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Minha homenagem ao escritor Carlos Casta単eda e ao seu mentor, o feiticeiro Don Juan Matus, com gratid達o.
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A Mirian Gomes Barcelos, amiga querida de inĂşmeras vidas, dedico.
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A Luis CĂŠsar de Campos
Agradecimentos pelas conversas sobre literatura e cinema, e por apresentarme tantas obras especiais e alternativas.
A Mara Bombos Quadros
Agradecimentos por todo o carinho e trabalho de diagramação do livro e pela capa.
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Prefácio A magia de Eloah Admito ter sido, ao longo da vida, um leitor voraz. E continuo sendo-o. Desde a infância, histórias, gibis, revistas de quadrinhos, livros fascinaram-me. Intriga-me, ainda agora, constatar que não havia preferências. A leitura me levava – e ainda leva – a mundos mágicos que, no entanto, se me tornavam reais. Gibis, por exemplo. Eram leitura do fantástico, do mágico, do admirável, de uma outra realidade que, todavia, se tornou, quase toda ela, verdadeira. Com Flash Gordon, ainda nos 1940, o homem já havia chegado à Lua e passeava pelo universo. Júlio Verne, George Orwell, Castañeda, Cortázar, Garcia Marquez, Huxley, Asimov, alguns deles que me enriqueceram o imaginário e se tornaram como que profetas de outras circunstâncias que levam o homem a mudar o mundo, tanto para pior como para melhor. Pois, em meu entender, não é o tempo que passa, mas nós é que passamos por ele. Sendo infinito, o tempo não pode ter começo nem fim. E, portanto, não pode passar, penso eu. Assim, lá vamos nós passando por ele e, com circunstâncias diferentes, transformando-o. Sem ainda discernir, acredito, se o melhoramos ou se vivemos a vocação suicida para destruí-lo. Não sendo um aficcionado – nem especialista – da ficção científica, que se confunde em alguns casos com o chamado realismo mágico – ou fantástico ou maravilhoso – sempre me espantei com a, para mim, quase absurda capacidade de criação e de imaginação de seus autores. Na realidade – à medida que passei pelo tempo – fui entendendo que os ficcionistas eram 5
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como que profetas, aqueles que anteviam o que poderia vir depois. E, alguns deles, com estilo literário e linguagem mágicos. Honrado por Eloah Margoni para ler os originais deste livro, fui tomado de espanto, de susto, do fascínio inesperado. Ora, venho acompanhando os escritos, a luta, as convicções de Eloah através da imprensa e de suas atividades profissionais e pessoais. Ela, há muito, vem sendo ferida pela lucidez diante da devastação que nos esmaga. E, quase sempre, anunciando, profetizando, solitariamente. Ao receber, pois, os originais de “Zion”, não entendi, de imediato, o que Eloah pretendia. De repente, vi-me tomado, imantado – repito-me, que espantado – diante do fluir da história, do estilo, da narrativa, da criatividade, dos fundamentos filosóficos e científicos que a autora revelava em “Zion”. Eis que me vi, então, diante de um livro mágico. A leoa Eloah mostrava-se visionária e profetisa, como que prevendo o que acontece ou está por acontecer, desvendando um mundo e criando outros, desnudando o ser humano para, também, criar outros. Confesso não conseguir opinar, como crítico, sobre o livro de Eloah Margoni. Pois, antes de mais, não sou especialista. No entanto, com minha vivência e como homem de letras, vi-me diante de um livro de uma ficção tão real e fascinante que consegue conciliar o científico, o mágico, o maravilhoso, com o realismo objetivo e cruel. Eloah como que confirma a minha filosofice pessoal sobre a fixidez do tempo, pois ela viaja por ele. Sai, caminha, retorna, vai e volta e cria uma circunstância nova que – quem sabe? – poderá ser o que haveremos de nos tornar. A magia de Eloah Margoni transforma-se, neste livro, em visão de profetisa.
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Será lamentável se esse maravilhoso trabalho – poético e realista, com suaves nuances de lirismo diante do dramático – restringir-se apenas a leitores piracicabanos. É resultado de uma criatividade de dimensão universal. Confesso o meu fascínio após a leitura dele.
Cecílio Elias Netto
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Capítulo 1 O vestido policromático à moda Sumatra, bastante ousado e feito especialmente para ser portado à noite, o qual vi na vitrine virtual do Bloomingdale´s, experimentei-o depois num mega terminal eletrônico da Terceira Avenida com a Rua Rupert. Ficou-me tão bem, atraiu-me tanto a atenção que resolvi comprá-lo. Sim, adquiri-lo pretendo, mas confesso que não apreciei verificar a vestimenta apenas na rede projetada, pois não creio que os programas sejam isentos, conforme exige a lei, de “softwears” de mimetização de imagens e outros que façam automaticamente certas alterações em nossas silhuetas e até nas tonalidades das nossas peles, bem como nas formas das roupas e dos calçados, logro este que favorece mais ao comerciante do que ao consumidor. Chamem-me de desconfiada, de insegura se quiserem. Acusem-me de descrente mas não de retrógrada, pois esta classificação seria injusta, incompatível com minhas atividades profissionais. O fato é que gosto da realidade material às vezes, do objeto ao vivo e palpável, em muitos momentos. Irei até a Bloomingdale´s para experimentar a roupa; isto é, depois de olhar para ela e tocá-la, por pelo menos quinze minutos e não menos. Estou decidida a tal. Não me poderão condenar, pois é a primeira indumentária feminina que comprarei (e usarei) em dois anos. É que desde esse tempo, venho envergando macacões largos de tecidos bem mais comuns ou aventais de laboratório, com os quais até já entrei em transportes coletivos quando vou para casa cansada o que, devo dizer, nem acontece todos os dias. Isto é, não vou para casa todas as noites (estafada sempre fico quando o escuro adentra) mas se o faço, com frequência simplesmente esqueço-me 8
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de tirar a roupa de trabalho; poucos transeuntes, porém, nos locais públicos se incomodam com isso. Por outro lado, o tempo está muito hostil hoje. As concentrações de dioxinas e de ozônio na atmosfera estão perigosamente altas, conforme indicam os painéis comunitários, e mesmo usando-se a costumeira máscara com filtro especial modelo 2TW, ficarmos nos deslocando nas ruas em direção aos bairros mais perigosos ou na região central não é recomendável, sem falar dos ultravioletas tão terríveis! As lojas lá no centro são refinadas, têm sensores para mudanças bruscas na qualidade do ar e algumas acionam também seus filtros. Bem, depois a sujeira desses filtros há de ser depositada em algum outro lugar inevitavelmente, mas as mercadorias e os compradores das mesmas lojas ficam, assim, relativamente preservados e protegidos. Sei também que serei seguida por pessoas da Agência Científica Galáctica e Interespacial que nas últimas doze ou quinze semanas nunca me abandonam. Ultimamente tornaram-se muito menos discretos na vigilância. Será um dos agentes aquele rapaz oriental que desliza de prancha eletrônica e ouve música? Ou a mulher que lava janelas com jato seco, suspensa no terceiro andar do prédio antigo com fachada de granito marrom, situado à Rua Obama, pela qual agora passo? Podem ser muitos os seguranças especiais. Não vale a pena ligar para eles, concluo. De qualquer forma, a ocasião merecerá o vestido que, dependendo da luz parecerá vermelho ou azul, esverdeado ou cinzento brilhante. Terei um jantar especial com minha família e uns poucos amigos. Será uma cerimônia íntima, ao mesmo tempo de comemoração e de despedida. Os outros não sabem disso, pois se 9
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trata de coisa secreta, mas eu o sei. Fomos proibidos de escrever sobre o assunto, de dar entrevistas ou de fazer declarações. Não nos impediram diretamente de comentar algum item com nossos familiares, mas nos desestimularam de fazê-lo. E quem, dentre nós, ousaria uma indiscrição assim? Um assunto de difícil compreensão, além do mais. Principalmente, procuraram nos reter no complexo dos edifícios de trabalho, o qual conta com bastante recursos, também conforto em seus prédios modernos e aparelhados, com linhas de transportes especiais até alguns pontos da cidade. Nos últimos meses, dormi ali por muitas noites, sempre jogando tênis tridimensional e tomando longas duchas antes de me deitar.
Capítulo 2 10
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Convidei Yohansen, um vizinho de quem gosto ternamente como amigo, um doce que é, e que se diz apaixonado por mim por causa dos meus olhos e de meu nariz, mas não sei se é verdade o que ele fala. Também chamei para o jantar Zoe, que conheço há anos, mas de quem me afastei um tanto por força do trabalho e das pesquisas. Ela se entusiasmou com ideia e perguntou-me qual será a ocasião. Eu disse a ela “apenas muitas saudades dos amigos e dos parentes”, também que comemoraria o fim de um projeto. Nenhum deles irá supor de qual projeto avançado e revolucionário estou falando, pois pensam que só existem sondas interestelares ainda. Não podem supor nossa máquina avançada agora... Como poderia explicar a essas pessoas tão pouco voltadas aos estudos científicos, que estou prestes a participar da primeira experiência de viagem temporal? Eles podem assistir a filmes e projeções, entrar em interações e animações realistas, ver isso em programas de ficção, ouvir e ler algo sobre o assunto, mas com coisa para valer nem sonhariam! Não tenho como contar-lhes quanta excitação, tensão agradável e frisson de aventura tudo isso significa para mim. Se lhes disser que fui escolhida para esta equipe de poucas pessoas, eu, técnica brasileira especializada em mecatrônica, ficarão aturdidos. Além disso o projeto é sigiloso, certamente já esclareci tal ponto. Dentre os cinco primeiros viajantes, os pioneiros exploradores do tempo me encontro. Que magistral! Poderemos todos desintegrar, morrer num segundo, é claro. Assim, as despedidas, no caso de cada um de nós cinco, e um vestido especialmente luxuoso, no meu caso em particular, tornam-se perfeitamente cabíveis.
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Capítulo 3 Encomendei alguns pratos; ou antes, minha tia o fez a meu pedido. Uma variedade de acepipes, de terrinas de caldos com frutas e doces, além de vinho oriental. Yohansen arrumou-se masculina e lindamente, com um ar displicente, porém. Trouxe flores, deu-me um beijo na bochecha e olhou muito pra mim durante a noite, exceto quando Zoe entabulou conversa com ele. Esta foi muito pontual por sua vez, e estava bem alegre, até ensaiou comigo uma dança. Falou sobre minha vestimenta com fascínio. Todos pareceram impressionados, especialmente uns parentes mais distantes, muito interesseiros e exploradores, que minha tia convidou. Não gosto deles e ela deveria ter respeitado minhas opiniões, afinal a recepção era minha. Mas minha tia é complacente demais, tem um senso exagerado de união familiar; idealiza em excesso a coincidência e semelhança de genes, essas malditas pontes fatídicas, cordas torcidas de DNA, apesar das diferenças de caracteres entre familiares às vezes serem bem gritantes. Eu mesma nunca os afastei de verdade; falo dos parentes. Tolerei suas intrusões e oportunismos, fingi não saber quanto dinheiro minha tia lhes dava ou ainda lhes fornece, dinheiro esse proveniente da mais que generosa mesada que passo a ela. O fato é que ganho bem, mas mergulhada em meus sonhos um pouco incomuns, em projetos de robótica e em outros projetos de ponta, não tenho tempo para gastar, para namorar, nem para detestar 12
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direito ninguém pelo visto. Sob certos aspectos sou, então, medíocre e incompetente. Ter sido incluída na missão arrojada e promissora foi uma surpresa para mim, mas tudo começou quando o chip por mim idealizado, colocado num robô, foi o único que funcionou numa viagem ao futuro para onde enviaram uma máquina dentro de outra naturalmente, como emissária para trazer arquivos, análises, enfim, dados e imagens. Não, seria melhor fazer vênias ao histórico real, pois tudo começou antes na verdade, quando a tecnologia para viagens temporais foi afinal descoberta, equacionada, domesticada, e isso faz parte de uma saga da qual só soube mais recentemente e muitos nem a conhecem até hoje. Que a dupla espaço e tempo é curva, ninguém o ignora há muito, há tantas décadas e décadas, mas não se conseguia durante quase um século, qualquer tecnologia para se viajar através dela, da citada dupla, para frente e para trás no tempo. Todos aqueles que se interessam um mínimo por física quântica e afins até sabem por quê. A dificuldade de se imprimir, a uma nave ou a um dispositivo, velocidades semelhantes à da luz, a inexistência de material que suportasse tais velocidades e outros entraves apareceram, até que as pendências foram resolvidas com elétrons presos em campos magnéticos, o que os fazem girar ferozmente, mais os raios gama irradiados sobre um cilindro de wongstênio e outros fantásticos e excitantes detalhes os quais, aos afeitos a essas descobertas só causaram entusiasmo, euforia e extrema animação, mas poderemos falar disso mais adiante. A verdade gritante, angustiante e urgente é que a descoberta da possibilidade do deslocamento controlado no tempo, para os dois sentidos, para adiante e para trás, e as pesquisas a isso dirigidas surgiram como derradeira esperança, como única porta de saída para o caos no qual nossa civilização se tornou. 13
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De um lado houve o total fracasso das viagens espaciais. O homem, concluiu-se, não foi feito para abandonar a mãe Terra, nem há planeta possível de atingirmos que nos acolha. Seres orgânicos que somos, dependentes de ar, de água e de certas temperaturas, apesar de nossas pretensões, nunca encontramos outro lar até agora, nem o encontraremos aparentemente, pois as viagens ao espaço cessaram há duas décadas. Milhões, trilhões e quatrilhões de dólares foram gastos, a órbita terrestre encheu-se de lixo, de rejeitos, de sucata. Imagens ao vivo, fotografias e filmes foram feitos tanto dos planetas próximos como de galáxias distantes, dados gerais e pedaços de solos foram coletados, sondas voaram daqui para lá, astronautas viajaram, mas nada foi encontrado que nos oferecesse vida ou abrigo. O espaço se mostrou sempre o que já sabíamos ser, um espetáculo extraordinário de luzes, de tons, de formas e colorações, de explosões, mistérios, de escuridão profunda e silêncio gélido, de temperaturas altíssimas e buracos negros. Inóspito. Estéril. Cruel. Muitas das naves desintegraram, outras voltaram com cosmonautas mortos, outras ainda nem saíram da esquina do sistema solar, mas nunca se achou outro planeta habitável como a Terra; até onde fomos ao menos. E ela agora agoniza, disso também ninguém mais duvida. Mesmo as bem poucas ilhas de privilégios, como ainda o são algumas partes dos EUA, e de outros países que se impuseram agressivamente no cenário mundial nas últimas décadas, não conseguem ficar imunes e muito menos alheias aos insolúveis bolsões de miséria do mundo, às áreas enormes que se medievalizaram até a barbárie, ao severo esgotamento dos recursos naturais, às sucessivas e insolúveis crises econômicas, às grandes populações refugiadas das mudanças do clima, às novas e gravíssimas 14
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doenças degenerativas, às constantes ameaças de guerras nucleares, e às outras guerras: bacteriológicas, químicas, de emissões eletromagnéticas. E basta! Para o grupo de cientistas quânticos, que se juntaram ao redor deste projeto denominado “Nuova Terrae”, e mesmo para as fontes econômicas que nos mantêm, o único trunfo, a maior chance que possuímos será encontrarmos, ao longo da malha tempo, a saída para o “imbróglio” que criamos e que está prestes a nos destruir enquanto espécie. Não há mais oportunidades de reversão da extrema entropia ensejada em nosso presente. Perdemos, por nossa máxima culpa, todas as outras chances. A forma que se concebeu de se achar uma saída para a humanidade por outro lado, pode ser até um pouco louca, arriscada, mas é lógica por um determinado prisma, e sensacional. Como diriam os muito antigos, um ovo de Colombo. Por enquanto, apesar de minha família, de meu apaixonado, de Zoe e eu vivermos numa cidade de ar irrespirável, de água poluída, muitas vezes racionada, de trânsito terrestre e aéreo perigosos, criminalidade quase sem controle, ainda estamos no paraíso se compararmos este a muitíssimos outros locais no mundo.
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Capítulo 4 Yohansen acaricia-me a mão com ternura. Andamos à beira de um lago cercado eletronicamente, pois ele existe agora para ser visto, não inalado em sua umidade, ou tocado em suas águas impuras. Não importa mais... É iluminado com luzes coloridas a laser e estamos passeando ao redor dele. Depois de amanhã partiremos eu mais meus companheiros, e se a viagem der certo como esperamos, voltaremos ao local da missão cinco minutos depois de termos saído, de modo que à hora do almoço poderei até mesmo estar com Zoe (teoricamente falando), muito embora entre o momento de nossa partida e o horário normal do lanche ou almoço, muitas coisas deveremos ter visto e trazido de volta! Quanto tempo se passará entre nossas duas vidas? Nossos corpos o sentirão e envelhecerão proporcionalmente? Penso que certamente sim. Perco o fôlego só de focalizar o assunto! Raciocino sobre isso ininterruptamente como é natural; minhas ideias vagueiam. Noto um casal que caminha próximo a nós; tenho absoluta certeza de que nos vigia. Ou melhor, vigia a mim. Certamente os equipamentos de áudio, vibracionais e modulares, ultra microfones e câmeras que ambos, estou segura, carregam, além das máquinas usuais nos locais públicos e dos satélites magnéticos, são tão potentes quanto moderníssimos e não tenho porque duvidar de que os agentes efetivamente fariam qualquer intervenção se nossa conversa tomasse rumos contraindicados, o que não acontecerá. A dissimulação e o silêncio são minha bandeira; se eu não voltar jamais, 16
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os que gostam de mim não terão de sofrer antecipadamente, nem lhes será feito qualquer dano posterior. Alguma história conveniente será inventada e contada a eles: “um acidente terrível e lamentável houve no laboratório, desses onde não sobram corpos nem vestígios... Foi-se embora nossa dedicada, inteligente e respeitada Angeline!” Assim dirão, suponho. Eles, os agentes, perdem realmente seu tempo comigo neste aspecto, próximos ou à distância. A empresa, porém, tem dinheiro para tanto, e creio que possamos necessitar de alguma outra proteção ou cuidado, mais do que imaginamos. - Em que pensa, minha linda? Parece guardar um grande e estimulante segredo. Diz meu amigo, enquanto alcançamos uma das plataformas móveis, levadiças, que descrevem desenhos sobre o lago, sob acordes de música mimetizada popular. - São planos e indagações de trabalho que me ocorrem apenas. E não vêm ao caso; vamos mudar de assunto. Fale-me de suas pinturas e de seus projetos, das exposições, dos clientes. - Você é minha cliente especial, Angeline. No mais, hoje em dia são meus bicos como arquivador virtual para empresas, que ajudam a manter-me. - Ora, comprar-lhe cinco quadros, e com descontos, não faz de mim boa cliente sua. E o que você pinta, especialmente com tintas eletrônicas, tudo é muito original; certamente ainda terá reconhecimento! Falo-lhe com sinceridade. Meu amigo começa a comentar sobre os seus planos no geral; fico contente com isso, mas depois volta ele a inquirir-me sobre meu ar misterioso e excitado, como quem abriga na mente algo muito confidencial e oculto. Não faz isso de modo invasivo ou impertinente, 17
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mas através de insinuações e indiretas, pois mal consegue disfarçar sua apreensiva curiosidade. E se é verdade que posso esconder o motivo real de tanto sigilo e emoção, também o é que não consigo camuflar que alguma coisa de excepcional esteja ocorrendo, ou esteja a ponto de ocorrer. Talvez Yohansen creia, simplesmente, que eu ande saindo com alguém... Para atenuar esses sentimentos dolorosos para ele e impressões errôneas, começo a falar do meu passado, mas também o faço porque tal oferece-me inefável prazer a esta altura dos fatos. Brasileira que sou de nascimento recordo-me do meu país de origem, pois vivi em São Paulo até os sete anos de idade. E o que dizer daquela vida da metrópole mórbida? Que saudades poderia ter de minhas doenças respiratórias e oculares, dos graves ataques de asma? Mas eu só conhecia isso na época, aquela cidade inabitável, excetuando-se as férias e poucas viagens. Porém tinha minha amorosa e inteligente mãe, o que para uma filha única era quase tudo. Meu pai, um cientista, um físico e professor de famosas universidades, nem sempre estava presente, mas quando retornava, conversava muito comigo, dava-me atenção. Nossa vida mudou radicalmente contudo, por causa de um acontecimento muito triste, que foi a morte de minha mãe num desastre de aeronave urbana. Depois que ela morreu meu pai decidiu-se por mudar-se para os Estados Unidos, onde já fora convidado a trabalhar por várias vezes mas sempre recusara, e onde tinha uma irmã e dois primos; esses últimos, filhos de um irmão de sua também já falecida mãe. O tio sumira no mundo, mas seus filhos ficaram: uma mulher e um homem. Tais eram os parentes que possuíamos, e meu pai não me queria privar desta pequena mas necessária família em sua opinião. 18
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Assim nos mudamos para Seatle, e depois um pouco mais para longe; ali, vivíamos vizinhos a um lago no qual ainda se podia entrar em algumas épocas do ano. Meu pai fazia pesquisas de física quântica, sobre as cordas cósmicas, mas conseguia trabalhar boa parte do tempo em casa. Os transportes especiais ultrarrápidos e as reuniões virtuais on-line em três dimensões, sensitivas e ampliadas, facilitavam muito seu trabalho. Minha tia vinha diretamente de Atlanta para nos visitar com certa frequência. Eu gostei dela de cara. Os primos em segundo grau e seus filhos não vinham muito, assim não me liguei a eles na época. Fora isso, éramos solitários estudiosos, pois eu mostrava facilidade enorme para os tronics, essa mistura de engenharia e eletrônica. Não fazia amigos pois era muito tímida, e gostava de peças, de robôs; sonhava-os perfeitos, quase humanos, de nós indistinguíveis e muito melhores do que jamais o seríamos. Meu pai queria que eu estudasse física quântica como ele, mas esta área como a descrevia parecia-me até misticismo de tão complexa. Na verdade, embora minha especialidade também preveja cálculos, na física em si nunca passei de fórmulas muito primitivas e simples, tais como:
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Onde:
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E para mim, isso ou um pouco mais foram quase meu limite.
