Manuscrita #4

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ParTOBA Mundo Canibal e a antropofagia do riso

DARKO

PC

Viajando no tempo com um coelho falante

SIQUEIRA _offline download da vers達o real e particular

revista mais do raro


A revista Manuscrita tem apenas 4 edições, mas já é bem grandinha...

43.025 leitores 912.783 páginas lidas * Números atualizados em março de 2011. Soma das três primeiras edições e da edição especial Os 100 Melhores Álbuns da Música Brasileira em 2010.

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manifesto S

omos heróis. Todo mundo precisa de heróis. Nos consideramos heróis. Nosso heroísmo passa de geração para geração. Nossos problemas, nossas conquistas. Ressureição, dar a volta por cima, vencer o inimigo. Essas coisas. Ninguém é vilão, pelo menos ninguém quer ser. Nós não nos assumimos como pessoas ruins. Há sempre um porém, um motivo. Um “não foi minha culpa” ou um “mas se não fosse por este motivo, tudo estaria bem”. Pense em você como um vilão. Pense um pouco mais. E se no final das contas, fôssemos exatamente tudo aquilo que negamos ser? E se formos filhos da puta? Traidores, oportunistas, interesseiros, invejosos, raivosos, depravados, infelizes, preconceituosos. Se não fôssemos filhos de Deus? Ninguém olhando por nós. Olho por olho e dente por dente. E se os hipócritas não forem realmente hipócritas? A gente sempre erra. Podemos errar a respeito disso. A respeito de nós mesmos. Imagine você, um maldito confesso. Sem remorso. Apenas sendo quem você é. Um maldito. É tão ruim assim? Afinal de contas, todo mundo parece tão vazio e distante. Menos nós. Nós somos os mártires, o estandarte da nobreza do espírito. E se nós fôssemos os hipócritas? Quanto tempo isso duraria? E se nós fôssemos desistentes, deprimidos, frustrados, sempre querendo algo que não temos e não precisamos? Se nós amamos pouco, se descartamos os outros...

Quem seriam os heróis? Pra onde foi todo mundo? E se a vida não tivesse sentido algum? Apenas existência pura, simples e ao acaso? Ou se o amor não fosse amor e sim reações químicas que seu cérebro faz, somente pra você espalhar seus genes tão pateticamente como fazem as flores com o pólen? E se o tempo passasse tão rápido que você não vê os dias chegarem e nós morremos, em breve e sem nenhuma vida após isso? Nenhum presente, nenhum céu. Preto. Puf. Você se pergunta. O que sobraria? Com ou sem sentido, as coisas continuam. Não depende de ninguém. Um dia você acorda, no outro dia não. Um dia você tem vontade, no outro dia não. Um dia você tenta, no outro desiste. Um dia você desiste, no outro você ganha um novo herói. Um dia você tem vontade, no outro você não acorda. Nunca se sabe. Preto. Puf. Quando todo mundo está ficando louco, menos você, quem é o louco? Quem você escolhe ser, o herói ou o vilão? Você se pergunta. Tem dias que não parecem dias. São dias que vem como trégua. Você senta e não faz nada. E nada. Num dia você sente vontade, no outro dia você quer. Tem dias que não dão trégua. Tem outros que te fazem bem. Mesmo se você for o vilão. PC Siqueira


editorial

E

agora, quem poderá nos defender? Chapolin Colorado faltou, mas temos um time de guerreiros manuscritos em aventuras que nem o narrador da ‘Sessão da Tarde’ pode imaginar. Como você já deve ter percebido, heroísmo é o tema principal desta edição. A Manuscrita número quatro tem vários personagens: Donnie Darko, January Jones, a turma do ‘Cowboy Bebop’ e quatro famosos figurões das telas de ação. Nesse clima instigante, quem ilustra nossa capa é ninguém menos que o herói da Lola. Contudo, o protagonista de todas as próximas páginas é você. Passeamos por façanhas para lhe proporcionar alguns momentos de reflexão. Que tal cravar uma batalha colossal com a balança? Que tal salvar animais indefesos? Que tal melhorar significativamente o dia de alguém com um simples nariz de borracha? Como se fosse um bebê, você poderá deixar de lado várias preocupações, mesmo que isso lhe faça passar vergonha em público. Nada que uma boa e velha ‘Avaiana de Pau’ não resolva. Não deixe de conferir também as belas imagens de Pawel Litwinski e Andreis Costa, nossos colaboradores internacionais. Duelos? Temos três, só que musicais. Não percebeu ainda? Seu herói é você.

Edckson Félix editor


expediente OS MANUSCRITOS Março de 2011

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PLANEJAMENTO EDITORIAL E DIAGRAMAÇÃO Edckson Félix

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o que temos pra hoje? sirva-se: Canibalizando o mau humor

Cinco passos Os heróis dos peludinhos

Sobre fraldas Quem não precisa de um herói? Chandon, açúcar e pimenta

Se eu morrer jovem Aos pseudocults, com carinho

Eu e a balança Bastidores de esporas visionárias

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A bravura indômita do club fighter

9/11 Enredo de um amor improvável

Todas as mulheres são tuas

Alone in the Darko

Legado de protagonistas

Manuscrevendo mundo afora m Entrevista: Angelo Brandini

BBBB

Afinal, Sansão ou Dalila?


colunas

106 Diálogos Notívagos Comigo Mesmo

108 Consultório Sentimental

110 Papo de Mãe

112 Cozinhando com Mademoiselle Bijou

seções

104 Sátiras - Tiras Sem Desenho

114 Duelo de Mixtapes


Canibalizando o

MAU HUMO


por ANDRÉ OLIVEIRA e BIJOU MONTEIRO

A

tire o primeiro Travesseiro de Preda quem nunca desejou ter uma Avaiana de Pau para provocar o ParTOBA alheio. Seguindo essa mesma premissa, acalentávamos o sonho de que o Mundo Canibal soltasse Hadouken no azedume do mundo e, mais ainda, com ajuda manuscrita. Para tal evento, o requisito é que nossos colaboradores já tivessem se metido em episódios inenarráveis. Contudo, ganhou disparado ele, o radioativo, André Oliveira, que, desde pequeno, lutou para sobreviver às suas próprias investidas. Aos cinco anos, o capeta em forma de guri tinha cabelo de cuia e sonhava em ser índio. Logo, ao se ver livre na natureza selvagem do sítio da família, esfregou pimenta Cumarim no corpo inteiro com intuito de ficar vermelho e, segundos depois, rolou no chão (quase que epileticamente) tamanho era o ardor sentido. Não satisfeito, André, ainda na infância, sentou-se sob uma caixa de marimbondos e, obviamente, foi alvejado pelo referido artefato na cabeça. Reza a lenda que o manuscrito inchou feito um baiacu trôpego e só voltou ao normal muito, mas muito tempo depois. Por fim, já que toda

OR


Foto: Marcio Iudice Attie


grande história é composta por uma Santíssima Trindade, André semi-mutilou o próprio pé ao, numa brincadeira de criança e sem a trilha sonora do Molejão, fazer da faca um dardo que, para seu azar, fincou-se acidentalmente em sua carne. Já adiantamos, aliás, que você não repita nenhuma peripécia dessas em casa, especialmente se você for um leitor pueril ou, em caso mais grave, tiver a idade mental de um figo Rami.

Molejo - Brincadeira de Criança

Agora vamos aos fatos: se de um lado do ringue estava André, o campeão manuscrito das Videocassetadas, do outro só poderia estar ele, Ricardo Piologo, o mestre da Biribinha Atômica do Mundo Canibal. Se você vive em Oto Praneta, o básico que devemos contar é que os irmãos Piologo (Rodrigo e Ricardo, respectivamente) queriam trabalhar com animação e humor ácido. Decisão tomada, Rodrigo começou um curso na Fábrica de Quadrinhos e conheceu Rogério Vilela, proprietário da fuzarca e, não obstante, o terceiro pilar a consolidar o Mundo Canibal. O trio ternura gestou e pariu clássicos da animação internética e, de quebra, visionariamente, levou no peito tabus, assuntos proibidos ou terrenos minados. Se isso ainda não lhe parece suficiente, eis a informação chave: além das animações, o Mundo Canibal se reinventa periodicamente com as séries de vídeos ParTOBA e As Pessoas Mais Inteligentemente Burras da Terra, sempre sob a implacável narração de Rodrigo Piologo.

Rodrigo Piologo canta o Hino do Flamengo

Ricardo conversou com a Manuscrita na maciota, diretamente de Indaiatuba, no interior de São Paulo, como quem está de bobeira na street. Me arrisco a dizer que nosso herói vislumbrou em André o muso do ParTOBA e, de quebra, se sentiu em casa ao nos receber. Ainda bem. As inspirações humorísticas do Tresteto Fantástico, segundo Ricardo, são de presente, passado e futuro. As ideias surgem


a qualquer hora e lugar, sendo anotadas imediatamente e, em seguida, colocadas no mural do estúdio, sempre repleto de insights usados na criação de roteiros e animações. Essas ideias aleatórias pipocam em situações cotidianas, sendo que as únicas regras são sempre anotar o insight, torná-lo viável ao Mundo Canibal e, por fim, tentar fazer o que ninguém ainda teve coragem. Pioneiros nas animações cômicas em Flash - e até ministrando cursos a respeito -, o Mundo Canibal entende que boas técnicas ajudam, mas defende que nada supera as grandes ideias. Apenas uma sacada genial é necessária para conceber um roteiro grandioso. Feito isso, não importa se você sabe desenhar bem ou não, ou se sabe mexer em determinado software, já que o a audiência do telespectador será sua. A maioria das pessoas é tão obcecada em aprender as técnicas que, com o passar do tempo, só produz sucessões de roteiros cansativos. Didaticamente, mesmo que não estivéssemos matriculados nos workshops do Mundo Canibal, Ricardo explicou usando

“South Park” como exemplo. O desenho é inteiramente feito de bonecos propositalmente toscos, mas o enredo é tão bem concebido que se esquece facilmente da parte artística da obra. Nosso entrevistado sabe que os politicamente corretos podem ser verdadeiros espíritos de porco, especialmente no que concerne a “patrulha da piada”. Mesmo que os vídeos do Mundo Canibal venham com avisos sobre o conteúdo, sempre aparece quem, com o intuito da polêmica gratuita, sinta-se afrontado pelas animações. Ricardo sabe que humor é algo muito pessoal e, assim sendo, respeita e entende quem não aprecie o seu trabalho. Indigerível, contudo, é quem não gosta e continua a acessar o site ao invés de clicar em qualquer outra opção da internet. Mais uma peculiaridade é quando muita gente gosta de tudo, mas só até sentir-se pessoalmente provocada. O vídeo Testemunha de Jeovagem, onde uma mulher tenta convencer o Treco a virar vegetariano, gerou centenas de e-mails de religiosos indignados, prometendo não mais acompanhar as animações canibalescas. A pergunta é: por que acompanhavam antes?

Fotos: Rodrigo Nakaoka

Ricardo Piologo

Rodrigo Piologo

Rogerio Vilela


Mesmo ciente de que os desenhos “afrontam” pressupostos de várias religiões, a hipocrisia das manifestações sofridas consiste em seus defensores divertirem-se quando a piada resvala nos outros. A melhor resposta é quando pessoas da mesma religião levam na esportiva, defendendo os vídeos nos comentários do portal, entendendo que as animações são para entreter por cinco minutos e não para dar lições de moral. Responsáveis por bordões irresistíveis, os meninos do Mundo Canibal não gostam de martelar no que deu certo. Avaiana de Pau, o maior sucesso do grupo até então, gerou uma série de pedidos ensandecidos por Avaianas de pedra, metal e prego. A prática de ideias inéditas, todavia, é o que nutre os hits sequenciais elaborados por Ricardo e sua trupe. Uma das maiores vantagens do nosso trio pancada é fazer piada com eles mesmos. A família Piologo, por exemplo, além de Corinthiana, é religiosa. A questão não é ter “olho clínico” para captar piadas, mas fazer o que de fato os diverte e, ainda, entretém quem tem gostos parecidos com os do Mundo Canibal. Agradar a todos, além de impossível, é tudo que Ricardo e seus comparsas não querem. Se você se divertiu ao imaginar o André fazendo ParTOBA, prepare seu coração para saber que Ricardo Piologo já sentiu os dissabores de praticar o referido esporte involuntariamente. Certa vez, operado de apendicite numa segunda-feira, o Mr. Laxante ficou uma semana inteira sem ir ao banheiro para fazer o nº 2. Encafifado,

decidiu tomar dois Lacto-Purga de uma vez só, crente de que apenas um comprimido não surtiria efeito. Algum tempo depois, teve início o calvário de nosso super-herói, já que ele ficou no banheiro por duas horas inteiras e, de acordo com suas próprias palavras, tendo a sensação do toba in flames. Após passar a noite em claro, afinal ninguém dorme com o fiofó flamejante, o canibal ainda tinha que acordar cedo para ministrar uma palestra em Belo Horizonte. Chegando lá, Ricardo foi sincero, relatou o corrido e ainda confesso mal conseguir manter-se em pé. Foi o que bastou para que uma plateia inteira quase enfartasse de tanto rir, até porque, nesse ínterim, o pobre super-herói também não conseguia sentar-se. Perto disso, aliás, as pimentas Cumarim até parecem refresco. Suave também foi a despedida de Ricardo Piologo. Além de todo um mundo animado para administrar, ele tem nas mãos a responsabilidade do ParTOBA 7 e, com as bênçãos do Pastor Metralhadora, adiantou - com exclusividade - que dessa vez a espera dos fãs será bem mais curta. Nos despedimos desejando não só que você tenha curtido esse papo maroto, mas que o www.mundocanibal.com.br seja infinitamente clicado por você, até a sua barriga doer de tanto rir. Ah, e também aproveitamos o ensejo para reiterar que, caso o Mundo Canibal precise de um muso inspirador, a Manuscrita aspresentcha André Oliveira como candidato. É repetácule! Todas as marcações em itálico são referências aos bordões, personagens e piadas do Mundo Canibal. Beijo pra família.

Ilustrações: Mundo Canibal/Reprodução


CIN por MARJORY ABULEAC

E

is a situação: cinco passos pra frente e viro o lanche das cinco de cinco tubarões nadando freneticamente em círculos; cinco passos pra trás e um tiro da garrucha de Dom Carlos, meu irmão, estoura meus miolos. Escuto o choro de Catarina, vindo da proa. Um choro sentido, agudo. Ele não me comove. Na verdade, me incomoda. De Dom Carlos, o homem a quem todos nesta capitania chamam de O Benfeitor, diz-se ter vivido até hoje como exemplo de retidão e honradez. Jamais sequer pisou num reles inseto. Nunca ofendeu, mentiu, roubou, cobiçou ou traiu. Qualquer cidadão destas terras daria a própria vida para

protegê-lo. A palavra de Dom Carlos vira lei. Seu desejo se converte em ordem. E eu ousei desafiá-lo, questionar sua virtude. Eu, o irmão bastardo, ousei falar em público sobre os altos impostos, ousei desvelar sua vida nababesca enquanto a miséria seguia servida nos pratos de comida, evidenciei a falta de perspectiva continuamente imposta àqueles ao seu redor somente para tudo permanecer como está. Nenhum dos “crimes” acima me condenou a este momento. Não estou parado agora na beira deste trampolim entre a pólvora e grandes peixes famintos pela ousadia de falar o ‘não dito’.


NCO passos

Fiz pior: seduzi Catarina. De todas as maneiras possíveis e imagináveis. Sordidamente. Calculadamente. Com gosto, com volúpia, com êxtase. Eu seduzi a esposa de meu irmão. Apreciei cada minuto da minha empreitada e muito mais ainda seu resultado. Catarina me ama perdidamente e meus atos calculados geraram um segundo bastardo na família, condição totalmente ignorada por Carlos até poucos dias atrás, quando veio à luz o fedelho e ‘O Benfeitor’ perdeu de vez sua conhecida placidez ao tomar nas mãos aquela criaturinha de cabelos tão escuros e pele cor de oliva. Entendeu de imediato. Enfureceu-se como antes nunca se viu, proferiu todos os palavrões conhecidos, mas jamais ousados e,

junto com eles, minha sentença de morte: gerado no mar, fruto de uma paixão de nosso pai, nobre desbravador tanto de terras quanto de suas nativas, eu deveria morrer no mar, no navio de nosso pai, enquanto Catarina e o bastardinho viveriam para sempre isolados numa ilha distante. Já tinha me conformado com minha sina quando Dom Carlos se permite um último arroubo de compaixão e grita: Eu te perdoo, meu irmão! Joga no mar a garrucha, caminha em minha direção com os braços abertos, sorriso largo e lágrimas nos olhos. Catarina suspira num misto de alívio e júbilo. Por essa eu não esperava! Meu estômago se embrulha de pronto e minha boca se enche de bile. Agora tenho certeza: vou pular!


