Revista +Soma #23

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+SOMA . #23

“ERRO E RISCO FAZEM PARTE DE TODA OBRA RADICAL”, lembra Flo Menezes, professor e compositor de música erudita experimental brasileira. Na música e na arte, como na vida, a relação da sociedade ocidental com o dissonante e o feio é antiga, controversa e passou por fases distintas. Por séculos, as notas que causavam ruído nas escalas musicais diatônicas foram evitadas pela tradição musical europeia, por serem consideradas literalmente a manifestação de forças diabólicas, sempre à espreita, procurando o menor sinal de fraqueza para quebrar a harmonia do homem com Deus. Na arte, se o Renascimento significou o começo do fim das trevas medievais, implicou também o abandono da iconografia perturbadora de uma série de pintores pré-renascentistas, que passariam a ser vistos como “primitivistas”, em detrimento do resgate de um conceito estético apolíneo clássico. Mas o feio, como todo vaso ruim, nunca quebra. Nesta edição, duas entrevistas de pontos distintos da cultura tratam, à sua maneira, das interferências na arte causadas por elementos fora dos padrões do belo. FLO MENEZES fala sobre como a música eletroacústica radicalizou a ideia de instrumento musical para se apropriar de todo e qualquer som. Mais do que uma aula sobre composição contemporânea, sua entrevista é um convite ao conhecimento e a uma compreensão musical além dos limites do senso comum.

seu senso de humor inteligente, de quem fala do diabo com a intimidade de quem dá um pescotapa em um amigo da escola. Ao lado de Tom Zé, Jackson do Pandeiro e outros gênios, JARBAS MARIZ também explorou como poucos os caminhos tortuosos da música brasileira. Em entrevista rara a um veículo de imprensa do país, Mariz deitou em sua banheira psicodélica e narrou episódios perdidos nas entranhas da nossa cultura. Quase contemporâneo de Mariz, MICHAEL ROTHER borrou contornos no rock do outro lado do Atlântico, em bandas como Neu! e Harmonia. Em passagem pelo Brasil com seu projeto Hallogallo, ele enfrentou uma gripe para contar sua história. No ensaio de fotos, EDUARDO MONTEIRO abre mão de sua identidade para encarnar o feio em máscaras perturbadoras. A SOMA 23 ainda traz a pintora LUÍSA RITTER, o mestre da nova música eletrônica francesa KOUDLAM, o hip-hop instrumental português do ORELHA NEGRA, o rock instrumental brasileiro do MACACO BONG e o rap circense de DON CESÃO. VIRE A PÁGINA, QUE O RESTO É RUÍDO.

O artista gráfico estadunidense JUSTIN BARTLETT, mais conhecido como VBERKVLT, passa em revista anos de trabalho como ilustrador de dezenas de discos de metal, de todas as vertentes possíveis. Uma entrevista marcada por

4JARBAS MARIZ 4

POR FERNANDO MARTINS FERREIRA


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+CONTEÚDO

92 90 84 82 80 78 76 74 70 666 58 52 42 32 26 20 14 12 REVIEWS OBRAS PRIMAS . LOVE IS IN THE AIR QUADRINHOS SELETA . ELETRODOMÉSTICOS QUEM SOMA . DANIEL TAMENPI DONCESÃO BRENDAN CANNING MACACO BONG HALLOGALLO ORELHA NEGRA FLO MENEZES ENTRE (OUTROS) VBERKVLT ENSAIO DE FOTOS . AUTORRETRATO SENSORIAL KOUDLAM LUISA RITTER JARBAS MARIZ SHUFFLE . ALEXANDRE VIANNA

4ILUSTRAÇÃO POR JUSTIN BARTLETT 6


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O PROJETO +SOMA É UMA INICIATIVA DA KULTUR, ESTÚDIO CRIATIVO COM SEDE EM SÃO PAULO. PARA INFORMAÇÕES ACESSE: MAISSOMA.COM

KULTUR STUDIO . SOMA Rua Fidalga, 98 . Pinheiros 05432 000 . São Paulo . SP kulturstudio.com REVISTA SOMA #23 . MAIO 2011 Fundadores . KULTUR ALEXANDRE CHARRO, FERNANDA MASINI, RODRIGO BRASIL e TIAGO MORAES

Editor . MATEUS POTUMATI Editor Site . AMAURI STAMBOROSKI JR. Revisão . ALEXANDRE BOIDE Fotografia . FERNANDO MARTINS FERREIRA Projeto gráfico . FERNANDA MASINI Direção de Arte . RODOLFO HERRERA e JONAS PACHECO Conteúdo áudio-visual . ALEXANDRE CHARRO, FERNANDO STUTZ e FERNANDO MARTINS FERREIRA

Colunistas . TIAGO NICOLAS, RICARDO “MENTALOZZZ” BRAGA, DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG, PEDRO PINHEL, RAFAEL CAMPOS, MZK e NIK NEVES.

GOSTARÍAMOS DE AGRADECER A SESC, Leonardo Franco e Thiago “Índio” Silva, Ana Ferreira Adão. a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha, anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado!

Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início.

2CAPA . THE SECRET . VBERKVLT Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

Periodicidade . Bimestral Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros

Publicidade . CRISTIANA NAMUR MORAES . publicidade@maissoma.com

culturais, shows, eventos e casas noturnas. Veja os endereços em: www.maissoma.com/info

Para enviar sugestões e material para review, entre em contato através do e-mail redacao@maissoma.com.

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Impressão . Prol Gráfica Tiragem . 10.000 exemplares


Promovemos reflexão Rumos Itaú Cultural Jornalismo Cultural 2011-2012 Estão abertas as inscrições para professores e estudantes de jornalismo e comunicação social. Estudantes podem se inscrever com reportagens sobre o universo cultural. Professores, com ensaios sobre as possíveis relações entre instituições de ensino e jornalísticas. Os selecionados participarão de programas de aprimoramento e desenvolverão projetos com apoio financeiro. Participe!

artes visuais jornalismo cultural educação, cultura e arte

Conheça também os editais Rumos Itaú Cultural Artes Visuais 2011-2013 inscrições até 29 de maio Rumos Itaú Cultural Educação, Cultura e Arte 2011-2013 inscrições até 30 de junho

Rumos Itaú Cultural Jornalismo Cultural 2011-2012 inscrições até 15 de julho

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sábados domingos fer iados das 11h às 20h

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+COLABORADORES

Velot Wamba

Lauro Mesquita

Daniel Tamenpi

Velot Wamba, 32, é a favor do

Jornalista, foi vocalista e guitarrista

Jornalista, pesquisador musical

céu pelo clima e do inferno pelas

do Space Invaders. Nas horas

e DJ especializado em soul, funk

companhias. The Ex, João Antonio,

vagas escuta um som e aproveita

e hip-hop. Escreve o blog Só

Tina Modotti, Robert Crumb e

a vida em Belo Horizonte, Pouso

Pedrada Musical, onde apresenta

Jackson Pollock - tudo junto e

Alegre e na idílica Heliodora.

lançamentos e clássicos da

misturado. Crê que as ideias são

Apesar de negar com veemência,

música negra.

imprescindíveis, os rostos não.

é roqueiro brasileiro nato.

Raquel Setz

Michaël Patin

Jornalista musical apaixonada

Tem 29 anos e é mestre em

por barulhos, experimentações

sociologia das mídias. É também

e esquisitices em geral - e por

crítico musical e realiza entrevistas

melodias bonitas também, porque

para a revista francesa Magic,

não tenho coração de pedra.

cuja especialidade é o pop contemporâneo, desde 2003.


Marina Mantovanini

Helena Sasseron

Fotonauta

Nascida em São Paulo, pindense

Produtora e stylist nascida em SP,

O Coletivo Fotonauta é: Andrea

de coração. O lado hippie sempre

acredita no “cada um com seu

Marques, Daryan Dornelles e

pensa em arrumar as malas e viver

cada qual”. Filmes e arte sempre

Eduardo Monteiro.

na praia, mas os shows e a vida

que sobra um tempo.

agitada da metrópole ainda falam

Música o tempo todo.

mais alto.

Vakka

Debora Pill

Death Banger profissional formado

Jornalista, produtora e

pela Uni-Led Slay e pós-graduado

investigadora musical. Em pleno

em Death Metal Oldschool por

processo de desenvolvimento do

diversos cursos online e livros de

ouvido de dentro. Acredito no

procedência duvidosa. Empresário

caminho do bem e ainda ouço

fracassado, mantém um site para

rádio.

intimação online, o Intervalo Banger, alimentando assim a chama do Rei das Sete-Coroas.


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COM ALEXANDRE VIANNA POR TIAGO NICOLAS FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

DISCO TRILHA SONORA DA ÉPOCA DE OURO DA DIRTY MONEY Gil Scott Heron – The Revolution Will Not Be Televised. Quando resolvi fazer o vídeo de skate Dirty Money, em 1991, queria que o vídeo tivesse o título “The Revolution Will Not Be Televised, Brother”. Por algum motivo que não lembro mais, acabei ficando com Dirty Money mesmo. Mas as palavras do Gil Scott Heron, naquela época de ouro dos anos 90, sempre me levantavam da cama mais inspirado. DISCO QUE CONSEGUE TRANSPOR ESSA ÉPOCA PRA HOJE Twinpines – Niagara Falls. Hoje em dia sou muito influenciado pelo sentimento e pela verdade que o ser humano por trás das obras transmite, seja nas artes plásticas, na fotografia, no skate ou na música. O Twinpines é uma banda nova, e seus integrantes me transmitem bastante o sentimento dos anos 90. DISCO QUE VOCÊ LEVAVA PRA CORRER NOS CAMPEONATOS OU PRA FAZER DEMOS Fugazi – Repeater. Teve muitas fases, mas esse nunca podia faltar. DISCO DE QUEM FAZ SNOWBOARD Shawn Lee’s Ping Pong Orchestra – Moods and Grooves. Grande parte da minha escola musical é através de vídeos, e no snowboard não foi diferente. Os vídeos de snowboard também têm trilhas sonoras bem elaboradas.

DISCO PRA DERRUBAR SEU ARQUIRRIVAL NUMA VOLTA O skate pra mim sempre foi meio de superação individual. Meu arquirrival sempre foi o meu próprio corpo: os músculos doloridos do dia anterior ou um medo não dominado dentro da mente. Principalmente a cabeça desconcentrada da ressaca de uma boa balada. Pra derrubar a ressaca: Joanna Newsom – The Milk-Eyed Mender.

Ele nasceu quase em Belém, e o pobrezinho dropou no Brasil pra fazer história e contar a história do skate nacional. ALEXANDRE VIANNA sempre foi envolvido e inteirado com toda a cultura do skate, e continua no jogo, disparando seus flashes e recentemente estreando o emocionante Dirty Money. Como o Alê também edita a revista 100%Skate, foi bem solidário e generoso nas respostas. Confiram:

DISCO SOLO DE UM SKATISTA Tommy Guerrero – Loose Grooves and Bastard Blues. Em meados dos anos 90, tive a oportunidade de fazer uma sessão de street com o Tommy Guerrero em San Francisco e ganhei um CD com as músicas que ele estava compondo. Era ainda um CD demo, sem gravadora. Em 1998 o disco foi oficialmente lançado, e impulsionou a carreira dele como músico.

DISCO QUE VOCÊ MAIS GOSTOU DE TER FEITO A FOTO DA CAPA De Menos Crime – De Menos Crime. Nada de estúdio, armas de brinquedo ou balas de festim.

DISCO PRA OUVIR ENGESSADO EM CASA Silversun Pickups – Pikul. Quanto mais energia na música e quanto mais alto o volume, melhor pra qualquer momento de recuperação do corpo e da alma. DISCO QUE VOCÊ MAIS GOSTOU DE TER RESENHADO Dinosaur Jr – Green Mind. Pela foto da capa! E pelo rock. Por ter fotografado várias imagens de capa de discos ao longo dos anos – e por ter comprado diversos discos (também) pela foto da capa.

EXTRAORDINARIAMENTE, A MINHA ESCOLHA DESTA VEZ É MAIS UMA PERGUNTA. E DAS DEZ PERGUNTAS QUE FIZ A QUE EU MAIS CHAPEI FOI ESTA: DISCO QUE TÁ NO SEU PASSAPORTE, QUE REVELA SUA VERDADEIRA NACIONALIDADE Garotos Podres – Mais Podres do que Nunca. Nasci em Teerã, no Irã, mas fui registrado na embaixada brasileira para ser, de fato, brasileiro nato. Saí do Irã com um ano de idade e não tenho nenhuma ligação com o país ou sua cultura. Sou brasileiro por opção, e não por fatalidade!

2TIAGO NICOLAS É 1/3 DA ESPARRELA 13


PSICODELIA FOR ALL JARBAS MARIZ é um

camarada de sorte. Nasceu roqueiro, mas o dom do ritmo o levou a passear por onde ele bem entendesse: psicodelia, forró, baião, eletrônico, xote, post-rock, coco, indie, xaxado, ciranda e por aí vai. Paraibano prestes a completar seis décadas de vida, tem muita história pra contar. Mais do que isso: tem história que merece ser conhecida. Viveu capítulos com os maiores criadores da música popular brasileira, como a santíssima trindade Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e João do Vale. Há vinte anos, Jarbas é parceiro das aventuras musicais de Tom Zé. É também um dos artistas mais inventivos do nosso tempo. Coisa de gente enxerida e arretada. 1

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POR DEBORA PILL . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA


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Eu sou autodidata, não tinha aquela manha de altos acordes, de estudar música profundamente. Minha coisa era mais simples, mais de emoção mesmo. Por isso não tente me enganar, a verdade está naqueles que a sabem usar”.

4CONCEITO ORIGINAL E A VERSÃO FINAL DA CAPA DE TRANSAS DO FUTURO E a gravação? Era tudo ao vivo. A gente gravava a base e depois botava uma voz – às vezes a voz-guia já valia. Eram as condições da época. A gente sabe que o disco é mal gravado e tal, mas o barato está aí. Eu gosto de ouvir esse som hoje em dia. É um som verdadeiro demais. Naquela época era tudo na luta, você ensaiava até morrer… E um, dois, três, ninguém podia errar. Essa garra toda aparece nas letras também. Tem muita coisa otimista, tipo “Tudo que vem da natureza merece ser curtido”. Pode até ser ingênuo, mas é de verdade. Outra coisa que eu falo que merece ser ouvida é a “Valsa dos Cogumelos”, mas nesse caso estou falando de uma música do primeiro disco do Lula, o Satwa. O Lula me deu o disco, eu me identifiquei e coloquei nessa letra. Você teve algumas bandas de baile e depois foi tocar com o Zé Ramalho. Conta essa história. Pra mim, a música da Paraíba é antes e depois de Zé. Foi ele que trouxe, no começo dos 70, um show profissional, com estrutura. Era o “Atlântida, o Continente Desaparecido”. Era Zé Ramalho e os Filhos de Jacó, e eu era um dos filhos. Tocava guitarra base, percussão e fazia vocal com ele. Foi nessa época que o Zé conheceu o pessoal de Recife, e queria me levar pra lá de qualquer jeito. Ele falava: “Bicho, participei de umas gravações com esses caras pro disco do Marconi Notaro”. Quando o disco ficou pronto, ele me levou pra Recife. Foi aí que eu conheci Lula [Côrtes], Alceu [Valença], todo o pessoal… Foi nessa época que saíram os clássicos Satwa, Marconi Notaro no Sub-reino dos Metazoários e Paebirú. Você tocou no Paebirú, né? Eu fiz berimbau, mas nem tocava! Eu tinha ido à Bahia pra aprender a tocar. E, como eles queriam berimbau de todo jeito, acabei tocando na “Não Existe Molhado Igual ao Pranto”. Depois disso fizemos o Rosa de Sangue, do Lula, que eu toquei também, em três faixas. Mas esse disco nunca saiu aqui – eu tenho uma fita aqui que gravei lá na Rozenblit. 16

Isso foi antes de você lançar seu primeiro compacto. É. Depois disso fui pra Belém visitar meu irmão. Só que sofri um acidente lá e acabei ficando mais tempo. Então resolvi procurar uma gravadora que estava de olho em artistas novos. Eu tinha uma fita de um show que tinha gravado com o Zé lá em João Pessoa, que era o “Três Aboios Diferentes”. Todas composições minhas, só a “Paragominas” eu fiz em Belém. Levei pra Erla, a gravadora de lá. O cara achou estranho, eles tinham uma pegada mais carimbó, sirimbó, samba. Mas um maestro lá convenceu o dono que era importante ter um som diferente. E o cabra acabou investindo no meu primeiro compacto. Conta mais do Transas do Futuro. A gente fez o disco em 78. As letras das canções tinham muito a ver com a época. Era uma linguagem que hoje em dia não tem mais validade. Mas as pessoas não têm noção, tem loucuras bem legais ali. Eu gosto de dizer que, quando é verdadeiro, me dá o direito. Por exemplo, na música “Eu Quero Jogar Cartas com a Humanidade”, em que falo “Eu traço planos com a mente, eu carrego nas costas seus discípulos.

