Índice
Páginas Amigos esquisitos...............................................................03 Outra memória...................................................................05 Uma viagem ao Uruguai.....................................................07 Um rei e seu reino...............................................................09 Patos, um cabra e o butador d´água..................................11 Olinda nada de mais...........................................................13 Uma discussão exemplar....................................................15 Homenagem a Néia, Felipe e Carlinhos..............................17 Desejo de matar..................................................................19 Em criança.........................................................................21
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AMIGOS ESQUISITOS
Sendo eu mesma esquisita, mergulhada na esquisitice geral da humanidade que sempre se manifesta quando olhamos as pessoas mais de perto, tenho amigos estranhos e, dentre eles, escolhi os campeões no meu entender, para oferecer-lhes o troféu “exóticos demais”. Um casal que tem tudo para ser no mínimo suspeito, como verão. Há muitos anos os dois compraram um sítio nos arredores de Piracicaba e labutando nos finais de semana, reflorestaram-no. Era uma terra nua, largada. Ficou linda, com a casa e o jardim acolhedores e vibrantes; hortas viçosas em caixas de tamanhos variados, dignas de capas de revistas especializadas. Flores e caramanchões. São obras de arte que minha amiga produz. Criaram, na propriedade, bela faixa de mata onde agora se soltam aves e alguns outros animais silvestres pequenos. Recentemente, lutando nesta estação seca, minha amiga plantou sozinha, com quase nenhuma ajuda mesmo, mais um pomar de variadas frutíferas, vizinho à mata, para alimentar os animais. Isso é coisa bem inusual, pois outros proprietários ao redor (gente séria) empenham-se muito compenetradamente na agropecuária, desmatando legalmente e às escondidas (sempre de modo impune) morro acima e morro abaixo, como deve fazer um cidadão confiável, correto, normal, temente a Deus. Mas aqueles lá, meus amigos, vão vendo, não parecem nada “equilibrados”; agem contrariamente aos nossos padrões. Sim, têm eles uma vaca, isso poderia ser um atenuante. Mas ... é de estimação! Nem carne comem. A vaca foi resgatada bezerrinha, jogada à beira da estrada ainda com o cordão umbilical, e criada com mamadeira. Não é de estranhar que ela pense ser um cão ou algo assim, e fazer parte da família. Mas com quase quatrocentos quilos, estabanada e maluca, não pode conviver mais abertamente com os pais adotivos, nem com as visitas. Os carinhos dela precisam ser controlados. As outras vacas e bois, aí do vizinho, espicham as cabeças por debaixo do último arame da cerca de divisa, para comer um pouquinho de pasto, pois só lá o capim ainda permanece verde... Aquela gente biruta, que reflorestou nascentes, conseguiu fazer uma lagoa até grande, que chamam de “tancão”, e é pousada para aves e animais variados, 3
com vegetação indisciplinada ao redor. Fica lá preservada a lagoa, e mesmo agora apresenta bom volume. Não caçam, não pescam nem nadam ali. Vá entender! Não é `a toa que dizem que ela cria borboletas, bicho da seda, que ambos soltam cobras e vespas naquele local para pegarem incautos invasores, que são promotores públicos. Ou simplesmente chamam-nos de "aquela gente do ambiente” ; falam assim deles. Ofereceram meus amigos, abrigo a jegues estropiados descartados por pessoas que os exploraram até os limites de suas capacidades físicas. E o local no qual a Estrelinha dorme, sua casinha de palha, muito bem feita, limpa e confortável, lembra-me cartões de natal. Não sou religiosa de fato, mas não é difícil de imaginar-se ali, a manjedoura com um menino Jesus. Porém eles não são ricos e vivem do trabalho. Fazem agricultura orgânica e não conseguem se enquadrar em nenhum subsídio mais vantajoso do governo. Têm sofrido com as intempéries, que lhes destrói as plantações e estufas; de fato imerecidamente. Se a maior parte das pessoas fosse como eles, não haveria tantas mudanças climáticas e este seria um mundo quase habitável. Viveríamos todos de forma mais feliz se muita gente se parecesse com eles. Mas isso é uma idealização minha. As coisas são como são; e já me considero afortunada de tê-los, a essas esdrúxulas criaturas, como meus caros amigos.