Os her贸is dos 18

PELUD


por AMANDA SOUZA

DINHOS


E

ra abril de 2006. Meus pais, como de hábito, voltavam de mais um fim de semana em nossa casa no litoral de SP. Entretanto, o fato rotineiro carregava em si, desta vez, um elemento surpresa. Eles chegaram com os celulares cheios de fotos. E não, não eram de paisagens naturais ou pessoas. Eram fotos de uma cadelinha de, no máximo, dois meses. Porte grande, grandes orelhas e um par de tristes olhos verdes capazes de amolecer qualquer coração mais endurecido. Ela tinha sido abandonada naquela mesma semana, e recolhida pela nossa vizinha após passar uma madrugada dentro de uma caixa de sapatos, debaixo de uma tempestade que inundara a cidade. Estava muito fraca, amedrontada, e com uma ferida terrível em seu rabo, que provavelmente fora decepado sem alguma assepsia. Meus pais se mostraram muito sensibilizados e encantados por aquele animalzinho e, após alguns dias de reflexão, descemos a serra dispostos a acolhê-la em nossa casa de praia. A ideia (refutada por mim desde o início, vale frisar) era deixá-la tomar conta da casa, que fica vazia a maior parte do tempo, sendo alimentada e tendo o seu ambiente higienizado pela mesma senhora que a acolheu. Obviamente (e para a minha alegria), a ideia de abandonar um animal sozinho dentro de um quintal enorme foi por água abaixo. Após levarmos Maya (foi com esse nome que a batizamos) ao veterinário, foi constatada uma inflamação em um dos seus ouvidos que requereu cuidados intensos da nossa parte por sete dias. Com o pretexto do tratamento, ela foi trazida para nossa casa e, após quase cinco anos, só volta ao litoral conosco para passear e passar uns dias de folga à beira-mar. Maya se tornou a grande alegria de nossa casa, há um bom tempo habitada apenas por adultos. Trouxe ao lar uma leveza que há muito não existia nele, sufocado por rotinas bastante ortodoxas da vida moderna. Hoje, tem uma casa, cobertor sempre novinho em folha, uma porção de brinquedos, ração da melhor qualidade e muito amor de cinco pessoas muito diferentes, mas que a amam do melhor jeito que podem. E, ao contrário do que possa parecer, não pensamos que foi Maya quem tirou a sorte grande de ter sido salva das ruas: fomos nós que tivemos a sorte de tê-la recebido como presente de vida. Maya, infelizmente (apesar de sua história ter tido um final feliz), foi mais uma a engrossar as estatísticas de animais abandonados diariamente no país. A causa é complexa e vem merecendo a atenção de ONGs que se multiplicam a todo instante e, até mesmo, de figuras

Maya, já adulta: uma sobrevivente que hoje é confundida com um cão de raça


públicas que se engajam em prol da questão. Simultaneamente, crescem as campanhas incentivando a adoção dos animais que não têm um lar, e condenando a compra de cães e gatos de raça, comercializados, muitas vezes, em condições bastante questionáveis, por pessoas que passam longe do perfil clássico dos amantes dos animais.

Muitas são as razões que fazem um animal chegar às ruas. “As pessoas os abandonam porque acabam pegando-os ou comprando-os por impulso. Por essa razão, é muito mais comum ver cães adultos do que filhotes abandonados nas ruas. Esses, geralmente estão lá porque já nasceram sem lar, e não porque foram abandonados. Quando pequeninos, são uma graça: fofinhos e lindinhos. Porém, muitas vezes esquece-se de que eles fazem cocô, xixi, destroem a casa e geram despesas com alimentação, higiene e saúde. Muitas vezes, quem tem que arcar com elas nem é quem pegou o animal e, por essa razão, muitos deles acabam soltos à própria sorte nas ruas”, diz Valéria Cristina, voluntária da Cão sem Dono, ONG paulista que abriga, ao todo, quase 300 cães e existe desde 2006.

Feijão, Cacá e a esposa, Emily; Muito inteligente, o cão já responde a comandos de adestramento de seu tutor

O perfil das pessoas que adotam animais não possui uma uniformidade. O analista de testes Cacá Soares, de São Caetano do Sul, foi procurar um companheirinho em um abrigo para fazer companhia a ele e à esposa. Há sete meses é o tutor de Feijão, um cão SRD (sigla técnica para a expressão “sem raça definida”) “agitado, ansioso, carinhoso e companheiro”, segundo seu dono. “Quando cheguei ao abrigo, ele estava me esperando praticamente pendurado no pescoço da responsável, no nó do cachecol dela. Mal dava para ver os olhinhos dele. A mãe e os irmãozinhos já haviam sido adotados, e ele tinha sobrado ali. Tem tantos animais que precisam de um lar e é muito gostosa a sensação de proporcionar isso a um bichinho. E ainda tem a graça de você não saber como ele vai ficar quando crescer, que tamanho vai ficar, qual será o comportamento dele. Pode parecer brincadeira, mas parece mais um pedaço de mim. Quando penso nele ou quando faço coisas pra ele, me sinto feliz”. A universitária Isis Rodrigues, do Rio de Janeiro, é outra que foi buscar um animalzinho em um abrigo. Depois de um longo tempo sem animais de estimação, há pouco mais de uma semana é tutora de Floquinho, um poodle de 4 anos. “Comecei a buscar na internet. Cheguei a um site e lá vi a história do Floquinho. Me sensibilizei.


Um cãozinho tão pequeno que havia sido tão maltratado e depois abandonado pela família. Não pensei duas vezes. Entrei em contato com a senhora que cuidava dele. Em três dias fechamos a negociação. Apesar de estar aqui há pouco tempo, não imagino mais a rotina da casa sem ele”. Há também quem tenha adotado um animal por uma daquelas artimanhas que o destino nos prepara. A cantora Andressa Dantas, de Santo André (SP), teve uma surpresa dessas há poucos meses. Enquanto preparava a papelada para cumprir a burocracia de adoção de um gato preto de olhos verdes, um dia, quando chegava em casa, um filhotinho felino (branco, de olhos azuis), entrou debaixo do seu carro. “Abri a porta para ver se estava tudo bem e ele correu pro meu colo e lá ficou”. Há oito O bichano morre de ciúmes de Andressa meses, ela cuida de Gato, que se tornou sua grande companhia. “Ele é bagunceiro, meio porblemas estruturais e financeiros. co às vezes, mas é meu companheiro. É quem me dá Juntas, elas conseguem apenas amor incondicional. É quem me faz rir das palhaçadas abrigar uma parte ínfima da popuque ele apronta, quem me da beijinho de boa noite... é lação animal necessitada. Para que uma vidinha que depende dos meus cuidados”. os serviços funcionem com o mínimo de dignidade, são necessários Já a estudante Eliza Cardoso, de Botucatu (SP), tamvoluntários que tenham amor aos bém se encantou por um felino. Porém, no caso dela, animais, bem como veterinários o animal já era adulto. Gatão ficou com ela por apenas dispostos a doar os seus serviços, um ano e meio, mas foi o suficiente para marcar a históalém da doação de ração e reméria de sua família: “Quando eu o levei para casa, minha dios básicos. A Cão Sem Dono foi mãe disse que ele iria embora, porque já era velho e iria fundada por Rafael Miranda, que procurar a casa antiga. Que nada! Mal saía de dentro tinha o sonho de tirar da rua o de casa, só para brincar na horta. Nós sempre achamos maior número de animais e darque ele deve ter sido agredido pelos antigos donos ou lhes assistência para que pudesviveu numa casa onde havia algum tipo de agressão sem ser reintegrados a uma família doméstica, porque certa vez meu pai foi tirar o cinto que os amasse e lhes desse condida calça na frente do gato, e este saiu correndo em disções decentes de vida. Hoje, conta parada, tremendo de medo. Quando ele foi embora de com cerca de 20 voluntários, discasa, para morrer, meu pai chorou extremamente, portribuídos entre as feiras de adoção, que o Gatão ficava fazendo companhia a ele quando eu divulgação nas redes sociais, bem e minha mãe saíamos cedo. Meu pai se deitava no sofá como nos trabalhos de limpeza dos e, logo em seguida, o gato subia e dormia nos braços do canis, banho e alimentação dos bimeu pai. Era um amiguinho muito especial.” chos. Além disso, também sobrevive através do “apadrinhamento” de Apesar do trabalho louvável, as instituições que seus animais: o internauta escolhe acolhem animais abandonados, em quase sua unium deles através do site da instituiversalidade, passam constantemente por graves pro-


ção, e se compromete a lhe dar uma ajuda financeira mensal, que custeia seus gastos (ou parte deles) com ração e cuidados médicos. “Ao adotar um animal, você terá muito trabalho, vai limpar muito xixi e cocô feito fora do lugar, vai ter que brincar com ele até que se canse. Vai ter que disciplinálo com paciência e amor para aceitar todas as vezes que ele fizer algo que você não gostaria que ele fizesse”, diz Cacá. Porém, todo o esforço e disciplina compensam de olhos fechados: “Em troca de todo esse trabalhão, você vai ganhar em troca um companheiro que vai estar sempre ao seu lado pronto pro que der e vier”. Andressa concorda: “Animal não é um brinquedo que você usa por uns dias e depois aposenta num canto, ele é uma vida que a partir do momento em que você o escolheu e ele o aceitou, depende inteiramente de você. E não custa nada dar o melhor de nós por eles, afinal, tudo o que eles sabem fazer é nos amar! É apenas isso que eles querem de nós, amor”. Maya, Feijão, Floquinho, Gato e Gatão foram números felizes dentro de uma estatística dura. Como eles, vários peludinhos também merecem e aguardam por um lar. Seja nas instituições, seja nas ruas. Esperando por um tutor que não procure por pedigree, beleza ou elegância e sim por amor incondicional. E, acima de tudo, por uma política pública que passe a pensar neles como uma parte da sociedade que também precisa de atenção e cuidados especiais. Adotar, além de ser um ato de amor, é também uma demonstração clara de cidadania: é uma decisão que interfere na população dos animais de rua que, além de viverem em condições desumanas e batalharem a todo minuto pela sobrevivência, ainda representam um risco à saúde pública quando em condições precárias de higiene e saúde.

Para ajudar: www.caosemdono.com.br


Sobre

FRALDAS


por EDCKSON FÉLIX

S

e ainda fôssemos bebês, a hora do aperto (isso mesmo, aquela de praticar o número dois) não se caracterizaria como uma urgência. Enquanto Dona Matilda corre desesperada pela casa para chegar ao banheiro e não borrar as calças, o pequeno Artur finge que nada de mais acontece e libera o fedido na fralda. Tudo bem, ele não pode sair engatinhando até o peniquinho, mas a questão é que, no seu caso, não há um constrangimento com a sujeira. Com o passar dos anos, ao sabermos do primata gigante que sempre é pago com uma atitude ‘frouxa’, evitamos ao máximo defecar fora do vaso sanitário, principalmente em lugares públicos. Quando o intestino cisma em não funcionar corretamente, salve-se quem puder! É uma verdadeira maratona para evacuar... Nem num incêndio se corre tanto em busca da saída de emergência. Pensando bem, não é só nesse ponto que nossas intimidações diferem das dos pequenos. Em bilhares de situações, nos pegamos a pensar em como seria bom voltar a ser criança e não se preocupar com isso ou com aquilo. O que dizer então da liberdade de se expressar de forma sincera? Quantas vezes nos vem à ponta da língua aquela repreensão pelo mau hálito de alguém? Aos quatro anos de idade, seria simples assim: “Sua boca fede”. Que tal uma troca de preocupações? Em vez de passar horas contando dinheiro e traçando valores nos papéis de negócios, passar horas tentando montar o castelo mais alto com as pecinhas de brinquedo. Talvez os loucos experimentem e aproveitem bem essas viagens aos velhos tempos, aos tempos em que éramos novos. Rir do nada, chorar do nada, querer o nada, não querer o nada. Como é bom enganar aquela baranga magrela que fica na sua frente fazendo biquinho e dizendo “gu-gu-dadá”. Coitada dela, que pensa que a risadinha é por causa da palhaçada desengonçada... É pelas feições cômicas. Mas, se a sorte da qualidade de vida não estiver ao nosso favor, teremos um nostálgico destino. Provavelmente, daqui a alguns anos, Dona Matilda não vai mais ligar para o cocozinho que escapuliu. Sua consciência estará bem protegida com uma fralda.

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Quem

Nテグ

precisa de um herテウi?


por MAÇAO FILHO

—O

i, irmãozão - disse Gustavo, sorrindo, como se tudo estivesse bem. Só que não estava.

— Oi, maninho. - Minha voz, claramente, não soando tão convincente e tranquilizante quanto a dele. Não queria que o guri estivesse ali e ele sabia disso. — Tudo certo contigo, campeão? — Tudo tranquilo. Estudando, dando uma força pra mãe em casa e ajudando o pai no porto. — Já não disse pra tu parar de ir no porto? O velho sabe se cuidar. Concentra na faculdade. — Eu sei, eu sei. Mas não precisa se preocupar. Tô indo bem, de verdade. — Passou em tudo? Com notas boas? — Sim, senhor! - O rosto sério, enquanto fazia continência. — Tudo. Com notas boas, senhor! — Bom mesmo, soldado. - E nós dois rimos. Eu já tinha dito que se ele fosse mal nas notas, podia esquecer a ideia de vir me visitar. E ele sabia que não era só da boca pra fora. — Você não mudou nada, sabia? Continua o mesmo de sempre. - Ele sorriu. Eu não. — Tá de brincadeira? Olha bem pra minha cara. Nem eu me reconheço mais - respondi, sem pensar. Um tom agressivo, amargo, próprio de alguém com cicatrizes e fantasmas demais. Um tom que alguém como meu irmão não merecia ouvir. E eu merecia um tiro na testa. — Desculpa, não foi por mal. — Eu sei que não foi. - E eu sabia mesmo. E saber disso doía. — Eu que peço desculpas. É por essas coisas que já te disse pra não vir aqui. Não te faz nenhum bem. Cansei de explicar. — Para de ser besta, Bernardo. Ninguém é obrigado a estar de bom humor todo dia. Muito menos você. É claro que me faz bem te ver. Qual o teu problema? Cê acha que você não faz falta? Que eu não queria que você estivesse lá com a gente em casa?


— Bom, mas eu não tô, certo? E não vou estar tão cedo, lembra? Então para de agir como se eu fosse voltar contigo a cada vez que tu aparece! Acorda pra vida, Gustavo! Eu não sou boa companhia pra você, cara. Ou tu não sacou isso ainda? O fato de eu estar aqui não te diz nada? — Do que é que cê tá falando? Já parou pra se ouvir? Nunca ouvi tanta idiotice junta. — É o que acontece quando se tem muito tempo livre pra pensar. É a única vantagem de estar num presídio. E se não quer ouvir minhas idiotices, vá embora logo! Ninguém obriga você a ficar. Vou pedir pra não te deixarem entrar mais. Satisfeito? — Cara, para com isso. - Os olhos, sempre tão tranquilos, cheios de lágrimas. — Para de ficar se torturando desse jeito! Não é justo! Você não é um monstro, Bernardo! — Ah, não? E por que tu acha que eu tô aqui? Eu já matei gente, lembra? Caras legais não matam pessoas. Que parte de ‘eu sou um assassino’ tu não conseguiu entender até hoje? — Você é que não conseguiu entender até hoje, cara. — Não consegui entender o quê, Gustavo? — Que você é muito mais do que os erros que cometeu. Quem foi que fez o pai se tocar que tinha que parar com a bebida? Quem segurou a barra quando a gente descobriu que ele estava soterrado em dívida de jogo? Quem sempre cuidou da mãe quando ela ficou doente? Quem sempre se virou pra pagar todas as contas quando a situação apertava, porque não queria que eu trabalhasse em vez de estudar? Você não se lembra de nada disso, irmão?

— Claro que eu lembro. Mas era só minha obrigação. Isso não muda o que eu fiz, não muda o que eu sou... De que adianta eu ter feito tudo isso se agora eu não posso fazer nada? — Porra, isso faz toda a diferença do mundo! Errar não tira o mérito de todas as vezes em que você foi o único que conseguiu acertar as coisas. Cê salvou nossa família quantas vezes? Você salvou todo mundo, irmão. Sempre que a gente precisou, cê tava ali. Enfia isso na cabeça. — Eu fiz o que eu tinha que fazer. Qualquer um no meu lugar faria a mesma coisa. — Isso é mentira e você sabe disso. Ninguém faria as coisas que você fez. Porque ninguém teria a tua coragem de lutar pela nossa família sem desistir dela. Porque todo mundo quer ser salvo, irmão. Ninguém quer ser o herói. E você, que se acha um monstro, é o mais próximo de um herói que eu vou conhecer nessa vida. Entende? — Um herói não estaria na prisão agora. Um herói não mataria pessoas, Bernardo. — Ter matado aquelas pessoas não te faz menos herói. Teus erros só tão aí pra provar que, além de herói, você é humano e imperfeito. E merece a compaixão e a compreensão das pessoas tanto quanto qualquer outra pessoa que errou, se arrependeu e se dispõe a pagar pelos próprios deslizes, pelo tempo que necessário for. Você já tá pagando sua dívida há tempo demais, irmão. Depois de todos esses anos, a culpa é a única coisa em você que te faz um monstro. No resto todo, você é só o meu irmão mais velho e o meu herói. Agora será que dá pra parar de ser idiota e vir dar um abraço aqui no seu irmãozinho mais novo?


