Ação Educativa: Relatos de experiência
Proposta Político-Pedagógica
A proposta político-pedagógica desenvolvida para a exposição “São Vito, uma escavação” teve como princípio o exercício de uma mediação fundada na autonomia, não apenas como desejo e busca de uma experiência autônoma para os visitantes, mas também no exercício da autonomia por parte dos educadores, em busca de relações e triangulações entre as obras, entorno, corpos no espaço, recombinações livres e, em especial, potencializando a caraterística expositiva de site specific. Em busca de uma mediação para a autonomia da própria mediação, livre para “escavar” as camadas das margens de um Tamanduateí (referência para os povos originários dessa terra), remexer as escolhas e desdobramentos da invasão europeia no século XVI, identificar os fluxos colonizadores ao longo de séculos, a instalação da disputa pela terra sob a égide da propriedade privada nos primórdios da Vila de Piratininga, os processos de valorização e segregação territorial que incidiram sobre a região, as recentes disputas de narrativas sobre a cidade, bem como o que permanece e o que é destruído (como o São Vito, por exemplo) dentre outras reflexões intimamente relacionadas a perguntas geradoras como “Quem constrói e planeja a cidade?”, de forma a investigar simultaneidades históricas, alterações de paisagens e disputas conceituais, de maneira não cronológica ou linear. Conceber o espaço expositivo como obra aberta e propor trajetos a serem vivenciados, sem início ou fim pré-determinados, mas experimentados a partir da relação entre educadores e visitantes, em relação de trocas, em busca da superação da expectativa passiva da “visita guiada” e da realização de uma “visita compartilhada” e irrepetível.
Selma Maria de Andrade e Luis Gonzaga Lopes, ex-moradores do edifĂcio MercĂşrio
Em busca dessa relação entre o espaço expositivo e a cidade que a compõe em pleno acontecimento para além das grades, era necessário cartografar psicogeograficamente, um mapeamento sensível do entorno, captando e compreendendo os afetos e reflexões dos atores sociais da região, em especial, os últimos moradores daquela localidade, os ex-moradores do edifício São Vito e Mercúrio. Valorizar suas histórias e memórias, construir canais de fluidez de narrativas não hegemônicas e atualizar as informações sobre os desdobramentos promovidos em suas vidas decorrentes do despejo e posterior demolição dos edifícios, o que se configurou como um apagamento da história de milhares de pessoas, sem qualquer consideração sobre o patrimônio imaterial que representavam, tornou-se além de imperativo ético, um pressuposto elementar para o trabalho cuidadoso e delicado que a exposição demandava.
Proposta Político-Pedagógica
A constituição do educativo Neste contexto, na segunda quinzena de janeiro de 2019, iniciamos as atividades de reconhecimento da região, em busca de ex-moradores. Após pesquisas prévias, levantamos a existência de diversas ações judiciais provocadas por ex-moradores que lutavam por receber indenizações referentes à desapropriação. Buscamos o suporte do Centro de Direitos Humanos Gaspar Garcia, importante fomentador de lutas relacionadas ao Direito à cidade. Contatamos Benedito Barbosa, advogado atuante nos movimentos de moradia, responsável por subscrever diversas ações relacionadas ao São Vito e Mercúrio. Levantamos ali uma lista de alguns nomes que persistiam na busca de seus direitos, apesar da demolição ter sido realizada em 2011. Além disso, desenvolvemos uma pesquisa bibliográfica estruturada em três eixos: 1. Mediação (fundamentos da prática política-pedagógica proposta) 2. São Vito / Mercúrio (Pesquisa relacionada às circunstâncias de cada edifício) 3. Território/Moradia/Gentrificação (Compreensão de fenômenos urbanos relacionados ao território) Tais referências originaram o caderno de estudos do educativo, com uma fundamentação conceitual e histórica prévia, a ser completada ao longo dos trabalhos e das demandas da prática educativa realizada. Ainda em janeiro, iniciamos a montagem da equipe de arte-educadores, tendo em vista as características da exposição, com componentes historiográficos significativos, além da diversidade de público que receberíamos, incluindo a faixa etária a partir dos seis anos. Precisávamos de uma equipe heterogênea, com domínio e pesquisa das temáticas chaves da exposição, e com experiência de mediação arte-educativa.