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A OUTRA MEMÓRIA
De que o cérebro seja a sede de nossas sensações, percepções, desejos e lembranças ninguém duvida, mas poucos sabem que outras regiões de nossos corpos, tais como musculatura, tendões, partes moles no geral e até órgãos guardam memórias de acontecimentos: bons também, mas frequentemente traumáticos. Assim, o registro de muitos fatos não está realmente sediado tão somente no cérebro, o qual integra e interpreta a situação ou as situações, mas nem sempre da forma mais confortável ou conveniente. As lembranças acumuladas em alguns pontos de nossos corpos físicos, e dependendo da intensidade dessas, podem causar também, embora não exclusivamente, dores, distúrbios e moléstias. Órgãos podem falhar... Daí técnicas de terapias corporais serem desejáveis e adequadas, com frequência. E elas são várias; incluem massagens especiais como o Rolfing, e diversas formas de toques energéticos, ou mesmo de exercícios corporais específicos. Nós mesmos já vimos, em sessões de terapias do corpo baseadas em movimentos aparentemente sem razão de ser, muitas recordações traumáticas serem despertadas, virem ao consciente das pessoas. Supomos que isso (a decodificação do registro oculto) seja terapêutico e curativo... É provável. Certa moça conhecida nossa, numa sessão de terapia grupal, ao fazermos um exercício onde fingíamos, chatamente aliás, ser bebes, e empreendíamos movimentos especiais com os pés, recordou-se de uma grave discussão que sua mãe tivera com uma vizinha e ela, muito criança ainda, ficara confusa, com medo e agitada, sem capacidade de entender quase nada do que ocorria. Quando procedíamos a sessões de acupuntura, também tivemos um caso interessante. Uma paciente se queixava de vago mal estar cervical, na base do couro cabeludo. Não o sabia definir exatamente; negava ser dor, mas referia desconforto naquela região. Aplicamos as agulhas gerais e locais, de modo rotineiro. E eis que veio a pequena explosão de consciência! A moça, há anos, sofrera um assalto violento. Ela tinha longa cabeleira e o assaltante a puxava pelos cabelos, sendo que ali ficara guardada a recordação da situação terrível. Esta paciente, acima descrita, fizera já psicoterapia e usara medicamentos homeopáticos, visando resolver aquele trauma; porém a região específica de seu 5
corpo, que estava ressentida, recordava-se de tudo, magoada, e nenhuma das técnicas anteriores havia conseguido, ainda e até então, aliviá-la. Muito mais do que uma curiosidade, relatamos aqui um fato, o qual pessoas, médicos, psicoterapeutas e psicólogos não podem nem devem ignorar, para o bem dos tecidos sofredores dos sofridos pacientes e de nossos corpos mesmos.
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UMA VIAGEM AO URUGUAI
(à Maria da Glória Silveira Mello, a Soeli e Antonio Carlos Danelon, dedico)
Reconheço o mau começo do texto para um país tão interessante e para uma viagem boa. Porque falarmos em grana? Por outro lado gostaria sim que me explicassem também que porcaria acontece com a economia uruguaia. Os preços lá são muito altos. Tudo caro demais; e vejam que nossa moeda vale por volta de oito vezes o peso local. Como aquele povo vive? É de pasmar. Mas vive e é de uma simpatia única. Diz a lenda que “los malos” são diretamente encaminhados para a profissão de motoristas de táxi... Piada. É gente espontânea, acolhedora aquela, aberta, num frio de arrepiar qualquer chimarrão gaúcho. Descobri também gostar muito da língua espanhola. Imagino que seja porque é a latina mais próxima do português. Curto mismo hablar. Foram dois dias de ventos de 70 km horários e chuva fina, é verdade. Saíamos de capas plásticas e quase éramos carregados. Morrer de rir! Mas muita pena dos cães que levavam a passear sem agasalho nenhum com aquelas temperaturas... Nas ruas sujas, em Montevideo, no calçadão da cidade velha e além, frente a tantas fachadas e prédios difíceis de narrar de tão belos quanto muitas vezes mal conservados, havia restos de seres destruídos. Eram dezenas de frágeis e feios guarda chuvas, inutilizados pelo vendaval; as varetas em desordem: esqueletos e patas quebradas de aliens aracnóideos, mortos e abandonados nas vias. Defronte ao quarto do hotel, no telhado descoberto de certa casa mui antiga, o vizinho, um moço encapuzado, lutava para salvar as roupas do varal que rebeldemente queriam alçar voos de pipas. Elaborava um balé frenético, com as peças coloridas contra o céu enfezado. Negam-no, mas sei que Emile Brönte percorreu algum dos museus daquela capital quando se inspirou para seu livro mor. Porque os ventos, lá fora, uivavam qual matilha, enquanto olhávamos as belezas. Meninos, ouvi!