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Capítulo 5 Foi uma noite agitada em minha mente, precedendo à manhã gélida. A insônia somente não seria causa de admiração, especialmente para cada um de nós cinco envolvidos no projeto. Logo cedo, um confortável mas discreto veículo autodirigível, com controle biônico, pegou-me à porta da casa para levar-me ao complexo de pesquisas. Havia, no transporte, três agentes especiais usando roupas cinza-prateadas modernamente termorreguladas, sóbrias e justas; tinham modos corteses e olhares neutros; um deles apenas era um robô, mas não se confundiria tanto assim com um humano. Fora nevava muito. Como de rotina, as impressões das minhas iris e a voz foram verificadas logo na entrada do dirigível (a identificação dos nossos DNAs ainda são rapidamente feitas somente antes de adentrarmos a sede). Os seguranças do veículo cumprimentaram-me com discrição e, apesar do caos da cidade, voando um pouco baixo na alínea Beta Central, chegamos em vinte minutos à Agência, atravessando seus jardins, tanto os naturais cobertos de neve, pois a temperatura despencara de modo contundente e amplo desde ontem, como os artificiais cheio de flores e plantas soberbas, de belo visual mas sem vida alguma, ou ao menos sem vida real, pois se tratam apenas de clones estáticos, em atividade suspensa. Também cruzamos os pátios adjacentes, chegando ao edifício mais interno de todos e o mais importante, ao coração do lugar. À entrada vi Nicolai Borowsky, o companheiro russo com quem viajarei, mas sobre quem tampouco tenho qualquer forte ou mais 21
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expressiva opinião e o qual ainda conheço restritamente, apesar de esbarrar-me sempre com ele no complexo e de frequentarmos reuniões ou até muitos treinamentos juntos. Ele é um sujeito fechado e eu, dizem, sou uma garota sisuda também. Os demais são mais risonhos e descontraídos: Reese, Gregorius e Nadine, a francesa. Somos os profissionais envolvidos na missão atualmente mais secreta, a mais importante do mundo contemporâneo e que visa resgatar a humanidade toda, recolocá-la nos trilhos dos quais saiu há muito, perdendo-se. ***** Na crescente derrocada de nossa espécie, e paralelamente à recém-descoberta tecnologia para as viagens temporais, foram enviados robôs pesquisadores e exploradores para o futuro; dois, cinco, dez anos adiante, mas estes retornaram sem quaisquer dados, imagens ou sons gravados. Esta tarefa que parecia tão simples fora uma decepção. Mandarem-se animais seria inútil; apesar disso o fizeram, mas a máquina do tempo voltou sem eles. Foi então que, mesmerizada pelo desafio de encontrar uma forma eficaz de programar os robôs para resistirem à pressão da viagem e continuarem funcionando, pensei em números, materiais, formas de chips, de circuitos e afinal encontrei uma solução com partículas mutáveis colocadas num minúsculo dispositivo de liga de titânio. Deu certo e tornei-me conceituada pesquisadora na área. Isso, de per si não teria sido motivo para colocarem-me no grupo; é que a história real e completa é muito mais longa... Quando as máquinas exploratórias, com cérebros mais plásticos, flexíveis e atualizados foram colocadas na cápsula do cilindro temporal, viajaram dois, cinco e dez e vinte anos adiante no tempo, depois cem , mas as imagens que trouxeram foram tão 22
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desesperadoras, tão alarmantes, de tal modo apocalípticas que o grupo de elite dos pesquisadores, em peso, chorou! A humanidade agonizava rápida e progressivamente de maneiras horrendas. Pensou-se mesmo, daí, em dar-se um salto de quinhentos ou de mil anos, para podermos ver se a Terra estaria mais “limpa” e estável então, e se já poderia voltar a abrigar vida humana; mas de que adiantaria? Como iríamos transportar a humanidade, ou parte significativa dela para o futuro? Ideia e tarefas inviáveis. Idealisticamente, o plano agora é muito mais ousado, de boa ética e mais louvável do que se venderem passagens a pequenos grupos privilegiados para voltarem a habitar a Terra daqui a muitos séculos. A grande missão é avançarmos um pouco apenas no tempo, três ou cinco anos no máximo, e trazermos a tecnologia robótica humanoide, de tronics com circuitos artificiais e tecidos humanos tão perfeitos (afinal já estamos quase lá!) que poderão simular muito aproximadamente, não só a aparência humana, o que já se faz, mas o feitio e o comportamento dos humanos, embora sendo máquinas absolutamente programáveis, resistentíssimas e cheias de conhecimentos, dados e habilidades. Assim, será possível fazermos dublês de qualquer um: de grandes líderes religiosos, de reis, de chefes de Estados, de presidentes e políticos, de megaempresários, de modo que, voltando-se, aí sim, para trás no tempo, e os primeiros (os tronics humanoides) tomando os lugares de pessoas importantes, de figuras chaves da trajetória do mundo, com os falsos sendo colocados em lugar dos verdadeiros, mudemos totalmente os rumos práticos da nossa civilização. Sim, a tática crucial será, então, voltarmos e reescrevermos a história: sem bombas, sem armas perigosas, sem tecnologias predatórias, sem superpopulação, sem poluições, sem energia nuclear sequer. Nouva Terrae, a segunda chance! 23
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O mais intrigante no acima descrito é que nem nós sabemos como tudo poderá vir a ser ou a não ser, pois alterando-se o passado, mudando-se os fatos e modificando assim, consequentemente, o presente, poderá acontecer que nenhum de nós chegue a nascer ou a existir tampouco, que nunca se descubra a viagem no tempo afinal... Estranho, porque eu já existo agora e não vier a existir no “futuro/presente” é coisa que não me pode assustar. Meu pai entenderia e explicaria tais coisas com fórmulas e equações. Eu ainda as considero misteriosas e quase mágicas. Mas o que nos atemoriza mesmo, de fato, é este grupo espetacular e esta tecnologia caírem porventura em domínios podres e escusos, e a heroica missão ser distorcida! Se tal calamidade impensável acontecer, a humanidade poderá ser mesmo destruída para sempre. Isso justifica os tantos agentes que nos vigiaram até aqui. Também é fato que algum deles até possa ser um espião (isso não é impossível) que espere a chegada do chip, para roubá-lo de nós. Isso penso eu, mas são delírios talvez.
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Capítulo 6 Passamos o dia com programação leve de lazer e descanso, em sessões de entrosamento entre os membros do grupo, bem como tivemos revisões sobre tópicos fundamentais e finais da missão, mas essas agora não foram palestras longas nem intensas. De certa forma pode-se dizer que somos uma equipe básica completa. Nicolai é biólogo com larguíssima experiência em plantas raras e extintas, em clonagem, e é ainda virologista, doutor em cultura de tecidos. Trabalha há anos com órgãos criados, e reimplantados, a partir de células tronco. Uma verdadeira sumidade o considero; aos quarenta e um anos tem tantas premiações que poderia dar-se ao luxo de se aposentar caso quisesse, pois conseguiria viver tranquilo do ponto de vista financeiro. Nadine, por sua vez, é médica e tem trinta e cinco anos mas apresenta um enorme currículo no que se refere a emergências clínicas e cirúrgicas, bem como tem especializações em dinâmicas grupais nas situações de estresse e já trabalhou em algumas das grandes, e cada vez maiores áreas de miséria e conflitos pelo mundo afora. Considerando-se sua dura vivência, parece-me enorme qualidade da parte dela ser tão simpática e serena. Muito a admiro, embora não lhe tenha dito isso ainda. Reese é nosso segurança, o homem de ação, incumbido da proteção do grupo e de nos manter a todos vivos até nosso regresso. Conta trinta anos, ou pouco menos e é fortíssimo, bem treinado, ágil, conhecedor das muito antigas lutas orientais, além de saber tudo sobre armas modernas e táticas de guerrilhas. Nada tem de emburrado também paradoxalmente, e até gosta de falar, mas não há como eu achar que seja sincero ou acreditar muito no que ele diz. 25
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Sei que conversa apenas para conhecer melhor nossos íntimos e tudo o que nos vai nas mentes, evitando revelar o seu próprio eu. Já Gregorius é um realmente alegre mas impulsivo homem moreno, quase mulato, de trinta e dois anos e também forte fisicamente; é o engenheiro técnico de manutenção, especializado nos sofisticados equipamentos da nave temporal, bem como nos aparelhos médicos, cirúrgicos e nas armas que ela contém. Um homem muito versátil tecnicamente falando. Eu, Angeline, tenho vinte e seis anos de obstinações, de perdas, inconformismos e de sonhos aventureiros, é claro. Os líderes do grupo são Nicolai e Nadine, mas nossas ordens foram precisas, claras e, dependendo da situação, cada um de nós poderá ou deverá posicionar-se como liderança, caso a caso. Então, o comando, em certas circunstâncias muito bem esclarecidas em nossos protocolos, pode eventualmente se alterar. ***** O dia correu assim, com refeições leves também e à noite fomos obrigados a nos recolher em nossas suítes mas ninguém dormiu, creio. Passei por uns cochilos cheios de sonhos incomuns. Pela madrugada acordei de vez e gravei uma mensagem em três Ds filtradas para minha cara amiga Zoe com quem, se pudesse, gostaria de conversar, de dividir este momento. Sei contudo, que o recado para ela poderá ser enviado apenas quando nos for autorizado revelar alguma coisa. De qualquer forma, este mesmo nunca será mandado realmente. Irão apagá-lo logo pela manhã. Ainda estou acordada; penso muito em minha vida e no que significará ou não este amanhecer para todos nós e para a humanidade. 26
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Passaram e voaram as horas. Depois..alvoreceu. Novamente fizemos refeições frugais pela manhã, após o que tivemos visita do médico da base, o qual levou-nos para fazermos check-ups rápidos. Todos se mostraram bem. Seguindo-se a isso houve curta homenagem para nós, os pioneiros viajantes do tempo, e mais uma festividade breve e descontraída do pessoal de suporte da Corporação, também existiu. Em seguida houve a reapresentação formal da equipe à senhora generala Güen MacDern, responsável pela pasta de exploração estelar e de física quântica, também mentora do projeto, em cerimonial padrão. Então fomos transportados para o absurdamente grande recinto do também imenso cilindro (que sai do complexo e se estende por quilômetros além), onde todo o equipamento com reatores e maquinaria já estava pronto para operar. Usávamos roupas especiais isolantes e com elas adentramos a pequena nave situada internamente ao cilindro. Esta foi planejada para orbitar em espiral ao longo do tubo, o que, sob o efeito dos raios e da estupenda rotação, transportará a nave e o próprio dispositivo cilíndrico cinco anos adiante no tempo. A nave tem oitenta metros quadrados por três de altura. Parece uma delicada mariposa na parede do tubo colossal, mas é feita de resistentíssima liga metálica . Apesar de pequena, ela contém tudo o que nos seria fundamental numa emergência, tal como cápsulas de manutenção vital para dez tripulantes (somos apenas cinco), vestimentas com finalidades variadas, cabine para banho seco e desinfecções, filtros contra radioatividade e energias magnéticas, além de uma unidade armazenadora e extratora de oxigênio até mesmo de água, ou de atmosferas rarefeitas. Também comporta armas, pequenos robôs de serviço, medicamentos, flutuadores, dispositivos externos mas retráteis também, com fortes membros robóticos, para o caso de ficar soterrada, portas de vedação 27
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ultrassônica para o caso de ficar submersa, flips para extrair oxigênio da água ou de um ar rarefeito ou envenenado (ou para se extrair água de quase tudo), módulos de controle total de temperatura interna com isolamento perfeito, uma unidade portátil para tratamentos de emergência e para algumas cirurgias mais simples (que diga-se, são muitas), microunidades de reanimações, grandes estoques de tabletes de elementos nutricionais, e, certamente, local apropriado para emissão e tratamento de dejetos. E o mais importante, o enorme cilindro externo deverá, por lei, estar à nossa espera. Tudo isso para a missão de coletarmos a tecnologia apropriada que nos permita fabricar os robôs, os androides totalmente adequados. Só assim a segunda etapa da missão terá, a seguir, um curso. ***** Os tão impressionantes e precisos preparativos que fizemos para a partida se justificaram; passos foram dados metodicamente, etapas se sucederam e agora estamos nós adentrando o cilindro e à nave, portanto, à Máquina do Tempo. Caminhamos solenemente os cinco, tal como o fizemos em tantas simulações e treinamentos, mas agora é de verdade. É chegado o momento. Morreremos ou voltaremos inteiros? O que veremos adiante? Conseguiremos a necessária tecnologia dos robôs humanoides perfeitos, para daí mudarmos a história de nossa espécie? Olhamo-nos nós, unidos por um fio forte e invisível de idealismo e sede de aventuras. Nadine parece tremer muito levemente com a expectativa, eu me sinto radiante, percebendo de uma maneira que até me incomoda, que não me importa morrer. Não que espere ou 28
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queira isso. Desejo a vitória, o sucesso desta primeira viagem, etapa inicial de nossa verdadeira missão, mas estou preparada para sacrificar-me. Todos temos de estar preparados para erros de cálculos, ou para o inesperado. Reese se desloca de modo altivo como se fosse mergulhar no futuro e se soubesse indestrutível. Nicolai mostra-se totalmente compenetrado, absorto, quase distante dali. Percebo uma leve sombra em sua face porém, e não sei o que será. Gregorius parece tranquilo e quase sorri, como se seu talento de conhecer tudo sobre aparelhagens e maquinaria, grande ou delicada, lhe garanta ter as portas do mundo abertas automaticamente, no presente ou em qualquer tempo. ***** E assim nos introduzimos no gigantesco tubo. Uma vez dentro dele, conduzidos até ali por um veículo leve, chegamos à nossa compacta nave. De modo profissional, silencioso, num entusiasmo controlado, colocamo-nos em posição nas cápsulas nicho horizontais, respiramos seu ar preparado com minúcia, após o envoltório transparente, resistente e macio ao mesmo tempo, se fechar. Inspirei bem fundo. Ouvimos toda a contagem regressiva pela voz eletrônica, um pouco mecânica mas suave e calma. Não sei quanto aos outros, mas no três fechei os olhos. Ouvimos a fala: dois e um e zero e...
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Capítulo 7 Voragem, vertigem, sensação de ser sugada a partir do umbigo. Um frio estranhíssimo e paralisante começando pelo couro cabeludo e, de repente, tal como ao acordar de anestesias com efeito cerebral, sou içada à consciência aparentemente normal a partir daquele poço úmido, escuro, desconhecido e incomum. É de se supor que os outros possam ter tido as mesmas sensações. Ou não as tiveram? Meus processos conhecidos de pensamento agora retomados de forma gradual fazem-me, em princípio, ter tal curiosidade. Quero indagar a todos e comentar o exotismo da percepção, pois os envoltórios das cápsulas nicho já se recolhem e nos liberam. Levantamo-nos os cinco com expressões de curiosidade semelhantes nos olhos, mas ficamos realmente boquiabertos, confusos e aterrados ao percebermos, pela janela translúcida da nave sede, de nossa base, que ela está ali só, desacoplada, sem o imenso compartimento em forma de túnel. Ou seja, aqui só há parte da Máquina do Tempo! Impossível imaginarmos como acontecera, mas nos ocorre a todos que somente com uma parte da aparelhagem nunca poderemos regressar. Como sumira o compridíssimo túnel? Pois ele fora projetado e construído em território desocupado no presente, numa base militar, e igualmente vazio num passado distante. Até se tomaram todas as providências administrativas, oficiais e políticas para que assim permanecesse num futuro próximo, pois era ali e seria ainda ali o lugar das viagens temporais de ida e volta... E o mais surpreendente é que uma parte fundamental da aparelhagem sumira, mas estamos inteiros e sãos. Como poderia ser isso? Todos ficamos estupefatos. E mais, lá fora surge um deserto amarelado que se estende em todas as direções, até onde nossa 30
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visão abarca e distingue. O solo parece arenoso mas com partículas finas, em tons que vão do amarelo pálido, damasco e âmbar, chegando até o ocre e castor. Há alguns morrinhos, montículos e protuberâncias um pouco maiores, mas quase tudo que se vê é plano. A atmosfera é também amarelada, com névoa leve, como se um sol especial estivesse fixo no poente ou talvez num nascente outonal banhando tudo, mas não se vê um céu definido propriamente. O lugar tem aparência desconcertante. Ou melhor, supomos que seja não outro lugar, mas um tempo anômalo e surreal esse. Nicolai Borowsky assume seu papel no comando e se senta junto ao computador de análises, para sabermos qual a composição do solo e da atmosfera, a umidade do ar, da presença ou não de água, e se há radiações e quais, ou microrganismos e seres superiores, animais ou vegetais nas proximidades, mas para surpresa geral a máquina não responde. Não que pareça avariada; os painéis tridimensionais virtuais não abrem apenas, e as miniteclas manuais de emergência não operam. O módulo de comando de voz parece não reconhecer as ordens de ninguém. Ou talvez, o mais assustador de tudo, é como se o aparelho, um neo-computador de bordo funcionasse normalmente (pois ainda dá indicações internas, até mesmo de nossas aumentadas frequências cardíacas), mas lá fora nada houvesse que ele fosse capaz de detectar e registrar normalmente! Continua a ter Nicolai de manter a cabeça fria e ostentar comportamento compatível com a liderança e comando. Ele o faz e anuncia que sairá para averiguar os arredores. Gregorius e Reese começam a providenciar para ele roupa especial isolante e protetora, depósitos compactos de oxigênio e armas, além de aparelhos de 31
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sinalização e comunicadores os mais sofisticados e pequenos possíveis. Reese quer ir junto, mas Nicolai diz-lhe que não, que fique conosco e já está começando a vestir-se quando algo totalmente absurdo principia a ocorrer. Pela primeira vez naquele lugar silente ouvimos um ruído calmo de areia escorrendo e esta vem do teto de nossa nave abrigo, seguindo até o chão; cai levemente amarelada e fina. Não há avarias no aparelho e muito menos vento qualquer, é o próprio metal revestido do compartimento, aliás de altíssima resistência, que se desfaz delicadamente e se transforma em partículas. Para nosso pavor total e incompreensão absoluta cai sobre a aparelhagem, como se a nave fosse uma grande ampulheta. Um buraco começa a aparecer no teto! E este se alarga tanto que Nicolai e Reese ordenam evacuação do recinto. Não há tempo para vestirmos nada além das roupas protetoras e isolantes (mas não contra tudo) que já usamos, pois do contrário ficaremos soterrados. Nicolai abre a porta, com um clique do comando de pulso e nós cinco precipitamo-nos para fora, para aquele deserto de um amarelo não gritante, antes que a Base se desmanche e se transforme apenas num banco de areia, o que acontece a seguir. E sem a intervenção de qualquer força externa perceptível, o monte que fora antes nossa nave, nossa ligação com o mundo conhecido, se acomoda um pouco no solo, reduz sua altura e todo o seu volume para bem menos do que a metade. Tudo ao redor é um deserto sem fim, e de tal forma absurdo... O que é isso afinal? Cá fora não sinto que respiro, mas devo fazê-lo, pois tudo continua a existir. Nem há frio ou calor nas poucas partes desprotegidas pelo traje, nada queima ou incomoda. Ao pisá-lo, para 32
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mim, o solo parece-se mais com grama ou palha e não com grãos arenosos realmente. Caminhar mostra-se fácil e a visão é espetacular por toda a volta, apesar de amareladamente enevoada. Ando um pouco com firmeza por uns dez metros , e vou seguindo adiante, assim como Gregorius e Nicolai também o fazem, mas Reese e Nadine ficam para trás percebemos, como que presos ao solo. Nicolai diz-nos que retornemos para ajudar os dois companheiros. Não tenho certeza de tê-lo escutado realmente, mas entendemos perfeitamente o que falou; voltamos uns vinte metros até onde estão Reese e Nadine, agora prostrados a uns quatro metros de distância um do outro. Indago a Nadine o que sente e ela retruca daquela maneira que não sei se a ouvi mas entendo-a de forma clara. Diz-me não ter energia nem para ficar de pé mas que não sente desconforto nem dor. Tento erguê-la, enquanto Gregorius e Nicolai se acercam de Reese, mas ela pesa como chumbo e não o consigo. Parece-me que os outros dois companheiros têm a mesma dificuldade com Reese, não são capazes de soerguê-lo. Nadine vai ficando mais quieta e imóvel; sua pele parece tornar-se pálida, quase transparente, cor de areia clara. Ela gradualmente se desfaz defronte a mim, tornando-se parte do cenário, do chão, deixando uma leve marca de contornos femininos no substrato sobre o qual estamos. Olho para o lado, assustada, e noto que o mesmo acontece com Reese; ele desmancha. Nós três restantes, ainda sobreviventes, encaramo-nos muito atarantados. O que vimos seria mais do que o suficiente para nos lançar em profundo desespero, no máximo horror, e se isso não acontece plenamente é porque, de certa forma, o local onde nos encontramos
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parece ter o poder de rebater um tanto nossos estados mentais usuais. Mas ficamos ali parados, olhando as marcas sugeridas dos corpos de Nadine e Reese no chão, sem dizer nada. Acabamos de perder nossa corajosa médica e o valente homem responsável por nossa segurança de uma só vez e num átimo. Mais do que aterrorizante. Nicolai nos incita a continuarmos caminhando, mas para onde iríamos? Tudo é imenso, semelhante, vazio e sem referenciais. Naquele mundo sem norte, a única coisa que se destaca é, muito ao longe e numa das direções apenas, a uma distância que não se pode calcular exatamente (dez, quinze ou vinte quilômetros?) certa mudança na paisagem, que se eleva como a formar altas colinas. Caminhamos para aquele lado até para evitarmos andar em círculos, pois os sinalizadores e sensores de nossos trajes tampouco funcionam aqui. Nem relógios, guias, bússolas, orientadores de rotas ou cronômetros. Andamos durante bastante tempo, por horas e horas parece-me, mas com naturalidade bastante incongruente, porque sem sede, cansaço ou qualquer mal-estar e sem que a luminosidade da paisagem se altere em nada. Noto também que meus pensamentos não estão tumultuados, e sim quase calmos. Não há frio tampouco, vento ou calor, mas tudo parece muito vivo e forte naquele lugar amarelado. O silêncio, por outro lado, é profundíssimo. A esta altura nenhum de nós crê que estejamos na Terra, mas não faz qualquer sentido estarmos noutro planeta. Porém certamente não se trata do nosso mundo habitual. As colinas distantes aproximam-se mas muito lentamente, e chego a pensar que errei o cálculo da posição destas ou talvez tenha 34
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perdido a noção de tempo. Meus companheiros relatam as mesmas impressões, mas continuamos a caminhar; estamos nos sentindo dispostos, sem que uma única gota de suor nos umedeça os rostos. Esse não pode ser nosso mundo... Será que morremos? Chego a perguntar isso a Nicolai. Gregorius se ri de minha afirmação súbita. - Estamos vivos certamente, diz ele, como se falasse diretamente a meu cérebro. Nadine e Reese é que morreram e nós não sabemos por que aconteceu, nem por que nós não perecemos, ou que raio de local é esse, mas ao menos ainda não começamos a ter privações ou necessidades, nem mesmo de ar, principalmente. De qualquer forma aqui certamente não é o mesmo lugar de onde saímos, nem no futuro nem no passado. Não, não é mesmo, penso eu. O que mais me incomoda é que há algo de agradável naquele deserto pavoroso, de forma que não consigo realmente me agastar o quanto deveria com a situação. E continuamos nos deslocando, palmilhando o chão até as colinas. Por quanto tempo o fazemos? Por dez, doze horas ou mais? Difícil dizer. Enquanto ando, minhas lembranças de vida se arrumam ordenadas e calmas em meu cérebro, imagens desfilam. Concomitantemente a isso, a responsabilidade da missão parece querer se afastar na minha mente, ou sair de foco. Preciso evocá-la para sofrer com nosso mais do que evidente fracasso, porém além de não nos caber culpa no ocorrido, nada podemos fazer para repará-lo também. O que faríamos? No entanto o que acontecerá com a nossa amada Terra, agora que certamente já falhamos?