Lula, grande mestre que nos deixou há pouco… Vou sentir muito a falta dele. Eu inclusive queria regravar essa música e ia pedir pro Lula, tem a cara dele. Além de ser criativo pra caralho, era um ser humano da porra. E não parava um minuto. Bicho elétrico! Aquele quadro ali, grandão, verde, é dele. Maluco pra caramba: um relógio de madeira abandonado na beira de um pântano, que de tanto tempo que ficou lá acabou brotando. E depois de Belém? Voltei pra João Pessoa, chamei Lula pra ser convidado especial no meu show, tem inclusive um cartaz que eu guardei. Os meninos (DJ Nuts e Craifer, da Mopho Discos) ficaram malucos quando viram isso. Foi nessa época que você tocou com Jackson do Pandeiro? Foi logo depois. Eu estava no Rio com Catia de França gravando, e a gente foi chamado pra fazer o Pixinguinha (projeto que promovia shows a preços acessíveis). Os convidados eram Jackson do Pandeiro e Anastasia. Tudo acabou sendo uma surpresa pra mim, porque eu estava chegando ao Rio todo matuto…


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4JARBAS COM JIMMY PAGE

Eu sou autodidata, não tinha aquela manha de altos acordes, de estudar música profundamente. Minha coisa era mais simples, mais de emoção mesmo. Aí no ensaio o Jackson olhou pra mim e falou “Ô nego! Você não vai tocar comigo?”. E eu respondi, tímido pra caramba: “Não, eu vim tocar com a Catia”. E ele, “Eu tô vendo que você é bom de rrritmo, venha tocar comigo, o Severo vai lhe passar as harrrmonias”. Ele falava muito explicado, o Jackson, bem assim com o “r” puxado. Eu fui. Comecei a pegar minha célula rítmica, peguei as harmonias com Severo e fiquei fazendo os vocais. Tocava com Catia e com ele, fazia todos os vocais e a viola base. Você tem registro disso? Tenho tudo documentado. Tenho muito material dessa época, Jackson, Catia, Elba, João do Vale… Fala do João. Ah, ele era aquela figura forte. Tomava uma cachaça boa! Chegava no teatro todo arrumado, de camisa. Começava a tomar uma, outra, ia abrindo a camisa, ficando suado... Chegava a hora do show e ele tava no ponto! Tirava o sapato, ficava com a camisa aberta e mandava brasa. Era uma figura. Foi na década de oitenta que saiu o Bom Shankar Bolenath. Esse disco saiu em 89. Foi a minha fase mais criativa com o Lula. A gente ficou muito amigo, ele me apresentou muito músico daqui, Roberto Lazzarini, Bocato… Esse disco é como se fosse uma versão do Satwa, com Lula no tricórdio e Lailson na viola de doze. Aqui era ele no tricórdio e eu na viola de doze, só que com a tecnologia da época. Esse disco quer dizer “Acordemo-nos Deuses e Deusas à nossa própria divindade”. Só saiu em vinil, e é um instrumental diferente. Porque muitas vezes instrumental brasileiro tem aquela pegada jazz, um entrega pro outro solar e tal. Esse disco não. É uma viagem, a gente gravou todo mundo e depois foi mixar. 18

O Lula era o Oriente e eu o Ocidente. A gente fez uma coisa bem diferente. Tem um baião, o “Forró pro Mundo Inteiro”, que no lugar da zabumba a gente colocou tabla. O produtor achava que estava jogando dinheiro fora. A velha história da lucidez e da loucura, ou da loucura lúcida, não sei. E a homenagem ao Jackson? Foi uma responsabilidade danada. Eu tive essa ideia e fui pesquisar o repertório, porque queria misturar músicas conhecidas e desconhecidas. O mais importante era não perder a célula rítmica do Jackson, o suingue dele, era um compromisso meu. Se ele fazia na introdução uma coisa simples com sanfona, a gente fazia com metais mas com sanfona também, sem perder aquela cozinha do triângulo, agogô, zabumba e pandeiro. Sempre tendo essa linha da base do violão, e mais alguns arranjos. Vários amigos participaram: Bocato, Mestre Ambrósio, Chico César, Ferragutti. Qual a diferença entre forró e baião? Na minha concepção é o seguinte: dentro do forró tem baião, xote, xaxado, coco. Nos discos antigos, de Marinês, Jackson, Gonzagão, eles davam o ritmo da música em cada faixa. Por isso eu acredito que todos esses ritmos formam o forró. Mas muita gente confunde. Aqui em São Paulo tem mais xote que baião, o povo dança mais devagar. Vai lá no Nordeste ver essas bandas tocar! O baião é que nem

aquelas bonecas de pano, que você puxa, roda pra cá e pra lá. Eu aconselho a ir ver baião de verdade, lá em Caruaru, Campina Grande ou João Pessoa, onde o couro come. Aqueles zabumbeiros, o bacalhau, que é a varinha que toca na zabumba embaixo, o contraponto. Os cabras tocam aquilo de uma forma que você fica maluco! Pega os discos da Marinês, é uma pauleira só! Forró lá é pra lascar, por isso se fala “a poeira subiu, o chinelo arrastou”. O Jackson falava: “É um baião apressado demais!”. E a quadrilha? É mais rápido ainda! Uma vez fui tocar aqui e me falaram: “Meu irmão! Aqui é o pessoal da melhor idade! Você quer matar os velhinhos?” (risos). Eu tive que tocar mais lento. E o Luiz Gonzaga? Conheci quando Marinês gravou uma música minha. Ela tocava triângulo com ele, com um suingue que você não acredita! A gente foi fazer uma homenagem a Luiz Gonzaga no programa de Walmor Chagas e tocamos juntos. Além da cozinha de Gonzagão, os convidados especiais eram Marlene, Ivon Curi, Marinês e Altamiro Carrilho na flauta. Só isso! E Luiz Gonzaga cantando “Asa Branca”, é claro! Conta sobre as suas experimentações com o eletrônico. Foi o M4J que veio com essa ideia. Os meninos da minha banda entortaram a cara, não achavam que ia dar certo.


4JARBAS COM OS SELENITAS

O Manoel veio aqui em casa, levou os discos de Geraldo Mouzinho e Cachimbinho, de dois emboladores de coco, gravou uns pontilhados de repentista também. Levou pro estúdio, sampleou e gravou o primeiro disco. Aí a Trama gostou da investida, e no segundo disco eles me procuraram. Gravei triângulo, pandeiro, um monte de percussão, cantei uma música inédita…. E “Forró com F”, que foi bem gravada por aí, eles cortaram no computador, ficava Fo…Ff..Ff… Engraçado foi eu aprender a cantar isso ao vivo assim, todo cortado! Outra experimentação foi com o Tortoise. Isso. O David Byrne juntou as duas coisas porque achava que o som do Tortoise era estranho e do Tom Zé também! (risos) A gente fez uma turnê com eles por várias cidades nos EUA. Mas foi duro, eu passei quinze dias na casa do John McEntire. Tinha que ensinar aquele samba troncho e aqueles arranjos malucos pros caras! Eu ficava com as pernas tremendo, eram oito horas por dia de ensaio. Mas eles são bem versáteis, tocam todos os instrumentos. Um sai da bateria, pega o teclado, outro pega o vibrafone, outro a percussão… Falando em instrumento, conta sua história com eles. Eu vim da escola de baile, como já te falei. Mas sempre toquei de palheta, desde pequeno.

Não aprendi com violão de nylon, já comecei com guitarra base. Essa é minha parada. Aí, quando assumi sair dos bailes e virar Jarbas Mariz, tive que escolher um instrumento que pudesse tocar com palheta. E escolhi a viola de doze, porque não dá pra dedilhar. Até dá, mas não é minha praia. Minha praia é ritmo, e eu acabei me aperfeiçoando em cima da minha mão direita. No começo, eu tinha muita influência da bossa e da tropicália, mas a maioria das pessoas estudava música. E, como eu sou um autodidata, me safei com minha mão direita. E se safou mesmo? No começo eu ficava cismado, porque achava que tinha que ir além dos acordes simples, tinha que fazer aquele negócio dissonante. Aí depois eu entendi que pra fazer suingue, que era o estilo que eu gostava de fazer, esses acordes simples eram uma maravilha! Se eu fizesse acordes dissonantes jamais seria um ritmista. Sou cantor, compositor e, antes de mais nada, um ritmista, porque minha mão é percussiva. E a sua história com o Tom Zé? Foi justamente por conta disso que entrei na banda de Tom Zé. Eu toco percussão, cordas, meu bandolim é percussivo. Eu peguei toda minha bagagem de ritmo e coloquei nesses instrumentos pra trabalhar com o Tom Zé. E acabou dando certo. Quando cheguei aqui em São Paulo, no final da década de 80, conheci Tom Zé. Estou com ele há vinte anos. É um casamento danado!

E sigo gravando meus discos em paralelo ao trabalho com ele. Este ano deve sair uma coletânea dos meus seis discos. Tem mais novidades na área? Eu passei pela vida desse pessoal todinho: Jackson, João do Vale, Catia, Zé, Quinteto Violado, Lula… E levei todo esse material pro rapaz da gravadora Discobertas. Ele vai lançar tudo. Eu pensei: “Vou guardar pra quem? É melhor deixar pras pessoas ouvirem.” Demorei um tempo pra entender que era assim. Meus amigos falavam que eu era doente. Eu dizia: “Rapaz, eu não sei disso, não. Tudo que acho bonito eu guardo”. Depois comecei a entender que é bom pra mim e pras pessoas que vão pesquisar um dia isso aí. Eu fico feliz que os meninos estejam começando a se identificar com esse tipo de trabalho. 3

2SAIBA MAIS jarbasmariz.com.br

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4DETALHE DA OBRA - LENÇOL TURQUESA/22, TÉCNICA MISTA SOBRE LENÇOL ANTIGO . 2010

AS RELÍQUIAS DE LU Í SA R I T T E R P O R M A R I N A M A N TOVA N I N I . R E T R ATO S P O R SA M U E L E ST E V E S

COM UM CONHECIMENTO matemático sobre suas pinceladas, LUÍSA RITTER consegue revelar suas obras em detalhes sem nos fazer

perder o encanto por seus quadros impressionistas e nostálgicos. Figuras e cores, ambas ofuscadas por tinta acrílica e outros materiais como lápis grafite, aparecem repetidamente em suas telas e formam uma cena familiar com cheiro de algo antigo, que já ficou para trás. Sem se intimidar com as agruras de viver de arte no Brasil, a artista plástica gaúcha mudou-se para São Paulo em 2008. Desde então, divide um apartamento no bairro de Pinheiros com mais dois artistas de seu estado natal, Carla Barth e Luciano Scherer – amigos importantes para o amadurecimento artístico de Luísa. “Foi em São Paulo que comecei a me preocupar com o meu portfólio. Isso aconteceu quando larguei a publicidade e resolvi me dedicar ao meu trabalho. Eu queria ter alguma coisa autoral para apresentar e até então tinha um banco de dados de vários estudos, uma produção intensa de muitas coisas, mas nada pronto”, conta. 1 20


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4BLUMENAU, MAS PARECE TÓQUIO, TÉCNICA MISTA SOBRE CAPA DE DISCO . 2010

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Durante o período de produção e de organização do portfólio, Luísa foi conquistando espaço no acanhado circuito artístico brasileiro, e hoje tem suas obras representadas pela galeria paulistana Emma Thomas. “Tudo começou a mudar depois de participar de uma revista de arte e moda, a Gudi. Uma das curadoras, a Juliana Freire, era uma das sócias da Galeria Emma Thomas. Foi aí que recebi o convite para participar de duas exposições no final de 2009, no antigo espaço da Galeria”, relembra. Hoje ela segue em direção ao reconhecimento pelo seu trabalho autoral, em que o diferencial fica por

conta do modo como representa o que vê e transforma suas histórias pessoais em relíquias do passado. Você sempre desenhou? A minha infância foi privilegiada, era repleta de natureza, sensações de estar livre para se divertir. Meus irmãos e primos sempre estavam juntos na casa do meu avô materno. Passávamos boa parte do tempo no pátio, íamos descobrindo por todo canto algo para se divertir. Criávamos um mundo que ia se abrindo conforme descobertas eram feitas – livros, objetos e fotos guardados despertavam a curiosidade de saber a história que estava por trás dessas memórias. Sempre via meu irmão mais velho desenhando, e sempre o acompanhava para ajudar. Mesmo que ele fosse até o telhado desenhar, eu ia atrás. Via também meu pai desenhar umas casas de campo em papéis quadriculados, isso me cha-

mava muito a atenção. Junto com as milhares de tralhas que meu pai ia acumulando lá em casa, se criou um universo muito rico de materiais. Foram os meus primeiros contatos com a arte, de uma forma básica e espontânea, sem a menor pretensão. Além de ter na escola a arte como uma das únicas matérias em que me interessava. Sempre me via desenhando no caderno. Você disse que a faculdade abriu novos caminhos na sua arte, e que a Cláudia Barbisan (artista plástica gaúcha) foi a figura central. Em que pontos ela é referência em suas telas? Comecei a frequentar um curso semanal de desenho, orientado pela Cláudia, que passou a me dar dicas e a me orientar informalmente. Algumas vezes ia visitar o ateliê dela e pegava emprestado algum livro de arte. A Cláudia chegava a cada aula trazendo uma mala repleta de livros, uma seleção de apresentações de formas de criar, que foi evoluindo junto com o curso de desenho que ela dava. A influência sempre vai existir. Ela deixou presença em espaços que ainda estavam sendo construídos. Era o olhar de alguém que levantava questões, alternativas para encaminhar o seu trabalho. Sempre vejo pequenos detalhes na minha pintura – existem

VEJO O TEMPO PASSADO COMO RELÍQUIAS. HOJE SÃO POUCAS AS COISAS QUE RESISTEM AO TEMPO. ESSAS RARIDADES DO PASSADO ME FASCINAM. encontros de pinceladas feitas com movimentos intensos, como nas pinturas da Cláudia. É uma coisa feita involuntariamente. Como você cria? Na verdade, meu processo de criação nunca é pré-definido, tudo depende do que for aconte23


cendo, de como estará o dia, a minha disposição e o nível de concentração. Meu trabalho começa primeiro na busca de referências, na soma de motivação, estímulos e inspiração, que surgem a partir da pesquisa diária em livros, na internet, no convívio com outros artistas, no compartilhamento de conhecimentos, desde pintura até música. Já pintei doze horas seguidas, mas percebi que era necessário sair para ver o que estava fazendo, observar mais. Hoje tento acordar cedo sempre, e usar a luz do dia, pintando de quatro a sete horas. É sempre difícil, é preciso estar presente diariamente para poder evoluir. É uma obrigação que me dou, e que segue pelo convívio diário com os outros artistas com quem divido o ateliê, um empurra o outro. Um ponto forte do seu trabalho é a reflexão subjetiva do seu mundo interior na reutilização de fotos antigas de família. É a partir delas que você recria imagens deformadas da realidade. Foi procurando em minhas referências que encontrei um mundo muito rico de imagens, fotos e filmes em Super 8 produzidos ao longo da vida pela minha família. Vejo o tempo passado como relíquias. Hoje são poucas as coisas que resistem ao tempo. Essas raridades do passado me fascinam. Não tanto como algo saudosista, mas para poder reutilizar de uma nova forma, mais criativa, resgatar um lado mais orgânico. Levo [as antigas fotografias] como inspiração para criar, fotografando e filmando de forma experimental, com câmeras analógicas e em Super 8. Resgato essas lembranças que vejo nas fotos de uma forma quase cronológica. É uma experiência de resgatar o passado. Quem dera poder voltar no tempo com toda essa bagagem já vivida. Certamente, iríamos deixar mais lembranças de momentos bem vividos, registrando os mesmos passos para serem vistos no futuro. Ao mesmo tempo que têm características expressionistas, as suas pinceladas retomam também o Impressionismo – tanto na textura como na composição de cores. Como é essa relação com as duas escolas artísticas? Para mim é impossível não ter visionários como eles entre minhas principais referências, assim como os pré-rafaelitas e os pós-impressionistas. Os expressionistas manifestavam-se ao mostrar subjetivamente a natureza e o ser humano, priorizando os sentimentos. Com uma visão metafísica que defendia uma liberdade individual, deformando a realidade, uma abertura ao mundo interior. Foi naturalmente que encontrei essas duas escolas. A cultura que veio dos primeiros imigrantes alemães permaneceu com o tempo nos costumes e hábitos de toda uma região do Sul do Brasil, que trouxe na bagagem acontecimentos históricos vividos na Europa. À medida que fui desenvolvendo e avançando o meu desenho, cada vez mais acentuava os traços dessa herança cultural. 24

Você sempre fala sobre a importância de sua herança cultural e do convívio com a natureza em Montenegro (cidade próxima a Porto Alegre) na concepção de suas telas. Eu cresci sabendo a história do meu estado. Era algo muito vivo nas famílias, nas escolas, aprender a cantar o hino rio-grandense e a história do Rio Grande do Sul fazia parte da educação. Nasci e cresci numa cidade com forte influência alemã, com pequenas colônias de imigrantes no interior, onde minha família viveu. Até os oito anos de idade o meu avô paterno só falava alemão. Era comum nos dois lados da família ouvir pequenas palavras do dialeto, tanto no Ritter como no Zimmer. Os imigrantes europeus deram uma importante contribuição à formação do gaúcho. A ética do trabalho, o cultivo da terra, os vários pratos da nossa culinária, cucas (pão/bolo doce) com schimier (doce de frutas) e nata, e na salada com maionese que acompanha um verdadeiro churrasco gaúcho, com costela de gado e uma bela ovelha. É uma educação que se tem junto à natureza, à terra, nos seus devidos valores. Não tem como se desvincular disso.

... MEU PROCESSO DE CRIAÇÃO NUNCA É PRÉ-DEFINIDO, TUDO DEPENDE DO QUE FOR ACONTECENDO, DE COMO ESTARÁ O DIA, A MINHA DISPOSIÇÃO E O NÍVEL DE CONCENTRAÇÃO. Os seus desenhos já foram parar em um clipe da música “Antes de Você”, dos Titãs. Como foi essa experiência? Uma amiga de Porto Alegre que mora aqui em São Paulo lembrou de mim quando estava trabalhando na produção. Ela perguntou se eu estava a fim de pintar uns sacos de papel para um trabalho. No primeiro momento, confesso que achei estranho e disse que não. Em seguida ela me contou que era para o clipe dos Titãs. Foi algo bem

informal mesmo, as pessoas que estavam fazendo os outros desenhos eram da própria equipe da produtora. No mesmo dia em que recebi o convite, comecei a produzir com uma pequena ajuda de custo para os materiais. A reação deles foi bem positiva. Não imagino o que eles esperavam, se algo mais simples de canetão, mas a pintura em camadas, bem expressiva, eu sabia que iria se destacar. Queria tirar aquele padrão de saco de papel. Fiz bem tranquila, não tinha ideia de como estaria inserido no clipe, e o quanto iria repercutir a minha pequena participação na produção. Como você enxerga os trabalhos mais comerciais? É importante ter liberdade de escolha, fazer tudo em seu estilo. Levei o meu trabalho a sites na internet desde que entrei na faculdade e comecei a desenhar. Ia salvando no Flickr, o primeiro passo para publicar em revistas e ilustrar jornais. É um passo para começar a se movimentar pelo mundo, um portal para referências e contatos, para aprender e evoluir. Passei a criar a partir de briefing em São Paulo, quando as oportunidades foram surgindo. Aos poucos produzia minhas telas e ao mesmo tempo ilustrava para revistas e jornais. A reação de quem vai receber a minha arte faz parte da decisão de fazer ou não um trabalho, mas sei que de alguma maneira sou retribuída, tendo oportunidades posteriores, convites para entrevistas e exposições. É preciso saber a importância do trabalho, se vale a pena unir a sua imagem com a marca em questão. A melhor forma de enxergar essas oportunidades é ver o trabalho como um desafio, uma chance de ser reconhecia. Atualmente tenho o apoio da agência Möve para trabalhos comerciais. Lá tenho a chance de querer ou não, e o contato com o cliente fica intermediado por eles, solucionando várias questões burocráticas em que não preciso me envolver. Defina o seu trabalho. Acredito estar sempre evoluindo, modificando a forma de me expressar e fazendo com que vários pontos aleatórios se unam. Mostro algo realista mas obscuro, sem entregar totalmente a imagem, deixando somente rastros e lembranças que fazem sentido combinados com outras formas. 3

2SAIBA MAIS flickr.com/photos/luisaritter


4LITTLE JOY, TÉCNICA MISTA SOBRE TELA . 2010

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4FOTO POR ALICE KNIGHT

POR MICHAËL PATIN, DE PARIS . TRADUÇÃO DE ANA FERREIRA ADÃO

Com sabor de eletrônico mundial, Koudlam instaura sua visão monumental do techno world no coração da nossa ofegante civilização pós-milênio. Após o inesgotável Goodbye (2009, relançado em formato digital este ano) e antes de um novo EP chamado Alcoholic’s Hymns, previsto para maio, tentamos compreender por que sua música nos faz fantasiar tanto. Uma obra de origem marginal também pode encontrar formidável repercussão em sua época. 1

k o u d l a m

A obra de Koudlam cultiva já há cinco anos essa capacidade. Apaixonado por paisagens, monumentos, culturas, ritos, a alteridade sob todas as formas, ele perscruta nossa pós-modernidade cansada de si mesma e impõe sua grande visão do eletrônico neste mundo de mensagens tão vazias. E faz isso com ares de conquistador e xamã; de herói, enfim. Emergido das ruínas, projeta sobre elas os fantasmas contemporâneos que o ultrapassam.

Intimado a encarná-los, quiçá preencher ele mesmo essas lacunas, Koudlam esforçou-se para guardar um certo mistério sobre si mesmo – uma forma de mostrar que ainda não está pronto para levar sua arte à altura do homem, o que incomoda, fascina e impõe respeito. É por isso que sentimos uma certa pressão antes de encontrá-lo pela primeira vez. O sentimento é de que nada conseguiremos tirar desse encontro. Atitude exagerada, humor violento, silêncio sepulcral? Por já termos nos deparado com sua silhueta passiva-agressiva nas casas de show, temíamos nos chocar contra uma armadura de cinismo na superfície do gênio. Por sorte, bastava ouvir sua música novamente – que além do citado inclui Nowhere (2006) e Live At Teotihuacán (2008) – para que a vontade de confrontá-lo voltasse. Tentamos, então, elaborar o interrogatório da melhor forma possível, a fim de revelar um pouco de íris por debaixo dos óculos escuros.

