SOBRE AS MÁGICAS
EloahMargoni
Prefácio da autora
Este livro foi o segundo que editei em minha vida, há muitos anos. Foram feitos quinhentos exemplares, numa modesta edição pessoal. Uma querida tia, já falecida atualmente, bancou a obra na época; isso também faz com que tenha eu muito carinho por este título. Os exemplares foram distribuídos muito mais do que vendidos (como geralmente acontece nesses casos), mas vários anos depois, descobri que a poeta e estudiosa de literatura Leila Miccolis o desencavou em alguma biblioteca, e nos menciona como uma das mulheres poetas brasileiras surgidas partir da década de 90. Também vimos que há um exemplar numa outra biblioteca; esta numa universidade de Houston, nos EUA. Tais coisas que nos alegram. Assim sendo, decidi fazer uma edição virtual de Sobre As Mágicas, mantendo as características iniciais do livro, tipo de letra e dedicatórias, mas a capa encontrou nova ilustração. Espero que os apreciadores de poesias o leiam.
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Para todos os amigos meus
Para Delvo Para tia Germa (em mem贸ria)
capa: desenho Alexander Jansson
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SOBRE AS MÁGICAS
Ser um morcego e estender as ansiosas asas de pele através da noite! Que me importa teu nojo? certamente não entraria em tua casa nem em casa alguma; iria sim pelas torres escuras, pelas copas das árvores, folhas, folhas, frutos... iria pelas noites dos desejos e dos bruxos onde os homens dormem. 4
Que me importam os homens? que me importam? Importa o voo, a miragem e o cheiro dos insetos invadindo meu focinho, enquanto a brisa fresca vai acariciando-me as pulgas do pelo, companheiras na solidão equina. As caretas, as vozes guturais, o pipilar, os cumes, os hiatos, os mergulhos no vazio o calendário das seivas e das beberagens. Amanhã, a madrugada apareceria sem pena de nós; o «eu» morcego entraria num sacrário de pedras para dormir com seus irmãos, todos de ponta cabeça, pendurados sobre as mágicas.
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O PAI E O FILHO
Pai e filho, sentados na mureta do rio, pescam ou fingem pescar peixes de luz. Usam capas amarelas enceradas ambas iguais e têm a mesma disposição de arranjar as iscas, cortando as minhocas com os dedos sem se preocuparem com a gosma verde que sai.
Estão ali mesmo sob o céu onde passam os cometas. 6
O pai fez o filho pela continuidade, e os cometas passarão em nome dela, e é pela continuidade da vida que se pescarão os peixes, assim a água passa e não é a mesma água... Mas tais questões ocorrem apenas a mim que os observo; eles não parecem pensar em nada, apenas pescam e de quando em quando trocam entre si um breve e indefinido olhar.
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SEM MARCAS
Passo os dias preparando a Grande Frase. Na verdade, espero por ela há anos, que seja correta, límpida, clara, para ficar no coração dos meus amigos; dela os corretores farão símbolo de multiplicação das vendas!
Uma frase que crie novos jeans que promova marcas de cigarros que venda calcinhas que dê tesão que os caminhoneiros usem nos para-choques ou nos para-brisas, que vire sorvete pra chupar e derreter, que atravesse barreiras que invente moda que se ponha em música que se use em lápides que se dedique aos amores 8
que se peça perdão que prometa que implore a permanência do ar, do céu, do vento, onde o silêncio, há muito, muito tempo se instalou sem marcas.
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FUMO
Fuma-se o fumo do mundo e tudo fica claro os rostos ficam verdes num céu cheio de riscos que é agora como era quando eu nada sabia, há milhões de anos... antes das horas e das manhãs opalescentes, antes da criação do cármico laço da vida!
Intelecto mentecapto para que servirás se eu te perder? para que servirás, então, nas sombras? Certo, não se escreverão mais poemas não se contarão parábolas não descansaremos no sétimo dia 10
não há nem mesmo que blasfemar. Tudo virá atômico no cântico dos querubins e das ninfetas tudo virá inteiro e inequívoco no ato da voz, única forma lícita da ilusão.
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EU E ELA
Como assentar a sonoridade dos quadros numa hora fixa, estival que é agora? Como cavar a prata? com garras o cinzel fendeu a poesia no trabalho. O nada.