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Para além dos museus modernos, organizados e lustrosos e de vários prédios especiais muito bem mantidos nos quais adentramos, alcançamos o mercado de chão lavado, que começava a despertar para o almoço com muitos nichos de fogo. Carnes não as provo sequer, mas a cálida pirotecnia só podia encantar. Dois dias depois saiu o sol. O estuário do Prata deixou de engolir nuvens e de vomitar ameaças escuras, tornou-se a mais plácida das baías, com praias verdes e azuis ao redor, onde barcos dormitavam. Saímos da cidade. Campos de sol e festa, casas pequenas e grandes, assobradadas ou baixas, com arquiteturas diferenciadas, de bom gosto, quase sem portões ou cercas. Alagados, grandes lagoas, campos e aves. Áreas verdes abundantes que o ônibus deixava para trás, percorrendo estradas serenas que não metiam nenhum medo, e note-se que estávamos ainda nas vizinhanças da capital do país. Tudo me pareceu muito arranjado, agradável de ver. Nessas horas, em meio ao prazer ante o que percebia, nasciam-me certa tristeza, frustração, temor e um pouco de vergonha. Disfarçava tais sentimentos quebrando entre os dedos biscoitos de água e sal, sem comer nenhum sequer, e mergulhava os olhos na paisagem. A seguir mergulhava-os também na parte do cérebro onde se guardam as histórias e, talvez, os sonhos.
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UM REI E SEU REINO
Não se trata de recorrer ao infalível almanaque capivarol como diria meu caro amigo Vardir, nem de exercer psicologia de boteco, de botequim e afins; tampouco desenvolvo qualquer tese séria sobre o tema. Nada disso. Só que me ocorreu a semelhança que vou narrar, como se fosse uma história. Fiz analogia lembrando-me dos reis e de imperadores antigos, ou mesmo de déspotas contemporâneos com o caso Bruno, o goleiro tão violento quando burro, aliás burríssimo. Mas não se trata de ser ele apenas esses adjetivos colocados acima. Trata-se de uma síndrome configurada “do rei e de seu país, ou reino”. É isso o que afirmo mas apenas como exercício mental e imaginativo, nada abalizado nem cabal. Aqui abaixo vai toda a justificativa para tais ideias. Por que ele mata uma mulher, ao invés de se curvar às evidências concretas e modernas dos direitos desta como mãe do filho natural do ex-goleiro? Mata ao invés de deixar a questão nas mãos de um advogado, com a incumbência de fazer o melhor acordo possível sobre pensão? Resposta: porque um rei não pode ser desafiado, humilhado e provocado por uma descartável amante com um filho bastardo. O rei é onipotente. Seguindo a linha de raciocínio, continuo. Por que, uma vez resolvido a matar a ex-amante, não teve a sagacidade nem a coragem de sozinho bolar um plano que pudesse, ao menos, apontar para morte acidental, qualquer que fosse (e aqui não falo de ética, de moral, mas da lógica). Um tipo de crime que acenasse para algo inconclusivo, sem cúmplices até, cabendo a ele Bruno, aí sim, talvez o benefício da dúvida? Por que envolver tanta gente? Resposta de novo: porque um rei tem um séquito, uma corte, tem lacaios, esposa e concubinas para fazerem para ele e por ele, o que lhes for mandado ou o que se mostrar necessário. Um soberano também tem carcereiros, torturadores e mesmo um carrasco oficial. A morte da moça Eliza, se é que aconteceu como narrou o jovem menor de idade, foi uma execução pública, nos moldes de outra execução qualquer, inclusive com ritual, com cerimonial. Pessoas assistindo, as quais depois teriam se retirado no momento final, a pedido do carrasco. E o sítio era o território, a jurisdição de sua majestade, com um patíbulo colocado em alguma parte do mesmo.