Descemos ao segundo subsolo de um prédio do décimo-primeiro arrondissement de Paris, um labirinto de portas idênticas que davam para os porões. Avistamos Arthur, jovial patrão da gravadora Pan European Recording. “Você não teve problemas para nos achar? Tem que tomar cuidado, tem um clube SM hardcore logo ali em cima.” Ele não estava brincando. No estúdio, um forte cheiro de maconha toma conta da atmosfera, indicando que chegamos ao nosso destino. 27


4FOTO POR CYPRIEN GAILLARD vas e extraordinárias perspectivas. Uma forte e recíproca admiração entre dois artistas, então desconhecidos, que pensam grande. “Nós trabalhamos juntos no Desniansky Raion, um vídeo para o qual eu compus uma trilha sonora de trinta minutos e que levei meses e meses para criar. Teve também o Crazy Horse, que fala dos índios e de suas montanhas dinamitadas por um escultor polonês. Eu fiz essas performances em lugares que correspondiam à nossa estética, quando era possível e quando nos proporcionavam os meios. Terraços de prédios, topos de guindastes, pirâmides, florestas, teatros italianos, ruínas e precipícios pelo mundo inteiro.” É aqui que Koudlam prepara seu novo EP, assim como seu terceiro álbum. Logo no início da conversa, as nossas antigas apostas caem por terra: palavras generosas e calmas de um jovem abraçando plenamente a vida de artista. Sem piadas internas para os descolados, sem literatura de slogan, mas atitudes e engajamentos que confirmam seu papel de desbravador. A trajetória de Koudlam não poderia ser convencional. Depois de uma passagem forçada pelo conservatório durante a infância, montou grupos de rock e foi rapidamente iniciado por seu irmão mais velho no manejo de instrumentos eletrônicos. Ao ingressar no mundo das raves hardcore, despejou sua “música de guerra” por quase dez anos, antes de ser acometido pelo cansaço (“muitas drogas, muitos babacas violentos”). Daquele período, ele conservou o apelido (Koudlam é uma corruptela de “coup de lame”, ou “golpe de lâmina”) e o gosto pelos sons que atacam o cérebro das multidões. Nowhere, seu primeiro sinal de vida, foi criado como questão de urgência. “Produzi o Nowhere sozinho, porque as músicas estavam se acumulando e eu queria passar pra outra coisa. Pra dizer a verdade, eu temia na época que o mundo estivesse completamente fodido e que ninguém se interessasse pela minha música.” Nesse álbum, sua música já estava poderosamente formulada: um tecnho world entre transe, raiva, caos e iluminação. “Esse álbum é um massacre”, reconhece hoje. Mas o estalo viria de outro lugar, de uma galáxia aparentemente distante: a arte contemporânea. Em uma temporada no Vietnã, encontrou-se com o artista plástico Cyprien Gaillard, que lhe abriu portas para no-

Enquanto seu sócio entrava no rol dos grandes (prêmio Marcel Duchamp em 2010, com vendas chegando aos cem mil euros), Koudlam executava seu número de ginasta com uma desenvoltura desconcertante. “Eu não via isso como um desvio “NÃO ME muito grande. Na época, CONSIDERO UM estava convencido de que ARTISTA PARISIENSE, a minha carreira artístiNEM MESMO FRANCÊS. ca funcionaria melhor TRABALHO EM PARIS HÁ na pintura. Mas me ALGUNS ANOS, MAS MEU dei conta de que, CORAÇÃO E MINHA CULTURA sem dúvidas, eu era NÃO SÃO DAQUI. EU ME SINTO melhor nas melodias MAIS EM CASA NA ÁFRICA e no canto, que eu OCIDENTAL, NO MÉXICO OU devia fazer só isso.” Como Serge GainsNOS ALPES FRANCESES QUE bourg já havia feito EM PARIS, AINDA QUE EU antes, Koudlam deixou GOSTE MUITO DESTA de lado os pincéis para CIDADE.” abraçar uma “arte menor”. O talento da composição, que ele evoca modestamente, conta muito para o sucesso de seu diálogo com imagens e paisagens, talvez ainda mais que a performance dos instrumentos eletrônicos que usa. Seu desejo, atualmente, é ser ouvido pelo máximo possível de pessoas e de abrir novos horizontes a todos, uma ilusão que ele endossa com espírito cavalheiresco. “A dimensão monumental me agrada, mas acho que a minha música é de fácil acesso. Muitas das minhas canções são bastante universais, leves e envolventes.” Goodbye, seu disco mais bem finalizado até hoje, prova que ele tem razão: de amplitude e clareza raras, ouvimos esse disco como se estivéssemos sonhando com um mundo outro, que devemos (re)povoar juntos.

LIVE AT TEOTIHUACAN Um segundo momento fundador é seu encontro com Arthur Peschaud, um ano antes da criação da Pan European Recording. Fiel a sua primeira intuição, Peschaud publica o EP-vinil Live At Teotihuacan como primeira referência da gravadora 28


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4FOTO POR CYPRIEN GAILLARD

lançada em 2008. No mesmo ano, os violinos sintéticos ansiosos de See You All encontram um lugar digno na trilha original do filme Un Prophète (2009), obra-prima de Jacques Audiard, que recebeu muitas premiações. Koudlam continua, no entanto, a cultivar sua singularidade, alheio aos efeitos de modas e clãs, escapando de todos os atalhos estéticos ou geográficos. “Não me considero um artista parisiense, nem mesmo francês. Trabalho em Paris há alguns anos, mas meu coração e minha cultura não são daqui. Eu me sinto mais em casa na África Ocidental, no México ou nos Alpes Franceses que em Paris, ainda que eu goste muito desta cidade.” Esse nomadismo materializado é a chave para entender o impacto de suas criações. Se ele se furta de exibir “ESTOU EM uma atitude reacionária GUERRA CONTRA O em vista da tecnoloDESAPARECIMENTO DA gia (não há culto ao CULTURA E DAS LÍNGUAS, sintetizador vintage, A DECADÊNCIA DA NOSSA o que faz dele uma CIVILIZAÇÃO, CONTRA O BOM exceção até mesmo PENSAMENTO, QUE ESTÁ EM em sua gravadora), TODO LUGAR. ACHO QUE furta-se também de DEVEMOS DEFENDER A chafurdar nas facilidaSOCIEDADE, MAS ENFIM, EU des permitidas por ela. SOU SÓ UM MÚSICO.” “Quando comecei a fazer música eletrônica, comprei um monte de máquinas enormes – samplers, sintetizadores, mesas de mixagem… Quando vieram os plug-ins e o PC se tornou um home-studio por si só, eu nem hesitei em vender meu antigo material. Eu perdia na qualidade do som, mas ganhava na liberdade de movimentos, o que, pra mim, é o mais importante.” Tirando o melhor do nomadismo em sua acepção tradicional (gosto pela aventura, antissedentarismo) e pós-moderna (essas tecnologias que, paradoxalmente, permitem que as pessoas fiquem imóveis diante da tela do computador), ele repõe o risco no centro de sua abordagem, evidenciando esse paradoxo contemporâneo. Nos tempos atuais, o artista deve ser móvel; ele se reapropria do território para combater a ilusão de estar em todos os lugares ao mesmo tempo. “Estou em guerra contra o desaparecimento da cultura e das línguas, a decadência da nossa civilização, contra o bom pensamento, que está em todo lugar. Acho que devemos defender a sociedade, mas enfim, eu sou só um músico.”

Esse último traço de modéstia nos espanta; ele, que ainda recentemente imaginávamos um megalômano descomplexado. “A verdade é que eu tenho, ao mesmo tempo, a maior e a mais miserável autoestima. Um grande clássico.” Franqueza e lucidez em vez de autoficção e autofelicitação. E o controle drástico que ele parece impor a sua imagem? Nada mais que a expressão de uma necessidade de independência. “Se você deixa os outros fazerem as coisas por você, pode acabar cheio de plumas enfiadas no rabo, vestido de Hugo Boss. Sempre tem uns diretores artísticos, uns estilistas cujo estilo você odeia. Eu tento evitar isso, mesmo que o meu agente não fique muito feliz. Também procuro conservar uma opacidade para deixar a minha música viver, não limitar a sua extensão dando explicações. A música supera o artista, ela provém de estados mentais que lhe escapam.” Ele persevera nessa posição a cada dia que Deus, o Diabo, ou a Serpente Cósmica, lhe oferecem, sem se preocupar com as fronteiras físicas ou midiáticas. “Eu terminei há pouco uma trilha original para um documentário gravado no Senegal, dirigido por dois austríacos. Quase terminei o EP que sai em maio e estou avançando no meu próximo álbum, previsto para fim de novembro. Depois da minha temporada na Bolívia e de algumas idas a Londres, suspendi todos os meus shows, porque quero preparar um novo live, em que certamente estarei acompanhado. Também tenho em vista um projeto de vídeo experimental que vai se passar nas montanhas com o Frederik Jacobi, que era alpinista. Sou apaixonado por alpinismo e fiz com que ele voltasse ao seu antigo ambiente… A mulher dele deve me detestar.” Uma última e breve gargalhada e ele enfim nos convida a ouvir suas novas demos. Na sua cabine de espaçonauta, o som é imenso. As chuvas de melancolia arpoam nosso peito, os prédios desmoronam em ondas, uma alegria pegajosa se instala. Aliviados dos fantasmas redutores que concernem ao homem, é tempo de declarar nosso amor incondicional ao artista Koudlam. Pelo que ele cumpre e quer cumprir, seus combates e suas visões, por todas as majestosas vertigens – musicais e ontológicas – que ele oferece ao homem do terceiro milênio. Um gosto doloroso de paraíso no coração do nosso inferno. 3

2SAIBA MAIS koudlam.com

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Tal qual um homem-bomba, que abre mão da sua identidade em nome de uma ideologia, Edu Monteiro esconde o rosto sob máscaras, obscurecendo sua condição humana à medida que se transforma em um ser híbrido. A diferença, entretanto, reside na poética que o artista alcança, brutal por um lado, repleta de humor por outro. As texturas que o fotógrafo busca em elementos orgânicos – plantas, pimentões e carvões – aproximam sua pesquisa daquilo que Archimboldo fazia

na pintura: retratos que confundem os sentidos ao deturpar a própria natureza. Já as imagens que ele obtém através da fusão do corpo humano com o corpo artificial – cigarros e bichinhos de pelúcia – remetem a um futuro sombrio ou decadente, habitado por criaturas mutantes. De uma forma ou de outra, a carga política é intrínseca ao trabalho do artista, seja nas mutações orgânicas que suscitam discussões ecológicas, seja naquelas em que o consumo se sobrepõe ao indivíduo, modificando suas feições, como se houvesse adulterado sua carga genética.

Os híbridos construídos na série de autorretratos são tão plurais quanto excludentes, evidenciando e ocultando as complexas facetas que forjam e tão bem caracterizam a espécie humana. BERNARDO JOSÉ DE SOUZA










fotonauta.com.br

2SAIBA MAIS


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POR THIAGO VAKKA . FOTOS ACERVO DO ARTISTA

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JUS T I N O U

B A RT L E T T,

V B E R K V LT,

é um artista com traço particular e facilmente reconhecível. Além de ter produzido ilustrações para bandas como Sunn O))), Boris, Moss e Trap Them, entre toneladas de outras, tem no portfólio coisas como o rótulo de um vinho e um comercial para a marca de roupas Anti Sweden. E exposições, inúmeras delas. Na entrevista a seguir, Bartlett fala sobre assuntos diversos como seu processo criativo, briefings comerciais, materiais que usa, o dilema arte digital x arte manual, sua relação com o guitarrista Stephen O´Malley e outros designers que admira. Tudo com um puta bom humor. Ah, sim: ele também fala sobre metal. Pra caralho. 1

Justin, Qual foi seu primeiro trampo pra uma Em uma outra entrevista sua que li, você afirbanda? Como aconteceu? mava que não desenhava fazia tempo, que O primeiro trabalho de verdade foram a capa/ costumava criar aleatoriamente, apesar de seu layout dum disco do Cadaver Inc., chamado Distrabalho ser muito detalhado. Algum dia você cipline, de 2001, saiu pela Earache e tal. Antes imaginou que poderia vender essas artes? disso, tinha feito alguns outros trampos pra eles, Eu desenhava demais quando era moleque e mas esse foi o primeiro álbum completo que fiz também fiz parte dos “artistas” responsáveis para um selo e que me rendeu pagamento. Dei um pelo anuário do 2º grau por uns dois anos. jeito de entrar em contato com o Anders Odden, Larguei tudo no último ano, porque os caras meio que o chefão do Cadaver, lá pelos idos de eram uns cretinos arrogantes. Além disso, 98, quando soube que a banda também estudei na classe estava voltando. A primeira vez mais avançada de artes da que ouvi o Cadaver foi naquela minha escola (que era uma compilação Grindcrusher e depiada). Nunca levei muito a pois em Hallucinating Anxient sério o que fazia. Uns anos e In Pains, muitos anos antes, depois, mudei da faculdade e eles me impressionaram pra de biologia pra design gráficacete, por serem diferentes co e senti aquela vontade de da maioria de seus contemdesenhar de novo. Construir porâneos. De qualquer forma, ilustrações digitais através Anders tocava no Apoptygma de outros materiais ou fazer Berzerk e no Magenta e sencolagens meio que deixava a tiu uma necessidade de tocar desejar, em termos de criati4PRIMEIRA CRIA metal de novo. Aí, junto com vidade. Acabei fazendo um o Lasse [Johansen], do Discurso de desenho, que era gusting, mais o Agressor e o Apollyon, do Aura requerimento para me formar. Após retomar Noir, ressucitaram o Cadaver como Cadaver Inc. e o contato com artes, foi natural voltar a deselançaram uma puta demo dum death metal ultranhar. Houve um lapso de tempo enorme, coisa -rápido/voivodiano/grindeiro chamada Primal. de uns 13 anos, entre desenhar nos tempos de Fiz toda a arte dela e do morbidamente bemescola e o que faço atualmente, o que já dura -humorado cadaverinc.com, que era um site de uns cinco ou seis anos. Nunca desenvolvi um mentira promovendo um serviço de limpeza de estilo ou aprimorei minhas habilidades, tudo cenas de crime e remoção de cadáveres. A polícia simplesmente fluiu assim. Também não levei norueguesa conduziu uma investigação sobre isso em consideração a parte de “negócios” do meu e caiu até no MTV2 News! Como você pode imatrabalho ou sequer pensava em vendê-lo até ginar, fiquei do lado dos caras e fiz a arte do derecentemente, o que é bacana. Meio que vivo but deles, Discipline, bem como uma porrada de das minhas ilustrações e ainda faturo um extra camisas, coisas pra web e também o outro disco, vendendo os originais. Necrosis, que é um negócio do além! 45


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4VINHO DO VOCALISTA DO SATYRICON

foi trabalhar com ele? Ficou preocupado em receber alguma crítica negativa? Conheço o Stephen há uns doze anos e somos amigos – não melhores-amigos-desde-a-infância, mas saímos juntos quando nossos caminhos se cruzam. Nos falamos muito pela internet, trocando alguns dos trabalhos em progresso e mp3, coisa e tal. Quando voltei a desenhar, mandei pra ele uns desenhos que tinha feito e ele me pediu pra fazer a capa do EP La Mort Noir, do Sunn O))). Nada mal para um primeiro projeto. Já conhecia o Stephen fazia algum tempo, então não foi nada de outro mundo, como se um deus do design/drone me resgatasse das profundezas da internet. Muita da suposta “aura” ao redor de várias bandas e músicos foi desmistificada comigo. Então nem me preocupei com qualquer forma de crítica negativa que poderia receber dele. O rapaz conhecia o meu trabalho, e eu quase sempre faço tudo certinho. Somente uma vez desenhei algo que nós dois decidimos não usar. Sempre faço um rascunho preliminar das minhas ideias e passo pros clientes.

Você recebe algum briefing ou tem liberdade total pra criar? Em pouquíssimas vezes houve um briefing criativo, digamos, oficial. Um deles foi pra marca de jeans Anti Sweden, outro foi para o rótulo dos vinhos Wongraven (sim, do vocalista do Satyricon). Ainda assim, era tudo bem livre. Quando se é um ilustrador relativamente conhecido, os clientes vêm até você por conta do seu estilo e já têm uma ideia pré-estabelecida do que você fará – ao menos em termos de técnica. Eu diria que planejo o direcionamento visual na maioria dos trampos que faço. Tudo baseado nas letras de música, no nome do disco ou na temática envolvida, mas são minhas interpretações da ideia de terceiros. Como vou fazer é domínio exclusivo meu. Alguém me pede pra desenhar um bode, mas não aceito instruções específicas a menos que estejam me pagando e tratando tudo num nível estritamente profissional, o que dificilmente acontece quando você lida com o mundo da música. Você poderia nos falar um pouco do seu processo de trabalho? Normalmente, quanto tempo se passa entre seu primeiro contato com o cliente e a entrega da arte? Após a ingestão de uma saudável mistura de sangue podre de porco e veneno fermentado de cobra, medito sob um eclipse de lua cheia. As imagens surgem do vácuo negro do centro de minha mente. Transmutando-se através de barreiras físicas de carne, o sangue negro putrescente de bodes pretos emana das pontas de minhas canetas, feitas de bicos de corvos e passadas a papel colhido de pinheiros transilvanos de 666 anos de idade. Não há forma de expressar a duração de meus projetos através de convenções humanas como espaço e tempo. Vi alguns rascunhos no seu blog e deu pra sacar que você usa bastante nanquim. Poderia falar um pouco mais do seu “arsenal”? Nanquim? Nunca ouvi falar de tal coisa. Em conjunto com os bicos de corvo, tinta de sangue de bode e papel ancião, costumo usar lápis com pontas de chumbo minadas das mais profundas e obscuras tumbas abaixo do Gólgota. Boa parte do seu trabalho tem alguma relação com Stephen O’Malley (Sunn O))), Burning Witch) e vice-versa. E todos sabemos que o rapaz, além de músico, também é um artista com várias grandes criações em seu portifólio. Como 48

“Após a ingestão de uma mistura de sangue podre de porco e veneno fermentado de cobra, medito sob um eclipse de lua cheia. As imagens surgem do vácuo negro da minha mente. Transmutando-se através de barreiras físicas de carne, o sangue negro putrescente de bodes pretos emana das pontas de minhas canetas, feitas de bicos de corvos e passadas a papel colhido de pinheiros transilvanos de 666 anos de idade. Não há forma de expressar a duração de meus projetos através de convenções humanas como espaço e tempo.”

Ainda sobre sua parceria com o SOMA (nome artístico de O’Malley), muito do que você faz se relaciona com doom/drone. São gêneros que você escuta? O que você acha de ligarem seu trampo a isso? Sim, há uma parte do meu trabalho que tem a ver com drone, como Sunn O))) e outros como Gravetemple, Pentemple, Locrian e Detritivore (devo estar esquecendo de alguma coisa, então me perdoe se você ler isso), mas também trabalhei com vários outros gêneros. Mas parece mesmo que meu trabalho se fixa em drone e também “hardcore metálico” (seja lá o que isso for!). Curiosamente, não escuto nenhum dois com frequência. Através dos anos, explorei (creio) quase tudo que é forma de música underground que você possa imaginar: eletrônico, noise, punk. Em termos de metal extremo, tudo começou com death metal. Aparentemente, retornei às minhas raízes musicais. Apesar de curtir muito black metal, algo de drone, hardcore, punk e noise, eu AMO death metal. Não essas bandas mega punheteiras lixo moshcore ou death metal ultrabrutal. Falo dos sons da velha guarda, death sueco (mais pra Estocolmo e não Gotemburgo!), death/black bárbaro feito por homens das cavernas, qualquer coisa que soe como ou faça referência a Incantation, Autopsy, Carcass, Morbid Angel, Cadaver, Bolt Thrower, Repulsion, VON, Entombed... E também Discharge, Motörhead, Sodom, Voivod, Mercyful Fate e Slayer.


