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+SOMA . #20
Ao abrir a porta, eu esperava tudo menos aquela cena. No canto da sala, uma luz débil iluminava o que parecia ser um rosto, mal impedindo que o breu completo dominasse o ambiente. Aos poucos, uma cabeleira branca se desenhou à frente da luz, e o reflexo da tela de um celular surgiu nas lentes grossas de um par de óculos. Demorou alguns segundos para que alguém finalmente apertasse o interruptor, tornando visível J Mascis, o dono dos longos cabelos brancos. Imerso no mundo da sua luz portátil, ele não esboçou reação. Em lados opostos da sala, Lou Barlow e Patrick “Murph” Murphy estavam deitados sobre as penteadeiras do camarim, aparentemente sendo acordados pela invasão luminosa que tentavam em vão conter com os braços. Continuaram assim, inertes à minha presença, até que Brian Schwartz, manager do Dinosaur Jr., anunciou que era hora da entrevista. Murph foi o primeiro a se levantar e me cumprimentar. Lou demorou mais um pouco, e me dirigiu pouco mais do que um grunhido. Mascis só se juntou a nós quando a conversa já andava, após a insistência de Schwartz. Ser apresentado dessa forma completamente displicente a uma banda que sempre sonhamos entrevistar só podia ser um bom começo. Assim, longe de qualquer clichê esperado sobre camarins de bandas de rock, o Dinosaur Jr. recebeu a Soma para uma entrevista exclusiva, horas antes de seu show no Coquetel Molotov 2010, em Recife (a primeira vez que o trio pisaria num palco sul-americano). Além do show em Recife, acompanhamos as duas apresentações em São Paulo, e você confere o resultado nas páginas seguintes.
Outra personalidade curiosa é a do pintor e escultor Alex Hornest. Premiado e exibido no mundo todo, Hornest divide o mesmo corpo com Onesto, grafiteiro da geração de Vitché e OsGemeos, que mudou a história do graffiti brasileiro no mundo. No seu ateliê na Bela Vista, em São Paulo, Hornest e Onesto falaram com a Soma sobre a crítica à relação dos homens com os animais, sobre os tempos de colégio Carlos Campos e sobre o casamento eterno (de ambos) com a capital paulista. Do outro lado do Atlântico, o grafiteiro português Alexandre Farto, mais conhecido como Vhils, também destrincha uma obra igualmente pioneira e atrelada à sua cidade, Lisboa. Seu trabalho é tão marcante, novo e tecnicamente ousado que é dele a capa desta edição. Uma dose considerável de ousadia também permeia o ensaio do fotógrafo nova-iorquino Thomas Dozol, que fez uma série de fotos simples e reveladoras de amigos em situações intimistas. Além de ilustrar as páginas da revista, Dozol também expõe durante o mês de novembro no nosso Espaço Soma. A Soma 20 traz ainda Autolux, A Banda de Joseph Tourton, Izolag, Mechanics, Aloe Blacc e Jim Avignon. Personalidades diferentes, com trabalhos diferentes em áreas diferentes. Ser igual aos outros realmente não é a nossa vocação. +SOMA
4CAVALO. ALEX HORNEST, 2008. MADEIRA, FITA ADESIVA, PAPEL, CORDA E TIJOLOS. 4
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+CONTEĂšDO
Shuffle . Stephan Doitschinoff
Jim Avignon
Izolag
Mechanics
Aloe Blacc
Dinosaur Jr.
Vhils
Grayson Gilmour
Autolux
A Banda de Joseph Tourton
Seleta . Joel Stones
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16
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90
Thomas Dozol
Alex Hornest
Quem Soma . Bocada Forte
Obras Primas . Kool x Snoop
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Entre (Outros)
Quadrinhos
48
Reviews
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Billabong Oscar Freire - t. (11) 3081 27 98
O projeto +Soma é uma iniciativa da Kultur, estúdio criativo com sede em São Paulo. Para informações acesse: maissoma.com KULTUR STUDIO . +SOMA Rua Fidalga, 98 . Pinheiros 05432 000 . São Paulo . SP kulturstudio.com REVISTA SOMA #20 Novembro 2010 Fundadores . KULTUR Alexandre Charro, Fernanda Masini, Rodrigo Brasil e Tiago Moraes Editor . Mateus Potumati Editor Convidado . Alexandre Boide Repórter . Marina Mantovanini Fotografia . Fernando Martins Ferreira Projeto gráfico . Fernanda Masini Arte . Rodolfo Herrera, Jonas Pacheco e Natalia Lucki Conteúdo áudio-visual . Alexandre Charro, Fernando Stutz e Fernando Martins Ferreira Colunistas . Tiago Nicolas, Ricardo “Mentalozzz” Braga, Dr. Jacob Pinheiro Goldberg, Pedro Pinhel, Reberson Alexandre, Nik Neves e Gerlach. Gostaríamos de agradecer à Ana Garcia, Jarmeson Lima, Adryana Thyara e Coquetel Molotov/Conexão Vivo; Lou Barlow, Brian Schwartz, Amy Abrams, Jon Fetler e Red Light Management; Diego de Godoy, Jimi Dams e Envoy Enterprises; Roberta Cajado, Holger Beier e MCD; James Chang e Nike Sportswear; Ananda Nahu e Rudah Ribeiro; Nuno Barbedo; a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha, anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado! Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início. Capa . Vhils Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.
Periodicidade . Bimestral Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros
Publicidade . Cristiana Namur Moraes . publicidade@maissoma.com
culturais, shows, eventos e casas noturnas. Veja os endereços em: www.maissoma.com/info
Para enviar sugestões e material para review, entre em contato através do e-mail redacao@maissoma.com.
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Impressão . Prol Gráfica Tiragem . 10.000 exemplares
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+COLABORADORES
Daniel Tamenpi
Sean Edgar
Caroline Bittencourt
Jornalista, pesquisador musical
Escritor e fotógrafo, curte tirar
31, fotografa desde os 23 anos.
e DJ especializado em soul, funk
uma luta com seu cachorro. Divide
Natural de Jundiaí, vive em São
e hip-hop. Escreve o blog Só
seu tempo entre o Brooklyn e
Paulo há 12. Em 2008 fotografou
Pedrada Musical, onde apresenta
Columbus, Ohio. Colaborador da
os festivais de verão pela Europa
lançamentos e clássicos da
Paste Magazine, da Self-Titled
e agora só quer isso da vida.
música negra.
Magazine e do Stereogum.com.
Raquel Setz
Diego de Godoy
Higor Coutinho
Jornalista musical apaixonada
Diretor, roteirista, 40 anos (quase
Faz o blog Goiânia Rock News e
por barulhos, experimentações
41), portoalegrense radicado em
acha que a intenção é a lingerie
e esquisitices em geral - e por
SP e correntista do Itaú desde
da ação.
melodias bonitas também, porque
1992. E só.
não tenho coração de pedra.
Rafael Argemon
Ananda Nahu
Lauro Roberto
Jornalista, cocacólatra, toxicômano,
Artista baiana, seu trabalho une
Nos anos 90 Lauro Roberto foi
cinéfilo, gamer e não vive sem
elementos nordestinos como tecidos
figura de primeira grandeza nos
geleia de mocotó de copinho.
multicoloridos e a cultura afro com
fanzines nacionais. Morreu em 1999
um background de arte urbana,
e, desde então, assombra pessoas
especialmente stêncil e tipografia.
de gosto duvidoso com suas tenebrosas caixinhas de leite.
Cintia Yokoyama
James Chang
Reberson Alexandre
Entusiasta por arquipélagos e suas
Fotógrafo em Nova York. Quando
Começou a estudar por conta
culturas locais, jornalista por ocasião,
garoto, frequentou a escola de arte,
própria Tarô e Economia, pois
mas faz um excelente temaki.
o que o impediu de crescer tendo
acredita que são as duas linguagens
uma vida normal. Quando não está
que dominam o mundo.
fingindo ser artista, gosta de uísque, mulheres e surf rock dos anos 1960.
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COM STEPHAN DOITSCHINOFF POR TIAGO NICOLAS FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
UM DISCO QUE VOCÊ PÕE PRA IMPRESSIONAR UMA MINA Lionel Hampton – Blues For Gerry: Lionel Hampton Sessions. Esse grande clássico do Hampton é a trilha sonora perfeita pra colocar a banheira pra encher, jogar os sais de banho e abrir aquele vinho rosé.
STEPHAN DOITSCHINOFF, ou Calma. Artista plástico, bon vivant, sangue truta, sobrenome louco. Viajante desse mundo, porém sempre almoçando aos domingos na sua vila, a Mariana. Um cara cheio de ideias, piadas e discos. A Shuffle orgulhosamente troca uma ideia moderada (e cara-de-pau, como sempre) com ele. Doitschnoiff na fita!
UM DISCO GOSPEL Blind Willie Johnson – Dark Was the Night. Nunca fui de ouvir blues até ouvir esse disco do Blind Willie Johnson e pirar no clima, na atmosfera, no jeito como ele canta e toca. Depois fui ler a biografia dele, que é igualmente dramática. UM ÁLBUM PRETO Crass – Christ. Acho que a Gee Vaucher é a responsável por grande parte da estética do punk, e muita gente copiou o estilo que ela desenvolveu pro Crass. O trabalho pessoal dela também é genial. DISCO QUE SÓ É LEGAL QUANDO VOCÊ TÁ BÊBADO Ace of base – Happy Nation. Não é mais, mas na época eu achava. Quando eu morava com meu pai, ele sempre tinha uns jantares de trabalho e às vezes me chamava. Uma vez ele foi jantar com uns caras, acho que era 94 ou 95, e um deles, um chileno, tinha ido num show do Ace of Base em Santiago e ficou falando que as vocalistas eram sensuais e tinham uma grande presença de palco, com belas coreografias e figurino.
2TIAGO NICOLAS É 1/6 DA CHAKA HOTNIGHTZ
UM DISCO QUE VOCÊ PÕE PRA IMPRESSIONAR UM CARA Body Count – Body Count. Já fui em muito show violento na vida, mas o primeiro do Body Count em São Paulo foi insano. Os seguranças da gangue do Ice-T ficavam de costas pro público de braços cruzados, mas estavam de olho em tudo. Um moleque magrinho subiu no palco mas, quando chegou do lado do Ice-T pra tentar falar alguma coisa, um dos seguranças veio correndo e deu um soco com as duas mãos ao mesmo tempo que lançou o guri pelos ares. O coitado caiu no meio da roda, onde foi esmigalhado pela massa. DISCO PRA OUVIR NA FAZENDA DO JIMMY PAGE Mike Patton – Mondo Cane. Uma vez rolou um churrasco na casa de campo do Jimmy, e ele preparou um molho á moda italiana, tipo uma alichella. Acho que combina bem com o Mondo Cane.
UM DISCO QUE VOCÊ ROUBOU Ataque Sonoro. Roubei da minha irmã mais velha quando ela foi embora de casa, em 91. Escondi o play na cozinha pra ela não empacotar junto com o resto das coisas. DISCO DE ALGUM POLÍTICO (OU DE ALGUÉM QUE JÁ SE CANDIDATOU PRA ALGUM CARGO) Dead Kennedys – Fresh Fruit For Rotten Vegetables. Foi o segundo disco que eu comprei na vida, lá na Woodstock. Depois fiquei sabendo que o Jello tinha se candidatado a prefeito de LA, ou governador da Califórnia, não lembro. UM DISCO QUE EU ROUBEI DO DOITSCHINOFF MAS QUE JÁ SE FOI COM A POEIRA DO PROGRESSO Descendents – All.
UM DISCO QUE FOI FEITO NA VILA MARIANA Polara x College – Não Use o Termo. Acho que pelo menos a parte do College foi feito na Vila. Eu fiz a arte desse disco, e na época curtia fazer colagens com durex e depois pintar com acrílico em cima. Usei essa “técnica” pra fazer essa capa, só que bobeei e, quando fui escanear a colagem, acho que o calor do scanner derreteu a tinta, ou a cola das fitas, e acabou ficando metade lá grudada no vidro. 15
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DINOJR. SAUR
Iluminação Pelo Barulho
POR MATEUS POTUMATI FOTOS DE SHOW POR FERNANDO MARTINS FERREIRA, CAROLINE BITTENCOURT . RETRATOS POR JON FETLER E DIVULGAÇÃO
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como unta, é rg e p a que faz um ente o o você literalm ó hoje o s Quand d . e n e u a d t q a mald Acho terpre . r in a o , t o.” p s ra m o é v s p ão res pala si me esmo, n r cada ão tem eito de p ra s u re g assim m tasse entende as vezes ele n e a le s falar en muit – que e do ou el para se ele t endo. E lasanha va me testan nfortáv iz a o d c m á u t is s a e a c t vez em m s re a e o a ir d o p e você e prim sentin o que scis nã la e a lg s e s a M p á t J e ir s d n e ele e egu do de sub car qu edaço criava s nte a hora u a um p enta me expli m o ig u t s s a a a , asta to m wt ecife silábic falou b . monos Enquan o –, Lou Barlo s antes, em R esforço r s. “E ele postas ã ia a s u t d m e re n , a u o m a d v rg o a n e d a de d p com lí u o t s le q o a n e minh sias d hando ecime o Sul, ssincra mas de reconh desden na América d io u h m p id lg e u a s s a o s o o apó com sta n de J um palc s de silêncio nismo insiste, eixado speciali o”, ele e um e e o laco ico e tenha d ada é do s d u o re q o m p ã r is ô ç u a c r s ra in m i ló ,n la e r a c lc u o ir e q P fo carre cê, fi seja o, a d , feito. das de com vo ndente ou nã is satis squis”) alidade a a é n c o M é m s “ d r a e s ia ix e ê p c e r c n t a d s u u e e e n s d d m Con o de e pro ngo JR. e mais: s onhecid ma nuvem d ão ao lo OSAUR u do DIN ascis (não erre mesma situaç e outro lado c do r e s t n re a o M na de m ndad a porqu fu g e s e t re Donald revistadores n r ro e a o b c sens d mem pecialm sádico, se en ent os três stranho , e vários vez. Es h io p a m r e ir u u e em eM rto e prim r afiado m ele, Barlow sconfo igual à que de e humo o d c m r o e s la n ia a e c F os ar. riên nça no a expe pura. 1 insegura Jr., é assim: um bipolaridade ur m em Dinosa alterna ade se id im t in
“É
os que são term or sinal, p i uma ”, o a F h . s tran e os trê tr ade “es n id e m to ti sessão in en forto e uma ob cionam is e do rela uto de Descon fr e , rt a ta p ia iu Masc ed m boa , que un sa e im 0 n 7 te s definira e o in i n l o la, sa sica ound. F rock do ade mu Deep W ou’re e pelo identid o re o m c 8 ra 9 5), Y a rd osaur (1 pelo ha in eles form D o u d n o mútua g a á uas cri 2, qu ores de cis, que em 198 os divis e J Mas s de c d is Barlow d to ), n ra le e çõe 88 s para g Bug (19 a pelo ta te d e n ) ra e 7 e u 8 d o li y nd, infl Me (19 l até Be cano e ll Over origina e-ameri l io rt tr o Living A n o u k m sica om un midade vados c ria do p ssa inti te e icos gra na histó n , n e a ú ri m s á a ê in im (e os tr extraord soal min bandas esar de nto pes rph e cis, Mu Mas, ap ioname s c a ). 7 la M 0 , re s 0 o m a n u a de 2 m 16 e e iciais d d eu anos in depois convert uando, ário: os r uma não se q tr o , n p 5 o s 0 c o 0 o d A l até 2 s, causa i juntos. razoáve dimento a tocar rística fo esenten caracte oltaram d v r w o o E p . rl s rvosa o ssa o e ã Ba d n ç a a e s rc ic a ri n c u foram m de com s como a banda u vário tensos, icômica ele jogo de trag almente a e u re id q c s a m to p we n ,e o e 7 rl inca 8 m a o 19 B m e or otel, em , em qu sável p is rto de h seguinte respon o, depo um qua no ano m w e do palc o h a h s rp im c ro m u ta m u ri e de Mu ir O s . is ara nto m Masc úsica p strume e in m s s a r to u u m e je u s O ob te m com no livro damen duelara etalhes d delibera u m o o g Mascis c a os estr relatad rimeiro tos são ad). que o p os os fa el Azerr b a h m ic (a M o e d d n , u e g if e inda L s Your turnê. A ould Be zer uma fa o m Band C e m o c rlow ão sabia rava Ba novo, n ”, lemb la nte era o difícil pais pe e it s g u o a m ss i o o n e fo “Quand nossos asa dos s dendo, c o n a d d re s p o o a d os que saím ues, sain estávam eira vez s moleq i a prim “Éramo fo , e d .” a a Recife. a verd estrad a vez. N ireto pra primeir ma fomos d E s) o is , causara ! (r , por fim quartos o deria g lo p iá e qu o od evento ia para c m p u é in m b o re ,e de e m 1989 díocre s aturida arlow e livro me mas B Essa im m o u ri p d m a ele, ró e m à cas ão do p egativo ra n fo lo h p ; demiss ra o Murp o exem stava fo ascis e do com ue ele e oal – M q s ss ser usa a e tr rp te s le ação in rto por todas a ra ao ce er com comunic contece iram diz a u g e e u s q n oo não co sabend só ficou baixista 18
4O TRIO
EM 87
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um amigo comum, dias depois. Com a saída de Lou, que deu início a uma carreira também muito influente com o Sebadoh, o Folk Implosion e depois como artista solo, J Mascis seguiu lançando discos muito bons, agora por uma major (Sire Records / Warner). A saída das indies (Homestead e depois SST), como era de se esperar, foi vista por muitos como traição. Em resposta, Mascis disse, em entrevista a Azerrad: “Eu gosto do Greg Ginn (Black Flag/SST) e tal, mas eles não me pagavam. Da Homestead eu não gostava, e eles eram uns cuzões – não pagavam e não estavam nem aí. E a gente ainda tinha que achar esses selos indie que te roubavam melhores que a grande gravadora que não te roubava”.
“As ente pessoas ge n t n d i a m n ã o é p o c e fa z i a o q u e a Dois desses discos da uma a. Har naquel fase Sire/Warner ainda e ra c o i s a , d c o r e e a contaram com Murph e n t ã o u t ra , e p u n k ra na bateria em algumas u m a o . . . O u o ro c k faixas (Green Mind, outr coisa, você er de 91, e Where You a .” ( o a Been, de 93) e nos L o u u e ra outros dois Mascis, ele B a rl ow ) próprio um grande baterista, tocou quase todos os instrumentos (Without a Sound, de 94, e Hand It Over, de 97). Desdenhados por parte dos fãs antigos (a parte chata, diga-se de passagem), ranhetas com a mixagem mais limpa, que flertava com os anos grunge, com as melodias grudentas e com os solos de guitarra ainda mais compridos, esses discos foram o mais perto que o Dinosaur Jr. chegou do sucesso mainstream – J Mascis deixaria Tiger Woods no chinelo se jogasse golfe toda vez que a MTV passou o clipe de “Feel The Pain”. Mascis parou oficialmente de lançar álbuns sob o nome Dinosaur Jr. em 1997, passando a produzir discos solo (o que ele já vinha fazendo desde o ano anterior) e trabalhando em outros projetos, como a veterana banda de doom metal Upsidedown Cross e o projeto de stoner rock Witch, com quem ele ainda se apresenta esporadicamente. Murph, por sua vez, tocou com o Lemonheads e em projetos como o Sons of the Corporate Dog (com o ex-Deep Wound Charlie Nakajima).