A mágica se fez a si mesma na serpente, como Deus desde elefantes desde Eva, desde a cobra que eu cavalgava com suas escamas diáfanas. Não se sabia então 12
não se escutava... era ela desfeita pelo vento! Véu cheio de espumas no varal do fundo de uma casa em Marte Dissemos um dia, uma tarde: - Você - a virgem devastada. Sei. Pois bem, sabia já do sol de hoje queimando velando a chapa e a chaga.
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DO ACASO
Janeiro. E era a estrada de sol a pino moleque chupando mexericas na porta de casa de barro era a mulher de novo prenha barriga na boca, era um dia desfazendo as saias. No céu eram nuvens eram montanhas e eram rápidas e todo o verde... Tudo – tudo estava lá naquela hora, mas poucos talvez viram e ninguém teve nada com isso.
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ELIENE
Não convém ser indiscreta com Eliene. No entanto, não deixo de pensar o que passará por seu caminho... Noto mesmo que ela tem um jeito desleixado de abotoar o sutiã, assim como se não lhe pesasse em nada ser mulher, como se não lhe ferissem as noites e todos os fardos não fossem fardo algum.
Não quero aborrecer Eliene que em si não aborrece ninguém mesmo e tem um riso seu, de cabra, firme e solto, como quem tem pés fincados nesse mundo de deus.
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A QUIMERA para Luiz Ricardo ( em memória)
Aquele meu amigo é uma mulher, dessas frágeis, desamadas pelo pai, que até hoje, ao escurecer, esperam uma luz qualquer que venha aquecê-las e transportá-las às camadas paralelas.
Por isso, à noite ele maquia os olhos que são os reflexos da busca sinal do grito, e dentro, esboço de um enigma que logo se desfaz, dissolve, e escorre feito tinta sobre os cílios.
O que ele não sabe e não lhe digo que uma mulher nasce larva, come lixo, deve pois trocar a pele 16
devagar em dores cruas; ela vira pupa no silêncio, vira noites, vira mundo, depois sim vem alada feito vespa feito gafanhoto enfeitiçado ou mosca brilhante, colorida. A mulher rompe horizontes fere os dedos e faz sua música, seu hino, ela vira ser, e sendo, é sólida, é talvez mais. E essa mulher que cavalgou a vida que teve a pele refeita e carcomida é quem sabe maior do que seu pai.
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ELEGIA AO DRAMA
Encontro te de olhos vítreos pela praça. Meus olhos também são vitrais sem fim qualquer sorriso teu nos ameaça, nós que voamos ao redor do irrazoável. Porque não falarmos nisso, me pergunto, se é verdade que viajamos sempre nus através das madrugadas? Batemos palmas no castelo da loucura, chegamos perto da morte, das lacunas, do branco. Morremos devagar, morremos sempre, morremos com persistência e com beleza até; nos olhos limpos, limpa porcelana, corpo da carne dura, inumana, cérebros pulsantes do laboratório somos nós. Vamos assim a deslizar pela avenida tornando etéreo tudo o que tocamos tornando vivo aquilo que não teve vida, 18
esboçando de tudo uma teia mais que o drama, atÊ acordarmos secos, sós, no outro dia, sem sabermos como fomos parar naquela cama.
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BAD DREAM
O vento sopra inútil. Não pode dissipar a fumaça pegajosa nem rasgar a face da noite. O vento é amargor sem corpo que penetra no poço por cima, pelo vão das estrelas. Agora, então, ganham corpo as sombras fios, linhas, emaranhados borrões; cada um compõe o que quer, e os medos saltam do corpo: fantasmas e assombrações.
Não se pode sonhar, não se pode chorar espalhando dos ombros os vestígios dos sonhos passados ou o prenúncio dos futuros. Não se pode esquecer a pergunta das perguntas: por quê? 20
TÁXI
Quem se mata é um ator abandonando a cena sem dar tempo aos aplausos do público ou às vaias. O ator não repara que a plateia nem repara, antes cochila, ou traga a transparente fumaça de etileno. Então, ele desfaz rapidamente a maquiagem, pois tem pressa de pegar um táxi azul numa noite embaraçada, um táxi com o taxímetro quebrado que roda e roda pelo escuro enquanto, no interior, o velocímetro, competente ainda, 21
sem parar, trabalha.