E a equipe foi montada: Arte-educadores Carolina Oliveira (historiadora e arte-educadora) Cauê Tanan (historiador e arte-educador) Mirrah Iãnez (cineasta e arte-educadora) Priscila Harder (atriz, contadora de histórias e arte-educadora) Articulação do educativo Diga Rios (artista, cientista social e mestre em arte-educação) Milene Valentir (artista, bacharel em filosofia e mestre em arte-educação) Em fevereiro, com a exposição já inaugurada, vivenciamos quatro dias de estudos que compreenderam: derivas pela região, encontros casuais com ex-moradores nas ruas do entorno, reconhecimento da vizinhança (catavento, rodoviária, Igreja de São Vito, Zona Cerealista, Mercado Municipal e etc), georeferenciamento dos edifícios no território e reconhecimento da paisagem; estudo das referências bibliográficas; encontros agendados com ex-moradores e elaboração de propostas de jogos como recursos educativos. No dia 13 de fevereiro iniciamos as atividades junto ao público. Iniciava, simultaneamente, um exercício autônomo da equipe, de confecção de abordagens educativas significativas e de troca de saberes junto aos visitantes e ex-moradores dos edifícios São Vito e Mercúrio.
A constituição do educativo
Ana Paula, ex-moradora do SĂŁo Vito.
Relação com ex-moradores Em nossas derivas em busca de encontrar ex-moradores dos edifícios São Vito e Mercúrio, acessamos um campo de traumas, violências, expulsões e uma sensação perene de injustiça, atrelados a uma ideia de pertencimento e reconhecimento daquele território por parte das pessoas que, por óbvio, enxergam em camadas sobrepostas de memória/história, aquele território não como o espaço do Sesc Pq Dom Pedro, mas a localidade em que viveram, estabeleceram laços e exercitaram suas vidas. Conversar sobre tais processos significou remexer em feridas, despejos e traições. Os moradores do São Vito deixaram o edifício em 2004 com documentos firmados junto à prefeitura que retornariam após a reforma do prédio, fato que nunca ocorreu. No judiciário, tramitam morosamente processos de indenização, pois a maioria dos ex-moradores não recebeu nenhum tipo de ressarcimento pelo ocorrido. Em muitos encontros, ódio e repulsa eram imediatos. Em suma, tornou-se prioritário para a equipe de arte-educadores fomentar práticas educativas que respeitassem essas circunstâncias e que agregassem na integração, demandas e lutas dos ex-moradores. A exposição e o Sesc Pq Dom Pedro estavam sobre os escombros de muitas vidas, ocultadas pelas reformas urbanísticas, mas firmes nos imaginários, afetos e memórias dos atingidos.
A planta baixa em tamanho real de um dos mais de seiscentos apartamentos do São Vito instalada no espaço expositivo materializava alguma forma de contato com o cotidiano do edifício, ao mesmo tempo em que possibilitava o exercício de imaginar aquela região antes da demolição de todo o quarteirão. Em busca dessas experiências, criamos um jogo em que os participantes eram convidados a ocupar papeis na planta baixa, trazendo à tona desafios da moradia naquela configuração, bem como a relação entre o espaço apertado do apartamento e o valor do metro quadrado na região central da cidade.
Jogos
Planta-baixa
Jogos
Casa Despejo
Em busca de acolhimento aos estudantes de ensino fundamental que nos visitavam via agendamento, criamos o jogo Casa Despejo, onde a temática da luta por moradia na cidade de São Paulo era refletida. A cada rodada, dois corpos formavam uma casa, com espaço de moradia para uma pessoa. Após o ajuste, a ordem de despejo desequilibrava o ajuste, obrigando a rearranjos na turma, com o objetivo de ninguém ficar sem casa, ou não existir casas vazias. De forma lúdica, aquecíamos a discussão sobre moradia antes de chegarmos ao espaço expositivo.
Ponte do Carmo - Marc Ferrez - 1885
Vista da ladeira do Carmo - Atual Rangel Pestana - 1862
Mercado dos caipiras - 1910
Localização Pq. Shangai década de 50
Montamos um acervo de imagens, documentos e matérias de jornais que remetessem à várzea do Tamanduateí, o processo de ocupação, urbanização, retificação do rio, valorização territorial, entre outras temáticas. A mala ficava exposta no espaço da exposição, como um convite para ser explorada, ao mesmo tempo em que servia de suporte para as ações dos arte-educadores.
Jogos Mala de memórias - Acervo de imagens
O então prefeito Jânio Quadros leu no jornal que a polícia não teria acesso ao prédio e determinou sua implosão. A ordem foi revogada semanas depois
1987
Primeira tentativa de despejo do São Vito
Nas constituições anteriores, falava-se apenas em direito à propriedade privada. Apenas na nova Constituição a moradia surge como direito básico
Inclusão do direito à moradia como um direito básico
1988
Jogos
Cartas
Baralho com datas importantes na luta pelo direito Ă cidade, direitos humanos, direitos civis, datas de reformas urbanas, parcerias pĂşblico-privadas e etc. Um jogo que buscou identificar de forma lĂşdica as disputas pela terra nas grandes cidades, seus vetores, interesses e processos especulativos.