se é comum devotos criarem músicas para seus gurus. “Essa coisa dela tem muita música, ela canta todas as noites”, ele explica, em um nível ainda mais elementar do que o meu questionamento. Mas o assunto aparentemente o anima: “Várias pessoas compõem para ela cantar. Como eu toco, decidi dedicar alguma coisa a ela, e quem sabe outras pessoas também pudessem se identificar. Essas pessoas [que participam dos cultos] não são fãs do Dinosaur, vêm de vários lugares diferentes, tipo donas de casa mais velhas.” A observação me faz rir, e ele esboça um meio-sorriso. Apesar de a músicas não serem direcionadas para fãs da banda, tirando as letras devocionais elas soam bastante parecidas como as canções seculares de Mascis. Coincidência ou não, o disco para Amma saiu no mesmo ano em que a banda voltou, durante uma pausa na reunion tour. As práticas devocionais de Mascis teriam ajudado a reunir os três novamente? “Tenho certeza que sim”, ele diz. Depois de alguns segundos pensativos, em que o som de sua boca mascando chiclete é a única coisa ouvida na sala, ele completa, ao melhor estilo J Mascis: “Não sei exatamente como”. Murph, o mais prestativo desde o começo da entrevista, acode: “O maior responsável foi aquele cara ali (aponta para Brian Schwartz,
Um dos discos solo de Mascis, J and Friends Sing and Chant for Amma (2005), é dedicado à líder espiritual hindu Ammachi – conhecida como a “Santa dos Abraços” –, de quem ele é devoto desde o final dos anos 1990. Há dezenas de vídeos no Youtube de cerimônias de cânticos comandadas por Mascis e seus amigos. Do alto de minha ignorância sobre o assunto, pergunto 21
manager de J Mascis e do Dinosaur Jr.)”. Lou desenvolve: “O J tinha finalmente recuperado os direitos de relançar os três primeiros discos, e o Brian disse que achava uma boa ideia a banda voltar para ajudar na promoção. Pelo que eu entendi, o J não estava muito a fim (risos). Mas ele autorizou o Brian a nos chamar, e nós aceitamos. Foi assim”. Em uma entrevista da época, eles disseram que, como de costume, não houve muita conversa, muito menos lavação de roupa suja (que afinal já havia sido feita pelos três – separadamente – no livro do Azerrad). Assim, com frescura zero, o trio voltou ao estúdio e começou a tocar. Se os três hoje não são exatamente comadres que trocam segredos pessoais entre si (o que provavelmente nunca serão), é evidente que algo mudou entre eles. E uma parte grande disso é cortesia inegável da passagem dos anos. “Estamos bem mais velhos e aprendemos a nos adaptar”, analisa Lou. “Não sabíamos como fazer uma turnê naquela época, e agora sabemos. É simples assim.” “É muito diferente hoje, não dá pra comparar”, concorda Murph. “É muito melhor. Sabemos o que esperar quando vamos viajar, então as coisas são fáceis.” Os dois parecem pensativos por um momento quando J, quieto até ali, quebra o tom pragmático com um aparte inesperadamente pessoal: “E eu gosto mais de tocar hoje em dia do que naquela época”. Eu, Lou e Murph olhamos para ele, como a esperar o desenrolar de uma epifania, que, claro, não virá. Antes que o silêncio se prolongue, comento sobre outra entrevista, dada na Inglaterra nos anos 1980, em que ele diz achar a guitarra um instrumento de maricas. “É, eu só tocava por tocar”, ele diz. “Pra ter uma banda e poder fazer música.” Insisto, perguntando o que mudou, e ele então repete a mesma resposta dada ao jornalista britânico duas décadas atrás: “Hã... Eu não sei”. Como as respostas dele, meu arsenal de perguntas se esgota. Procuro então por um assunto novo nas minhas anotações, mas antes que eu continue Lou devolve a entrevista ao senso prático: “A gente tem coisas que funcionam de verdade, isso faz muita diferença. Quando começamos, ainda estávamos experimentando com equipamento. Hoje nossas coisas são muito melhores.” Murph acrescenta: “Também estamos mais à vontade com o nosso som, o que torna mais divertido tocar”. Sem mais revelações de foro íntimo à vista, Lou fica livre para encerrar o assunto no mais puro determinismo material. Ao lembrar de outro detalhe ausente nos primeiros anos, quando a banda sobrevivia na estrada com uma ração diária de 5 dólares, ele reconhece: “E temos muito mais dinheiro, isso sem dúvida é importante”. 22
s e l e sã o a m , l n n e ta stead eu o n i G J . Verdade, e o Murph é ã e G re g D a H o m z õ e s – n o o professor deles. (Lou ri d s c u a í . E a l os o s t o ga v a m . n g u muito) u E m “ e p a e l e s e ra m v a m n e e s s e s s e a SOMA . Vocês são filhos m o ta achar e e nã s , u e a q de professores, então o v s gos t a v a m e n ãi n h a q u e m e l h o re o u b a v a .” devem ter isso no sangue (risos). p a gae a i n d a t o u b a v a m n ã o t e r M . Isso. (Fica sério) E g e n t q u e t e r d o ra q u e z e r ra d ) todo mundo agora é pai, então... i n d i e d e g ra v a i c h a e l A Soma (para J Mascis) . Quantos filhos você tem? M g ra n a s c i s , a J . Um garoto de 3 anos. (J M SOMA . Uma das frases-símbolo dos anos 1960/70 era “Hope I die before I get old” (“espero morrer antes de ficar velho”), e nos anos 1990 isso mudou pra algo como “acho car o t m m rto e mbé que nunca vou ficar velho” ou simplesmente e a t b o ê c , voc -des o eu “não vejo futuro/não tô nem aí com isso”. Acho u até ecém m e r o d r c n e , e praz rpree o. o qu u d s id que tem algo a ver com a cultura do skate e do n n ) Esse a u nt re em nê i ont s (co saur a tur punk. Vocês tocam juntos há quase 30 anos e Dino 05 fo junto r 0 o e 2 d z que as fa inais s são mais velhos do que eu... ache apen s trê s orig o a e r d u õ e o o is t o ev cheg men a bjetiv w ç LB . (Interrompendo) Sim, nós somos (risos). as pr o n lo r o ela Ba 005, ovo, aor Lou Em 2 SOMA . ... Mas vocês fazem basicamente o l par rial n oca, a e t n p s a é a io m oc s. Na músic ravar prom mesmo tipo de música de antes. Já pensaram disco ouvir de g s , e o ia is d ir e e depo da id stava prim s r em como é envelhecer dessa forma? o o a g n h m a ra ém sden inco rega ingu a de as. C LB . Não é uma grande preocupação. ncar ue n lh e q s e e v e o s s s d os es 009) anda dizen 2 b m ( Eu cresci numa época em que a gente e e iz Farm itas d a. “F s”, inéd 07) e strad show simplesmente não achava que ia viver. 0 e 2 is a ( a n m a nd azer rnês band Beyo Havia aquela grande ansiedade pela der f as tu ter a o it n p u a a m , ar de m ssim os p endo a iminência de uma guerra nuclear. Eu fritei v z r o a f a s n s s ntinu ar.” O tamo disco os co nessa ansiedade, e depois disso nunca a toc . “Es r e m a e it p r s e s J adm nova , e qu eview mais pensei a respeito (risos). Mas o ente am r sicas r ú m e a b m s v e s no s rec velho e emo t a Who fez essa música, e obviamente a r s n n e o e e u d p q órfã ão a mas totalm banda continuou por muito tempo. uito cos n rítica q c is é d a . s d m dois m um ados plica a x r m Ou seja, a frase não significava nada e s e s d sia io en rópr entu mo r ai les p (risos gerais). Sei lá, tem tanta gente v e s, co o e o p u m q tem s, co soas tão mais velha que nós, centenas de fã s pes o a v d o n aioria vem. de bandas veteranas que ainda m jo A a m W. s um é be amo ARLO fazem música. The Cure, Nick Cave, hoje n B r s o U w t s LO s sho o, no que nem eram dos anos 1960. As osso ver. açad bri r r o g e c n s u aos n e e q eu d ada H.É e c pessoas simplesmente não param. o P d le d R o o n MU qua Gost eam que. ra de Já me perguntaram coisas do a qu b a le d n d o m a n m le a b e bem ma b s a u a so m r r tipo “como você consegue t Is e ja u . e o s Eu LB que lvez nes. tico, som te ta continuar?”. Mas quem para, amo ís n R r m e e u s g t o c s ea cara rra temo ar qu porra? Você consegue pensar som Nós guita . m a ir pens u v m u , , com rer o )... Te ificar e a t em alguém em particular im u n it s q s e s e a id vão os ão (h il de ções que era muito bom e se ovad a raz É fác n . m e gera .. r u a s lg band da tamo por a aposentou totalmente? a da s sin e ain que, d u o a n q g e o s , a pe ssoa m qu or iss MURPH . E, se você para, as e o p c p é do J s z a e fa o qu lgum ico, e pessoas querem que você . Ach ara a o é ún p d e o o ad po t s, nã ovid o t n volte (risos gerais). o r o o tem a m ses g ais. os co os). m es SOMA . O clipe de “Over dem e is soam é s r s ( o s fo hows s). Is não It” tira um pouco de sos s (riso E, se s . o o d n S I an ue os SC oxim les q ém n r sarro disso, como se e J MA u p g a o ã in ia se is). S ria n estar gera have e s t o n is r A ge . fim ( LB . ento te do iva. hecim men t n a a o t a c n le mn ) or... antê os p J riem nos m s são ávid ou e L ( !” le e ento M.E hecim nk! “Con to pu e LB . im n c e h on M.C
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dissesse “não somos velhos, mas colocamos dublês pra fazer as cenas” (risos). Você ainda anda de skate? J . De vez em quando. Meu filho começou a brincar com o skate agora. Soma . E você está ensinando ele? J . Não, eu só acompanho. Não sou bom professor de nada. A se levar em conta o público no show de Recife, a observação dos três não poderia estar mais correta. No teatro da UFPE, a frente do palco foi tomada por garotos e (muitas) garotas de menos de 20 anos. Já nos dois shows de São Paulo (sem contar o extra na praça, que eu também não vi, e o show de Lou Barlow na Soma, um capítulo totalmente à parte), o clima foi mais o de fornecer a desculpa perfeita para caras de 30 e poucos se comportarem como adolescentes de 15. Molecagem do mesmo jeito.
+ Nos três shows, com setlists semelhantes, a banda tocou músicas de todas as fases, das mais novas a faixas obscuras dos primeiros discos, além de lados B como o cover de “Just Like Heaven”, do The Cure. Sons mais polidos e melodiosos como “Over It” e o hino noventista “Out There” (para compensar a ausência de “Start Choppin”, muito pedida pelo público) se comportaram bem em meio à montanha de fuzz e barulho de “Mountain Man” e “Forget the Swan”, do primeiro disco, ou “Little Fury Things” e “Sludgefeast”, do segundo. “Tem sido ótimo”, diz Murph. “As músicas novas acabaram se misturando muito bem com as antigas. E, agora que está tudo junto, parece um catálogo só.” O barulho, na verdade, exerce aí um papel de coesão. Só quem já viu um show do Dinosaur Jr. sabe o volume de som que é produzido em cima do palco. A sensação física – o ar e a vibração do ambiente atacam como um linchamento no qual nunca se perde a consciência – chega a se equiparar à auditiva. Uns 80% disso sem dúvida se devem à guitarra de J Mascis, uma união ainda hoje improvável entre pegada e solos de hard rock, levada de hardcore e um muro de efeitos que parte das lições de um Wipers e de um Hüsker Dü para chegar a níveis abissais, que descem mais fundo até do que um My Bloody Valentine. Evidentemente, a coluna de seis caixas e três cabeçotes Marshall fazendo uma concha (um casulo?) atrás de Mascis também influencia no resultado. Menciono que o Dinosaur Jr. é considerado um dos pais da cena shoegaze inglesa (Ride, Lush, Slowdive), e Lou vai além.
LB . Não só isso, mas dá pra ouvir até naquela porra de música do Radiohead. SOMA . “Creep”? LB . Isso. É tão na cara! Eles ensaiavam no mesmo estúdio e usaram os mesmos caras com quem gravamos. (Imita com a boca o guincho da guitarra antes do refrão.) Quando ouvi a música, pensei na hora “uau, isso aí veio da guitarra do J”. Só colocaram um overdub que salta na sua cara. Ninguém deixava fazer isso na nossa época, nenhum engenheiro de som que tivesse respeito por si mesmo permitiria que as pessoas fizessem isso. O J só conseguiu fazer porque nós mesmos produzimos nossos primeiros trabalhos e ele tinha uma ideia específica do que queria. Ele fez acontecer. Nós também escutávamos muitos discos de punk rock que tinham um som bem ousado. Transferimos isso para as nossas músicas. E essas bandas inglesas, os produtores ingleses, pegaram isso. SOMA . Você teve que brigar muito com os produtores para fazer o que queria no começo? Como eles queriam que você gravasse? J . Eles nem queriam estar lá (risos). Achavam a gente uma merda. É difícil se comunicar com esses caras que não sabem de onde você vem e não estão nem aí. Então você tem que fazer sua vontade prevalecer. LB . Os caras do som odiavam a gente, todos eles. SOMA . E hoje eles gostam mais? LB . Claro. Se você faz sucesso… As pessoas não entendiam o que a gente fazia naquela época. Hardcore era uma coisa, punk era outra, e o rock então... Ou você era uma coisa, ou era outra. Tudo era diferente. Hoje em dia, os técnicos de som são basicamente punk rockers. Você pode fazer uma turnê pelos EUA e em todo clube vai ter um cara punk que cresceu ouvindo punk rock, então ele – ou ela – vai entender. Há vários técnicos de som que nasceram no ano em que lançamos nosso primeiro disco! Quando começamos havia tantos tipos diferentes de música, era tudo tão incrivelmente rico. Quero dizer, sempre é, mas naquela época, quando paramos de tocar punk rock, ouvíamos de tudo. E havia bandas que eram bem mais punk: The Birthday Party, Swans… Não sei pra onde eu tô indo (risos). Mas era um espectro muito complexo de música, e o punk rock parecia muito simples, então deixamos ele pra trás. O punk rock hoje se tornou apenas rock. Experimentar esse fenômeno ao vivo causa uma espécie de torpor nos ouvidos que leva a apreciação musical a outro nível, no qual o semi-dano auditivo (“country de sangrar os ouvidos”, já disse Mascis a respeito da sua forma de tocar punk) se transforma no mais perto de uma doutrina de iluminação que J Mascis tem a oferecer ao mundo. Não sei se essa intenção sequer passa por sua cabeça, mas, naqueles momentos, me ocorreu que talvez seja uma boa forma de ser lembrado.
m s i c a b a ra s mú aca ndo m s “A v a s s t u ra c o , no mi bem s. E tá ce s e u i t o t i g a e e s a re m a n q u o , p s ó .” a s o ra j u n t o g o ag do tál tu ca ph) um ur (M Lou Barlow também tem ocupado mais o vocal principal do que no passado. “Eu compus duas músicas nos três primeiros discos, e nos dois últimos eu compus quatro, então faço muito mais agora (risos).” Nos shows de Recife e São Paulo, ele cantou duas delas: a quase-grunge “Imagination Blind” e a quase-Sebadoh “Back To Your Heart”. Isso contribui para aumentar a impressão de que as coisas vão bem como nunca entre eles. Mas talvez o maior sinal disso seja algo que Lou me disse no carro, a caminho do seu show apócrifo no Espaço Soma. Debaixo da chuva torrencial que caiu em São Paulo naquela noite de segunda, ele me contava sobre o climão que surgiu entre ele, a banda e o manager quando fechamos o show. Surpreso, eu também disse a ele que, do meu lado, fazer aquilo acontecer (tudo rolou em poucas horas, de forma completamente informal) não foi sempre um mar de rosas. Vendo o temporal, comentei que forças superiores talvez não estivessem contentes com o show. Ele riu. “Os caras ainda não perceberam que, para eu fazer o que eles querem, precisam me deixar fazer o que eu quero”. Esse tipo de coisa, diz Lou, é comum quando ele quer fazer um show durante as turnês do Dinosaur. “Acham que vai atrapalhar, desviar a atenção, essas coisas.” Nesse momento, fiquei levemente preocupado de estar interferindo mais do que gostaria na vida da banda. Vendo minha apreensão, Lou riu de novo. “Não precisa ficar preocupado. Tá tudo bem entre a gente. Isso é só um dos pontos da relação que ainda não discutimos.” 3 A Soma viajou ao Recife a convite do festival Coquetel Molotov/Conexão Vivo 2010
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A MANUTENÇÃO DO EFÊMERO POR NATALIA LUCKI . FOTOS DIVULGAÇÃO
U M A E N T R E V I S TA C O M V H I L S
VHILS
é o pseudônimo do português Alexandre Farto, rebento mais novo de uma família de peso. Ao lado de nomes como Banksy, JR e Blu, ele faz parte da equipe do agente Steve Lazarides. Aos 23 anos, trocou Portugal pela Inglaterra. Em sua busca pela individualidade, ironicamente escolheu Londres para viver, onde se formou no Central Saint Martins College. Criador de um método único, Vhils trabalha a efemeridade dos materiais, com obras em permanente transformação. Em vez de pintar, usa ácido e água sanitária para remover pequenos pedaços da parede. Em suas escavações da figura humana, imagens de pessoas comuns são reveladas, como se ele desvendasse as camadas que a vida em sociedade acrescenta à nossa personalidade. Um vandalismo poético, quase ideológico. 1
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De onde surgiu seu interesse pelo graffiti? Meu background artístico foi o graffiti. Eu tinha cerca de 10 anos quando me interessei, e comecei a pintar na rua com 13, primeiro nas paredes e depois em trens, com amigos ou sozinho. Nesses primeiros anos, pintar trens tornou-se a minha principal atividade, primeiro em Portugal, depois por toda a Europa. A partir de determinado ponto, comecei a ter vontade de partir para outras direções. Encontrei no estêncil uma ferramenta que abria inúmeras novas possibilidades. Mais tarde comecei a explorar outras ferramentas e processos que me permitiram atingir pessoas que não eram do graffiti, um meio muito fechado por natureza. Você cresceu na margem sul de Lisboa, de onde veio a primeira geração do graffiti português e de onde, ainda hoje, saem os grandes nomes da cena local. Por que acha que isso acontece? É a parte mais marginalizada na Grande Lisboa. Foi criada como cidade dormitório para a classe operária de várias áreas industriais e navais dos anos 50, 60 e 70. É uma região multicultural e muito voltada para a esquerda e extrema-esquerda. Nos últimos anos, muitas indústrias faliram e desapareceram, deixando todos os problemas relacionados. Essa pode ser uma das razões.
O Visual Street Performance de 2005, o principal encontro de graffiti de Portugal, marcou a virada do seu trabalho. Como aconteceu a transição da pintura em trens para as paredes? O VSP surgiu de um coletivo de artistas do qual eu fui um dos fundadores. Faziam parte desse coletivo Hium, Time, Hibashira, Ram, Mar e eu. Até então só trabalhávamos na rua, mas decidimos transpor tudo para um espaço interior, numa fábrica abandonada no centro de Lisboa. Como é a cena do graffiti hoje em Portugal? Começou tarde, no final dos anos 80, mas tem vários trabalhos que acho únicos, pelo background diferente que o país teve em relação ao resto da Europa. Hoje existem vários nomes fortes, como Caus +-, Klit, Viktor, Pedro Matos, Adres, Tosco, Vulto.
“NO MEU TRABALHO, EXISTE SEMPRE UM ELEMENTO FIXO – O ESTÊNCIL QUE VOU APLICAR –, MAS TAMBÉM HÁ ELEMENTOS VARIÁVEIS, COMO A NATUREZA DOS MATERIAIS, QUE VÃO SE TRANSFORMANDO E DITAM O ASPECTO FINAL DO TRABALHO. NÃO SOU EU QUEM DETERMINA O ASPECTO FINAL DA OBRA. NUNCA TENHO, E NEM QUERO TER, O CONTROLE TOTAL DO QUE ESTOU FAZENDO – GOSTO DO INESPERADO E DO ALEATÓRIO.”
Você começou trabalhando com tinta e sticker, mas desenvolveu uma nova técnica com ácido e água sanitária. Como funciona isso? Basicamente, o processo é sujar uma superfície e depois limpar com ácido. No meu trabalho, existe sempre um elemento fixo – o estêncil que vou aplicar –, mas também há elementos variáveis, como a natureza dos materiais que vão se transformando e ditam o aspecto final do trabalho. Não sou eu quem determina o aspecto final da obra. Nunca tenho, e nem quero ter, o controle total do que estou fazendo – gosto do inesperado e do aleatório. Me interessa trabalhar com o que não consigo controlar, é esse caráter efêmero que me interessa explorar, a inconstância e a impermanência da matéria. Os meus trabalhos estão em permanente transformação – uma transformação intencional. Todo o campo da ação humana tem sido voltado para a ideia de fixar, criar estruturas que permitam contrariar a mudança, manter. E a natureza é precisamente o oposto, um estado permanente de transformação, mutação, mudança. Minha intenção é não só sublinhar essa condição do efêmero, mas também instigá-la, incentivá-la. 31
Como você escolhe os lugares onde trabalha? São lugares abandonados ou sujos. Quanto mais degradado, melhor. Mas também já fiz trabalhos em lugares de grande movimento, na área portuária de Lisboa, por exemplo.
“CRAVAR O ROSTO DE PESSOAS NA CIDADE É QUASE COMO HUMANIZAR O ESPAÇO URBANO, DAR-LHE UMA FACE E, NESSE PROJETO ESPECÍFICO, É TAMBÉM UMA ESPÉCIE DE EMPORNEMENT DO INDIVÍDUO QUE É REPRESENTADO.”