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POEMA DAS DUAS LUAS
para Eliane
100º andar do edifício, jardim urbano de antenas.
Passeia no céu um hipopótamo enorme, nossa lanterna japonesa. Sem acompanhante, sem estrela alguma, sozinha passeia a lua americana, asiática, signo de Rotherdan lua da China. Sei que não te alcançaremos, brilha por favor! sobre o canivete e o nosso couro de aço sobre as latas de lixo, sem esquecer as crianças, os meninos desgraçados. 23
Sobre as marquises dos cinemas, brilha no amor de Louis Lane com os super-homens I, II, III, IV e V, desfia o vento supersonicamente nesta madrugada sem galos mas cheias de pardais dorminhocos pelos tombadilhos.
A barriga mole dos executivos secas ou molhadas suas donas pois que o open rende mal ( meu peito arfa – brilha sobre tudo!) os sonhos mais humanos...
Não te prenderemos lua desenhada em camisetas de linha, de papel – símbolos falhos. És a nave constante e muda da esperança; mesmo após o fim hás de iluminar a desolação do planeta onde os fungos já não crescem no silêncio pétreo da ruína das florestas. 24
E vós duas, então, haveis de cumprir uma trajetória limpa e exata pelo espaço! Duas irmãs Duas luas novas à espera, sim, através do tempo, à espera de que o Deus imenso queira um dia de novo respirar em vossas mortas águas.
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REVOLUÇÃO DE 32
Meu tio que foi à revolução era filho de sapateiro; não era barão da café, nem nada, precisava de comida, de dinheiro, servia-lhe bem pouco uma luta dessas mas foi assim mesmo matar outros filhos de sapateiro pela Constituição
Para a mãe três cartas retalhadas que ela abrigou no ventre enrouquecido sentindo a aspereza do cobertor corta febre e a distante solidão do filho. Contava ele da luta aberta naquele 32 branco, fugido, da dureza da cama e do tiro na boca de seu melhor amigo.
Meu tio pobre. Nem barão, nem café, nem dinheiro. Só o amigo... 26
Cinquenta anos depois é gerente, estrela acesa, ascendente no céu da União. Casa, campo, caravela. E a revolução? e o cobertor amargo? a embriaguez? e o tiro na boca do melhor amigo seu ? pois é, pensando bem, valeu.
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NOITE
Não importa que horas eram quando acordou. O corpo disparando desespero lava o rosto para espalhar o amanhã. Insone, lembra as moças da TV E descobre o que é jamais.
A dois quarteirões existe ela mulher que ele quer mas não ama. Com fome irá nadando em trevas, três vezes na janela bate, os sapatos sem ruído no chão, cimento cozido do calor dos braços.
Casamento, quem o jura? mobília, sofá de plástico e mesmo televisão onde se mostram mulheres que um homem não tem jamais. O bom mesmo é ter Maria 28
que é preta, redonda e boa e graças a Deus, à toa, que não se nega perder com pasmo no escuro do mundo, quando tudo já está perdido.
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1979
Correu todo o calendário que me deu você no aeroporto em Paris quando nos vimos pela última afogada vez. Como abraço mal sentido correu todo o calendário, nem consegui decorar cada figura do mês! Por que será que a vida nos dá essa impressão de insaciedade?
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NICARÁGUA
Primeiro conheci Sebastian que era guerrilheiro. Da Costa Rica me escreveu: «la Pátria seguirá vivendo mientras tenga hijos que La amen...» A.C. Sandino Desde hace algun tiempo no me escribe más. Uma noite pensei angustiada que morrera; o corpo conhecido e moço queimado num canto além, sem nome. Sei então que ele não é um é todos; pois apodrecidos estão pés, braços, corpos tantos de irmãos e companheiros. Graves, límpidos, belos todos em sua valas na morte pela liberdade.
Nuestra América se mueve, acorda. Nuestro pueblo tiene sangre nueva, transborda numa profissão de fé; 31
pois sem fé morre-se a morte eterna, sem a fé não se suporta o chute, o choque a bala rasgando o peito, partindo o rosto, nem se vê a vida que há num corpo morto quando este amou a liberdade.