“Sobre relacionarem minha arte ao drone? Não me incomoda, é melhor do que ser associado ao nu-metal ou emo ou brutal death metal super retardado com partes mosh louconas e vocais de porquinho e breakdowns. Acho que, como o estilo e mesmo a fluidez da música é meio vaporosa e difícil de d e f i n i r, c o m b i n a c o m m i n h a s criações.”

Do outro lado do espectro musical, pós-punk e eletrônico como The Cure, Joy Division, Depeche Mode, Death In June, Swans... São esses os dois “reinos” de música que mais aprecio. Sobre relacionarem minha arte ao drone? Não me incomoda, é melhor do que ser associado ao nu-metal ou emo ou brutal death metal super retardado com partes mosh louconas e vocais de porquinho e breakdowns. Acho que, como o estilo e mesmo a fluidez da música é meio vaporosa e difícil de definir, combina com minhas criações. Pelo jeito, meu trabalho transcende vários gêneros, enquanto os artistas que conheço trabalham apenas em um tipo de música (o que é ok, aliás). Tenho um projeto bem old-school vindo por aí, na veia do metal que escuto... Tô bem empolgado com isso. Hoje em dia, boa parte do processo relacionado à produção do artwork de bandas é feito digitalmente. Você gosta de trabalhar dessa forma? Em algum momento o processo digital te atrapalha ou incomoda? Há arte digital boa e arte digital ruim. Todo artwork atual é digitalizado em algum grau. Sim, sei que algumas bandas continuam fazendo tudo 100% analógico e kvlt, com xerox, colagens em fitas k-7, mas creio que seja uma porcentagem muito, muito pequena. Até coisas old-school são, em algum momento, escaneadas e manipuladas através de software e transformadas 49


em PDF. Trabalho digital bom tem sua origem em formato analógico. Fotos escaneadas, pinturas, desenhos, texturas alteradas e fodidas no Photoshop – ainda assim com origem no mundo real. Arte digital ruim é normalmente criada em algum renderizador 3D com muito brilho, efeitos cromados e fogo (risos). Sinceramente, a questão é artistas bons x artistas ruins. Computadores e pincéis são apenas ferramentas – se você é ruim, cria merda independentemente do que está usando. Tem uma tonelada de discos que usa artwork tradicional e fica um lixo horrendo (cópias de Mark Riddick, por exemplo) e por outro lado existem discos com maior uso de software que são foda (Seldon Hunt, Travis Smith, Stephen O’Malley, Kevin Yuen, Broken Press). Ainda assim, se encontram porcarias como umas capas do Monstrosity e do OV HELL, ugh! 50

E sobre o vinho lá do Satyr, como foi o processo criativo? Vocês já se conheciam? Você provou o vinho? Não sei ao certo quanto tempo e esforço foram necessários antes do meu envolvimento com esse lance do vinho. Só fui chamado para desenhar o rótulo, quase no final. Martin Kvamme, o designer norueguês responsável pelos logos, texto e embalagem teve meio que um bloqueio na hora de fazer a ilustração. Aí ele mostrou uma lista com vários ilustradores pro Sigurd (Wongraven, nome de batismo de Satyr) e acabei sendo escolhido pra desenhar o bestial mascote. Foi tudo bem direto, o Sigurd queria um sátiro, basicamente, não muito malvado ou metal, mas algo entre fantástico e assustador. Claro que há alguma referência a Labirinto do Fauno, mas não creio que seja tão derivativo assim. Se você prestar atenção, pode ver o S do

Satyricon ali, num pingente de colar, por trás dos braços e cabelo... Foi ideia minha! E não, não provei o vinho. Há alguma banda que você acredita casar com sua arte e com a qual você gostaria de trabalhar, mas ainda não teve a oportunidade? Voivod ou Rudimentary Peni? (risos) Não pensei muito nisso, mas sempre tive esse projeto, que planejo há anos e ainda vai demorar pra cacete pra acontecer mesmo, então não vejo por que diabos não falar sobre ele agora... Recentemente, o Darkthrone lançou um concurso para que os fãs refizessem a arte do relançamento de Goatlord (demo de 1991 lançada em 1997). É um dos meus discos favoritos e já penso há um tempo em criar um desenho pra cada faixa do disco e lançar como uma espécie de tributo. O que caga tudo é


“Só queria mandar aquele alô pra Jesus Cristo, porque sem ele nada disso seria possível!”

não quantidade. Quero uma vida mais simples e com menos cacarecos, então algumas coisas tiveram que ir. Tem um monte desses mesmos cacarecos que eu não vendo de forma alguma, a não ser que seja um caso de vida ou morte. Vendi meu boxset do Burzum há uns seis anos pra poder pagar o aluguel, depois de ter voltado a estudar e estar desempregado por uns meses. Não que eu fique chorando toda noite porque não posso ouvir o Filosofem em vinil, mas seria bom ainda tê-lo na minha coleção. E por falar nisso, vendi meu Black Earth do Bohren und der Club of Gore e uns Assück e Autopsy que preciso readquirir! (risos)

que mal tenho tempo pro meu trabalho de fato e ainda nem consegui mandar nenhum desenho pro concurso, entende? Bem, talvez daqui um ano eu consiga terminar minha pequena homenagem a Goatlord. Há algum trabalho seu que você considera um favorito e outro que não curta tanto? Não fico ruminando sobre o que eu gosto mais ou não. Na real, eu penso nas coisas que mais gosto e tento desenvolver essas ideias. Digamos que, quando você trabalha como designer ou ilustrador em período integral (no meu caso, não é um extra ou coisa do tipo), tem que aceitar projetos com os quais não vai se empolgar muito. Sabe como é, contas, aluguel e comida te fazem trabalhar só pelo dinheiro mesmo. Tento dar meu melhor, ainda assim.

Posso dizer que sou leitor assíduo do seu blog, e você parece ter muitos vinis, alguns inclusive à venda no eBay. Você se considera um colecionador? Há algum disco que você não passaria pra frente de forma alguma? Acho que sou um colecionador, sim, talvez não tão ávido quanto antes. Não tenho frescura em admitir que baixaria um CD ou daria um jeito de ouvi-lo online antes de decidir comprar. Tem muita música por aí hoje em dia, e o acesso é cada vez mais fácil. Cá entre nós, 80% do que é lançado é uma bosta ou completamente redundante. Até metal! Existem bandas demais. Prefiro música country/pop a metal ruim, sério! Caralho, a maioria dos filmes, programas de TV, artes e até pessoas são lixo. Durante os anos, juntei uma quantidade razoável de discos, EPs e CDs e acabei chegando à conclusão de que o que importa é qualidade e

Uma curiosidade, ainda sobre o seu blog: um tempo atrás, o seu gato Dio participou de uma espécie de concurso, e, como também tenho gatos, votei nele (risos). Como terminou a votação? (Risos) Não sei, nunca recebi nenhum e-mail ou aviso sobre qualquer coisa, mas pra mim ele sempre será um campeão. (risos) Justin, agradeço pelo seu tempo, agora o espaço o final é seu pra dizer o que bem entender pra quem estiver lendo esta entrevista. Bem, valeu por me entrevistar… Só queria mandar aquele alô pra Jesus Cristo, porque sem ele nada disso seria possível! 3

2SAIBA MAIS vberkvlt.com

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ENTRE entre (oUtros) (oUtros) APOIO

Quer publicar seu trabalho na revista e expor no nosso espaço? Mande um email para entreoutros@maissoma.com com amostras da sua arte em baixa resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!

ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO QUE MOTIVAM JOVENS NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO QUE CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.


ALEXANDRE COLCHETE Nascido em Campinas e criado no Rio de Janeiro, ALEXANDRE COLCHETE, de 24 anos, chegou a flertar com o graffiti quando era adolescente, mas foi mergulhar de verdade no mundo da arte apenas mais tarde, influenciado pela cultura musical do remix e por artistas como Basquiat e Manet. “Macacus”, abaixo, é um dos poucos trabalhos em tela do artista, que costuma usar tinta acrílica, papel e materiais menos tradicionais em suas composições.

4FLAVORS.ME/ALEXANDRECOLCHETE


ADRIANA MARTO A arquiteta paulistana ADRIANA MARTO, de 23 anos, desenha desde que ganhou sua primeira caixa de lápis de cor, aos 4 anos. Influenciada pelas linhas finas e hachuras de M. C. Escher e pelo realismo de Audrey Kawasaki e Renzo Piano, faz suas ilustrações ultradetalhadas em papel Canson utilizando o mais fino bico de nanquim possível

4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/ADRIANAMARTO 54


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BÁRBARA MALAGOLI A ilustradora BÁRBARA MALAGOLI, de 21 anos – natural de Santos e radicada em São Paulo – começou a rabiscar com desenhos da Disney. Buscando influências em nomes como Junko Mizuno, Mark Ryden e Naoko Takeuchi (e sob a inspiração da irmã mais velha Bruna, que tinha seu próprio fanzine), baby c. trabalha com lápis de cor, nanquim e tinta acrílica para criar desenhos no bom e velho papel Canson creme.

4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/BABYC

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POR ALEXANDRE CHARRO . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA E ARQUIVO PESSOAL

fLO MeNezes Música para Ouvir (e Ver)

4CRASE, PARTITURA PÁGINA 27 58

Se pensarmos sobre quais são os sentidos do corpo mais relevantes para nossas relações de afeto, em primeira análise, podemos dizer que todos. Mas, ao estabelecermos uma hierarquia de acontecimentos, a visão é geralmente mais importante a princípio, num momento em que tudo é incerteza, e só depois “ouvimos” (um pouco) os outros sentidos. Muito, e de maneira imperativa, dedica-se ao olhar, mesmo sem conseguir ver. O pesquisador e crítico musical Joachim-Ernst Berendt, em seu livro Nada Brahma, afirma que “as pessoas que sabem ouvir são mais receptivas, ao passo que as pessoas que olham quase sempre são mais agressivas”. O que aconteceria então se nos dedicássemos mais à escuta? O professor e compositor de música erudita experimental brasileira Flo Menezes, 49, dedica sua vida à música, ao som e à filosofia, e procura a raiz dessas questões. Ficou anos fora do Brasil, estudou com Pierre Boulez, Luciano Berio e Karlheinz Stockhausen. Em 1994 fundou o Studio PANaroma, junto com a UNESP de São Paulo, para suas experimentações radicais de música eletroacústica. Criou o Concurso Internacional da Música Eletroacústica de São Paulo (Cimesp) e a Bienal Internacional de Música Eletroacústica (Bimesp), entre tantos outros projetos. Um criador que recoloca o papel do pensamento do som como uma reflexão acerca do sentido musical, um campo de ações da subjetividade, criadoras de sentido. 1


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Impossível passar ileso por uma experiência num concerto de música eletroacústica. Na câmara, o espaço é escutado e preenchido por uma simultaneidade de sensações que alimentam uma escuta imagética. Experiência que radicaliza e estimula o desenvolvimento de outras formas de percepção para a apreciação da música.

“Radical é um termo que implica considerar as coisas pela raiz, mergulhar fundo e buscar onde as coisas estão realmente nascendo para poder brotar. Confunde-se muito ‘radicalismo’ com ‘sectarismo’.”

P

ara entender a música eletroacústica, é preciso vivenciar um concerto repleto de caixas acústicas. Mas podemos dizer que é uma música criada em estúdio a partir da manipulação dos sons de instrumentos musicais ou eletrônicos, e sua difusão é feita por uma orquestra de altofalantes, que privilegiam a espacialidade e a espectralidade dos sons em uma sala de concerto. Como diz Flo em um de seus livros, Música Maximalista – Ensaios Sobre a Música Radical e Especulativa: “A eletroacústica liberta o compositor das imposições articulatórias de cunho métrico-rítmico”. Ao ouvinte presencial, permite uma viagem sinestésica. “Para tanto, o único pré-requisito é abrir os ouvidos e a cabeça: deixar que os sons e seus itinerários internos (espectros sonoros) e externos (espaciais) conduzam a mente a uma espécie de hipnose, em que se duvida do que se ouve e de seu próprio estado: se está dormindo e sonhando, ou sonhando acordado.”

4L’ITINÉRAIRE DES RÉSONANCES, PARTITURA PÁGINA 4 E FLO NO ESTÚDIO KOELN, 1987.

E a discussão vai além dos conceitos da música, provocando uma reflexão mais profunda: a relação com o sonoro em geral e com a gama de significados gerados pela escuta. Uma filosofia não só da música, mas do próprio som, já que “na percepção da espacialidade dos sons, percebe-se que o ritual da performance ocupa todo o espaço; o nosso corpo toma parte de um tempo corrido e de um espaço percorrido, em permanente e caleidoscópica transformação. Por tal viés, almejo a beleza, pelas vias de uma sublime abstração”, completa Flo.

O que é ser radical? Radical é um termo, como o próprio nome diz, e como Karl Marx dizia, que implica considerar as coisas pela raiz, mergulhar fundo e buscar onde as coisas estão realmente nascendo para poder brotar. Confunde-se muito “radicalismo” com “sectarismo”. Sectário é quando você, sem levar às últimas conseqüências questões específicas que colocam dúvidas sobre você, isola seu comportamento dos demais a partir de algum julgamento predeterminado, seccionando as coisas. Já o radical é aquele que vai fundo, se pergunta, se questiona o tempo todo. Um tipo de busca pela essência das coisas que tem a ver com uma índole especulativa muito profunda. Num texto seu você diz que uma escritura musical seria o resultado de elaboração e “labor” na raiz dessa atitude diante dos sons. Então, a prática desse labor seria necessária para conseguir atingir, talvez, a profundidade da raiz... Algo que se questiona na música eletroacústica é o fato de ela não ter uma escrita, uma notação. Entretanto, uma coisa é a escrita, com seus símbolos convencionais, que veiculam a processualidade da composição, e outra é a processualidade em si. Desde os primórdios da escrita musical, que se deu a partir da Ars Nova na Idade Média, tem-se a possibilidade do registro do pensamento musical pela notação, para que isso seja decodificado e refeito em diversas circunstâncias. Essa escrita possibilitou o desenvolvimento do pensamento musical, mas não se confunde com ele! E precisamente essa processualidade é o que chamamos de escritura: elaboração que se aloja na escrita, mas que independe dessa mesma escrita. Ela nasce mediada pela notação, mas toma independência como essência do próprio pensamento musical. E a música eletroacústica, num certo sentido, leva ao apogeu essa independência. Prescinde da notação, mas não do pensamento musical! Por isso disse certa vez que na música eletroacústica existe uma apoteose da escritura: ela é levada às últimas consequências, sem mediação da escrita. Você até pode ter uma “escrita” (uma partitura de realização ou uma áudio-partitura), mas na realidade a escritura se dá na cabeça e nos sons.

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Tenho uma questão sobre atitudes musicais com lógica capitalista voltada ao mercado como meio e como fim. O que te incomoda nisso? Você acha que existe uma maneira de não fazer concessões na arte? A música não tem que se voltar ao mercado. Estratégias de difusão de nossas ideias são necessárias, porque somos seres sociais. Adorno falava que “o discurso mais solitário de um artista vive do paradoxo de falar aos homens”; você pode estar na sua torre de marfim, mas estará pensando numa interlocução, o que é natural e salutar. Mas dialoga-se com as pessoas que sabem dialogar com você. Essa ideia do Público, no singular, é uma ideia capitalista, típica da indústria de massas. Toda arte que se destina a um consumo de massa não merece nem ser chamada de Arte: é uma concessão ao fácil, ao vendável. Busco uma autenticidade de meus ouvidos pensantes para veicular minha música, mediante elos afetivos, às pessoas que têm esse pensamento aberto para mergulhar fundo comigo em coisas que eu não sei, que descubro, não as que eu sei! Se eu achasse que “soubesse”, estaria fazendo meus padrõezinhos. A concessão obrigatória que se faz no capitalismo é de ordem profissional, necessária para a sobrevivência. Se você me perguntar se sou “compositor” profissionalmente, diria que não! Sou, profissionalmente, professor universitário de composição. Se a Universidade acabar, perco a minha profissão e meu emprego. Mas o ato, existencial, de ser compositor, desse não consigo me desvincular: é uma necessidade interna, de minha alma. Portanto, um tipo de concessão é a do ganhapão; outra é a que diz respeito à linguagem musical. Mas esta é uma concessão mais sem vergonha, porque não é a da sobrevivência, é a do lucro, do reconhecimento, dinheiro, inserção em mídia, públicos, pro ego ficar bem alimentado... Todo compositor tem o ego inflamado, mas prefiro que o meu seja alimentado em decorrência de uma profunda especulação, sem concessão musical. Quem vier ao encontro de minha obra é por ter se interessado pelo que faço e acredito. A eletroacústica, como música erudita, não acaba se tornando inatingível às pessoas que não têm um certo domínio sobre os aspectos técnicos da composição? 62

A questão da acessibilidade da música é sobretudo econômica e social. Obviamente também depende de uma sensibilidade e de interesses individuais, mas em primeira instância depende de infraestruturas e superestruturas ideológicas. O ser humano precisaria ser educado e ter acesso à tecnicidade da arte desde pequeno, e isso envolvendo todas as artes e a filosofia. Mas a música é, admitamos, a mais difícil das artes: vive de um jogo interno muito específico e não alça voos extramusicais sem que se baseie em questões eminentemente técnicas da linguagem musical, às quais se deveria ter acesso desde o ensino básico, em graus distintos de profundidade. Não é, portanto, somente a música eletroacústica que é “inacessível”; é também o caso de todo o saber mais profundo, inacessível às pessoas “normais”, espoliadas por um sistema produtivo. Você fala constantemente de entidades e de arquétipos na música. Poderia discorrer um pouco sobre isso? Ao longo da história da música, sempre se produziu uma dialética entre a instituição de novas ideias e sua cristalização. Isso é muito claro no domínio harmônico. Existem tanto recursos quanto instituições harmônicas, que ora são formações harmônicas locais, ora são recursos do tempo, do discurso musical, que vão se instituindo como entidades. A entidade é o delineamento de alguma singularidade que passa a ser nomeada e que se distingue de um pano de fundo geral como uma particularidade muito clara. Quando é recorrente, verte-se em arquétipo e passa a fazer parte de um legado, de um repertório. Diria que toda entidade tende a se tornar um arquétipo, na medida em que essa entidade passa a ser repetida e se firma como algo quase coletivo. Por sua insistência e reiteração, começa a fazer parte de um arsenal mítico da cultura musical.

4LUCIANO BERIO E FLO MENEZES EM

SALZBURG, 1987

Com relação, por exemplo, aos acordes tonais maior, menor e mesmo diminuto, eles fazem emergir alguma emoção, algum sentimento. Dentro de uma composição complexa, como aconteceria essa sensação? Às vezes brinco e causo risos quando me refiro ao “arrepio tonal” que sinto em certas passagens de minha obra musical: a tensão e relaxamento que são muito bem feitos no sistema tonal, talvez o mais genial sistema de referência comum que jamais existiu, tendo vigorado por cerca de trezentos anos! E com muita sabedoria: uma sabedoria que não era, claro, tanto do sistema, mas mais de quem o reinventava! Uma invenção coletiva muito genial, mas que foi superada, se alargou, se transformou, e hoje, de alguma maneira, ainda existe como um dos ramos no meio de um bosque muito mais complexo e expandido. Esse tipo de sensação – tensão e relaxamento – é totalmente possível em outros tipos de harmonia, contanto que alguns elementos estejam presentes, como por exemplo a direcionalidade, ou seja, como se conduz a escuta de um estado sonoro para outro. Os fenômenos de tensão e relaxamento não dependem apenas de acordes tonais. Podem existir em vários outros contextos, de modo bem semelhante ao que ocorria com a música tonal.