Quem são essas pessoas que você leva às paredes? Na arte convencional, os artistas representam personalidades que têm alguma importância histórica. Na minha arte, qualquer pessoa tem o direito de ser representada. São pessoas que vejo nas ruas de Lisboa e Londres, e fotografo. Pode ser uma senhora que vejo no metrô, ou alguém que passa por mim na rua. Uso também fotos antigas, que compro em feiras de rua, ou recortes de fotografias de jornal. A proposta do seu trabalho questiona a relação do indivíduo com a cidade e como ela o descaracteriza no meio da multidão. Como você se mantém fiel às suas origens, morando em uma cidade como Londres? Às vezes precisamos nos confrontar com o inimigo para sabermos como subvertê-lo. Às vezes precisamos nos deprimir para criar. Como surgiu o convite para o The Cans Festival (evento organizado por Banksy em 2007, que aconteceu num antigo túnel do Eurostar desativado na Leake Street, em Londres)? Em 2005, o Tristan Manco foi a Portugal fazer uma palestra, viu meus trabalhos na rua e entrou em contato comigo. Quando cheguei a Londres, ele era uma das poucas pessoas da área que eu conhecia. Pouco tempo depois, fui convidado para participar do picturesonwalls.com, um projeto inglês que reúne o trabalho de vários artistas. A partir do trabalho com o site, fui convidado a participar. E como foi o contato com o Steve Lazarides? O Steve entrou em contato comigo depois de uma exposição que fiz em Londres, chamada “Stollen Space”. Ele me mandou um e-mail e me ofereceu um lugar na equipe dele. A parceria que você fez com o JR em Los Angeles rodou os blogs de arte do mundo todo. Como aconteceu esse encontro? Quando você está em uma galeria, conhece vários artistas, e aqueles que têm visões mais próximas vão se aproximando naturalmente. A nossa maneira de ver o mundo é parecida, nosso trabalho tem uma ligação. Quem é a mulher da foto? A foto faz parte do projeto do JR, “Women are Heroes”, e foi tirada no morro da Providência, no Rio de Janeiro. A ideia é destacar a pessoa. Cravar o rosto de pessoas na cidade é quase como humanizar o espaço urbano, dar-lhe uma face e, nesse projeto específico, é também uma espécie de emporwement do indivíduo que é representado. 32
Os ciganos são malvistos em toda a Europa e ainda vivem marginalizados. Você trabalhou com crianças da comunidade de Peso da Régua. Como foi esse trabalho, e como você vê a importância do graffiti para crianças de comunidades menos favorecidas? O projeto foi feito em 2008, com o Chullage, um rapper cabo-verdiano, e vem de outras parcerias que eu já tinha feito com ele na Arrentela e na Margem Sul. O graffiti acaba sendo uma maneira de as pessoas se comunicarem. É uma forma de expressão e uma ferramenta de comunicação de massa, e ao mesmo tempo te abre as portas para todas as áreas criativas. Você andou em turnê com o Buraka Som Sistema. Como rolou esse convite? Já conhecia o grupo há algum tempo, fiz algumas capas para a gravadora deles, a Enchufada. Foi daí que surgiu o convite para produzir os vídeos que passavam nos shows deles. Em uma entrevista para a agência Lusa você disse que conheceu alguém que supostamente seria Banksy. Como você vê o mistério em torno de sua figura? A maneira como essa notícia foi escrita leva a crer uma coisa que eu não disse. Já trabalhei em alguns projetos em que ele também estava, mas nunca é só uma pessoa, tem sempre uma equipe trabalhando. É possível que ele seja um deles, mas nunca fomos apresentados diretamente. Acho que o mistério é um dos componentes que torna o trabalho dele especial. O que achou do filme dele? Gostei muito. O filme prova como a arte pode ser corrupta. Com um pouco de dinheiro e alguns contatos, você consegue tudo. Quais são os seus futuros projetos? Demolir edifícios. 3
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PERDIDOS
AUTOLUX
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NO ESPAÇO POR SEAN EDGAR* . FOTOS POR DREW REYNOLDS (*)TRADUÇÃO DE ALEXANDRE BOIDE
Depois do lançamento de seu incendiário álbum de estreia, em 2004, ninguém sabia direito o que esperar do AUTOLUX. Dizer que o próximo passo do trio de art rock de Los Angeles era aguardado com ansiedade é um eufemismo de marca maior. Consideremos os fatos: os membros da banda têm origem na realeza do indie rock, já tocaram com todo mundo, desde o Nine Inch Nails até o White Stripes, e o primeiro trabalho que fizeram juntos foi a trilha sonora para uma peça de Dario Fo, dramaturgo italiano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura. 2
A única certeza era a de que o baixista Eugene Goreshter, o guitarrista Greg Edwards e a percussionista Carla Azar (os três se revezam nos vocais) iriam se reunir novamente, de um jeito ou de outro. Seis anos depois, eles enfim voltaram a transitar na mesma órbita. Porém, apesar de o segundo disco da banda ter demorado mais de meia década para sair, Transit Transit não soa exatamente como o retorno de uma superpotência emergente do mundo indie. Na verdade, parece ser justamente o contrário. Muita coisa mudou desde que a banda surgiu, gerando um intenso boca-a-boca na internet e angariando fãs como Thom Yorke. 35
AQUELE QUE PÔS O AUTOLUX NO MAPA, o produtor de Future Perfect – T Bone Burnett, que com seu rock de raiz inspirou artistas como Robert Plant e Willie Nelson e faturou três Grammys pela trilha sonora de E Aí, Meu Irmão, Cade Você –, não está mais entre eles. Afinal de contas, era um tanto estranho ver um ícone do bluegrass à frente dos mais novos expoentes do rock eletrônico. Edwards a princípio também pensava assim. “É verdade que, se você pegar o histórico [de Burnett], jamais imaginaria que uma banda como a nossa poderia trabalhar com um cara como ele. Mas isso não importava”, explicou o guitarrista. “Ele está na mesma sintonia que nós tanto quanto qualquer outro que conhecemos. Não havia ninguém melhor que ele pra trabalhar com a gente naquele momento.” A colaboração entre eles rendeu uma pérola do underground que adicionou uma fúria incandescente ao brilho opaco do shoegaze. Em Future Perfect, Goreshter, Edwards e Azar criaram uma série de histórias sobre robôs que invadem jardins e exércitos formados por pessoas “pra quem você nunca deu a mínima” (“everybody you never cared for”). O resultado é uma música ácida e provocativa que, no vocal sussurado e andrógino de Goresther, se torna também estranhamente reconfortante. As comparações com outros mestres no uso da estática, como My Bloody Valentine e Sonic Youth, não demoraram a aparecer. Impulsionada pela reputação de seus membros (Azar já tocou percussão com Ednaswap, PJ Harvey e Vincent Gallo), a banda saiu em turnê com Beck, Elvis Costello, Clinic e Broadcast, entre outros. Foi então que, em 2005, chegou ao fim o DMZ, o selo dirigido por Burnett e os irmãos cineastas Joel e Ethan Coen. Com a perda do suporte da gravadora, o trio foi forçado a assumir ele mesmo todas as questões relacionadas à sua música. Em seu segundo álbum, o grupo cuidou sozinho de todo o processo de gravação e produção em seu estúdio em Los Angeles, o Space 23, no qual eles tinham tudo de que precisavam. 36
“No estágio criativo em que estávamos, nós precisávamos ficar totalmente isolados pra conduzir o processo exploratório que nos levou a descobrir que tipo de músicas queríamos compor pro álbum”, contou Edwards. Depois de disponibilizar “Audience No. 2” no Myspace, em maio de 2008, o Autolux ainda precisou de mais um ano e meio para aperfeiçoar Transit Transit. Foram necessários ainda mais oito meses para encaixar o disco nos respectivos selos. O TBD Records, mais conhecido por lançar In Rainbows, do Radiohead, assumiu a distribuição nos Estados Unidos e no Japão, enquanto o ATP Recordings ficou responsável por sua comercialização no restante do mundo. A faixa de abertura, “Transit Transit”, que também dá nome ao álbum, estabelece o tom de desolação que permeia todo o LP. Acompanhada por fragmentos de piano e uma bateria eletrônica quase imperceptível, a mensagem introdutória de Edwards não é das mais positivas: “One more lonely fascist loser / Let the spirit go / 60 thousand turnstile kids all bracing for the show / Eyes like vinyl / Lips like rain clouds / Dreams all in a row / The golden age of feeling nothing / Brought your spirit home.” Porém, conversar com esse veterano do rock alternativo, que carrega na distorção desde os anos 90, quando fazia parte da banda grunge Failure, não tem nada de tedioso. De acordo com ele, a ideia do trio era criar algo muito mais otimista para a sua mais recente odisseia no espaço. “Obviamente, e em vários sentidos, o novo álbum é muito mais experimental que Future Perfect, que hoje eu considero simples demais
EXPLICAÇÃO MAIS SIMPLES [PARA A MUDANÇA NO CLIMA SONORO] É QUE O DISCO NOVO FOI FEITO MAIS COMO UMA ESPÉCIE DE COLAGEM, MEIO QUE UM OVERDUBBING, ENQUANTO FUTURE PERFECT FOI UMA EXPERIÊNCIA COLETIVA DO INÍCIO AO FIM”
dos 75 pontos obtidos (de 100 possíveis) no agregador de resenhas Metacritic. Quando ouvido com mais atenção, o álbum não deixa dúvidas de que é um maquinário complexo, marcado por uma profundidade oculta. Só não queira fazer ginástica aeróbica com ele.
pra nós”, ele explicou antes de subir ao palco em uma madrugada em Chicago. “Mas sem dúvida nenhuma não era o que nos propomos a fazer. Acho que, entre outras coisas, nos propomos a fazer um disco que fosse muito mais pop, nos termos daquilo que a gente considera pop. Por algum motivo, ele saiu desse jeito.” Lançado sem alarde no dia 3 de agosto, o álbum não teve quase nenhum impacto na comunidade blogueira que glorificou seus realizadores seis anos atrás. As dez novas canções do Autolux compõem uma jornada interior claustrofóbica, com pouquíssimas melodias atraentes – algo difícil de vender em qualquer mercado. “A explicação mais simples [para a mudança no clima sonoro] é que o disco novo foi feito mais como uma espécie de colagem, meio que um overdubbing, enquanto Future Perfect foi uma experiência coletiva do início ao fim. Acho que, quando a pessoa está experimentando ou trabalhando sozinha, as coisas tomam um rumo muito diferente de quando está tocando junto com outras pessoas em um estúdio.” Solidão é a palavra-chave: o álbum soa como um episódio de Star Trek dirigido por Nietzsche. É a crônica de uma viagem por um espaço sem fim, sem tempo e sem vida, em que os viajantes exigem que o cosmo “abra mão do futuro” (“Let the future go”). Experimentos melódicos como “Spots”, tocada ao piano, revelam o amor de Edwards e Azar pelos Beatles da época do Álbum Branco, ao passo que o single “Supertoys” segue uma batida lenta, permeada por notas ruidosas. Qualquer que seja o padrão, não se trata de uma experiência sonora das mais fáceis, apesar
Mas, para quem fala em abandonar o futuro, o Autolux está bastante ocupado fazendo novos planos. O grupo está encabeçando uma turnê internacional que deve durar até janeiro, e Azar, que sofreu uma séria fratura no cotovelo em 2002, vem aprimorando cada vez mais suas batidas, graças a uma cirurgia de caráter experimental em que foram usados oito parafusos de titânio. “Ela está tocando ainda melhor”, garantiu Edwards. “Depois da contusão e da recuperação, acho que, mesmo que de forma não consciente, ela começou a se esforçar ainda mais”. E o mais importante de tudo é que a jornada interestelar do Autolux não vai mais demorar tantos anos para ser retomada. Na verdade, pode demorar apenas alguns poucos meses. “A ideia é fazer isso o quanto antes. Acredito que em algum momento do mês [de janeiro] a gente vai começar a trabalhar.” É de se esperar também uma fuga do buraco negro, já que o próprio Edwards prevê o retorno das batidas mais vibrantes e das guitarras mais ásperas e distorcidas. “Acho que a gente vai pensar o próximo álbum de uma forma em que o processo leve a coisas mais aceleradas e agressivas. É assim que a gente está se sentindo. Não vai ser outro disco como Transit Transit.” 3
2SAIBA MAIS www.autolux.net myspace.com/autolux 37
T H O M A S
D O Z O L
I’LL BE YOUR MIRROR
4JOHANN, 2009
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QUANDO ouvi falar de Thomas Dozol pela primeira vez, ele ainda estava fazendo as fotos do que viria a ser sua série “I´ll Be Your Mirror” (“Eu serei o seu espelho”). Fiz uma ideia vaga do que poderiam ser esses portraits. Depois, logo antes de ele mergulhar no laboratório para sair dali com a edição final, nós fomos apresentados. Esse processo gradual de aproximação deu um sentido especial para a exposição que fui conhecer pouco tempo depois. Se uma obra de arte carrega, inevitavelmente, a bagagem do artista, percebi como esta série imprime o toque delicado, o olhar agudo e o silêncio de Thomas. Quando se propõe a ser o espelho de seus objetos, ele o faz de forma tão particular que o trabalho retribui o gesto. “Eu sempre acho estranho ligar pras pessoas e perguntar: ‘Posso ir até a tua casa te fotografar depois do banho?´”, diz Thomas. Ele foi chegando sorrateiro e, antes que alguém dissesse “não”, se instalou fora da sala de banho esperando ser chamado. Sem artefatos, apenas com sua câmera, sem dar instruções, Thomas compilou momentos de intimidade de seus amigos. A presença pontual de algumas figuras mais famosas faz toda a diferença: todo mundo está aqui em igualdade, com as mesmas armas (ou a ausência delas), despojado de artifícios, como o fotógrafo, em ações puras. Um homem com a pele cortada pela lâmina afiada ou gasta demais surge do lado do galã sem a luz favorável a lhe disfarçar as rugas. A amiga aparece envolta numa toalha, da mesma forma que a superstar seca os cabelos ainda sem maquiagem e sem Photoshop. Fosse a série composta de poucos retratos, a presença desses astros ficaria acima da obra. Mas, entre dezenas deles, tudo se dilui: a persona pública, os excessos, as aparências, retrabalhados pela presença purificadora da água e com a força da solidão necessária.
D I E G O
D E
G O D O Y
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4JASON, 2008
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4GWYNETH, 2008
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4MARCEL, 2009
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4KAI, 2008
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4MICHAEL, 2008
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4SAJJ, 2008
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4CASEY, 2008
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4JULIETTE, 2009
2SAIBA MAIS thomasdozol.com 47
Entre muros e paredes Uma entrevista onesta com Alex Hornest POR TIAGO MORAES . RETRATO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA . FOTOS DAS OBRAS ACERVO DO ARTISTA
ALEX HORNEST é um pintor e escultor brasileiro nascido em 1972. Expõe seus trabalhos em galerias e museus do mundo todo, em mostras individuais e coletivas. ONESTO é grafiteiro, surgiu nas ruas de São Paulo no meio da década de 1990 e, ao lado de nomes como OsGemeos, Speto, Herbert Baglione e Vitché, faz parte do time de elite da chamada primeira geração do graffiti moderno brasileiro. Dois nomes e duas personalidades completamente distintas ocupando um só corpo. Tive a oportunidade de conversar com ambos numa tarde tranquila no ateliê de Hornest no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Confira! 1
Onesto, você acabou de voltar de Viena. O que foi fazer por lá? Fui pintar um mural na cidade, um convite que surgiu a partir de umas conversas que venho tendo com o Nicolas, dono da Galeria Inoperable. Eu li que a Bienal Internacional de Artes havia aberto um edital com o objetivo de mostrar a arte de brasileiros em outros países. A única exigência era uma carta-convite da galeria. Eles mandaram a carta e eu fui contemplado. O pessoal da Bienal gostou da ideia, ainda mais porque se tratava de um festival falando sobre a bicicleta, sobre como as pessoas usam esse meio de locomoção no dia-a-dia e tal, e isso é uma discussão que não é frequente aqui em São Paulo. Essa foi minha justificativa: levar minha experiência – porque eu uso bicicleta como meio de transporte – para outro país e também trazer pra cá um pouco da experiência que eu teria por lá. E esse seu entusiasmo pelas bikes, quando começou? Acho que desde pequeno, quando ganhei minha primeira bicicletinha. Lembro que meu pai foi num ferro-velho e catou uma bicicleta caindo aos pedaços, deu uma soldada – era uma daquelas bicicletas que dobram no meio... Tipo aquelas antigas Berlinetas? Acho que era uma dessas, só que bem pequena. Daí pra frente eu sempre me interessei, porque nunca gostei de carro. Meu pai, caminhoneiro, até tentou me ensinar a dirigir, mas eu falava: “Meu, não é minha praia”. Depois tive outras bicicletas, andei um tempo de BMX, gostava de fazer umas graças. Sempre gostei de esportes que você podia fazer alguns truques. Hoje, sei lá, você vai ficando velho, só usa pra locomoção mesmo. Não tenho mais aquele entusiasmo de ficar me jogando, pulando coisa, mas acho que a bicicleta é pro resto da vida, gosto pra caramba. E lá em Viena é incrível, as crianças já nascem com essa informação, já sabem que de bicicleta podem ir aqui e ali, não precisam depender de um transporte público ou de um carro. 48
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4ELEFANTE MADEIRA,FITA ADESIVA, PAPEL, CORDA E TIJOLOS . 2008
Achei tudo isso incrível. Vim com uma bagagem muito grande, e quero usar isso nos próximos trabalhos. Lembro que a gente tava num evento que chama Massa Crítica – um monte de gente andando de bicicleta ao mesmo tempo, um dia sem carro, um protesto e tal –, e as criancinhas andando sozinhas ou com os pais. As outras que estavam na rua estendiam o braço pra você passar a mão quando passava por elas. Foi uma experiência muito louca mesmo. Nesse painel que você pintou por lá, tem um cara numa bike segurando uma placa de “Proibido andar de bicicleta”, como se ele tivesse acabado de arrancar... Essa foi a experiência daqui que eu quis levar pra eles. Aqui em São Paulo, o motorista de carro se acha muito mais importante do que você, que está ali na bicicleta. Acha você um estorvo. Essa foi minha ideia: meu personagem está arrancando a placa porque você deve ser livre pra andar em qualquer lugar. Um ciclista deveria ter mais autorização de poder usufruir desse meio do que um cara com um carro, que tá poluindo, tá causando. Muitos só usam o carro pra fazer merda no dia-a-dia, colocam o som bombando, não respeitam os pedestres. Na bicicleta, a atitude é diferente. Lá o pessoal achou hiper engraçado, porque a cidade é toda certinha, não tem essa de você arrancar uma placa da rua, cometer algum ato de vandalismo. Quando o dono do lugar que eu pintei viu, ele não entendeu nada. Gosto quando meu trabalho levanta essas discussões.
O momento mais gratificante quando termino um trabalho é ver as crianças com os pais, comentando, olhando, apontando, dando risada, achando legal ou achando uma bosta. Isso é o que eu acho legal, interferir no cotidiano das pessoas.
4VACA MADEIRA,
FITA ADESIVA, VIDRO, TIJOLOS, FERRO, PAPEL E CORDA . 2008
Como nasceu o seu interesse pelas artes? Minha avó é cantora e bailarina. Se apresentava, gostava de dançar e tal. Meu tio acompanhava tocando violão e percussão. Meu outro tio é pintor e sempre trabalhou pra estamparia. Eu ia ao estúdio dele e via ele pirando em vários padrões diferentes. Criava no papel e depois passava pra uma
transparência, era um processo louco, ele ficava me explicando. Minha bisavó também sempre comprava algum brinquedo pra mim que remetesse à música ou ao desenho. Quando meu pai viu que eu tinha esse interesse, começou a me dar bastante gibi. Comecei copiando os personagens, e uma hora falei: “Não quero mais copiar, quero criar os meus”. Sua última individual foi quando? No mês passado em Goiânia, na Faculdade de Artes Visuais, na galeria da FAV. O que você levou para lá? Tudo o que apresentei na exposição, que foram três esculturas: um porco, um leão e um pássaro, fiz lá mesmo. A ideia era que fosse no formato de um workshop. Dez alunos locais trabalharam comigo na montagem dessas peças. Eu só levei a ideia e falei: “Preciso construir esses três animais. Como a gente vai fazer, não sei”. Sempre procuro material no entorno, próximo ao espaço expositivo. Foi uma proposta que criei quando fiz uma exposição dois anos atrás, no Museu do Trabalho. Eu chego lá com a ideia e desenvolvo. Nunca tinha trabalhado com alguém me auxiliando, e a experiência foi fantástica, o contrário do que eu imaginava. Foi uma troca de informações, não era eu pedindo que eles fizessem alguma coisa. Aprendi muito com eles também, e isso não tem preço. Quero levar isso pro resto da minha carreira. Está pronto pra ter um assistente agora? Assistente eu já tinha um aqui no estúdio, porque o volume aumentou muito e eu não tava dando conta. Então chamei um amigo e ele vem aqui três ou quatro dias por semana pra me dar um help. E está funcionando muito bem, porque ele também ajuda bastante, cria soluções. Sou muito intuitivo, não gosto de trabalhar com rascunho, de ficar preso a uma ideia. Dependendo do convite que recebo, aí sim vou formatar alguma coisa, pensar no que realizar. Aqui eu fico mais pintando, fazendo esculturas, que muitas vezes nem apresento em exposição, é mais uma experiência mesmo, uma 51
forma de desenvolver algo. Mas ter alguém ajudando é uma coisa que não tem como fugir. Chega uma época que precisa, dependendo do que você se propõe a fazer. E eu sempre quis fazer coisas em escala grande, porque pintar parede pra mim é moleza. Agora, criar uma escultura, trabalhar com madeira, o esforço é maior. Preciso de ajuda. Pela diversidade de técnicas, percebo que você é do tipo que não gosta de ficar na zona de conforto, está sempre procurando um pouco de atrito, se desafiando a fazer coisas que nunca fez. Acho que a arte pede isso. Arte não é você criar um símbolo e sair mandando bala nele pro resto da vida. Várias empresas já fazem isso.
Eu não quero ser uma empresa, quero ser um artista. E, como artista, minha cabeça não para, tá sempre em movimento, sempre pensando. Então por que vou me reprimir? Por que vou deixar de executar uma ideia que vai fugir de um
outro trabalho que eu já apresentei? Esse não é o caminho. Se eu fizesse só pintura, ok, talvez fosse por essa direção, mas não é o caso. Sempre gostei de mexer com várias mídias, de fuçar, experimentar, misturar coisas, agregar material, ver a reação que dá, a textura que posso encontrar pra aquilo. Estou sempre aberto a trabalhar com qualquer coisa.
4ROTTERDAN . HOLANDA . 2009
E hoje você tem alguma técnica preferida ou que te dê mais prazer? Na pintura os materiais de que eu gosto são spray e látex, às vezes óleo. Agora, escultura é vidro, madeira, barro, pedra, ferro. Coisas que eu possa transformar. Como gosto de desenhar, acho que o desenho pode me mostrar muitas possibilidades. A partir de um desenho, começo a definir que material vou usar pra executar um determinado trabalho. O desenho é a base de tudo. Você disse que quando vai pra rua não tem sketch, nada. Gosta de ir lá e criar na hora. Já com uma escultura ou uma instalação, você tem um projeto, né? Faz um desenho pra depois executar.