AÇÚC


Chandon,

CAR e pimenta por CRISTIANE SITA

S

entou-se confortavelmente na poltrona do terraço. A casa ainda estava confusa. Sua chegada era recente. Olhou os girassóis na colina toscana e abriu o Shiraz. Não abriria um Chianti para respeitar a localização. Não abriria Champagne para respeitar sua casta. De resto, Champagne a fortaleceria e neste momento, ela não seria a heroína. Chandon era como lhe chamavam desde a mais tenra idade. Os amigos adoravam vê-la bebendo o líquido na pequena garrafa, pelo canudinho. Ela achava graça das piadas. Mal sabiam o que o líquido lhe proporcionava. Para dizer a exata verdade, por muito tempo, nem ela mesma o sabia. Acomodou-se mais largadamente e sorveu um gole do vinho. Seco, rasgando a alma. Hoje, finalmente lhe permitiria as lágrimas. Resolveu recordar


o compêndio da sua própria vida e sabia que sentiria alegria e dor. Chamou o casal de golden retriever, Perri (de D. Perrignon) e Cliq (de Veuve Cliquot) e deixou-se embalar pela mente entorpecida. Ela tinha nascido nos trópicos. A mãe, ciente dos poderes da pequena, achou mais fácil a aceitação daquela vida por gente sabidamente calorosa. Descendia de uma pequena casta francesa do próprio Vale do Champagne. O pai, alheio aos poderes de mãe e filha, italiano carcamano, de início, não se importou com a mudança, mas não suportava a filha. Cresceu cercada basicamente do amor maternal, cozinha farta e artes por todos os lados. De sensibilidade extremada, a criança era puramente bela, falante e desinibida. Preocupava a família, mas não sua mãe, ela adivinhar o bem e o mal por trás dos rostos e nunca sentir dor física. Podia se machucar severamente que as lágrimas não vinham, ainda que ela estivesse ciente da dor. No entanto, qualquer machucado alheio a fazia respirar em falso. Chandon nasceu para sentir a dor alheia e curá-la a seu modo. De pequena artista que desviava a atenção das dores alheias para a música, a dança ou o circo de pantomimas infantis, Chandon virou chef du cuisine. Cozinhava por prazer para os amigos e sua mesa era acolhedora como seu sorriso e seus braços. Antes que alguém pudesse reclamar de sua dor, Chandon a adivinhava e falava as palavras, doces ou severas, que fossem necessárias. E como se as palavras não fossem o bastante, servia um prato fumegante ou um doce feito na hora. Fez disso o ganha-pão, não antevendo alternativas. Enquanto comia, o degustador acreditava que o curativo mágico vinha do conforto alimentício. Não vinha. Vinha das palavras e da aura, invisivelmente azul, com as quais Chandon envolvia a dor alheia. Intuitivamente, descobriu sua medicina paliativa: Champagne. Ao beber o cristal borbulhante, a dor alheia não lhe dilacerava o peito e não lhe embebedava. Por esta veia quase vidente, nossa heroína era mal interpretada milhares de vezes, e, nascida em outra época, seria levada aos tribunais de Torquemada. Hoje, apenas sofria um certo ar desconfiado daqueles de alma maldosa. Como que para equilibrar sua generosidade, a moça não sentia dores físicas próprias, mas acabava por estar sempre a mercê da dor alheia que lhe queimava os vasos sanguíneos. Chandon se permitia – talvez sequer percebesse – aturar toda espécie de desvario de seu próximo, sempre justificada em sua alma, por uma compreensão quase inatingível para a gama de mortais comuns que vagueia pelas ruas. Uma série de envolvimentos


amorosos tristonhos e traições de amizade lhe povoavam a memória. Poucas exceções ainda habitavam seu coração transparente e por uma delas estava em solo italiano. Iria procurá-lo até o encontro e caso não o achasse, sempre haveria sua cozinha, seus cachorros e seus amigos escolhidos. E Champagne. Sim, sempre. Passou grande parte de sua vida, sorrindo e fazendo o que era seu heroísmo: amar toda espécie de gente e arrancar a dor deles. Em beijos. Em garfadas. Em broncas. Em sonhos. Em abraços. Até quando encontrou seu arqui-inimigo. Todo herói tem o seu. O erro dela foi acreditar que seria protegida por alguém, quando sua missão era proteger. Se apaixonou pelo inimigo. Ele a envolveu em brumas cintilantes e lhe afastou sorrateiramente de sua defesa: gente e Champagne. As panelas não fumegavam, seu amor gostava era de salada de tomates. Não havia mais doces, ele estava sempre em regime. Não havia mais amigos, ele era ciumento. Sobre as dores alheias, só se falava das dele. Só o casal de cachorros lhe suportava ver definhar, mais pela lealdade canina que por qualquer outro que o valha. Ele era sua kriptonita e houve época em que, consciente da erosão de sua alma e corpo, pensou não poder se libertar. Encontrou, então, uma estudiosa de longos cabelos brancos, que lhe contou que ela era heroína em corpo humano. Instruiu-lhe a fuga. Ensinou-lhe o calcanhar de Aquiles do infeliz vampiro. Contou-lhe sua missão. Confiou o segredo protetivo do Champagne. Chandon fugiu. Vagou por lugares inóspitos. Decaiu fisicamente. Cansou-se. Por fim, maltrapilha, exausta, faminta de gente, sedenta, sua alma voltou lentamente. Encontrou quem de fato era raro como ela. Brindou. Champagne.

Voltou a sorrir, a cozinhar e a amar gente. Gente de toda sorte. Voltou a enviar pequenos raios azuis invisíveis que envolviam, agora, tão somente os escolhidos. Era heroína elitista. Atendia o grito surdo de uma estirpe sofrida e rara: a de gente leal. Confundia-se ainda no diagnóstico de quem era verdadeiro. Mas estava mais alerta e forte que nunca. A dor voltou a não lhe abalar e enxergava a angústia e a alegria humana a quilômetros. Retornou a ser o que era: Chandon. Nossa heroína atende via telefone, fax, internet, sonho, sinal de fumaça, em casa, na rua, no metrô. Alguns dos agraciados nunca mais a vêem, outros moram ao lado da alma dela como se fossem irmãos. Alguns poucos flertam perigosamente com a sorte, indo e vindo de sua vida. A moçoila silencia ou ri copiosamente porque sabe que eles virão. E de todos os que foram tocados pela aura azul, Chandon sabe que terá que resgatar uns poucos. Um destes está lá perto dela, em algum lugar neste sol toscano. Chandon sabe disso. Assim como sabe que existe um Deus lá em cima que tudo vê e que decide quem comerá risotto e tomará Champagne com ela. Estejam dormindo em apartamentos desarrumados, ou com a alma povoada de conflitos inconfessáveis, os que são de Chandon a ela virão. Por isso, agora, ela que já chorou, sorri para os girassóis. Precisa partir em sua nova missão. Chama os seus cães pra perto e vai buscar uma garrafa imponente de bolinhas de cristal. Brindará no auge da sua tranqüilidade e paz à natureza que lhe envolve. Beberá uma única taça. Por proteção. Por amor. Sorri e parte. Etérea e sorridente para a única missão que lhe cabe: dar felicidade e amor a quem de direito. Buona sera, bambini.


Se eu morrer

JOVEM Imagem montada por Patrícia Coelho em www.polyvore.com

“Se eu morrer muito novo, oiçam isto: Nunca fui senão uma criança que brincava. Fui gentio como o sol e a água, De uma religião universal que só os homens não têm. Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma, Nem procurei achar nada, Nem achei que houvesse mais explicação Que a palavra explicação não ter sentido nenhum”

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


por PATRÍCIA COELHO

D

o outro lado do balcão, a cliente abriu a bolsa, sorrindo. O pequeno refletor sobre o caixa fez brilhara superfície douradaque a elegante senhora ia puxando comedidamente ali de dentro, sem desviar os olhos do rapaz que, inocente e sozinho em sua solicitude, imprimia a nota fiscal da compra. A loja já estava fechada. Ele tinha por hábito liberar seus funcionários primeiro, para depois conferir o movimento do dia e se tudo estava em perfeita ordem para o turno da manhã. A cliente bateu no vidro e disse que precisava de um presente de última hora. Ela parecia tão frágil e aflita; ele não pôde dizer não. A pistola dourada que o rapaz não viu sair da bolsa, tão absorto em seu trabalho estava, foi descarregada nele. A senhora descalçou as luvas de pelica preta, depois de recolher todo o dinheiro do caixa ainda aberto e empurrar o rapaz com os pés, a fim de que não pudesse ser visto por quem olhasse pela vitrine. Para sua aparência delicada, ela exibia uma força descomunal.

O rapaz era excepcional, exemplo de superação. Medalhista em diversos esportes, orador da sua turma, escoteiro nível 3; nunca hesitou em fazer o que fosse preciso para quem quer que tivesse uma precisão. Não achava certo pensar em necessidades pessoais quando alguém ao redor dependia dele. Foi assim até o fim, abrindo mão das escolhas pessoais, em prol de algo que lhe parecesse mais urgente. A vil senhora, vestindo peruca ruiva e óculos escuros, ocupante solitária de um bancona nave colateral, foi levantando mansa e silenciosamente, antes que os demais presentes dissessem o último “amém”. Usava a mesma bolsa da noite anterior, na simulação do assalto. “Ele é muito mais frio do que eu pensava... não vir ao enterro do próprio filho, onde já se viu?”, foi pensando rumo à saída. Estava claro que ela nada sabia da doença do velho.

O padre, tio dele, foi chamado para rezar a missa de corpo presente. A mãe não conseguiu terminar o discurso e deixou o altar. Não havia palavra que pudesse explicar a pungência de sua dor. O filho, arrimo de família desde que o pai adoecera, jazia. A namorada de infância fechou o cerimonial, lembrando a generosidade e coragem do jovem morto.

A mãe, que abandonara o altar, deixava o lavatório naquele mesmo instante. Quem estivesse dentro da igreja não as veria ali, ocultas por uma das grossas pilastras do átrio da entrada principal. Rosto inchado de choro, a mãe não quis acreditar em seus olhos úmidos, piscando-os com força. A senhora diante dela, ex-noiva de seu marido, aquela que ele renunciou para casar-se com a outra, que era ela. Todos a julgavam morta, tantos anos estivera desaparecida.

Movido pelas circunstâncias, o rapaz foi batalhar emprego, sendo promovido em poucos meses à gerência da loja de presentes, na qual entrara como vendedor temporário; conciliando faculdade de medicina e a penosa rotina do tratamento do pai. “Uma pessoa muito judiada pela vida só pode resultar em duas coisas: assassino ou herói”, lhe dizia o velho, em seus momentos de lucidez, que se tornavam cada vez mais raros.

“Eu disse a ele que estava grávida, ainda assim ele me deixou”, a senhora sussurrava, encarando sua rival. “Eu tive que entregar o bebê para que fosse adotado, porque não podia cuidar dele sozinha”, cuspia sobre a outra seu ódio e veneno recolhidos anos a fio. “Agora você sabe o que eu senti ao perder a minha criança”. A mãe, então, no limite de suas forças, disse a ela: “sim, eu sei, porque fui eu que a adotei”.


Aos

PSEUDOC por HUGO MENDONÇA

H

eróis que devoram livros e mais livros. Dostoievski, Tolstoi, Clarice Lispector, Franz Kafka, etc. Gostam de entrar nas redes sociais para citar uma passagem, fazer um comentário com uma propriedade que, no fundo, tem como alvo diminuir outras pessoas. Nesta época, início de ano, eles saem de suas bibliotecas empoeiradas, com a tez pálida por terem passado horas e horas debruçados sobre páginas amareladas que continham textos densos, com vocábulos até então desconhecidos pelo brasileiro médio. Mas vocês devem estar se perguntando: por que, Hugo, esses baluartes do conhecimento aparecem mais vividamente no início de cada ano? Eu vos respondo: porque é, também, no início de cada ano, que outros heróis - os do confinamento, os do pay-per-view, os “da casa mais vigiada do Brasil” - vem à tona, com seus corpos sarados, pouco conhecimento do vernáculo, re-


CULTS,

com carinho

petições de gírias e palavrões que causam náusea e ojeriza em nossos guardiões da sabedoria. Com o advento do Big Brother Brasil, surgiram também as pessoas mais cultas (ou que assim se acham) da história da humanidade. Parafraseando nosso ex-presidente Lula, “nunca antes na história desse país” se viu um mar tão grande de gente se dedicando à leitura e ao comentário de obras clássicas, utilizando-se da crítica pejorativa aos brasileiros médios que se divertem com o querido Pedro Bial, outrora repórter responsável pela cobertura da queda do muro de Berlim (citando somente a reportagem que mais me marcou), destilando seus discursos cheios de poesia e, confesso eu, deveras chatos, a cada terça-feira de eliminação. Porém, nossos cosplayers de Atena não se satisfazem apenas em demonstrar conhecimento, que, aliás, na minha humilde opinião, nada mais é do que passagens rápidas na Wikipédia


entre uma série de vampiro e uma tentativa de se atualizar sobre a política brasileira, assistindo ao CQC. Eles desejam apenas diminuir os brasileiros médios que gostam mesmo é de ver o circo pegar fogo diante da TV, observando a reação de pessoas que estão postas em uma situação totalmente adversa em relação à que se encontram no dia a dia. Nossos futuros membros da Academia Brasileira de Letras têm como máxima a medição da inteligência alheia da seguinte maneira: quem assiste a BBB é inculto e deixase levar por um programa baixo e sem valor algum; quem não assiste tem sua esperteza elevada à enésima potência (mesmo que nunca tenham tocado um livro fora da época de vestibular e sua leitura diária seja a capa de um jornal de 25 centavos). Eu me incluo em meio aos brasileiros médios que dão “uma espiadinha” todos os dias após a novela e mudam rapidamente para o canal da TV a cabo, aquele que passa mais trinta minutos do reality ao vivo. Gloriosos 30 minutos, aliás. Faço parte dessa audiência que fica em polvorosa a cada prova do líder, paredão, briga ou princípio de conflito, seja por excesso de álcool ou convivência forçada. E sabe o que é mais engraçado? A cada minuto que passo vendo o programa, não sinto nenhuma alteração em minha inteligência (como, várias vezes, afirmam nossos amigos concorrentes a Pullitzers e Nobéis). Sinto que nossos gênios, de tanto despender energia sob “Paulos Coelhos” da vida, acabam se tornando pessoas afetadas. Mas, novamente, essa é apenas a minha opinião. Defenderei sempre a ideia de que tudo na vida tem seu valor, porém, esse mesmo valor não é intrínseco a nada, e sim, diretamente ligado à maneira pela qual se observam as coisas.


ARTE: GABI MARTINS


E

la me persegue desde que tenho consciência da minha existência. Sempre me surpreendeu em locais diversos, se apresentando sob diversas formas: analógica, digital, preta, azul, branca, vermelha. Algumas, às vezes, eram meio desreguladinhas como a gente: ora para mais, ora para menos. Desde os meus dez anos, sou obrigada a encará-la uma vez ao mês e devo confessar que, quanto mais próxima fico desse dia, mais a ansiedade (do mal) me aflige. Durante os primeiros anos de pósadolescência, que chegaram junto com as primeiras responsabilidades da vida adulta, optei por ignorá-la. Eram muitas as cobranças para eu ainda ter de suportar uma entidade altamente censora adentrando a minha consciência de forma tão latente.

Mas não, não adianta. Ela sempre retorna. E parece que, a cada dia, mais feroz e impaciente. Ultimamente, inclusive ligou a mim um invisível fio descascado, que me dá um choque de consciência a cada vez que olho no espelho partes rotundas do meu corpo. Minha relação com a balança se aproxima muito mais da Guerra Fria do que de qualquer conflito armado já presenciado no mundo. Ela não me fere com armas de fogo, não domina meu território e nem bombardeia a minha cidade. Mas passou um bom tempo de meus 25 anos tentando oprimir aquilo que sou de verdade e, confesso: tem horas em que ela vence, e de lavada. A balança me fez, desde garota, acreditar que eu era diferente das outras meninas e que, por isso, tinha que me conformar com

EU

e a balança 40

por AMANDA SOUZA


o fato de que jamais o menino mais bonito da turma iria querer me namorar. Por causa dela, tomei (e ainda tomo) vários pés na bunda e muitas vezes ainda fico triste e acho que sou merecedora deles. Daí, a balança também me ensinou que, se quisesse me destacar na selva habitada em sua maioria por aqueles que ela afaga, eu teria que desenvolver meu humor e meu intelecto. E cá estou eu.

me mostrar ofendida em razão delas, ainda costumo ser tachada de “chata”, “amarga” ou “desprovida de espírito esportivo”. E também aprendi que é mais comum do que se pensa ver pessoas que bradam inflamadamente contra o preconceito racial ou religioso terem atitudes bastante duvidosas com relação a quem está acima do peso, exalando incoerência por seus poros (nem sempre tão) magros.

Mas a balança tem uma fome muito maior que a minha, e nunca, por essa razão, me parece satisfeita. Por culpa dela, em muitos momentos não me sinto parte daquilo que, nos dias atuais, se convencionou chamar de “sociedade moderna”: raramente consigo comprar roupas em lojas “da moda”; o assento do avião se mostra bastante apertado e nunca, mas nunca mesmo me vejo espelhada nas capas e nos editoriais de moda das revistas femininas.

Em alguns momentos em que o mundo me fere, eu jogo o ônus na balança, pois acho que ela tem que ter de volta em algum momento toda a neurose que deposita sobre meu ego. Todavia, logo em seguida me lembro de que esta balança não tem dois pratos e não sabe equilibrar conceitos e padrões. Ela não sabe pensar e sempre despenca para o meu lado, sem direito a questionamentos.

Por culpa da balança, descobri uma sociedade mais hipócrita e preconceituosa do que ela já se mostra desde que o mundo é mundo. Além dos apelidos ofensivos e dos olhares aviltantes, há também o lado oposto, exibido através de eufemismos e apelidinhos aparentemente simpáticos, mas que escondem uma profunda aversão a toda e qualquer pessoa que vista um manequim maior que 46. A balança também, muitas vezes, me faz ouvir piadas que são feitas obviamente com o propósito de rir, mas demonstram um profundo mau gosto. E se eu, por acaso, ousar refutá-las ou

Venho deixar aqui registrado, cara balança, que não, não fui eu quem me doutrinei a não saber conviver com você. Foi você quem sempre tornou nossa relação difícil e intempestiva. Você, perante o mundo, tem um comportamento bastante subversivo, e sabe como angariar muito mais simpatizantes à sua causa do que eu à minha própria defesa. Só queria na verdade, balança, que você parasse de se colocar entre mim e o espelho toda vez que paro diante dele. Mas, como não é possível, resolvi que por hoje vou te esquecer. Até você puxar meu pé mais uma vez e tudo começar. De novo.