4PULSARES, PARTITURA PÁGINA 157

“Erro e risco fazem parte de toda obra radical. A diferença da política com relação à arte é que o erro, na política, é a morte. Na ciência, o erro se traduz em perda de tempo, mas aí, às vezes, o erro pode ocasionar uma descoberta involuntária. Já na arte, às vezes almeja-se o próprio erro, dialoga-se com ele, avaliam-se as imperfeições, enaltecem-se as ‘rugosidades’, os pequenos desvios. A imprevisibilidade é um elemento fundamental na música.”

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“A concessão obrigatória que se faz no capitalismo é de ordem profissional, necessária para a sobrevivência. Se você me perguntar se sou ‘compositor’ profissionalmente, diria que não! Sou, profissionalmente, professor universitário de composição. Se a Universidade acabar, perco a minha profissão e meu emprego. Mas o ato, existencial, de ser compositor, desse não consigo me desvincular: é uma necessidade interna, de minha alma.”

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Como você se apropria dos sons em suas obras? A música eletroacústica radicalizou a noção de instrumento musical, ainda que o instrumento tradicional continue mais vivo do que nunca. Luciano Berio falava que um instrumento possui uma “história psicológica”, porque lida com estados de afeto e de elaboração que se cristalizaram em seu repertório ao longo dos tempos. Entretanto, a música eletroacústica estendeu e radicalizou essa noção, a ponto de você se apropriar, salutarmente, de todo e qualquer som. Todo som pode ser incorporado como veículo expressivo na elaboração do afeto e da linguagem musical. Mas, dependendo do som e do tipo de tratamento que você dá a ele, tem-se uma maior ou menor referencialidade embutida no objeto sonoro, e essa referencialidade, quando é


“A música eletroacústica radicalizou a noção de instrumento musical, ainda que o instrumento tradicional continue mais vivo do que nunca. Todo som pode ser incorporado como veículo expressivo na elaboração do afeto e da linguagem musical.”

muito literal, reporta a uma situação anedótica que é, a meu ver, pouco interessante para a música. As realizações eletroacústicas mais interessantes são aquelas mais distantes do caráter anedótico, quando então os sons adquirem um potencial radicalmente abstrato. Quando isso ocorre, o som não se reporta a nada, mas ao mesmo tempo também não provém de nenhum instrumento reconhecível. Aí, sim, instaura-se uma situação acusmática: termo proveniente da escola pitagórica – os “acusmáticos”, que procuravam ouvir e perceber as palavras do mestre e entender seus ensinamentos sem olhar para as causas materiais dos sons. Atingia-se assim uma alta concentração na abstração dos sons e, quando se dá essa situação, algo da ordem da sinestesia acontece, não propriamente ligado a uma situação visual ou ambiental. E esse é um transe muito interessante, porque você começa a penetrar de fato na escuta do âmago dos espectros, podendo ser induzido a situações de concentração quase hipnóticas, num estado que chamo de intertensão, de dentro dos sons, bem distante das distrações dos entretenimentos...

No nosso estúdio temos conversado sobre a questão da improvisação e do jazz. Você poderia fazer alguma relação entre a improvisação de um free jazz, por exemplo, e a que ocorre numa música complexa, como a eletroacústica? A questão da improvisação é delicada. Berio disse certa vez, com pertinência, que “a improvisação pode chegar no máximo a uma articulação silábica, enquanto na composição escrita chega-se a uma articulação fonêmica”. A improvisação está para o fracionamento do gesto especulativo assim como a nãoimprovisação e a composição estão para um tempo dilatado dos gestos, em que, paradoxalmente, o fracionamento do sonoro pode atingir estágios ainda mais radicais, já que se entra nos meandros dos poros da composição, até sua articulação fonêmica, trabalhando no nível dos detalhes, não da superfície. Há, contudo, situações específicas na composição em que perderíamos um tempo enorme e faríamos os intérpretes sofrerem para que se atingisse um resultado muito parecido ou mesmo pior do que o que atingiríamos pelas vias de uma “improvisação dirigida”. Nesses casos, lançamos mão da improvisação, desde que regulada por um controle minucioso do sonoro. Quanto do erro da improvisação existe no seu processo de composição? O erro independe da improvisação. Erro e risco fazem parte de toda obra radical. A diferença da política com relação à arte é que o erro, na política, é a morte. Trotsky podia ter eliminado Stalin na década de 1920, deixou barato, e acabou levando a picaretada na cabeça no México, em 1940. Na ciência, o erro se traduz em perda de tempo, mas aí, às vezes, o erro pode ocasionar uma descoberta involuntária, como por exemplo foi o caso com a descoberta da penicilina. A ciência busca acertar o tempo todo, mas às vezes acerta através de um erro impremeditado. Já na arte, às vezes almeja-se o próprio erro, dialoga-se com ele, avaliam-se as imperfeições, enaltecem-se as “rugosidades”, os pequenos desvios. A imprevisibilidade é um elemento fundamental na música. Aí, a previsibilidade é que é a morte! Schoenberg dizia, no Tratado de Harmonia, que o erro tem, na música, um lugar de honra, porque sem o erro alcançaríamos a Verdade, e seria insuportável se a conhecêssemos. E

realmente, imagine se soubéssemos o que é a Verdade... O ser humano move-se por espirais, e o mais gostoso da vida é poder ressignificar as coisas! Reler as coisas, revisitar os afetos, rever suas convicções pelo prisma do já vivido, do ainda por viver e do já vivido por outras vidas. Acendemos nossas lanternas e, naqueles eixos espiralados das curvas que fazemos, lançamos novos jatos de luz, que se refletem nas bordas de várias espirais de outros tempos. Espirais lá de baixo refletem nas curvas mais atuais. É esse pensamento espiralado que move tudo. Estamos falando e não falando as mesmas coisas o tempo todo! Stockhausen tem uma frase interessante: “Ao passear na Lua, será mais interessante encontrar uma maçã do que uma pedra lunar”. A maçã, ali, é tudo: é o antigo no ambiente novo, e esse olhar é uma ressignificação. Porque poder redizer as coisas é um dos exercícios mais deliciosos que existe! Você é um aficionado pelas palavras... Bem, talvez a maior invenção coletiva das civilizações sejam mesmo as línguas, que para mim são como composições coletivas, como músicas impuras. Por isso domino seis línguas, e ainda acho pouco; as estudei com enorme prazer, como se estivesse estudando uma partitura de Beethoven. Da mesma forma como a maior invenção coletiva na música foi a orquestra, em que os planos de simultaneidade foram expandidos na maior radicalidade possível, a maior invenção monofônica da humanidade foi a língua falada. E nela temos um curioso paradoxo: falar, como disse antes, é um ato de monofonia; você fala com todos porque fala uma linguagem de todos, mas ao mesmo tempo fala sozinho o tempo todo, porque do contrário ninguém te entenderia! Essa dicotomia entre o polifônico e o monofônico, na orquestra e nas línguas, muito me intriga... 3

2SAIBA MAIS Leia a entrevista na íntegra no maissoma.com flomenezes.mus.br 65


“Somos um gru po bastante heterogêneo, e há vá rias in fluências e pe rcu rsos dif e rentes ent re os músicos da banda, mas o hi p-hop é o ponto de pa rtida. Ta l v e z a t é u m a t é c n i c a , m a i s q u e uma estética.”

Formado por músicos e produtores que ditam tendência na música europeia atual, a banda Orelha Negra é uma das melhores novidades vindas de Portugal nos últimos anos. Os gajos foram escolhidos a dedo para acompanhar a turnê do último álbum de Sam The Kid (o rapper mais famoso e bemsucedido de Portugal) e, durante os ensaios e jams, surgiu a ideia de uma banda instrumental que passeasse entre o funk, soul, rock e eletrônico, tendo o hip-hop como base, mas com uma identidade local, usando samples, colagens e vozes populares da cultura lusitana. O grupo conta com Sam The Kid, DJ Cruzfader, Fred Ferreira (Buraka Som Sistema), Francisco Rebelo e João Gomes (ambos da banda Cool Hipnoise), e seu álbum de estreia homônimo foi um dos mais vendidos de Portugal em 2010, rendendo uma indicação ao MTV Europe Music Awards e shows por toda a Europa. O baterista Fred Ferreira falou um pouco sobre o projeto, a cultura dos sleevefaces, a parceria com o artista plástico Vhils e a recém-lançada mixtape. 1

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O Orelha Negra reúne grandes nomes da música portuguesa contemporânea. Como aconteceu essa união e como rolou a ideia da banda? Aconteceu quando estávamos fazendo a turnê do Sam the Kid. Nós já éramos a banda dele nas apresentações ao vivo e durante as passagens de som íamos fazendo muitas jams. Quando terminaram as apresentações, combinamos uns ensaios para curtir um som juntos e começou a nascer a Orelha Negra. E o nome, como surgiu? Também em um ensaio. Foi muito rápida a decisão. Achamos o nome muito bom e fazia todo o sentido com a música que estávamos fazendo, já que a nossa principal fonte de inspiração é a black music. Confesso que, na primeira vez em que escutei o álbum, me lembrou muito o som do RJD2 e de produtores que usam o hip-hop como base para criar um som mais abrangente. Essa foi a intenção de vocês? Nunca pensamos muito dessa forma. Claro que quando fazemos música o objetivo é chegar ao máximo de pessoas possível. Ficamos contentes de termos chegado a muita gente, mas o objetivo principal é sempre criar um som com que nos identificamos, e realmente gostamos do som que estamos criando. Talvez tu sintas que isso acontece porque, de fato, somos um grupo bastante heterogêneo, e há várias influências e percursos diferentes entre os músicos da banda, mas o hip-hop é o ponto de partida. Talvez até uma técnica, mais que uma estética.

Portugal tem uma das melhores cenas hip-hop da Europa. Vocês acham que o Orelha Negra está abrindo espaço também para o lado instrumental da música urbana portuguesa? Realmente em Portugal não existem muitas bandas de hip-hop instrumental, mas ainda assim temos nomes como o DJ Ride, o Bling Project e alguns outros que também têm uma vertente instrumental dentro do hip-hop. Nós somos mais um a representar o nosso país e estamos tentando levar a nossa música o mais longe possível. As músicas trazem muitos elementos: samples, arranjos, colagens. Além de usarem influências de diversos estilos como funk, soul e rock. Como funciona a composição das músicas para vocês? Varia muito. Tem muitas músicas que surgem de uma base do Sam the Kid na MPC, outras se iniciam com os instrumentos, mas acaba sendo tudo criado com os cinco na sala tocando por cima de ideias de cada um. Vocês imaginavam que iriam ter um dos álbuns mais vendidos de Portugal, além da indicação ao MTV Europe Awards? Acha que é um sinal de mudança positiva na música popular europeia? Foi uma grande alegria para todos nós esse reconhecimento e sucesso do nosso primeiro álbum. Permitiu que fizéssemos shows em muitos lugares, levando a nossa música a muita gente. Temos tido um feedback muito grande não só de Portugal, mas de vários países da Europa, Estados Unidos e, agora, do Brasil também. Talvez haja muitas pessoas que estão fartas do mainstream atual na música e procure coisas novas, novas direções. Uma banda de hip-hop instrumental, cheia de groove, samples e vozes em português pode ser a solução!


A Viagem Inst rumental Portuguesa

ORELHA NEGRA POR DANIEL TAMENPI . FOTOS DIVULGAÇÃO

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Além da ótima música, outro grande destaque é a capa do álbum, em que a banda toda aparece em sleevefaces. Como surgiu a ideia e por que esconder o rosto de vocês, que são artistas conhecidos na cena portuguesa? Teve alguma segunda intenção nisso? A ideia do sleeveface foi sendo desenvolvida ao mesmo tempo em que íamos fazendo o disco. Convidamos o nosso amigo Pedro Claudio, que fez um trabalho incrível nas fotos e chegou ao resultado que queríamos. Decidimos aparecer dessa forma nas fotos para que a música falasse mais alto. Não queríamos que fizessem nenhum tipo de julgamento pelos músicos que estavam ali, apenas pela música. Também queríamos fazer uma homenagem ao vinil, como representante da época do analógico, da era de ouro da música soul, funk e do nascimento do hip-hop. Sendo o nosso primeiro disco, teria que representar quem somos na essência. Daí optamos por essa técnica de que somos grandes fãs. Uma coisa muito interessante foram os samples de nomes da música portuguesa como Fernando Tordo, além de nomes populares como Henrique Mendes e Julio Isidro. Isso criou um diferencial no som de vocês, dando uma identidade local forte. Foi proposital? Foi intencional no sentido de criar uma identidade nossa, do Orelha Negra, porque tínhamos consciência de que o universo da música portuguesa não é devidamente explorado pelos produtores de hip-hop daqui, o que não faz muito sentido, já que é uma das principais referências em termos de cultura urbana para a nossa geração, e também a dos nossos pais. São os discos que mais se encontram nas feiras de discos e sebos. São os samples que estão à nossa disposição e com os quais todos, pelo menos em Portugal, se identificam. Esse pode ter sido um dos segredos para o nosso som ter tido uma aceitação tão transversal.

Percebe-se coisas da música brasileira também. Qual a relação de vocês com a nossa música? Em Portugal existe uma grande ligação com a música brasileira. Todos nós já tivemos experiências com músicos brasileiros como o Marcelo Camelo – fazemos inclusive uma versão de um tema dele (“Saudade”) no nosso disco –, o Kassin, o Marcelo D2, a Orquestra Imperial, entre outros. E todas essas boas influências e boas experiências que passamos serviram de inspiração para o processo de criação do álbum. Como começou a parceria com o Vhils? Além do clipe, vocês estão com outros planos juntos? O Vhils é uma pessoa que já conhecíamos de outros trabalhos e é nosso amigo há muito tempo. No ano passado surgiu a oportunidade de tocarmos em um grande festival daqui (Festival Sudoeste) e propusemos ao Vhils participar da nossa apresentação. A parceria foi perfeita, todos ficamos muito contentes e com vontade de fazer mais coisas juntos. Logo em seguida surgiu a hipótese de fazer o clipe da “M.I.R.I.A.M” (lançado em fevereiro de 2011) e neste momento ainda estamos desfrutando desse novo trabalho em conjunto, mas já estamos pensando em algo especial para um futuro próximo também. E como são as apresentações ao vivo da banda? Seguem um pouco o formato do disco, já que, pelo fato de compormos as músicas em grupo, como uma banda de rock, conseguimos tocar em tempo real todos os sons, vozes, loops e efeitos que você ouve no disco. A diferença é que temos liberdade para interpretar os temas como uma música instrumental, sem ser sequenciada como no álbum. Temos também vários momentos em que homenageamos nossos heróis em clássicos do hip-hop e outros estilos, com versões e variações sobre breaks e samples clássicos. Como não temos um vocal, esse papel se complementa com o DJ Cruzfader e o Sam The Kid com vozes e colagens através da MPC e scratches. E, por esse mesmo motivo, investimos bastante também na parte cênica e visual do show.

“ Te m o s t i d o u m f e e d b a c k muito g rande não só de Portugal, mas de vá rios países da Eu ropa, Estados Unidos e, agora, do Brasil t a m b é m . Ta l v e z h a j a muitas pessoas que estão fa rtas do mainst ream atual na música e procu re coisas novas, novas direções. Uma banda de hip-hop inst rumental, cheia de g roove, sam ples e vozes em português pode se r a solução!”

Agora vocês lançaram a mixtape com diversos remixes e versões rimadas e cantadas com grandes MCs como Valete, Xeg, NBC, além de nomes de fora do hip-hop como Lucia Moniz e Orlando Santos. Vocês sentiam uma necessidade de letrar os instrumentais? Não sentíamos propriamente necessidade, mas fomos recebendo algumas músicas nossas com letras do pessoal daqui e decidimos então fazer uma mixtape. São vários cantores amigos nossos, e é uma pena não termos conseguido colocar todas as músicas que recebemos, ficaram coisas muito boas de fora. É muito bom ouvir a interpretação que cada um faz ao ouvir a nossa música. Demos total liberdade a todos para fazerem o que quisessem, e o resultado foi muito bom. 3

2SAIBA MAIS myspace.com/orelhanegra 69


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PARA O FUTURO

POR AMAURI STAMBOROSKI JR. . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

Para um ídolo do rock alternativo, citado como influência crucial por artistas tão díspares como LCD Soudsystem e Simple Minds, Michael Rother parece bem tímido e até mesmo pouco consciente de sua importância na história da música pop.

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o final do ano passado, em meio a sua turnê pelo Brasil com o Hallogallo – projeto completado pelo baixista Aaron Mullan (Tall Firs) e pelo baterista Steve Shelley (Sonic Youth) –, o guitarrista alemão, ex-membro dos grupos Neu! e Harmonia, confessou que assistiu a seu primeiro show de um Beatle no dia anterior, quando viu Paul McCartney no estádio do Morumbi. “Eu era muito fã dos Beatles nos anos 60, foi incrível ver Paul ao vivo”, ele contou nos camarins do teatro do SESC Vila Mariana, em São Paulo. No palco, o Hallogallo funciona como um relógio, tocando faixas dos grupos anteriores de Rother, além de material inédito, sempre impulsionado pela bateria de Shelley, inspirada no ritmo constante criado por Klaus Dinger (a outra metade do Neu!, morto em 2009) e apelidado de “motorik” pela crítica britânica nos anos 70. Em uma conversa de 20 minutos – Rother estava com febre e queria descansar antes da apresentação – o pioneiro do krautrock rejeitou o rótulo de “lenda” e lembrou da companhia nem sempre agradável de Dinger, além das dificuldades em reproduzir a música do Neu! ao vivo no início da carreira. Ao revelar seus planos para o futuro, ele parece descrever as paisagens intermináveis de músicas como “Für Immer” e “Negativland”, que estão entre as melhores produções do Neu!: “Quero apenas seguir em frente”. 1 70

Quando você achou que era hora de revisitar a música que fez com o Neu! e com o Harmonia nesse novo projeto? Eu tenho feito coisas próximas a esse tipo de música há um bom tempo, então não foi algo que apareceu do nada, que eu acordei pensando um dia. Durante a reunião do Harmonia em 2007, com Hans-Joachim Roedelius e Dieter Moebius, eu me senti um pouco limitado no que poderia fazer, porque o equilíbrio entre nós três era maior, cada um tinha a sua linha de pensamento. Na verdade eu sempre quis voltar a tocar as músicas do Neu!, mas meu foco foi mudando ao longo dos anos, e acho que vou seguir mudando. Há momentos em que eu quero fazer algo experimental, lento, tranquilo, mas agora não quero ser tão tranquilo – pelo contrário, quero criar algo dinâmico com esses dois grandes músicos. Como você escolheu o Steve Shelley e o Aaron Mullan para esse novo projeto? Conheci o Aaron em 2008, no festival All Tomorrow Parties, na Inglaterra. Ele estava trabalhando como engenheiro de som para o festival, e a organização ofereceu ele para cuidar do show do Harmonia. Ele sabia como era o nosso som e fez um ótimo trabalho. Nós começamos a conversar, tomamos umas cervejas e viramos amigos. Alguns meses depois, ele cuidou do som do All Tomorrow Parties em Nova York. Ele já havia conversado com o Steve sobre a ideia de gravarmos uma sessão no estúdio do Sonic Youth, o que acabamos fazendo. Seguimos mantendo contato, conversando sobre a gravação e sobre a possibilidade de tocarmos ao vivo, e aqui estamos.