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MOÇA NO SUPERMERCADO
Perfil de pé entre ilusões erguia a barriga deformada e gorda prometendo um bichinho virador; e nem mulher seria de tão moça! Loira! Numa terra de morenos quiçá perdida de loucos italianos que aqui morreram de calor e sono; mas deram-lhe uns verdes olhos desbotados e cabelos também verdes mal lavados vistos assim pela luz fria dos balcões.
A moça mulher loira quase mãe, tocava sapatinhos de tricô, fraldas de papel, óleos, perfumes, os seus olhos tinham óleos, tinham luzes, 33
tinham cheiros e aromas pessoais. Tinham tal sonho, tal loucura e engano e desejo e desalento eram sim os olhos tr谩gicos de febre que teve no navio a bisav贸.
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CENA FIXA
Passou aqui um carroceiro e seu cavalo de chapéu. Na carroça, um carona, blusa rubra cheia de buracos pelos quais se espia o céu, vinha de cabelos emplastrados acendendo o dia mais que espelhos, carregava uma galinha choca nos joelhos dessas com cara de sonsa e de safada. Sentando sobre as peças de metal o moço leva os aros de rodar, os aros de rodar levavam o moço para as arestas agudas de outro mundo. Riu eu vi um bloco brilhando 35
no seu dente. Ouro!
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NEM TÃO HERMÉTICA
Os oásis existem mas as ligações são desconexas apagadas mesmo depois de tanto vento! Confusão de coisas de inofensiva aparência submerge nas demais torrentes.
Mas os oásis existem, isto é certo. As santificações e sacrilégios é que turvam os olhos, fenecem os sentidos, daí perderem-se os valores e as estradas nos vazios, daí nos lábios haver as mesmas vozes os mesmo ruídos conhecidos... Se então, no peito urge um giro de sementes, de animais nascendo, e um som de ecos partindo 37
vem avivando o tato, há um grito; há a combustão de tudo das santificações, dos sacrilégios, soltos no ar os pedaços há de haver um só dourado – é seguir a flecha!
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CRIAÇÃO para Luís Sergio
Escreves qual sonâmbulo que em desvelo e sem descanso abrisse portas da noite atrasando relógios e ponteiros equilibrando-se em muros com seu colchão às costas. Escreves como se alçasses vôo asas... Na verdade não escreves: deliras divagas sobre coisas imprecisas um drogado que tem pés noutro mundo – o da poesia. Não resumes, fazes crescer a rima, hipérbole, paradoxal não concreta – estendes mantos de loucura sobre tudo. No teu apartamento, 39
enquanto o outro dorme, a máquina de escrever pontilha e pontifica a noite (Meu Deus, quão próspera é a noite!) é assim que pensas e procedes na tua sina de homem que ainda deve preocupar-se com o café da manhã.
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PENAS E PASSADO
Cavalhadas rondam roucamente meu setor. As rugas são solenes mas os olhos desmentem frases célebres. não morremos ainda mas não ficaremos também na sala de reuniões; não mexemos nos arquivos nem eu te recrimino. Sorri. Sorrimos cada vez mais, lá fora rastejam lagartixas e dragões, não vais agora acreditar neles, vais? Já há milênios viraram fósseis, folhas impressas no guiso imperial; no lado mais estranho e enterrado; intervalo do teu pensar. 41
CREDO II
Largas bátegas de sal prendem o corpo, pás de areia fixaram-me aqui há anos, meus dentes brancos riem ao sol cheios de caveiras, e Tu hás de vir a mim na hora da minha morte.
Tenho tido febre e aqui andando tanto! Derrubo os braços, pendem... enfim - água ! Ruelas de riachos borbulhantes nuvens ou limo umedecido de doenças, não sei, tu o sabes, Pois desde que estou aqui piso sempre as rochas quentes, e até me prenderam num quarto de surpresas, meu guia, que faz ele 42
que adormece sempre? já que no céu se acendem tuas luzes...
Aqui na cidade há uma festa sons furam as paredes de cal esforço-me por não fazer comentários tristes, esforço-me, como pretendes, por fazer-me um homem. E canto – ou é um grito?
Perdão agora, se o enfureço não quero fazê-lo never já que tudo podes e nada sou então. Hei de espargir flores e perfumes e oferendas a Tua volta.