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Este rei acreditou na sua coroa e, portanto, na total impunidade. Como ele mesmo falou com a delegada do Deinter, por ocasião do seu primeiro depoimento, era o melhor goleiro do maior time de futebol e com torcida número um do mundo! Mas, e daí? Iludiu-se e foi traído por seus próprios delírios. Porém quantos outros déspotas e tiranos pequenos, médios e grandes espalhados por nosso país e pelo mundo não fazem o mesmo e mais, e pior, sem nenhum castigo nesta vida?
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PATOS, UM CABRA E O BUTADOR D´ ÁGUA
Conheço em João Pessoa, onde atualmente cai mesmo parte da nossa antiga chuva de modo alegre e produtivo, deixando-nos aqui mal e secos, alguém proseador, de conversa agradável e que é mais correto chamar de “senhor” do que de “cabra” visse, menino? Tal senhor nasceu em Patos lá na Paraíba, há mais de sessenta anos. Conquanto aquela cidade, de atualmente cem mil habitantes seja considerada a “capital” do sertão paraibano, é um local distante trezentos quilômetros da agradável João Pessoa, aridez adentro, incrustada entre altas montanhas pedregosas, num local quentíssimo, o qual lembra um caldeirão segundo ele. Hoje em dia, nós do sudeste até podemos imaginar este caldeirão... Isso nos conta o senhor, que se chama Irio. Tem ele um irmão cheio de amor pela cidade de Patos, onde só temporariamente surgem pequenos rios; o Jatobá é um deles. Mas creio que todos amemos nossas terras natais de modo geral, nem que elas estejam no deserto de Gobi, na Mongólia. O fato é que o senhor Irio, que ascendeu socialmente bastante na sua vida, diz-nos que até os dez anos de idade andava descalço: - Tinha as solas dos pés tão grossas, que se pisasse um caco de vidro quebraria o mesmo, sem cortar o pé! Quanto à sua grande ambição em criança era tornar-se um “butador d´ água”. Esse tipo de pessoa é um comerciante que, com a carroça puxada pelos coitados dos valentes jegues, cheia de tonéis com água, vendia ou ainda vende a mesma pelos vilarejos ressequidos. O senhor Irio, com tino para negócios, sabia desde menino sem que ninguém lhe tivesse dito, que aquilo se tratava do “ouro azul”, bem preciosíssimo e essencial. Desistiu do sonho da promissora profissão por causa de um acidente. Certa vez, butando água não sei onde, como auxiliar, ao atravessar pequena ponte de um rio seco, na volta, caiu e a carroça lhe passou por cima das pernas. Ele ficou ferido mas não muito. Daí pensou que se os barris estivessem cheios seria esmagado pelo peso do veículo; menos mal que estavam vazios! Então desistiu.
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Acabou depois, ainda não sei por quais desvios, curvas ou atalhos, estudando, trabalhando, conseguindo o cargo de caixa de um banco. Amealhou dinheiro, conforto, uma família bonita e status de classe média. Aposentado agora, vive feliz no verdor da capital, junto à brisa do mar, usando sapatos e chinelos. Longe vão os tempos em que planejava ser um butador d´ água. Hoje observa a chuva que cai benéfica e extemporaneamente em João Pessoa. Já expliquei: chuva esta que seria toda “nossa”.
