouso Alegre 2MELHORES . ARTHuR DANTAS (REDATOR MTv PúBLiCA) Show . Speeq no CCJ Mixtape . Emicida Exposição . Rodrigo Bivar na Galeria Milan Teatro . Till . Galpão . Praça da independência DvD . Coleção Cinema Marginal . Lume Filmes Livro . Gênesis . Robert Crumb
2MELHORES . TiAGO MORAES (+SOMA) Show . Tommy Guerrero no Espaço +Soma Mixtape . Emicida . Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe Exposição . Coletiva “De dentro para fora/ De fora para dentro” . MASP Livro . Vida Boa . Fabio Zimbres Disco . Farm . Dinosaur Jr 2MELHORES . HELENA SASSERON (AG. CARME) Tv . House (5ª e 6ª temporadas) Disco . In Prism . Polvo Banda nova do coração . The Pains of Being Pure At Heart Disco de estreia que me pegou de surpresa e emocionou . XX . The XX Show melhor que o esperado e melhor que o disco . Girls, no Point Ephémère, em Paris
2MELHORES DiSCOS . AMAuRi GONZO (G1) Pra Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe . Emicida Bitte Orca . Dirty Projectors Merriwheather Post Pavillion . Animal Collective Farm . Dinosaur Jr. Aventuras de Zé no Planeta Roça . Psilosamples
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+especial
MELHORES DE 2009
4MELHORES DiSCOS . DANiEL TAMENPi (JORNALiSTA E MúSiCO) Inspiration Information 3 . Mulatu Astatke & The Heliocentrics Strange Arrangement . Mayer Hawthorne Jay Stay Paid . J Dilla Tradition In Transition . Quantic And His Combo Barbaro Vagarosa . Céu 4MELHORES SHOWS DO ESPAçO +SOMA . FERNANDO MARTiNS (+SOMA) kiko Dinucci + Thiago França + Sérgio Machado P.U.T.S. Sábado Nathan Bell Porto SP Underground
4MELHORES . MATEuS POTuMATi (+SOMA) Show . Dirty Projectors no Goiânia Noise Disco . Merryweather Post Pavillion . Animal Collective quadrinhos . Sábado dos Meus Amores . Marcello Quintanilha Livro . O Resto é Ruído . Alex Ross Revelação . Emicida 4MELHORES . TiAGO MESquiTA (CRíTiCO DE ARTE) Um dos melhores dias da minha vida . Minha defesa de mestrado A volta do Grupo imbuia . Muita emoção para os pousoalegrenses Fazer o Blog do Guaciara com o pessoal mais legal do mundo Exposição do Robert Wilson Voom Portraits no SESC Pinheiros “Once Upon a Time”, trabalho de Steve McQueen no inhotim 4MELHORES DiSCOS . RODRiGO BRASiL (+SOMA) Woods . Songs of Shame Death . ...For the Whole World to See kurt Vile . Constant Hitmaker / God Is Saying This to You Bowerbirds . Upper Air Cass McCombs . Catacombs 4MELHORES . RODOLFO HERRERA (+SOMA) Jogo . Call Of Duty - Modern Warfare 2 Disco 1 . I’m Going Away . The Fiery Furnaces Disco 2 . There Is No Enemy . Built to Spill Filme 1 . District 9 . Neill Blomkamp Filme 2 . Funny People . Judd Apatow
4MELHORES . JONAS PACHECO (+SOMA) Esporte . Ronaldo Disco . Farm . Dinosaur Jr. Show . Faith no More Gastronomia . Moqueca de polvo com camarão . Cabana da Celi, Salvador/BA Documentário . Milton Glaser: To Inform and Delight . Wendy keys
4MELHORES DiSCOS . JOSHuA KLEiN (PiTCHFORK) Merriweather Post Pavillion . Animal Collective Wolfgang Amadeus Phoenix . Phoenix Bitte Orca . Dirty Projectors XX . The Xx Two Suns . Bat for Lashes 96