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Capítulo 8 Finalmente, após longo e indefinido período de tempo andando, chegamos nós três à base das colinas que tomam grande extensão da paisagem nua e talvez tenham uns vinte metros de altura. Elas são o único relevo diferenciado da topografia. Começamos a galgar uma encosta, com a mesma disposição e a mesma estranha falta de fome, sede ou vontade de urinar que nos acompanhou na primeira jornada. Subimos juntos e, de repente, começo a ter sensação tênue de agradável brisa na face, algo muito sui generis naquele local onde nem sequer nos damos conta do ato de respirar. Mas a brisa aumenta, envolvente, começo a sorrir até perceber que Nicolai e Gregorius também desenham nos rostos feições leves e descontraídas. Estamos quase no topo da duna. Subimos mais e mais, até o final, e nos quedamos estáticos e boquiabertos. Lá embaixo, do outro lado, uma das mais desconcertantes, fascinantes e fantásticas paisagens se mostra. Que lugar será esse? Acolá desenha-se um grande vale verde com vegetação rasteira ou baixa, que desce uns duzentos metros em belo, acentuado declive, e se estende por muito além. Isso é dissonante demais, absurdo! Uma extensa e alta duna de areia formada num deserto amarelado sem abóboda celeste, cujo piso não afunda, torna-se de repente um local com solo conhecido, formado sobre algo mais sólido ainda, com plantas rasteiras cobrindo o chão... O céu aqui é de um azul belíssimo sem nuvens, parecendo até ser de tinta. Um sol ameno mas aceso surge, como numa tarde que já passou da metade. 36
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Lembra-nos algo que quase nunca vimos realmente, mas que cremos que existira antes na Terra. Bem mais abaixo e adiante, um rio longo mas estreito, um riacho na verdade, passa cheio de curvas acolhido pela relva, porém sem qualquer vegetação alta ou de médio porte nas margens. Depois do rio, a uns trezentos metros, uma faixa larga de árvores não muito altas aparece como verdadeira mata ou grande bosque. Não há ruídos, nem pássaros, nem insetos; ou antes, notamos eventuais movimentos muito rápidos no ar, que se assemelham ao de seres vivos voando ao redor de nós (insetos, pequenas aves?), mas não se consegue distinguir nenhum com os olhos; porém há presenças aqui e não parecem agressivas mas sim um pouco perturbadoras, porém não quebram totalmente a calma do lugar. Juntos damos uns passos para trás, e o deserto amarelado e enevoado volta a existir; tornamos a subir a duna e vemos o vale verdejante de novo. Se olhamos o céu daquela parte, ele se mostra azul de todos os lados. É como atravessarmos um portal fixo geograficamente, e de forma técnica e metódica conquanto um pouco tola, resolvo marcar o local exato onde o portal estaria; faço-o com parte da manga do meu traje, deixando-o no chão, preso em parte sob o solo. Sentamo-nos os três ao mesmo tempo depois, não porque estejamos cansados mesmo tendo a impressão de que estamos caminhando há mais de um dia, mas mais para saborearmos a visão, para olharmos encantados e para deixarmos a falta de nexo da situação se acomodar um pouco em nossas mentes. Conversamos baixinho e há consenso sobre o que os três enxergamos. Adiante também é diferente de tudo o que já vimos. O oposto do mundo de onde viemos, de sua urbanidade agitadíssima, de seus 37
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barulhos, luzes, construções e artificialidades, de seu clima instabilíssimo, agressivo, de seus desastres e guerras, da falta de lugares vazios e da natureza arrasada, precária. Aqui parece o Éden, o paraíso primitivo do inconsciente humano (como tal lugar pode mesmo existir?), mas não nos esqueçamos de que Reese e Nadine pereceram prontamente. Não podemos nos fiar nas aparências. E no entanto não contamos com dispositivos que nos possam auxiliar em nada, além de nossas próprias limitadas percepções. - Nós estamos mortos , é o que acho, e por mais estranho que isso seja, parece que a vida continua mesmo depois da morte. Disse eu. Nicolai titubeia e assente dizendo que o que vemos nós três não combina com coisa alguma que nossos intelectos possam conceber. É neste momento um biólogo, e um culto cientista, com seu inútil saber, pois o mesmo pouco lhe serve agora. Este, aliás, é o caso de cada um de nós. - Não parece que nos deslocamos no tempo, ele falou, pelo menos para épocas que possamos distinguir ou identificar. Tampouco é concebível que tenhamos nos movido no espaço. Por mais que nos pareça absurdo, temos de imaginar que podemos mesmo ter até morrido. - Digamos que isso tenha ocorrido sim, Angeline, diz Gregorius com seu senso prático de técnico em maquinaria e minúcias, o que poderemos nós fazer? Precisamos tomar a realidade como a vemos. Cá estamos num mundo diverso aparentemente, e só poderemos explorá-lo para conhecer suas regras básicas operacionais; isso é necessário. Aliás, se morremos, porque ainda estamos caminhando, embora com facilidade? Acho que deveríamos voar, diz ironicamente. 38
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Rimos alto os três, dado ao agradável absurdo que nos cerca. Não ouvimos realmente o som de nossas risadas; assim mesmo elas parecem ecoar muito altas sobre o vale. Após certo tempo sentados, resolvemos descer para o campo verde. A descida é em franco, muito acentuado desnível, mas esta paisagem, por razões evidentes ligadas à nossa natureza humana, nos atrai bem mais do que o deserto amarelado. ***** Vamos andando com ligeireza e facilidade, pisando as gramíneas e outras plantas rasteiras, algumas floridas, com cachos delicados de cores intensas. Nicolai para a examiná-las por várias vezes, e começa a coletar material, mas não tem muito onde colocálo, vai recheando a vestimenta com ele (desconfio de que ele não acredite que estejamos mesmo mortos, afinal). Caminhamos em silêncio compenetrado novamente, chegamos a um ponto baixo onde o riacho corre em trajetos ondulantes. Tem uns oito metros apenas de largura e suas margens são planas, regulares, mas curvando-se sempre, aqui e ali, cobertas pela vegetação rasteira, macia ao pisar. Ao mesmo tempo que o rio parece bem natural, há uma artificialidade nele, como se tivesse sido construído e decorado em cada metro por algum paisagista ou arquiteto. Paramos ao pé do referido riacho, na margem que também é sem árvores; Gregorius declara que entrará na água e começa a se despir. Nicolai faz um gesto para detê-lo: - Não sabemos se a água é boa, apesar de ser tão transparente! 39
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- Não sabemos nem vamos saber, retruco. Perdemos nossa aparelhagem, estamos sem nenhuma tecnologia de análises. Ficamos nas mãos do desconhecido, portanto. Digo-o e começo a me despir também, porém me detenho. Mas você ainda é nosso líder, continuo. Precisa nos autorizar a entrar. - Angeline, responde Nicolai sorrindo, ou você crê que estamos mortos ou não. Se estivermos, já não há superiores nem subalternos. Entrem se quiserem, continua ele, ou melhor, entremos todos; eu vou primeiro. Aguardem-me um pouco, observem-me antes. Nicolai se despe e as plantas armazenadas caem-lhe do interior do uniforme. Claro que foi imprudente da parte dele transportá-las assim em contato com a pele. Mas ele tem razão em sua observação a mim dirigida. Ora creio que estamos mortos e a seguir, nem sei mais no que acredito. Eu e Gregorius estamos nus, mas também Nicolai se despira. Reparo que suas peles parecem muito viçosas e saudáveis. Nunca fiz atenção a isso. Nicolai mostra-se mais jovem e atlético do que seus quarenta e um anos, e Gregorius mais alto e mais forte do que antes. Seus sexos salientam-se bonitos com pelos brilhantes, atraentes. Deveria sentir-me inibida, mas não me sinto assim, embora a curiosidade maior seja mesmo sobre a água do riacho. E eu própria, ao me olhar, percebo-me irradiando vitalidade. Noto que algumas cicatrizes pequenas que possuía no braço direito parecem ter sumido. A pele adquirira especial maciez sinto, percorrendo o braço esquerdo com a mão direita. Nicolai entra no curso d`água e ali permanece um pouco de tempo deitado, pois o riacho é raso e terá apenas uns oitenta centímetros de profundidade. Esperamos um tanto e entramos a seguir. A sensação que me toma é estranha, para dizer o mínimo. É 40
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como se a água não fosse totalmente molhada de fato. É fresca, mas mais como vento ou névoa delicada; faz pequenos comichões e estímulos na pele, cócegas leves muito agradáveis. Parece viva, curiosa sobre nós; tem uma densidade que nos rodeia e sustenta, afagando e trazendo movimentos. Estamos agora deitados os três, sem qualquer preocupação sobre nossas nudezes. Nem sequer pensamos um a respeito dos outros creio; ao menos eu não penso. Ensimesmados, distraídos, absortos estamos e perco a noção do “tempo” (mas que ironia cogitar sobre ele!). Parece que esta água inusual, por outro lado, com uma textura lenitiva e volátil, vai me limpando de inúmeros sentimentos dolorosos ou negativos, após fazê-los desfilarem em minha mente, desde a terrível perda de minha mãe, depois a do meu pai, até o desagrado pelo clima instável da Terra, pelo frio ou calor insuportáveis e pelos ruídos das cidades, o ressentimento que sempre tive a respeito dos parentes hipócritas, a culpa por ter pouco contato com Zoe e por nunca ter-me envolvido mais seriamente com Yohansen entre tantas coisas, mas quando começo a pensar na missão, na Terra mesmo, na humanidade moribunda e percebo que a estranha água pode lavar até esta preocupação, saio dela apressadamente. Nicolai já estava fora agora vejo. Gregorius também pula para a margem. Estamos nos sentindo bem, lavados, mas nada molhados ou muito pouco, e assim vestimos as roupas. Nicolai insiste em carregar as plantas ainda. De pé, conversamos sobre nossas sensações. Todos nós tivemos lembranças de nossas vidas, com tranquilização de antigas angústias. Neste momento começamos a falar de nós nesmos como jamais o fizemos; acabo por saber que Nicolai perdera a esposa e o único filho aos dez anos, num ataque terrorista com armas químicas e eletromagnéticas, ainda na Rússia, sete anos antes de entrar no 41
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projeto. Isso o tornara introvertido, totalmente dedicado às pesquisas, ao trabalho. Um homem triste que não tinha mais ninguém no mundo. Mas agora estava tudo diferente para nós três. Gregorius não falou de muitas coisas paradoxalmente, porém narrou parte de sua infância na reconstruída New Orleans e agora canta-nos uma música que compusera em rapaz. Era semelhante a um tipo muito antigo de blues, e belíssimo. Sobre os sons, devo dizer que a impressão permanece a mesma. Não sei se ouvir, aqui, trata-se apenas de perceber as ondas, as emissões sonoras em si ou se todas as palavras ecoam diretamente em nossos cérebros. De qualquer forma, a canção que Gregorius interpretou pareceu encher a tarde, pois ainda é uma luminosa tarde desde que adentramos o vale, não sei mais exatamente há quanto tempo, contudo calculo que seria o equivalente a quase dois dias. De repente um barulho agudo nos causa imenso arrepio. E esse é mesmo um ruído bem claro e parece que o ouvimos com nossos corpos inteiros. Faz assim: “Ziiiiiiiii e Rommm, ou Hommm”! Fino e alto é o som, depois de forma tronitruante. Ficamos os três arrepiados sem dúvida, sentindo-nos bem frágeis sem nossas armas ou dispositivos de defesa e proteção, naquele local desconcertante, amedrontador, apesar de atraente também. Nicolai ordena a coisa mais sensata a se fazer: que corramos para a larga faixa de bosque ou floresta que fica mais à nossa frente. A tática é ocultarmo-nos de predadores, ainda que desconhecidos, invisíveis e misteriosos.
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Capítulo 9 Com muita rapidez e leveza, impensáveis em condições normais para pessoas que caminharam como nós, sem comida ou água e sem dormir, adentramos a faixa do bosque ou mata e procuramos nos afundar ali, à cata de refúgio. Outro local especial neste mundo extraordinário no qual estamos. O bosque por fora não se mostra como realmente é internamente. Tem árvores de médio porte quase sempre, mas uma ou outra é bem alta e copada; tanto caules quanto folhas são muito incomuns em qualquer delas. Algumas pequenas áreas da mata são bastante fechadas, mas a maior parte das árvores não se aglomera, de forma que podemos caminhar bem entre as plantas. Há umas que sobem helicoidais, outras têm troncos brancos, bojudos como potes, e nus, que terminam depois de quatro metros de altura; lá de cima soltam folhas que caem como toalhas rendadas verdes claras, até o chão. Algumas das árvores parecem apenas musgos enormes, ramificados, tenros e verde-escuros brilhantes, outras são como frutos que amadureceram, e outras ainda lembram-nos pinheiros, ciprestes ou palmeiras de folhas vermelhas. Há uma imensidão de trepadeiras com flores muito belas e diferentes de tudo o que já vimos, com tons amarelados ou laranja, também azuis, semelhantes a cortinados sobre as árvores. Uma salada botânica que desconcerta muito Nicolai. - Bosque inclassificável! Vai ele dizendo, resmungando sozinho. Fala sobre os caules, raízes e folhas e diz que ali só há incongruências vegetais. Rimos Gregorius e eu, apesar de a perda de nossos companheiros estar em nossas memórias. 43
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Ficará difícil aprender-se tudo de uma só vez o que Nicolai nos quer mostrar, apontando aqui, acolá, parecendo não ver sentido botânico ou funcional definido nessas plantas. Mas pouco sabemos dos perigos daqui, que é o que mais interessa no final das contas. O local é umbroso observa-se, por causa de coberturas das epífitas, porém surgem clareiras esparsas com pontos luminosos. Pequenas poças d´água, muito brilhantes, aparecem também de quando em vez, como se tivesse chovido. O resto é silêncio e imobilidade. Não há insetos, nem aves, nem vemos animais, o que é também incongruente. Impossibilitados de definirmos qualquer direção ou pontos cardeais, corremos o risco, talvez, de nos perder no bosque. Isso é verdade e Nicolai o comenta ao mesmo tempo em que procura algum galho no chão, para marcar as árvores. Eu, por minha vez, penso que não podemos estar mais perdidos do que já estamos neste lugar, desde que chegamos aliás, e que cá há tanto sossego e bemestar que começaria a desejar, com todas as forças, deixar para trás minha vida inteira e ficar apenas neste mundo aparentemente sem necessidades básicas, não fosse ainda a noção da missão primeva para a qual fomos enviados: o projeto Nuova Terrae. Meus pensamentos de abandono, dissidência e traição, muito naturais nas circunstâncias mas condenáveis assim mesmo, enchem- me de culpa e constrangimento. Baixo os olhos envergonhados para o chão coberto de musgo rasteiro, folhas e flores, quando subitamente notamos movimento a uns quarenta metros de nós, entre as árvores. Não se distingue bem o que seja, mas parece vir de criaturas que grunhem baixinho e gemem. Gregorius sugere em nossos cérebros que nos dividamos para, sem ruído, acercar os seres por lados diversos, sem sermos notados. Nicolai aceita a sugestão e 44
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dá instruções complementares. Armamo-nos de ridículos pedaços de caules caídos, os mais grossos que pudemos encontrar e com o menor barulho possível, os mais lentos movimentos que conseguimos fazer, nos aproximamos da(s) criatura(s), cada qual vindo de uma direção e com cautela máxima, mas ao perceber melhor a inacreditável cena, que antes parecia ser de grave agressão mas não o é na verdade, deixo cair o pedaço de madeira que trago e sento-me. Ou melhor, caio ao solo sentada é certo, bastante estupefata. Trata-se, se é que meus olhos veem corretamente e que ainda não estou louca, de dois seres engalfinhados, abraçados, ou melhor... em cópula. Vejo uma bela mulher, cujos cabelos louros e grossos, cheios de reflexos de luz e mel, caem longuíssimos em ondas grandes como um mar sufocante, praticamente até o chão. Seu corpo se curva para trás, quase na horizontal, e depois para frente e é sustentado e rodeado pelas costas por patas de uma estranha espécie de animal ou monstro bípede, cuja parte traseira, de pele quase clara, lembra a dos cavalos, com nádegas e coxas poderosas; os joelhos, noto, flexionam para adiante e não são como os nossos, mas os pés mostram-se quase humanos, embora enormes. O ser tem costas corpulentas, cheias de grandes manchas ou áreas marrons na pele alva. O dorso, este é quase quadrado. Os braços, que sustentam a moça, são muito glabros e mais claros ainda, lembrando-me fortes patas de anfíbios. O crânio é grande e calvo, mas a face não lhe vejo. As pernas da mulher rodeiam o torso do animal o qual tem um rabo nu, avermelhado, flexível que se enrodilha nos tornozelos da jovem, apoiando-os. O ato sexual é franco. De onde estou, noto que o animal quase não tem escroto, ou esse é discretíssimo, rudimentar, mas o pênis nada tem de reduzido, e seu movimento incomum de retrair e arremeter me fascina, mas não tanto quanto empolga a maravilhosa mulher que geme de encher a mata. 45
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Fazemos algum barulho involuntário, tão grande o assombro que tanto nos abala e choca, de modo que as criaturas, moça e besta, notam nossa presença. O monstro interrompe o ato com um guincho muito irritado e sempre segurando e carregando a jovem nua que se agarra a ele, foge em disparada louca pela mata. Quando corre, passando por Nicolai e quase o derrubando, percebo que seus pés apresentam almofadas carpais e plantares grossas, semelhantes às dos felinos. Gregorius nos acena com frenesi e começa a correr muito rapidamente atrás dele, enquanto Nicolai e eu também o seguimos, não para caçá-lo absolutamente, o que seria impossível, mas porque nenhuma outra coisa nos ocorreria depois do que presenciamos. Percebo, porém, que meu colega técnico em aparelhagens apresenta suas próprias exuberâncias visíveis. Está sexualmente excitado, e eu, por mais absurdo que isso possa ser, também me sinto estimulada. ***** Mesmo conseguindo nos deslocar com rapidez, a do monstro é maior e o perdemos de vista quase de imediato, embora saibamos a direção que tomou e continuemos neste rumo. Sabemo-lo pelo silvo estranho que ouvimos antes: “Ziiiiiii, Ommmm”. Este reverbera numa parte da floresta e é para lá que vamos em sua perseguição, talvez porque nós, seres sociais vindos de um lugar hipercongestionado não consigamos entender nem aceitar um mundo tão sereno e quase vazio... Em passo muito rápido, correndo mesmo, seguimos em fila indiana o monstro, e o fizemos por mais de duas horas talvez. O bosque seria maior do que se pensava ou o animal dava voltas, mas acabamos por sair repentinamente do maciço de árvores. Sem sabermos bem como ou onde, emergimos da mata para outro lugar 46
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excepcional naquele mundo incomum, mas o estranho animal desaparecera por completo com a mulher. À nossa frente, agora, há uma paisagem salpicada de várias pequenas colinas verdes, sempre gêmeas duas a duas, com formas variadas e, numa elevação plana e bastante extensa, surge plataforma de cristal que parece ser de quartzo liso e transparente como gelo, talvez de uns cinco mil metros quadrados, cujos reflexos tornam-se furta-cores esporadicamente àquela luz sempre fixa. Meu vestido à moda Sumatra pareceria discreto ali, mas combinaria com o local, que é esplêndido. Ao nos aproximarmos, notamos que há sobre a plataforma, aqui e ali, estátuas também de cristal translúcido, em tamanho natural representando muito estranhos seres, masculinos e femininos, sempre com os sexos exuberantes e às vezes atípicos, em número de vinte esculturas. O local a princípio mostra-se nu e muito limpo, reluzente. Andando sobre a superfície no entanto, percebemos nichos, depressões, e algumas elevações como se fossem mesas colocadas simetricamente. As depressões, adequadas ao tamanho de um corpo ou maiores, algumas cheias de água, parecem convidativas e acabo por deitar-me numa delas, que está vazia, sem líquido. Talvez esteja eu cansada e não o saiba, mas a sensação que vem a seguir é inusitada. É como se a textura do cristal ou suas ranhuras se estendessem, começando a me envolver, formando uma espécie de teia clara mas que, paradoxalmente, causa penumbra, cancela o campo de visão e dá sonolência ou entorpecimento. Não, isso não é exatamente um dormir, é um vagar de espírito, um bailado de formas e de impressões, uma expressão de movimentos ou ondas suaves. E de música afinada, com acordes longos. Estarei me desfazendo no cristal, pergunto-me? O elemento 47
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me estará absorvendo como a areia absorvera a Nadine e Reese? Onde estarão Gregorius e Nicolai, por outro lado? Não consigo distingui-los mais. Nem sequer vejo nada ao redor, envolta numa mistura de modorra e luz baça, de histórias, de vozes calmas, cantarolantes, de alegria e leveza sem fim. É assim que se dorme no paraíso? Chego a me perguntar então. Não sei qual a duração deste meu estado. Horas, minutos, semanas? Só sei que, em dado momento, resolvi levantar-me da escavação e bastou isso, esta resolução, para que as fibras de luz fraca se afastassem de mim.