Bastidores de

ESPORAS visionárias por JUAREZ CRUZ

I

magine uma mistura de aventura, ficção cientifica, kung fu, trilha sonora de jazz, cinema noir, westerns, ação, drama e até comédia. O que poderia resultar dessa combinação aparentemente inverossímil? Uma das animações japonesas (também denominadas animes) mais interessantes que tive o prazer de descobrir e acompanhar: ‘Cowboy Bebop’. Acredito que a ficção científica consista no primeiro gênero de filme que acompanho desde muito jovem. Até mesmo antes de compreender o conceito, sempre me senti atraído por histórias narradas a partir de um cenário de terras devastadas, rico em detalhes, envolto em um avanço tecnológico que mostrava personagens tecnicamente presos em velhos dilemas da humanidade. É nesse cenário que nos deparamos com a tripulação Bebop, formada pelo caçador de recompensas,

Spike Spiegel; por Jet Black, um expolicial criador de bonsais e admirador do músico Charlie Parker; Faye Valentine, uma mercenária egoísta e materialista que permaneceu anos congelada; Ed, órfão e maior hacker do planeta Terra com apenas 13 anos; e Ein, um cão criado em laboratório extremamente valioso e inteligente. Entretanto, apesar de cativantes, nenhum dos personagens apresentase como um grande exemplo em matéria de perfeccionismo. Spike, o protagonista, vive com fome e até rouba comida quando precisa se alimentar. Atrapalha-se ao caçar seus alvos, fuma e odeia cachorros e crianças, embora acabe tendo que conviver, por ironia do destino, com Ed e Ein, personagens responsáveis tanto pela faceta cômica da trama quanto pelos momentos dramáticos mais memoráveis. Em um episódio, Spike somente é convencido a caçar


um foragido, que, em sua opinião, não apresentava grande valia, ao ser tentado pelos famosos e deliciosos bifes de Tijuana. Assim como J.J., de ‘Zillion’, talvez o primeiro grande anti-herói da história da animação japonesa, suas motivações passam longe do “salvar o mundo ou o planeta”, o que torna suas ações muito mais verossímeis que as de qualquer outro herói do naipe de um ‘Superman’. Em termos musicais, o anime também se destaca. Além do jazz, estilo musical que marca a animação, a produção abriu espaço também para o rock, mais precisamente dos Rolling Stones, que são homenageados em quatro nomes de episódios (‘Honky Tonk Women’, ‘Sympathy For The Devil’, ‘Wild Horses’, que constituem canções famosas dos Stones, e ‘Jamming With Edward’, nome de um álbum de 1972). A trilha sonora de jazz flui e embala muitas das cenas de ações ali vistas, tanto das perseguições protagonizadas pelas naves espaciais quanto das lutas corporais, envolvendo artes marciais. Vale atentar para os movimentos de luta de Spike, baseados no kung fu de Bruce Lee (por sinal, umas das grandes influências para a construção do personagem), e que oscilam do mais engraçado e desengonçado ao bem sério e violento. Em algumas passagens mais dramáticas, saem de cenas os alucinados sons de sopro, cordas e viradas de jam session, típicas dos estilo, para dar espaço ao blues, sobrando referência até a Ennio Morricone, famoso compositor de trilhas sonoras, das quais se destacam a dos filmes ‘Por um punhado de dólares’, ‘Era uma vez no oeste’ e ‘Bastardos Inglórios’. De modo similar à trilha, que foge dos clichês habituais, a trama também se destaca das outras animações orientais. Durante seu desenrolar, ficamos sabendo que Spike carrega uma grande mágoa do pas-

Trilha de abertura ‘Tank!’, composta por Yoko Kanno, tecladista, compositora e “líder” da banda formada especialmente para compor a trilha da série

sado em relação à personagem Julia, com quem teve um relacionamento de caráter triangular, no qual também estava envolvido seu rival, o personagem Vicious. Spike já conhecia Vicious antes de ter se envolvido com Julia. Para nossa surpresa, ficamos sabendo que este fora companheiro de Spike antes de se apaixonarem pela mesma mulher - Julia - situação que resulta na saída de nosso protagonista do ‘Red Dragon’, organização criminosa de que ambos faziam parte. Longe de arquétipos divididos entre bem e o mal, ao chegar ao final de seus 26 episódios, tudo o que se vê na série, mesmo que, num primeiro momento, pareça não fazer sentido ou ainda que algum personagem aparente estar deslocado na trama, cada um deles acaba sendo bem definido. Durante a animação, Spike mostra-se grosso, cínico, sarcástico e obcecado com seu passado, deixando até mesmo deixando de perceber a atenção que Faye Vaalentine lhe dá em certos momentos da história. Mesmo futurista, a animação acena ao passado de maneira brilhante, seja pela trilha sonora retro ou por, certas vezes, associarem os costumes e comportamentos da sociedade futurística aos hábitos da Terra e do Velho Oeste.


‘Cowboy Bebop’, a série de TV, foi dirigida por Sinchiro Watanabe e foi ao ar, pela primeira vez, no Japão, em abril de 1998. O sucesso foi tanto que gerou um mangá apenas um ano após sua primeira exibição, fato quase inédito, pois a maioria dos animes são adaptações dos mangás e nascem posteriormente ao sucesso de suas publicações. Fora do Japão, ‘Cowboy Bebop’ é exibido pelo Cartoon Network nas noites dedicadas a animação japonesa, que apresentam, por sinal, uma grande audiência no canal. Para se ter idéia desta popularidade crescente dos animes no mercado ocidental, até mesmo a Marvel Comics chegou a criar algumas revistas de seus personagens famosos no estilo mangá , como ‘Homem-Aranha’ e ‘X-Men’. De certa forma, isso reflete o quanto decaíram, com o sucesso de animes e mangás, as vendas das tradicionais HQ, tanto nos EUA, quanto em outros países ocidentais.

Em 2001, um longa de animação da série chegou aos cinemas estadunidenses com o nome de ‘Cowboy Bebop: Knockin’ on Heaven’s Door’, e, em outros países, com o título, ‘Cowboy Bebop - O Filme’, também gozando de bastante sucesso. Última dica: tanto os amantes de bom cinema, quanto boa música irão adorar encontrar algumas destas e outras referências diversas não citadas neste espaço, que vão desde filmes de Bruce Lee e John Woo ao primeiro filme da série cinematográfica ‘Alien’, sobrando até mesmo espaço pra um estilo musical tipicamente conhecido nosso - o Samba! Tudo isso pode ser um bom motivo para que você deixe o preconceito fora da bagagem e embarque nesta nova viagem. Ou parafraseando a própria série, que costumava deixar uma mensagem ao término de todas as suas sessões: “Nos vemos no próximo espaço, Cowboy!”


bravura ind么mita do club fighter por BIJOU MONTEIRO



E

m tempos de Oscar, todos procuram por uma grande história. Personagens memoráveis, efeitos especiais e roteiros mirabolantes, capazes de abstrair a mesmice cotidiana por, pelo menos, algumas horas.

rito com alvejante. De quebra, ao calcular errado alguns quarteirões , me atrasei em dez minutos para o compromisso ensaiado durante semanas. O dia 15 de fevereiro, com seu sol escaldante, não poderia ter começado de forma mais promissora.

Muito se falou sobre “Cisne Negro” que, sim, trouxe uma Natalie Portman triunfante, mas, não, esse não é o meu escolhido. Também cultuou-se “O Vencedor”, com a pasmaceira habitual de Mark Wahlberg, que foi, com louvor, subjugado por um Christian Bale banguela, careca e irretocável. Por fim, despontou “Bravura Indômita”, o meu escolhido.

Antes de sentar-se em sua cadeira giratória, PC me acomodou num banquinho diante dele. Também antes de começar a falar, pediu licença para trocar a camisa de mangas longas por uma mais condizente com o dia abafado. Pronto. Nossa conversa finalmente teria início.

Eu poderia dizer que fui cativada pelo elenco ou, mais ainda, por ser um filme dos irmãos Coen. Contudo, meu maior motivo para tê-lo escolhido pode ser atribuído ao lema da protagonista Mattie Ross, que, munida apenas de suas trancinhas castanhas e fé inabalável, busca, em seu verdadeiro herói, a referida “bravura indômita”. É aí que acabam meus comentários sobre o Oscar para, no tapete vermelho manuscrito, aparecer um nobre cavaleiro. Ele abre a porta com um sorriso discreto. Pergunta se estou bem e me convida pra entrar. Lola late na cozinha, mas meu host avisa que, por ela ter acabado de comer, está agitada demais. Cruzo a sala e, poucos passos depois, me vejo no quarto, ou melhor, no quartel-general que abriga não só o merecido repouso, mas sua central de comando. Você pode tê-lo visto em mais de 80 vídeos no Youtube sob a alcunha de PC Siqueira. Eu, no entanto, conheci apenas o Paulo Cezar. Ou, como é chamado por Beto, seu irmão mais velho, Paulinho. Poucas horas antes de estar ali, eu o acordei (acidentalmente) pelo celular, perguntando como chegar até ele e, ainda antes disso, manchei meu jeans favo-

PC estava sério. Eu prefiro quando ele sorri e, assim, adianto que, além de não ser jornalista, meu material é incondicionalmente humano e manuscrito. Logo, eu só busco saber das histórias que antecederam o vlogger mais querido do Brasil. Ele cruza os braços. Oscila entre fitar os pés, as paredes e os meus olhos. Tira desse prelúdio fôlego e ímpeto para me contar sua história. Eu tiro bloquinho e caneta da bolsa, mas, segundos depois, deixo-os de lado porque a narração de Paulo Cezar é mais memorável do que qualquer anotação minha. A história do menino franzino começa em Guarulhos, onde nasceu e morou até o início da adolescência. Juntamente com os pais e o irmão mais velho, PC mudouse algumas vezes, chegando a morar de favor na casa de parentes em períodos de turbulência financeira para sua família, sem que isso se relacionasse com efeitos colaterais do Plano Collor. No entanto, essa é apenas uma aba do leque de muitos desafios vividos pelo clã dos Siqueira. PC e Beto não se adaptavam à escola. Os estudos não fluíam, as demais crianças não agradavam, e o ambiente parecia desnecessariamente hostil. Os pais de Paulinho e Betinho decidiram tirá-los do colégio para que ambos estudassem em casa, sendo que, nessa época, PC cursava


Nas duas fotos acima, PC aparece com o primo, Diego, e o irm達o, Beto



a primeira série do primeiro grau. Já que administrar a vida alheia é o vício favorito dos fracos, nosso protagonista teve a família ameaçada, diversas vezes, de ser denunciada, como se Paulinho e Betinho fossem mantidos em cárcere privado ou coisa que valha.

tia. Descobriu Deftones, sua banda favorita, mas não pense você que ele esconde sua queda vertiginosa por Nine Inch Nails. Relanceou Mark Ryden sem nem imaginar que, anos depois, adornaria a famosa parede marrom de seu quarto com as pinturas do artista.

Atualmente, crianças mimadas, negligenciadas pelos pais e despidas de genialidade espontânea são prontamente diagnosticadas com déficit de atenção e, de quebra, dopadas com gotas intermináveis de tarjas pretas. PC, no entanto, sempre remando contra a maré, era apenas o garoto que ficava em casa, em companhia do irmão e do primo, Diego, vendo animações na TV, jogando vídeo game e RPG, consumindo quadrinhos e livros e, mais ainda, desenhando. Na escola, PC faria amigos. Em casa, ele, literalmente, fazia arte.

O desenhista amador da infância ganhou traços fortes. Além de fazer as primeiras tatuagens, PC começou a trabalhar como colorista de quadrinhos. Teve início, nessa mesma época, o vício por café, uma vez que era preciso passar noites acordado para cumprir prazos. Paulo Cezar passava até oito horas seguidas debruçado sobre sua mesa, sem contar as muitas outras horas de trabalho após breves intervalos, bagunçando seu relógio biológico e perdendo noção de dia e noite. Vale lembrar que nosso guerreiro chegou a trabalhar com a trupe do Mundo Canibal, também presente nesta edição da Manuscrita.

Paulo Cezar costuma dizer que não leu todos os grandes clássicos. Eu digo que tal façanha é desnecessária quando, assim como no caso dele, leu-se Edgar Allan Poe, Nietzsche, Shakespeare e Oscar Wilde, por vontade própria e sem grande esforço. Essencialmente tímido, PC encontrava na arte o alto-falante que disseminava suas inquietações. Nosso herói manuscrito frequentava a igreja messiânica com os pais aos finais de semana, mas sem finalidades religiosas. Além de manter-se próximo da esfera mais presente em sua vida, PC tinha necessidade empírica de observar a fé e, posteriormente, reconhecer-se absolutamente cético. Ele não acredita no bem ou no mal, mas em traçar metas para consolidar objetivos. PC cresceu com a internet sem imaginar que, em pouco tempo, teria nela sua fonte de renda. Fez amigos online, expandiu conhecimento e entrou em contato com muito do que sua timidez não permi-

Se antes PC era viciado em café puro, agora ele só o toma quando misturado com leite. Curte o referido ritual ao chegar em casa, no aconchego do sofá da sala. Como registro dos tempos áureos, tatuou o símbolo da cafeína no antebraço direito. Aliás, se muitos registram aleatoriedades na pele, PC apenas tatua o que não pretende repetir. Sua pele não é Post-it, mas serve de lembrete para o que não deve ser esquecido, mesmo que por meio de desenhos coloridos, contrastando com a tez incrivelmente clara. Ele pode até gostar de Shakespeare, mas ninguém ofusca Chuck Palahniuk, seu favorito. Leu todas as obras do autor, com ênfase em “Clube da Luta”, e, de quebra, traz no braço direito o sabonete, símbolo do filme. Pode não parecer, mas o falar mansinho do herói manuscrito revela uma costela trincada e algumas lutas em seu curriculum. Ele não é conflitivo, veja bem. Mas é empírico. Assim como o enredo todo de “Fight Club”.


Muito trabalho, tempo demais em casa e pouca vida social. PC está acostumado a quebrar suas próprias zonas de conforto quando tudo parece calmo demais. Desse modo, como se ouvisse Tyler Durden dizendo “This is your life and it’s ending one minute at a time”, decidiu expor-se e, assim, gravou seu primeiro vídeo. Paulo Cezar é tímido. Não gosta de efusividade ou histeria. Também nunca gostou de tirar fotos por recear seu estrabismo. Gosta mais de ouvir do que de falar. Novamente, surgiu Tyler Durden. Ao som do conselho “I want you to hit me as hard as you can”, cerrou os punhos e fez dos vídeos o seu ringue. Sabia ter em si o seu maior oponente e, nessa perspectiva, confrontar-se era o experimento que empreenderia novo rumo a sua vida. Gravou o segundo vídeo. O terceiro, quarto e quinto também. A sensação era estranha. Vivia o paradoxo de deixar seu casulo quentinho, por um lado, e, por outro, dar voz ao que o incomodava. Despretensioso, PC nunca ligou sua câmera com roteiro escrito. Falava sobre pêssegos em calda, churrascos e Chocolate Surpresa apenas por sentir vontade. Vídeos randômicos que registravam os pensamentos que Paulo Cezar queria escoar. Nosso herói, aliás, é uma mente inquieta e reflexiva. Antes de se aventurar no YouTube, tinha um blog para condensar suas reflexões em contos, crônicas e relatos. Escrever era o exercício de revelar-se reservadamente. A motivação de PC, ao fazer seu primeiro vídeo, foi, além de estourar sua bolha, encontrar-se num período de descontentamento profundo. Pouco tempo depois, tornou-se vlogger. Inicialmente, não tinha muitos seguidores no Twitter. A intenção era apenas gravar seus desabafos para desanuviar as ideias e testar-se em público. Em poucas semanas, no entanto, seus vídeos passa-

ram a ter recordes de acessos e, meses depois, atingiram a marca de um milhão de visualizações. O esquema de gravações é bem simples. PC liga a câmera, eventualmente sem saber quais temas abordará, e fala por quase uma hora ininterruptamente. Faz isso pelo menos uma vez por semana, mesmo que não se preocupe com a periodicidade. Se nenhum assunto específico lhe ocorre, Paulo Cezar fala sobre o nada com sarcasmo, maestria e genialidade. A figura mais constante nos vídeos, além de Beto e Diego, é Lola, a bulldog francês de quase um ano. Em decorrência dos vídeos, PC tem uma das contas mais vigiadas do Twitter. Os seguidores multiplicaram-se a perder de vista, e Paulo Cezar, involuntariamente, perdeu o direito à solidão. Atualmente, mais de 600 mil pessoas não só falam com ele, mas exigem sua atenção e até sua amizade. Quase um milhão de estranhos zunindo em seus ouvidos. Alguns o acusam de ingratidão ou, em caso pior, de ter “mudado de estilo e perdido a graça”. A questão é bem simples: se o conteúdo foi acessado voluntariamente e o sucesso dos vídeos foi espontâneo, o que ele deve a quem se propôs a assistir-lhe? Além disso, se não há roteiro


a ser seguido e é facilmente perceptível a cadência do canal Maspoxavida, em que consiste a “mudança de estilo”? Muitos outros, gratuitamente indignados, alegam que PC “não é legal”, uma vez que ele não desenha corações, diz que ama ou responde à maioria das pessoas que puxa papo com ele nas mídias sociais. Talvez não tenha ficado claro que o vlogger gosta de expor ideias e não a si. Menos nítido ainda é que “Muito Barulho Por Nada”, de Shakespeare, deveria ser leitura imprescindível dos inquisidores de PC. Ele não gosta de tietagem. Respeita a admiração que muitos expressam ao abordá-lo na rua e lhes retribui as gentilezas. Contudo, dispensa assédio. Não tem necessidade de groupies. Não busca glória, sucesso ou posteridade. Sabe que, se um dia voltar a ser anônimo, sentirá alívio.


Deixou a vida de colorista em outubro de 2010. Focou-se nos vídeos e, de quebra, descobriu-se ainda mais apto a falar em público. Contatado pela MTV uma vez, não pôde trabalhar na emissora por falta de tempo. Este ano, já com a agenda livre, procurou o canal e ganhou um programa na TV. A despeito do que muitos esperavam, PC continuará sua rotina de vídeos no YouTube. Inspirando-se no conteúdo do canal Maspoxavida, muitos fizeram de Paulo Cezar referência e também se tornaram vloggers. Não se sabe ao certo se buscam atenção, dinheiro ou apenas livre expressão. PC sabe, todavia, que só nos espelhamos dignamente no que é admirável. Contrariando expectativas dos haters gratuitos, Paulo Cezar é um sujeito bacana demais. É companhia agradável, brilhantismo desprendido e generosidade cati-


por causa dos gadgets recentemente adquiridos. Eu prefiro dizer que PC é ímpar e não precisa de rótulos. Chegada a minha hora de ir embora, São Paulo desaba em mais um fim de tarde. Tempestade que ricocheteia nas janelas e encobre a paisagem. Preciso de um táxi, mas nenhum ponto tem unidades disponíveis. Decido sair a pé e, no meio do caminho, tentar encontrar um carro disponível.

vante. Nossa conversa começou com um PC de braços cruzados e eu sem saber direito o que começar a me dizer. Meia hora depois, ele emendava um sorriso no outro, e eu me perdia nas histórias que ouvia. Os bastidores desse bate papo são singelos. No ínterim da conversa com nosso manuscrito, Beto chegou em casa. Entrou no quarto, me cumprimentou e ainda entregou ao irmão uma pintura vinda pelo correio. Antes de continuarmos, Betinho reclamou de fome, pegou o tostex e perguntou se eu aceitava um lanche. PC aproveitou o ensejo e me ofereceu água e café. Mesmo tentada, agradeci e recusei as ofertas. Não queria abusar da hospitalidade dos Siqueira. Lola, no entanto, ao sentir o cheiro do sanduíche fumegante, não fez cerimônia e reivindicou o seu pedaço. O famoso papel de parede marrom do quarto está descolando nas laterais. A mesa de trabalho de PC mais parece uma bomboniere. Pacotes de biscoito Passatempo, caixa de Bis, copo de refrigerante. Paulo Cezar pode até ser muito maduro e coeso para quem ainda não completou ¼ de século, mas seu paladar é infantil. Há quem o chame de nerd por ele usar óculos de aros grossos e curtir vídeo game. Há quem prefira considerá-lo geek

Lola continua inquieta na cozinha. Coço sua barriga rosada e ainda aperto suas bochechas gordinhas. Mal sabe PC que, na verdade, minha vontade era de mordê-la, tamanha a fofura da filhote. Mas me controlo por novamente não querer abusar da hospitalidade dos Siqueira. Diante de minha teimosia em querer sair andando e achar um táxi, Paulo Cezar se preocupa e me oferece seu guarda-chuva. Ele pode não admitir, mas é um cara legal pra caramba. Pego a sombrinha emprestada e me despeço de Lola, ainda saltitante por causa do cheiro do tostex. Beijo e abraço Beto e PC, prometendo devolver o guarda-chuva o mais rápido possível. Ao mencionar o Oscar, logo no início, me abstive de dizer que gosto tanto de David Fincher quanto de “A Rede Social”, mas, mesmo assim, ainda acho “Clube da Luta” o mais visceral de todos os filmes do diretor. Talvez seja por isso que, diante do frisson do Oscar 2011, eu ainda tenha preferido “Bravura Indômita”. Que bom que foi assim. Mal sabia eu que PC seria meu vencedor uníssimo. Você conheceu PC pelo Youtube. Em carne e osso, eu conheci Paulo Cezar. Paulinho. Vlogger. Colorista. Irmão. Amigo. Filho. Club fighter. Bravo cavaleiro. Guerreiro indômito. Livre pensador. Contista. Piadista. Empirista. Humano da Lola. Artista. Arteiro. Mais do raro. Manuscrito.