Não. Pra fazer uma escultura tenho ideias que coloco no meu caderno, mas são rascunhos que não chegam nem perto do que vai ser o resultado final. Me serve mais pra lembrar da situação mesmo. Muitos dos trabalhos que eu faço são inspirados em coisas que vejo no dia-a-dia: um cara brigando na rua com uma mulher, ou um policial dando uma geral num cara. Às vezes nem fica muito explícito isso, mas foi o que me fez chegar naquela cena retratada. Quando pinto na rua não levo sketch porque gosto que a situação em si me influencie. Uma pessoa que vem conversar comigo, ou o dono do imóvel que aparece na hora, ou a polícia me abordando... Acabo passando todas essas situações pro trabalho. Me sinto melhor assim. Não gosto de pedir autorização pra pintar. Gosto de chegar, achar um muro bacana, com uma textura legal, e começar a pintar. Se eu for com tudo formatado, acho que fica chato, fica mecânico. Fala um pouco sobre esse último livro, Tenho Pena de Você, que você lançou com a sua mulher, a Thais Ueda, e que apresenta uma série de desenhos que fizeram juntos. Como foi esse processo de criação? A ideia surgiu de querer fazer alguma coisa juntos. Então a gente definiu que ia fazer 50 desenhos. Eu tinha feito um outro trabalho, um outro livro, Sem Cotidiano, com o Valério Siqueira, lá de Curitiba, e também foi a partir desse princípio: 50 desenhos de cada. O Tenho Pena de Você veio mais ou menos dessa ideia, só que a gente ficou pirando na possibilidade de pegar um elemento, que seriam pássaros, e desenhar como bem entendesse, tendo referência ou não. Então, como tinha um número definido, a gente dividiu as folhas, 25 pra cada. Depois de cada um fazer a sua parte, a gente trocou. Então teve situações em que o passarinho da Thais estava voando, e eu fazia um querendo voar e vice-versa, um brincando e interagindo com o outro. A gente colocou títulos em cada desenho, e depois achou bacana também escrever um pensamento ou uma ideia do porquê daquela cena. A partir dos títulos, a gente começou a desenvolver os textos. E o livro inteiro foi nesse processo, em conjunto. Não tem nenhuma parte que só eu fiz, ou só ela. Essa editora que lançou o livro é sua? Eu tenho um selo, que se chama Item 72, que uso pra coisas que quero que sejam limitadas, como gravuras, camisetas, toy art. A ideia é que chegue até 72 unidades, não passe disso. Mas, no caso do livro, a gente fez uma tiragem maior, de mil exemplares, e eu resolvi não numerar, deixar a coisa em aberto. Mas o selo a gente achou bacana colocar lá, pra dar uma autenticidade ao trabalho, já que a gente fez de forma totalmente independente, sem recurso de ministério nenhum, do nosso bolso.
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4BOGOTÁ . COLOMBIA . 2007
4SÃO PAULO . 2008
Você costuma retratar muitos animais. Elefantes, cavalos, agora pássaros... Por que esse universo é tão recorrente no seu trabalho? Acho que tudo começou quando percebi a cagada que o homem faz com os bichos. Como ele se utiliza, se apropria, escraviza. Não sou militante, mas acho que é meio exagerada a forma como o homem trata os animais. Por se achar um ser superior, ele acha que pode tudo. Comecei a trabalhar com animais pra criar esse paralelo. Na rua sempre pinto eles livres, e na galeria coloco encarcerados em cubos, caixas, o que seja. Mais pra criar essa analogia mesmo. Por que as pessoas dentro de suas casas se sentem tão seguras? De casa vão pro shopping, que acham que é um outro lugar seguro. E vão de carro, que é outra caixinha, enquanto lá fora tem um mundo de coisas pra conhecer, interagir, viver em harmonia. Os animais são diferentes. Vivem com o que têm, não ficam querendo depredar, destruir, ridicularizar outras espécies.
4ENCONTREI SÃO PAULO . 2008
Conta um pouco sobre o Carlos de Campos, colégio em que você estudou e que curiosamente acabou sendo um dos maiores berços do graffiti moderno paulistano no final da década de 1980 e começo dos anos 1990, de onde saíram você, OsGemeos, Speto, Jey etc. Lembro que o Carlos de Campos foi fundamental no processo de entrar em contato com outros artistas, que na época nem eram artistas ainda, estavam estudando. Conheci alunos que eram incrivelmente talentosos pra fazer histórias em quadrinhos, não perdiam em nada pra qualquer artista que trabalha na DC Comics, na Marvel. Eles já tinham muita habilidade, muita noção daquilo que estavam fazendo. No graffiti também, muitos artistas que hoje são consagrados passaram pelo Carlos de Campos: Speto, OsGemeos. Mas a real é que esses caras já estavam encaminhados. O Carlos de Campos foi só um lugar pras pessoas se encontrarem, pras discussões, pra troca de informação. O professor nunca mostrava como fazer, a gente tinha que se virar sozinho, pesquisar, perguntar. Eram os alunos que faziam a escola. No começo da minha carreira, quando ia levar meu portfólio em agências, o
pessoal mal abria e já falava: “Você passou pelo Carlos de Campos, né?”. E eu respondia “Sim, mas como você sabe?”. “Todo mundo que é bom vem de lá, e sempre tem alguma peculiaridade no traço”. Acho que foi por causa do período mesmo. A coisa era muito intensa, muito bacana. Sei que a visita do Twist (Barry McGee) em São Paulo, mais de 20 anos atrás, foi decisiva para muitos dos artistas de rua da sua geração. Fala um pouco sobre isso. Quando o Barry McGee esteve aqui no Brasil, as coisas mudaram radicalmente, porque a gente não tinha muita informação, não sabia até onde o graffiti poderia ir.
O que chegava aqui em São Paulo eram imagens de painéis hiper coloridos com personagens, letras, tudo muito ligado à cultura hip-hop. O Barry mostrou pra gente que não, que o graffiti é livre, você pode se expressar como quiser, usando o material que quiser. Apenas com látex
branco e uma lata de spray preto, ele fazia e acontecia. Outra coisa legal foi que ele também mostrou que dava pra fazer graffiti com outros materiais, como o canetão por exemplo, ir pra rua e simplesmente fazer um tag, ou então escrever ou desenhar em adesivos e sair colando pela cidade. Acho que a cena do graffiti no Brasil deve muito ao Twist. Por que a cor laranja é tão presente no seu trabalho? Sei lá, achei bacana essa cor e comecei a empregar nos meus trabalhos. Acho que todo artista de graffiti se identifica com uma cor e começa a usar ela frequentemente. Comigo foi assim. Eu me identifico bastante, virou a cor da pele do meu personagem. Eu me sinto laranja. Sou negro, mas às vezes acho que sou laranja, que tenho a mão gigante. Quando faço um personagem, estou na verdade passando um pouco de como eu me vejo na cidade. E uso pouca cor, gosto de três cores no máximo, porque me enquadro num estilo de graffiti chamado throw up, uma coisa rápida, usando duas, três cores no máximo. Meus personagens são throw ups. Todo mundo me diz que não, porque é hiper requintado, elaborado, tem detalhes, mas a real é que eu consigo fazer isso muito rápido, em poucos minutos. Foram coisas que comecei a desenvolver depois que o Barry McGee passou por aqui, porque ele também tinha um processo parecido: com pouca cor e uma ideia boa na cabeça, ele conseguia passar algo, agregar algo à cidade. Nunca quis que meus personagens fossem mais do que as coisas que estão por aí. Queria que eles se inserissem naquele meio, fizessem parte da arquitetura, se inserissem no dia-adia de um bairro.
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Qual sua relação com São Paulo? Sou casado com a cidade, não troco São Paulo por nenhuma outra cidade do mundo. Aqui é o local que me inspira, que me influencia. Aqui consigo ter ideias. Muito do que eu faço vem do que vejo por aí. Às vezes não fica muito explícito no meu trabalho, mas com certeza, se você está vendo um personagem meu tacando uma pedra, pode ter certeza que eu vi isso outro dia, numa outra situação. Teve uma época que eu andava muito com o caderninho. Em vez de tirar uma foto, desenhava o que tinha acabado de ver. Hoje não, com o celular saio tirando várias fotos e depois desenho algo sobre aquilo que acabei de ver. No meu blog eu posto muito isso. Sempre coloco duas ou três fotos e embaixo um desenho sobre aquilo. Esse processo me deixa mais livre, cria mais possibilidades. Eu podia ir com uma ideia formatada pra rua e não funcionar ali na hora, naquele muro, naquele contexto. Se começo a pintar e vem alguém e me cutuca, essa conversa vai me influenciando, trazendo novas ideias e elementos pra colocar na parede. Acho bacana trabalhar assim, é mais intuitivo. Como foi essa transição da época em que você só pintava na rua por diversão para viver exclusivamente da sua arte e expor em galerias? Desde que comecei a pintar na rua, sempre tive a convicção de que não queria ganhar dinheiro com aquilo. Queria fazer por fazer, que nem jogar bola no fim de semana com os amigos. Mas sempre quis trabalhar com desenho, tanto que tentei ser ilustrador, fazer história em quadrinhos, mil coisas. Só que aquilo me enjoava, eu não gostava muito dos lugares.
A real é que nunca gostei de ser mandado. O que me incomodava era que sempre tinha alguém me dizendo o que fazer.
Já trabalhei com diversas coisas: fui carteiro, office-boy, contínuo, auxiliar administrativo e por aí vai. Tudo porque não gostava de ter alguém me mandando desenhar tal coisa, queria ter liberdade. Comecei a receber alguns convites pra fazer exposição e sempre negava. Falava: “Não, eu tô na rua porque gosto, galeria não é o caminho. Não me sinto à vontade colocando
uma coisa que faço pra milhões restrito a uma elite, a algumas pessoas”. Só que os convites eram muitos, então comecei a estudar, pesquisar, ver como outros artistas trabalhavam, como eles reagiam. E fui encontrando meu caminho. Mas até pouco tempo eu ainda não me sentia confortável com isso. Faz cinco ou seis anos que comecei a trabalhar melhor essa possibilidade de trabalhar com galeria, expor em museu. E sempre tento levar algo que não seja o que faço na rua. Uma coisa que eu tô curtindo muito é levar elementos que encontro na rua pra dentro do espaço expositivo, criar uma ideia que seja uma extensão do meu trabalho. Como essa instalação que você fez na Bienal de Graffiti no Mube? O convite foi pra participar de uma exposição de graffiti, mas eu pensei: “Por que fazer graffiti dentro de um museu se já faço na rua e na rua me sinto bem melhor com isso?” Então falei pro curador que queria fazer uma instalação. Podia ser na parte externa, nem precisava ser lá dentro. Ele achou bacana. Tive então a ideia de fazer uma casa tombada, e essa casa representaria o museu, tanto que pintei ela de branco por dentro. O conceito era mais ou menos “Sua casa caiu, hoje você está sendo domesticado”. É assim que eu vejo o que está acontecendo com o graffiti. Muitos artistas estão se deixando levar por uma onda e perdendo a essência, perdendo o ideal, que é estar na rua, livre, fazendo o que bem entender. Se, desde que ele surgiu em Nova York, os caras tivessem a intenção de ir pra galeria, museu, livro, não teria surgido um movimento tão forte. E aqui em São Paulo é muito estranho ver alguém te cumprimentando porque faz coisas coloridas, que todo mundo acha bonitas, enquanto o cara que está se expressando ali apenas com uma cor, subindo num prédio, fazendo o que o coração dele manda, é tachado de vândalo, de marginal. O que ele está fazendo é o verdadeiro graffiti, ele tem a essência. Mas você não foi de certa forma domesticado também? Como separa as coisas, o Onesto grafiteiro do Onesto que está em galerias e museus? De certo modo você também cedeu, não? No momento em que resolvi ceder, ir pra galeria, decidi que não ia usar o nome Onesto, ia usar Alex Hornest. Aí comecei a me sentir um pouco mais confortável com isso tudo. Onesto é pra rua, pra fazer as coisas que eu bem entender, sem autorização, sem nada. Não ganho dinheiro pra fazer pinturas na rua, mas em compensação ganho coisas que nenhum dinheiro do mundo pode comprar. Estar em contato com alguma pessoa que eu nunca vi, que só vem falar comigo porque estou ali pintando. Ou estar em um bairro a que eu não teria acesso no meu dia-a-dia. Coisas 55
das quais as pessoas estão cada vez mais distantes, tentam fugir por causa da violência. E isso o graffiti me proporciona. É uma coisa que quero sempre ter comigo. A partir do momento em que fui pra galeria, museu, passei a estudar propostas diferentes, tento fazer coisas que normalmente não conseguiria fazer com graffiti. Estou numa fase boa, me sinto bem comigo mesmo. Diferente da minha primeira exposição, no Museu da Imagem e do Som, em 1993 ou 1994, quando me senti péssimo. Uma sensação que imaginei que nunca teria novamente. Aí, quando fui pra Nova York, numa coletiva, a mesma sensação de novo. Falei: “Caramba, tem alguma coisa errada”. Lembro que voltei hiper mal, e isso que me fez pensar, desenvolver uma forma de mostrar meu trabalho, ou um novo trabalho, e me sentir bem com isso.
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DETALHE DA OBRA EXCESSOS . 2010
De certa forma você cria um escudo que separa o Onesto, que pinta na rua, do artista plástico Alex Hornest. Nem me defino como um artista plástico, prefiro ser conhecido como pintor e escultor. Ponto. “Artista plástico” acho muito genérico, coisa que só existe aqui no Brasil mesmo. Mas você não acha que se definir como pintor e escultor não te impede de explorar outras técnicas? Você nunca vai poder fazer uma colagem, por exemplo? Pelo contrário. Acho bom ser conhecido como pintor e escultor, mas quando apresento um trabalho novo, seja um desenho, uma colagem, uma vídeoinstalação, isso mostra que eu tenho outras habilidades, que estou estudando outras coisas. Não fico restrito. Não sou rotulado como alguma coisa – o cara é grafiteiro, o cara é artista plástico, o cara é pagodeiro... odeio esses rótulos!
Faço pinturas e esculturas. Ponto. Eu determino o que quero ser, e não as pessoas ou a mídia.
Você falou que está se preparando pra uma nova individual, num espaço novo. Fala um pouco sobre o espaço e sobre o que você pretende apresentar. Ganhei o primeiro Prêmio de Incentivo à Cultura Afro-brasileira, oferecido pela
Petrobras e o Cadon. Mandei uma proposta de escultura e pintura, pra pintar três animais em via pública, soltos, como se estivessem em seu habitat natural, e dentro do espaço expositivo eles estarem presos em jaulas, gaiolas, blocos de concreto. Pelo prazo, eu tinha que executar essa exposição até o final de outubro. Procurei vários lugares, várias instituições, mas não rolou. Como está tendo Bienal este ano, a agenda já estava toda programada. Conversando com uma pessoa e com outra, acabei chegando ao Alberto [Hiar], o dono da Cavalera, que tava a fim de abrir uma galeria. Ele perguntou se eu conhecia alguém pra dar uma assessoria e eu disse: “Eu mesmo. Já até tenho uma exposição pra fazer, porque ganhei um prêmio e preciso executar”. A galeria se chama Cavalera Art Projects, e vai ser inaugurada com essa exposição. O espaço é bem bacana, era uma loja que ele tinha, da marca V.Rom. Foi só tirar as coisas que remetiam à loja e transformar num galpão, numa pequena fábrica. Deixamos a parede crua e estamos pintando de branco, com uma iluminação simples. O lugar tem dois andares e é comprido, então a ideia é colocar a esculturas ali de forma que elas representem um cárcere. Visualmente, vai passar muito bem a ideia. Ainda tenho que executar as três pinturas em via pública: uma vai ser aqui na praça 14 Bis, outra no Tucuruvi e a terceira na Consolação, comecinho da Rebouças, numa parede que eu já pintei uma vez. Depois você vai continuar tocando projetos nessa galeria ou é só essa exposição? Sou sócio dele na galeria, e a ideia é que eu consiga trazer uma nova proposta de exibições de arte. O foco não vai ser apenas comercializar os trabalhos. Vai ter isso também, só que o forte é uma contrapartida social que está sendo criada com instituições ou bairros. Não é uma imposição, mas a gente está interessado em artistas que tragam uma proposta de trabalhar em conjunto com a sociedade, seja com uma instituição, uma organização, com um bairro que tenha pessoas interessadas em desenvolver algo. Ou que o artista tenha uma proposta pra cidade, por exemplo: “Não quero só expor aqui dentro da galeria, queria fazer uma pintura na rua, uma instalação, quero chamar um monte de crianças pra desenvolverem uma ideia comigo”. Tudo isso partiu de mim. Ele falou que tinha um espaço, que estava a fim de montar uma galeria, e pediu que eu formatasse um projeto pra ele. Eu apresentei, ele gostou muito de tudo e estamos ansiosos agora pra ver o que vai acontecer. 3
2SAIBA MAIS www.alexhornest.com 56
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4DONO FUNCIONÁRIO SÃO PAULO . 2005
Quer publicar seu trabalho na revista e expor no nosso espaço? Mande um email para entreoutros@maissoma.com com amostras da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!
ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A +SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO QUE MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO QUE CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.
MATEUS ACIOLI
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60 JORGE GALVテグ
4FLICKR.COM/JORGEGALVAO
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EDUARDO BURGER
4FLICKR.COM/EDUARDOBURGER/
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MACK VIRALATA
4FLICKR.COM/MACK_VIRALATA/
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VISCA
4VISCAFACTORY.COM
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LUISA RITTER
4FLICKR.COM/LUISARITTER
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DEPOIS DE DEZ MINUTOS de entrevista com o artista alemão, em passagem por São Paulo para expor no evento MCD Lab #2, ele confessou que talvez estivesse mentindo. Não foi exatamente uma surpresa: pesquisando sobre ele, encontrei duas ou três versões diferentes de como se tornou artista e por que adotou um codinome francês – e uma delas parecia bastante fantasiosa. Mas, conforme a entrevista seguia, fui me encantando com sua simpatia e seu espírito leve, e ficou difícil acreditar que ele poderia estar tirando uma com a minha cara. Senti que Jim mais omite do que mente – ao não dar respostas completas sobre tudo, cria pedaços de realidade que parecem conflitantes e até absurdos. Porém, se conseguirmos coletar e encaixar todos esses fragmentos, vemos que eles formam uma história consistente. Assim, depois de mais de uma hora de conversa (que flutuou por temas como mercado de arte, morte e Kraftwerk), creio ter descoberto a verdadeira história de Jim Avignon. Ou uma deliciosa mentira. 1 POR RAQUEL SETZ . RETRATO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA
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4GOOD ARTISTS GO TO MUSEUM, BAD ARTISTS GO EVERYWHERE
que a arte é bela demais para “ Acredito ser só um investimento. a arte deve
servir as pessoas. Às vezes faço coisas de graça. Às vezes faço coisas que custam 20 euros. Não sei por quanto tempo vou conseguir continuar, porque tenho que trabalhar dez vezes mais do que teria se vendesse por um preço alto. Mas gosto da ideia de que a maioria das pessoas que compra minhas obras não tem muito dinheiro. Elas compram porque gostam, não como investimento.
“
Você diz que sua inspiração vem do que vê nas ruas, no metrô. Viu alguma coisa que te inspirou aqui em São Paulo? Para ser sincero, desta vez ainda não tive tempo de ver nada. Mas, quando estive aqui dois anos atrás, fiquei dez dias, andei bastante. E o que vi naquela época continua sendo uma inspiração. Conheceu a arte de rua de São Paulo? Visitei algumas galerias, a Choque Cultural. E só de caminhar pela cidade você vê a arte de rua. Aqui vocês têm um jeito muito particular de desenhar sinais (pichações), que não vi em nenhum outro lugar do mundo. É muito especial. Acho triste a linguagem da arte de rua ter se tornado a mesma em todos os lugares. Você faz arte de rua? Fiz um pouco em Berlim. Até pintei o Muro quando ele ainda existia. Como era viver em Berlim quando o Muro estava lá? Isso pode soar estranho para você, mas todo mundo que estava em Berlim quando havia o Muro aproveitou o momento. Não era uma cidade de negócios, não dava para ficar rico, mas se você fosse para Berlim não precisava servir o exército e até podia ganhar um dinheiro extra do governo. Muitas pessoas livres, muitos artistas, iam para lá e curtiam o fato de ter um muro em volta da cidade, mantendo-as afastadas de todo o resto, da vida da qual elas não gostavam. As autoridades deixavam pintar o Muro? Nem ligavam. Berlim nos anos 80 era um “faça o que quiser”, tanto que metade das casas eram squats (imóveis abandonados que são ocupados pela população).