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Capítulo 10 Saí do leito de cristal. Saltei do casulo, que se abriu, e encontrei rigorosamente a mesma paisagem anterior lá fora, verde ao redor, os suaves e atípicos morros gêmeos, vastidão, com a plataforma e suas estátuas, a mesma luz fixa se mostra, talvez um pouco mais dourada apenas. Ansiosa, começo a chamar pelos meus companheiros de viagem e creio mesmo que devam estar ocultos em alguma das depressões da estrutura de cristal. Resolvo verificar o local todo, passo a passo, quando percebo movimento atrás de uma das estátuas. Aproximome acreditando ser um dos meus amigos quando, ao contrário, vejo que não se trata de nenhum deles. De chofre, surge um homem bem alto e quase magro, mas de proporções saudáveis, envolto numa espécie de roupa de fibra que mais parece exótico capim flexível tecido delicadamente, com tons prateados. Ele é claro de pele, tem cabelos escuros muito brilhantes, encaracolados, até os ombros. O rosto é forte, intrigante. Parece-me bem humano, mas a vestimenta é tão longa, com mangas bastante largas, que nem tenho certeza se esta não ocultará alguma aberração... - Angeline, seja bem-vinda ao nosso mundo! - O que quer dizer isso? Como me conhece? Que lugar é esse? Onde fica? Pergunto, agitada. - Fica na Terra, onde mais? No nosso planeta. - Mas não pode ser! Aqui não é passado, nem o futuro em relação ao meu tempo, nem é o espaço exterior, retruco.
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- É a Terra, já lhe falei, mas é o nosso mundo, ou melhor, aqui, nesta parte, um mundo que criamos especialmente para vocês, dentro de nossa dimensão, a partir do deserto amarelado em nosso espaço flexível. Somos seres especiais, diferentes, e temos certos poderes, ele continua a dizer. Nosso lugar está na curvatura do espaço tempo, quando ele passa pelo planeta. Aqui estamos desde há muito mais eras do que sua espécie. Quando partirem, ainda cá estaremos. Somos muito antigos. Suas equações ainda nem nos descobriram, como sabe. Apenas alguns místicos nos veem. Mas a maioria da raça humana sabe de nós simbolicamente. Somos os anjos e demônios do imaginário humano (ele dá especial ênfase na palavra “imaginário”), desde a antiguidade de vocês. Já ouviu falar disso, é claro. Anjos e demônios, penso eu... O paraíso tão buscado pelos homens? Seria isso? - Ele sorriu. Alguns, por outro lado, no seu plano, pensam que somos “almas de gente que morreu”, exclama salientando a frase e aí ele mesmo se ri disso. Provavelmente nunca nos descobrirão cientificamente com a lamentável atual agonia de sua dimensão. Não haverá tempo para vocês! -Ah! e não somos orgânicos de fato. Aí ele riu mais ainda, de modo profundo e estranho. - O que quer dizer com “não são orgânicos”!? E nós nos perdemos nesta região? pergunto-lhe. Como? As perguntas me sufocam e engasgam. - Sim e não, responde ele a uma das questões. Ele se mexe de modo um tanto rígido, esquisito também. Quanto a não sermos feitos de derivados de carbono, saiba que a vida orgânica não é a 50
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única forma de consciência que existe. Há coisas muito sofisticadas no universo. A prova disso é que estamos quase frente a frente. E vocês não se perderam aqui, foram “pescados”. Nós os sequestramos. - Sequestraram-nos? Mas por quê? - Porque era possível fazê-lo naquele momento, e quase só naquele momento, frisa ele. Tínhamos capacidade para tal quando se tornaram disponíveis, passando por nosso espaço. Ficamos situados na curvatura ele repete malicioso; aqui estamos. Nós, por outro lado, precisamos muito da sua humana energia. Vocês são seres de consciência relativamente desenvolvida e... móveis. Nós, a partir de certa energia acumulada, podemos passear pela dimensão de vocês, com nossos corpos de sonho. Mas arrastá-los para cá é outra coisa; muito raramente o podemos. - Vocês se movem por nossa energia? Mas já não são móveis? Perguntei-lhe, surpresa. Aí ele sorriu apenas, sem me responder. Percebendo que o humanoide nada mais me esclareceria de momento sobre este tópico, indaguei-lhe a respeito de Nadine e Reese, ansiosa por saber o que houvera com eles, desejosa de vê-los novamente. - Pereceram, como sabe. Eles não tinham estruturas suficientemente compactas para suportar a pressão do nosso mundo, que é intensa. Seria, humm...como uma lei da física para vocês, disse-me ele; tal como a gravidade em sua dimensão, ou como a energia cinética. Foi pena. Eram belas criaturas. - E por que não possuíam estrutura para tal? Indago, quase gritando, muito intrigada com a afirmação, quase revoltada. 51
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- Porque eles tinham filhos, responde-me o ser de aparência masculina. A mulher tinha uma filha bem jovem e o homem tinha dois filhos. Isso lhes tirou muito as energias. Eles não conseguiriam se mover neste lugar que só comporta seres que nunca doaram consciência. Assim, infelizmente, foram eles absorvidos pela areia do nosso mundo que tudo filtra, cria, assimila e transmuta. Nada poderíamos nem nada pudemos fazer para salvá-los. - Mas também Nicolai teve um filho, retruquei, feliz por sabê-lo viva, mas intrigada. - Nicolai já teve um filho é verdade, continua o interlocutor, mas este morreu há anos e ele voltou a recuperar suas forças. Você e Gregorius nunca se reproduziram. Então só vocês três, na verdade, são compatíveis com a formatação desta dimensão. - Fomos bem sucedidos em trazê-los cá, ele continuou, para nossa própria sorte. Conseguirmos mesmo alguns poucos de vocês é tão necessário para nós, quanto difícil. Vocês são quase nossa única fonte de energia. Mas não se alarme, não são vítimas no sentido real do termo. - Ainda verão que aqui pode ser seu paraíso, seu melhor abrigo (essa afirmação me pareceu muito crível e convincente pelo que já observara e sentira). Será uma simbiose cósmica. Uma comunidade intermundos. -Aliás, foi a partir da existência exatamente deste nosso mundo que vocês passaram a conceber a ideia de “céu”, com certeza. Ou dos diferentes céus. Mas vocês se enganaram e muito, criando mitos, sonhos. - O fato é que aqui só se pode permanecer se vivo, consciente. Ele fez um rápido, profundo silêncio. Depois que os humanos morrem 52
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é outra história, que não imagino qual coisa possa ser. Aliás, não sei se os espera, ou se nos espera qualquer outro lugar após a morte, acrescenta ele, não creio nisso mas não sei; porém aqui, conosco, há vida quase eterna. Aí riu alto novamente e de modo inusual. Despediu-se dizendo que nos veríamos bastante, pois ele era meu guia, parceiro e orientador ali. Nomes demasiados, achei. Quis detê-lo e indaguei sobre meus outros companheiros. Ele respondeu que estavam nas depressões, que me seria fácil encontrálos, e saiu correndo em velocidade extraordinária. No ar todo, reverberava o som de sempre: “Ziiiii Onnn”, ou algo que o valha.
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Capítulo 11 Andei pela plataforma e encontrei Nicolai Borowsky saindo de um dos casulos, numa das depressões de cristal. Tinha ele um sorriso satisfeitíssimo e muito especial no rosto. Disse-me que encontrara sua casa, a paz pela qual ansiava há tanto tempo, e que não precisaríamos nunca mais sair de lá. Como? falei-lhe exasperada. Abandonaremos tudo? Ele se calou à minha pergunta. Você é nosso líder, nosso capitão, salientei. Contei-lhe, então, sobre o ser humanoide que me abordara, e o que descobrira a respeito de Nadine e Reese. Também narrei-lhe a primeira regra que acabara de conhecer sobre aquele mundo. Ele ficou calado ainda mas empalideceu. Falei-lhe sobre esses tais seres inorgânicos que pareciam muito reais e palpáveis, mesmo que se assemelhassem a monstros vez por outra, mas... inorgânicos mesmo? Isso não queria dizer que seriam “etéreos”? Nicolai continuou pensativo, mas não conseguia disfarçar que estava bem, em calma interior. Depois acrescentou: - É muito esquisito para nossa mente racional isso tudo, mas talvez essa não seja sua verdadeira forma. Desses seres, quero dizer. Precisamos saber de que coisa são feitos, na verdade. Entre outros aspectos, o que me parece mais do que certo é que falhamos em nossa missão e que talvez não consigamos mesmo sair daqui, mas encontráramos o abrigo que qualquer um desejaria encontrar. Como não crer nele? Como dele não usufruir? E, no entanto, como ficará toda a humanidade? Nós que éramos contra privilégios e contra grupos elitistas, agora fazemos parte de um. Mas, 54
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considerando-se a factualidade deste lugar e a impossibilidade de nos retirarmos daqui, de fugirmos, sendo prisioneiros involuntários da boa sorte e do bem-estar, poderíamos ser esnobes, tão rebeldes, soberbos e mal-agradecidos ao surpreendente destino que se acercou de nós? Como isso, renegar os imutáveis fatos, ademais, nos ajudaria ou à raça humana? E este pensamento de fato tão lógico, e até por isso mesmo, mais uma vez me humilha e faz-me sentir muito culpada. ***** Saímos agora, Nicolai e eu, caminhando pela plataforma, procurando por Gregorius. Acabamos encontrando-o numa depressão rasa, em desconcertantemente situação de intimidade física com uma espécie de fêmea, também com aspecto humano ou de primata ao menos, de constituição robusta e alta, estranhamente prognata, com quatro mamas cheias, arredondadas e de pele escura, lisa e viçosa nas pernas, braços e peito, mas coberta com penugem clara com aparência de fios sintéticos e não de pelos propriamente ditos, nas costas, nádegas e na cabeça. A curiosidade imperiosa me fez aproximar mais ainda. Vi, fascinada, pela posição que ambos adotavam, que o sexo da “mulher”, este totalmente sem pelos, era mais como uma grande e polpuda flor arroxeada e violácea, de tentáculos ágeis e carnosos que se enroscavam no pênis de Gregorius, massageando-o ritmadamente, provavelmente causando -lhe sensações eróticas adicionais. Não sei quanto tempo demorou a cópula. Nicolai se afastou, um tanto por discrição. Eu não, mas não ligaram a mínima para minha presença. Quando a ato sexual acabou, Gregorius estava algo entorpecido, incapaz de se levantar. O ser feminino foi quem se ergueu e me olhou profundamente. Tinha olhos amarelados e doces 55
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com pupilas verticais, um nariz bem feito e muito humano no rosto liso. Os traços da face não eram raivosos mas sim de um prazer estranho, de uma energia muito, mas muito além da animal. E tive mesmo a impressão de que aquela era apenas uma de suas formas, quase vi outra coisa, sim, ia ver... mas a impressão se desfez subitamente. É um formato muito convincente, muito palpável o que adota, mas creio que não seja mesmo o real. E assim, apesar da apreensão e curiosidade que sentia ao olhá-lo (a), não deixava de me indagar sobre sua verdadeira conformação. Mas o momento passou. Ouvimos o silvo costumeiro e o bicho bípede sumiu em disparada para o alto. Ou seja, desta vez, voou de fato. Nicolai corroborou o voo. Acercamo-nos de Gregorius, que se apoiou em mim para levantar-se, aproveitou e passou a mão em meus seios. Repreendi-o, mas não com veemência. No entanto estava mais do que claro para nós que, mesmo numa situação de sexualidade florescente, de moral flexível, de declarada concupiscência não poderíamos ter sexo descuidado, nem mesmo controlado entre nós. Isto é, qualquer um dos dois ou ambos comigo, quero dizer. Sexo heterossexual leva à reprodução para nós humanos, e a reprodução é fatal aqui, neste lugar; fatal para os progenitores. Disso já ficamos sabendo. O ser masculino que me aparecera, assim sentenciara ao menos. De outra coisa temos mais do que certeza, nem conseguiremos negá-lo: aqui é mesmo o sonhado paraíso na Terra. Os olhos só veem belezas, sempre com aparências sólidas e naturais, há calma e segurança, os corpos não têm necessidades ou desconforto; mostram-se cheios de bem-estar, bonitos. Nossas mentes claras e tranquilas, ao menos quando não impregnadas por um erotismo 56
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pulsante ou em rajadas, que some e vem com certas presenças. Sensação essa quase vil eu diria, mas nossas psiques, isso é fato, não se prendem a tristezas passadas. O que mais se poderia querer da existência? Lembranças e memórias estavam intactas, por outro lado. Algumas angustiantes, parecem-me muito vivas mas sem dor alguma. Numa situação desta na qual nos encontramos à nossa revelia, neste local onde, além do mais, estamos presos não por nossa decisão direta, deveríamos alimentar culpas inúteis e inócuas? Se bem que, no fundo eu ainda as alimente. Mas seria inteligente desprezarmos um presente milhões de vezes mais valioso do que um homem ou mulher qualquer poderiam desejar ou imaginar? Se noutra dimensão, longe de nós, parte da Terra agoniza, é apenas uma parcela do planeta mesmo, agora vemos. Muito trágico! Mas quanto à humanidade, não caváramos nós próprios nossas sepulturas, desde há tanto tempo? Estamos colhendo o que foi semeado. Isto é, eles estão. Nós outros, não sei por que, caíramos num Valhala.
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Capítulo 12 O exótico ser humanoide que me apareceu na plataforma de cristal tornou-se afinal tão familiar para mim que passou a ser quase parte de mim mesma, como um parente de sangue, ou melhor, de energia, o que foi também incestuoso, no decorrer do caso. Ele tornou a aparecer amiúde; de início com aquela roupagem longa em estilo natural com o mesmo aspecto de fibras vegetais, depois sem ela, e vi que seu corpo em geral era bem semelhante ao de nossa espécie, e totalmente glabro, exceto pelos braços e pernas que eram um tanto diferentes, bastante musculosos mas magros, muito similares aos dos batráquios, também pela pele que parecia um pouco esquisita embora quente, e pelos pés felinos que não combinavam com o restante. As mãos possuíam seis dedos grossos, mas ágeis ao mesmo tempo, que quando espalmados pareciam dois leques presos numa base sólida, forte e quadrangular . A genitália apresentava escroto compacto, firme, mas reduzido, como dois duros e pequenos pêssegos grudados. O pênis, que era semimóvel e retrátil, em várias circunstâncias alcançava tamanho bem considerável quando copulávamos. Porque copulamos, disso estejam certos. Porém, de início, queria muito saber sobre a mulher do bosque, a da vasta e bela cabeleira. Também queria detalhes daquele mundo, ao mesmo tempo tão real e improvável, colocado numa esquina do universo, numa dobra, na curvatura oculta de todos os tempos, no mais absurdo mistério. Estava eu numa das banheiras de água da plataforma de cristal, quando ele, que costumava surgir e passear comigo, apareceu. 58
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Respondia às minhas perguntas quase sempre. Indaguei sobre a loura e ele, a quem ainda não chamava de nome algum, disse: - Faz talvez uns setecentos dos seus “anos”. Ela, era camponesa e tecelã, num lugar onde diziam ser Europa; Alemanha chamavam aquela parte, aquele país. E seu nome é Alessa. Era mulher simples mas especial na verdade, repetiu ele. Ela adquiriu tantos poderes ao olhar as estrelas, o fogo, ao tomar bebidas à base de mandrágora e de outras plantas do seu mundo, que podia ver a intenção das pessoas só de lhes ouvir as vozes. - Gostava de animais, especialmente dos noturnos, de mariposas, corujas, gatos. Assim acabaram por dizer que se tornara bruxa, o que de fato era verdade, pois sabia curar os seres vivos, descobria objetos desaparecidos e crianças que se perdiam nas charnecas. - Um dia chegou à aldeia um homem paramentado ricamente, mas embora se destacasse de todos os habitantes locais pela roupagem e modos, vestia-se ao mesmo tempo de maneira sóbria, austera. Era aquilo que chamavam de um “inquisidor”. Alessa foi presa, arrastada, trancafiada numa gaiola e levada a julgamento. Foi torturada também. - Picaram-lhe o corpo com agulhas e estiletes procurando a “marca do diabo”, mas nós que já a conhecíamos tão bem, que muito a ensináramos sobre adivinhações, sonhos e curas, nenhuma marca lhe deixáramos no corpo e não somos demônios tampouco. Somos o que somos: seres inorgânicos da dobra do espaço/tempo; mas você já sabe disso. - Fazia cinco dias que era submetida a interrogatórios, com muito sofrimento quando, em total agonia e desespero, usando o 59
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máximo de seu poder e tudo o que ensináramos a ela, chamou-nos, aquietando os pensamentos e se colocou em posição energética de ser tirada de lá. Fê-lo de modo intuitivo, espontâneo e perfeito. Calou a mente e nós a trouxemos. Tornou-se outra pessoa, noutro tempo. Três de nós a tiramos dali, transportando-a diretamente para cá. - Para Zion? indaguei. Ele riu por causa do nome que eu dera ao seu nível, a seu mundo. - Sim, para o nosso plano de existência, para cá. Fez um gesto amplo, bonito, largo, mostrando todo o redor. Ela se curou, pois aqui a cura é certa. Depois se amalgamou a um de nós, com quem vocês já a viram. Amalgamou, quer dizer “fez par”, explicou, como se eu fosse uma criança tola aprendendo as mais básicas lições sobre o mundo e ele fosse, de fato, o mestre. - Um tem a energia do outro agora. E a energia humana, a de vocês, que é clara e luminosa, se espalha por todos os seres do nosso mundo e ajuda-nos a nos movermos. - A se moverem? O que quer dizer? Perguntei com firmeza pois era segunda vez que mencionava imobilidade e movimento; e eles se deslocavam bem depressa a meu ver. Voavam até. - Melhor explicar-lhe depois. Terminarei a história de Alessa, por agora. -Há outras como ela por aqui? Pergunto, interrompendo-o. -Há outros assim, mas não gente como ela. Só uns poucos humanos, diferentes dela ademais. - Por quê? Não havia outros “feiticeiros” realmente? 60
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- Alguns eram feiticeiros num tempo da história humana, respondeu-me o alien, mas muitos que para aqui vieram tinham filhos, eram vazios. Deram com nosso mundo propositadamente, por acaso ou necessidade, mas não puderam cá sobreviver. Este lugar tem regras, como sabe. Nós não as fizemos, nem as escolhemos; elas apenas existem. Outros humanos, espalhados ali e acolá, embora talentosos, não tinham energia suficiente para permitir seu transporte para cá. Outros ainda, filhos de povos antigos, chegaram aqui, pois sabiam vir e ir embora. Chegaram e depois partiram, embora tentássemos impedí-los de sairem. Mas há, de fato, um grupo humano específico aqui, o qual fica muito à vontade em nosso espaço, mas não nos dá energia. Eles vivem cá apenas. - Poderei um dia vê-los? - Quem sabe... pode ser. Ou não. Não são de especial interesse, ao menos para nós. - Mas, perguntei afinal, ansiosa, tornamo-nos imortais aqui? Ele riu. - Não, imortais não, mas quase. Nós também morreremos um dia, mas nossa durabilidade é tão grande que pode-se dizer quase infinita comparando-se com a vida de vocês, seres orgânicos tão pulsantes e efêmeros! Então quem fica aqui conosco também dura este enorme tempo. Isso é muito misterioso, mas nenhum de nós três se incomoda demais com o assunto na verdade, já que tudo é harmonioso e cheio de prazeres, repleto de uma alegria que não sei explicar. Queremos nos incomodar, falamos sobre isso certamente, um cochichando no cérebro dos outros, ou falamos alto até. Queremos mesmo também 61
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retomar nossa missão, nosso começo, nossa nave, mas... será que, de fato o queremos? Aqui é como viver num círculo de luz, em anéis entrelaçados, não há como resistir a esse lugar. Nem tampouco saberíamos sair dele. ***** Nicolai, Gregorius e eu nos vemos de espaços em espaços, nossa semelhança animal, racial, nossa natureza enfim, torna-nos felizes juntos. Andamos, falamos, rimos, pulamos na relva, mas sofremos de quando em vez, ainda um pouco, pela realidade da qual viemos, pelo mundo agonizante que deixáramos para trás. Alessa juntou-se a nosso grupo, mas é estranha no modo de se expressar, ou melhor, muito silenciosa. Eu gosto de tocar-lhe os maravilhosos cabelos e de me enrolar neles. Sobre meu par, o ser inorgânico, posso dizer que nunca na vida imaginei que houvesse em mim, em nós dois, tal sensualidade e ousadia. Se narrasse as artimanhas, a versatilidade do corpo de meu parceiro ou a intensidade do meu prazer, sei que não estaria narrando o principal. O mais interessante é que o auge de minha sensação consiste em flutuar solta num lugar que parece ser infinito, quando então, tudo ao redor vibra cheio de vitalidade. Se bem que um dia, num desses momentos, me vi no que seria um espaço umbroso, também com extensões rasas de água calma, fresca e escura mas que eu sabia ser limpa e não ser propriamente água, estendendo-se por toda parte. Desta “água” emergia grande quantidade do que pareciam ser talos de dois metros ou menos de 62
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altura e de uns cinquenta centímetros de circunferência, também algo marrons, escurecidos mas muito conscientes. Os talos agitavamse com um tremor leve e movimentos curvos. A mim parecia que se alimentavam e riam. - Você nos viu! Exclamou meu parceiro, que passei a chamar de Toll, uma vez que ele não mencionava qualquer nome. Você agora sabe como somos realmente e viu também que precisamos de energia branca, rápida, leve e volátil para fazermos coisas extraordinárias. Esta energia vocês a liberam bem com o prazer sexual. Como sabe, esta é uma força de criação vital para vocês; o sexo, quero dizer. - Que outras coisas extraordinárias fazem com nossas energias? Indaguei tolamente até, ainda tonta com a visão estranha e afogada em questões intelectuais. - Podemos ir com nossos corpos etéreos, com os corpos do sonhar, ao seu mundo, podemos tomar forma, ou melhor, formas diversas lá ou aqui; e ainda cá em nosso espaço, somos capazes de criar locais palpáveis ao nosso prazer, ou melhor, à nossa conveniência, como esta grande região verdejante que fizemos no deserto amarelo. Experimentar sensações como se fossem corpóreas, também conseguimos junto a vocês. - Ah! Continuou ele, agora você nos viu usando seu próprio branco corpo de luz. Assim se parece nosso mundo, como o vislumbrou você, um local cheio de penumbra e conforto, com porções que se assemelham a água parada (mas não são isso) que é nosso substrato de plasma, a “cola” que nos une e mantém. Quando enxergam e olham com os olhos físicos, esta dimensão é um deserto de bruma amarela e nós não somos visíveis facilmente. Mas você, mais uma vez, já sabe disso. Sem energia orgânica, é como se 63
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estivéssemos presos, adormecidos ou paralisados. Somos, na verdade, mais como as plantas de vocês, as quais são fixas ao solo, e nossos corpos de luzes não têm força para movimentos e projeções sem a consciência humana. Também somos totalmente unidos entre nós, ou quase... - O que faziam quando nós humanos ainda não existíamos? Indaguei, uma vez que são tão antigos. - Ficávamos simplesmente parados. Era nossa “idade do gelo”, mas logo que começaram a existir, houve aproximação entre nós de um modo ou de outro. Somos todos filhos da Terra, concluiu com simplicidade. Ele retraiu seu pênis espetacular, retirando-o de minha úmida vagina, e novamente me vi no mundo aquoso, um pouco amarronzado. Notei então que não era bem um pênis o que ele tinha, nem ele era o que aparentava ser, e sim era um daqueles talos vivos que vibrava transbordante de força, colado ao meu corpo de luz. Estávamos tão juntos, quase entrelaçados, que parte dele tinha uma luz clara, e parte de mim mostrava-se cor de mel, um âmbar que me invadia. Evidentemente áreas de meu cérebro orgânico e humano eram ativadas, criando-se imagens e ilusões sexuais, mas o intercâmbio energético era extraordinário. Sob efeito dessas sensações prazerosas, liberávamos grandes quantidades de energia animal. De resto, nunca houvera uma cópula tradicional entre nós, conclui. Como haveria? Descobrir isso tudo deixava-me estupefata. Reparando bem, vi que ele distribuía minha luz esbranquiçada, vinda de um arredondado e ovoide corpo luminoso que era o meu, para a região interminável ao seu redor, naquele pântano de 64
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criaturas cilíndricas sobre o qual pairávamos nós dois, a ponto de o local parecer mais claro, numa espetacular visão. Até percebi que os seres inorgânicos alienígenas tremiam levemente com a receptação de minha luz como se essa fosse vinda de um pequeno sol. Estremeciam eles de modo impressionante, cheios de alegria como se fossem crianças em folguedos. E o mesmo deveria acontecer com os outros companheiros humanos. Por outro lado, os seres inorgânicos não eram crianças; não mesmo. Eram aliens; eu me iludia será? Que importava, afinal? Esse é mesmo um universo formidável.