Em busca de memórias e do imaginário sobre a região e os edifícios situados naquela quadra, lançamos para além das grades da unidade do Sesc um conduite, convidando transeuntes a dividirem seus saberes. Do lado de fora da grade, um arte-educador convidava e mediava a proposta. Dentro do Sesc, na outra ponta do cano, outro educador iniciava o diálogo.
Jogos Memória pelo cano
Trabalho realizado por estudante do 5º ano da Emeb Professora Janete Mally Betti Simões, de São Bernardo do Campo, após a visita à Exposição São Vito.
Relações prévias e desdobramentos Ao longo da exposição, em busca de aprofundar as relações com os grupos agendados para a visitação, estabelecemos a proposta de relação “pré-visita”, contatando educadores e responsáveis pelos grupos e alimentando-os com informações e detalhes sobre as atividades que aconteceriam no dia da visita. A aposta era valorizar o encontro não apenas como um “passeio”, mas como uma visita a uma exposição em que cada sujeito de conhecimento já tem elementos e informações que fomentam uma relação mais participativa nas atividades. Além disso, viabilizando parcerias junto aos educadores visitantes, que potencializassem outras atividades após a visita, propostas nas instituições de origem. O resultado pode ser visto com o envio de trabalhos e atividades propostas, além de relatos dos educadores sobre a importância da visita.
Trabalho realizado por estudante do 5º ano da Emeb Professora Janete Mally Betti Simões, de São Bernardo do Campo, após a visita à Exposição São Vito.
Trabalho realizado por estudante da EJA da Escola Paulo Emílio Vanzolini após a visita realizada na exposição.
Relatos A visita realizada no dia 26 de abril de 2019 foi bastante interessante. Abordar a turma de forma lúdica foi uma grande sacada, pois conquistou o grupo e o preparou para a apreciação da exposição e da problemática retratada. A conversa entre o grupo de educadores e o grupo que acompanhou as crianças também foi importante, aguçando o interesse e facilitando a compreensão do que seria proposto na visitação. Dividir a turma em grupos menores é sempre uma boa estratégia, promovendo o acesso à informação, a vez de escutar e de falar. A temática provocativa mobilizou a opinião das crianças e dos educadores, promovendo reflexões importantes sobre moradia, dignidade, respeito, proposta de governo, organização social e política. De volta à escola, em sala de aula, foi possível realizar várias conversas e assistir ao documentário que recebemos, até para contextualizar para as crianças que não participaram da visita. Discutimos sobre mudanças na paisagem, transformação das cidades, ação humana, patrimônio e fizemos relação sobre o lugar onde a escola está inserida, ocupação, favela, comunidade e ponto de vista. Parabéns ao grupo de educadores pela intervenção realizada junto às crianças e educadores que lhes acompanharam. Parabéns a toda organização da exposição. Aguardamos, ansiosamente, mais convites! Profa. Cátia - 5º ano B - Emeb Professora Janete Mally Betti Simões, de São Bernardo do Campo
Relatos A visita ao SESC D. Pedro foi muito relevante para os nossos estudantes sob vários aspectos. É um espaço que vale a pena ser ocupado e representa um recorte interessante na história da nossa cidade. A exposição sobre o Ed. São Vito estava realmente muito boa. Meu grupo foi recebido pelo Cauê, que também é historiador e permitiu muitas intervenções dos estudantes. Eles (e eu) gostaram especialmente das fotos dos antigos moradores do edifício, algumas muito comoventes pela sua história. Outro ponto alto da exposição foi a planta de um apartamento em tamanho natural desenhada no chão para dar uma ideia das dimensões reais dos apartamentos do edificio. Foi divertido ver os meninos e meninas tentando se acomodar num espaço tão limitado. Nossos estudantes simplesmente brilharam discutindo temas complexos como gentrificação e projetos de urbanização da cidade de São Paulo com o Cauê. Nota dez para a recepção calorosa que tivemos! Nota dez também para o Cauê, que se mostrou simpático o tempo todo e interagiu muito com os estudantes. Até permitiu intervenções minhas (quando o assunto é História eu não resisto! )
Profa. Rosângela Professora de História da futura EMEF Carolina Maria de Jesus / Espaço de Bitita