9/11 por PAWEL LITWINSKI

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Lower Manhattan, New York City (USA) Foto indicada ao Spider Awards 2007


ENREDO de um amor improvável por MAÇAO FILHO

T

em cara que nasce pra ser o mocinho. Aquele que chega num cavalo branco (de preferência, alado) e resgata a princesa da torre guardada por um dragão feroz de nove cabeças. Metaforicamente falando, claro. Pois então... Desculpe dizer isso assim, sem uma escolha melhor e mais sutil de palavras, mas não sou um deles. Eu não nasci pra ser herói.

bobo na hora em que disse isso ou o fato de que você não esperava uma resposta assim - talvez as duas coisas ou até mesmo nenhuma delas. A despeito das razões envolvidas no ato, o importante é que você riu também. E a sensação nesse momento, enquanto o seu sorriso se refletia no meu, era a de que nos conhecíamos desde sempre.

Sei que você gosta de pensar em mim como o cara que o universo mandou pra ajudar a colocar as esferas da sua vida no lugar. E isso, de certa forma, é verdade. Mas acontece que o mérito é muito menos meu do que seu. Calma, amor, já vou explicar.

A partir daí se seguiram inúmeras conversas, risadas, frappuccinos e vários copos de coca com gelo - sempre que possível, acompanhados de uma empadinha ou duas. Íamos descobrindo, passo a passo, que tínhamos muito mais em comum do que sequer pensávamos ser possível. Não que os fantasmas e medos de cada um não se fizessem presentes uma vez ou outra. Acontecia sim, quando menos se esperava e tudo parecia se abalar por alguns instantes, mas a calmaria sempre chegava, e com ela a certeza de que o amor era maior que todo o resto.

Lembra de quando a gente se conheceu? Eu lá, de camisa social e jeans, esperando meu frappuccino, sem a menor consciência de que estava prestes a levar um banho de coca com gelo. Não mais que de repente, como no verso de Vinícius, eu tentava entender o quê exatamente tinha acontecido enquanto você pedia desculpas de novo e de novo e repetia, sem parar, que sentia muito. “Poxa, essas coisas só acontecem comigo...”. Aí eu comecei a rir. “Envergadura moral pra poder culpar alguém por ser atrapalhado? Não trabalhamos”. Talvez fosse a minha cara de

Nada disso teria acontecido se você não tivesse tropeçado com o sapato novo e me dado aquele banho de refrigerante. Foi ali, naquelas circunstâncias inusitadas, que eu pude abrir os olhos e enxergar de verdade tudo o que eu me recusava a ver até então. Que não adiantava simplesmente


colocar os fones de ouvido e fingir que o resto do mundo não existia, como se eu não me importasse com nada e ninguém. Como se eu não me sentisse sozinho. Quando você riu junto comigo ali, pela primeira vez, pensei em como seria bom ter com quem dividir momentos assim. Fazia tanto tempo que eu não me sentia tão à vontade, sem ter de tomar cuidado com o que fazer ou dizer. Porque, sem sequer se esforçar, você me transmitia a sensação de que não havia o que temer. Longe de ser uma ameaça, você me oferecia abrigo. Logo eu, que andava tão descrente dessa coisa toda de ser feliz pra sempre, fui atingido em cheio pelo seu jeito desprendido de se doar por inteira, sem pensar duas vezes. E, mais do que isso, pela sua determinação inabalável em confiar que eu pudesse, afinal, ser o cara especial, o mocinho, herói da história. Algo que, há muito tempo, eu já não me acreditava capaz de ser. Como disse no começo, eu não nasci pra ser o mocinho. Tudo indicava que eu

seguiria pelo caminho oposto. Destinado a cavalgar rumo ao poente sozinho, sem ter para quem voltar no fim do dia. Já acostumado a acreditar que a vida não tinha muito mais a oferecer pra alguém como eu, tudo o que me restava era aproveitar o presente e ignorar solenemente o futuro. E foi você, que chegou na minha vida sem jeito e sem saber o que fazer ou dizer, quem conseguiu me tirar do abismo onde eu havia me aprisionado. Foi você quem chegou no ponto mais dramático do enredo e salvou o dia, quando isso parecia algo impossível. E o que eu quero dizer com isso tudo é que você é a heroína da história, amor. Todas as coisas em mim que te agradam tanto são apenas tentativas de retribuir seu ato epicamente heróico. Eu, que nunca levei jeito pra protagonista, descobri que minha vocação mesmo é ser anti-herói. É permanecer ao teu lado, mesmo com todas as minhas imperfeições, pra que possamos tirar juntos, dessa união improvável, o necessário para a nossa história ser feliz.

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January Jones as Betty Draper Mad Men


Todas as mulheres s達o

TUAS por THAMIEL DUAIK


E

lenque todos os teus anelos, e nem mesmo o infinito traria a medida para alcançá-los, talvez sequer resumi-los.

Pouco importa quão grandiosas sejam as conquistas, quão extenso seja o império, vontade e desejo, em seu manancial inexaurível, fundam o cerne de nossos atos e compõem grande parte de nossa personalidade. Imersos entre luz e sombra, vida e morte, austero e maldito, não cessamos de buscar, e a busca é das maiores expressões de nossas vidas, talvez mais do que o próprio encontro, tal como na parábola do timoneiro, que se vale das estrelas para se localizar e se conduzir, mas não deseja efetivamente alcançá-las. E conquanto a soma de cada coisa existente, visível ou invisível, não alcance o todo de nossos anseios, há um signo onde tudo cabe e ainda sobra espaço: o outro. E por encontrarmos no outro tanto do mundo e de nós mesmos, buscá-lo constitui-se no grito mais alto do homem por auto-conhecimento, embora nossa vida seja, em essência, inarredável solidão. Todos nós, em nossa jornada pessoal, sonhamos encontrar a pessoa na qual iremos aportar nossos corações. Uma simples conversa com a maioria de nossos amigos, entretanto, irá evidenciar que poucos conseguiram seu porto seguro, e a história das pessoas que passaram por nossas próprias vidas acaba redundando em um inventário de frustrações. As pessoas vêm e vão; delas, restam somente as cicatrizes. Tais feridas não são troféus de guerra; guardamo-las no mais fundo de nossos segredos, pois não queremos encarar que tal-

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vez todo nosso universo emocional e nossos sonhos românticos não sejam mais do que uma farsa, uma ilusão pueril, adolescente. Diante desse cenário, alguns acabam por anunciar a falência do próprio amor, como Rougemont, que, ao questionar por que o homem “deseja esse amor cujo esplendor só pode ser o suicídio”, acaba propondo uma conclusão que é, literalmente, fúnebre:

“O que procuramos é aquilo que pode nos exaltar até o ponto de alcançarmos, sem querer, a ‘verdadeira vida’ declamada pelos poetas. Mas essa ‘verdadeira vida’ é a vida impossível. Esse céu de nuvens exaltadas, crepúsculo purpúreo de heroísmo, não anuncia o Dia, mas a Noite! A ‘verdadeira vida está ausente’ diz Rimbaud. [O amor] É apenas mais um dos nomes da Morte, o único nome pelo qual ousaríamos chamá-la – embora fingindo rejeitá-la” De forma não tão eloquente, há aqueles que, concordando com a opinião anterior, fecham-se em si mesmos, desistindo de toda possibilidade de manter um relacionamento e passando a assumir comportamentos mais frívolos, encontrando sua satisfação em ideais de quantidade, não qualidade. Se não é possível conseguir uma pessoa para todos os dias, tenhamos, então, uma para cada dia. O que temos para hoje? Essa ideia habita ou habitou, muito ou pouco, o imaginário de todo ser humano e o inconsciente coletivo, especialmente do gênero masculino, para quem os super-heróis



dignos de terem pôsteres colados na parede são Don Juan e Casanova. A expressão máxima do desejo humano realiza-se no poder de conquistar e possuir a todos e a cada um. Parece que, então, estamos diante de um dilema: se o próximo, o outro, é a meta e a fonte de nosso auto-conhecimento e, portanto, de nosso crescimento, mas o relacionamento, tal como o entendemos e construímos em nossa sociedade, parece ser, nos dizeres de Blavatsky, uma loteria na qual existem mais bilhetes brancos do que premiados, o que nos resta quando, apostando tudo o que temos, não somos contemplados com o prêmio? No meio de um quadro aparentemente insolúvel, a resposta veio de um anti-herói, cujo superpoder foi o de, ironicamente, encontrar amor onde amor havia. Harry Haller. Um homem de cinquenta anos, na década de 20 do século passado, intelectual burguês (que declaradamente odiava a burguesia), viveu a vida imerso entre livros e cultura erudita. De natureza hipocondríaca e profundamente melancólica, sua personalidade encontrava-se dividida em duas, que palpitavam em igual intensidade dentro de si: a humana espiritual, e a atávica, instintiva e animal. Aquele que, em princípio, desponta como o mais improvável personagem a figurar em uma epopeia é o ente central do romance “O Lobo da Estepe” do alemão naturalizado Suíço Herman Hesse (1877-1962), em uma história que dilui a eterna dicotomia matéria/espírito de maneira surpreendente. Tal é a força de sua narrativa, que Clarice Lispector considerava como um de seus romances mais diletos, tendo contado que tivera um acesso de febre, ao lê-lo pela primeira vez, aos trezes anos. Narra a história que Harry, homem que levava uma espécie de vida nômade após sua primeira mulher, em um rompante de loucura, expulsá-lo de casa, estava vivendo


temporariamente em uma pensão de uma cidade qualquer, desfrutando de sua tristeza boêmia, envolto em pensamentos suicidas, quando, ao caminhar solitário pelas ruas da cidade, nota, ao olhar para um muro da cidade que costumava apreciar, uma porta que nunca esteve lá anteriormente, sobre a qual letras fulgurantes e vivas passaram a dançar até formar o anúncio: “TEATRO MÁGICO. ENTRADA SÓ PARA RAROS. SÓ PARA RAROS”. Indo direto ao ponto do livro que nos interessa, o fato é que Harry Haller, nosso anti-herói, acaba por entrar no dito Teatro e se depara com várias portas, com letreiros acima delas, anunciando atrações as mais variadas, mas que certamente não se encontram em qualquer lugar, como a “transformação do tempo em espaço por meio da música”, o “delicioso suicídio”, até a “solidão ao alcance de todos”. Harry entra em várias e vive experiências únicas, narradas minuciosamente. O clímax do livro, contudo, ocorre quando Harry se depara com a porta cujo letreiro trazia uma promessa: TODAS AS MULHERES SÃO TUAS. Ao se deparar com ela, após sair de uma porta que lhe trouxera sensações e recordações extremamente desagradáveis, Harry vê uma oportunidade de se afastar do maldito mundo do Lobo da Estepe, que é como ele mesmo intitula seu lado primitivo. Ao entrar, seu corpo estremece, e ele se reconhece novamente jovem, com quinze ou dezesseis anos, sentado em uma das colinas que existiam em sua cidade natal. Sentindo de novo o furor da juventude, envolto pelo ambiente e pelas sensações que o rodeavam naquela época, Harry se deu conta de que estava revivendo um momento específico, em que, numa tarde de domingo, ele cruzara acidentalmente com Rosa, sua primeira paixão. Lembrava-se de que, embora querendo com todas as suas forças se aproximar e de-

clarar para ela todo seu incandescente amor, eles acabaram apenas se cruzando à distância, cumprimentando-se à moda solene da época e se deixando.

No Teatro Mágico, contudo, tudo seria diferente. O momento não aconteceria tal como ele o havia vivido, e ele notou isso no instante em que ela, ao reconhecê-lo, enrubesceu, mostrando-se igualmente feliz pelo encontro. Diante disso, em vez de tirar novamente seu boné e permanecer com a cabeça descoberta cavalheirescamente até que ela tivesse passado, Harry, vencendo a angústia que tomava conta de si, fez aquilo que seu sangue ordenava que fizesse, gritando: “ – Rosa, graças a Deus que vieste, ó jovem maravilhosa! Eu te amo tanto!” Ao ouvir tais palavras – que Harry reconhece não terem sido exatamente as melhores –, Rosa se aproxima. Os dois passam a tarde juntos, dividindo a inocência de um amor vazio de beijos ou contato, mas transbordante em felicidade e encantamento. O momento, contudo, não se limita à Rosa; Harry revive todos os amores que passaram por sua vida, redescobrindo-os. Harry Haller torna-se um Iluminado: “Todas as mulheres que em outra época amei foram minhas então; cada uma delas me deu o que só ela tinha para dar e a cada uma dei o quanto só ela sabia como tomar. Muito amor, muita ventura, muito prazer, muita perplexidade e dor também sofri; os amores que desperdicei na vida foram recuperados naquela hora de sonho, floresceram prodigiosamente em meu jardim: flores castas e delicadas, flores vermelhas, flores escuras que logo murchavam, ardente luxúria, íntimo devaneio, melancolia ardente, angustioso desfalecimento, esplendente renascer. Deparei com mulheres a quem tinha de conquistar num lance, num relâmpago, e a outras que era um prazer conquistar aos poucos e cuidadosamente (...). Todas foram minhas, cada uma a seu modo”.



Harry percebeu que não há nenhuma garantia de que os amores que escolhemos estarão conosco pela vida inteira. Na verdade, notou que o amor não acontece para esse fim. O amor dispensa a dimensão do tempo, acontece em outro nível, sendo, tal como diz o poeta, infinito enquanto dura. E é o momento do amor, em que ele nasce e acontece, e o que dele tiramos, que nos acompanha até o fim. Por falar em poeta, Mário Quintana nos deixa deliciosamente desnudos ao trazer a mesma verdade à sua maneira: UMA ALEGRIA PARA SEMPRE As coisas que não conseguem ser olvidadas continuam acontecendo. Sentimo-las como da primeira vez, sentimo-las fora do tempo, nesse mundo do sempre onde as datas não datam. Só no mundo do nunca existem lápides... Que importa se – depois de tudo – tenha “ela” partido, casado, mudado, sumido, esquecido, enganado, ou que quer te haja feito, em suma? Tiveste uma parte da sua vida que foi só tua e, esta, ela jamais a poderá passar de ti para ninguém. Há bens inalienáveis, há certos momentos que, ao contrário do que pensas, fazem parte de tua vida presente e não do teu passado. E abrem-se no teu sorriso mesmo quando, deslembrado deles, estiveres sorrindo a outras coisas. Ah, nem queiras saber o quanto deves à ingrata criatura... A thing of beauty is a joy for ever – disse, há cento e muitos anos, um poeta inglês que não conseguiu morrer. Todas as mulheres são tuas; todos os homens, teus. Tenha sido por uma noite, um mês, ou um século, cada pessoa que passou em nossas vidas, e com as quais dividimos nossas essências, a beleza inefável de nossas almas, estão e sempre estarão conosco, porque ousaram viver a entrega que, indelével, persiste. Esqueça o trágico, a dor, a decepção. Só o que é sublime permanece e nos constitui para sempre, além do tempo e de nossa própria memória. Onde houve beleza, houve verdade. Onde houver verdade, deve haver eternidade.


Alone in the

DARKO por ANDRÉ OLIVEIRA Por que você está usando essa roupa estúpida de coelho? E por que você está usando essa roupa estúpida de humano?

U

m dos grandes medos, impregnado no homem, é o da solidão. Com ela, seguimos cotidianos, fugindo de assombrações que nos perseguem o tempo todo, como as dúvidas perante o nonsense de existir. E, como de braços dados com uma amante, segundo a segundo, compartilhamos os incertos próximos passos. “They made me do it” é uma frase de “Donnie Darko”, fenômeno cult que vai além do clichê de muitos filmes desse mesmo segmento. O filme lida desde viagem temporal, passando por política e ética, e chegando - até mesmo a discussões filosóficas e quânticas, sobre dilemas e dramas de nós, seres perdidos, entre dogmas e inseguranças. Donnie, interpretado por Jake Gyllenhaal, e seu amigo imaginário, o coelho Frank, nos mostram um mundo doente, no qual se vendem


O


fórmulas para amar e odiar, professores que impedem alunos de se manifestar e cotidianos permeados inteiramente por hipocrisias. A morte é um tema recorrente no filme desde o início, quando Donnie é acordado por Frank durante a noite, poucos minutos antes de uma turbina de avião cair sobre seu quarto. A partir desse ponto, coisas estranhas começam a acontecer e Donnie percebe que, ao evitar sua morte, o mundo entra em colapso, e a vida das pessoas ao seu redor começa a ser afetada drasticamente. As regras e padrões que nos oferecem nessa feira de estabilidades, como bíblias, amuletos, horóscopos, guias, bulas e rituais, nos dão a falsa premissa de que tudo acabará bem. Mas como agir anestesiado? Donnie reage, grita, protesta e não o entendem. A professora acha absurdo seu questionamento sobre a doutrina de que a vida se limita a uma linha desenhada no quadro negro, na qual “bem” e “mal” são definidos como polos indeléveis de comportamento. Donnie reluta, salientando que há muito mais do que isso, mais do que a balela ocidentalizada de dualismo. O homem pode se


definir mais complexo e sem amarras, sendo livre, anárquico, capaz de cooperar para que todos possam ser livres e galgar seus próprios degraus. A “Filosofia da Viagem no Tempo” é uma metáfora sobre o preço de fugir dos padrões, de ser adepto a caminhar na contramão dos pudores. Voltar no tempo para rever conceitos, buscar amenizar a perdição de não saber viver, ser humano e admitir o absurdo existencial e viver em paz, sem precisar morrer sozinho. Donnie é o antagonista do padrão, o anti-herói dos puritanos, o grito daqueles que não idolatram a mesmice, os conceitos de felicidade fadados à catástrofe que culmina no desespero homeopático. O lance que mais o define como figura heroica é, sem dúvida, a frustração do espectador atento ao perceber que todos os seus esforços, para que os que o cercam acordem, acabam sendo inúteis e, por fim, ele precisa do martírio para que todos voltem às suas rotinas e vidas embasadas na mentira.