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Segunda parte: A MORADA DA DOR
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Capítulo 13 Como se pode formatar o indescritível? Onde arrumar ou arranjar palavras, emparelhá-las, dar-lhes forma quando adentramos zonas mudas porque intensas, diferentes, intraduzíveis, trasbordantes de tantos elementos desconhecidos, de sensações positivas, confortáveis mas estranhas, amorfas, as quais percorrem nossos cérebros como correntes elétricas, visões rápidas, tais como cores e sons? É verdade que Nicolai, Gregorius e eu, além de Alessa, nos agrupávamos sobre a plataforma de cristal, na floresta, no rio, nas colinas, para trocas verbais, danças, cantos, bem como rememoração de nossa dimensão, de nosso mundo perdido, dos países específicos de onde uma vez viemos, de nossas vidas outras (tão distantes!) que um dia já tivéramos. E mesmo Alessa tendo vindo de uma época absurda para nós outros, ainda assim é humana como nós; ou quase. Juntamo-nos sempre e prontamente, quando nossos parceiros inorgânicos se retraem e ficam muito distantes. Mas não posso dizer (porque agora vivemos na mansão e no reino dos sentidos) se Nicolai e Gregorius tiveram qualquer namoro entre si, pois nunca vi isso nem procurei reparar em tal coisa. Alessa e eu apenas nos sentamos ao lado uma da outra, ou damos curso a estranhas atividades. Chego a me lembrar com espanto, de uns livros antigos que meu pai tinha guardados, de certo autor: Castañeda. Ele, o autor, falava destes seres, dos corpos de energia de tais criaturas, de outras dimensões existentes. Meu pai, por outro lado, asseverava-me que 67
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para algumas dessas possibilidades a física quântica já apontava, que eram até situações equacionáveis, ou viriam a ser. - Haverá um tempo em que deduziremos o desconhecido, descobriremos o misterioso e o colocaremos em fórmulas. Isso dizia meu pai, e continuava. Se sobrevivermos tanto... Então é tudo verdade! Há um local onde tempo não há, aqui onde estamos vivendo e assim mesmo não lhe conhecemos os segredos completamente. O tempo aqui fica parado, estático, e flui também a seu modo. Por aqui chegamos sim também a ver alguns animais, bem eventualmente; cães, gatos, aves grandes, tigres e javalis, mas esses não se aproximam de nós. Toll explicou-me que alguns bichos, com capacidades especiais, conseguem e conseguiram entrar cá sozinhos, pois têm poderes que nem nós humanos possuíamos, porém que tais animais não são muito interessantes para os seres inorgânicos, pois não comportam uma “razão” como a nossa. Ou seja, não possuem mesmo mentes e intelectos tão complexos quanto os nossos. Eles, os bichos “mágicos”, mais instintivos e espertos do que nós, vivem bem cá, ficam ou saem, voltam, partem a seu bel prazer. Não se queria nem poder-se-ia detê-los, disseram-nos os inorgânicos. Para nós, Gregorius, Nicolai, Alessa e eu, esses animais especiais, muitos dos quais nunca tínhamos visto antes, sempre forneciam espetáculo. Toll disse-me até que alguns deles escaparam dos altares das centenas de deuses aos quais seriam sacrificados, tendo sumido à vista da gente primitiva. Essas pessoas reafirmavam seu caráter sagrado e dizia que foram levados embora pelos mesmos deuses, que os preferiam vivos a mortos. - E talvez o fossem, acrescentei. Sagrados, de alguma forma, quero dizer. 68
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Também não é impossível, neste lugar, encontrarmos pequenos grupos de jovens, quase exclusivamente homens, que são bonitos, ágeis, usando túnicas claras e curtas, de tecidos rústicos ou de um tipo de linho. Mas isso é raro. Eles não se aproximavam de nós, mas não se escondem tampouco. Geralmente os vemos jogar e praticar folguedos simples com o que pareciam ser bolas feitas de fibras e com artefatos de madeira, com os quais visam acertar estacas fincadas no chão. Correm muito e riem igualmente. Alessa e eu nunca nos acercamos deles, pois são tão distraídos e absortos em seus jogos quanto belos, e tememos não resistir aos mesmos. Ou seja, nosso medo é sucumbirmos aos atributos físicos que possuem e acabarmos grávidas, pois eles têm comportamento infantil e um tanto esquisito aos meus olhos mas parecem ser bem humanos, fisicamente falando. Toll explicou-me que este grupo pertencia a uma civilização muito antiga e que conseguira ali entrar porque as práticas de meditação de seus integrantes somadas ao poder da região específica do mundo na qual habitaram um dia, além dos tipos de plantas alucinógenas que usavam, propiciaram-lhes um portal e assim permitiram-lhes, igualmente, ultrapassá-lo. Disse que tinham sido aprendizes de magos da antiguidade esses jovens celibatários e que, cá, tinham também parceiros, mas um pouco diferentes, doando sempre sua luz branca ( mas não tão branca quanto as nossas, pois somos pessoas modernas, bizarras e nos achamos “cultas”) aos seres inorgânicos. No entanto, explicou-me meu irmão de energia, o aliado, eles eram muito diferentes de nós na parte mental, psicológica e energética. Pudera!
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Eram antes seres simples, donos de raciocínio direto, de intuição correta, sem maiores sofisticações técnicas. Onde viveram um dia, observavam-se as leis da natureza e da natureza sutil, por isso sua luminosidade é mais amarelada e mais fraca do que a nossa, o que não quer dizer que não tivessem feito coisas extraordinárias. Apenas não possuem tanta agitação em si; isto é, dentro de seus corpos de luz. E nós somos agitadíssimos, por isso mesmo, nacos deliciosos para os aliados.
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Capítulo 14 Nesta realidade paralela parecíamos estar durante muitos séculos. Conquanto nossas memórias não se alterassem, sabíamos que não éramos mais o que, um dia, tínhamos sido. Toll disse-nos também que a humanidade já desaparecera da face da Terra no tempo que corresponderia ao nosso presente aqui em Zion. Só restariam ruínas daquele nível; mais uma razão para que eles cuidassem bem de nós, ele nos falou, pois somos seus parentes de luz, e também fontes preciosas de energia clara. Fontes praticamente extintas aliás. Explicou-nos também que não trocávamos os parceiros nas duplas orgânico/inorgânico porque isso, do ponto de vista de liberação e captação energética para nós, e especialmente para eles, não era nem vantajoso nem mais produtivo. A questão era prática, obviamente não sexual, o que aliás, para eles nunca o fora, nem moral muito menos. O fim da civilização terrestre donde viemos, por outro lado, é um motivo forte para ficarmos muito tristes, mas o paraíso aqui, para nós, permanece. E quem em toda sua vida, em sã consciência poderia renunciar à alegria, à paz, à saúde, à beleza e ao prazer eterno espontaneamente? Por isso ousamos crer, ou queríamos crer ser inocentes, afinal. Nicolai Borowsky costuma andar e saltar sobre as árvores. Desloca-se assim com tal ligeireza, de modo quase imperceptível, pulando de copa em copa; nem sempre desce ao solo. Gregorius dá cambalhotas e desliza em malabarismos e arabescos pela plataforma translúcida, tal qual um patinador no gelo, artista ímpar, diverte-nos 71
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também. Alessa e eu, quando sem nossos pares, somos afeitas às águas e ao que com água se parece e, quietas, corremos ou mergulhamos em regiões também silentes, movendo-nos a grandes distâncias, passando por túneis, ravinas ou por pontos onde há muita velocidade, queda de alturas imensas, imagens de geleiras e de galerias. Arrepios sem vertigens. Fazemos isso sem, no entanto, chegarmos a nenhum lugar em especial, nem isso é necessário, pois tudo é uma viagem colorida, estimulante. E o que descrevo parece ser mesmo eterno pois notamos já estar ocorrendo durante um longo e indefinito tempo. ***** Para muita surpresa minha, porém, aconteceu que, em determinado momento, se se pode falar tal coisa, comecei a sentir certo desconforto vago. Era algo semelhante ao coração disparar de modo agônico e algumas lembranças mui antigas, perdidas nos incontáveis lustros, nas numerosíssimas décadas, incomodavam-me sobremaneira. Subitamente, ademais, um tipo de dor fina subiu por minha perna esquerda. Isso, dor física, era absolutamente absurdo, quase desconhecido, ou ao menos muito afastado para mim desde a chegada a Zion. Penúria mental ou desconforto pareciam sensações distanciadas de todos nós. Então, por que aquilo agora? Também a ideia do projeto perdido que quase esquecêramos e o extermínio de nossa espécie atormentavam-me novamente então, e chorei copiosamente debruçada sobre a relva. Lembrava-me de minha infância por outro lado, da morte de minha mãe. Revia ou imaginava seu corpo dilacerado após o desastre, coisa que, aliás, nunca vira de fato; mas a imagem, agora, 72
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atormentava-me. Mal suportava as saudades de meus pais e de minha tia e sonhava com minha amiga Zoe. Desesperava-me na solidão e torcia as mãos, andando em círculos. Quando parei, em dada ocasião, notei a certa distância que Alessa também andava nervosamente de um lado para outro. Seus cabelos ainda belos pareciam, no entanto, ter perdido o brilho maravilhoso e perfeito de seda e luz. Nicolai escorregou em seus malabarismos nas árvores, gemeu num som oco o qual cessou como que no vácuo. Nicolai caíra, e fora uma queda reverberante. Ele, Nicolai, voltara agora a andar apenas sobre o solo, muito quieto, isso ocorrendo já há um lapso de tempo que me parecia ser de meses. “O que é que disse eu?”. Semanas, meses, nem sei, mas percebi também que não via mais Gregorius. Sai a procurá-lo, porém o ato de caminhar bastante absurdamente cansava–me um pouco, e afinal não o encontrei. Mas depois ele reapareceu saído da mata. Disse-nos que se perdera e que sentira frio. Necessitamos de explicações sim. O que estaria ocorrendo? Este mundo epicuriano, de pleno de gozo, está sendo tirado de nós? Por quê? O certo é que transformações terríveis se fazem notar. Nas ideais circunstâncias do Éden qualquer mudança seria indesejada, principalmente essas que são revoltantes. Disse mesmo eu a certa altura cheia de medo, a Nicolai e a Gregorius, que não tínhamos resistido o suficiente. Maravilhamo-nos demais e nunca tentamos negociar uma possível volta ao nosso mundo. 73
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Abandonamos nossa espécie, esquecemo-nos da missão, do projeto Nouva Terrae. Não indagamos seriamente se conseguiríamos fazê-lo; isto é, se poderíamos retornar, se os seres inorgânicos nos deixariam sair de algum modo, tão encantados estávamos com o Céu. Assim supusemos por nós mesmos, que nunca nos permitiriam escapar dali. Isso até deveria ser verdade; certamente o seria, mas teríamos de ter lutado mais e melhor, assim mesmo! Somos culpados disso tudo? indago-me sempre agora. Gregorius diz que devemos assumir nossos atos e decisões com firmeza, que falo tolices, que somos pequenos peixes no aquário de estranhas e poderosas criaturas. Ele tem razão? Talvez. Sim, sei que ele está certo, mas não posso evitar meus dilemas morais, enquanto as dores físicas vão se fazendo, também, notar. ***** Toll demorava a surgir, bem como Murun, o par de Alessa, também Glil, a esquisita falsa fêmea de quatro mamas. E Blier, um inorgânico que assume aspecto hermafrodita e o qual vejo, às vezes, com Nicolai, também não aparecia. Assim, quando num momento suspenso em espera avistei Toll sobre a plataforma de cristal, corri para ele. Notei que todo o seu porte mudara um pouco. Estava mais alto e também mais escuro de pele; transmitia uma vibração forte e final. - Angeline, comunicou-me ele, devem ter notado que há mudanças em nosso mundo. Perceberam-nas certamente, com seus corpos e com suas mentes. Trata-se do crescimento, entre nós, de nova gama de seres que são como nós, mas não exatamente iguais, afirmou muito diretamente . Algo mutantes são eles. Falo assim para que me possa compreender. Toll continuou: 74
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- Essa é uma boa analogia, bem próxima do real. - Se os vir como são, perceberá tons roxos em seus verdadeiros e cilíndricos corpos de energia. Os luminosos seres roliços não são tão da cor de mel escuro, como nós o somos. Eles também têm espículas energéticas no meio dos corpos , detalhes que os primevos não temos, e alimentam-se das dores morais e físicas dos seres orgânicos, ou melhor, dos humanos mais especificamente, diversamente da nossa estirpe que se nutre do prazer. Aliás por pura opção nossa é assim, opção essa ancestral e muito longínqua, por tendência da conformação que possuímos também, mais claramente falando. É da nossa natureza assimilarmos a energia que dá alegrias e alento aos humanos. Mas não o é da natureza alternativa deles. - Sabe que nosso tempo e nosso mundo são bem lentos, prosseguiu ele; pouca coisa muda em dezenas de “séculos”, e morosa será a progressão de seu sofrimento. Disse-o e fez um gesto com a mão espalmada, apontando para nós. Mas também enorme se fará a dor continuou ele, inimaginável para vocês, inexorável e quase infinita, se não conseguirmos refrear nossos irmãos, os jovens mutantes. Depois, se não os pudermos controlar, não sabemos ainda o que farão. Podem impedi-los totalmente sequer de se exterminarem a si mesmos. Assim, nessas circunstâncias desfavoráveis a vocês, nossa cepa antiga, ainda atual quero dizer, que por agora continua a ser grande maioria aqui e que é liderada pelos poucos captadores e distribuidores de energia humana dos quais faço parte, resolveu retirá-los do nosso mundo. Seu tom era muito incisivo e arrepiou-me até a raiz dos cabelos. - Demônios! balbuciei. Seria o inferno? Pensei, em seguida, que não poderia mesmo existir, na Terra, prazer e felicidade sem fins, que havia culpa e, agora, punição por nossa existência prolongada e 75
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aberrante num mundo alienígena. Então o exorbitante preço final nos seria cobrado, ou apenas caíramos em alguma armadilha? - Como sabem, prosseguiu Toll, não somos iguais a vocês. Nós não matamos nem destruímos nossos semelhantes como vocês humanos o fazem ou o fizeram, com tanto prazer e eficiência. Danificando tudo em seu plano, atacaram igualmente a si mesmos. Tudo dizimaram vocês. Somos nós, por outro lado, realmente unidos em cadeias como talos da mesma planta e presos ao substrato do nosso plano, o qual lhes lembraria sempre a mansa água de manguezais densos e escuros, aqueles manguezais que se encontravam, há séculos e séculos, nos trópicos, lá no seu mundo, que é também terrestre. - O que veem, já o perceberam, são apenas nossas projeções de energia, nossos corpos sonhadores que cá estão, os quais vocês sentem como reais, como materiais mesmo; e mesmo nós quase o sentimos... Na verdade uma parte de nós está fixa, enraizada junto aos outros membros da comunidade; mas nós, os captadores, somos diferenciados e mais poderosos; com vocês voamos. - Quando copulam conosco não o fazem de fato, prosseguiu. Isso não seria possível, não ao modo animal, mas é como se o fizessem, pois acontece verdadeira troca de energias básicas vitais, simbiose astral. - Vocês e nós somos estimulados, unindo todas as nossas vibrações de luzes, num raríssimo e poderoso fenômeno. Claras são as suas, em ondas, escuras as nossas e em borbulhas elétricas; conectamos assim nossos corpos etéreos, os corpos de sonhos. Mas não, nós não destruímos nossa própria raça. Assim, não podemos guerrear com a nova cepa. Isso não é exequível, continuou. O que 76
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podemos empreender é realmente tentarmos tirar vocês daqui, e assim também subtrairmos de todos nós o energético alimento que representam os humanos, tornando-nos, portanto, quietos, silentes, imóveis, semiparalisados, até que esta cepa mutante diminua por si mesma. Isso já é um grande sacrifício para toda nossa comunidade de certo modo, mas podemos fazê-lo, pois como não ignoram, nossa existência é muito extensa. “Tempo” é uma coisa que temos e vocês não. Mas vocês agora são parte de nós e procuraremos ajudá-los. Para tal, principalmente, não podemos mais mantê-los cá! Ante meu nervosismo, Toll aconselhou-me a restabelecermos todos a sanidade e a coragem das pessoas que se propuseram, uma vez, a viajar no tempo como o conhecíamos, correndo tantos riscos. Advertiu-me que resquícios anacrônicos de religiosidade humana ou de moralismo, que ele mesmo conhecia em nossa espécie mas jamais poderia sequer compreender, que sensações de culpa não nos seriam úteis agora, em absoluto. Exortou-me a ver esses seres mutantes como um fenômeno natural dentro deste mundo. Associá-los a demônios ou pensar que os supostos séculos(?) de puro deleite nos exigiam expiações terríveis, era bobagem pura. A semieternidade, emendou ele, pressupõe algumas intercorrências periódicas, cíclicas. Fenômenos impessoais de um imenso, enigmático universo. Pareceu-me este um discurso razoável e, na ocasião, proporcionou-me certo alívio e esperança. - Para vocês, eles, nossos irmãos agressivos, são como tempestades, vulcões, ou como um assassino violento que bateria à porta de uma família inofensiva, noutros tempos, no seu mundo. Mas há saídas! - Tentaremos, então, realmente tirá-los daqui. Somos fortes com vocês ainda. Temos muita mobilidade por enquanto. Seremos 77
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bem sucedidos, assim cremos. Mas, num último caso, poderemos matá-los se necessário. Se não pudermos retirá-los daqui, não escolheriam morrer? Continuou ele. Não vejo saída outra, para evitarem-se tormentos que lhes seriam terríveis e pareceriam intermináveis. Toll arrematou de forma bastante objetiva e finalizou o que tinha a dizer. ***** Morrer... Meus pais não escolheram morrer, os animais que comíamos antes, no remoto passado, tampouco escolheram a morte, nem Reese e Nadine, mas nós possivelmente precisaríamos escolhê-la. E como reclamar por isso? Que privilégio nos fora dado! Que imensa nossa vida, incontáveis os instantes de abandono, de leveza, euforia, calma, de prazer estético, sexual e mental, energia de corpos saudáveis! Viajamos incontavelmente, chegáramos a alturas. Agora precisaríamos nos despedir da vida? Talvez. Mas era justo ou normal pelo menos, e definitivo, embora nenhum de nós queira fazêlo, imagino. Nicolai, Gregorius, Alessa e eu ponderamos. O que nos parece mais perigoso é que a lentidão gradual dos sofrimentos nos propicie certa “adaptação” aos mesmos, de modo que, adiando a morte ou a fuga porque banhados em esperanças vãs, ambições e apegos covardes, e esta última, exatamente a fuga, não podendo realizá-la sozinhos, fiquemos presos no inferno quando a cepa mutante dominar a linhagem anterior. Algo no que é bastante nauseante e horripilante se pensar. E o mais difícil de tudo, para todos aqui, é sabermos que nós que nos achávamos uma grande e poderosa espécie, dominadora espécie aliás, inteligente e audaz ou criativa em nosso próprio plano, somos 78
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como frágeis infantes, tal bichos de estimação nas mãos de seres muito diversos dos orgânicos, mas tão reais quanto nós e bastante mais poderosos. Admitirmos isso é humilhante ademais. Nossa vaidade é duramente açoitada com tais conclusões e merece sê-lo; porém isso não anula a maravilha toda que nos ocorrera penso, e a aceitação cabal de nossa pequenez traz até certo alento, desdobra leques de muitas possibilidades, de realidades paralelas. Sonha-se, assim, com a divindade. Uma divindade complexa, impermeável e incognoscível. Mas o instinto animal de sobrevivência nos impele, e mais ainda, move-nos a determinação orgânica de fugirmos ao sofrimento físico e moral. Por outro lado, não há motivos concretos para desconfiarmos de nossos amigos inorgânicos. Considerando sua inegável superioridade, nunca precisariam mentir-nos ou nos explicar nada. E se, de nós também eles necessitam de alguma forma, é porque assim os mundos foram feitos ou fizerem-se a si mesmos. A fresta pela qual passamos, ou pela qual fomos obrigados a passar, permitiu-nos simbiose original e muito rara na Terra, ao que parece. Para mim, agora vejo, tal fenômeno se mostrou produtivíssimo. Menina introvertida que fui, adolescente criativa e estudiosa, moça de poucos e efêmeros romances, cientista ligada ao estudo de androides especiais, ao mesmo tempo idealista, aventureira, corajosa até vamos lá, mas também esquiva aos laços humanos, era a perfeita presa de Zion, de Toll, dos inorgânicos e deste mundo antes fascinante e agora aterrorizador, no qual estamos. Quanto aos outros, Nicolai Borowsky já era antes um homem morto desde que perdera sua família na nossa confusa Terra, referindo-me ao nosso nível original de existência, e por isso estudava e trabalhava tanto, com prazer e sem parar. Tenho certeza 79
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até de que ele teria, ilegalmente, tentado clonar seus familiares (e o teria conseguido!) se não tivesse sido retirado à força da cidade onde vivera, se o local todo não fosse descontaminado e incinerado conforme as instruções protocolares vigentes, deixando-o sem acesso à sua casa, aos corpos e objetos dos entes amados e até sem suas próprias roupas. Em tais circunstâncias, abomináveis para ele especialmente, qualquer clonagem, desesperadoramente estaria descartada. Tudo, para Nicolai, se perdera naquele tempo. Alessa fora, em sua época, uma “feiticeira”, por mais absurdo que tal palavra pudesse soar para nós anteriormente; e Gregorius, agora o sabemos, com um passado pobre, sendo quiçá um músico frustrado envolvido, quando bem jovem, em graves lutas de gangues na New Orleans Reconstruída, só se entendera com máquinas mesmo, pois elas, como costumava mencionar, é que tinham almas racionais. Com isso, creio que Gregorius não gostasse muito de si mesmo ou do que, de certa feita, fora. Quanto a Nadine e Reese, não lhes fora dado escolha, e há muito partiram. ***** Sentados em silêncio sobre o gramado e percebendo variações ocasionais na luminosidade do horizonte, apesar de nós mesmos e do local onde nos achamos, voltamos ao espírito de nossa aventura, ao nosso idealismo primordial, à coragem que já tivéramos quando mais humanos, mas eivada agora de necessária humildade, pois desta feita a bravura animal, simples mas impecável, se impunha novamente. Porém, assim mesmo, era verdade que nos sentíamos como tênues chamas de velas frente à luminosidade de mil explosões solares. Contudo, proibimo-nos terminantemente de esmorecer. E o fato mais concreto é que a valentia agora se resumia na esperança e na força de, simplesmente, morreremos. 80
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Alessa, que também sempre relembrava sua vida passada num mundo de negror, onde as árvores, os gatos, os pássaros da noite não podiam sequer ser olhados com encantamento ou com olhos inquiridores, pois significariam perigo aos grupos de humanos ignorantes, malvados, cruéis, dominadores e poderosos de uma época, os quais torturavam, matavam por isso, sentia aquele tempo terrível retornar, e muito pior, centenas, milhares de vezes pior. Entendendo mesmo nós, afinal, que todas as formas de vida por mais exóticas que sejam acabam tendo um fim, que fomos privilegiados viajantes da Terra, que vivemos formidavelmente, sabíamos que teríamos de matar a nós mesmos, e falamos sobre os esquemas práticos para tal. Assim, ainda sendo muito apegados aos inorgânicos, queríamos falar mais uma vez com eles. Então, emitimos chamados em alta voz, ao mesmo tempo para Toll, Glil, Murun e Blier, que chegam com um enorme ruído Ziiiiii Hownnnn, enquanto um vento muito forte e um pouco frio (ou muito quente?) agita este mundo, que agora é também nosso até o cerne. Chegam eles e nos dizem de que forma podem, em último caso, nos matar. Unir-se-iam em círculo e colocariam cada um de nós dentro dele, bombardeando com tanta energia escura nossos corpos de luzes, que explodiríamos. Era vantajoso, pois disseram que seria rápido, relativamente indolor e que viraríamos areia tal como Reese e Nadine, muito embora Glill explicasse em tom rascante, “depois não sei o que será de vocês, pois se há alguma vida após a morte, não é questão que conheçamos”. “Óbvio, inorgânico idiota!” penso eu. E eles ouviram, mas não se alteraram por isso. - Só conhecemos nosso mundo e aquele que foi seu; ainda continuou ela, Glil. Não somos deuses, e riu-se. 81
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“Que mau gosto o dela(e)”! penso, falar-nos sobre o desconhecido, sobre o que já sabemos não conhecer e o que nem mesmo eles sabem. Blier acrescentou que nossos esféricos corpos de luzes têm fendas relativamente grandes nas partes anteriores, nos centros, sítios esses que correspondem a regiões próximas aos umbigos, nos corpos “físicos”, e que são locais frágeis, de saída de forças e entrada de vibrações energéticas. Aliás, nossos sítios de conexões. E eles nos sobrecarregariam por ali. Indago-lhes sobre os jovens primitivos que andam e correm pelas colinas distantes, sentindo-me, de repente, também preocupada com eles. Disseram que seus parceiros inorgânicos poderiam talvez salvá-los, ou matá-los, ou deixá-los ali, mas é mais provável que sejam colocados em Alscor ou até já o tenham sido. - O que é Alscor? Indagamos. - Vocês saberão, responde Murum, com seu timbre áspero. Vocês saberão, talvez...