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OLINDA NADA DE MAIS
Importante, quando podemos, é conhecermos nosso país e gastarmos dentro dele nosso dinheiro, enquanto turistas. Mais do que justo. Daí, durante a estada em João Pessoa que ainda é uma capital bonita e bem bacana, ter feito eu tudo para ir a Olinda, cidade que nunca visitara, apontada como sendo bela também. Sabendo que o trânsito de Recife é difícil (aliás, digam-me em qual capital brasileira não o é; e agora então, recebem a montadora Fiat por lá...), contratamos um taxista joãopessoense que, apesar de não saber bem as entradas para Olinda, nem ter um GPS com bom funcionamento sem nos alertar antecipadamente sobre isso, era calmo, simpático e dirigiu com cautela. A “grande Recife”, com cidades todas grudadas umas às outras, como Igarassu e uma série de outros municípios espraiados ao longo da pista, está entre os lugares mais feios (e eles são muitos!) que deus não colocou no Brasil de jeito nenhum; mas conseguimos, certamente, fabricá-los. E veja-se que Recife é a metrópole mais rica e a de maior PIB, do nordeste. Daí se percebe que o PIB é termômetro relativo para medir-se qualidade de vida, estética local ou tranquilidade. A Paraíba é bem diferente, até onde me é dado conhecê-la. Diz-se igualmente que, nos últimos dez anos, Recife transformou-se numa outra cidade, muito progressista e organizada. Então me pergunto como seriam aquelas periferias antes... Talvez só favelas e barracos mesmo. Agora ainda tudo é horroroso, mas nota-se uma azáfama de serviços, um vai e vem de gente e de veículos, de trabalho, muitas construções tortas e precárias, dissonantes sim, sujas é verdade, grudadas entre si, mas correndo atrás do “desenvolvimento”; porém um lugar onde calçadas, árvores, plantas e planejamento urbanístico seriam palavrões. Rodando por essa confusão chegamos a Olinda. O clima úmido e a vegetação encantadora causaram bem-estar, felicidade inevitável em pessoas quase refugiadas do clima nas quais nós estamos nos tornando, vindas da secura calorenta do sudeste, onde o sonho atual de consumo é o doce ruído da chuva e umidade do ar de 80%! Olinda tem seu centro histórico conservado. Não havia crianças abandonadas nas ruas e surgiram poucos pedintes, bem como havia número 13
pequeno de turistas e pouca gente nas ladeiras. Vi um cão em deplorável estado de saúde e fiquei cheia de pena. Conversei com pessoas ao redor , expliquei, orientei, implorei cuidados ao cão. O guia turístico foi simpático e atencioso, mas um aldrabão na hora de cobrar; pois nada quis combinar antes e depois se mostrou um esfolador nato. E... teve o incidente do museu de arte sacra. Íamos nele adentrar quando a moça, uma guarda civil creio, aponta-nos um aviso no balcão que não se entrava ali nem com bolsas nem com pacotes; mas armários não havia, para guardar-se qualquer coisa. Deixarmos os pertences ali, nas mãos de um pequeno grupo uniformizado e unido, seria burrice demasiada. Deixe-se a arte sacra pra lá, dispensável; que fique a grana pra ajudar o museu! Meia volta, volver! Simbora. Missão cumprida. Vimos Olinda. Não foi mau é certo, mas parti com a certeza de que viveria muito bem sem nunca visitá-la, afinal. Nota quatro e meio.