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Quais artistas e bandas surgidos em Berlim naquela época você considera especiais? Berlim era o QG de muitas bandas punk e new wave. Havia uma atitude de que, quanto menos você soubesse tocar um instrumento, melhor. As pessoas experimentavam muito e faziam coisas novas. No começo dos anos 90, Berlim era a capital da música eletrônica. Havia muitos espaços vazios que você podia transformar em clubes: era só alugar um lugar grande por quase nada, montar um bar, convidar uns DJs e fazer uma festa. Por quase dez anos foi possível fazer isso sem enfrentar nenhum problema legal. Você começou a pintar em casas noturnas. Sim. Li que antes disso trabalhou com pessoas idosas. Virar artista não era a minha ideia desde o início. Trabalhei em um hospital para pessoas idosas. Eu gostava desse trabalho. Elas tinham todo o suporte técnico e médico, mas estavam totalmente entediadas, nada acontecia em suas vidas. Minha parte era dar um pouco de diversão a elas. Mas tive problemas com meu chefe
e fui demitido. Me mudei para Colônia e comecei a desenhar. Aí aconteceu um acidente. Eu frequentava um bar por lá, e o dono me disse: “Merda! Um artista me prometeu uma exposição, mas desapareceu”. E eu falei: “Posso montar uma exposição em dois dias”. Fui para casa, fiz dez pinturas grandes, levei para o bar e pendurei nas paredes. Por coincidência, era época da Feira de Arte de Colônia. Um cara foi ao bar e comprou todas as pinturas. Quando fui até lá de novo, pensei que tivessem tirado os quadros. Então o dono me disse: “Vendi tudo. Está aqui o seu dinheiro”. Me sustentei por seis meses com essa grana. Pensei: “Talvez esse seja um jeito de viver do qual eu possa gostar”, e continuei. Em uma entrevista, você disse que quando era mais novo mentia sobre o lugar onde tinha nascido… (Interrompendo) Eu ainda minto! Quando respondo a uma pergunta sobre minha vida artística, tento ser sério, mas quando é sobre minha vida pessoal – que é algo completamente distinto –, posso criar identidades falsas. O fato de ter nascido aqui, ali ou acolá não interfere no meu traba-
lho. Se você pesquisar na internet, vai achar dez lugares diferentes onde nasci, dez idades diferentes. Eu gosto disso. Porque às vezes você lê sobre alguém e cinco minutos depois já sabe tudo sobre a pessoa. Gosto de ser um pouco misterioso. Talvez você esteja mentindo para mim. Sim, talvez. Gostaria de conversar sobre seu conceito de “cheap art” (arte barata). Não sei como é na Europa, mas aqui no Brasil muitas pessoas compram obras não porque gostam de arte, mas porque querem fazer um investimento. Acho que é assim no mundo todo. Acredito que a arte é bela demais para ser só um investimento. A arte deve servir as pessoas. Às vezes faço coisas de graça. Fiz uma instalação que era uma cabine de fotografia. A pessoa entrava e eu fazia um desenho dela. Escaneava a imagem e mandava para a impressora. Em cinco minutos, o desenho saía pela máquina. Às vezes faço coisas que custam 20 euros. Não sei por quanto tempo vou conseguir continuar, porque tenho que trabalhar dez vezes mais do que teria se vendesse por um
preço alto. Mas gosto da ideia de que a maioria das pessoas que compra minhas obras não tem muito dinheiro. Elas compram porque gostam, não como investimento. Em 1992, na Documenta de Kassel, você fazia uma pintura por dia e as destruía no fim da tarde. Qual era o significado por trás disso? A Documenta é um dos raros eventos em que pessoas que não têm ligação com o meio artístico veem o que está acontecendo no mundo da arte. Não é uma coisa comercial. As pessoas geralmente não entendem de obras de arte, sabem apenas que são muito caras. Então começam a se sentir inferiores, pequenas e burras. Acredito que todos têm a capacidade de ver a beleza de uma obra de arte, mas muitos se sentem inferiores e burros e acabam não deixando o coração entender. Foi uma ideia simplória, a minha, mas queria fazer algo que criasse valor comercial e logo suprimisse esse valor. A ideia da pintura ficou na mente das pessoas, e elas puderam levar pedaços como souvenirs. A mensagem era: “Aqui está alguém que não quer criar valor, quer te contar algo”. E as pessoas podiam participar, pular nas obras.
Elas se divertiram destruindo as pinturas. Durante alguns anos depois disso, toda vez que eu ia fazer uma exposição, alguém me perguntava se ia destruir minhas obras no final. Não sou um destruidor, e inclusive odeio isso, mas naquela época usei esse expediente para mostrar como é idiota ver apenas o valor comercial na arte. Como você trabalha? Tem assistentes? Faz diversas pinturas simultaneamente? Não tenho assistentes. Sempre esperei que alguém pedisse para ser meu assistente, mas isso nunca aconteceu. Eu trabalho em séries. Quando planejo uma exposição, gosto de fazer tudo novo, não uso pinturas antigas. E quero que os trabalhos estejam em uma mesma família de cores. Rascunho as imagens e então uso as mesmas cores em todas as pinturas, para que elas combinem entre si. Existem alguns elementos que aparecem muito em seus trabalhos, como o esqueleto. Há algum significado especial nisso? É um personagem que representa a morte, ou a possibilidade da morte.
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Mas ele está sempre sorrindo. Significa que você não deveria temer a morte. Minhas imagens mostram um mundo não tão divertido de um jeito divertido. Talvez seja uma comparação besta, mas é meio como os filmes do Charles Chaplin. Espero que minhas obras possam fazer as pessoas sorrirem ou rirem dos problemas que têm na vida. Em uma outra entrevista, você disse que, quando faz uma obra, considera mais importante tirar uma foto dela e colocar num livro do que manter o original. Para mim, a beleza está mais na ideia da pintura do que na pintura em si. Eu não vou ao estúdio, olho uma tela em branco e tudo se torna mágico. Isso nunca acontece comigo. Eu curto o momento em que observo o mundo, vejo algo aqui e algo completamente diferente ali, estabeleço uma relação entre as duas coisas e isso se torna a ideia para uma pintura. Esse é o momento de beleza. E eu não vendo isso, vendo a pintura na qual essa ideia foi re-trabalhada. Nunca fico triste porque o quadro tem que ir embora. Me conte sobre seu trabalho com música, a one-man band Neoangin. Comecei essa banda no fim dos anos 90, em um momento de crise com a pintura. Mas imaginei que fosse durar só algumas semanas. Eu combino música e arte, levo obras para o palco, e meus shows parecem pinturas animadas com música. Muitos dizem que minhas canções são como meus quadros: alegres e divertidas, mas também tristes. Você compõe tão rápido quanto pinta? Sim. Colocando a coisa de um modo negativo: eu não consigo me concentrar e continuar trabalhando em uma mesma coisa. Assim que faço uma música, esqueço completamente dela e já vou para uma nova. Neoangin é o nome de uma pastilha para tosse? É. As pessoas tomavam muitas drogas quando iam aos clubes e eu nunca usei nada. Então, como ironia, eu carregava essas pastilhas e dizia: “A minha pílula é a maior. Você tem esse ecstasy pequeno? Eu tenho um grande!” Elas são grandes, vermelhas e doces, e não dão barato nenhum. Que estilo de música você ouve? Quais são suas bandas e artistas favoritos? Isso muda muito. Gosto do Jonathan Richman. Ele tem quase 60 anos e começou a fazer música punk em 1972, quando todos estavam fazendo rock progressivo riponga. Ele é muito divertido no palco. Gosto do Kid Koala, que faz um hip-hop engraçado, Devendra Banhart…
E Kratfwerk, Can, krautrock? É muito drama para mim. O Kraftwerk teve momentos incríveis nos anos 70, mas hoje eles parecem personagens de desenho animado. Posso rir deles, curtir, mas o modo como se levam a sério me faz querer fugir. O Can também fez álbuns ótimos nos anos 70, mas conheci alguns de seus integrantes e hoje eles são freaks. Gosto mais da música quando acho que gostaria de conhecer a pessoa que a fez e conversar com ela. E com alguns artistas alemães sinto que a conversa não seria nada divertida. Quando você esteve em São Paulo dois anos atrás, um canal de TV perguntou o porquê do nome Jim Avignon. E você respondeu que estava em Avignon sem dinheiro nenhum e começou a copiar pinturas de Dalí para vender. É verdade. É verdade?! Mesmo? Sim. Aprendi na escola que sou muito bom de desenho. Sei copiar. Em um aniversário, copiei minhas quinze pinturas favoritas feitas por outros artistas. Com a música é o oposto: para fazer um cover, tenho que ficar horas procurando os acordes. Passei três meses na França depois de terminar o colégio. Aí meu carro quebrou e eu não tinha dinheiro para voltar. Não queria ligar para os meus pais, mas também não queria arrumar um emprego. Eu tinha comprado um livro com as pinturas do Dalí e comecei a reproduzir as imagens. Havia muitos turistas em Avignon, então consegui uma grana.
4I WANT YOU BE GONE WITH THE WIND
Foi antes de começar a pintar em clubes? Sim. Eu tinha 19 anos. Só fui pintar novamente dois anos depois. Voltei para a Alemanha e trabalhei nesse hospital para idosos. Escrevi contos sobre isso e publiquei como um fanzine em uma loja de livros alternativos. Só que não queria assinar com meu nome verdadeiro. Achei que poderia ter problemas, porque eu falava sobre meu trabalho de um jeito punk: contava que tinha que limpar merda, que ia bêbado. Então assinei como Jim Avignon. Um jornal descobriu esse livro, fez uma matéria grande e meu chefe leu. Foi assim que perdi o emprego. Mas como ele soube que era você? Porque no livro eu coloquei o nome do lugar onde trabalhava, então foi muito fácil descobrir que era eu. A partir daí comecei a usar o nome Jim Avignon: primeiro como escritor, depois como pintor. 3
2SAIBA MAIS jimavignon.com Jim Avignon veio ao Brasil em outubro participar do MCD Lab 2 /Blind Date Berlim, que contou com curadoria Bungalow e +Soma
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4FOTO POR CHILDREN AT RISK FOUNDATION
Firme & Forte na Mistura Ainda lembro do impacto que senti na primeira vez que vi uma obra de Rodrigo Almeida Galosi, mais conhecido como IZOLAG, artista nascido no Rio de Janeiro que adotou a Bahia como terra natal. Criado em Ipiaú, cidadezinha de pouco mais de 40 mil habitantes no interior baiano, foi para Salvador cursar Artes Plásticas na UFBA, mas abandonou o curso para mostrar seu trabalho nas ruas (e depois nas galerias). Com um estilo original que mistura o graffiti com o estêncil, Izolag – que atualmente vive em Petrolina, Pernambuco – já se tornou uma referência singular no circuito das artes plásticas, com obras caracterizadas pela forte presença da música e de diferentes temas urbanos, como a pobreza e o abandono. Usando diferentes tipos de suportes, como carcaças, madeira e couro, o artista foi reconhecido primeiro no exterior, com obras compradas por diversas galerias europeias, e agora começa a se destacar no cenário nacional. Neste bate-papo com a +SOMA, ele conta sua história, explica a importância da música em seu trabalho e critica a falta de apoio a artistas fora do eixo Rio–São Paulo. 1
POR DANIEL TAMENPI . FOTOS POR IZOLAG E ANANDA NAHU
Quando e como a arte começou a fazer parte da sua vida? Desde criança trabalho com couro, sola e madeira. Meu pai é sapateiro, então sempre convivi com a produção de calçados e artesanato. Eu também fabricava carros de madeira quando criança, no interior. Cheguei a ter uma minioficina no quintal de casa, onde consertava carros de pau (usados para carregar as compras da feira para casa nas cidadezinhas do interior) de gente de todo o bairro. Por que, apesar de ter nascido no Rio de Janeiro, você se apresenta como um artista baiano, e não carioca? Aos sete anos saí do Rio de Janeiro e fui morar no interior da Bahia, em Ipiaú. Não foi nada planejado. Meu pai perdeu tudo que tínhamos com jogo e bebida, e tivemos que achar uma alternativa pra sobreviver. Como minha mãe tinha parentes por lá, tive que me agarrar a ela. Aprendi a amar muito a Bahia, e foi lá que tive a maior parte da minha formação e do meu trabalho. Vejo o Nordeste muito presente na sua arte, com uma mistura de cores intensas em volta das gravuras. Você concorda? Sim. Quando pinto no Nordeste, a coisa fica quente. A claridade é imensa, o chão é marrom e vermelho, cheio de espinhos. É uma coisa natural, não é algo que pesquiso em livros. Mas a minha fonte inspiradora maior é a música. Só depois vêm as capas de discos, os cartazes, os filmes, a literatura, os documentos antigos, a política, a caligrafia... Sempre fui vidrado em imagem e som. Fiz programas de rádio comunitária, de choro, MPB, rock e hip-hop na adolescência. Além disso, a gravação da imagem em estêncil é bem demorada e cansativa. Tem o trabalho digital da imagem, montagem, lavar radiografia e cortar. Parece não acabar nunca. Nesse processo, o som nos deixa em movimento e atividade. 73
Sobre o período em que estudou Artes Plásticas em Salvador, você acha que foi um fator importante pra sua formação ou a faculdade apenas deixa o artista mais restrito e bitolado? Acho que o indivíduo se põe na condição de bitolado. Cheguei a dormir na rua pra fazer esse curso na Universidade Federal da Bahia, saí do interior sem ajuda, só com a força que minha mãe me deu. Hoje eu não faria isso de novo. A internet está aí, e também a facilidade de ver boa arte. Não acho mais necessária essa formação acadêmica que só restringe e segrega.
4OBRA EM PETROLINA/PE
Você é casado com a Ananda Nahu, que tem um estilo que combina muito com o seu, tanto que vocês fazem parcerias constantes. De que forma vocês se influenciaram artisticamente? Nos conhecemos no período da faculdade, estudamos juntos e abandonamos juntos. Ananda também é fruto de influências de sua terra natal, além da música, do cinema, do(s) cartazes, dos tecidos. Nós desenvolvemos em parceria a nossa maneira de fazer o estêncil. Antes disso, pra mim, o estêncil era mais ligado ao protesto, a ícones da luta armada e uma pop-art mais extrema. Começamos a misturar cores e a trabalhar com mais complexidade, e isso aconteceu com outros artistas no mundo no mesmo período. Mas mesmo assim ainda são raros os casos.
Você usa matérias-primas diversas em suas telas: couro, vários tipos de madeira, carcaças. Por que essa diversidade de superfícies? Eu moro muito longe. Não dá pra ir no comércio e comprar uma tela pra pintar, então uso coisas do cotidiano e que costumo achar nas ruas, no lixo. Outras eu compro. Aqui em Petrolina existe um curtume onde trabalham o couro. Como desde pequeno lido com esse suporte, creio que vou usar muito ainda, e ele pode ser usado de diversas formas. O seu trabalho tem chamado bastante atenção nos últimos anos, rendendo exposições fora do país. Como tem sido a recepção da sua obra nas galerias? O Brasil é uma grande potência nas artes atualmente. Tenho muitos colecionadores, um mercado do qual eu não esperava participar. No período da faculdade, achava que viveria do graffiti, não de pintar telas. Isso seria uma loucura! A rua é uma coisa mágica, mas pra pintar na rua tem que ter tinta, e se eu não pinto em telas não rola. O graffiti é a melhor parte do processo. Telas e galerias são a parte mais chata. Se eu pudesse só pintaria na rua. 74
Suas obras estão expostas em presídios europeus e em multinacionais. Como funciona isso? As galerias com que eu trabalho estabelecem contato com diversos meios: TV, cinema, moda, instituições como presídios e empresas multinacionais como a Philips, que coleciona meus trabalhos há alguns anos. Quanto às pinturas nos presídios, o tratamento e a importância que se dá ao presidiário europeu é coisa fina. Existem três psicólogos pra cada detento, além do alto investimento em arte. Você e a Ananda têm um projeto juntos, chamado Firme & Forte. Conta um pouco mais sobre isso. Por termos as mesmas afinidades na arte, na cultura e na vida, a gente criou a Firme & Forte Records, uma gravadora de imagens que tem como principal referência a música e seu mundo. A ideia é ampliar os limites das mídias, transformar as batidas sonoras em arte gráfica multicolorida, atuando com cartazes, pintura, graffiti e fotografia, criando uma união da imagem com o som. É uma coisa diretamente influenciada pela cultura brasileira. O nosso repertório não integra a antiquada e ditatorial arte acadêmica, mas sim a arte impregnada nas capas de discos de diversos países, cartazes que vão desde os revolucionários e psicodélicos até os dos dias atuais – filmes, desenhos animados, o mundo do skate, quadrinhos etc. E a intenção é trabalhar também com a produção fonográfica, com discos de vinil. Temos como parceiros diversos grupos, bandas e cantadores também. Você atualmente mora em Petrolina, em pleno agreste pernambucano. Essa mudança teve algum objetivo relacionado à sua arte? Estou sempre disposto a aprender, e vim morar aqui porque precisava de um tempo pra ganhar maturidade como artista e como pessoa. A Ananda é de Petrolina, e fazia muito tempo que queríamos realizar algumas coisas por aqui, trabalhando com graffiti e também com outros suportes, como fotografia e vídeo, assim como fiz no sul da Bahia. Você acha que as coisas são mais complicadas pros artistas que não estão no eixo Rio–São Paulo? Sem dúvida alguma. As coisas acontecem no eixo Rio–São Paulo. Vemos o tema e a estética da cultura nordestina tateando aqui e ali no trabalho de diversos artistas das grandes capitais. Já aqui não existe nem tinta. Muitos desistem. Tudo vem do Rio e de São Paulo: spray, tinta acrílica, telas... Pra desenvolver algo é preciso alto investimento, mas há pouca circulação de dinheiro pra cultura, que vive apenas do passado e não dá conta do novo. Não se nota que o Nordeste hoje é valvulado, mas também é digital, e que sempre estaremos olhando pro futuro. 3
2SAIBA MAIS flickr.com/photos/izolag fotolog.com/izolag
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(sétimo título de uma discografia que conta uma demo-tape, três álbuns, um single, um compacto em vinil e um disco de versões acústicas), o regurgitar artístico de uma época especialmente negra na biografia de um cara desde sempre interessado nas sombras. “Sofrer é uma palavra-chave”, ele diz, antes de soltar uma gargalhada tão rumorosa quanto debochada, garantindo que a violenta mordacidade do disco é produto de uma época de muita amargura, cujo clímax foi o fim de um casamento. Porém, em uma recusa a qualquer intimismo antirromântico, em 12 Arcanos o desespero humano foi expandido para uma generalidade assustadora, e os elementos dessa alquimia da desesperança são o ódio, o desprezo e a violência, gratuitos ou não. Nada direcionado a alguém específico, mas apontado para o mundo todo, inclusive para si próprio, como a frase que dá título a este texto, dita por ele, deixa claro.
M EC H A NICS
O que importa é como se atravessa o fogo
Márcio Júnior, mentor intelectual do grupo mais barulhento da capital brasileira do rock de garagem, é um sujeito boa-praça: engenheiro diplomado, inteligente, articulado e simpático. Mas, ao contrário do que faz supor o breve resumo de seu currículo como ser humano, não é exatamente um bom partido: a engenharia ficou na universidade, e seu único legado autoproclamado é o pensamento lógico. Sua inteligência, qualidade quase sempre admirada pelos status quo, serve mais à confusão que ao entendimento, assim como sua verborragia corrosiva e ensaiada (e nem por isso menos autêntica). A simpatia? Essa, sim, seria livre de interpretações marotas, não fosse certo cinismo displicente embaralhado na postura bem-humorada. 1
POR HIGOR COUTINHO . ILUSTRAÇÕES POR LAURO ROBERTO
A preferência pela contramão, o fascínio pelo avesso e o gosto pela contradição estão na gênese do Mechanics, assim como a melodia, a harmonia e o ritmo estão no DNA da maioria do resto das bandas do mundo. O grupo é um dos decanos do rock goiano, orgulhoso de seu feito único de figurar em todas as edições do hoje tradicional Goiânia Noise Festival. E Márcio Júnior (além de vocalista, agitador cultural e executivo da mais conceituada etiqueta de rock independente do país, a Monstro Discos), conduziu sua cria principal através de uma década e meia com mão-de-ferro, assoberbado pela recusa autoimposta de fazer qualquer concessão além daquelas que ele mesmo se permite. A sequela mais recente dessa intransigência toda fica evidente em 12 Arcanos
Baseado em doze arquétipos, como numa espécie de tarô burlesco, 12 Arcanos explode no chicotear estridente das guitarras e no retumbar maníaco de baixo e bateria, soterrando a mensagem lúgubre dos vocais debaixo de uma massa sonora perturbadora. Mensagem essa que é transmitida em português pela primeira vez (excetuando-se o cultuado punk festivo “Formigas Comem Porra”, hit da primeira demo-tape de 1995, relançado num single em 2003), com a intenção deliberada de oferecer ao receptor o sentido claro e instantâneo do negativismo escancarado que atravessa a obra: “O inferno é aqui!” (a exceção é a faixa bônus “I Am Joe’s Fear Of Disease” – homenagem ao genial pintor e quadrinista norte-americano Joe Coleman, única do disco com letra em inglês).
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com o tumulto ensurdecedor das guitarras e da letra esgoelada no microfone: sessões calculadas e violentas de tapas na cara, corpos amarrados com explosivos e cabelos engolidos (e vomitados de volta) formaram par com algumas das apresentações mais intensas do grupo em Goiânia, atingindo em cheio um público que, oscilando entre a admiração e a repulsa, nunca passa incólume por uma experiência como essa.
Fã declarado de David Bowie (“Bowie é o cara!”), Márcio segue, ao seu modo, a doutrina mutante do camaleão, na medida em que se dedica ao descarte atencioso de padrões, fazendo apostas estéticas de alto risco sem aparentemente se importar com os efeitos do resultado: “O meu negócio é fazer. Se vai dar certo não é problema meu. Já teve época em que eu achava que ninguém gostava do Mechanics, e isso foi um ótimo motivo pra gente continuar”. Mas a lírica virulenta de 12 Arcanos tem também outras inspirações menos óbvias, que vão desde o poeta, tarólogo, roteirista de quadrinhos e cineasta chileno Alejandro Jodorowsky, passando pelo citado Joe Coleman e chegando ao artista plástico carioca Lauro Roberto, egresso da cultura de fanzines dos anos 80 e 90, cujo traço demente transcendeu a simples influência e ganhou as capas do álbum e as cartas do tarô bestial que servem de encarte ao disco (e criam uma espécie de iconografia do caos para cada uma das doze faixas).
E, além de um amor arrogante e declarado pelo bizarro, pelo duvidoso, Márcio também não parece temer a polêmica, e é sem acanhamento que desdenha da produção do coletivo de design goiano Bicicleta Sem Freio (responsável pela arte de vários discos e cartazes da Monstro Discos) para ilustrar a posição propositalmente marginal do Mechanics. Quando perguntado sobre o motivo da escolha de Lauro Roberto para a arte do álbum, ele dispara sem hesitar: “Porque eu não lido com maneirismos e não chamo o Bicicleta Sem Freio pra fazer a capa do meu disco. Porque o Lauro tem um senso estético afinado com a gente, e porque não é pra ficar bonito!” É esse mesmo tom que Márcio usa quando torce o nariz para a maioria das preferências consensuais e explica que suas prioridades estão situadas fora daquilo que define como zona de conforto, escarnecendo de certo padrão do bom gosto indie: “É fácil falar que o Pavement é legal, mas foi o Melvins quem escolheu estar no pior lugar de todos”.