Mad World – Gary Jules

A partir desse ponto é nítido que, mesmo dotado de poderes, não se pode interferir diretamente nos conceitos alheios, querendo fazer que todos engulam goela abaixo que há um remédio para a cegueira ou há algo muito maior do que a felicidade prescrita pelos guias de auto-ajuda. Eles têm o direito de viver na ignorância, e assim, Donnie sai de cena, todos acordam desse pesadelo (realidade), tudo volta à normalidade empacotada e aos “pegue-pague” do mundo.


LEGADO de protagonistas por GILBERT ANTONIO


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obre heróis e suas histórias, sobre eles e suas inevitáveis comparações. Sobre os protagonistas heroicos, que reproduziram algo além do nível costumeiro de realizações, traçamos a linha tênue de quem produz algo maior do que sua própria existência. Tal proeza pode ser identificada de algumas maneiras: primeira, do aspecto físico, em que o herói protagoniza um ato de coragem, quer seja durante a batalha, quer no salvamento de uma vida. Não nos esqueçamos do plano da proeza espiritual, na qual o herói aprende a administrar, com nível superior da condição da vida humana, o mensageiro dessa cruzada. Por último, o herói adestra seus próprios fantasmas, impossibilitando os mesmos de interferiremem seus atos bravios. Viver uma existência capaz de gerar feitos nunca imaginados ou, ainda, tampouco concebidos, sugere a travessia de uma série de aventuras que ultrapassam o usual, espiritual e psicológico. Logo, demanda-se uma torrente de conflitos e até mesmo finitude. Sentimento e ato testados em seu primor e respectivas fronteiras. Otto Rank afirma que somos todos heróis ao nascer, quando enfrentamos uma tremenda transformação, tanto psicológica quanto física, deixando a condição de criaturas aquáticas, vivendo no fluido amniótico, para assumirmos, daí por diante, a condição de mamíferos que respiram o oxigênio do ar e que, mais tarde, precisarão erguer-se sobre os próprios pés. Quando envergamos, passamos a questionar se estamos à altura da nossa missão, igualmente se somos capazes de ultrapassar os perigos de uma existência feliz. Questionamonos, ainda, se teremos coragem, capacidade e conhecimento que nos permitam servir. Joseph Campbell, em seu livro “O Poder do Mito”, diz: “Ao se dar conta do verdadeiro problema – perder-se, doar-se a algum objetivo mais elevado, ou a outrem – você percebe que

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essa, em si, é a provação suprema. Quando deixamos de pensar prioritariamente em nos mesmos e em nossa autopreservação, passamos por uma transformação de consciência verdadeiramente heróica”. A partir dessa transformação, a consciência vem pela experiência de provações e revelações. Tal proeza heroica é obtida por meio através de um ato supremo de realização. Passamos a experimentar a iminência do poder de ir além do que podemos concretizar.Encontramos amparo num paradoxo sob a luz do herói e do líder. Talvez, consciente ou não, uma batalha interior denominada por um objetivo ético É possível inferir que, em nossa consciência heroica, passamos a carregar a responsabilidade de produzir uma proeza por meio do vértice moral e, ainda,a mitificamos em natureza e objeto, em detrimento a justificar atos nobres e recorrentes pelo bem comum. Assume-se, por assim dizer, uma imunidade quanto ao questionamento externo, pois está resguardado pela vestimenta moral. Por certo tempo parece possível contentar-se com tal condição, todavia o tempo é implacável e se instala um conflito com tais habilidades heroicas. Ultrapassar a condição de herói, sem cair no senso comum, exige grande perseverançapara alcançar a imunidade em relação à inveja e cobiça da posição obtida. Estar acima e a frente da grande unanimidade vigente e terrena demanda grande sabedoria e embates diários contra o mais fiel escudeiro e sagaz aliado: o superego. Sob esta perspectiva é possível estabelecer um viés quando passamos a reverenciar celebridades, não heróis.Vale abrir aqui vértices de discernimento que, claramente, separam celebridades de heróis. Estes, aliás, estão dispostos a sacrificar suas respectivas existências por causas maiores. Possuem noção da necessidade de entrega com a finalidade de realizar algo.

Muitos heróis sacrificaram suas próprias necessidades em benefício dos outros. Em sua maioria, são solitários e guardam em si a máxima da missão e responsabilidade empreendidas. Carregam sobre os ombros ideais externos e, muitas vezes, equivocamente contraditórios. Sua dignidade e tarefa são, muitas vezes, cobertas de pena e piedade. São mártires e frequentemente o que realizam se deteriora. Em contrapartida, celebridades focam sua energia em ser conhecidos e reconhecidos. Buscam fama e nome. Ideais e ou valores, ausentes no caráter dois heróis. Celebridades concentram seus esforços em ditar costumes, comportamentos e tendências. Não se discute aqui a permanência desses “valores” e nem, tampouco, onde os mesmos são sustentados. São, em sua maioria, objetos de desejo e espelhamento. Carregam a marca dos tempos e vivem aprisionados sob os grilhões do Império dos Sentidos Efêmeros. Em nada (ou quase nada), contribuem para deixar seu legado na história e, tampouco, crivar um futuro suficientemente poderoso para dizer a que vieram. As sociedades antiga, moderna ou contemporânea necessitam de heróis. Concentram neles a possibilidade e esperança em tornar a vida possível, suportável e capaz até mesmo de transcendê-la. Por quê? Quem nos responde com grande autonomia e iluminada postura é, Joseph Campell - “Porque ela tem necessidade de uma constelação de imagens suficientemente poderosa para reunir, sob uma mesma intenção, todas essas tendências individualistas. (...) A nação necessita, de algum modo, de uma intenção, a fim de atuar como um poder uno”. Vivemos, ainda, sob o ranço de equivocadas definições sobre heróis e seus poderes. Eles, em suas respectivas existências, são realizadores e fundadores de uma nova ou continuada cultura. Reproduzem na sociedade valores que dão sentido às suas respectivas tarefas e ações. Possuem profundo deleite da


beleza da vida e sua excelência. Despretensiosos e sutis, depositam confiança e tornam possíveis ações locais e globais. Estão entre nós, nas letras, nas ações e nos discursos. Geram mudanças e comovem multidões. Ressuscitam o saber e movem a humanidade com a finalidade de prover sensíveis e importantes mudanças na consciência, na prática, no exercício da paz, da cidadania, do direito, da liberdade e expressão do ser humano, em todo seu entendimento e mistério. Entre nós, deixam seus respectivos legados, manifestos e atitudes que comprovam e corroboram sua veracidade e mudança. Entre eles, Jesus Cristo, John Lennon, Ayton Senna, Nelson Mandela, Martin Luther King Steve Biko, Buda, Mahatma Gandhi, Madre Tereza de Calcutá e tantos outros.

Em cada herói citado acima, “os beneficiários da dádiva introduziram desvios grotescos, com a interpretação que deram à mensagem” de cada um desses heróis. Nenhum deles ficou imune ao pré-julgamento, ao preconceito, ao medo ou ao risco. Todos, em suas respectivas particularidades e atuações, sofreram acusações, desvios de suas crenças, valores e práticas. Todos, de uma forma ou de outra, seguiram adiante. Fizeram deseus valores, pensamentos e ideologias suas respectivas ações. Viver de acordo com o que se acredita, sente, defende e é, ultrapassa todo e qualquer entendimento. Desconfio que os heróis e protagonistas da história tiveram primeiro, um compromisso em viver de acordo com a experiência pretendida e a crença adquirida extrínseca e intrinsecamente. Viviam de acordo com sua verdade e desafio. Para tal crença não há equívocos, mas a experiência pura, primeira verdadeira de felicidade. Sabemos não ser possível transpor as especulações. O ato era e é heroico porque, nasceu e nasce na origem do desejo e sua realização. A consumação e prática é uma experiência legítima de liberdade e felicidade.

“Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo”.

Joseph Campbell


MANUSCRE mundo afora L

embra do sujeito mascarado da segunda edição da Manuscrita? Aquele mesmo, clicado pelo nosso fotógrafo, Pawel Litwinski, e que apareceu para honrar Guy Fawkes? Pois bem. Ele voltou. Mas alto lá. First things first. Estamos falando de Andreis Costa, que, ao contrário do que você supõe, não é modelo-manequim, mas é um graffiti artist, ou seja, um manuscrito que, além de percorrer o mundo para expressar o seu olhar sobre ele, imprime marca própria sob os feitos de outros grandes nomes da arte. Além disso, Andreis trabalhou com o FTV, time de grafiteiros nova iorquino, fundado em 2006, composto por Smash Grabr, Akt One, Whyme, Obese, Mice, Evak, KC e – mais ainda – YME, um dos mais geniais escritores da ilha da Manhattan. É assim, em grande estilo, que Mr. Costa dá as caras em solo tupiniquim e, de quebra, nos apresenta sua galeria de imagens, feitas em Nova Iorque entre 2003 e 2010. Agora chega de papo. Quem fala mais alto aqui é a arte de Andreis.


EVENDO

por ANDREIS COSTA








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entrevista

ANGELO BRANDINI por YASMINE COLUCCI

A

ngelo Brandini atua, dirige e escreve. É formado por uma das mais célebres escolas de teatro, a Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo (EAD-USP). Especializou-se na arte do palhaço com diversos profissionais de dentro e fora do país e realizou muitos trabalhos artísticos em âmbito teatral, cinematográfico e televisivo. Dirige e escreve as peças da Cia Vagalum Tum Tum, a qual levou os prêmios consecutivos de “Melhor Texto Adaptado” pela FEMSA (2007 e 2008). Integra, desde 1994, o Doutores da Alegria, ocupando a função de coordenador nacional de criação. Além disso, ministra oficinas de Palhaços e faz palestras-shows sobre o trabalho do Doutores da Alegria em empresas, órgãos governamentais e universidades de todo o Brasil, América do Sul e Portugal.

O Doutores da Alegria é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, formada por artistas experientes na arte do palhaço e que aplicam a “besteirologia” a fim de alegrar as crianças hospitalizadas, seus pais e profissionais da área de saúde. Atualmente, eles enchem de felicidade cerca de 75 mil corações em hospitais de São Paulo, Recife e Belo Horizonte. Angelo concedeu uma entrevista para a quarta edição da Manuscrita, mostrando seu trabalho dentro e fora dos hospitais. Assim, vocês, leitores, poderão conferir o trabalho maravilhoso do Doutores da Alegria, o talento múltiplo desse artista e suas fantásticas palavras sobre crianças, arte e sociedade. Com sua humildade e seu desempenho, Angelo Brandini mostra que super-heróis não precisam usar capas nem possuírem poderes especiais: eles vivem da maestria de ser palhaço.


Fotos: Acervo Pessoal


MANUSCRITA - Qual é o objetivo da ONG Doutores da Alegria? Como foi a sua trajetória? ANGELO BRANDINI - O objetivo primeiro dos Doutores da Alegria é levar alegria às crianças hospitalizadas, seus pais e/ou acompanhantes e profissionais da saúde; ao mesmo tempo, fomentar a arte do Palhaço em suas várias manifestações. Estamos completando em 2011, 20 anos de atividades e costumo dizer que nosso trabalho “derramou”, espalhandose para fora dos hospitais. Com toda a experiência que obtivemos dentro dos hospitais, criamos inúmeras formas de atuação também fora dele. Usando a linguagem e o olhar do Palhaço para a realidade, criamos espetáculos teatrais, programas de rádio, atividades em empresas, filmes, programas de televisão e uma escola aberta a todos que queiram se aprimorar ou, simplesmente, se aproximar da figura do Palhaço.

O que é necessário para ser um Doutor da Alegria? Quais são as dinâmicas aplicadas com as crianças? Para ser um Doutor da Alegria, é preciso ser ator profissional com especialização na linguagem do Palhaço. No hospital, trabalhamos com o que acontece na hora, na base do improviso, mas com critérios que incluem a criança, por um lado, e o adulto, por outro, no caso dos acompanhantes e profissionais do setor. Assim, as histórias são criadas ali no momento, sempre a partir do que nos é dado pelo interlocutor. É como se um mini-espetáculo interativo acontecesse em cada encontro.


Quando começou a sua paixão pela arte? O que lhe motivou a ser um Doutor da Alegria? Minha paixão pela arte vem desde criança. Sempre sonhei em trabalhar no teatro, no circo ou no cinema. O que me encantou no Doutores da Alegria foi a constatação de que poderia realmente causar transformação por meio da minha arte. Isso, para um artista que precisa acreditar no poder transformador do seu oficio, não tem preço!

Qual é a sensação de trabalhar diretamente com crianças em estado de saúde debilitado nos hospitais? Em algum momento, foi tão difícil que o levou a pensar em desistir? São muitas sensações. No comecinho do trabalho no Doutores da Alegria, sentia ansiedade e também muito cansaço ao final da jornada. Com o passar do tempo, a gente começa a administrar melhor os sentimentos que não ajudam no trabalho, como ansiedade e comiseração, e conseguimos focar no que ainda está bom dentro de um corpo não muito saudável. Isso estimula a criança e, consequentemente, o Palhaço. Nunca pensei em desistir.

Como funciona a interação entre os membros do Doutores da Alegria, as crianças e os seus pais? Palhaço sempre trabalha em dupla, e a ação de um alimenta o outro. Procuramos incluir as crianças e os pais nessa relação. Assim, quando a interação se estabelece, o resultado é uma bola de neve de criatividade e surpresas. Os limites das quatro paredes do quarto se estendem, e a imaginação reina soberana.

O que vocês fazem quando uma criança possui medo de Palhaço? Respeitamos a vontade e o tempo da criança. É ela que estabelece o limite da nossa aproximação, mas nunca desistimos. Um dia, acabamos por ajudá-la a superar o medo. No entanto, para minimizar esse possível efeito, usamos um tipo de maquiagem que deixa a criança perceber que há uma pessoa ali presente.

Quando e como surgiu a ideia de realizar peças do Doutores da Alegria fora do ambiente hospitalar? Quais são as principais diferenças entre o público adulto, o infanto-juvenil e as crianças do ambiente hospitalar? Os artistas do Doutores da Alegria são encorajados a realizarem trabalhos fora dos hospitais. Quase todos têm suas Companhias de Teatro e é bom que seja assim, pois o trabalho é realimentado. Além disso, uma de nossas missões é fomentar a arte do Palhaço de uma maneira abrangente, sem limites de forma ou de lugar. Em minha opinião, é mais difícil trabalhar para o público infanto-juvenil. Esse público não tem nenhuma condescendência. Se você não está agradando, eles não têm nenhum problema em deixá-lo falando sozinho. Com o público adulto, tudo corre mais solto e você consegue uma cumplicidade com mais facilidade. Já dentro do hospital é tudo de “cabeça pra baixo”. O sucesso é medido pelo nível de transformação que você pode causar. Às vezes, nossa platéia é de uma pessoa apenas, não resulta em aplauso no final, mas a relação interpessoal é mais intensa.


As peças ‘O Bobo do Rei’, ‘Queluzminha’ e ‘Othelito’ foram resultado de seu trabalho como diretor e dramaturgo na Cia. Vagalum Tum Tum. Além disso, seu trabalho como ator, dentro e fora da Companhia, é conhecido. Você tem preferência por alguma dessas funções? Faço tudo isso porque gosto muito de todas essas funções. Sou ator por formação e tudo que faço emana desse ponto de vista. Com a liberdade do Palhaço, eu aprendi a ser empreendedor. Logo, se tenho vontade de fazer algo, não fico esperando alguém escrever um texto a fim de que algum diretor me convide para fazer o trabalho. Eu mesmo vou lá, faço e pronto.

Que inspirações você encontra para seu trabalho na direção e dramaturgia? Tenho trabalhado em direção e dramaturgia sempre a partir do olhar do Palhaço. Olho para uma história e imagino como um Palhaço contaria aquela história.

Nessas peças realizadas pela Cia Vagalum Tum Tum, você adaptou e se inspirou em clássicos para criar seus textos. Por exemplo, o Bobo do Rei foi inspirado em Rei Lear, de William Shakespeare, e Othelito, em Otelo, O mouro de Veneza, do mesmo autor. O que o incentivou a fazer tais adaptações? De que modo elas são realizadas? Sou um grande admirador dos clássicos e do maior autor de todos eles, William Shakespeare. Por isso, sempre tive vontade de contar suas histórias para as crianças. Acho importante apresentar às nossas crianças as grandes obras do teatro. As adaptações são feitas a partir do meu

olhar como Palhaço para os textos clássicos. Também levo em consideração as características dos atores que irão trabalhar nas peças, já que gosto de escrever uma personagem pensando em quem a representará. O tamanho do elenco também é relevante. Por motivos econômicos, trabalhamos com um número reduzido de atores e isso interfere diretamente nas adaptações. Temos que ser bastante criativos para rearranjar as histórias sem perder a essência do texto original.