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Capítulo 15 Alscor... Nossos pares inorgânicos dizem que nos esconderão lá por um período. - Que período? Indaga Gregorius. E o que vem a ser isso? - Uma dezena de anos para vocês, responde Toll. Um tempo muito breve portanto, apenas o necessário para sintonizarmos energias, ampliarmos emanações, desligarmo-nos, do ponto de vista de fluxos de onda, afastarmo-nos apenas um tanto e provisoriamente de nossa rede de espécie, para podermos ocultá-los melhor e tomarmos outras providências, a fim de levá-los realmente embora. - Como sabem, as unidades mutantes, poderiam encontrá-los através de nós mesmos e arrastá-los de novo para cá, impedindo-nos totalmente de sair. Aos nossos irmãos estamos sempre ligados. Temos raízes concretas e um “corpo” global, que inclui o substrato. Vocês nada disso ignoram. Precisamos camuflar sua energia antes, seu rastro, sua marca em nós, que é como genoma e sangue, constitui energia real do universo. - Quanto mais longe deste mundo estiverem, por outro lado, mais difícil será encontrá-los enquanto viverem; e muito improvável transportarem-nos novamente para cá. Verdadeiras barreiras físicas e energéticas irão se impor. - Se bem que Alessa... Toll continuou. - O que há com Alessa? Indaga alarmadamente Nicolai.
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Todos os inorgânicos se calaram e pareceram a mim que quase mudavam de forma, para a sua verdadeira, mas a impressão se dissolveu. Continuaram ali, quatros seres aberrantes e fortes, parados defronte a nós. Toll olhava-me nos olhos. Deixaram-nos depois. Mas antes, Murum aproximou-se de Alessa e suspendeu-a sobre seus ombros esquisitos, de forma íntima e, aparentemente, amiga. Todos nos lembramos, naturalmente, que era absurdo confiarmos tanto em seres tão diversos da gente, de naturezas tão anômalas e inconcebíveis , de alienígena e estranha origem, mas confiávamos. Nem havia ou haveria outra saída. Nunca mentiram-nos em nada aparentemente e, novamente salientamos, jamais necessitariam sequer nos ocultar ou mesmo explicar coisa alguma. A mentira, inclusive, já o dissera Blier, não existe para eles, pois vivem num mundo lento, sólido e de infinitas verdades. ***** Todos os quatro nos sentíamos, certamente, levemente sufocados com algumas dores morais e físicas, semideprimidos é fato, porém isso é problema que devemos enfrentar. Era aquele mundo que mudava. Espreitavam-nos, sabíamos, jovens seres cilíndricos, miasmáticos e arroxeados. Iriam torturar-nos sem nunca acabarem conosco. E se não pudéssemos mesmo escapar, teríamos que morrer antes de sermos inexoravelmente condenados à vida. - Podemos, em último caso, reproduzir-nos, pois morreríamos de imediato, falou Gregorius. - Parece simples, respondi-lhe, mas podem nos separar infinitamente, para evitar isso. 84
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- Além do mais, Nicolai retruca, e os bebês? O que fariam esses monstros com eles? Infelizmente temos de apostar em nossos pares alienígenas, ou nos matar depressa, arrematou. Tinha ele razão; só de pensar no assunto, sentia eu calafrios. E de modo impulsivo, totalmente humano, decidimos que, no próximo agravamento de nossos sintomas, ou em havendo maiores mudanças aversivas do lugar, nos mataríamos de fato, sem para isso esperarmos por mais ninguém. ***** Portanto, ao decidirmos assim, quando percebemos Alessa e eu que menstruávamos, sangrando profusamente, com dores e cólicas, também que a nudez na qual vivíamos alegremente há séculos, passou a nos aborrecer e quase embaraçar, a ser incômoda a ponto de começarmos a tecer precárias vestimentas trançando fibras, vendo que Gregorius e Nicolai discutiam entre si, que se enfrentavam ocasionalmente, que não mais víamos os lindos animais ou os pequenos grupos humanos por ali, e também percebendo que começamos a ter alguma vaga sensação de fome, os pensamentos de suicídio recrudesceram em nós. Resolvemos levar a cabo nossos planos. Porém, subitamente, quando teríamos mesmo nos matado e até estávamos por concretizar isso, ficando a cargo de Gregórius estrangular-nos e depois, afogar-se, chegaram num estardalhaço nossos companheiros que no entanto já não apresentavam qualquer forma humanoide, muito ao contrário. Surgiram os inorgânicos como cilindros de uns dois metros de altura mais ou menos e de uns trinta a cinquenta centímetros de diâmetro, muito móveis, vivos , deslizantes, cheios de vibrações internas como pequenas explosões escuras ou bolhas fervilhantes que vinham do fundo de seus translúcidos, escuros e brilhantes 85
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corpos, e explodiam-lhes na superfície. Eram os quatro muito parecidos entre si e, no entanto, cada um de nós soube de imediato quem era quem, ou tinha sido Murum, Toll, Glil e Blier. Eles nos agarraram, um a um, de repente grudando-se a nós, e sem palavra ou pensamento nem som sequer, lançaram-se para cima levando-nos com eles. Alçamos um voo alto, o suficiente para vermos no entanto, os montes verdes, as grandes planícies, a floresta, o longo, estreito, sinuoso rio, a plataforma de cristal, e tudo abaixo desaparecer, ficar distante. Seguimos para um lado que acreditei ser o norte, conquanto imediatamente visse o absurdo dessa ideia de pontos cardeais em Zion. Mas observamos lá embaixo voltarmos a ver o deserto amarelado, incongruente que conhecêramos ao chegar, aquele mesmo que absorvera Nadine e Reese e ao qual nunca mais retornáramos. Logo após, os inorgânicos, os aliados aterrizaram de novo e sincronizadamente arrastaram-nos para frente, com tal velocidade sobre o substrato arenoso, que nos percebíamos deslizar em grandes ventanias, sempre acompanhados de um zunir e de um turbilhão ao redor, impulsionados para adiante, para frente, e mais para frente ainda, velocíssimos porque, o sabíamos, estávamos fugindo. ***** A corrida continuou por tempo indefinido, mas passamos agora a distinguir, no horizonte, mudanças no deserto amarelo. Lá ao longe vê-se massa densa e uniforme, branca como um nevoeiro que toma céu e chão, e embora distantes dela ainda, aproximamo-nos depressa. Não há que temermos impacto pois isso parece uma 86
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neblina, e não é só por isso que não tememos; também sentimos firmeza e força vindas de nossos parceiros. Relativa paz volta a existir para mim naquele abraço sem mãos, quando estamos acoplados simplesmente, deslizando rapidamente em duplas, e também agrupados. Parece que Toll, com seu cilíndrico e inexplicável corpo, é meu parente, mais até do que outro familiar humano na Terra o fora. Neste momento, com clareza, vem-me o perceber que nós quatro, seja como for e ainda que desejássemos negá-lo, já não somos mesmo propriamente mais tão humanos. Porém isso, agora, tampouco apresenta significado maior. ***** De modo vertiginoso e excitante aproximamo-nos, em carreira desabalada, do muro de névoa e nos “chocamos” com ele, penetrando-o com um arrepio de umidade, sensação de estarmos suspensos, de vermos ao mesmo tempo muita profundidade, altura e distâncias longas por todos os lados. Imagens soltas e leves cruzamme os olhos no “choque”. A neblina de início parece que nos vai afogar, depois cede, não nos afoga e desenha contornos aos nossos redores. Somos meio que jogados num chão fofo, seco, e ao mesmo tempo firme, sólido e instável, gasoso e líquido a um só momento, ali despejados por nossos aliados nesta maré de sensações inéditas. Eles cá nos deixam e saem zunindo a toda, de modo que desaparecem rapidamente dos nossos ângulos de visão. Estamos todos juntos, os quatro, meio andando, meio flutuando, meio que afundando e nadando naquele lugar branco, mas isso não nos assusta nem surpreende mais. O que precisamos mesmo saber agora é se estamos a salvo em Alscor, se é que essa parte do mundo deles se chama mesmo assim, Alscor, e o que é de fato esse local. Porém uma coisa é certa: é perfumado. Centenas de 87
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aromas perfeitos, um a um, desfilam para os nossos narizes. Noutra parte de Zion, forma, luzes, cores, sensações corpóreas e capacidades especiais nos seduziam; mas aqui os olores nos embriagam e mesmerizam. Positivo é notar em mim menos apreensão e angústia, redução dos pensamentos de autoextermínio e uma visão curta, mas real, de esperança n´alma. Meus companheiros, vejo-os com olhares mais plácidos do que ultimamente têm tido. Isso até que é encorajador. Devagar começamos a nos equilibrar naquele sítio. Conseguimos fazê-lo focalizando os meios dos nossos corpos na intenção de seguirmos. Daquela região específica de nossos seres físicos parecem sair ordens para o “solo”, para o “ar”, e para nós mesmos. Ande, equilibre-se, foque, avance! diz para mim meu corpo e os pés obedecem, a coluna se apruma, é como se tentáculos invisíveis nos saíssem dos estômagos, estabilizando-nos. Apoio-me um pouco em Alessa, Gregorius toca-me o braço, Nicolai procura equilíbrio no ar. E mais hábeis agora, todos continuamos a marcha imprevisível até que nos damos conta também de sons musicais, múltiplos, de várias cadências, instrumentos de sopro, de cordas, imitadores vibracionais e magnetotecnias, cítaras, bumbos, outros instrumentos elétricos, antigos, e de teclas, cordas, guizos, tudo misturado, mas sem agredir o cérebro ou os ouvidos, pois tratam-se de sons nada cacofônicos. É como se aqui houvesse multidões de músicos de todas as épocas e mundos, tocando uma única e indefinida sinfonia. Alguns timbres e notas são fascinantes, vêm acompanhados de perfumes e arrancam todas as pétalas de meu coração; parece que verterei lágrimas. Outros falam-me ao sexo, penso em Toll na sua 88
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forma humanoide, nos aliados, em pequenos e vagos amores do remotíssimo passado muito ofuscados por meu amante do presente. Depois de tantos acordes, os sons cessam subitamente. Ao pararem as melodias, tudo fica mais branco e intenso então, por toda parte. Começamos por agora a notar grupos de seres que vêm do nada aparentemente, cercam-nos a uns trinta metros, em círculos, uns duzentos deles acho, e parecem orgânicos, humanos. São humanos, nós o sabemos com certeza, menos por nossos olhos e mais por algum conhecimento que adquirimos nos séculos e séculos passados nas terras verdes e férteis para nós criadas. Quero crer, sim, que desenvolvemos sensibilidades, que muita coisa nos ocorreu sem que o notássemos, que não foi só copular ou sentir que copulávamos, ou termos prazeres estéticos, corpóreos, deslizantes, voláteis, indefinidos, tantos deles sei lá. Ou quem sabe, por causa desta troca energética foi que nos transformamos afinal... Deve ter sido isso, pois nós sabemos de assuntos dos quais nunca antes poderíamos saber. Pudera! Aprender e transmutar era inevitável com tudo o que experimentamos. Ademais vivemos neste mundo, estranho e extraordinário, há elásticos séculos.
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Capítulo 16 Os habitantes de Alscor nasceram humanos, e em diferentes épocas, mas quase todos no oriente. Usam tangas sumárias uns, túnicas violetas e de cor laranja outros, batas brancas também. Cabelos raspados aqueles, esses com barbas reluzentes, bonitas, como se acabassem de ser cuidadas, embora enormes. E há uns com uns rabichos apenas, nos topos das cabeças calvas. As roupas mesmo parecem criadas ali naquele lugar, mas por eles, a partir de imagens que tiveram um dia em suas mentes daqueles panos esvoaçantes, acetinados e lustrosos, nos corpos. Olhando-se de relance para algum deles, no meio da branca névoa, tão espessa que quase palpável, creio ver um homem com um trompete na boca, ou cujas mãos são cítaras, outro mais com face de xilofone ou com aparelhagens eletrônicas nos olhos, mas ao apurar a visão, percebo serem apenas ilusões ou miragens. É que cada um que se aproxima cria um acorde, uma sonoridade, uma nota envolta em cheiros de plantas e flores. Ou parece, às vezes, ser ele ou ela mesmo(a) um instrumento musical. Às vezes também aquele acorde vibrante adquire uma determinada cor, tingindo a névoa. Parece-se com uma aurora boreal, imagino. Reconhecemos no grupo descrito, mulheres carecas com feições transcendentes e exóticas. Muitas tatuagens nos corpos apresentam um bom número destas mulheres, e pinturas nas faces. Uns outros, deles e delas, usam também batas rosadas ou azuladas. Certo oriental ancião, mas muito vigoroso porém e que nos pareceu o líder, emite sons maviosíssimos ao aproximar-se de nós e explica-se assim, retumbante: 90
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- Ooooooommm! Saudações! Nós, Mahasamadhi os acolhemos aqui conosco.
os
fracassados
do
Podemos ter mudado, contudo não entendemos coisa alguma do que este nos fala. Ele percebeu e continua de outro modo menos hermético e até bem objetivo: - Aqueles etéreos, os inorgânicos, os de energia ambar escura criaram um lugar extenso para vocês a partir de seu próprio mundo amarelo num plano, e silente e sombreado noutro. Nós, ao contrário, criamos no mundo deles este lugar para nós mesmos. Somos rebeldes colonizadores desse plano e a viver aqui estamos, ainda que obrigados, por nossa falta de concentração e incapacidade. Mas Eles, e salienta muito esse “eles”, assim mesmo, não nos podem tocar. Não o fazem pela licenciosidade nem pela dor, nem pelos prazeres nem pelas sensações todas que nos querem impor, pois ao Grande Nada nos atemos, para o Brahman queremos retornar, para o Todo Cósmico é o nosso voo e a cortina de sons e de perfumes que cá fizemos, as músicas que compusemos, essas canções dos nossos corações e das lembranças, melodias dos nossos ouvidos e sonhos, essências olorosas das nossas mentes, mantêm os seres colunares longe daqui. Nicolai indagou bastante e indagou de novo, pois muito havia a se questionar. Perguntei eu e Gregorius também perguntou. Cada resposta se envolvia numa nota de musicalidade espantosa vinda de um habitante de Alscor. Eram si bemóis e fás sustenidos provenientes de tantos deles, de muitos, de dois ou três ao mesmo tempo. Alessa arreganhou um pouco os lábios fazendo um gesto quase provocante que ela mesma congelou no ar, pois se novas regras havia, seria melhor conhecê-las, se o lugar protegia da dor, 91
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necessário era respeitá-lo, e se tempo agora tínhamos, tentador e justo parecia-nos ouvir tudo o que aqueles homens e mulheres sabiam para nos contar, de forma aparentemente generosa. O que exatamente tinham a nos dizer, disseram-no em circunlóquios, em koans, em partes objetivas também, em frases didáticas até. Todos teriam sido místicos e ascetas na outra dimensão da Terra, na nossa antiga morada, a qual tínhamos deixado, primeiro sem querer depois querendo, para trás. Treinaram-se eles para uma ambiciosa meta, separados, em diferentes épocas ou unidos a parceiros, a irmãos de filosofia ou companheiros de técnicas de meditação, ou mesmo ligados a seus mestres. Asseveravam-nos que os seres vivos, todos eles, reencarnam, fosse em qual plano fosse, nos milhares e milhares que existem no universo, estivessem em qual local ou tempo nestes mundos inexplicáveis por Brahman criados. Mas que, após ascenderem em encarnações sucessivas, também decaem! Os aliados inorgânicos duram incomensuravelmente mais comparados aos seres orgânicos, explicaram-nos, mas sendo também filhos misteriosos da enigmática Terra, morreriam um dia, como os próprios nunca o negaram, e depois disso seriam no seio Cósmico reciclados, renasceriam também em muitas outras formas de vida, eventualmente bem inferiores e sofridas às que tinham agora. Nisso acreditavam as pessoas de Alscor. - Por isso, aquele ser que se torna sábio, assim nos disseram, o Transcendente, o Iniciado procura o Mahasamadhi, que é morte treinada, consciente e voluntária.