“O meu negócio é fazer. Se vai dar certo não é problema meu. Já teve época em que eu achava que ninguém gostava do Mechanics, e isso foi um ótimo motivo pra gente continuar”
Quanto à escolha pelo tarô, o ateu convicto Márcio Júnior a atribui tanto às peças de Jodorowski quanto ao seu próprio interesse pelo que chama de camadas do entendimento (o que ele tenta explicar estabelecendo conexões nada místicas com as inúmeras possibilidades de leitura do inconsciente que as cartas oferecem).
A interdisciplinaridade conceitual do Mechanics aproximou a banda também dos happenings ora escatológicos, ora autodestrutivos do Grupo Empreza (coletivo de artistas performáticos nascido na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás), criando no palco um duelo cênico 78
É por essa postura de constante incômodo e provocação que a popularidade underground do Mechanics não vai além do que alcança o olhar desconfiado de seu patrono, que, cioso e sobranceiro de sua pecha de maldito, não ambiciona que a compreensão das tais camadas de entendimento que a banda propõe vá muito além de seu circunscrito séquito de admiradores, quase todos já especializados no consumo do contrário. E, mesmo entre sua ávida audiência, Márcio não descarta nem desabona “os fãs que ainda não atravessaram a superfície e vão ao show só para bater cabeça”, contando sempre com a possibilidade de que o véu caótico dessas apresentações desperte neles também a curiosidade para romper a linha d’água e, a partir da barulheira, mergulhar de fato no nebuloso e complexo universo dos Mechanics. 3
2SAIBA MAIS myspace.com/mechanicsrock
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ALOE BLACC destacou-se no começo dos anos 00, ao lado do produtor Exile, no Emanon, um dos principais grupos do chamado indie rap. Em 2006, caiu nas graças da Stones Throw, lançando-se em carreira solo como cantor de soul e R&B no disco Shine Through. Hoje, é um dos principais destaques do selo com o excelente Good Things, produzido por Leon Michels (do El Michels Affair, Menaham Street Band, The Dap Kings e outros), que traz uma das melhores tracks do ano, “I Need A Dollar”. A música tornou-se tema da nova série da HBO, How To Make It In America, e hit no mundo todo com dezenas de remixes. Multi-instrumentista, produtor, cantor e MC, Aloe Blacc nasceu na Califórnia, mas carrega com orgulho suas raízes panamenhas, sempre mesclando versos em espanhol em suas canções. Fã devoto da música brasileira, o cantor conversou com a SOMA antes de embarcar para uma turnê europeia, e já de olho em shows no Brasil. 1
Aloe B lacc O SOU L PROFUNDO DE
Acompanho seu trabalho desde a parceria com o Exile no Emanon, em que você tinha um papel mais de MC. Como foi esse processo de mudança de rimador pra cantor de soul clássico? A mudança aconteceu aos poucos, com o passar do tempo. Eu costumava acrescentar melodias a algumas rimas e refrões nas músicas do Emanom. Mas foram as melodias vocais que gravei com o Oh No que chamaram a atenção da Stones Throw. Eles me escalaram como cantor e eu lancei Shine Through, quase sem rimas e bem pesado nas melodias. Como começou a sua relação com a música e posteriormente com o hip-hop? Toco trompete e escrevo rimas desde os 9 anos de idade. Quando conheci o Exile, no colegial, comecei a gravar músicas e produzir minhas próprias faixas também. Criamos uma mixtape chamada Imaginary Friends nessa época, que correu o mundo e nos ajudou a ganhar reconhecimento internacional. O Emanon era um grupo independente, em que você e o Exile faziam tudo. Como é ser independente nos Estados Unidos, e quais são as principais diferenças agora que você tem uma base na Stones Throw? Acho que ser independente é a melhor maneira de começar a carreira na música. Você tem que se esforçar muito, mas isso foi natural pra mim, porque desde os tempos da escola a música sempre foi o meu hobby. Trabalhar como um artista contratado tem algumas diferenças e vantagens, porque existe uma equipe de pessoas que ajuda na parte de marketing e até na preparação do lançamento dos álbuns, o que torna as coisas um pouco mais fáceis. Mas isso só funciona de verdade se a música for boa. 80
POR DANIEL TAMENPI COLABORAÇÃO DE RUDAH RIBEIRO . FOTOS DAN MONICK
E como aconteceu a sua entrada na Stones Throw? Eu conheci o Oh No numa turnê pela Europa, e rolou uma sintonia muito boa. Começamos a gravar juntos quando voltamos pros Estados Unidos. Em seguida ele me convidou pra cantar no seu disco, e o Peanut Butter Wolf (o cabeça da Stones Throw) gostou do resultado. Ele me pediu pra gravar um single como cantor, indo mais pra essa pegada do soul. O seu primeiro álbum, Shine Through tem um ecletismo muito grande, com referências latinas, brasileiras, jamaicanas e várias outras. Você acha que é um disco que definiu a musicalidade do Aloe Blacc? Sim! Foi essa a minha intenção. Como era o meu primeiro álbum solo, mais pessoal, quis compartilhar muitas das minhas influências e ideias. É um disco que apresenta a minha personalidade musical pros ouvintes. Você cita Tom Jobim e a bossa nova na faixa “Whole World”, e homenageia Milton Nascimento em “Nascimento (Birth) – Scene II”. Que importância tem a música brasileira na sua formação? Passei bastante tempo ouvindo diferentes estilos da música brasileira e me tornei um fã de carteirinha. Admiro muito a paixão e
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o intelecto por trás da música de vocês. Os ritmos e as melodias formam combinações avançadas, que eu não escuto com frequência em outros estilos. Arthur Verocai e Jorge Ben estão no topo da minha lista de heróis musicais. No disco Shine Through você se mostrou não só um cantor, mas também um produtor de talento. Por que demorou tanto pra expor essa faceta? Eu sempre produzi, desde quando comecei a fazer rap, mas no Emanon o Exile era o produtor e eu o MC. Ao longo dos anos, criei músicas que nunca lancei. Shine Through é uma compilação do meu trabalho ao longo desse período. Suas raízes são latinas, e você mostra isso nas músicas. Por que você faz questão de manter isso no seu trabalho? Nos Estados Unidos, todos são de algum outro lugar. Nossos ancestrais são imigrantes, seja pela escravidão forçada ou pela fuga da opressão. Acho importante compartilhar essas raízes como uma marca cultural para os fãs, que podem aprender algo novo. Meus pais deixaram o Panamá pra buscar uma vida melhor, mas, apesar de o movimento pelos direitos civis terem tornado as coisas mais fáceis pros negros, isso não se estendeu pra além das fronteiras do sul. O processo de escrita entre rimas e canções é diferente. Como funciona isso pra você? Acho que gastar um tempo pra aprender a compor músicas de verdade fez de mim um MC melhor. Eu e o Exile estamos pra lançar um novo álbum do Emanon, chamado Birds Eye View, em que faço os dois estilos na mesma escala, em rimas e canções. Na minha opinião, “I Need A Dollar” é a melhor track de 2010 até o momento. A letra fala sobre sentimentos relacionados ao desemprego e a falta de esperança pro futuro. Qual foi a sua inspiração na hora de compor? A minha inspiração foi o espírito negro do sul dos Estados Unidos. Eu estava escutando muitas músicas de chain gang workers (prisioneiros que tinham como punição trabalhar acorrentados uns aos outros em serviços braçais pesados), que criavam as suas canções de trabalho a partir de hinos religiosos. As letras são bem pessoais também. Eu tinha acabado de perder o meu emprego de consultor de negócios em uma empresa. Juntei todos esses sentimentos e saiu esse som.
Como rolou de ela virar tema da série How To Make It In America, da HBO? Você acha que o seu trabalho ganhou mais visibilidade depois disso? Na verdade, o disco Good Things já estava gravado e finalizado fazia alguns meses. A HBO entrou em contato com a Stones Throw procurando uma música. A partir de uma compilação de artistas do selo, eles selecionaram “I Need a Dollar”. Foi ótimo! Com certeza meu trabalho ganhou mais destaque depois disso, nos Estados Unidos e também nos outros países onde a série está sendo exibida. Eu gosto do programa, e acho que os brasileiros vão gostar também.
“Ser independente é a melhor maneira de começar a carreira na música. (...) Trabalhar como artista contratado tem algumas diferenças e vantagens, porque existe uma equipe de pessoas que ajuda (...). Mas isso só funciona de verdade se a música for boa.”
O seu novo disco foi produzido pelo Leon Michels e pelo pessoal da Truth & Soul Records, que, apesar de ter o hip-hop como influência, são músicos e produtores com outra linha de pensamento. Como foi trabalhar com eles? Foi muito fácil. Eles têm um ótimo conhecimento sobre a música soul e seus diversos estilos, além de estarem fazendo grandes trabalhos nos últimos anos. Acho que o som que fizemos juntos é clássico e atemporal. Tanto o Shine Through como o Good Things não foram lançados oficialmente no Brasil. As pessoas conhecem os seus discos através dos downloads ilegais na internet. Ao mesmo tempo, a Stones Throw é uma das gravadoras que mais combatem esse tipo de divulgação. Qual é a sua opinião a respeito disso? Seria melhor que as pessoas achassem uma forma de comprar as músicas, mas, se não tem distribuição, então tudo bem. O que eu quero é fazer as pessoas ouvirem e gostarem da minha música. No fim, a indústria e os consumidores vão acabar desenvolvendo uma relação de trabalho positiva, que vai permitir que os artistas se sustentem e que os fãs curtam a música de uma maneira acessível. Acho que, talvez, no futuro, a música vai ser grátis pro público e paga pelos anunciantes.
Como fã do Brasil e da nossa música, você já tem alguma previsão de quando vai vir ao país? Estou ansioso para visitar o Brasil. Espero que um promoter entre em contato comigo pra fazer shows, porque a música soul é amada em todos os lugares, e eu quero mantê-la viva. O meu objetivo é, além de cantar as minhas composições, difundir a música dos grandes artistas do soul que não estão mais vivos, como Marvin Gaye, Donny Hathaway e Sam Cooke. 3
2SAIBA MAIS aloeblacc.com myspace.com/aloeblaccmusic
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rayson G ilmour G asladocoidosasmundodo outro POR CINTIA YOKOYAMA . FOTO DIVULGAÇÃO
Na Nova Zelândia, a vida segue em ritmo diferente. Seus habitantes dizem se sentir entediados, reclusos em uma ilha isolada, distantes das coisas que admiram. Pelo menos é assim que Grayson Gilmour gosta de descrever o lugar de onde vem, mas fazendo questão de acrescentar que “isolamento instiga criatividade”. GG se identifica como um músico “self managed”, “self promoted” e “self sold”. Lançou seu primeiro álbum aos 16 anos, cresceu trabalhando em sua loja de discos favorita e hoje leciona música na Victoria University. Sua raiz está no punk/hardcore, que inclusive inspirou seu projeto paralelo, So So Modern. Em No Constellation, porém, seu quinto álbum solo, lançado no primeiro semestre deste ano, Gilmour mostra arranjos melódicos com letras intimistas e xilofones e pianos que vão do calmo e doce ao extravagante e enérgico. Em entrevista à SOMA, ele fala sobre o isolamento geográfico, as peculiaridades do país e a construção da cena musical local. 1
Como é fazer música na Nova Zelândia? O que eu mais gosto aqui é da diversidade e do isolamento. O mainstream está presente, mas não é acompanhado tão de perto como em outros lugares, as pessoas preferem ter mais liberdade pra produzir e ouvir música. Além disso, é um país relativamente barato de se viver, e o governo incentiva a cultura.
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E em um país com só quatro milhões de habitantes fica mais fácil ser famoso, né? Por ser um país pequeno, tudo ganha destaque aqui dentro. A vantagem é que, a princípio, fica mais fácil se promover como músico. Por outro lado, a NZ não consegue amparar e sustentar um artista, já por que aqui se faz uma turnê passando pelas quatro principais cidades e só, enquanto na Europa, por exemplo, uma turnê pode durar vários meses. A sua atual gravadora, a Flying Nun, teve um papel importante na década de 80, lançando bandas e criando um novo nicho. Depois, ela foi comprada pela Warner Music, e Roger Shepherd, seu fundador, saiu por divergências ideológicas. Em 2009, Shepherd voltou ao comando da gravadora. Como isso afeta a cena musical na NZ? Muito da cena independente daqui se deve à Flying Nun, e a “volta às raízes” da gravadora é importante por duas razões. Primeiro, os artistas lançados pelo selo e banidos por conta da Warner vão ter seus trabalhos novamente disponíveis ao público. Segundo, a gravadora está trabalhando com novas bandas, que estão fora do mainstream e construíram sua reputação de maneira independente.
Como é tocar fora da NZ? Como o público recebe as bandas neozelandesas? As pessoas têm concepções bizarras da NZ. Pensam que é um país subdesenvolvido e tropical, como Fiji e Samoa, que ficam aqui perto. Por outro lado, na primeira vez que toquei na Espanha com a minha outra banda, a So So Modern, as pessoas cantavam junto as nossas letras. Eu fiquei boquiaberto, mas acho que é esse o milagre da internet. Em Wellington (capital do país), todo mundo canta suas músicas nos shows e acompanha sua carreira de perto, parece que todo mundo se conhece desde o colégio. Como é trabalhar nesse clima? O nosso público é na maior parte universitário. Muitas bandas e festivais são iniciativas vindas de estudantes. É ótimo trabalhar assim. O clipe de “Loose Change” tem como cenário as ruas de Wellington – aliás, do bairro onde moro. O diretor Jesse T. Smith e eu temos uma sintonia bacana. Ele capta a essência das músicas perfeitamente.
A faixa “Gem Apple John” fala sobre um personagem que tenta expressar suas ideias, que gosta de Barthes, e termina se frustrando por não ser ouvido. De onde veio o nome dessa música? É uma pronúncia errada da frase “Je m’appelle John”, que um amigo meu soltou durante uma aula de francês. O meu francês também é sofrível, então por empatia criei o personagem. Eu li sobre o Situacionismo e a sociologia francesa, e quis que esse John falasse sobre isso. Mas, em um país como a NZ, que está longe de ser engajado, essa tentativa de se expressar é improdutiva. Tudo isso meio que diz algo sobre o que é viver literalmente no fim do mundo. Quem são seus músicos favoritos, e o que você tem escutado? Escuto desde hardcore dos anos 80 até música eletrônica minimalista tipo Nobukazu Takemura. Tento encontrar algo que me agrade em todos os gêneros musicais, mas o que mais tenho escutado são bandas como The Books, Cornelius, Tortoise e artistas da Anticon Records como Why?, Dosh e Prefuse 73. 3
2SAIBA MAIS graysongilmour.com myspace.com/graysongilmour myspace.com/sosomodern flyingnun.co.nz 85
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POR MATEUS POTUMATI . RETRATO POR FLORA PIMENTEL
Ainda é meio difícil entender como, mas o fato é que, nos últimos anos, novas formas de rock instrumental se tornaram populares no circuito independente brasileiro, especialmente fora do eixo Sul-Sudeste. Também é curioso constatar que esse fenômeno nem sempre é devedor de bandas nacionais mais veteranas, como o Hurtmold, seja em termos estéticos ou históricos – e frequentemente, excluída a ausência de vocais, essas bandas guardam poucas semelhanças entre si. O principal expoente dessa cena, o trio cuiabano Macaco Bong, passa longe de vibrafones, elementos eletrônicos e da atmosfera jazzy à Chicago do grupo paulistano – insistindo na analogia imperialista, os ares ali são mais Seattle ou Washington. E a paleta de cores muda completamente no caso do post-rock à Enio Morricone do Ruído/mm ou do neo-psicodelismo nordestino do Burro Morto. 1
funciona, isso automaticamente abre uma possibilidade. Você vê que existem novos caminhos e começa a explorar.” Mas, se aqueles pioneiros são parte da grade curricular, o som da Joseph Tourton não é meramente derivativo: seu primeiro disco homônimo, lançado em setembro deste ano, mostra personalidade notável para um grupo de garotos entre 19 e 21 anos. Com base no rock, as faixas do álbum se arriscam por ritmos hostis ao gênero, como o choro, e por atmosferas pouco exploradas pelas bandas dessa seara, como a ambient music e o kraut rock (ainda que Brian Eno lhes seja um ilustre desconhecido, e grupos como Can ou Tangerine Dream sejam aquisições recentes ao repertório musical dos pernambucanos). Essa vocação exploratória é resultado, em grande parte, da formação musical variada dos membros da banda. “O Diogo [Guedes], que é o outro guitarrista, curte muita coisa gringa, pesada. Pedro [Bandeira], o batera, ouve muito reggae. Eu gosto mais das coisas brasileiras, por exemplo Novos Baianos, e de samba”, diz Gabriel, que já tocou em um grupo de choro e lista Luiz Gonzaga como uma de suas principais influências. “Mas também gosto muito de rock”, ele deixa claro. Como se fosse preciso.
eja como for, a música sem refrões ressurgiu de forma espontânea, orgânica, para conquistar um lugar legítimo e inédito na cultura jovem brasileira. Talvez a maior prova disso seja o quarteto A Banda de Joseph Tourton, de Recife. Na ativa desde 2008, o grupo já representa uma terceira geração de grupos indies instrumentais, para quem Hurtmold e Macaco Bong são parte da formação. “Cada mês eu descubro uma banda instrumental nova boa”, conta Gabriel Izidoro, 19, que toca guitarra, escaleta e flauta transversal. “Mas não sei dizer o porquê disso. Acho que, quando você vê uma banda que
Formação musical também é um conceito chave para entender A Banda de Joseph Tourton dentro do seu contexto local. Se a pouca idade ainda dificulta uma articulação maior sobre o próprio trabalho, o talento criativo da banda é fruto maduro da cena de Recife, cidade com tradição e mentalidade musical arejada, que dispensa maiores apresentações. Gabriel aprendeu a tocar violão no Colégio de Aplicação da UFPE. “A gente teve aula de música da 5ª série até o 3º ano, e isso desenvolve muito quem passa por lá”, resume. Depois do violão veio a guitarra, mas ele não parou por aí. “Eu sou muito curioso com música. Tinha um
amigo que tocava flauta, e pedi pra ele me ensinar. As primeiras músicas que eu aprendi foram as do Mombojó. Depois comecei a estudar choro.” A flauta e a escaleta entraram na música da Joseph Tourton com naturalidade, oferecendo um contraponto tão sutil quanto eloquente às bases de guitarra. Com essa e outras “impurezas” de timbres e ritmos, sempre bem-vindas no mundo monolítico da guitarra brasileira, a Joseph Tourton de saída já produz um som mais rico e denso do que a média. Essa impressão só é amplificada ao vivo. No show da banda durante o Coquetel Molotov 2010, em Recife, o contraste entre dinâmicas fortes e sutis – nas quais, além das guitarras, o baixo de Rafael Gadelha tem papel fundamental – se mostrou bem resolvido, reforçando o sentimento de coesão das composições e, principalmente, pondo à prova uma serenidade de execução difícil de encontrar em músicos tão pouco experientes. Ali, diante de um teatro quase lotado (com capacidade para 6 mil pessoas), no mesmo palco que receberia o primeiro show do Dinosaur Jr. no Brasil em menos de uma hora, A Banda de Joseph Tourton passou no seu teste de fogo e mostrou que o futuro do rock recifense e do novo rock instrumental brasileiro está em boas mãos. 3
2SAIBA MAIS josephtourton.com.br A Soma viajou a Recife a convite do festival Coquetel Molotov/ Conexão Vivo 2010.
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+QUEM SOMA
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. BOCADA FORTE . Por Raquel Setz . Foto por Fernando Martins Ferreira
site Bocada Forte/Central Hip-Hop começou sem grandes ambições. Era 1999, e o grupo Urbanos Mcs, que tinha acabado de participar de uma coletânea de rap da gravadora Trama, foi convidado pelo Sesc para fazer uma turnê pelo Brasil. André Cesário da Silva, estudante de publicidade e vizinho da banda no Jardim Monte Alegre, Zona Sul de São Paulo, se propôs a fazer um site para divulgar o trabalho dos amigos. O colega de faculdade Fábio Henrique Pereira também entrou no jogo e logo o site foi para o ar. “Começou com essa ideia de ajudar, mas, como não tinha nada na época sobre hip-hop, o Bocada Forte acabou virando um canal de comunicação e foi crescendo”, conta Fábio. Em 2001, os dois amigos criaram a ONG Serumano, para dar suporte jurídico ao site e viabilizar projetos junto ao poder público. “Se a gente fosse abrir uma empresa com CNPJ, 88
uma empresa capitalista, o pessoal do hip-hop ia cair de pau na gente”, explica André. Em 2004, eles receberam o apoio de uma ONG holandesa para criar uma versão internacional do site, em quatro línguas, com o nome Central Hip-Hop – como o preconceito contra o rap ainda é forte no Brasil, a alcunha Bocada Forte acabava espantando eventuais patrocinadores, que poderiam associar o nome ao mundo do crime. Com o dinheiro dos holandeses nas mãos, André e Fábio pediram demissão dos respectivos empregos e resolveram se dedicar ao projeto em tempo integral. Seis meses depois, estavam sem dinheiro e sem emprego. Para sair do buraco, tiveram a ideia de montar uma firma de duplicação de CDs, serviço muito procurado por grandes empresas. Compraram o equipamento, fizeram um site institucional
caprichado e arregaçaram as mangas. Com um capital inicial de 2 mil reais, uma máquina de duplicação que gravava apenas sete CDs por vez e tendo como sede um boteco desativado do pai de André, nasceu a Ponto 4 Digital. “A gente comeu o pão que o diabo amassou”, comenta Fábio, logo corrigido por André: “Pão não, pastel com Dolly. Durante um ano, todos os dias”. A exótica dieta rendeu a Fábio uma úlcera. E esse não foi o único perrengue por que passaram – quando adquiriram a máquina de lacrar os CDs, a pequena sala em que a firma estava instalada se transformou em um forno que os assava lentamente a 45 graus. Além disso, se o vendedor de material de limpeza passasse gritando na rua ou se os passarinhos do vizinho resolvessem piar na hora em que eles estavam com um cliente ao telefone, a pessoa do outro lado da linha ouvia tudo – razão que inclusive os levou a tomar muito cuidado na hora de dar
descarga. Mas, com trabalho duro e suor (muito suor, literalmente), a empresa foi crescendo, e hoje ocupa dois galpões no bairro de Veleiros, contando com uma equipe de 45 pessoas e uma lista de clientes de fazer inveja.
rumano transformou a antiga sede da empresa em um ponto de cultura, onde jovens têm aula de produção musical e, ao fim do curso de três meses, irão gravar uma faixa – e os CDs serão prensados na Ponto 4.
camisetas. A ideia é também gerenciar produtos de outros artistas, porque o foco do cara é fazer música. Não dá pra se preocupar em confeccionar roupa, gerenciar loja virtual, toda a logística de venda”, explica Fábio.