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“Às vezes as pessoas me perguntam ‘como você se sente sendo uma lenda?’. Se eu não fosse educado, diria ‘isso é idiotice’. Fico feliz em saber que a minha música segue influenciando as pessoas depois de tanto tempo, mas sei que as coisas já foram diferentes, e que o futuro também vai ser diferente. É ótimo ouvir alguém falar coisas boas sobre a minha música, mas tento não levar isso tão a sério.” Qual é a diferença entre tocar as mesmas músicas com Klaus Dinger nos anos 70 e com eles agora? A gente não tocou muito ao vivo nos anos 70, esse era um dos maiores problemas que tínhamos na época. Éramos completamente dependentes do estúdio para criar os sons que queríamos. Tentamos realizar uns seis ou sete shows em 72 e meio show em 74. Ficamos bastante frustrados com o resultado, porque era impossível fazer uma música completa apenas com a bateria de Klaus e a minha guitarra. Tentamos adicionar mais músicos, mas não funcionou. A música do Neu! era muito pessoal, e naquele momento era impossível apresentar isso ao vivo. E agora, tocando para plateias cheias de pessoas que não tinham nem nascido quando o Neu! lançou seu primeiro disco, você percebe melhor a influência do que vocês criaram? O interesse pelo Neu! e pelo Harmonia cresceu consideravelmente nos últimos anos. Nos anos 80 ninguém parecia interessado em ouvir Neu! ou Harmonia, estávamos fora de moda. Começou a ficar melhor a partir do meio dos anos 90, quando Julian Cope (escritor e músico britânico, ex-líder do grupo Teardrop Explodes) lançou o livro Krautrocksampler, que fez com que, pelo menos na Alemanha, algumas pessoas de repente se sentissem orgulhosas da nossa música, começassem a pensar sobre ela, a perguntar “por que esse cara está tão empolgado com esses alemães loucos?” (risos). Quando relançamos os três primeiros álbuns, em 2001, muita coisa mudou.

Nos anos 70 existia essa ideia, criada por jornalistas britânicos, de que havia todo um movimento na Alemanha, que eles chamavam de “krautrock”, mas quando lemos entrevistas de músicos da época percebemos que não era algo assim tão amplo. Para mim e para o Klaus existia a ideia de fazer algo completamente diferente do que qualquer outra pessoa estivesse fazendo, não queríamos fazer parte de uma cena. Nós queríamos ser únicos. E para vocês, Aaron e Steve, como tem sido tocar com o Michael? STEVE . É horrível (risos). AARON . É impossível trabalhar com ele (risos). Na verdade tem sido bem divertido, poder viajar pelo mundo e tocar essa música que amamos. Passamos mais tempo saindo, jantando, conhecendo as cidades, do que em cima do palco.

Para um baterista deve ser um pouco desafiador, não? STEVE . Isso não é problema. O Neu! foi uma banda importante para pessoas da minha idade, para as pessoas da idade do Aaron – ele é um pouco mais novo. Para muita gente, o Neu! pode ter sido tão importante quanto o Velvet Underground, o Television, os Stooges. Essa música underground ajudou a formar muitas coisas que apareceram depois. Às vezes estamos em algum lugar e ouvimos alguma música do Joy Division e eu acho que tenho que mostrar para o Michael: “Olha, acho que esses caras eram grandes fãs do Neu!” (risos). Hoje em dia você tem mais noção do quanto o seu trabalho influenciou a música contemporânea? Não é uma boa ideia se concentrar tanto em se sentir um herói ou uma lenda. Às vezes as pessoas me perguntam “como você se sente sendo uma lenda?”. Se eu não fosse educado, diria “isso é idiotice”. Fico feliz em saber que a minha música segue influenciando as pessoas depois de tanto tempo, mas sei que as coisas já foram diferentes, e que o futuro também vai ser diferente. É ótimo ouvir alguém falar coisas boas sobre a minha música, mas tento não levar isso tão a sério. Li em algumas entrevistas você afirmando que a sua relação com o Klaus era um pouco difícil. As diferenças entre vocês eram pessoais ou artísticas? Os problemas aconteceram realmente no nível pessoal. Mesmo no começo, antes de Klaus começar a ficar afetado pelas substâncias que usou ao longo dos anos, ele era uma pessoa que

eu não queria ter por perto. Mas era ótimo criar música com ele. Tive sorte por sua viúva ser uma pessoa muito amável, que tornou possível o lançamento da caixa. Ela podia ter vetado tudo, incluindo a nova versão do disco Neu! 86 (lançado por Klaus em 1995 como Neu! 4, sem o consentimento de Michael). O Neu! era uma colaboração artística, e tocar com um baterista como Klaus era incrível. Foi a primeira vez que encontrei alguém com tanta determinação e vontade. Klaus era uma força da natureza. Eu sempre me lembro de um incidente: estávamos tocando com o Kraftwerk no começo da carreira deles, e o Klaus usava uns pratos quebrados – ele adorava o som que conseguia tirar daquilo. Ele cortou a mão em uma das pontas afiadas dos pratos – foi um corte feio, que espalhava sangue para todo lado. Eu olhei aquilo e depois vi a plateia, que estava de queixo caído, e o Klaus não parou de tocar nem por um instante. Se fosse eu teria parado, pelo menos para colocar um curativo. Isso diz muito sobre ele. Ele tinha uma personalidade muito forte. Isso de certa forma foi bom, porque adicionou muita beleza e força ao que fizemos. E depois da turnê, podemos esperar um disco do Hallogallo? Não estou muito bem de saúde, preciso descansar um pouco. Não estou reclamando, nunca estive na América do Sul nem no México. Os shows são ótimos, esse projeto tem me levado por todo o mundo. Fico surpreso em saber que minha música chegou tão longe. Na verdade é o contrário, acho que ficaria surpreso se a minha música fizesse sucesso na Alemanha (risos). Quero descansar bastante e depois vamos ouvir as gravações que fizemos – estamos gravando alguns shows, inclusive –, existe bastante interesse, algumas gravadoras já fizeram propostas. Acho que faz sentido registrar algo desse projeto. E depois seguir em frente, fazendo mais música, ou então... Não sei, apenas seguir em frente. 3

2SAIBA MAIS michaelrother.de 73


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riado em Cuiabá no início de 2005, o Macaco Bong consolidou a formação atual no fim daquele ano, com Bruno Kayapy na guitarra, Ney Hugo no baixo e Ynaiã Benthroldo na bateria. Desde o começo, a banda aposta no som instrumental, e as composições são criadas no esquema jam session: entram no estúdio, começam a tocar e dali vão surgindo ideias que depois são encaixadas em outras ideias. A música do Macaco é bastante fluida e não se baseia na estrutura padrão da música popular (estrofe-ponte-refrão ou, no caso da instrumental, tema-solos-tema), característica compartilhada pelos grupos do que se convencionou chamar de pós-rock.

POR RAQUEL SETZ . FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

Embora não haja mais datas fechadas para esse show, o pessoal do Macaco espera repetir a parceria com Gil mais vezes. “Tem uma ideia estética e um conceito no show. A ideia é uma banda de rock tocando com o Gil, o conceito é a representação de um processo histórico de renovação, de construção de novas ordens”, teoriza Ynaiã. E, graças à internet e às tecnologias digitais, essa nova ordem já está se formando no mundo artístico, especialmente

MÃO DIREITA DO ROCK, MÃO ESQUERDA DO JAZZ

o musical, como explica o baixista Ney Hugo: “Acabou a fórmula, tanto na coisa de fazer o som, fazer arte, quanto na gestão de carreira. Antes tinha formulazinha: pagar jabá, ir na rádio. Hoje a gente tem festivais, tem internet”. Com uma estrutura de rede ligando coletivos culturais e associações de música independente de todo o país, não é mais imperativo o artista ter contrato com gravadora ou viver em uma metrópole. O Macaco Bong é um ótimo exemplo desse processo de descentralização, já que Ynaiã, Kayapy e Ney se conheceram por meio do Espaço Cubo. A ideia inicial do instituto era incentivar a música autoral em uma época em que o meio musical de Cuiabá estava dominado pelas infames bandas cover. A iniciativa deu certo, e logo o Cubo passou a abrigar outras manifestações artísticas, como cinema e teatro. Com um espaço para apresentações (a Casa Fora do Eixo), o festival Calango e um esquema bem organizado de troca de serviços entre músicos, produtores, técnicos de som, fotógrafos etc., o Cubo vem fomentando a cena cultural da capital matogrossense desde 2000. Os três integrantes do Macaco Bong trabalham no instituto (Ynaiã com produção de eventos, Bruno com sonorização e Ney na parte de comunicação) e acreditam ser importante investir na cena local, como defende Ynaiã: “Pra consolidar a carreira e até ter uma força maior se essa mudança [para um grande centro] for necessária, é preciso estruturar sua cidade”. 3

M AB CO AN CG O

Outro aspecto em comum é a mistura de estilos e influências, algo que pode ser bem exemplificado pela guitarra do Macaco Bong, como explica Bruno Kayapy: “A linguagem da guitarra no jazz tem aquele lance de tocar os acordes em bloco, com timbre mais fechadinho, semiacústico e tal, só que eu faço isso com drive, com distorção, com a pegada do rock. Então misturo a mão direita do rock com a mão esquerda do jazz”. Acrescente alguns “dedinhos” de world music, heavy metal, hardcore, música pop e Hermeto Pascoal e já dá para ter uma ideia do som dos caras. “A gente gosta de Ray Charles, Dave Mathews Band a Morbid Angel, Canibal Corpse. Adoro Pat Metheny, mas considero esteticamente o Canibal Corpse uma das melhores bandas”, revela o guitarrista.

Essa geleia geral sonora chamou atenção do produtor Fabrício Nobre, que em 2008 teve a ideia de organizar um show com Gilberto Gil acompanhado pelo instrumental do Macaco Bong. Como Gil ainda era ministro da Cultura e estava com a agenda lotada, o projeto foi abortado. Alguns meses atrás, o plano foi ressuscitado. O Macaco Bong estreou com Gilberto Gil no show Futurível, em novembro de 2010. O resultado do encontro foi intrigante: alguns clássicos ganharam arranjos mais duros, sem o suingue e a alegria dos originais – o que explicitou o conteúdo melancólico antes encoberto pelo arranjo festivo de “Aquele Abraço”, canção feita por Gil pouco antes de se exilar. “Quando fui criar esses arranjos, procurei entender a letra ao máximo e passar isso no som, que já é o que a gente faz no Macaco. A gente não tem vocalista, mas a guitarra é a voz que diz quando é melancolia, quando é afeto”, conta Kayapy.

2SAIBA MAIS myspace.com/macacobong espacocubo.org.br

“Música instrumental” é uma expressão que causa calafrios em quem logo imagina um sujeito engomadinho debulhando escalas de nomes estranhos. Mas, felizmente, há uma nova geração de grupos instrumentais brasileiros que passa longe desse estereótipo, criando uma música em que o som da banda como um todo é mais importante que a figura do solista – que muitas vezes sequer existe. O Macaco Bong é um dos principais nomes dessa cena, que também inclui, entre outros, A Banda de Joseph Tourton, Satanique Samba Trio, Hurtmold e o trabalho-solo de Maurício Takara. 1 75


E N T R E V I S T A C O M

Brendan Canning 造

broken social scene do

ENTREVISTA POR HELENA SASSERON FOTO POR D. GILLESPIE

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Com uma lista de integrantes que pode chegar a 25 pessoas – incluindo membros de algumas das principais bandas do indie canadense, como Metric, Stars, Do Make Say Think e a cantora Feist –, o Broken Social Scene poderia reivindicar com folga o título de “maior projeto paralelo de todos os tempos”. Apesar da fama de “supergrupo”, o BSS gira em torno dos seus dois fundadores, Brendan Canning e Kevin Drew. Na verdade, dificilmente mais do que nove pessoas estão envolvidas ao mesmo tempo no trabalho da banda, e as composições, em sua maioria, ficam a cargo dos líderes. Depois de lançar um dos discos de indie rock mais celebrados de 2010, Forgiveness Rock Record, o grupo chegou a ser convidado para se apresentar no Brasil em abril deste ano, mas acabou recusando a oferta – “infelizmente não tocaremos no país em 2011, mas quem sabe em 2012”, explicou Canning em seu perfil no Facebook.

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urante uma rápida passagem por Seattle, no final do ano passado, nossa colaboradora e chick-in-charge Helena Sasseron foi conferir um show do grupo e levou uma ideia com Canning. Depois da passagem de som, ele falou sobre como organizar tantas pessoas para tocar e compor, gravar com John McEntire (Tortoise, Sea and Cake) e sobre as diferentes personalidades da banda. 1

O Broken Social Scene tem muitos membros e convidados, que também estão em outros projetos ou projetos solo. Como vocês se organizam na hora de gravar e sair em turnê? Nós temos uma banda principal com quem viajamos. Hoje somos nove pessoas no palco, mas, quando precisamos, contratamos outros músicos para tocar com a gente, saxofonista, percussionista etc. Nessa turnê o Jimmy [Shaw], do Metric, resolveu vir tocar em alguns shows... E assim a turnê vai se configurando... A Feist vai tocar com a gente no México... A gente vai selecionando e a turnê acontece! E para colocar todo mundo em estúdio... A gente não entra todo mundo em estúdio ao mesmo tempo, gravamos parte por parte... Mas vocês não compõem juntos? Sim, alguns de nós, mas não oito pessoas tentando compor uma música... Diferentes formações da banda compõem cada música.

ter sentido no começo, mas no final poderiam ser peças que estavam faltando no quebra-cabeça. Ele foi incrível nisso, nos deixou muito à vontade.

Mas depois de tanto tempo, quando você tem alguma ideia já sabe mais ou menos o que o resto da banda vai pensar, não? Mais ou menos... Mas é meio que uma questão política... As vezes você tem que fazer uma campanha por determinadas ideias, grava parte de uma ideia para uma música. Alguns gostam, outros não, e depois de um “ À S V E Z E S mês ainda estamos disV O C Ê T E M Q U E F A Z E R U M A cutindo se vale a pena C A M P A N H A P O R manter essa ideia. É D E T E R M I N A D A S um processo. É como I D E I A S , G R A V A se estivéssemos num P A R T E D E U M A I D E I A P A R A U M A laboratório. M Ú S I C A . A L G U N S G O S T A M , O U T R O S Do que você mais gosN Ã O , E D E P O I S ta no BSS? D E U M M Ê S A I N D A E S T A M O S Acho que das várias D I S C U T I N D O S E personalidades... E do V A L E A P E N A fato de o show ser diM A N T E R E S S A ferente em relação ao I D E I A . É U M P R O C E S S O . É C O M O álbum. O disco pode S E E S T I V É S S E M O S soar sério, mas acho N U M que o show não cheL A B O R A T Ó R I O . ” ga nem perto dessa seriedade – é uma celebração, vai por um caminho diferente.

Como vocês encontram e escolhem os artistas convidados para gravar? Temos algumas ideias e pensamos em alguém que se encaixe com elas, ou então um de nós escolhe de fato uma pessoa para tocar em determinada música. Por exemplo, tem o Doug McComb, do Tortoise, que assobia em uma das músicas do disco, o Eric [Claridge], do The Sea and Cake, toca baixo nessa mesma música, mesmo a gente tendo cinco baixistas na banda...

E essas participações simplesmente acontecem, não são super planejadas e tal... Sim, nós convidamos as pessoas a participar ou então tocamos parte de uma música para alguém e a pessoa de repente tem uma boa ideia para ela... E o mesmo aconteceu com o Sam Prekop, que canta em uma faixa do disco? Sim. Nós gravamos o disco com o John McEntire, que é o líder do Sea and Cake, e o Sam aparecia de vez em quando no estúdio e saíamos para jantar... A música já estava escrita, e o Kevin [Drew] queria que o Sam cantasse nela, e aí rolou. E como foi gravar o disco com o John McEntire? Foi ótimo, ele é legal... E começamos uma relação com ele... Ele teve a habilidade de nos deixar livres no estúdio, como sempre gostamos de estar, nos deu várias salas e espaço suficiente para tentarmos diferentes ideias, que pareciam não

Que bandas você está ouvindo agora? Eu compro bastante coisa de bandas antigas, mas gosto das novas também... Comprei o disco da Budos Band outro dia; gosto do Michael Leonheart and The Avramina 7, que foi lançado pelo selo Truth & Soul, que faz um som meio estranho, funkeado, gosto bastante. Tem também o Atlas Sound, projeto solo do cara do Deerhunter. Quando vocês tocam em festivais, você tenta ver as outras bandas e conhecer novos artistas? Sim! [Em 2010] vi uma banda da qual gosto muito, Here We Go Magic – eles são na verdade uma das bandas novas favoritas. Tocamos juntos em alguns festivais. Eu vi o Cypress Hill, foi divertido... Pavement também – tocamos em alguns festivais juntos esse ano, então os vi tocando algumas vezes. Acho que vi bastante coisa... Nem consigo me lembrar direito... Ah! Sim! Vi The Specials! Foi bem legal. E aquele cara árabe, Omar Souleyman. 3

2SAIBA MAIS brokensocialscene.ca 77


Sejam bem-vindos ao meu circo “É só o fim do começo, seja bem-vindo ao circo.” Essa frase encerrava o disco Primeiramente, lançado em 2008 por César Tavares, mais conhecido na cena do rap brasileiro como DonCesão. Em sua estreia sonora já dava para perceber um letrista de talento, que contava boas histórias em suas composições. Com novo álbum na praça, Bem Vindo Ao Circo, Cesão se afirma com um trabalho conceitual, permeado por narrativas bem amarradas, usando o imaginário circense como pano de fundo. Um disco que poderia facilmente virar filme. Em um papo rápido com a SOMA, o rapper contou detalhes sobre o trabalho. 1

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O disco tem um conceito meio cinematográfico, como se fosse um roteiro. Além disso, ainda tem um enredo narrado que acompanha e complementa as músicas. Como você definiu essa ideia? Desde o começo eu penso nisso, roteirizar as músicas. Primeiro elas têm que fazer sentido uma por uma. A ideia do narrador foi primordial pra amarrar tudo. Eu tinha um certo medo de ficar uma coisa meio abstrata, mas rolou numa boa. POR DANIEL TAMENPI . FOTO POR ASSIS176

No fim do seu primeiro disco, Primeiramente, você já dava o gancho do Bem Vindo ao Circo. Como surgiu essa ideia, e como foi criado o conceito nesse meio-tempo? Quanto terminei Primeiramente, quis criar um contexto. Foi minha primeira experiência musical, e pensei “o que fazer a partir daqui?”. A primeira história que me veio foi o circo. Fui analisando os personagens e como poderia relacionar eles com a vida real. Desenvolvi os sons um por um, até encaixar em uma história completa. Por que o circo? Qual a sua relação com o tema? Está no imaginário das pessoas desde a infância. Cada pessoa tem uma coisa que marca mais, seja um animal, ou o mágico, então dá pra fazer várias analogias e gera muito repertório. E a ideia era render personagens, então o circo já dava uma história quase pronta. Você fez algum tipo de pesquisa ou laboratório pra ficar mais por dentro desse assunto? Sim. De 2008 pra cá, tudo que eu via relacionado a circo me interessava. Fui atrás da história do circo, lendo livros, descobrindo as origens, me envolvendo no assunto, ouvindo músicas. Devo ter ido umas seis vezes ao circo nesse tempo pra buscar inspiração.