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- Harmoniosa esta morte, diziam-nos, conseguida após etapas de disciplina, de exercícios corretos e de poder interior. Neste processo artificial e premeditado, alcançavam Brahman, e ali existiriam, de fato para sempre, sem nunca mais ter de renascer, sofrer, morrer e renascer, em ciclos sem fim, conforme acreditam que ocorra com todos os sencientes. - O destino final, o refrigério, a liberdade total, isso sim é negócio de se buscar, para homens fortes e capazes! Toda essa história de “morte especial e controlada”, para nós que já havíamos decidido morrer por desespero embora calculadamente, morrer para nos livrar das terríveis sevícias que nos aguardariam naquela região de Zion onde antes estávamos, tinha sim um apelo aventuroso, de grandiosidade e beleza especiais. Mas nós não éramos eles... Agora sabemos nós quatro, Gregorius, Alessa, Nicolai e eu, estupefatos, que as pessoas de Alscor são ou parecem ser, caso tenham razão e mesmo não a tendo, os seres humanos mais arrojados, ambiciosos e determinados dos dois mundos que conhecemos. Diria que muito mais do que nós. - Fomos incompetentes nós aqui, prosseguiram, pois por erros de técnicas, por falhas do poder pessoal ou por interferências outras, não alcançamos a cobiçada “morte consciente”, não transpusemos o portal desejado, não nos unimos ao Todo; mas paramos, ou melhor, encalhamos aqui, com os corpos de luz e também com os orgânicos corpos. Isto é, inteiros paramos, atolados com matéria e almas num mundo paralelo aparentemente perfeito e bem mais durável que o nosso, porém ainda assim não eterno. E nós buscamos a Eternidade! Nós a desejamos! 93
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- E nós outros, em contrapartida, afundamos com nossa nave e instrumentos aqui mesmo, disse Nicolai. Eles talvez não soubessem sequer o que seria uma nave, mas isso não os desconcertava nem intrigava tampouco. - O que mais nos parece maligno e corruptor neste local, continuou o líder, o sedutor ancião, é que este lugar não deixa nem deixou de ser refúgio real para muitos de nós, e certamente de vós, que tão pouco tempo viveríeis em nosso plano. Lá, na nossa Terra, vossa consciência duraria menos de centena de anos, no máximo. Assim, este mundo é opção válida até vos digo isso, prosseguiu o líder, opção final justamente para o não buscador da liberdade total. Para os mais fracos, como vós (e não havia, aparentemente, qualquer arrogância ou vaidade no que nos dizia, apenas constatação ponderada) este seria um local seguro. Ou era, pois agora parece que tudo por aqui muda, e mais ainda mudará, mas não para nós que estamos protegidos. Para nós nada pode se alterar. A barreira de sons e cheiros que fizemos impede mesmo que os inorgânicos entrem com seus corpos sonhadores. Não se podem meter conosco. - Então Alscor seria uma estável ilha humana em Zion, indaguei admirada? - Sim, Alscor é exatamente isso! ***** Toll, Murum, Glill e Blier escolheram bem o local onde nos deixar, e por isso talvez tão pouco ficaram por aqui, neste portal que os repele. Quem sabe apenas tenham podido entrar rapidamente por serem da estirpe dos captadores e distribuidores de energia; isto é, 94
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mais poderosos do que os outros. Os sons de Alscor os desenergiza a todos eles, aparentemente. Largaram-nos, pois, nossos aliados e partiram como petardos transatômicos. Mas isso tudo, o resgate e o voo seriam provas do quanto se ligaram a nós? indago-me em meio à brancura. Creio que sim e creio também que não. Numa análise apurada de suas atitudes, a dúvida floresce ainda assim, ou quiçá, muito mais. Fica maior, mais profunda a questão. No entanto, as incertezas pouco importam, pois não se trata de questão de sentimentos agora, e sim de sobrevivência. Eu que sempre vivi só ou com robôs e máquinas, por outro lado, entendo perfeitamente que mesmo antes não era eu uma mulher completamente “normal”, e Toll fizera-se sob medida para alguém semelhante a mim, ao mesmo tempo amante da humanidade e um pouco misantropa, se isso é possível. E Nicolai? Quem fora ele senão um intelectual e técnico brilhante, mas homem calado, que perdera todos os seus tragicamente? Gregorius igualmente tinha tido uma adolescência nebulosa sobre a qual não falava muito, mas que incluira fome, desamor e falta de esperanças. Ter-se tornado o competente técnico e o homem expansivo que é não apaga suas marcas. Zion apagou-as por muitos séculos, mas agora as devolverá a nós, e muito piores se aqui ficarmos. Contudo, em Alscor, parece-nos que estamos bem. Por outro lado, uma palavra me vem à mente: Hubris! Hubris nossa! Ou isso, essa autoacusação seria apenas reflexo de medo, de modéstia, de insegurança ou os farrapos inconscientes de tola religiosidade?
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Capítulo 17 Aslcor nos induz a respirarmos todos num ritmo uníssono, dado por diferentes musicalidades em tempos diversos. Tenho a impressão de estar longos períodos sem pensar. Os pensamentos e fixações são substituídos por luzes refratadas, lisases, calmantes, ou cintilantes azuis e rosa. Depois, ao focar os olhos, vejo mesmo branco, tudo em tons únicos e variáveis de branco, dezenas deles, muito sutis. De tempos em tempos percebo que formamos círculos entre nós, sentados. Noutros momentos já não sei. As músicas, por vezes são muito duras, noutras macias, moles; quem sabe mais parecem-me serem convexas, trazem frases estranhas em intervalos longos. E perco-me num mar de cheiros agradáveis e sensibilizantes: - Ranin se foi, uniu-se ao Todo. Ranin é vitorioso!! Oso! Oso! Oso! Um eco de acordes voláteis. - Osmalal tentará partir daqui a três sonatas. Todos por Osmalal! Al! Al! Al! Mil montanhas parecem vibrar ao redor da “colônia” com esse cântico e, bem o sei pois quase posso vê-las, cadeias de picos cheios de neve, despenhadeiros, geleiras perdidas. -Chegaremos lá! dizem as vozes. Mas apesar da paz, da transcedência que esses homens e mulheres nos trazem com suas canções, mesmo nesse abrigo o qual podemos chamar de “abençoado”, reconheço ou temo reconhecer que não fazemos parte disso realmente. 96
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Talvez não mereçamos este lugar, ou quem sabe nossas vibrações não alcancem o que os seres elevados (não encontro outra definição para aqueles que cá estão) já atingiram com suas meditações, noutro plano. Deve ser isso, pois não comporta somente questão de crenças estar-se neste lugar; são capacidades parece-me, são mesmo descobertas racionais e específicas, habilidades que uns têm pois desenvolveram-nas, e outros não. Tudo o que sabem essas pessoas tão antigas e transmutadas, sabem-no profundamente, pois o descobriram numa mesma vida, ou em muitas delas... Quanto a nós outros, nossas vibrações foram mudadas. E talvez saiba eu, ou desconfie até de mais: que já fomos os quatro, Alessa, Nicolai, Gregorius e eu, irremediavelmente contaminados pela Terra anterior e por Zion. Percebo realmente o quanto somos pequenos, que não temos poderes especiais como essa gente, que nosso tempo terrestre era aniquilante antes, que a energia âmbar nos tocara aqui e nós somos, também agora, um pouco de cores âmbares consequentemente. Isso faz de nós o que nem sequer sabemos ser? Aberrações estranhas... O que nos dará essa tonalidade âmbar em nossos corpos luminosos? Em que se traduzirá? Em nada talvez; ou quem sabe haja perigo ou corrupção na marca alienígena em nós profundamente colocada. ***** Após ouvir e sentir um milhão de notas, centenas de milhares de ressonâncias e acordes, quando consigo pensar em algo, penso neles todos. Quero dizer, neles, nos inorgânicos. Lembro-me especificamente de Toll. 97
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Ei-lo de repente defronte a mim! Não tenho mais coração, pois minha bomba muscular já terá parado de susto. Glil, Murum e Blier também surgem. Muito vibrantes chegaram, cheios de explosões internas em seus corpos cilíndricos. Não têm face, não têm pernas ou braços, mas são tão vivos e tão conhecidos para nós! Agarram-nos ávidos e sem aviso, de chofre, colando-se aos nossos corpos, quando sentimo-nos percorridos por uma corrente elétrica não demasiadamente forte. Sempre assim. Acharam-nos aos quatro rapidamente, meio dispersos estávamos na alva bruma . Com velocidades incríveis partem levando-nos acoplados a eles, em duplas. Voamos de novo, saímos de Alscor rasgando o muro de névoa, adentramos o deserto amarelado uma vez mais. Novamente velocidade, novamente voo, novamente aquela luz amarelada e estranha, fixa, até que chegamos realmente às dunas, no exato local onde nossa nave aterrisou, vejo que é o mesmo sítio. Como o saberíamos com tanta certeza? Simplesmente o sabemos. Lá está o pequeno monte de areia na qual a nave se transformara. Depois, adiante, estão as silhuetas de Nadine e Reese ainda intocadas no solo, desenhos finos e fatais na areia amarelo clara, como se tivessem acabado de se dissolver agora mesmo. - Não se devem consternar, disse-nos Blier em nossos cérebros. Precisam ser fortes. Devemos recriar sua nave para tirá-los daqui. - Já conseguimos mantê-los em Alscor durante o intervalo ou fragmento temporal suficiente para camuflá-los e também para embaraçar as vibrações suas em nós, de modo que essas se tornaram tão sinuosas, de tal maneira elípticas que não os rastrearão nossos
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irmãos violáceos através de nós; ao menos por enquanto. Mas este mundo não lhes é mais seguro por agora. Refaçamos, pois, a nave! ***** O que querem dizer exatamente com “refazer a nave”? Queria indagar e os outros o fizeram, mas a resposta já a sabíamos como se fosse um cântico ou uma oração, pois a areia daqui é inexorável, tudo absorve e transforma. Também imediatamente soubemos que uma interação orgânica /inorgânica seria necessária. Não tão profunda como as das ilusões e das mimetizações sexuais que tínhamos antes, perigosíssimas para nós agora. Teria de ser uma canalização das energias acumuladas, conseguidas anteriormente a partir daquelas da libido humana juntas à sede ou fome alienígena, quando um tipo (ilusório talvez) de coito acontecia entre nós. E mais, percebíamos que, antes, os inorgânicos nunca teriam feito ou intentado uma coisa assim. Refiro-me a alijar-nos dali, ou ao menos é o que parecia. Só agora nossos parceiros nos libertavam. Pássaros aprisionados éramos nós, que antes nem sequer reclamávamos tal liberdade, mas seríamos agora exilados de Zion ou estávamos prestes a sê-lo. Anteriormente, a vida longe de Zion, a rigor seria apenas algo volátil, breve, cheia de fragilidade, de barreiras, onde afinal, a morte era e sempre fora o único eficiente e voraz caçador . Porém, desde que nascêramos na Terra antes de um acidente científico na nave do tempo, antes de adentrarmos Zion, não seria esse mesmo, a morte, nosso destino final e de todas as outras criaturas do nosso plano terrestre? ***** 99
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O processo de recriação, por outro lado, consiste em colocarmo-nos ao redor do banco de areia e em lembrarmo-nos dos detalhes da nave. Muito mais do que isso até; inclui visualizarmos vivamente todos os itens e minúcias e formatação de cada dispositivo, computador, sonar, arma, tela virtual, comando, aparelho, direcionador, flutuador, sintetizadores, rastreadores, módulos de desintegração e outros, lads cirúrgicos, estoques alimentares, nichos de suspensão para as viagens no tempo, purificadores, roupas especiais, todos os protetores e escudos magnéticos, enfim, absolutamente cada linha, metal, substância, base, forma e cor, recapturando o molde, material e a sintonia de cada objeto existido um dia ali, e depois desmanchado. Cada parte ou canto daquela nave terão de ser recriados. A tática nos remete a modos de proceder e sentir muito diferentes dos de antes. Nossas mentes fazem grande esforço agora, para o que são necessários total abstração e silêncio interior. Os objetos são evocados, mas devem vir a nós, mentalmente retornados como aves que buscam espontaneamente o ninho, e quando vemos um detalhe ou peça de modo muito real e perfeito, ei-la lá que surge diante de nós, lisa, reluzente, material, operante e palpável como o fora quero crer, fabricada desde quando do nosso nível da Terra partimos. Assim, passo a passo, estamos reconstruindo a nave. Nossos parceiros inorgânicos postam-se nos quatro ângulos de uma virtual figura quadrangular ou losangular, que poderia representar os pontos cardeais se houvesse pontos cardeais em Zion, e fremem de tal modo que parecem ferver por dentro de suas formas cilíndricas, como azeite quente. Quando reparo bem, vejo que as
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bolhas que surgem de seus interiores âmbares parecem eclodir no limite de seus corpos. Noto sairem dali, de sua superfície “corporal”, fímbrias tênues, ou claros e suaves filamentos transparentes como se fossem vivas teias de aranha, quase luminosas sim são elas, dirigidas ao banco de areia. Mas não só isso, ao olhar meus companheiros deixei também de vê-los ou aos seus corpos físicos. Noto agora que são eles como grandes ovos maciços, translúcidos, quase claros, não fossem por tons amarelados aqui e acolá. Todos os quatro somos assim. No entanto nossa energia de humanos ovoides, diferentemente da dos inorgânicos, ondula e não explode como as deles, é mais suave e tremulante dentro dos nossos corpos ovais, como se tal energia vital dançasse uma tão antiga rumba em sua existência. Reparo que as formatações e características energéticas opostas, tão diversas (humana e alienígena), mesclam-se ou se podem mesclar, completando-se assim entre outras coisas. Seria incompreensível ao observador comum tal simbiose. Mas conseguimos de verdade criar objetos reais. Neste momento, dá-me a impressão de fato entender que é uma ligação extraordinária a que fazemos, raridade das raridades mas apesar de tudo, natural no universo, e natural porque simplesmente possível. ***** Depois de algum tempo e de procedimentos sequenciais, a nave refeita é tão familiar e sólida, tão nossa como antes, ou muito mais nossa ainda como se a tivéssemos construído nós mesmos, tão reluzente e de grande resistência, recriada agora com nossas próprias mãos; num modo de falar, é claro. 101
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Os parceiros, os companheiros cilíndricos, translúcidos e da cor de mel ainda criaram eles mesmos uma porção de pequenos objetos que acabamos de ver e de início nem nos chamam atenção. São pepitas de ouro aparentemente. Também fizeram surgir certa porção de pedras polidas, vermelhas, amarelas, verdes e azuis, outras incolores e transparentes apenas que são, obviamente, gemas preciosas feitas de minerais os quais podemos até muito bem classificar. No entanto, de imediato argumentamos o mais importante: que se pretendem eles nos levar dali, também não contam com a maior parte da máquina do tempo, o imenso túnel e o emissor de partículas que nunca cá chegaram. Eles riem de nós (seres simples e ignorantes que devemos ser para eles), e Toll responde-nos que certamente podem carregar-nos dali, sozinhos. Poderiam fazê-lo sem nave até reiteram, mas dizem que precisaremos deste compartimento e dos objetos que o compõe também, para onde iremos. - Vocês necessitarão deles, disse-nos Blier, ou aquele que assim chamamos. Pois é mais do que certo que nunca poderão voltar ao tempo donde partiram. Em seu tempo próprio seriam encontrados com mais facilidade pela cepa violenta e violácea. Antes, quando os fisgamos, seria impossível arrastá-los para cá; só o pudemos fazer por causa da sua viagem no tempo como o sabem, mas agora pode ser bem diferente. Ainda explicam, falando aos nossos cérebros, que a escolha do lugar a sermos levados é importante, que a viagem será feita em etapas talvez. Todos estamos muito ansiosos para saber qual será nosso futuro, já que parece que ainda teremos um. Nicolai, nosso antigo a novamente atual líder, tem muitas perguntas a enunciar e os 102
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inorgânicos parecem tratá-lo com respeito familiar, mas ainda quase nada nos respondem conclusivamente. Bem podemos imaginar por quê. Mostrando alguma agitação em seus corpos tubulares, os inorgânicos solicitam-nos entrarmos no recinto criado, o qual nos parece adequado senão perfeito, e ordenam-nos também que nos coloquemos nos nichos de manutenção corpórea, de suspensão da consciência, os quais parecem funcionar normal e lindamente . A última coisa que afinal noto, não sei se vejo isso com meus olhos verdadeiros, materiais ou se apenas mentalmente o percebo, se imagino ou o quê, é a imagem dos corpos energéticos daqueles estranhos seres com os quais convivemos durante séculos e séculos, grudarem-se à nave, como se esquisitas, cilíndricas e rígidas lesmas gigantes fossem, e fazerem-na começar a girar de modo irrefreável e velocíssimo.
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Capítulo 18 O efeito das cápsulas de suspensão e conservação vital há de ser, esperamos, o mesmo que atuou sobre nós há tantos e tantos séculos, quando saímos da unidade de pesquisas espaciais e intergaláticas, envolvidos no projeto Nuova Terrae. Estivéramos nós em busca da tecnologia para o cerne de um androide realmente muito semelhante aos humanos, mas encontráramos aberrantes e inacreditáveis seres. As sensações físicas dos dispositivos de suspensão vital da nave voltaram, ao que parece, a se fazer notar em nosso mundo material ou no plano da Terra de onde somos originários, lá mesmo em nosso planeta azul. É o plano situado no “antigo universo” (um modo de falar), universo que antes acreditávamos ter um nível único, se bem que o cartesianismo já tivesse sido solapado há tempo. Mas será que ainda fôramos mental e viciadamente cartesianos? Saíamos agora de Zion, do espaço novo e esplêndido para o qual fomos arrastados, espaço este com tantas maravilhas e terrores sim, situações excepcionais, perfeitas ou horríveis, feitas por criaturas estranhas. Ali havia prazeres, poderes e ameaças concretas. De qualquer forma, as circunstâncias estranhas nos pareciam, lá, não terem absurdas incongruências em relação ao nosso passado, como se tudo que vivêssemos em Zion fosse um tanto onírico, ou melhor, era como se nossas mentes se tivessem expandido muito, num despertar cósmico. Mas é fato que, se estivéssemos com nossa consciência normal do dia a dia “terreno”, deveriam nos parecer mais anômalas as coisas que vivêramos em Zion. As sensações que tínhamos, tão estapafúrdias foram ou deliciosas, inenarráveis até e depois, brutalmente apavorantes e repulsivas passaram a ser. 104
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***** Funcionaram normalmente sim as cápsulas, por isso a sensação de acordar de anestesia, a mesma que sentira eu há tantas dezenas de décadas mas, bem me recordo agora, essa mesma impressão de ser içada para a luz, vinda de um poço úmido e escuro. Sinto certa dificuldade dolorosa em respirar, porém logo vejo que disso não se trata. Não é uma dificuldade propriamente, é realmente “sentir” o respirar agora, uma coisa quase ofensiva e assustadora. Isso não acontecia em Zion de fato. Doloroso é, pois ao respirarmos, agora o sei, colocamos em nós a morte juntamente com as vibrações da vida. Todos começamos a sair das cápsulas nicho, porém tão logo vemos onde estamos, observamos também que todos os aparelhos da nave, os computadores e leitores funcionam regularmente e assim tudo registram, já informando-nos visual e sonoramente, em formas tridimensionais e com suave voz ou por diagramas e símbolos na tela virtual, a composição do ar, do solo, a existência de água, onde se encontra esta, se sobre ou sob o substrato, e a qual distância, as formas vegetais e animais ao redor. Aliás, isso igualmente o vemos com nossos incrédulos olhos. Uma vastidão ali adiante existe também, mas assaz diferente da de Zion. Aqui há um céu bem conhecido, cheio de nuvens, anunciando chuva. Há ruídos perdidos, não identificáveis de início, ribombares de trovões. A nave, parada num local elevado, faz também descortinar manadas de quadrúpedes em movimentação intensa e bem organizada ao mesmo tempo. Relata o computador de bordo, Maya, serem antílopes o que vemos, ou seja lá que espécie extinta e 105
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ressuscitada essa for. Existem uma porção de outros animais também, elefantes e interessantes criaturas que só conhecíamos em imagens arquivadas. Elas agora nos comovem. Em determinado momento, Maya liga a barreira eletromagnética repelente, para preservar-nos e a si mesma, de grandes manadas ou grupos de mamíferos debandando. Estamos também num ponto de topografia mais alta naquele local que Maya descreve como savanas e relata que há hominídeos primitivos por lá. Sim, pois estamos mesmo em meio ao período neolítico.
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Capítulo 19 Saímos da nave com alguma mas não com muita roupa protetora, pois o computador nos informa tudo, o que muito nos auxilia e tranquiliza. Mas ainda assim isso, para nós, é o novo de novo. Cá se percebe, como seria inevitável , aquele ar terreno, terráqueo se quiserem, telúrico. Aqui se respira, sentem-se as mudanças de temperatura, ouvem-se sons conhecidos ancestralmente por nós. Respiramos sim, e está quente com o sol a pino. Há pássaros, guinchos, cantos de aves e igualmente surge um silêncio diferente às vezes nesse mundo. Isso é ao mesmo tempo bastante inédito para nós, mas familiar embora nostálgico e sobretudo, não sei por que, muito doloroso psicologicamente. Nós quatro olhamos ao redor bebendo sofregamente a paisagem, ponderando, vendo, sentindo tudo como real. Estranhas saudades nos apertam, meus olhos desviam-se para sombras ao redor, para as vozes roucas dos bichos. O ar estremece como se fosse trovejar de novo ou como se houvesse muita eletricidade agora no firmamento. E eis que nossos aliados inorgânicos surgem pairando um pouco acima do chão. De onde vieram? Mostram-se na forma humanoide. Sinto enorme amor por Toll nesse momento, com carente feminilidade ou muito mais, mas há infinita alegria de estar entre companheiros humanos também, e na “nossa Terra”. São sentimentos assaz conflitantes.