A história de sucesso poderia terminar por aqui e servir de exemplo para jovens empreendedores. Mas o que vem a seguir é ainda mais legal: cientes do que é passar dificuldade, André e Fábio usam a Ponto 4 Digital como meio para apoiar jovens rappers. “Muito material se perde na impressão, mas o CD continua virgem. Então, se chega um grupo que não tem grana, a gente grava os CDs usando esse material. Se o cara tem uma verba, a gente faz por preço de custo”, conta Fábio. “E o legal é que, quando você apoia alguém, essa pessoa te apoia também. Divulga, ajuda a encontrar novos clientes”, completa. Recentemente, a ONG Se-
André e Fábio também se preparam para lançar, em parceria com o MC carioca Marechal, uma linha de roupas chamada Muro. Além de camisetas de artistas de rap, a marca trabalha com coleções especiais: uma música é escolhida, enviada para diversos artistas plásticos, grafiteiros e designers e cada um cria uma estampa inspirada no som. Em novembro sai a primeira fornada de camisetas, com mais de trinta estampas inspiradas em “Espírito Independente”, de Marechal. Quem compra a peça de roupa leva de graça um CD ou vinil com a música. “Já que não se vende mais CD de música, o objetivo é fazer esse CD chegar às pessoas por meio das
O site Bocada Forte/Central Hip-Hop, onde tudo começou, continua firme e forte, apesar de não veicular anúncios e, como consequência, não gerar nenhuma renda. É mantido por jornalistas que trabalham de forma colaborativa, escrevendo sobre o que gostam. Parceria é isso aí.
2SAIBA MAIS centralhiphop.uol.com.br ponto4digital.com.br twitter.com/bocadaforte 89
FOTO POR JAMES CHANG
POR MENTALOZZZ, COM COLABORAÇÃO DO DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG
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o longo dos anos 90, com a popularização do CD, da internet e do MP3, a música brasileira foi se redescobrindo através de relançamentos e de gravações raras que voltaram a ser ouvidas. A princípio foi a bossa nova, com os novos lançamentos em CD e os velhos LPs indo para o exterior em dólares ou ienes. Depois foi a vez da MPB, com as caixas completas contendo raridades como a trilha sonora de Gilberto Gil para o filme Copacabana Mon Amour, de Rogério Sganzerla. Já mais para o final da década veio a fase do funk brazuca, com Tim Maia (e seu álbum Racional) e Gerson King Combo abrindo caminho para Tony e Frankie, Tony Bizarro e Tony Tornado. Além desses, muitos outros discos raros e desconhecidos tiveram suas cópias espalhadas e popularizadas em CD-Rs gravados a partir dos LPs e vendidos nas lojas da Galeria do Rock até que o pessoal do Titans se arriscou a lançálos oficialmente. Depois da virada do século, graças ao trabalho dos DJs, pudemos conhecer mais sobre a psicodelia brasileira, sobre o nosso folk quase esquecido dos anos 70 e também sobre alguns maestros que mereciam mais atenção, como Arthur Verocai.
COISAS QUE GOSTAMOS DE GUARDAR Você é colecionador? Sim. Eu era sócio de uma danceteria no Anhangabaú nos anos 90. Sempre tive muito amor pela música, mas não a brasileira. Nasci cercado de LPs do Roberto Carlos, mas gostava mesmo era de Cramps, Stooges e bandas brasileiras tipo Pin Ups. Isso eu colecionava de forma natural. Por que você foi morar em Nova York? Perdi tudo depois que algumas coisas não deram certo na danceteria e fui pra Miami trabalhar duro lavando pratos. Logo depois fui pra NY, trabalhar em um restaurante italiano. E o salário dava pra comprar discos? Dava pra achar muita oferta por um dólar, e assim recomprei tudo aquilo de que tive que me desfazer ao sair do Brasil. Eu sempre achava tudo que procurava, e aí entrei novamente de cabeça no colecionismo. Um dia achei um LP do Bossa 3 por US$ 2,99. Comprei mais por ser música brasileira, não toquei de imediato. Só ouvi quando ele caiu da prateleira ao lado do toca-discos, e gostei. Foi então que comecei a comprar discos brasileiros. Como surgiu a ideia de abrir a sua loja? Quando eu já tinha vários discos guardados, fui vender na maior feira de LPs de Nova York – e deu certo, vendi bem. Então aluguei um porão 90
E agora, nos resta descobrir o quê? Os compactos obscuros – e é por isso que esta edição da Seleta prestigia a pesquisa de JOEL STONES, dono da Tropicalia in Furs, uma loja de discos (ou “record boutique”, como ele prefere chamar) especializada em “Brazilian Music” que fica no 304 da East 5th Street, em New York. Joel ganhou notoriedade com uma compilação de dezesseis faixas que batizou de Brazilian Guitar Fuzz Bananas, um ousado trabalho que levou cinco anos para ser finalizado e lançado em CD (com uma faixa enhanced) e em LP duplo (com um encarte colorido de vinte e quatro páginas e, de quebra, um par de óculos 3D para viajar na capa enquanto curte o som). Nessa coletânea – composta apenas de faixas extraídas de compactos obscuros de artistas como Fábio, Loyce e os Gnomos, Célio Balona e Marisa Rossi –, Joel nos oferece a chance de entrar em contato com mais um lado desconhecido e curioso da música brasileira que caso contrário teria permanecido no anonimato. Afinal, como ele mesmo questiona no texto que abre o encarte, “como é que alguém pode procurar por algo que não conhece”?
pra montar a minha loja e, quando consegui abrir as portas, coloquei a minha coleção de LPs novamente à venda. Depois de oito anos sem pisar no Brasil, refiz os meus contatos no país e comecei a procurar os discos tanto lá em NY como aqui. E a coletânea, de onde veio a ideia de organizá-la? Sempre que eu tocava na loja alguns compactos bem raros de que ninguém nunca tinha ouvido falar, tipo Marisa Rossi ou Célio Balona, o pessoal gostava muito e me falava pra montar uma compilação. Eu queria fazer algo de muita qualidade, só com músicas boas, sem essa de encher linguiça. Era pré-requisito pra faixa entrar no disco ser de um compacto brasileiro muito bom e desconhecido. Tinha que estar fora da internet, por exemplo. E os projetos futuros, o que vem agora? Estou coletando imagens dos artistas que estão na BGFB pra um filme, e já iniciei a pesquisa pra uma segunda compilação. Os artistas ainda não vou divulgar, por causa da questão da obscuridade.
pa r e c e r d o d r . j a c o b pinheiro goldberg Uma passagem muito interessante do Velho Testamento (ou Torá) é quando Abraão, já na faixa dos 100 anos de idade, recebe um convite de Deus para largar tudo e ir em busca da terra prometida. Ele argumenta que, pela idade avançada, já não tem mais condição nem recursos para tal, mas Deus responde simplesmente “Vai-te”. Isso tem duas interpretações: uma no sentido de “sai dessa terra e vai atrás do teu sonho, da tua utopia”, mas tem outro significado que é sair de si, abandonar a si mesmo. Quando o indivíduo sai de seu mundo, ele se renova, se transforma – ele não conquista o mundo, conquista a si mesmo. O escritor Salman Rushdie diz que “toda terra é permitida ao homem, menos o lugar onde ele foi feliz um dia”. Ou seja: não olhe para o passado e vá em frente, se desloque no tempo e no espaço.
2SAIBA MAIS tropicaliainfurs.com
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OBRAS
PRIMAS O sexo é, sempre foi e sempre será um dos assuntos mais explorados, e frequentemente virados do avesso, musicalmente. Com o rap não foi diferente. Desde o final dos anos 70, centenas de MCs evocaram, exageraram, polemizaram e subverteram o tema, segurando seus bagos à exaustão e elevando cada vez mais seus níveis de testosterona diante dos respectivos mics. Dos gordinhos tarados da Sugarhill Gang ao putão LL Cool J, do maníaco Easy-E aos safados do 2 Live Crew, pouquíssimos nomes ficam de fora da orgia lírica que assola o gênero desde seu surgimento. Mas dois desses MCs se destacam dos demais, e por um motivo Kool Keith . Sex Style (FUNKY ASS RECORDS, 1997) O que esperar de um MC cujo LP foi concebido pelo sugestivo selo Funky Ass Records? Pois esse rapper atende pelo nome de Kool Keith, o mais fanfarrão de todos os personagens do hip-hop. Sex Style é possivelmente o segundo disco pornô explícito da história da música negra estadunidense – o primeiro é a trilha de Sonora Lialeh, composta pelo baterista Bernard “Pretty” Purdue para o (suuujo) filme homônimo de 1975. Especificamente obcecado por esportes… humm… aquáticos, Keith passa cinquenta por cento do álbum descrevendo aventuras sexuais diversas, e a outra metade ofendendo MCs supostamente menos curiosos em termos sexuais que ele próprio. O putão Keith é apenas uma das facetas do rapper mais peculiar do planeta. Autodenominado o Elvis Negro, KK tem também um punhado de alter egos, como o pitoresco Dr. Octagon e um dos motoristas de caminhão da dupla Diesel Truckers. Ao longo das dezoito faixas de Sex Style, cujos nomes sugestivos (“Sex Style”, “Don’t Crush It” e “Stuck On Pussy Drive”, por exemplo) beiram o mau gosto para 87,3% dos apreciadores da suposta “boa música”, Keith deixa claro que não está nem aí para gravadoras, mídia e nem mesmo para o público que consome sua música. Inspiração para outros tarados do gênero, como Ghostface Killah e Common, Keith continua à margem do hip-hop até para a assim chamada mídia especializada. Sem empresário ou assessoria profissional desde os tempos em que pulou fora de seu primeiro grupo, o saudoso Ultramagnectic MCs, o rapper é dono de uma discografia capaz de fazer inveja a muitos peixes grandes do gênero. Sex Style é talvez o auge da loucura criativa de Kool Keith, além de um disco de rap espetacular, pensado por um dos melhores flows do estilo quando o assunto são rimas rápidas, diretas e despudoradas. Embora tenha sido gravado há mais de 10 anos, o disco é uma ótima alternativa à mesmice de um gênero que parece ter atingido seu limite criativo, graças à espontaneidade e à cara-depau – ainda que o sentido aqui seja figurado – do sensacional Kool Keith.
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POR PEDRO PINHEL
SEXO . KOOL KEITH VERSUS SNOOP DOGG
bem simples: seus estilos são absolutamente peculiares e inovadores. Do lado direito do ringue, o (já) legendário Snoop Dogg lançou seu aclamado álbum de estreia, Doggystyle, no saudoso ano de 1993, definindo não apenas um estilo, mas todo um gênero – o G-funk. Do lado esquerdo, um dos maiores bufões do hip-hop, o folclórico e ultramagnético Kool Keith, concebeu o surtado Sex Style em 1997 – e a partir desse momento tudo o que você já tinha ouvido sobre sexo em letras de rap foi completamente subvertido, tornando-se automaticamente ingênuo, quase obsoleto. Saiba por que Snoop e Keith são, cada um ao seu estilo, os maiores taradões da paróquia. Snoop Dogg (ex-Snoopy Dogg). Doggystyle (DEATH ROW, 1993) Vindo na cola do também clássico The Chronic, do parceiro, produtor e ex-NWA Dr. Dre, Doggystyle é certamente um dos álbuns mais influentes da história do rap. Sexual do início ao fim, o disco deu a Snoop status de poderoso chefão do gênero. E o rapper de Long Beach (Califórnia), é claro, adorou. Com passagens históricas pelo Brasil – onde, comenta-se, gravou um pornozinho com alguns brothers e uma leva de animadas moças cariocas durante as gravações do vídeo de seu hit “Beautiful” –, Snoop é praticamente o criador do estilo G-funk, mistura marota de funk à la P-funk, bounce da Costa Oeste dos EUA e gangsta rap. Mas o grande lance aqui é o estilo cadenciado e contador de causos do rapper, sempre à vontade, cantando e rimando de forma quase hipnótica, em relatos hilários e (até então) nada convencionais sobre maconha, gangues, dinheiro… e sexo, obviamente. A agressividade do gangsta rap que controlou os EUA de costa a costa no início dos anos 90 parecia ter encontrado seu contraponto em Snoop. A forma engraçada de descrever suas aventuras íntimas ao lado dos homies Nate Dogg, Warren G e Kurupt (fundamentais para a construção do disco), em que todas as mulheres são “biatches”, todo mundo bebe gim com suquinho e ninguém é de ninguém, chega até a ser caricata. Se de fato não é tão agressivo como caras da estirpe do pornográfico (também ex-NWA) Easy-E, Snoop é absolutamente enfático quando proclama que “a bitch is a bitch”, e também não deixa de ser inventivo quando diz à sua vadia que “você sem mim é como Harold Melvin sem a gravadora Blue Note. Nunca ganharia nada.” Se você já teve a oportunidade de conferir Snoop ao vivo, sabe que o local perfeito para uma de suas performances seria a Broadway. Trata-se de um showman, e a baixaria é parte de seu show. Afinal de contas, num universo onde as mulheres são explicitamente tratadas como cadelas, a última palavra é sempre do cachorrão. Woooof!
2PEDRO PINHEL FAZ O RADIOLA URBANA E O BLOG ORIGINAL PINHEIROS STYLE. 93
NIK NEVES
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GERLACH
4FLICKR.COM/DIEGOGERLACH
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REBERSON ALEXANDRE
4FLICKR.COM/REBERSON-ALEXANDRE
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1DISCOS
2ROBERT 2EMICIDA EMICÍDIO Laboratório Fantasma 2010 Quando esta resenha for publicada, o dia 16 de outubro já será um fato consolidado na história do rap paulistano: nessa data, Emicida lançou sua nova mixtape em São Paulo diante de uma casa lotada, hiptonizada pela apresentação do MC e seus convidados ilustres. Mas esse abalo sísmico, para os de mente aberta e ouvidos atentos, já vinha ocorrendo desde muito antes, e Emicídio foi apenas o ponto culminante do processo. Ainda que o MC da Zona Norte fale sobre um possível genocídio de MCs na faixa-título, fatalmente a palavra remete também a um suicídio. Claro, na visão dos homens de negócio, era mais do que hora de capitalizar o momento, descolar um contrato, se “profissionalizar”. E, com a recusa, eis o suicídio. Mas não é esse o ponto. Com suas 18 faixas (“Avua Besouro” e “Emicídio” lançadas como single anteriormente), a mixtape pode ser dividida em um lado solar e outro mais sombrio. O solar diz respeito às faixas mais intimistas e descompromissadas como “Rua Augusta”, “Novo Nego Veio” e “Beira de Piscina”, homenagens aos amigos e à mãe (“Velhos Amigos” e “Um Final de Semana”, respectivamente) e algumas tentativas de demarcar um espaço dentro de momentos/locais importantes no particular e no coletivo, como “I Love Quebrada” e “De Onde Cê Vem!?”. O lado sombrio, com temática consagrada – mais “rap nacional” no equívoco sentido comumente usado –, com respostas cifradas a detratores e letras mais pesadas e de autoafirmação acintosa, estão concentradas em músicas como “E Agora?”, “Cê Lá Faz Ideia”, “Então Toma e “Emicídio”. Um exemplo do Gandhi e do Adolf Hitler que todo moleque de periferia pode carregar dentro si de atuando lado a lado. A revolução contida nesta mixtape pouco diz respeito à forma – ao menos aparentemente –, e sim muito mais ao conteúdo, ousado, forte e menos arrogante. Afinal, ninguém tem ombros fortes o bastante para suportar a “rua” por toda uma carreira – é melhor relaxar. Daí a tese de um simbólico suicídio. E, para mim, fica claro que é melhor se liberar do fardo de um hit como “Triunfo” e ganhar uma canção feliz de FM como “Eu Gosto Dela”, que conta com seu irmão Fióte soltando o gogó no refrão de uma faixa pra lá de romântica na qual o MC constrói todas as rimas com terminações em “ina” e “ona”. Pepeu, pioneiro MC brasileiro autor do proto hit “Nomes de Meninas”, chamado ao palco no lançamento após 16 anos de ausência, deve ter ficado feliz com o uso de um recurso caro à sua geração. O rap está mais feliz sem ter que abandonar os punhos cerrados. A rua ganhou novamente. 3POR ARTHUR DANTAS 98
POLLARD MOSES ON A SNAIL Guided by Voices Inc. 2010 Entre os projetos paralelos Circus Devils, Boston Spaceships e sua carreira solo, Robert Pollard lançou nada menos do que seis discos em 2010. Conhecido pela produção prolífica, o eterno líder do Guided by Voices cai às vezes no truque da repetição de fórmulas. Porém, quando acerta a mão, tem poder suficiente para criar um dos melhores discos do ano, ou da sua vida. Moses On A Snail está na segunda categoria, certamente. Um dos motivos é a originalidade. Pollard continua sendo um homem de belas melodias e vocais que mergulham nas profundezas obscuras de bandas como Beatles ou R.E.M. (e essa repetição de fórmula os ouvintes apreciam), mas desta vez parece estar mais animado com novas possibilidades de arranjo. “The Weekly Crow”, faixa de abertura, leva na calmaria um saxofone que pontua toda a canção. “Arrows and Balloons” e “Ice Cold War” pegam a produção clássica do GBV e a contextualizam para 2010, lembrando The Who. Já “Big Time Wrestling” e a faixa título, “Moses On A Snail”, são dois grandes exemplos da nova safra de composições, e, assim como a balada “Teardrop Paintballs”, vão além. Como disse Eddie Vedder, do Pearl Jam, em declaração que foi parar no site oficial do disco: “Se fosse de qualquer outro grupo, seria sua obra-prima, mas no caso de Bob foi apenas um bom-dia”. 3POR MARCOS DIEGO NOGUEIRA
2BLACK MILK
2AXL
2SUPERCHUNK
ALBUM OF THE YEAR Fat Beats Records 2010
CAOS PESSOAL Laboratório Fantasma 2010
MAJESTY SHREDDING Merge Records 2010
Nascido em Detroit e muito bem criado ao som de A Tribe Called Quest, De La Soul e outras pérolas do estilo, Curtis Cross descobriu logo cedo que tinha talento para a coisa. Desde criança, metia-se a fazer batidas com uma bateria eletrônica ligada a um sistema de karaokê no porão de casa. Quando comprou sua primeira MPC, deslanchou de vez, gravando fitas com suas produções. Por obra do destino, uma dessas fitas foi parar no estúdio de J. Dilla e Slum Village, que convidaram o garoto para participar da mixtape Dirty District, lançada em 2002, quando ele tinha apenas 19 anos. Daí para a frente, foi se criando a história de Black Milk, um dos maiores prodígios do hip-hop atual. O rapaz não saiu mais do estúdio, aprendendo lições com Dilla, moldando seu estilo pessoal fazendo beats para os melhores artistas da cena de Detroit e se aprimorando também como MC. De 2006 para cá, lançou três álbuns solos, mostrando uma evolução impressionante, além de produzir dezenas de tracks para outros artistas. Seu novo trabalho já diz a que veio no título: Album Of The Year. Conhecido por baterias agressivas e quebradas com timbres que ensurdecem o quarteirão, o produtor formou uma banda para a gravação e a produção das novas faixas, intensificando ainda mais o peso de seus beats com uma pegada rockeira e um suingue funky. Não satisfeito, o rapaz ainda cria levadas com um flow que aposenta grandes veteranos do rap. Com esse disco, Black Milk deixa definitivamente de ser uma promessa para se tornar uma das melhores realidades do rap americano. 3POR DANIEL TAMENPI
Além do fato de ter sua mixtape de estreia lançada pelo Laboratório Fantasma, mesmo selo de Emicida, a lírica de AXL o aproxima do MC que já mordeu um cachorro por comida em sua tentativa de compreender e refletir seu meio, expondo uma certa crise individual – o tal caos pessoal do título. Além disso, a maior parte das produções da mixtape são de Laudz e Skeeter, dois beatmakers presentes também em Emicídio. Porém, logo na abertura, AXL abdica do papel de timoneiro, preferindo uma perspectiva mais pedestre, de rapaz comum, lançando mão dos versos “A Rua é Enorme / maior, muito maior do que eu esperava / mas também a rua não cabe todos os homens / a rua é menor que o mundo / o mundo é grande”, lidos por seu próprio autor, o poeta Carlos Drummond de Andrade. Caminhar pelo mundão sem a tentação de representar um grupo. Ponto para o MC do Vale do Paraíba. Outros aspectos que o diferenciam de seu parceiro de selo são a divisão dos versos e uma variação suave na entonação das sílabas, que lembra bastante o trabalho de Slim Rimografia, outro MC responsável pela renovação na estética do rap paulista. Interessante também é a escolha das produções, por vezes limpas e assemelhadas ao rap da velha escola (“Ela Ainda Me Faz”), e outras mais pesadas, como “Jogo de Dados”, com a base instrumental de “Its Hot (Some Like It Hot)”, de Jay-Z. A mistura de Carlos Drummond de Andrade, Jay-Z, samples de Gerson King Combo e os scratches espertos do DJ Sleep são garantia de permanência para Caos Pessoal.