Fala um pouco sobre as participações do álbum. Encarei como se fosse a minha obra-prima. Quis trazer pessoas que eu tinha como influência. Quando estava separando os beats que queria pro álbum com o DJ Caíque, já iam surgindo as ideias. "Malabares" tinha a cara da Lurdez da Luz, "Cego, Surdo & Mudo" tem tudo a ver com o Elo da Corrente. Ainda tem o Pizol e o Dr. Caligari, que são meus parceiros da 360 Graus. O Ogi e o Rodrigo Brandão fazem o encerramento, com "O Show Já Terminou". O Mi e o Elliot, da Banda Glória, são meus amigos de infância, e as ideias surgiram de forma natural. Foi muito legal e importante esse trabalho com os amigos. Você brinca com os títulos e os personagens de uma maneira muito original, relacionando as atrações circenses com o cotidiano. Fale um pouco sobre essa analogia. Contar história em primeira pessoa é legal, emociona. É como um filme, você vê o que a pessoa tá vivendo e acaba sentindo um pouco também. Quando a criancinha fala no começo do disco e vem a música dos malabares, você já imagina a criança no farol e toda a evolução dela. O personagem traz a imagem na cabeça da pessoa, e eu dou a minha visão em cima. Às vezes combina, às vezes conflita. E a ideia era relacionar esses personagens de uma maneira diferente, sem ser óbvio. Como o mágico, que é aquela coisa que sempre dá certo, consegue atos espetaculares. Na música é uma coisa mais sofrida, de ser um herói da vida real. Ou o palhaço, que já remete a brincadeira, tem uma associação fácil. No caso da música é uma tiração de sarro, porque ele tomou um pé na bunda da mulher e está sendo feito de palhaço, saca? O lançamento do disco vai ser dentro de um circo, né? Como está sendo montada essa ideia? Em todo o processo de escrita eu já pensava nisso. No circo as pessoas vão viver aquilo de verdade. Eu tô trabalhando muito no visual. Vai ter atores trabalhando, todos os convidados. Vamos fazer uma interação bem visual.

Por que você resolveu colocar o álbum diretamente pra download gratuito? Acha que o formato de CD e venda já está ultrapassado? Eu vou fazer uma tiragem em CD, mas só porque não tenho condição de fazer em vinil. Quero lançar esse trabalho físico. A música já está aí, registrada. A gente tem que encarar o rap como um mercado, e acompanhando o rap lá fora. Você vê que tem grandes álbuns saindo, de gente nova como Curren$y, Cool Kids, em formato de mixtapes lançadas na internet. E eles ganham o mundo se tornando populares. Então, se eu lanço o CD e fico segurando o trabalho, o primeiro cara que comprar vai jogar na internet e eu não vou conseguir a atenção que consegui com o download. O que iria se dispersar em quantidades homeopáticas por meio das pessoas que fossem comprando ou de downloads piratas, eu trago direto pro meu nome fazendo uma promoção maior. Esse é o meu pensamento. Quem gostar de verdade compra o CD. Vou fazer uma tiragem a cinco reais e uma especial acompanhada de um livro e uma camiseta com preço justo. E, como estou com essa preocupação visual do show, isso é a parte mais importante. Vender a arte como um todo. Dentro dessa analogia que você fez, o que o circo e o hip-hop têm em comum? Se o hip-hop fosse um personagem do circo, seria uma mutação de vários. Tem que ser um pouco equilibrista pra viver da sua arte. O circo tem aquela coisa do amor à arte, de fazer com as próprias mãos. Junta um pessoal, põe as coisas nas costas e vai de cidade em cidade passando a mensagem. O hip-hop tem isso também. As pessoas se juntam pela mensagem. Acho que é a maior semelhança. É um trabalho árduo e de longo prazo. Nós temos que fazer as coisas sem depender de ninguém. Fazer o nosso cirquinho se transformar no Cirque du Soleil, tá ligado? 3

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+QUEM SOMA

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. DANIEL TAMENPI / SÓ PEDRADA MUSICAL . Por Mateus Potumati . Foto por Fernando Martins Ferreira

orte, sozinha, não resolve nada. Mas vamos combinar: ela também não atrapalha. E Daniel Reis da Costa não é exatamente um cara azarado. Nascido no bairro de Santa Teresa, uma das áreas com maior concentração de artistas por metro quadrado no Rio de Janeiro, de pais progressistas (ambos profissionais liberais, com histórico de engajamento contra a ditadura e alta formação universitária), Daniel teve seu envolvimento com música não só facilitado, mas incentivado. “Meu pai era amigo de uma galera da bossa nova, minha mãe conhecia Novos Baianos, Caetano, Gil. Eu tinha uma coisa com música desde cedo, eles sempre apoiaram”, conta. Logo menino, foi estudar na Escola Senador Correia, em Laranjeiras, reduto de filhos da geração paz e amor como ele, onde teve contato precoce com a música. “Com 8, 9 anos eu já tinha noção de flauta, violão, piano e percussão. Pirei em percussão e meu pai me deu uma bateria. Com 12 eu já estava tocando em banda punk rock de moleque.” O espírito 80

arredio rendeu ao capeta em forma de guri o apelido de “Pimenta”, que na adolescência virou “Tamenpi” por causa de uma mania carioca de inverter as sílabas – especialmente oportuna quando a molecada do asfalto começou a subir o morro para frequentar bailes funk.

“SÓ TOMEI UMA NOÇÃO DO TAMANHO QUE TINHA TOMADO QUANDO MUDEI PRA SÃO PAULO. AS PESSOAS ME RECONHECIAM NAS FESTAS, ERA SINISTRO.” Mas, a partir de um ponto, algumas coisas separaram Daniel Tamenpi de ser só mais um garoto de uma família legal. Unindo uma voracidade rara para a pesquisa musical a um talento natural como DJ, ele se tornou não só um dos nomes mais requisitados da noite paulistana, como está há 5 anos (completados em 14 de maio) à frente de um dos blogs de referência musical mais acessados

da internet brasileira, o Só Pedrada Musical. Nesse tempo, o Só Pedrada se firmou como uma fonte rica de novidades e pesquisas de origens, notadamente sobre música negra, que vem formando novos ouvintes e facilitando a vida de muito macaco velho. O estalo, segundo Tamenpi, veio “lá por 93, 94, quando, quando ouvi Racionais pela primeira vez”. “Eu era um moleque meio politizado, meu pai sempre foi do PT e tal. E as letras do Mano Brown me bolaram”, ele lembra. Começava ali um caminho sem volta pelas entranhas do rap, que depois se ramificou exponencialmente. Afetado pelos Racionais, GOG e Thaíde, ele só ouvia rap brasileiro: “Achava rap gringo uma merda (risos).” Mudou de opinião anos depois, quando ares mais esfumaçados trouxeram grupos como Cypress Hill e Wu-Tang Clan. “Mas a virada mesmo veio em 96, quando ouvi The Roots. Aquilo foi um soco na cara, vi que o rap podia ser muito musical.” Dali em diante, começou a reparar no trabalho dos DJs de hip-hop e não demorou muito para decidir que era aquilo que queria fazer.


Vendeu a bateria, comprou dois toca-discos e começou a praticar em casa. Aos poucos, foi ganhando espaço como DJ na noite carioca. Paralelamente, a relação com as pickups intensificou mais ainda sua pesquisa musical. E em seguida, claro, veio o Napster. “Imagina como era, né? Só existia internet discada, e a gente tinha que entrar depois da meia-noite. Então eu varava noite atrás de música.” Em 2002, finalmente, Tamenpi resolveu começar a desovar um pouco do que vinha descobrindo por conta própria. Nascia ali o embrião do Só Pedrada: “Ainda não existiam blogs pra baixar música, então abri um Fotolog onde eu colocava capas de disco, ficha técnica e escrevia reviews.” Os anos passaram, o Fotolog virou reduto de gente que gastava mais dinheiro com tinta de cabelo do que com discos, mas Tamenpi seguiu em frente. “Comecei a frequentar blogs gringos e brasileiros como o Saravá Clube, que abriu muito minha cabeça. Era ótimo para procurar sample de disco.”

Em 2006, a moda dos blogs para baixar música começava a pegar, e o que mais chamava a atenção do então formando em jornalismo era a quantidade de blogs dedicados a gêneros específicos. Ele decidiu então abrir a primeira versão do Só Pedrada, adicionando links de downloads às resenhas. “Muita gente vinha pedir pra copiar meus discos, aí eu botei tudo lá no blog.” O que era para ser uma coisa entre amigos ganhou proporções muito além das imaginadas: o blog registra hoje algo entre 2 e 3 mil visitantes diários. “Só tomei uma noção do tamanho que tinha tomado quando mudei pra São Paulo. As pessoas me reconheciam nas festas, era sinistro.” A vinda para a capital paulista, em 2008, foi um passo fundamental no caminho do homem-pedrada. “No Rio, eu ganhava uma merreca pra tocar o que eu odiava. Aqui, toco o que quero e ganho bem”, ele resume, sem esquecer o papel fundamental que o DJ Primo teve no processo. “Além de me colocar no circuito, o Primo fez toda a fita de eu vir

pra cá, me falou qual bairro era mais barato pra morar, ajudou na mudança”, detalha. “E morreu 1 mês depois.” O choque o fez cogitar voltar para o Rio, mas os amigos que tinha feito em São Paulo o impediram. “Me falaram ‘fica aí, faz tua base aqui que uma hora vai rolar’.” E rolou, para deleite dos paulistanos e dos fãs de música boa pelo mundo. Hoje, aos cinco anos de idade, o Só Pedrada não posta mais discos para download, mas viu sua função educativa se ampliar. O volume de reviews cresceu, surgiram podcasts e mixtapes semanais e vários projetos musicais estão em curso. A sorte, agora, é toda nossa.

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Coisas que Gostamos de Guardar

FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

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POR MENTALOZZZ, COM COLABORAÇÃO DO DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG

No colecionismo são vários os motivos que levam uma pessoa a querer guardar objetos. No caso do artista plástico ADRIANO LEMOS, o entrevistado desta edição da Seleta, foi o design que motivou sua paixão por eletrodomésticos. Sua história está profissionalmente ligada ao colecionismo, já que seu principal ganhapão é restaurar de tudo, de lambretas a móveis, para colecionadores. Mas a conversa com ele revelou também uma tentativa não muito bem-sucedida de produção industrial de toy art no Brasil. Como ele mesmo diz: "Faço de tudo, só não faço dinheiro". Como começou o seu interesse por objetos antigos? O primeiro objeto que chamou minha atenção, lá na infância, foi o desenho do Fusca, com suas formas arredondadas. Eu já desenhava muito, sempre assistia TV com um caderno na mão e gostava de desenhar Transformers, mas as linhas arredondadas do Fusca determinaram uma predileção. E como chegou aos eletrodomésticos? Foi quando saí de casa, 15 anos atrás, e tive que comprar uma geladeira. Acabei adquirindo um modelo antigo da GE da década de 50 porque tinha os cantos arredondados. Quando me dei por conta já estava adquirindo outros eletrodomésticos antigos. Percebi a beleza do desenho envolvido e também a qualidade superior e menos descartável deles. Comprei alguns que eu nem precisava, tipo uma batedeira da Walita que é também espremedor de suco, moedor de carne e amolador de facas – tudo num produto só. Quantos eletrodomésticos você tem na sua coleção? Não sei bem porque estou sempre comprando trocando e vendendo para outros colecionadores do Brasil todo. É um mercado bem ativo. Qual objeto você procura para a sua coleção e não encontra? Estou há um tempo buscando exatamente o amolador de facas para completar minha batedeira da Walita, mas tá difícil.

Parecer do dr. Jacob Pinheiro Goldberg Você também tentou desenvolver um boneco industrializado. Como começou esse processo? Sempre pintei quadros de bonecos coloridos com a temática punk, skate etc., e logo passei a modelá-los primeiro em epóxi, e depois em biscuit, técnica que vi na Ana Maria Braga. Comecei a vendê-los, principalmente dois gatinhos trepando pintados com tinta fosforescente. Eles vendiam bem...Isso bem antes da onda da toy art. Como resolveu produzir o boneco em vinil? Eu havia desenvolvido alguns personagens para a campanha publicitária de uma indústria de medicamentos, e eles gostaram tanto dos bonecos que pediram para que eu produzisse em série. Assim, tive que aprender o processo de produção industrial de brindes em vinil. Quando surgiu o conceito de toy art no Brasil, eu já não aguentava mais fazer manualmente meus bonecos, porque os pedidos aumentaram, e foi então que conheci o Munny (boneco em vinil que pode ser customizado) e resolvi fazer o Fooze, utilizando o mesmo conceito. Vendi meu carro e alguns eletrodomésticos da minha coleção e mandei fazer o molde em uma indústria que fabricava brindes. Produzi trezentos bonecos inicialmente. Você ganhou dinheiro com a venda deles? Distribuí os bonecos em algumas lojas. Até que, para a minha surpresa, em uma delas, o dono me falou que já haviam oferecido o mesmo boneco para revender, por um preço bem mais baixo que o meu. Foi então que percebi que a fábrica estava usando o meu molde e vendendo o meu boneco por aí. Fui pirateado... Modelei e paguei o molde para eles... Hoje brigo na Justiça para reaver meu molde e ser indenizado, mas essa história ainda deve se arrastar por um bom tempo.

A Revolução Industrial criou uma relação curiosa entre a pessoa e o mundo do produto fabricado em série, e que se torna especialmente marcante no caso do eletrodoméstico, que virou um objeto imprescindível, quase uma extensão da pessoa dentro de casa. Algumas pessoas não se desfazem de seus eletrodomésticos antigos, nem ao menos em favor de uma tecnologia mais moderna e qualificada, porque desenvolvem carinho e amor pelos aparelhos. A mesma relação entre a pessoa e o produto fabricado é a que impulsiona determinados indivíduos a se tornar empreendedores. Fabricar produtos pode ser extremamente desanimador quando se percebe os descompassos e desencontros do mercado. Tudo isso gera frustrações, que de forma nenhuma, porém, devem ser encaradas como derrotas.

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+QUADRINHOS

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MZK

4URRU.COM.BR


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NIK NEVES

4INUTILPROJECT.COM


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RAFAEL CAMPOS

4RAFAELCAMPOSROCHA.BLOGSPOT.COM


PRIMAS

OBRAS John Coltrane .­ A LOVE SUP R EM E . IMPULSE!, 1964 Gravado ao final de 1964, A Love Supreme reúne todas as inovações musicais experimentadas por John Coltrane durante a década anterior aplicadas em “apenas” três faixas; “A Love Supreme PT. 1 – Acknowledgement”, “A Love Supreme PT. 2 – Resolution” e “A Love Supreme PT. 3 – Pursuance / Psalm”. Um dos discos mais espirituais já gravados, ainda que cheio de lógica em sua composição, A Love Supreme reuniu o Dream Team do jazz em uma formação de fazer inveja ao USA For Africa: Elvin Jones na bateria, McCoy Tyner no piano e Jimmy Garrison no baixo, além do sax impecável de Coltrane como fio condutor. Musicalmente e espiritualmente alinhados, os quatro músicos criaram uma obra-prima do jazz, e também um dos discos mais celebrados da história do gênero – alem do LP mais vendido da carreira de JC. Com seus pouco mais de trinta minutos, A Love Supreme pode ser considerado um disco de curta duração, embora a história constantemente nos diga o contrário. Instrumental do início ao fim, influenciou músicos de todos os estilos, épocas e gerações, provando ser a meia hora mais revolucionária da música contemporânea. O free jazz (muitas vezes descrito por entusiastas em geral como avant-garde jazz ou hard bop) tomaria novos rumos a partir de seu lançamento, e John Coltrane certamente adicionou dois ou três adjetivos ao significado da palavra “amor” nos dicionários modernos.

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Love is in the air, baby. Não é de hoje que artistas de todos os gêneros musicais conhecidos pelo ser humano falam sobre amor em suas composições. Jazzistas, soul men, rappers, funkeiros, sambistas, pagodeiros e sertanejos costumam destilar paixões, amores, faíscas, lampejos e seus respectivos desdobramentos em seus trabalhos, dos mais simplórios e honestos às supertrilhas vencedoras de Grammys. Artistas tão diferentes quanto John Coltrane e A Tribe Called Quest jamais poderiam ser exceções a uma regra tão clássica. No caso da obra-prima concebida pelo monstruoso saxofonista John Coltrane no distante ano de 1964, o amor em questão se traduz em doses cavalares de espiritualidade que, harmoniosamente distribuídas ao longo de três faixas-operetas, revolucionaram todo um gênero musical, mudando para sempre a forma de pensar, criar e executar um dos estilos mais ricos e


R A N O

POR PEDRO PINHEL

Á T E S R O M A O

A Tribe Called Quest . T HE L OV E M OV EM EN T . JIVE, 1998

complexos da música contemporânea. Menos badalados e muito menos celebrados por especialistas e connoisseurs que discutem verborragicamente as mazelas do jazz, embora tão influentes quanto, o trio de rappers A Tribe Called Quest criou, à sua maneira, uma homenagem bastante sincera ao conceito de amor. Obviamente, o amor cantado por essa rapaziada do Brooklyn (NY) é objetivamente associado à paixão, ao romance, ao sexo e ao sensual rebolado, a.k.a. vai-e-vem, das pessoas do sexo feminino em geral. Espiritual ou carnal, passional ou platônico, o amor se faz presente em discos de diferentes gêneros, em diferentes épocas e com diferentes conotações. Experiências são minuciosamente descritas, divididas, transformadas em melodias, partituras, belas poesias ou rimas cheias de sinceridade. E o maior beneficiado, meu amigo, é você!

Muito menos espiritual que a obra-prima de Coltrane, The Love Movement é uma ode dos MCs Q-Tip e Phife Dawg e do produtor Ali Shaheed Mohammad ao amor. Obviamente, um amor menos requintado, menos metafórico e muito mais objetivo, visceral e aplicado à vida cotidiana. Em The Love Movement os MCs falam sobre experiências pessoais, amadurecimento, decepções, frustrações e... mulherada na bota, obviamente – problema que assola onze entre dez rappers desde que Big Bank Hank e Wonder Mike escreveram os primeiros garranchos da hoje mitológica “Rapper’s Delight”. A produção, seca, direta e cheia de timbres perfeitos – evolução natural do ótimo Beats, Rhymes & Life, de 96 –, garante momentos espetaculares, como a ótima “Find A Way”, parceria entre o ATCQ e o finado produtor James “Yancey” Dilla, que tem até sample da Bebel Gilberto, e a sincera “Common Ground”, que descreve com simplicidade e de forma verdadeira as angústias e as alegrias de um relacionamento prestes a completar um ano. O flow espetacular e os one-two punches aparentemente perfeitos entre Tip e Phife escondem uma triste verdade: a relação desgastada entre os membros do grupo gerou uma prematura separação entre seus membros logo apos a turnê de The Love Movement, separação que durou até o ano de 2009, quando os bolsos falaram mais alto que as ideologias e o trio finalmente cogitou voltar a dividir o mesmo palco, ainda que sem previsão de novos álbuns. O amor juntou, o amor separou, o amor reagrupou. E o fruto do amor do ATCQ é um dos melhores discos de rap do final dos anos 90 - um disco sobre amores, desamores e todos os respectivos estágios intermediários.