Amanhece outra vez na Tua terra longe as cabras na encosta seca esta terra árida é terra tanta e Tua é nossa, feito os calos dos dedos e os insetos que perfuram nossa pele.
Que caminho me concedes 43
que eu não trilhe? que ruína me apontas que eu não erga? que oceano me avanças que eu não ria? Não importa como seja: jamais me recusei ao Teu abraço de zebra.
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HOPE
Os empregados daqui são magros e pobres; andam pelos pavilhões com os pés descalços ou suas botinas fazem barulho nas escadas e eles são petulantes com autoridades ou humildemente assombrados.
Encolho-me depressa quando suas vassouras passam nos pés de minha mesa; fecho os olhos quando seus pés paquidermóides pisam na centelha acesa do meio do coração.
O que será dos filhos desses homens? O que é que sonham ao se deitarem em suas camas cruas? Eu sei (e se esperança há, é isso) que a sorte escolherá o firme e o melhor virá ainda aqui sentar comigo. 45
NOTURNO
Acontece no bar as pessoas ficam soltas, presas só por um fio de nylon invisível como se não houvesse, na terra, gravidade alguma. E toda via se entendem se estendem braços se os fios se soltassem por acaso: o eclipse.
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ANTIQUÁRIO
Os objetos, no antiquário dizem coisas de outro tempo refletido em espelho bisotê. Rococós eram as almas, as almas, antes, parece tinham moldura, tinham sombra e degradê, e um propósito, também. Esta poncheira de cristal e seus copos trabalhados – quem bebeu neles? a moça loira de olhar perdido? ou foi outra boca morena de um gordo e triste senhor? e que mãos a carregaram? E onde é que ficava? Numa casa... na cristaleira azul da sala à direita, que o tempo foi tornando 47
casca corroída de besouro, o mato entrou alheio pelo assoalho de imbuia, o sol foi queimando as telhas e as telhas viraram pó a alameda virou cinza, só a compoteira salvou-se; acima dos cabelos claros acima das barbas ralas ela foi salva! De quê? Não sei bem de que foi salva, mas agora esta aqui. Ao lado, um polichinelo, do outro, um vaso chinês, atrás, um relógio inglês à frente um aparador.
O dono do antiquário é um fraco perdedor que gosta de colar cacos recriar e recompor o que é irreparável, e até inútil, digamos. 48
No silêncio desta loja quando a noite se apresenta às brilhantes prateleiras, na solidão que se instala, alguns objetos choram. Outros dão risadas.
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NARDA ESCREVE COM BATOM UM BILHETE A MANDRAKE
Narda foi, certa vez, presa na cidade de Ull onde se costumava diminuir pessoas e exibi-las em gaiolinhas nos parques domingueiros cobrando-se ingressos a preços módicos para o lazer familiar.
Narda foi assim presa na cidade e diminuída ao tamanho de uma agulha – não de verdade, mas por meio de lentes e truques preciosos que até ela mesma pareceu confusa sem saber mais do seu tamanho exato.
Narda em desespero, na gaiola, ao cair da tarde chora mas escreve com batom um bilhete pra Mandrake, vermelho o batom, vermelho, 50
mole, derretido erótico o bilhete num papel engordurado de pão, parecendo microscópico: «S.O.S., Mandrake». Mas como mandar a mensagem agora?
A tarde ia morrendo no vermelho e o batom vermelho, lágrimas de Narda, o bilhete amarrotado de vermelho vermelhos eram rostos que a olhavam tão pequena, frágil e abandonada.
Na sala de estar onde Mandrake cochilava e Lotar fazia castelos de caixas de charuto antigas, não chegou o bilhete, não podia, mas chegaram os soluços como bolhas abafadas, hipersonicamente trans iluminação! 51
Mandrake acorda em sobressalto, - Lotar, pegue meu fraque, vamos: ĂŠ chegada a hora.
Chegam ao derradeiro destino finalmente naquela cidade de Ull entre alamedas, entre gaiolas. Mandrake salvando Narda, num passe magistral, faz com que seja cada habitante de tamanho variado; pais e filhos desconhecem-se irmĂŁos se digladiam assustam-se vizinhos, tudo baboseira tudo ilusĂŁo de Ăłptica.
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