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UMA DISCUSSÃO EXEMPLAR
A tarde não cumpriu a promessa de ser agradável, rotineira e normal, um daqueles nossos bons debates vespertinos semanais que eu e Leon Del Neri costumávamos travar. Subitamente, sem que pudesse atinar de imediato com o porquê disso, adentramos uma desagradável, senão amarga discussão. O motivo inicial foram idéias divergentes sobre os cílios e as substâncias específicas produzidas pelo miracídio de um tremátode por nós descoberto e até então desconhecido da ciência. Nossas experiências e observações decidida e paradoxalmente não coincidiam. Até aí tudo bem para cientistas, seres racionais. Mas nem a razão nem a real amizade nos impediu de, em nome da ciência ou da vaidade, altercarmos agressivamente e sem pejo. O auge do desentendimento deu-se numa das piores, mais estranhas e movimentadas esquinas de Durban, quando nos dirigíamos ao café vizinho ao qual, porém, nunca chegamos. Paramos nessa famigerada e poluída esquina da cidade. Leon gesticulava e me fazia acusações graves do ponto de vista intelectual, sempre fumando desbragadamente e deixando um cigarro ao meio para, com furor, acender outro. Falava alto, atirando com raiva os objetos incandescentes meio fumados mas certamente ainda acesos, ao redor e ao acaso, para lá e acolá, para o norte e para o sul, para cima e para baixo, até que um deles acertou a roupa de uma mulher branca, alta e esquálida que só assim ganhou vida agitando as mãos num inusitado e harmônico movimento de dança para evitar que sua blusa se queimasse mais. Se a mulher não fez escândalo, se não afrontou Leon e, ao contrário, saiu apressadamente de esguelha, com certeza isso se deveu ao temor àquele local poeirento, ruidoso e arriscado e ao aspecto descontrolado do meu amigo. Mas... e eu? Também não devia fazer boa figura. Com gizes de cera tirados dos bolsos desenhava freneticamente na calçada e nos muros vizinhos cadeias de DNAs: citosina, guanina, tirosina devidamente enlaçadas em milhares de combinações torcidas possíveis, além de partes celulares: ribossomas, vacúolos e o núcleo e nucléolo (esses dois últimos, modéstia à parte, muito bem esboçados), sem me esquecer de cada um das centenas de cílios, projetados para fora.
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Um bêbado no meio fio escarrou sobre uma membrana celular do meu miracídio vermelho e azul, tão talentosamente desenhado e isso, de chofre, me fez voltar à realidade. Controlei-me e respirei, tentando organizar as idéias. A verdade não agradável de admitir é que Leon, imagino eu, nunca vencera seu forte preconceito racial, e este seu colega asiático (eu) sempre lhe pareceu mesmo alguém bem inferior, não real merecedor da academia, das laudas, das páginas e dos autos. Reconheço o talento de Del Neri em vários campos avançados, inclusive nos estudos de clones, porém quanto às particularidades do miracídio tenho certeza. São 305 cílios, não 301! E ele produz enxofre saponáceo, não coloidal! Quem não seria capaz de morrer por isso? Quanto mais de abalar uma amizade... Leon invocou, inclusive, o depoimento de um colega para corroborar a diferença desses quatro cílios, mas rejeito-a, considerando-a irrelevante para o debate, pois o nobilíssimo pesquisador é especialista em áreas cibernéticas e nada entende nem sabe dos nossos miracídios. Mas foi assim que me vi depois, sozinho, à porta de um bar estreito, onde dois cães enormes barravam a entrada das pessoas. Pulei por sobre os mesmos. Numa hora dessas, de crise, o que um cientista prestes a ter fama internacional poderia desejar? Enumero: a-) ser um reles escrivinhador de aldeia que transmuta quase tudo b-) ser um mágico ambulante que tudo falseia e ilude c-) ou um oleiro com um torno capaz de moldar centenas de peças diferentes, pois qualquer desses sempre acaba por resolver assuntos cruciais. Em não sendo nada disso, resta-me provisoriamente a cerveja e os cães à porta, um dos quais meio que boceja, a poeira incontrolável das indóceis avenidas de Durban além de uma silhueta obesa do barman, atrás de uma porta de vidro, que acaba de quebrar um copo.