Relatos A visitação à exposição São Vito foi um pouco prejudicada devido o trânsito da região (dada a distância da escola) e a forte chuva que caiu durante toda a estadia do grupo no local. Sabíamos da proposta de atuação dos educadores quanto à exploração do espaço externo. Como não foi possível, optaram pelo plano B, que buscou garantir ao grupo todo a exploração de informações sobre o Prédio São Vito, os grupos que habitavam na região no início da História da cidade e o porquê tantos vieram para habitar nesse local anos depois. Essa explanação contou também com o manuseio de imagens características das épocas estudadas e analisadas segundo cada fase daquela região. O grande grupo foi reorganizado em 4 outros grupos menores (...) Os alunos puderam analisar as fotos e falar de suas perspectivas diante do que viam (...) Penso que a atuação dos educadores foi de grande valia. Eles buscaram a reorganização de modo eficaz, para que nossa ida não fosse vã e o mínimo da exposição fosse apresentada aos alunos. Houve um momento em grupo para a realização do jogo “casa vazia” no qual todos deveriam montar habitações conforme orientação: casa formada e habitantes. Achei fantástica a ideia de mostrar aos alunos que todos podem ser abrigados e ter direitos a uma moradia. Foi interessante a discussão feita com todos e os objetivos ali apresentados. Falar das questões de falta de moradia para as minorias é um ação pertinente e importante para a formação cidadã de nossos alunos. Penso que essa reflexão veio para somar a tantas intervenções que fazemos ao longo da vida escolar deles. Fico feliz em poder ser parte do grupo que buscou oferecer esse momento aos alunos e grata ao grupo que nos recebeu com tanto respeito. (...) No fim, recebemos um DVD com informações que podem ser retomadas e/ou exploradas acerca do Prédio São Vito e da história que o circunda. Será destinada a biblioteca de nossa Unidade Escolar, para que todos possam fazer uso. Profa. Sheila de Oliveira - Emeb Professora Janete Mally Betti Simões, de São Bernardo do Campo
Relatos Um dos grandes desafios de mediar uma exposição sobre os edifícios São Vito e Mercúrio no lugar onde eles existiam é aprender a lidar com o entorno, seja a paisagem viva que circunda o local, sejam as dinâmicas sociais que incidiram sobre esse território ao longo do tempo. Nesse quarteirão onde ficavam os prédios, portanto, as disputas de tempos, territórios e narrativas nos atravessam constantemente. Percebemos (...) que muitas pessoas e memórias sobre o São Vito e o Mercúrio continuam circulando por ali, resistindo às mais variadas intempéries sociais. Não foi fácil, muito menos simples, residir mesmo que temporariamente no lugar onde vidas foram demolidas junto com os prédios. Algumas dessas vidas conseguiram parcialmente se reconstruir, outras se perderam e passaram a estar em situação de rua ou perderam o rumo. As que se mantêm carregam consigo o fardo e a potência de resistir a processos históricos e dinâmicas sociais que se enraizaram em cada metro quadrado de São Paulo e se concentram da maneira mais perturbadora no centro dessa cidade. Como explicar o processo de expulsão, cujo êxito apesar de tudo não foi absoluto, dos caipiras da várzea? Como explicar a demolição do Mercado dos Caipiras e sua substituição pelo Mercado Municipal? Como explicar as profundas transformações do rio Tamanduateí, antes espaço público de lazer e via de acesso comum ao centro e hoje um depósito de esgoto? Como explicar a criação do bairro Higienópolis para afastar certas pessoas do mal que elas próprias criaram e que produziu as péssimas condições de vida das “gentes diferenciadas”? A lógica colonialista não mudou, apenas trocou de roupa. Mas o curso do rio se mantém mesmo que o escondam sob concreto ou janelas espelhadas. Nas épocas de cheia, o transbordamento é inevitável. (...) Ao longo dos três meses de mediação recebemos visitas as mais diversas. De pessoas que moravam nos edifícios a grupos de adultos, crianças e adolescentes que vinham buscar saber sobre o lugar. Além de visitas espontâneas. Com os grupos, as visitas geralmente eram mais potentes, mais poéticas. Com público espontâneo a poesia da mediação não se perdia nem perdia potência, mas sua forma foi outra. Com ex-moradoras e ex-moradores a sensibilidade sempre aflorava mais. O resultado foi um amplo compartilhamento de vivências que esmaeceram os esquecimentos. Nem a profundidade das reflexões nem os esteios para momentos sensíveis ocorreriam sem um grupo educativo tão diverso e tão aguçado. Cauê Tanan- Arte-educador da exposição São Vito.
São Vito: uma escavação Sesc Pq. Dom Pedro Fevereiro a maio de 2019
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