3POR
Lançamentos de bandas com anos de estrada podem até não trazer algo de novo, mas nos transportam para bons lugares do passado. É nessa zona de conforto que figura o Superchunk. Depois de nove anos sem lançar um álbum, o quarteto resolveu manter o volume das guitarras que o consagrou como um dos maiores nomes entre as pequenas joias do selo Matador. A calmaria que permeou Here’s to Shutting Up, de 2001, portanto, deu lugar aos bons riffs e às distorções da dupla Mac McCaughan (também vocalista e líder do grupo) e Jack McCook. Já os refrões e as melodias vocais marcantes estão mais afiados do que nunca, como fica claro nos “Uh-Uhs” da faixa final, “Everything at Once”, ou em “My Gap Feels Weird”, um dos pontos altos do disco. Já “Crossed Wires” e “Learned to Surf” seguem o estilo de “Hello Hawk”, ou seja, hino para se cantar nos shows e, enquanto chacoalha o corpo de empolgação, equilibrar com destreza a bebida no copo. Voltando no tempo, é possível dizer que qualquer música em Majesty Shredding poderia tranquilamente figurar no lendário programa Lado B, apresentado por Fabio Massari nos idos da década de 90.
3POR MARCOS DIEGO NOGUEIRA
ARTHUR DANTAS
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2FLUXO 2M.I.A. /\/\/\Y/\ N.E.E.T./XL/Interscope 2010 Os últimos anos não foram muitos bons para Maya Arulpragasam, mais conhecida como M.I.A. O primeiro tombo foi em meados de 2008, quando a MC anunciou sua aposentadoria depois de ser acusada pelo colega DeLon de glamourizar a imagem do terrorismo. Essa saída de cena não poderia ter ocorrido em um momento mais inoportuno. Seu segundo disco, Kala, estava começando a fazer sucesso nas rádios, graças ao uso de uma de suas faixas no trailer da comédia maconheira Segurando as Pontas. M.I.A., porém, não manteve sua promessa por muito tempo: no primeiro semestre deste ano, foi anunciado o lançamento de / \ / \ / \ Y / \, acompanhado de um videoclipe no mínimo polêmico para o single psycho-punk “Born Free”. Mais prejudicial que as acusações de terrorismo, no entanto, foi uma crise criativa exposta nas páginas da New York Times Magazine no último mês de maio, em que seu ex-produtor e ex-namorado Diplo a definiu como uma DJ superestimada. Alegando que sua antiga paixão “não sabe fazer música nem arte tão bem assim”, ele afirmou que diversos produtores trabalharam duro para elevar a qualidade de seus álbuns. O autor do artigo foi além, retratando-a como uma farsante egocêntrica que canta as mazelas do terceiro mundo em uma mansão em Los Angeles na companhia de um noivo socialite. Irritadíssima, M.I.A. retaliou divulgando o telefone do jornalista no Twitter e acusando a imprensa de misoginia. Com todas essas atribulações em mente, não chega a ser uma surpresa que / \ / \ / \ Y / \ soe como o produto de uma crise de identidade. Em seus dois primeiros álbuns, o pulsar dos tambores e os cantos tribais eram um cartão de visitas que a diferenciava dos demais. Desta vez, porém, ela não se atém a um único estilo. Em vez disso, vai do electro ao punk, e depois ao reggae, sem parar para respirar, criando momentos de tédio que nem de longe lembram seus trabalhos anteriores. A maior parte das longas 16 faixas de / \ / \ / \ Y / \ é enlouquecedoramente repetitiva e extremamente irritante. Os floreios de produtores como Blaqstarr, Switch, Rusko e Diplo só conseguem acrescentar um fundo genérico de bips e blops. Arular e Kala estão entre os melhores discos desta década justamente por sua fusão de batidas intensas com melodias interessantes. Desta vez, faixas como “Lovalot” não trazem nem ao menos uma rima, apenas um vocal sampleado que se repete ad nauseum. São deficiências como essa que transformam o álbum em um grande apanhado de ideias mal desenvolvidas, e poucas são as músicas que conseguem parecer mais do que um remix bizarro de um álbum já esquecido.
3POR SEAN EDGAR 100
VISÕES REMANESCENTES Independente 2010 Formado pelo MC e letrista Wallace Carvalho e o músico e produtor Arthur Moura, um dos mais talentosos da atualidade, o Fluxo (não confundir com o paulistano Contra-Fluxo) é um grupo de Niterói que surgiu em 2005 e, desde então, se mantém como um dos mais ativos do rap brasileiro. Desde 2006, a dupla vem em um processo produtivo intenso, lançando ótimos discos e videoclipes. E não pense que quantidade é sinônimo de má qualidade. O Fluxo apresenta propostas diferentes dentro do rap, cheias de experimentalismo, tanto nos instrumentais que mesclam samples e arranjos próprios, quanto na mensagem, com letras abstratas e boas melodias tendo São Gonçalo, Niterói e o Rio de Janeiro como cenários para suas inspirações visuais e auditivas. O grupo tem estilo até na forma de gravação e mixagem, criando uma identidade sonora bem característica. Visões Remanescentes é o quarto disco da dupla, que agora é um trio, integrando também o beatmaker Goribeatzz. O álbum mostra em onze faixas a contínua evolução dos integrantes, sempre em busca de algo incomum, fugindo da obviedade do rap que, em geral, está rolando no momento. Um dos grupos de hip-hop mais mente aberta que temos no Brasil. 3POR DANIEL TAMENPI
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I’LL BE YOUR MIRROR
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A P R E S E N T A M
T H O M A S
O U T U B R O
D E T E R Ç A A S E X TA , D A S 1 2 H À S 2 0 H . S Á B A D O D A S 1 3 H À S 1 9 H RUA FIDALGA, 98
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1LIVROS
2OI!
2MEUS PROBLEMAS COM 2ESPIÃO
A NOVA MÚSICA BRASILEIRA Mais Um Discos 2010 Apesar do nome, essa compilação, que acaba de ser lançada em CD duplo na Inglaterra, não traz somente novos artistas. Entre os quarenta nomes contemplados, temos por exemplo o de Otto e Eddie, que lançaram seus respectivos álbuns de estreia há mais de dez anos, em 1998. A nova música brasileira, à qual o título se refere, é na verdade a que surgiu no início dos anos 90, com a inusitada mistura de ritmos regionais com outros mundiais. Como o manguebeat, que misturava maracatu com rock e hip-hop, ou o forrocore, que unia o hardcore com forró. Apesar de serem reconhecidos no Brasil, esses estilos ainda passam despercebidos pela maioria dos gringos, que ainda se restringem a bossa nova, tropicália e afins. É exatamente isso que essa compilação pretende mudar. Reunindo artistas do Brasil inteiro (com ênfase nos da região Nordeste), dos mais diferentes estilos, Oi! A Nova Música Brasileira é um impressionante apanhado do que vem acontecendo de mais inventivo e novo na música nacional na última década. A seleção inclui Mini Box Lunar, banda do Amapá que mistura a doce melodia vocal indie pop com batidas de bandinha da praça, até Zé Neguinho do Côco, uma rara espécie de kraut tropical anos 2000, passando por hits do tecnobrega, e sempre batendo na tecla da criatividade levada às últimas consequências. A seleção é tão bem feita, diversificada e única que todos descobrirão alguma banda boa e inédita. Excelente compilação que surpreenderá até mesmo quem está acostumado com as mais diferentes misturas. Não deixe de conferir.
3POR GILBERTO CUSTÓDIO JUNIOR
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CADA UM CADA UM Independente 2010
AS MULHERES ROBERT CRUMB Conrad 2010
B-boy aposentado e fundador do Rua de Baixo, Espião é um dos últimos tesouros do rap paulistano a ser descoberto. Ou decifrado – já que seu trabalho na superfície é bem simples, honrando a tradição do rap velha escola, de Pepeu até Região Abissal. Ainda que sua observação do ambiente que o cerca seja privilegiada e suas bases sejam certeiras, o campo de ação do MC/produtor é a sombra, não os holofotes. Se a tônica no rap é o “seja melhor em algo”, ele venceu ao ser o mais discreto, ao caminhar à margem, sem fazer concessão a nenhum dos filões ou estilos consagrados no hip-hop brasileiro. Nas onze faixas de Cada Um Cada Um, os arranjos são sóbrios, com batidas simples, versos dobrados e efeitos que vão criando o clima para cada passagem da música. O Espião é um dos MCs prediletos dos MCs, e é fácil saber o motivo. Existem poucos contadores de história tão eficientes quanto ele. Além disso, a lírica do MC não encerra verdades nem se propõe a alguma “missão”. Espião constrói pensatas particulares sem a onipresente vocação ao diálogo de baixo para cima, mas pleno de si mesmo, como resumem os versos: “Espião, o comandante / Não cumpre ordem de aspirante”. Uma vida comum, prosaica, mimetizada em batidas e letras simples mas nunca rasas, sintetizadas no nome do álbum ou na imagem preto e branco da capa (um copo com uma escova de dente). A vocação dos seus versos e a síntese das suas ambições podem ser encontradas no refrão da faixa “Causa Nobre”: “Lutar por igualdade é uma causa nobre / querer ser como os outros é ter a mente pobre”.
Suponhamos que você tenha “um amigo” que comprou Gênesis e talvez esse tenha sido o primeiro livro dele do Crumb (o que não é o seu caso, obviamente!). Ele deve estar pensando “não falaram por aí que esse cara é engraçado e ácido pra caralho? Não dei uma risada o livro inteiro!”. Então faça um favor por ele (ou ela): dê Meus Problemas Com as Mulheres de presente de Natal. Uma coisa boa de a Conrad ter sido comprada pela IBEP é que o preço dos quadrinhos adultos deles, que já não era exorbitante, ficou ainda mais barato (a qualidade de impressão às vezes baleia, e eles precisam dar um jeito nisso, mas cá entre nós: não chega a comprometer), então dá pra nova classe média do Lula fazer um agrado àquele amigo mais chegado. Este é um daqueles lançamentos longamente aguardados por quem tinha saudades do Crumb que faz rir, sumido do Brasil desde Minha Vida, de 2005. Meus Problemas... é uma coleção de histórias sobre a folclórica obsessão de Crumb com mulheres de canelas grossas, bundas gigantescas, bocas carnudas e outras dádivas da natureza. Mas Crumb é muito justo em sua misoginia: ele expõe as mulheres, sim, mas expõe muito mais a si mesmo, se colocando abertamente como um freak tarado, que só conseguiu comer alguém porque a geração hippie fez dele um superstar. Aqui, ele explora desde fantasias delirantes (como ser rei de uma nação feminina) até confissões embaraçosamente íntimas de sua adolescência nerd, com todas as tiradas e desenhos incomparáveis que fizeram dele, bem, O REI. Um livro aberto, apesar de algumas páginas meladas. E absolutamente genial.
3POR ARTHUR DANTAS
3POR MATEUS POTUMATI
2BANDO DE DOIS DANILO BEYRUTH Zarabatana Books 2010
2O ASTRONAUTA – OU LIVRE ASSOCIAÇÃO DE UM HOMEM NO ESPAÇO, DE LOURENÇO MUTARELLI . FLAVIO MORAES, FERNANDO SAKI E OLAVO COSTA Zarabatana Books 2010 Em um momento em que as HQs vêm sendo cada vez mais vistas como storyboards “com acabamento” de cinema, Bando de Dois e O Astronauta Ou... – dois recentes lançamentos da melhor editora brasileira de quadrinhos da atualidade, a Zarabatana – representam uma novidade no mercado nacional, justamente por privilegiar, em doses maiores ou menores, o diálogo com a literatura. Danilo Beyruth, artista dos quadrinhos desde 2007 e com um sucesso underground, o personagem Necronauta, cria em Bando de Dois uma história que trata do cangaço nordestino da primeira metade do século XX, mas que tem como nítida referência as HQs de faroeste. O clímax dessa mistura emerge quando os dois cangaceiros restantes de um bando morto numa emboscada chegam ao vilarejo que servirá de palco para a vingança do “bando”: a narrativa é típica do gênero faroeste, mas os elementos visuais dão permanência e vida a um contexto rural nacional. Para apimentar, há ainda um enredo secundário fantástico, que em tudo sintetiza a fabulação de um Stephen King. Uma obra voltada para o prazer de ler uma boa história, e não de um maneirismo que se esgota em si mesmo. É esse também o maior trunfo de O Astronauta Ou..., baseada em um argumento de Lourenço Mutarelli e nas fotografias de Flavio Moraes, devidamente retrabalhadas por Fernando Saki e Olavo Costa. Ainda que o mote seja o trabalho fotográfico de Moraes, aqui também se destaca o exercício narrativo cada vez mais esmerado de Mutarelli de, ao ligar ideias aparentemente esdrúxulas ou não-convencionais, nos conduzir por enredos que em tudo tratam do nosso mundo cotidiano. Em O Astronauta Ou..., a trama fantástica – pelo tema e pela maneira como é tratada – dá conta da reflexão de que “a Terra, apesar do nome, não é o solo plano que nos sustenta. Porque estamos e sempre estivemos no espaço”, como afirma o alter ego de Mutarelli. Ainda que o modo de contar a história não guarde surpresas para quem acompanha o trabalho do escritor no teatro e na literatura, ela nos prega um ou dois “sustos” deliciosos, algo muito pouco comum nas HQs nativas. Se os dois álbuns não são por excelência obras-primas, também estão longe de ser ficções baratas, mesmo que muito do ideário de ambos encontre trânsito nessa esfera.
2WEATHERCRAFT JIM WOODRING Fantagraphics Books 2010 Genial artista surrealista norte-americano, Jim Woodring começou fazendo animação nos anos 70, passando para os quadrinhos na década seguinte. Desde então, vem produzindo os personagens mais loucos da redondeza. Altamente perturbadoras, as HQs de Woodring raramente têm falas, e se passam num mundo imaginário bizarro e alucinante. Frank, uma espécie de gato dentuço que anda em pé, é seu personagem mais conhecido e protagonista de uma série de quadrinhos homônimos de tirar o fôlego. Manhog, uma espécie híbrida de porco com humano, aparece de vez em quando nas histórias de Frank. O álbum Weathercraft é inteiramente dedicado a Manhog, e a história mais longa já produzida pelo autor. Sem usar uma única palavra, o personagem segue aprontando as mais estapafúrdias maluquices, interagindo com estranhos seres num mundo belíssimo, mas sem pé nem cabeça. Como num sonho, tudo é possível. Na infância, Jim Woodring frequentemente sofria de alucinações e ouvia diversas vozes. Suas criações refletem esses distúrbios de forma perfeita. Pura psicodelia. A ausência de palavras é compensada pelos mais doidos desenhos, que retratam momentos surreais, inacreditáveis, que nos fazem parar para ver de novo – e de novo. É tudo tão maluco e inusitado que não raramente nos pegamos gargalhando, refletindo sobre a bobeira que todos guardamos dentro de nós. Para grandes e pequenos, Weathercraft é certeza de múltiplos prazeres.
3POR GILBERTO CUSTÓDIO JUNIOR
3POR ARTHUR DANTAS 103
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1JOGOS
1FILMES
2RANXEROX TAMBURINI, LIBERATORE E CHABAT Conrad Editora 2010 Bendito o tempo em que a HQ não pagava tributos a nada nem a ninguém, ditava tendências e sintetizava o espírito – mesmo que de porco – de uma época! Se toda revolução teve seu equivalente artístico, a insurreição estudantil italiana do fim dos anos 70 teve em Ranxerox sua leitura mais elétrica e vibrante. Mattiolli, Pazienza, Scozzari – são muitos os nomes que fizeram dos quadrinhos o melhor e mais classudo e temível artigo italiano de exportação. Stefano Tamburini criou o personagem Ranxerox em 1978, para o número 0 da heroica revista Cannibale: “A ideia nasceu em um ônibus, quando eu voltava para a universidade depois de uma série de batalhas contra a polícia, em 1977. Havia uma fotocopiadora usada sendo chutada por vários estudantes e me veio à mente que ela poderia ser transformada em uma coisa mais ativa e bélica”. Eis a gênese do robô viciado em drogas pesadas, punk rock e new wave, e apaixonado pela ninfomaníaca Lubna. Tamburini começou com essa ideia simples e transgressora, usando seu traço esperto e mutante em histórias curtas que colocavam em evidência a cidade de Roma e seu submundo de subversivos e drogados. Mais tarde, com a chegada de Liberatore para dar cor e unidade visual aos roteiros delirantes e ultraviolentos, o que já era um marco tornou-se a obra definitiva de uma geração. O mais interessante é que, ao ler esses quadrinhos hoje, ainda temos a noção imediata e febril da novidade contida ali. E a edição da Conrad, com prefácio caprichado, papel de primeira e acabamento exemplar, tornam esta edição o melhor lançamento de material clássico do ano. 3POR NATANIEL JEBÃO 104
2GUIDABLE 2LIMBO Playdead Studios 2010 Já no final da temporada do Summer of Arcade – o creme de la creme do Xbox Live Marketplace –, um jogo se sobressaiu: Limbo, que sem estardalhaço pode abocanhar um lugar na história dos jogos eletrônicos e ser considerado o melhor de 2010. Aliás, o game escandinavo confirma a tendência de utilizar os meios de distribuição online – em consoles e portáteis – como o universo mais adequado à inovação. Assim como em Out of This World, um game revolucionário que ganhou status de cult no Mega Drive e no Super Nintendo. em Limbo não há uma história definida. Sem falas, trilha sonora e nem cores (tudo é retratado em preto, branco e tons de cinza), controlamos um garoto que acorda em uma floresta sinistra. A atmosfera é de pesadelo, e na primeira parte há muito do clima do livro O Senhor das Moscas, em que crianças isoladas em uma ilha deixam aflorar o lado mais selvagem do ser humano. Tanto que nosso herói, cercado por corpos infantis afogados e enforcados, encara meninos diabólicos, que tentam de forma violenta atrapalhar seu avanço. As imagens são granuladas como num velho desenho animado. Os efeitos sonoros também são maravilhosos, de arrepiar a espinha. Com o passar das “fases” desse jogo extremamente desafiador – espere morrer várias vezes, pois nada é dado de lambuja, não há sequer um indicador de qualquer coisa que seja na tela –, o visual do game ganha ares do expressionismo alemão, lembrando filmes como o norte-americano Tempos Modernos e o germânico Metrópolis. Minimalista, Limbo é uma novidade muito bem-vinda no mundo dos games, com uma história sombria e brutal que dará calafrios em muito marmanjo por aí. 3POR RAFAEL ARGEMON
A VERDADEIRA HISTÓRIA DO RATOS DE PORÃO Ideal Records 2010 Deixando de lado as categorizações juvenis e as picuinhas da cena punk rocker, o documentário Guidable – A Verdadeira História do Ratos de Porão evidencia alguns pontos importantes, como o fato de o Ratos ter sido o responsável por minar o abismo que havia entre punks e headbangers até meados dos anos 90. Em meio a altos e baixos de formações e de relevância artística, o grupo gravou ao menos um clássico inconteste – o álbum Crucificados Pelo Sistema –, e João Gordo com certeza conferiu carisma à banda, ainda que um tanto patético, é claro, mas eficiente para uma parcela jovem, como ficou explícito em sua passagem pela MTV. Se um Mao (Garotos Podres) ou Rédson (Cólera) representam a ala mais esclarecida do punk nacional, João Gordo é sua antítese: um sujeito desagradável e reacionário, como ele próprio admite em aparições recentes. O documentário em si não se destaca em nada – se baseia no velho tripé drogas, (nada de) sexo e rock and roll, e seu defeito mais evidente é o de não conseguir caracterizar o ambiente no qual a banda surgiu e as questões às quais suas músicas buscavam responder. Por outro lado, é interessante notar a evolução do grupo do típico punk Brasil 80 para o hardcore finlandês, posteriormente ao crossover e o recente flerte com gêneros mais pesados e extremos, como o crust e o grind. Em sua, trata-se de um bom pontapé inicial para que surjam documentários sobre Cólera, Inocentes, Restos de Nada, Garotos Podres e outras lendas do punk nacional.
3POR ARTHUR DANTAS
+ENDEREÇOS Flying Nun Records . flyingnun.co.nz Galeria do Rock . galeriadorock.org.br ATP Records . atprecords.com
Goiânia Noise Festivall . goianianoisefestival.com.br
Red Light Management . redlightmanagement.com
Choque Cultural . choquecultural.com.br
MCD . mcdbrasil.net
Soma . maissoma.com
Conexão Vivo . conexaovivo.com.br
Monstros Discos . monstrodiscos.com.br
Stones Throw Records . stonesthrow.com
Converse . converseallstar.com.br
Nike Sportswear . nikesportswear.com
TBD Records . tbdrecords.com
Coquetel Molotov . coquetelmolotov.com.br
Pintar . pintar.com.br
Tropicalia in Furs . tropicaliainfurs.com
Element/Nixon . elementskateboards.com
Ponto 4 . ponto4digital.com.br
Volcom . volcom.com
A PINTAR E A SOMA APOIAM A
PRODUÇÃO DE JOVENS ARTISTAS.
Na foto: André Firmiano durante a montagem da exposição Entre(Outros) que aconteceu no Espaço Soma do dia 13.09.10 ao 11.10.10.
Pompéia 11.3873 0099 Jardim Paulista 11.3885 5143 Higienópolis 11.3661 9685
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