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HOMENAGEM À NÉIA, FELIPE E CARLINHOS
Por tal não esperava. Todos os três mortos! As situações dramáticas, bem como as melancólicas agonias permeiam nosso viver. As euforias, deleites, períodos de sorte amena também, assim lembra-nos Sêneca. Não me ocorre pensar nos planos caprichosos de um ser supremo... Penso, antes, na época em que conheci Néia ainda começando como depiladora, no corredor lateral à casa o qual nos levava ao quarto dos fundos onde ela trabalhava, em como era o aposento, no muro e nos tantos vasinhos de violetas. “Como estão bonitas, Néia! Essas flores detestam-me”, dizia-lhe eu, entre outras infinitas banalidades femininas. As mudanças climáticas, então, não eram tão acentuadas, Piracicaba bem menos agitada, Felipe um garoto ousado, irrequieto, travesso; Carlinhos calmo, controlado, trabalhando em excesso e palpando os muito bons resultados de seu labor. Numa época foi assim... Deu-nos, deu-lhes a impressão de permanência, de durabilidade, de que o mundo gira numa órbita lógica, de que tudo tem sempre um sentido facilmente descodificável. Mas este sentido é tal que nos escapa muitas vezes, pois muito maior do que nossas mentes alcançam. A razão do sem razão, a coerência do caos, a dinâmica do acaso, que nunca abole os dados, e por aí vai. Soubemos da doença do rapaz, da tristeza, do desespero dos pais; seu pequeno e próspero mundo ruía. Ajuda para eles foi pouca, intimidade não tanta. Invadirmos muito não dava. Falamo-nos parcamente, mas sempre torcemos pela recuperação e melhora do moço. Pensávamos neles. Certamente não bastou. O ser humano enlouquece com facilidade, a sociedade tem valores arbitrários, e cruel é levá-los a sério. O bilhete não adiantará, e Carlos será analisado, julgado sim, odiado por alguns, perdoado ou não por nós, igualmente mortais. Os três incorporados às nossas conversas, colocados na lista dos que já partiram. Mas não me esquecerei do Felipe, dos pais, da alegria com que Carlinhos dizia quando os encontrávamos que, se o casamento era loteria, ele ganhara na mega sena. E víamos Felipe, de cá pra lá, com planos. Que na complexa dinâmica do cósmico, haja um lugar onde a reverberação do que foi bom e feliz permaneça, brilhe bandeirante, suprema e criadora sobre
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as atrocidades, injustiças, abandonos, brilhe para sempre e por sobre as incontåveis tragÊdias das nossas vidas; assim eu desejo.
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DESEJO DE MATAR
Já era idosa, com oitenta e dois anos. Lúcida, alta e forte porém, mas um pouco surda e os joelhos inchados de artrose reclamavam do corpo por demais robusto. Nordestina, fazia lindas rendas (de bilro creio), pelas quais ninguém se interessava muito ali no bairro, tanto mais que eram caras e até, no contexto, fora de moda... O marido, mais avançado em anos que ela, sofria de um câncer no aparelho respiratório; estava em fase terminal, com cuidados paliativos. Ambos viviam em três cômodos pequenos, nos fundos da casa de um dos filhos. Tudo muito acanhado, mas plantavam verduras em pneus e latas e as colocavam em toda parte, até no telhado, o que amenizava bem o local. Além disso, havia uma pequena árvore no jardim...Deixavam, contudo, um pobre jabuti aprisionado e abandonado perto de águas sujas, embasados pela crença de que os quelônios melhoram males dos pulmões; porém isso em nada contribuiu para a melhoria do seu esposo, garanto. Ela cuidava constantemente dele naqueles cômodos malcheirosos e sem sol, onde também era nossa obrigação entrar, e o fazíamos com luvas máscaras. O paciente acordava muito sufocado à noite, com secreções, que ela aspirava com a ajuda de um aparelho. A olhos vistos, aquela mulher idosa se desdobrava. Esse quadro se arrastou por bom tempo, até que o doente faleceu. Continuei visitando-a no domicílio periodicamente; um dia ela me contou a seguinte história: Ainda jovens viviam noutro Estado do país, na zona rural. Tudo era diferente na época. O marido tinha uma amante, segundo ela. Quando