2MELHORES DOCUMENTÁRiOS . LuCAS PEXãO (FiTA TAPE) RE:BOARD . Sesper. (Ele também fez o do Garage Fuzz, que tá foda) Beautiful Losers . Aaron Rose TRANSFER . Antônio Ternurinha (inédito) Captured (Clayton Patterson) . Ben Solomon e Dan Levin Ashes of American Flags (Wilco) . Brendan Canty e Christoph Green 2MELHORES . EDu LOPES (+SOMA/A FiLiAL) Flamengo campeão brasileiro de 2009 Finalizar o ano com a taxa de juros (selic) na casa de 0,60%. Recuperação do MCA (Beastie Boys), que teve câncer. Show do kiko Dinnucci no Espaço +Soma Batalha de solo do Chris Cole vs Dennis Busenitz no The Batttle at the Berrics ALEXANDRE BOiDE (+SOMA) José Serra explica a gripe suína de forma precisa e didática (bit.ly/Vk7gF) Gilberto kassab faz piada sem graça sobre o desabamento da obra do metrô paulista (bit.ly/8Om0Sy) Yeda Crusius toca fogo na cuia e quase é engolida pelas chamas (bit.ly/24mFww) Sérgio Cabral mostra todo o seu gingado no baile funk (bit.ly/7zfRii) José Serra lança slogan da chapa com José Roberto Arruda: “vote num careca e ganhe dois” (bit.ly/6Ysjj8)
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2MELHORES SURPRESAS . JANAiNA FELiX (TANGERiNA) Lei Anti-Fumo Show do Onda Vaga no Niceto, em Buenos Aires Christoph Waltz em Bastardos Inglórios In And Out of Control . The Raveonettes Publicação de Retalhos (Craig Thompson) no Brasil 2MELHORES DiSCOS . DEBORA PiLL (FORTES viLLAçA) Uhuuu! . Cidadão instigado Sem Nostalgia . Lucas Santanna Iê Iê Iê . Arnaldo Antunes No Chão Sem o Chão . Rômulo Fróes Vagarosa . Céu 2FiLMES QUE MARCARAM 2009 . ALEXANDRE CHARRO (+SOMA) O Inferno de Clouzot (2009) . Serge Bromberg e Ruxandra Medrea The Wild Blue Yonder (2005) . Werner Herzog Anticristo (2009) . Lars von Trier Stalker (1979) . Andrei Tarkovsky Salò (1975) . Pier Paolo Pasolini 2MELHORES . STuTZ (+SOMA) Show . iRCAM . 43º Festival Musica Nova, no Sesc Vila Mariana Disco . The Empyrean . John Frusciante Livro . Eclesiastes . Ed. Loyola . Autor Desconhecido Bar . Cachaçaria Moendas . Pres. Altino Símbolo . Caveira
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Pintar . Rua Cotoxó . 110 São Paulo . SP www.pintar.com.br
Alavanca . www.alavanca.art.br Centro Cultural da Juventude . Av. Deputado Emílio Carlos . 3641 Vila Nova Cachoeirinha São Paulo . SP ccjuve.prefeitura.sp.gov.br Converse . www.converseallstar.com.br Domino . www.dominorecordco.com Editora Dardo . www.dardomagazine.com Ezekiel . www.ezekielbrasil.com Festival Goiânia Noise . www.goianianoisefestival.com.br Forumdoc . www.forumdoc.org.br
Olldog Filmes . www.olldog.com.br Galeria 24 de maio . Rua 24 de maio S/N Centro. São Paulo . SP Georges Pompidou . Place Georges Pompidou 75004 Paris . França www.centrepompidou.fr Jardim Miriam Arte Clube . Rua Maria Balades Correa . 8 Jardim Miriam . São Paulo . SP www.jamac.org.br Motown . www.motown.com Museu de Arte Moderna da Bahia . Av. Contorno S/N Solar do Unhão . Salvador . Bahia www.mam.ba.gov.br Nike Sportswear . Praça dos Omaguás . 100 Pinheiros . São Paulo . SP www.nikesportswear.com
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+Soma . Rua Fidalga . 98 Vila Madalena . São Paulo . SP www.maissoma.com Stones Throw Records . www.stonesthrow.com volcom . www.volcom.com
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BEM VINDO AO TIME, ERIC KOSTON. BEM VINDO AO TIME, ERIC KOSTON.