2PEDRO PINHEL FAZ O RADIOLA URBANA E O BLOG ORIGINAL PINHEIROS STYLE. 91


+REVIEWS

1DISCOS

2PJ HARVEY 2CRIOLO NÓ NA ORELHA Independente 2011 Cantora da nova MPB falando sobre sua geração: “O legal é que agora todo mundo tá se amando”. Corte para álbum de um rapper, se valendo de diversos gêneros, com sanha e tino de auteur raro, mandando uma pedrada soul à la Cassiano cujo refrão é “Não existe amor em SP”. Esse cara é o Criolo (ex-Doido), mestre do rap paulistano, chutando bundas acomodadas em seu álbum Nó Na Orelha, com produção de Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral. Trata-se de uma obra com gosto e vocação para falar de seu tempo, exercendo o que seria caro ao formato canção (o mesmo que perdera razão de ser com o advento do rap, segundo Chico Buarque), exatamente o que a tal da nova MPB da primeira frase mais evita. Criolo se expõe, conversa ao pé do ouvido, denuncia, chora, tudo ao mesmo tempo, vertiginoso. O álbum é prenhe de palavra, de força de interpretação, mas acolhe escorregadelas como o excesso de maneirismo que começa na primeira faixa, o afrobeat “Bogotá” e finaliza com o sambão “Linha de Frente”. Paradoxalmente, é em bolero tomado de referências bregas, radiofônicas, que Criolo brilha, assim como nas faixas por ora já paradigmáticas, como “Grajauex”, “Subirusdoitiozin” e “Não Existe Amor em SP”, todas previamente divulgadas. Afora sua voz forte, dicção cortante, carregada de interpretação a cada fonema, Criolo traz, ao domínio da música popular, a sintaxe, objetividade e virulência do mais curtido rap nacional – aquele que, se excluindo a atmosfera FM eleita por Criolo, foi amplamente ignorado/execrado pela audiência classe média que deve lotar seus shows. Assim como Brown colocou o gangsta na casa dos bacanas através das ondas do rádio, Criolo coloca parte constituinte do imaginário rap brasileiro em condições de brigar com a MPB mais deslumbrada Brasil afora. Parece que a primeira frase dita pelo cantor no álbum baliza a negociação que ele inflige à audiência: “fique atento, irmão, quando te oferecem o caminho mais curto”. A epifania vem, mais em uma latente educação pela pedra – e poucos discos, sendo assim, representam tão fielmente nosso tempo, seja pelo vigor de sentimento, pela falta de desfaçatez (em “Sucrilhos”: “cantar rap nunca foi pra homem fraco / saber a hora pra parar é coisa de homem sábio”), pela fragmentação à moda de uma mixtape. A mais pura Força Bruta. 3POR VELOT WAMBA

LET ENGLAND SHAKE Island 2011 Polly Jean Harvey é uma da poucas roqueiras que consegue se reinventar sem fazer com que sua obra perca sentido. Desde o primeiro álbum, Dry, em que predominavam as guitarras cruas e letras autobiográficas, passando por Stories From The City, Stories From The Sea, em que flertou com a música pop, ao penúltimo disco White Chalk, em que encostou as guitarras e assumiu o piano, PJ vem mostrando novas facetas criativas. Em Let England Shake, ela manteve a trajetória com um disco que equilibra as experimentações dos últimos álbuns e a simplicidade dos primeiros. Além disso, ousou temperar as músicas com vocalizações (quase) eruditas, desafiando a sua voz em todos os momentos e dividindo as gravações entre uma igreja do século XIX em Dorset e um estúdio ao vivo. As letras também seguem um novo caminho: temas concretos que questionam a política de guerras seguida pela Inglaterra ao longo dos séculos A faixa-título “Let England Shake” foi a escolhida para iniciar a atmosfera sombria do álbum. A trinca “The Glorious Land”, “All and Everyone” e “In The Dark Places” potencializa a escuridão com arranjos pesados e fortes. Em “The Works that Maketh Murder”, ela narra as barbáries da guerra em um rock/folk menos obscuro, trazendo um respiro aos ouvintes. Outra canção que suaviza o peso do disco é “Written on the Forehead”, composta sobre samples do reggae “Blood and Fire”, do jamaicano Niney The Observer. Os agudos da artista em “On Battleship Hill” deixam dúvida de como ela irá se sair ao vivo, mas talvez isso não tenha tanta importância diante da grandeza de Polly.

3POR MARINA MANTOVANINI 92


2THE WEEKND 2MIKE WATT HYPHENATED-MAN Org / Clenchedwrench 2011 Se o punk partiu de uma necessidade de refletir e sintetizar de maneira crítica o que até então havia acontecido no rock, nenhuma banda foi tão efetiva nesse sentido como o Minutemen. Inspirados pelo clássico Pink Flag, do Wire, o trio partiu para suas longas reflexões sobre a música em composições de pouco mais de 60 segundos. Coisa que só amigos obcecados por som poderiam fazer. Ao longo da carreira, começaram a elaborar esses pequenos fragmentos em composições maiores e em outros tipos de canção, sempre refletindo sobre o rock e sobre o impacto da cultura independente na sociedade. D. Boon, guitarrista do Minutemen, definia o punk, em tradução livre, como qualquer coisa que queremos que assim seja. Após a sua morte, essa noção de liberdade continuou permeando as carreiras dos dois remanescentes da banda de San Pedro – do baixista Mike Watt, principalmente. Sua trajetória errática no cenário independente americano fez com que ele passasse por formações que vão dos Stooges aos experimentalismos dos Ciccone Youth. Mas, em seus trabalhos solo, sempre parecia que o baixista mais influente da música independente americana estava tateando um caminho. Isso até este incrível Hyphenated-Man. O disco é chamado por Watt de sua “terceira ópera”, mas não espere uma narrativa com começo, meio e fim, ou uma interpretação roqueira de algum modelo clássico. Inspirado pelo pintor flamenco do século XV Hyeronimous Bosch, o álbum é composto de 30 pequenos fragmentos musicais (só uma canção tem mais de dois minutos), que soam como se olhássemos para uma tela cheia de personagens caricaturais e situações bizarras. São peças com significados particulares – como os personagens-provérbio de Bosch –, mas que têm um sentido comum entre elas. É nesse painel que Watt recupera muito do poder de síntese do Minutemen (são só três instrumentos!), dialogando com a estética que o grupo construiu nos anos 80 (as canções foram compostas em uma antiga telecaster de D. Boon) e com muito da música que formou a sua geração – de Captain Beefheart e Credence a Wire, Black Flag, Gang of Four. O resultado é esclarecedor para entender um dos personagens que ajudaram a dar forma ao rock como nós o conhecemos hoje. 3POR LAURO MESQUITA

HOUSE OF BALLOONS Independente 2011 Depois de dez anos de retração da gigantesca máquina de marketing das majors, a localização dos gêneros pop está mais forte do que nunca. Mais até que o rap, o R&B talvez seja o último exemplo de música pop global, presente nas rádios de Nova Déli, Seul, Oakland e Niterói. É essa qualidade ubíqua que parece atrair sensibilidades como a de Abel Tesfaye, cantor por trás do projeto canadense The Weeknd. A mixtape de estreia do artista, House of Balloons, flerta com o lado mais melancólico do gênero em um clima de fim-de-festa confuso, dopado e até perigoso. As drogas são pesadas, o sexo é um exercício de estranhamento e poder, e a diversão acabou de se transformar em arrependimento – é a trilha sonora da sua manhã de ressaca moral. Com samples de Beach House e Siouxsie & The Banshees, andamento arrastado e letras como “traga o seu amor, baby, e eu posso trazer a minha vergonha/ traga as drogas, baby, e eu posso trazer a minha dor” (de “Wicked Games”), a mix é quase um trabalho de R&B gótico. Mas então vem “The Morning”, com uma guitarrinha safada de surfista californiano, e amanhecer na balada não parece uma má ideia. 3AMAURI STAMBOROSKI JR.

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+REVIEWS

2GHOSTPOET

2YUCK YUCK Fat Possum 2011 O revival da música produzida na década de 1990 é provavelmente a “previsão” mais sopa no mel que poderia ser proposta a respeito da vida cultural ocidental nos anos 10 – qualquer zé mané pode se gabar de estar por dentro da “regra dos 20 anos” que dita os ciclos dos revivals musicais e que seria responsável por todas as belezas e atrocidades cometidas em nome dos anos 80 durante a primeira década do século XXI. Derivado das teorias que regem o universo da moda, talvez o axioma não se sustente mais com tanta certeza, uma vez que os mesmos anos 00 que reavivaram os 80 também trouxeram o MP3, que legou ao consumidor a escolha de seu revival favorito, ao alcance de qualquer bom programa de partilha de arquivos. Por outro lado, é certo que não faltam esforços para reabilitar a década do grunge no imaginário coletivo, e bandas “menores” no panteão do indie rock do final dos 00 – numa lista que vai do The Pains of Being Pure At Heart ao Deerhunter – fizeram a sua parte nessa cruzada, ajudados especialmente pelas dezenas de reformas de grupos responsáveis por inúmeros clássicos noventistas. Apesar desse contexto, o álbum de estreia do Yuck ainda é uma agradável surpresa, um passeio musical que mais parece uma fita VHS velha com uma edição perdida do Lado B (programa da MTV Brasil dedicado ao indie rock) gravada em 1997. Se a habilidade do grupo britânico em ser um Black Crowes da geração X, emulando luminares como Superchunk, Teenage Fanclub, Yo La Tengo e Elliott Smith é o que chama a atenção do ouvinte no primeiro momento, é o que eles fazem com essas referências que faz a audição do disco seguir até o fim e se repetir infinitamente. As características mais caras ao indie rock da época – a produção lo-fi, a ironia, a obsessão pela guitarra – poderiam ser reproduzidas facilmente por qualquer outro grupo, mas o Yuck consegue se sobressair e afirmar sua identidade apesar das referências aos 90, resgatando aquela fantasmagórica capacidade de evocação emocional que marca os melhores trabalhos de grupos como Guided By Voices e Buffalo Tom. Ouvir as melhores faixas do grupo – da sujeira de “Get Away” à fofura de “Sunday” – é ser transportado diretamente para aquele estado semibeatífico da adolescência em que nada estava bem, mas também nada estava tão mal, até porque tudo estava para acontecer e o tempo ainda não havia passado. É o equivalente sonoro de ser transportado a uma tarde de quarta-feira, matando aula em algum banco de praça com uma cerveja na mão sob o sol de um outono qualquer. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.

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PEANUT BUTTER BLUES AND MELANCHOLY JAM Brownswood Recordings 2011 Obaro Ejimiwe é Ghostpoet, um inglês de 24 anos, de origem nigeriana e dominicana, que deu as caras em 2010 com o EP digital The Sound Of Strangers, um cartão de visitas em que mostrava em quatro faixas um hip-hop experimental e eletrônico. O rapaz chamou a atenção de diversos meios especializados, como The Guardian e URB, além de conquistar o DJ e radialista Gilles Peterson com seu estilo peculiar de rimar/cantar, que remete a uma mistura entre Roots Manuva e Gil Scott-Heron. Após assinar com a Brownswood Recordings (selo de Peterson), o rapaz começou a arquitetar sua estreia, que chegou agora no álbum Peanut Butter Blues And Melancholy Jam. O disco é surpreendente, unindo os diversos estilos da música urbana contemporânea inglesa – desde a semente plantada por Massive Attack e Portishead nos anos 90, que gerou o trip-hop, passando pelo hip-hop, grime, crunk, até os dias atuais do dubstep. As músicas têm diferentes propostas, mas se encadeiam bem: produções sombrias e melancólicas desenhadas pela sua levada spoken word melódica. Ao lado de James Blake, Ghostpoet é uma das grandes novidades inglesas em 2011. 3POR DANIEL TAMENPI


2CORNERSHOP 2BLUBELL “EU SOU DO TEMPO EM QUE A GENTE SE TELEFONAVA” YB Music 2011 Blubell, nome artístico de Bel Garcia, figura entre as novidades da atual cena musical paulista. Dona de uma voz meio analasada, mas muito sensual e doce, ela lançou no começo deste ano o seu segundo disco, Eu Sou do Tempo Em Que A Gente Se Telefonava. O título, que já abre evocando o passado, mantém o tom retrô tanto nos arranjos como no visual. As canções são banhadas de melodias de jazz, blues e bossa-nova, cheias de pianinhos e metais. As letras nonsense são cantadas em francês, português e inglês e levam a mente pra longe. A moça assina quase todas as letras e melodias e conta com os integrantes do grupo de jazz À Deriva para interpretar os arranjos. O álbum coleciona belas canções como “1,2,3,5”, em que Baby do Brasil (sogra de Blubell) canta e colore ainda mais a música. Outra participação muito especial é a de Tulipa Ruiz em “Good Hearted Woman”, uma das melhores canções do disco. “Mão e Luva” e “Triz” também merecem atenção pelos arranjos bem construídos, que se encaixam perfeitamente com a voz da moça. Um álbum sem pretensões, muito bem produzido, e que vai na contramão do que costuma ser feito pelas novas cantoras. Longe do samba ou da vanguarda paulista, Blubell produz um CD com jeito de noite de cabaré.

3POR MARINA MANTOVANINI

CORNERSHOP & THE DOUBLE O GROOVE OF FEAT. BUBBLEY KAUR Ample Play 2011 Dois discos e mais de dez anos depois da grudenta “Brimful of Asha”, os indo-britânicos do Cornershop parecem não conseguir fugir do estigma de one-hit-wonder – mas Cornershop & The Double O Groove Of, gravado com a cantora punjabi Bubbley Kaur, pode ser a garantia da volta do grupo às pistas de dança em tempos de “global”. Dessa vez nada de guitarrinhas ou remixes do Fatboy Slim: Double Groove é o disco mais dançante da música indiana desde a redescoberta de 10 Ragas To a Disco Beat, de Charanjit Singh, em 2010. Em vez de proto-acid-house, a brincadeira aqui reúne breakbeats de tabla, ataques de cítara (em “Double Digit” e “Topknot”) e baixos cavernosos. A voz da estreante Kaur (nascida em Nova Déli e criada em Lancashire) abrilhanta também os momentos menos balançantes do álbum, como “Double Decker Eylashes”, que revisita com estilo o amor da psicodelia sessentista pelo cravo. A melhor faixa, “The 911 Curry”, é um microcosmo do disco: trilha de Bollywood, sintetizadores analógicos, percussão frenética, um drone de cítara escondido no fundo de tudo. Econômico, claro, assobiável, mas ao mesmo tempo soando em contato direto com as tradições musicais indianas, o álbum parece a sua viagem dos sonhos ao subcontinente. É claro que querer resumir o som de um país com um bilhão de pessoas em um único disco é papinho para turista, mas o que importa em Double Groove é o movimento dos seus quadris, e dificilmente eles vão querer ficar parados. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.

2J MASCIS SEVERAL SHADES OF WHY Sub Pop 2011 Mais do que seu talento como instrumentista e compositor, o que sempre me surpreendeu em J Mascis, nos seus mais de 25 anos de carreira, é a completa disparidade entre o que ele é capaz de expressar em suas letras e seu abissal laconismo pessoal. É quase como se ele guardasse os sentimentos que nega revelar ao mundo – aí incluído seu círculo pessoal – para se expor exclusivamente em suas músicas. “Several Shades of Why”, primeiro disco que o artista assina como solo, leva isso a um novo limite. Nas 10 faixas do disco, totalmente acústico a não ser por alguns efeitos fortuitos de guitarra, é como se Mascis defendesse ao mesmo tempo uma busca zen pelo seu direito ao silêncio (“I can’t speak my mind / I can’t even speak / I’m fine”, ele canta em “Very Nervous and Love”) e uma abertura completa com seu semelhante (“Can we be loved / Can we explain / Can we be all these things and hold the pain?”, em “Not Enough”). Trata-se de um disco triste e melancólico, como não poderia deixar de ser no caso de um autor em um dilema aparentemente insolúvel, mas construído com beleza comovente. É como se a transparência cegante de um Robert Smith se harmonizasse ao vigor de um Neil Young, em um equilíbrio dialético histórico. Por força de seu talento exímio com o violão – enriquecido por uma escolha muito feliz de convidados, que inclui Kurt Vile, Ben Bridwell (Band of Horses) e a violinista Sophie Trudeau –, Mascis alcança mais nuances sonoras até do que um Elliott Smith, ainda que não chegue à profundidade lírica deste. Em um cenário com tantos novatos que já nascem com cara de velhos, é no mínimo inspirador ver um veterano ousar tanto e alcançar resultado tão bom. 3POR MATEUS POTUMATI 95


+REVIEWS

1LIVROS

2VÁRIOS AUTORES FIERRO BRASIL Zarabatana Books 2011 Não costumo me guiar por releases ou orelhas de livros, mas quando um álbum como a Fierro Brasil diz que apresentará “o melhor dos quadrinhos argentinos e brasileiros em 160 páginas” e é isso mesmo que você encontra, faz até com que você releve o proibitivo valor sugerido da publicação. Semestral, nos faz lembrar do mercado de HQs de meados dos 80, que permitia aventuras similares nas bancas, a preços convidativos, informando e educando toda uma geração de leitores – provavelmente o público maior dessa antologia hoje. Gênios do quadrinho de nossos hermanos como Horacio Altuna, Max Cachimba, Carlos Trillo, El Tomi, Carlos Nine, Copi e Alberto Breccia convivem com novos e fabulosos autores como Lucas Varela, Salvador Sanz, Gustavo Sala e Kioskerman, por exemplo. Neste primeiro número, o Brasil está bem representado por Santiago, Fabio Zimbres (este devidamente apresentado em matéria na mesma revista), Adão Iturrusgarai, Eloar Guazzelli, Gustavo Duarte e Danilo Beyruth – o mais jovem de todos e responsável pelo bom álbum Bando de Dois, publicação da mesma Zarabatana responsável pela Fierro no Brasil. Para quem não sabe, a Fierro é uma revista importantíssima no mercado argentino, tendo circulado de 1984 a 92 e voltado às bancas em 2006. A se observar certa “tradição” às histórias fantásticas e policiais que deram ótimos frutos por lá e escasseiam por aqui. Usando o mesmo jargão dos releases, como o citado no início, o mínimo que você encontra no livro é a tal da diversão garantida. 3POR VELOT WAMBA

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2CICATRIZES DAVID SMALL Barba Negra 2011 Em poucos momentos uma HQ conseguiu unir poesia e vocação cinematográfica e não soar como um mínimo denominador de ambas as artes. Cicatrizes, de David Small, é um momento privilegiado nesse sentido e, dentro desse subgênero de quadrinhos autobiográficos tão incensados, uma obra a se observar. O álbum transmite, com profusão de sugestivas imagens e frases raras e definitivas, um mundo em eterno estado de desmoronamento. Nisso, lembra tanto a literatura de O’ Henry como os filmes de Gus Van Sant. O drama pessoal vivido por Small não é de fato tão casual: Edward, o pai do autor, certo de que poderia curar os problemas respiratórios de seu filho, o trata com altas doses de radiação, o que possivelmente causou o seu câncer. Daí advém toda uma miríade de questões com as quais nem a família nem o garoto sabem lidar – e nessa inadequação das partes é onde entra o brilho da narrativa gráfica, impondo sequências nas quais a HQ se faz sentir como linguagem e transmite o mundo interior e exterior do narrador. E em um mundo de fatos não discutidos, sublimação e anulação de emoções, o autor criou um todo por fim unificado, amealhando imagens de grande carga emocional que acabam não por nos levar a uma catarse redentora, mas à compreensão de atmosfera tão hostil. O que seria pesadelo ganha ares de contos de fada moderno às avessas, realista, graças ao talento de Small com as imagens, talhado no universo dos livros infantis, onde fez carreira. As imagens ternas do quadrinista dão justamente a noção dessa apreensão mais dilatada e menos simplista que as crianças de fato têm ao lidar com situações difíceis. 3POR VELOT WAMBA


+ENDEREÇOS Agência Möve . move.art.br

Jacob Pinheiro Goldberg . jacobpinheirogoldberg.blogspot.com

Casa de Costumes . casadecostumes.com.br

Nike Sportswear . nikesportswear.com.br

Casa Fora do Eixo . casa.foradoeixo.org.br

Soma . maissoma.com

CemPorCento Skate . cemporcentoskate.uol.com.br

Southern Lord Records . southernlord.com

Converse . converseallstar.com.br

Vhils . alexandrefarto.com

Fotonauta . fotonauta.com.br

Volcom . volcom.com

Galeria Emma Thomas . emmathomas.com.br Itaú Cultural . itaucultural.org.br

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converseallstar.com.br/linhapremium


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