voltavam da missa ou vindos da casa de parentes, ele a mandava por um caminho e seguia por outro, para encontrar a amante, no seu entender. Sua mágoa ao me contar isso, parecia bem viva. Parece que o caso durou tempo. Ela teve e criou filhos, porém refere que amante também ficou grávida, e uma noite, quando essa criança teria nascido, ele não veio para casa. Dizia ela que conhecidos lhe traziam tais notícias; também contaram que o bebê nasceu morto. Confessou-me, com um sorriso estranho e malicioso, que gostaria de saber que a mulher, a ex, também já teria morrido! Isso me surpreendeu, pois ela mesma já era bem adentrada em anos, o marido falecido, tudo ia longe, e dava a impressão de que 19
haveria mais com que se preocupar de qualquer forma... O ocorrido era por demais antigo. Mas quem pode dimensionar um coração feminino realmente ferido? Sei que deveria indagar bem mais detalhes do caso, mas o pudor me impedia. Ou será que foi temor? Tive medo de perguntar-lhe se ela amava o marido e cuidara dele com afeto, ou se, no passado, presa a dificuldades e limitações sociais, emocionais e outras, nunca o pudera deixar nem demonstrar seu rancor. Vê-lo frágil no final, dependente dela, resolvera parte de seu malquerer? Seria isso? Agora, uma notícia da morte da ex- amante deste coroaria totalmente seu êxito!? Faltou-me coragem para destilar toda a situação, faltoume. -Muito Machado de Assis, dizia eu para mim mesma, pensativa. Muito Machado...
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EM CRIANÇA (para Maria Emília Redi)
Em criança, gostava de escalar telhados e muros. Punha uma escada no fundo do quintal e olhava ao longe os terrenos baldios, com trilhas de pessoas e de um ou outro cavalo de carroça, ali na Cidade Jardim. A ideia de voar me ocorria, mas sem bom resultado prático. Hoje, acho que deveria ter tentado mais. Acabaria, certamente, conseguindo. Havia eco, esta reverberação misteriosa do som. Crianças, moleques soltando pipas falavam alto. Tinha certa inveja dos meninos e de sua liberdade maior do que a nossa, a feminina. Soltar papagaios era uma atividade séria e sagrada; quem duvidaria disso? As crianças tinham ares compenetrados neste tipo de folguedo, que parecia feliz trabalho. Lamentava não me ser permitido fazê-lo! Mas não posso reclamar tanto. Subia em árvores, falava com elas, delas caia e andava solta pelo bairro a um ou outro pretexto; muito feliz estava em vários momentos, infelicíssima em outros, mas o real motivo das excursões e andanças era a exploração dos caminhos, a contemplação, o sonho, a relativa liberdade. Cores e vozes faziam desenhos no ar. Se olhássemos muito firmemente o azul do céu, este se transformava em filamentos agitados, em pontos vivos de luz, elétricos, mais que elétricos, os quais tudo permeavam. Ainda é assim. É esse o recheio das coisas do mundo? É isso que inventa e cria os objetos? Codificação da matriz? Cuidado nas manhãs chuvosas pra não pisar num sapo, cuidado pra não andar na enxurrada; tem caco de vidro. Cuidado com os raios, com o carro, com estranhos. E grandes lagartixas eu via caçando insetos, à noite, ao redor da luz mortiça do terraço. Sonhos infantis, idéias tolas, bases poderosas para a criação de eventos futuros, gestávamos em nossas almas plásticas. Também havia ansiedade e tédio. Uma parte de mim sabia que havia um mundo mais externo, como cascas de cebola, à beira daquilo tudo; mundos outros com coisas ocultas, maravilhosas e terríveis. Enigmas a serem descobertos e desvendados, ousados feitos a serem realizados, que dependiam totalmente de nós com nossas botas de sete léguas, com nossas ilusões e criações especiais, as quais devem ser regadas a qualquer custo, a qualquer preço, sejam quais forem as durações ou sejam quais forem os desvios insuspeitados de nossas vidas. Pois, se devidamente cultivadas e percebidas, continuarão sempre lá ou num lugar 21
especial qualquer, mesmo depois de nossas mortes, que afinal fazem parte desta trama toda, como um fio, um fio na rede sem fim, fio de mel e ouro.
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