O que você considera importante nessas obras para atrair a atenção das crianças? Que outros recursos você cria e utiliza para que a criança goste do espetáculo? Todas as pessoas, inclusive as crianças, gostam de ouvir, ver ou imaginar histórias, e os textos de Shakespeare são histórias maravilhosas, com todos os ingredientes necessários. O fato de usar em meus espetáculos a linguagem do Palhaço aproxima ainda mais a criança do universo da peça. A música, o cenário e os figurinos também são muito importantes.

Ao ler diversas reportagens e vendo no dia a dia a dificuldade que os artistas passam pela falta de patrocínio e de público, percebe-se que a maioria dos brasileiros ainda não possui iniciativa para ir ao teatro ou ao cinema por diversos motivos, que envolvem o plano financeiro e cultural. Qual é o seu ponto de vista sobre a valorização do trabalho do Palhaço e do ator de teatro no Brasil? Para você, qual é a função social do Palhaço? Acho que a arte e a cultura são bem pouco valorizadas no Brasil e, por consequência,


seus agentes também: Palhaços, atores, professores, escritores, cineastas, etc. Ainda há muita coisa para se fazer no sentido de as pessoas entenderem a importância que a arte pode assumir na formação de um cidadão consciente. Por isso, gosto de trabalhar para e com as crianças, pois elas são o futuro. O Palhaço é herdeiro direto do Bobo da Corte, e essa figura possuía uma função muito importante na sua época. Além de divertir o rei e sua corte, ele era responsável por espelhar as ações dos poderosos. Por não ser prisioneiro da lógica nem da razão, o Palhaço consegue mostrar o ridículo da humanidade sem precisar brigar com ela. Ele, muito pelo contrário, reforça, às vezes, uma atitude ridícula, provocando o riso e, consequentemente, uma avaliação crítica do(s) próprio(s) responsável(is) por aquela atitude.

Muitas pessoas consideram o Doutores da Alegria super-heróis, devido ao fato de que vocês levam alegria a crianças carentes que estão com uma saúde debilitada em hospitais, na maioria deles, públicos. Com isso, vocês trazem conforto aos pais e às crianças, as quais podem estar sem esperança de sobrevivência. Qual é a sensação de ser considerado assim? Para você, quem é o super-herói do Brasil? Não acredito em super-heróis de verdade, só nos das histórias de ficção. (risos) Acho que as pessoas admiram nosso trabalho pelo inusitado e por acharem que somos pessoas abnegadas. Na verdade, fazemos isto porque é parte do nosso ofício e porque temos um grande prazer ao realizá-lo. Às vezes, no meio do trabalho, paro e penso: “Caramba, estou me divertindo e aprendendo tanto e ainda sou pago por isso!”. Mas também sei o quanto tive que ralar para me aprimorar neste trabalho!

A Cia Vagalum Tum Tum fará excursões pelo Brasil com a peça ‘O Bobo do Rei’ e mais uma nova adaptação de Shakespeare está a caminho. Visite o site oficial aqui. Ajude os Doutores da Alegria. Você ou sua empresa podem colaborar de diversas maneiras – até transformando seu imposto de renda em ‘investimento de riso’ - para que os Doutores da Alegria expandam seus trabalhos e ajudem outras muitas crianças que precisam. Saiba mais aqui.


O

Rio de Janeiro, de fato, me encanta, apesar de eu ser paulistano. Digo “apesar”, pois o senso comum - de caráter odioso, a propósito - me obriga a utilizá-lo. Nasci cercado de concreto. Minha adolescência foi regada a shopping. Embriago-me de cultura, consumo e pressa. Muita pressa. Vida de paulistano. Sempre comentam sobre a rixa entre nós, da Pauliceia Desvairada, e os cariocas, da Cidade Maravilhosa. “Como é possível você preferir o Rio a São Paulo?”, perguntam-me os mais ávidos defensores do regionalismo. A resposta não é difícil, embora ela não implique que eu não goste ou não sinta orgulho da minha cidade. Considero o Rio uma combinação única de vida urbana, possibilidades ecológicas, atmosfera litorânea e presença histórica. No entanto, a minha última viagem ao Rio - a propósito, tão maravilhosa quanto a cidade - provocou-me um grande questionamento. Ao passar por um grupo de crianças e pré-adolescentes, na

BB por PAULO SEGUNDO


BBB

região de Botafogo, reparo em uma brincadeira diferente, uma variante de ‘polícia e ladrão’, que resolvo batizar de ‘BOPE versus traficantes’. E, é claro, um dos focos da briga era para saber quem seria o Capitão Nascimento. Nada contra ‘Tropa de Elite’. Em nenhuma de suas instâncias. Embora esteticamente questionável, o filme tenta retratar, com algumas boas doses de violência exacerbada e de teorias conspiratórias - com algum traço de realidade? -, a relação entre a sociedade carioca, o tráfico, a política e o governo. Trata-se de uma proposta


válida para um país que possui inúmeras capitais assoladas pelo temor da criminalidade. O que me chamou atenção, no entanto, é o fato de crianças estarem construindo heróis que se baseiam na violência justificada. O ‘prender o bandido’, intrínseco à brincadeira de ‘polícia e ladrão’, é substituído pelo ‘matar o traficante’. Tem-se aqui um mecanismo de catarse social em que a indignação pelas condições sociais das metrópoles brasileiras se manifesta da forma mais bruta possível - a ‘pena de morte’ -, atualizada em uma brincadeira infantil, refratando uma espécie de desejo coletivo de ‘vendeta’, que exclui o direito a julgamento ou a defesa. Não se pretende aqui discutir essas questões. Deixo-as a cargo da reflexão do leitor. O que pretendo, sim, abordar consiste em uma questão aparentemente mais simples, mas extremamente significativa, uma vez que constitui um ponto central das representações sociais acerca da nossa realidade, especialmente no que se refere ao mundo jovem: quem são os nossos super-heróis atuais? Quais são os critérios de heroísmo válidos na contemporaneidade? Hoje em dia, pelo menos, no Brasil, os heróis de capa e máscara, com identidades secretas, parecem ter perdido o glamour que lhes era inerente nas décadas de 80 e 90, quando eu e meus amigos colecionávamos HQ diferenciadas e as trocávamos, uns com os outros, para estarmos a par das desventuras do universo Marvel e DC em sua totalidade. Hoje, os heróis não possuem identidade secreta. Trabalham para a polícia, para a CIA, para o FBI, o MI6, o Mossad. Estão nas séries de TV, nos filmes, nos jogos e utilizam o aparato do Estado para conter o mal, que não tem superpoderes, mas uma ideologia “perversa” de caráter anti-hegemônico.

Bourne. Bauer. Bond. Jason Bourne. O agente traído em busca da verdade. Jack Bauer. O agente durão que se utiliza da violência crua justificada para conter ameaças ao Estado constituído. James Bond. O agente sedutor, cheio de gadgets, que se vale de diplomacia e de armas estrambólicas para deter a dominação/destruição do mundo. Por fim, o nosso BOPE com seu Capitão Nascimento. O policial tupiniquim honesto e incorruptível que, contra tudo e contra todos, nos traz a paz, conquistada pela metralhadora e pela caveira. O que eles têm em comum? Atraem milhões de espectadores aos cinemas ou aos televisores de suas residências para assistirem à sua cruzada contra o mal personificado na figura de terroristas, traficantes, governo ou algum conglomerado industrial de alto poder econômico, político ou simbólico. Esses agentes, que personificam a lei, captam a audiência, de modo geral, pelo fato de representarem o último campo de resistência contra uma realidade que, muitas vezes, é vista como imutável e inevitável. “A estrutura social é totalmente coercitiva e restritiva. Não há como escapar das maquinações do poder e da escravidão consumista do capitalismo. Não há como contornar a pobreza e a exclusão. Não há como evitar que o fundamentalismo surja e atualize sua batalha contra os dominadores” - tudo isso representa um conjunto de declarações possíveis, que eu, você e muitos outros já ouvimos ou mesmo dissemos e que repercutem no senso comum de modo a fazer ecoar uma sensação geral de apatia, comodismo ou indignação apenas discursiva, raramente prática, que, em geral, apenas resulta na manutenção das mesmas condições de vida. Apesar disso, como o raro é possível, os recentes levantes populares contra os ditadores no mundo islâmico vêm provar que as declara-


ções acima apenas constituem uma grande mentira coletiva, comprada por grande parte da população, atuando apenas como pretexto para a imobilidade e como garantia da sustentação da realidade presente, cômoda para alguns grupos sociais. Contudo, os BBBB não se deixam abater. Eles resistem. Eles lutam contra a realidade opressora, mesmo que tal realidade os sufoque, ainda que ela ameace as suas vidas. Os BBBB - muito diferente dos participantes do BBB - estão dispostos a se sacrificar, não para ganhar um ou dois milhões, além da possível publicidade, mas para “salvar” as pessoas comuns, nós, os indefesos, os destituídos do aparato do poder constituído - legítimo ou ilegítimo -, daqueles de quem não somos capazes de nos defender. O martírio torna-se louvável e, numa sociedade cristã, que valoriza, em regra, o doar-se ao outro, cada um deles torna-se um agente de sacrifício. Eles são torturados e crucificados, enfrentam sozinhos o julgamento do mundo e são, muitas vezes, humilhados, mas permanecem firmes em sua fé, nos seus ideais e na sua missão. Mesmo quando aparentemente derrotados, vencem, e, ao vencer, não são plenamente reconhecidos. Ainda assim, o que fazem repercute, salvando e modificando o mundo. Acabam ungidos. São “cristos” modernos da ficção em massa e da histeria recalcada. São sacerdotes do templo do televisor. Sacerdotes do templo da vendeta e da violência justificada. Sacerdotes do templo da indignação abafada. Sacerdotes do templo da catarse coletiva. E, no caso tupiniquim, em especial, sacerdotes do templo


do silêncio coletivo, da população que, em geral, emudece e apenas torce para que o pior não aconteça. O Batman, que bate, mas não mata, e entrega à polícia o criminoso, não tem mais graça. Ele não entende de catarse. O Super-Homem é forte demais. Não se sacrifica plenamente. E quando parece fazê-lo, soa hipócrita. Seria altruísmo demais. Ele nem é daqui. É um forasteiro. É, no máximo, digno de admiração, mas não tem nada a perder. O Homem-Aranha atualiza o estereótipo adolescente. Luta por amor e acredita que poder traz responsabilidades, quando, muitas vezes, no mundo real, é o fato de assumir responsabilidades que leva ao poder. Ele infantiliza a realidade. Concretiza um ideal romântico numa sociedade marcada por um realismo brutal. Bauer, não. Ele sabe que precisa torturar para obter resultados. Sabe que ele é dispensável. Sabe que TODOS - ou quase - são dispensáveis desde que a missão e a salvação da massa estejam garantidas; por outro lado, não consegue abrir mão de sua família. Bauer é resistente, mas hipócrita. É um herói em construção e desconstrução. Não é admirado, mas entende de catarse. Bond é provocativo. Sabe manipular os indivíduos. Entende de diplomacia. É sedutor. Sofre. Não é onipotente. Depende de seus gadgets. Mas executa. Não está disposto a sacrificar inocentes para salvar o mundo. Para ele, todos devem ser salvos. Parece até um pouco altruísta num mundo que acredita que altruísmo é conto de fadas ou ingenuidade. Ele é admirado, mas conhece o sacrifício e o martírio. Bourne é profissional. Segue as regras de um livro de táticas implantado em sua mente desconstruída. Está em busca de uma identidade. Vive sob a égide da perda. Não se sacrifica, pois ele próprio consiste em um sacrifício. Não há o que perder se o indivíduo não tem passado. Mas Bourne se opõe à corrupção, ao aparato legítimo de poder tomado pela ânsia do controle coletivo. Ele é movido pela indignação. Conhece nossa vontade de gritar. Pode ser um herói moderno. O Bope e seu Capitão Nascimento são incorruptíveis. Não se deixam levar pela fanfarra de subornos, chantagens e de “jeitinhos brasileiros”. Eles não fazem parte do “sistema”. Eles estrangulam o sistema até fazer expelir os resíduos que o tornam podre. Obviamente, são oprimidos. Capitão Nascimento é mais do que um homem resistente, é mais do que alguém indignado, é mais do que um indivíduo traído. Ele é o grito de luta do povo que se julga oprimido, que se


conforma, que encarna a desesperança e não vai às ruas. Quase nunca. Os BBBB são heróis modernos. Paradoxalmente, os participantes do BBB também são. Afinal, são anônimos que chegam às telas e brilham, como Bauer, Bourne, Bond e o Bope do Capitão Nascimento, e se tornam sacerdotes do templo da vigilância. Dão voz a diversos segmentos da sociedade - obviamente, de modo estereotipado e simplista. Mas concorrem a seis dígitos. Podem indignar-se, sentir-se oprimidos, colocar a boca no trombone, podem fingir ser altruístas, podem, de fato, ser altruístas, podem se corromper ou não, criando o espetáculo da dramatização da vida em sociedade no foco de câmeras que proporcionam milhões à emissora e, mais ainda, às empresas cujas propagandas

são veiculadas no horário. Também são heróis. E melhor: heróis que mobilizam a sociedade. A população escolhe seu BBB favorito, luta por ele, chora por ele, se revolta por e com ele. Assume-o. Muitos querem ser como aquele BBB. Eles entendem de catarse. Transmitem a ideia de sacrifício. Gritam e choram. Sabe, eu comecei esse texto questionando se o Capitão Nascimento, assim como seus colegas Bauer, Bourne e Bond, deveriam ser, realmente, os heróis da modernidade e alvo das brincadeiras das crianças. Mas, agora, pensando que os Big Brothers também podem ser considerados heróis, sob uma certa perspectiva, começo a ficar em dúvida se não é melhor manter o Capitão Nascimento... pelo menos, ele é, de fato, uma personagem fictícia...


AFINAL,

Sansão ou Dalila? por YASMINE COLUCCI

A

o terminar de assistir à minissérie da Record ‘Sansão & Dalila’, percebi que havia encontrado o que desejava abordar na minha matéria desta edição. Começo dizendo que a Record - da qual eu sou imensamente fã - mostrou que está crescendo e melhorando suas produções. Os efeitos especiais aperfeiçoaram-se se comparados à super-novela dos Mutantes, mas ainda continuam fracos se a referência é a norte-americana - as cenas de lutas da minissérie eram dignas de produções de fina comédia. As pilastras caindo no último capítulo só não foram patéticas, porque as atuações foram de boa qualidade. Contudo, o elenco, a fotografia, o cenário, o figurino e o roteiro este, um pouco repetitivo em algumas partes - merecem total elogio. E que surjam mais minisséries como esta da Rede Record! A série tinha, de fato, tom de série. Não parecia uma novela como algumas minisséries produzidas atualmente. Por mais que me sentisse a única pessoa a ver essa série - nenhuma pessoa dos meus ciclos de amizade manifestou estar assistindo-lhe -, ela

teve uma boa audiência comparada a outros programas da Record - média de 16 pontos -, porém baixa, se fôssemos comparar com as produções da Rede Globo. Contudo, penso que há pessoas que trocaram o patético, controlador e famigerado BBB por uma produção de qualidade, que mereceu, de verdade, essa troca. Desculpem-me os fãs de BBB, mas essa troca é um feito heróico! Deixa-me explicar o que quero dizer. O BBB é um programa muito assistido e comentado pelas pessoas em diversos locais: supermercado, academia, cabeleireiro, sala de aula, entre outros. Aí, você decide assistir um programa no mesmo horário que o BBB, então, aquele não vai ser comentado, e os assuntos sobre este, você não conseguirá opinar. Portanto, você pensará “Puxa, não posso comentar nada sobre o BBB11 porque estava vendo ‘Sansão & Dalila’”. Saiba que para mim, você é meu herói, e nós podemos formar o nosso “Clube de Leitura da Jane Austen”. Mas, brincadeiras à parte e voltemos ao que interessa... ‘Sansão & Dalila’ teve um final que já era esperado para quem conhece a lenda bíblica, e esta mostra que nós não podemos perder a


nossa fé. Desculpem-me os ateus - sou católica, não-fervorosa e respeito toda e qualquer religião - mas acredito, assim como Sansão, que Deus está em todo lugar e que ele planejou uma missão para cada um de nós. As pessoas, na história, assumiam Sansão como um herói, tendo em vista que o rapaz possuía uma força indescritível proveniente do Espírito Santo, por meio da qual podia destruir todo e qualquer inimigo filisteu que tentasse dominar o seu povo hebreu. Sansão, na minha percepção, era um brutamontesem-cérebro que se deixou persuadir pela luxúria - ou amor, como queiram - e se desviou de seu caminho/sua missão. Isso aconteceu devido às mulheres as quais o encantaram e o traíram: uma (Ieda), por medo, e outra (Dalila), por vaidade. Percebe-se que as mulheres bíblicas são ardilosas e más, mesmo que aparentem a bondade. Delas, provém a maldade do mundo, uma vez que elas precisam pagar pelo que sua genitora, Eva, cometera: comer do fruto proibido por Deus. Sansão, assim como Adão, foi persuadido por uma Eva e traíra os mandamentos de Deus, sendo castigado por isso. O ponto a que quero chegar é o seguinte: os heróis, por mais que sejam venerados, estão cheios de pecados - considerando estes como algo que torna alguém corruptível em termos da lei de Deus e até dos homens -, como qualquer um de nós. Os heróis sofrem, gritam e possuem fobias. Sansão pode até ter sido O escolhido por Deus, porém, ao ver toda sua história adaptada para a minissérie, o telespectador pode ter encontrado em qualquer outro personagem o seu escolhido - aquele que ele escolhera para torcer e “se dar bem no final”. O heroísmo, então, tem diversos pontos de vista. Por exemplo, a minha escolhida fora Dalila - interpretada por Mel Lisboa -, uma mulher que fora estuprada pelo padrasto, e assim, perdera seus sonhos. Ela levava uma maldição consigo: uma beleza avassaladora

que perturbava qualquer homem ao ponto de querer possuí-la. Mesmo passando por maus bocados, Dalila atingia seus gananciosos objetivos e pode se afirmar que ela fora uma guerreira ao conquistar tudo que desejava. Afinal, para alcançá-los, ela precisava vencer seu maior vilão: o efeito da sua beleza e, então, destruir todos os homens que por ela se sentiam atraídos. E conseguiu. Ela foi a minha heroína, por mais que tenha morrido no final e perdido a única oportunidade de amar e ser amada. Ela sabia manipular a todos e foi, na minha analise, a mais esperta da história. Sabia que ela morreria. Todavia, torci para que aquela pilastra inútil fosse de isopor e Dalila sorriria em cima de suas preciosas pratas e joias. Esse é o efeito que herói causa nas pessoas. Quando uma pessoa declara alguém seu herói é por algum motivo, geralmente, pelas suas qualidades. Ela passa a amá-lo e guardá-lo na sua memória, mesmo que contenha nele, diversos defeitos. Contudo, essa pessoa não sabe que no inconsciente de seu herói pode haver um grande vilão. Os heróis dizem que possuem inimigos, se isso é verdade ou não, ninguém sabe. Eu concordo que sempre há algum inimigo para cada herói, contudo, estes passam a se consumir e voltar suas vidas com essa idéia ao ponto de, muitas vezes, perderem a razão. Assisti esses dias, um episódio da série 90210 (CW) e reparei numa história que uma guru conta a uma das protagonistas, Naomi. Ela diz que em uma tribo, o chefe ensinou a um menino que, dentro de nós, havia sempre uma batalha entre dois lobos: um representava o mal, e outro, o bem. Depois disso, o menino pergunta a ele quem seria o vencedor. O chefe responde que será aquele que alimentarmos. Logo, pego o exemplo de Sansão – interpretado por Fernando Pavão - e do Comandante Abbas - Milhem Cortaz. Sansão nunca entendeu sua missão, mas sabia que devia proteger seu povo e levar as leis do Deus único adiante. Porém, escolheu


também desejar e querer as mulheres, principalmente, as do povo inimigo. Deixava-se levar pela sua fúria quando uma delas o traía - estas revelavam segredos seus - e, assim, alimentava o seu lobo ruim: matava incontrolavelmente, incendiava plantações dos inimigos e se vingava. Isso atraía a raiva de seus “vilões”. Contudo, é fácil constatar que Sansão também os atiçou. O Comandante Abbas, por sua vez, constituía-se no vilão da história - estava contra o mocinho, Sansão, tendo em vista que era comandante do exército filisteu que castigava e escravizava os hebreus - e queria destruir o herói hebreu de qualquer maneira. Entretanto, vamos tratálo como um herói também, pelo fato de que ele, para o seu povo, era o seu protetor. O Comandante também possuía sua missão e seu ideal: cuidar do reino e das pessoas, ganhar muito dinheiro e mulheres no processo e adorar os seus ‘falsos’ Deuses de pedra que, na opinião de Abbas, eram verdadeiros. Sansão era, para ele, uma ameaça e o seu maior vilão. E, por isso, o fato de não conseguir matá-lo era extremamente humilhante. Abbas acaba enlouquecendo e morrendo, no final. A história consagra que os mocinhos lutam por causa de Deus - eu não desacredito - e que os vilões, no fundo, só querem poder, status e dinheiro. Aqueles são pobres; estes, ricos, o que remete à famosa frase: “Dos pobres será o reino dos céus”, interpretada de forma literal por muitos, os quais acreditam que o fato de não possuir uma boa condição financeira leva a uma vida após a morte bem celestial. Digo, então, que não é o heroísmo que realmente importa, e sim, a fé. Não estou dizendo que ele não é necessário, ele é. Toda pessoa, mesmo crescida, precisa de algo para se espelhar e algo para idolatrar. Quando criança, chamamos de herói; quando adolescentes, apelidamos de ídolos e, quem sabe, quando adultos, de chefe. Brincadeiras à parte, mas, novamente, ofereço um exemplo pessoal.


Quando eu era criança, cheguei a bater em um menino porque ele falou mal da ‘Sakura Card Captors’. Para mim, além de meiga e heroica, aquela que salvava a todos - hoje sei que foi pela burrada que ela cometera ao libertar todas as ‘Cartas Clow’ -, ela era uma garota em um mundo onde a maioria dos heróis era homem. Queria ser igual a ela. Já, na minha adolescência, quem brilhou foi o ‘Harry Potter, e, eu digo que agradeço imensamente até hoje por ter me apaixonado pela série, tendo em vista que, se não fosse ela, e, principalmente, Dona J.K. Rowling, não estaria escrevendo na Manuscrita hoje. Eu não abria um livro e não escrevia absolutamente nada de útil antes de adentrar este mundo mágico. Harry Potter trouxe-me diversos amigos e o prazer de ler e escrever. Agora, na minha fase adulta, digo que não tenho personagens como heróis, mas, sim, pessoas diversas: meu irmão, por ser a melhor pessoa do mundo, meus amigos, por me aturarem, minha família, por me amar e, artistas - os competentes e muito bons - porque quero um dia, estudando muito, ser como eles. Portanto, assim como Sansão, acredito que a fé, não importa de onde venha a sua se for boa, isto é, que não prejudique alguém e não lhe traga seus vilões para fora -, é o que move o mundo. Acredito que os heróis e os vilões estão em todos os lugares do mundo e dentro de nós mesmos. Estes, quando habitados na nossa alma, podem aparecer na forma do medo, da solidão, da violência, entre outros. Basta sabermos situar o vilão - independente de qual seja - no lugar adequado, para que ele apenas desafie o herói a adquirir mais poderes e vencer as dificuldades. Afinal de contas, heróis e vilões mesclamse e confundem-se nos dias atuais e essa dualidade sempre existirá: com dólares na cueca, com falsas promessas, com alimentos para os necessitados. O importante é que saibamos escolhê-los e tirarmos deles uma lição para as nossas vidas.


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SÁTIRAS Tiras sem desenho por MARCELO SARAVÁ

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JOÃO PAULO SÁ em


diálogos notívagos COMIGO mesmo Confia Se o azul do mar já não se confunde com o do céu Se a vista da janela hoje tem gosto de fel E o existir é só representar mais um papel Confia tua mão, meu bem Junto a ti, provarei de um novo mel Se as paredes insistem em se aproximar Se o travesseiro é o ombro pra chorar E o dia não tem razão para acordar Confia tua mão, meu bem Junto a ti, enxugarei o nosso lar Se o som que escutas não é a trilha que eu faria Se o cantar já perdeu a melodia E o teu viver outrora eu coloria Confia tua mão, meu bem Junto a ti, pintarei um belo dia E quando o calor de nosso enlace Comprovar a sintonia Confia teu coração, meu bem Confia


AMANDA SOUZA em

Mande suas dĂşvidas sobre o universo afetivo para o email: amanda@manuscrita.com.br


CONSULTÓRIO sentimental Acabei me apaixonando pelo meu melhor amigo. São mais de 10 anos de amizade e nunca olhei para ele dessa forma. Hoje, acho que poderíamos dar muito certo juntos, mas tenho medo de falar isso com ele e acabar estragando nossa amizade. Como proceder? Cristina, 26 anos, arquiteta Primeira coisa: você precisa, antes de mais nada, ser bastante autocrítica e tentar entender, primeiramente, por que foi que você passou a vê-lo de uma forma diferente após 10 anos de amizade. Porque, apesar do que o senso comum prega, acho que é muito difícil que a gente demore dez anos pra se ver apaixonado por alguém com quem sempre tivemos estreita convivência. É muito, mas muito mais provável que você deva ter projetado neste sujeito uma carência profunda, aliada a todas as qualidades louváveis que ele deve ter como amigo. Por esta razão, se precipitar e se declarar para o sujeito, deixando-o no mínimo em pânico, e colocando em risco a amizade de vocês pode ser uma grande fria. Agora, se após essa necessária reflexao, você chegar a conclusão de que realmente não pode ficar indiferente ao que está sentindo, aí sim cogite a possibilidade de se abrir com seu amigo. Porém, é muito necessário que você tenha uma visao muito crua da questão: pode dar certo. Mas a probabilidade maior é de que este sentimento exista apenas de sua parte, botando em risco, portanto 10 anos de história em comum, de amizade, de boas histórias.

Comecei a namorar um cara maravilhoso. De início, era tudo lindo. Porém, ele passou a “proibir” demonstrações públicas de afeto por não curtir atitudes efusivas e por não saber retribuir à altura. Vale a pena investir em um relacionamento em que qualquer movimento pode ser encarado como exagero? Igor, 30 anos, jornalista Imagino que tudo deva partir de uma simples questão: o quanto te incomoda essa “proibição” da manifestação dos sentimentos? Você acha que tal atitude dele acaba tolhendo o seu jeito de ser? Ou, apesar de tudo, se sente seguro ao lado dele? Se o pedido dele te incomoda e se, por conta dele, você acha que não consegue ser espontâneo, se sente “preso”, penso que é necessário que você discuta essa questão com seu namorado, a fim de que se entenda por que realmente ele proíbe que você se expresse. É timidez? Incapacidade de lidar com o amor recebido? Homossexualidade mal-resolvida? Pode ser que ele faça um pedido desses, mas não tenha a real noção do quanto importa para você expressar publicamente o que sente. Por isso, é sempre válido jogar limpo e dizer o que se sente. Uma boa opção seria tentar buscar o meio termo: você não sai gritando a todo instante e aos quatro cantos do mundo que morreria por causa dele, e ele não te tolhe quando você quiser acarinhá-lo em público. O que não pode, nunca, é o unilateralismo: apenas uma opinião sendo acatada a ferro e fogo, enquanto a outra parte está descontente.

E o que fazer quando não se acredita mais no amor? Iris, 23 anos, estudante A vida sempre nos sacaneia e parece conspirar a favor dessa ideia de que o amor não existe e que não devemos acreditar nele. Mas depois de passar um periodo me rendendo a essa ideia, acabei crendo que desacreditar no amor não torna ninguém melhor não. Muito pelo contrário: a descrença na existência do amor é feito sal em cima da lesma: ataca-a e vai derretendo-a progressivamente, até ficar ali um traço de existência, ínfimo. A gente não pode achar que o amor é privilégio de poucos, e que nós não nascemos nessa lista fúlgida de gente bonita e privilegiada. Todos nós merecemos amar. Todos nós merecemos ser amados. Assim como todos nós, para entendermos isso, também precisamos ferir e sermos feridos. E tudo é um processo: se você, hoje, não acredita mais no amor, acredite, pelo menos, que isso que tá sentindo é uma fase. Pode acreditar que o amor não é só isso que você acha que não tem. Ele tá escondido em cantos, frestas, nos raios de sol, no desabrochar das flores, no bom dia de um desconhecido. O nosso grande erro é acreditar que o amor é algo limitado. E, quando ele não acontece dentro desses “padrões” que nós mesmos determinamos, é como se uma onda de pessimismo nos invadisse e nos dissesse que ele é algo que não existe. Erro. Resta a nós não deixar de procurá-lo onde ele se esconde. Porque pode acreditar: encontrá-lo é algo que está ao nosso alcance sim.


VERA MONTEIRO em


papo de MÃE A arte de superar o impossível Hoje escrevo especialmente quem não usa a máscara do Zorro, não voa como Clark Kent e tampouco tem um Batmóvel na garagem. Escrevo para quem dá a cara a tapa e que faz por merecer a alcunha de herói.

promessas não cumpridas. Heróis que, ao invés de admirados, são alvo de chacota e descaso de vilões ardilosos. São R$ 545,00 de farinha e feijão lutando com 62% de reajuste salarial para quem consome caviar.

Comecemos pelos menores de rua que, fadados ao descaso e à rejeição, se fortalecem em seu próprio medo. Quem se importa com eles, não é verdade? Já são parte dos cartões postais das metrópoles...

Desigualdade e troca de valores, especialmente os morais e, apesar disso, nossos guerreiros continuam sendo o povo mais corajoso, alegre, receptivo e crédulo de que amanhã será melhor.

E que tal lembrarmos dos chefes de família que, fingindo sobreviver, mantém suas famílias com o salárioesmola de R$ 545,00? Falando nisso, lembremos dos heróis, filhos do aborto, que conseguiram escapar do horror tanto quanto os sobreviventes do holocausto.

Quem sabe se o coelhinho da Páscoa não trará ovos recheados de promessas cumpridas, ou no bico da cegonha venham bebês que receberão amor, proteção e educação de seus genitores. E finalmente quando chegar o Natal, Papai Noel virá com suas renas e trenó, espalhando salário-mínimo decente, sistema de saúde eficaz, ensino público edificante e, por fim, um sistema prisional que reabilite pessoas e não mais forme feras.

Nossas crianças precisam aprender, desde cedo, que, além dos heróis das histórias em quadrinhos, existem os de carne e osso,diariamente vestindo suas capas de coragem e enfrentando os vilões da fome, da violência, do preconceito e da ausência de amor. As pessoas, aliás, estão carentes de afeto, sendo que este vem não só de beijos e abraços, mas, acima de tudo, de respeito. Vivemos num país de heróis que são continuamente afrontados por

E viva o National Kid!


BIJOU MONTEIRO em


COZINHANDO com Mademoiselle Bijou Reza a lenda que super-herói come espinafre para crescer e ficar fortinho, mas, como sou do contra, imagino que os guerreiros contemporâneos se alimentem do que é mais gostoso, simples e rápido de preparar. Até porque, sinceramente, limpar pé de espinafre é trash demais. Lápis e papel na mão para fazer sua pancinha sorrir feliz, meu amor!

Macarrão de panela de pressão Ingredientes: - um pacote de macarrão parafuso (os outros tipos derretem rápido e viram patê); - duas latas de molho de tomate tradicional; - uma lata de creme de leite (eu disse LATA. A caixinha azeda, ok?); - uma lata de milho ou ervilha; - dois tomates, uma cebola, salsinha e alho a gosto (tudo bem picadinho); - queijo ralado;

Modo de preparo: Pegue aquela sua panela de pressão esperta e que, até agora, você acreditava servir apenas para cozinhar feijão ou carne louca. Refogue (com um pouquinho de azeite, se possível) a cebola, o alho, os tomates e a salsinha. Se você não gostar de cebola, alho ou os dois juntos, fique sussa. O próprio molho de tomate já vem temperadinho. Ao refogado da panela, acrescente o milho (ou a ervilha, se assim você preferir) e mexa um pouquinho. Feito isso, despeje o pacote inteiro de macarrão parafuso, as duas latas de molho de tomate tradicional (pode colocar um pouquinho de água nas embalagens pra salvar o restinho de molho e despejar na panela, tá?) e a lata de creme

de leite. Eu não sou de colocar muito sal na comida, mas, se além do sal do molho de tomate você quiser adicionar a sua pitada pessoal, fique à vonts. Tampe a panela e coloque-a em fogo médio. Assim que a bendita começar a apitar (logo no primeiro “tsssh”), retire-a do fogão e, de quebra, tire a pressão dela. Mexa um pouquinho com uma colher de pau, tornando a tampá-la e colocá-la em fogo médio. Alguns minutos depois, quando o apito fizer “tsssh” novamente, você faz todo esquema de tirar a panela do fogo e abri-la depois que a pressão tiver saído. Coloque num prato fundo (cabe mais, você sabe), cubra de queijo ralado e seja feliz como se não houvesse amanhã.

Essa receita é da Chibbi, a zumbi vegetariana capa da Manuscrita #3. As onomatopeias, no entanto, são minhas e só Deus pode me julgar. Arrase no almoço de domingo e não se esqueça do fundamental: bon appetit!


apresenta

DUELO de mixta N

em Po, o urso de ‘Kung Fu Panda’, é páreo para nossos convidados desta edição. Três duelos, seis ótimas mixtapes, com músicas para todos os gostos. Aproveite... E não esqueça de apontar o vencedor de cada confronto. Podemos receber seu voto por email, pelo Twitter ou nos próprios comentários do Issuu. Basta dizer o nome do autor da mixtape.

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Vencedores dos duelos da edição passada: Marcelo Saravá e Paulo Segundo


O apes


Dafne Paixão I Like You So Much Better When You’re Naked - Ida Maria Bleeding Love - The Wombats Baby Come Home - Dirty Sweet Night Train - Blackwater James My Sharona - The Knack Happy Together - The Turtles Umbrella - The Baseballs I Want you To Want Me - Cheap Trick Crazy Little Thing Called Love - Michael Bublé Handle With Care - Traveling Wilburys

X


DUELO 1

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Pedro Nunes The Killers - All These Things That I’ve Done M. Ward - Chinese Translation Radiohead - No Surprises CAKE - Ruby, Don’t Take Your Love To Town Queen - Under Pressure Johnny Cash - The Man Comes Around The Cardigans - My Favourite Game Richard Cheese - Creep Pearl Jam - Do The Evolution Pete Yorn - A Girl Like You


Marjory Abuleac If You Let Me Stay - Terence Trent D’Arby My Ever Changing Moods - The Style Council What I Am - Edie Brickell & The New Bohemians Book Of The Month - Lovage A Whiter Shade Of Pale - Procol Harum Como Te Extraño Mi Amor - Café Tacvba Hot-N-Fun - N.E.R.D. Kangaroo - This Mortal Coil Amor Al Arte - Orishas Fata Morgana - Dissidenten

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DUELO 2

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Marina Cavassane Hercules & Love Affair - Blind Lou Reed - A Walk On The Wild Side Gotan Project - Santa Maria In-Grid - Tu Es Foutu Camille - La jeune fille aux cheveux blancs Moby - Dream About Me Stereophonics - Dakota Paulinho Moska - Ăšltimo Dia Arnaldo Antunes - Socorro Blue Man Group - I Feel Love


Peu Carneiro Shout - Tears for Fears Circle The Drain - Katy Perry Back It Up - Caro Emerald All The Lovers - Kylie Minogue Missing You - Black Eyed Peas Hold It Against Me - Britney Spears Pump It - Black Eyed Peas My Prerogative - Britney Spears Work - Ciara feat. Missy Elliot Do Somethin’ - Britney Spears

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DUELO 3

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Roberta Bernardo Roberta Sá - Alô Fevereiro David Bowie - Modern Love Elis Regina - Menino das Laranjas Rita Lee e João Gilberto - Jou Jou Balangandans Gilberto Gil - Chiclete Com Banana Maysa - Light My Fire Paula Lima - Gafieira S/A Rita Lee - Lança Perfume Michael Bublé - Everything Antonia Adnet - Discreta


As fotos usadas nas páginas desta revista foram retiradas de arquivos pessoais, bancos virtuais livres ou através de reprodução de conteúdo próprio. As exceções estão especificadas.

Confira as primeiras edições da Manuscrita:

E também a edição especial sobre música brasileira:

www.manuscrita.com.br


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