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- Há que se confabular, Murum diz, e sua voz é rascante tal couro esticado e com estranho eco. Temos de decidir para onde devemos levá-los, e não pode ser ao seu antigo tempo, nem sequer para nenhum outro onde tenham parentes, conhecidos ou maiores laços, isso é certo. Nós ainda somos seus guardiões por isso precisamos conduzi-los a salvo. Percebe-se aí, neste dizer, um tipo de amor (por que não?) que é raríssimo e privilégio nosso. Sentencioso o que ele disse porém. Definitivo. Quem de nós quatro não pensou abruptamente em retornar a um lugar conhecido no futuro/passado? Eu, em abraçar minha mãe morta que, então, encontraria viva. Sonhara sim em rever meu pai e minha tia, em tocar Zoe e Yohansen, antigos amigos que ali no tempo onde estamos ainda demorarão muito a existir...Muito irônico e desconcertante esse pensamento. Nicolai há de ter pensado em salvar a família, Gregorius em ajudar um companheiro qualquer que morrera numa briga de gangues, Alessa em enfrentar com armas modernas os que a torturaram, em puní-los ou destruí-los. Nossa humanidade nos parecia voltar de fato, de um lado, mas não tanto assim talvez, não de verdade. São sombras que por nós passam, ondas de lembranças e saudades, desejos, alegrias e dores quem sabe, comportas emocionais recém-abertas, mas Zion brilha para nós ainda, e mais, lampeja sobre nós qual estrela clara/escura, misterioso lugar, pacífico abrigo durante séculos e, recentemente, infernal num mesmo átimo. Mundo também nosso que fora Zion, por mais tempo que esse até; aliás por muito mais “tempo”. Somos também filhos dele agora. E a prova disso é que, ao olharmos os bandos de animais, podemos 108
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geralmente ver seus corpos de luzes, o brilho que têm, e também os das árvores. Conseguimos perceber algum bicho doente num bando, mesmo à distância, ou sabermos para que lado irão os animais se dirigir. ***** Estamos cansados até quem sabe, mas só um pouco. Ali ficamos extáticos por horas para entendermos bem as novas informações sensoriais que nos vinham, até que Gregorius falou, exclamando: - Está anoitecendo! Sua voz soou grave, dando arrepios. Não era a voz, e sim o que comunicava: a passagem do tempo. Ele, o tempo, finalmente se movia, e em ciclos. Tal coisa parece-me muitíssimo desconfortável agora. Lá, na pré-história, surgia noite após o dia. E havia, como ainda, neste momento, há no céu, a lua, estrelas, luzeiros. Não podendo mais resistir, comecei a correr em grandes círculos como se fosse fugir, até ficar exausta. Quando anoiteceu mesmo, uma ourivesaria de astros no céu surgiu. O computador de bordo explicava tudo, constelações, posições de galáxias, velocidade do vento. Dizia-nos até quais estrelas se viam no céu e que já lá não estariam, pela época da criação do computador da nave. Melhor que ele se calasse um pouco. Nicolai ordenou: - Maya, silêncio! Gritou-lhe ele, assim como se Maya fosse uma cadela insistente e Nicolai a repreendesse. Então a descrição parou. 109
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Os aliados tinham se afastado também. Postaram-se a várias dezenas de metros de nós, entre as árvores. Sombras enormes eram eles, pareciam árvores também e daquelas se aproximavam; podíamos bem notá-lo. Davam mesmo a impressão de descansarem sobre elas. Conversavam com as plantas! Então percebia isso claramente. Lembrei-me de que eram todos criaturas fixas num substrato, talvez se entendessem então. Plantas e alienígenas sussurravam baixinho seus segredos. Noite era, mas nem pensarmos em dormir. Ali era a Terra nossa! Não exatamente como a conhecêramos, mas muito mais atraente e luxuriante, primitiva, limpa, nova, um local maravilhoso e específico, jovem, inteiro, sadio. Era uma teia de energia prendendo todas as criaturas, fenômenos e realidades numa liga que dá forma às coisas, molda as regras e as leis naturais . Tal como devia ser em Zion, onde outras regras havia e outra natureza fora destilada, outra liga, outra função ativa no todo incompreensível da criação. Ali, uma história diversa da de Zion, e muito menos perigosa para nós. Nouva Terrae, a mais nova e fresca de todas. Ei-la! Eu a via, tocava, percebia e podia sentir seu poder, seus olores.
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Terceira parte: UM TEMPO QUE CHEIRA A ÓLEO E A CARVÃO
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Capítulo 20 Eis que Gregorius e eu nos vemos nesta cidade enevoada e fria, onde os lampiões fazem nossas sombras bastante alongadas tomando as ruas sem ninguém. Há um mau cheiro de peixes podres neste lugar, mas ainda assim o ar parece-me muitíssimo puro, comparando-se com o da Terra onde nascêramos, mas muito pestilento se comparado a Zion ou à atmosfera da Terra primitiva, e apresenta-se com grande umidade. Certamente nossos trajes protetores impedem variações inadequadas de temperaturas nas superfícies de nossas peles, em nossos corpos portanto, o que é muito desejável, se bem que me sinta muito equilibrada, resiliente a essas nuances climáticas, talvez mesmo até sem a roupa especial parece-me. No entanto as vestimentas que envergamos são por demais esdrúxulas, visualmente falando-se, neste local, chocantes, e não seria conveniente que ninguém nelas nos notasse. Daí caminharmos um pouco e nos escondermos neste cais fedorento. Daí estarmos aguardando alguém que só pode mesmo ser Toll, ou qualquer um dos outros inorgânicos que nesta hora absurda devem socorrer-nos com algo que se possa vestir e parecer adequado aqui. Afinal, se eles podem mudar de vestimentas e de aparências, de forma, quase como se fosse mágica, de grandes talos elétricos que só nós víamos, passarem a ser os humanoides mais aberrantes, graças à simbiose elaborada em Zion, e os quais agora todos os humanos conseguiriam ver, devem ser ainda eles a nos ajudar nesta hora. Sentimos bem pouco cansaço ou qualquer outra coisa, conforme as horas passam e as sombras tremulam, mas o correr do tempo, percebendo-o por algo impalpável ao redor, pois o nevoeiro 112
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espesso nos impede a visão objetiva, traz muito mal-estar para nós dois. Esse movimento inexorável e cíclico afeta-nos mesmo, desfavoravelmente ao que parece, mas não de modo grave quero crer. Os cheiros locais são repugnantes mas atraentes por outro lado. Porém eis que volta Toll no seu porte nobre, trazendo roupas elegantes para nós, sei lá como conseguidas, nem quero perguntar. Ele mesmo apresenta-se impecável, com indumentária para mim bem estranha mas que certamente corresponde ao uso local e da época, com chapéu e casaco extremamente finos que nada combinam com esse cais. A seu lado caminha um grande cão cinzento de coleira prateada, boca enorme, feroz, e pelo lustrosíssimo. Há um avantajado corvo sobrevoando ao redor e uma mulher velha, alta, forte e um tanto curvada, mas vestida com roupas boas e sóbrias, andando qual uma criada a alguns passos atrás dele. Não é preciso pensarmos para sabermos com certeza que a velha é Glil, o cão Murum e a ave, Blier. Vestimos, Gregorius e eu, por cima dos trajes protetores, as roupas que se nos apresenta Toll. Tenho alguma dificuldade tola com o amplo vestido, e Gregorius parece-me muito forte com calças e jaqueta, porém a roupa dele, conquanto formal e simples, de bons tecidos, não se equipara à minha em qualidade, percebo esse detalhe no momento. Também revestimos e cobrimos com um pano grosso e escuro a caixa magnética e leve que carregamos. Eis nosso estranho grupo. Uma mulher jovem muito bem vestida com roupas bem esquisitas a meu ver, e um homem esguio, imponente, de aspecto final , fino e poderoso, andam pelas ruas frias e semidesertas, acompanhados do cão assustador mas silencioso, de um pássaro que mais parece ser uma sombra, de uma velha forte que 113
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se assemelha a uma criada e de um outro homem sereno, muito robusto, quase mulato, o qual também parece ser criado e guardacostas ao mesmo tempo. Este último vai arrastando atrás de si, com muita facilidade, um pacote de médio volume. Esse mesmo pessoal avança muito silente pelo caminho, buscado um lugar para pousar. ***** Caminhamos não por grande tempo sozinhos, pois logo aparecem silhuetas de pessoas. Sinto-lhes o cheiro, as intenções e o olhar antes de vê-las. Surgem elas depois, dentre a neblina. Há vozes gritantes de mulheres vulgares cheirando mal; o ar rescende a uísque e a corpos humanos. Vemos homens bêbados sozinhos ou em grupos, alguns casais enlaçados, barulhentos. A iluminação torna-se um pouco menos fraca agora. Os que nos veem ficam quietos porém e de nós, prudente e automaticamente, se afastam. Inúmeros cães no caminho se encolhem ao enxergarem o cinzento Murum com sua coleira reluzente e seus brancos dentes poderosos, mesmo que ele nem ameace diretamente ninguém; nem precisa fazê-lo. Um ou outro animal late, mas nenhum se atreve a uma aproximação. Vamos andando assim por vários quilômetros, até chegarmos a regiões de casas bonitas, grandes, altas, que se percebem mesmo na bruma. São residências essas com mansardas iluminadas e vidros coloridos. Nota-se muita vida também nas casas; entretanto as ruas são lamacentas. Nas vias há poucos transeuntes a esta hora. Falam inglês é certo, mas com sotaque e expressões muito diversas das que conhecemos nós dois, Gregorius e eu. No entanto estou certa de que, em pouco tempo, aprenderemos tudo. ***** 114
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Continuamos a andar até acharmos uma hospedaria; não se trata de estalagem qualquer, mas a melhor hospedaria que pudemos encontrar. Não carecemos tanto assim de abrigo, ao que noto. Mas somos humanos agora certamente, ao menos dois de nós o somos. Precisaremos comer, dormir, urinar e tudo o mais, mas ainda assim nada é como antes, desconfio. Já estamos há muitas horas neste tempo e ainda não sentimos cansaço ou fome consideráveis. Ainda assim temos de nos alojar. Encontramos finalmente este local adequado, onde entramos todos os quatro, mais o cão e a ave; ou seja, Murum e Blier. Trata-se de um salão amplo reluzente pelo fogo e com mobília cuidada de madeira sólida, escura. O dono da hospedaria, um homem até não mal vestido, assusta-se um tanto conosco , mas parece não ter coragem de objetar quanto à presença dos dois “animais”. Toll avança polidamente até ele e num linguajar bastante fluente, com perfeito sotaque local, explica-se falando muito baixo. Diz ser filho de uma família muito rica de comerciantes ingleses de chá, donos de muitas terras e plantações na Índia, onde vivíamos até há pouco tempo. Apresenta-me como sua irmã, e diz que escapáramos de uma revolta das centenas de empregados hindus, os quais pertenciam a certa seita dos adoradores de Kali e que tentaram nos matar. Nossos pais não escaparam disse ele, em tom grave e comovido, mas salvara a mim, esta irmã que ainda, traumatizada, mal podia falar, mais os dois criados pessoais: Gregorius e a velha grandalhona, na verdade Glil. Os animais de estimação também sobreviveram relatou o inorgânico ao proprietário do local.
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Daí estarmos ali ainda sem lar, buscando, mas com cuidado e discretamente, nossos parentes distantes que tinham, é verdade, títulos de nobreza. Se Mr. Finch acredita na história não sei realmente. Ou antes, vi sua incerteza, mas o porte de Toll é tão majestoso, sua voz fora de tal forma firme e sedutora, nossas vestimentas decididamente adequadas, que o gesto final feito pelo inorgânico ao abrir a mão, mão esta que, por sinal, não aparenta mais a anormalidade da inserção dos dedos, e ao deixar então rolar, com simplicidade, da palma direita aberta um belíssimo, reluzente rubi, arrebatou-o. Toll solicitou quatro dos seus melhores e mais amplos quartos. ***** Todo o conjunto que viu o hospedeiro e especialmente a pedra preciosa, foram suficientes para abrandar quaisquer ressalvas que o homem rubicundo tivesse nutrido sobre nós, percebi. Notei que este cheirava levemente à acetona e conclui que era doente. Mais, que teria alguma doença metabólica. Como o soube eu de imediato, não me fica claro. Toll ainda continuando a conversar bem cortesmente e de maneira formal, mas baixando a voz como tomado por certo temor, confidenciou-lhe que viajáramos sempre à noite, por muitas e muitas noites aliás, e em segredo através de tantas estradas alternativas, em arriscados barcos de proprietários particulares, pois desconfiava que um líder da seita ainda nos perseguiria, mesmo estando nós tão distantes da Índia... Pediu segredo ao dono da estalagem, e o mesmo aquiesceu, menos por temor ou solidariedade, e mais por submissão às nossas aparências e posses. ***** 116
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Se a história era falsa e visava mentirosamente explicar nossa origem, ou justificar a posição que ainda pensávamos que viríamos a ter nesta sociedade, não era totalmente irreal porque, na verdade, fugíramos e ainda fugíamos da cepa aberrante de Zion, tentando não deixar rastros. Uma vez no quarto, com grande lareira e sofás onde tolamente temi, por um átimo, haver insetos, Gregorius e eu conversávamos sobre o que nos acontecera no período holoceno ainda, no neolítico, quando lá estivemos com Nicolai e Alessa, mas sabíamos que não deveríamos sequer pensar muito neles, dali por diante. Sabíamos também que escolhêramos aqui estar e continuarmos nossa missão. Os aliados, por sua vez, obedeceram-nos e respeitaram nossa escolha, mas seriam, agora, nossos protetores e orientadores. Estamos no nosso plano ademais, e a nós será dado o agir, o decidir. Precisamos recuperar nossa autonomia de imediato. Aqui, temos nós de ordenar. ***** Os inorgânicos deslizavam ao longo das paredes como sombras vivas, mas a ave crocitou por três vezes, o que deveria causar arrepios em quem a ouvisse, pelos arredores. Gregorius e eu falamos, um tanto tomados de emoção. Só por hoje conversaremos tanto sobre Alessa e Nicolai. Pensaremos hoje totalmente neles durante a noite toda, e não muito mais. Melhor assim. Na lareira o rutilante fogo é o mesmo que conhecêramos antes. A lenha cheira a macieiras. É o Ano Domini de 1702. Estamos em Londres.
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Capítulo 21 A humanidade quase bocejava ainda. Por ali sabíamos haver apenas grupos esparsos, tribos de Homo sapiens. Tudo era muito diferente, muito transbordante de Terra, de alvoreceres, de inícios. Ficamos uns dias por ali Gregorius e eu, e poderíamos ter ficado por toda a duração de nossas vidas juntos com Nicolai e Alessa, naquelas terras ermas e férteis. Tínhamos proteção, alimento, energia. Enfim, tudo do que necessitávamos. Nicolai e Alessa, eles mesmos certamente queriam lá ficar. Ademais, naquele lugar estaríamos tão distantes dos inorgânicos arroxeados! As vibrações que lhes chegariam, caso lhes cheguem algumas lá no mundo em que vivem, ondas dos grupamentos humanos daquela época primitiva, não seriam tantas nem tão atraentes. Aliás, tanto Glil quanto Blier afirmavam que ali seria realmente o local mais seguro para Alessa, pois ela era a única humana entre nós que desenvolvera por si mesma a habilidade do contato com os inorgânicos, na época em que vivera no plano convencional. Seria, portanto, mais fácil de ser carregada, arrastada eventualmente para Zion. Mas estávamos muito distantes do seu tempo, em épocas ainda primitivas, onde provavelmente indivíduos da cepa mutante não a buscariam. Porém eles, os inorgânicos, teriam de partir, explicaramnos. Se ali permanecessem haveria o risco de alertarem a cepa mutante, emitindo involuntariamente sinais que desconhecemos. Apesar de que esta cepa aberrante, a tal altura, deveria estar mais lenta, limitada em forças e capacidades. Mas os aliados não queriam arriscar. Alessa era especial; muito fácil para ela transpor as barreiras entre os mundos, talvez até involuntariamente. 118
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Alessa e Nicolai decidiram-se por ficar então. Tinham se apaixonado um pelo outro, e aquilo que perderam um dia nesse coquetel de anos, de milênios e viagens, a família que sempre desejavam ter, se lhes acenava. Ali, no neolítico, seriam deuses possivelmente. Talvez, num futuro próximo de então, seriam desenhados em cavernas por homens primitivos, esculpidos em pedras, cantados e contados junto a fogueiras. Poderiam eles ensinar coisas a alguns membros das tribos nômades; até ter filhos, e os teriam certamente. Seus filhos, é possível, misturar-se-iam aos homens e às mulheres daquele tempo... Isso pensava eu, deitada num nicho da nave, ouvindo a descrição monótona, mas necessária, de Maya sobre a região selvagem. Também saímos com vestimentas protetoras e armados.Vimos entre outras maravilhas, um rio muito caudaloso e barulhento e largas planícies verdes. Notamos insetos estranhos que faziam a alegria de Nicolai, bem como estupendos mamíferos, manadas de elefantes ao largo, girafas e gnus; também répteis, como já relatei. Os sons e os grandes barulhos deixavam-nos mesmerizados. Mas o declinar do dia, a sequência da noite, os alvoreceres, esse passar do tempo que Zion mantivera em suspenso desconcertava-me extremamente, assim como a todos. Quando anoitecia quase não conseguia suportar, pois enorme angústia me atingia. Tinha imensas saudades de um lar perdido, tão distante, do mundo ideal de Zion... Também sentia certas saudades de minha vida terrena anterior, ainda que num local moribundo. E essa ideia trazia-me de volta os ideais primevos de nossa antiga missão. 119
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Tudo nos surpreendera, tudo mudara, mas a sequência dos acontecimentos no nosso plano continuaria precisando de uma mudança de rumo ou a humanidade não teria saída, como já não o tivera. É verdade que a vida em Zion nos transformara; nem nós podíamos saber o quanto. Mas aquele paraíso na Terra tornara-se inacessível para nós afinal agora, ou pior, tornara-se infernal. E a visão da missão anterior ressurgia como a única coisa digna, humana e realmente mandatória para mim. Nouva Terrae, mais uma vez. ***** Os aliados mantinham-se afastados, geralmente como enormes pássaros enroscados às árvores. Eventualmente pareciam-se com sombras alongadas, projetando-se imensas na noite. Nenhum animal, fosse ave, inseto ou mamífero se colocava próximo a eles. As árvores onde se encarapitavam envolviam-se numa cúpula de silêncio e magia. Não interferiam eles em nada, mas já nos haviam comunicado que teriam de partir, pois ficarem ali, na Terra primitiva, seria colocarem-nos em risco. E pela primeira vez eu percebera com toda a clareza a grandeza e o mistério do que nos acontecera. Juntamo-nos de forma inédita a seres estranhos, intraduzíveis, que depois, ao invés de nos abandonarem a uma tortura eterna, voltaram-se contra os interesses de seus próprios semelhantes por assim dizer, tornando-se exilados de seu próprio mundo, sonâmbulos trôpegos num outro nível, sem voltarem nunca totalmente a seu plano talvez, vivendo aqui como estranhos fantasmas ou como sopros de vento na madrugada. Ocorreu-me, de chofre que isso podia talvez ser algo similar ao amor, a um verdadeiro e imenso bemquerer. 120
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Então, penso que foi também por eles, para não deixarmos aqueles que não nos largaram, que Gregorius e eu decidimos seguir em frente com um plano sobre o qual falávamos os quatro há vários dias, sem parar. Foi assim que, afinal, nos despedimos calorosamente de Alessa e de Nicolai, os quais nunca mais veremos, calculo. Saímos, deixando com eles a nave e praticamente todo o equipamento, a não ser duas pistolas desintegradoras, um manipulador de medicamentos, pequeno laboratório portátil, muitos princípios ativos de drogas curativas, pedras preciosas lapidadas, pequenas peças de ouro e um lad cirúrgico que, certamente nos será útil. Mais, muitas pequenas sementes que Nicolai fizera questão de que materializássemos quando saíramos de Zion, por gosto, curiosidade científica e diletantismo, mas que agora teriam uso pra mim e Gregorius. Na verdade Nicolai foi bastante desprendido, dando-nos todas elas; não via motivos para modificar os ecossistemas locais introduzindo tais variedades mais exóticas, alienígenas aliás. - Por acaso poderão os inorgânicos nos rastrear através dessas sementes ou plantas, no nosso plano? Perguntara ele antes, ainda em Zion, compreensivelmente temeroso. - Não creio, respondeu Toll, porque tais sementes por nós criadas serão dissolvidas junto às emanações dos vegetais de seu próprio tempo. São plantas de qualquer forma, muito diferentes das vossas, mas plantas assim mesmo. Não é a consciência vibratória delas que nossos irmãos alterados tão ansiosamente buscam. Tudo isso que portamos para próxima viagem, por outro lado, coube numa única embalagem do tamanho e largura de uma pessoa adulta e pequena. 121
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Mais uma vez nossos aliados se acercaram de nós, rodeandonos. Uma vez mais saímos do chão e rodopiando como se furacões nos transportassem, voamos durante muito tempo, deslocando-nos em grande velocidade e numa trajetória que me pareceu elíptica, até Londres.
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Capítulo 22 Em Londres, demorou pouco tempo para que arranjássemos uma propriedade nos arredores da cidade, mas ainda perto desta. Local com um jardim de tamanho suficiente para estufas visíveis e outras discretas, ocultas, um laboratório e pomar. Casa confortável, até bonita é verdade, passamos a habitar. Era muito arrumada, razoavelmente grande, cuidada, e quase luxuosa. Embora tenhamos feito, Toll e eu, uma decoração clara, florida e luminosa, cheia de objetos de vidro que refletiam cores e que deixavam as luzes das velas com belas nuances e tons, conquanto os cômodos fossem repletos de cortinados diáfanos e de outras cortinas floridas feitas de bons tecidos, e tenhamos colocado candelabros, pequenas estátuas interessantes e plantas no interior da residência, as pessoas pareciam não gostar dela. Portanto quase houve dificuldade em arrumarmos quatro criados, que considerávamos necessários, até para mantermos as corretas aparências. Um deles era o cocheiro, apelidado de Jack. Esse homem pequeno, de tez clara e voz rouca era um dos poucos que gostaram do corvo e não temiam o cão, os quais estavam sempre andando pela casa, vigiando-a, ou voando pelos aposentos no caso de Blier. Mas Jack vivia a nos dizer que aqueles animais eram muito diferentes dos que conhecia. - São animais que vieram da Índia, enfatizava Gregorius, à guisa de explicação. Os outros criados eram uma cozinheira, uma lavadeira e uma arrumadeira. Heather, Agnes e Mary. Costumavam olhar pelos 123
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cantos com frequência, e mesmo durante o dia desconfiavam das sombras das árvores. Assustavam-se quando qualquer um de nós entrava subitamente num recinto onde estivessem. Diziam que não fazíamos barulho algum, que não nos escutavam sequer andar. Nunca reparei nisso. Mas concluo que, de fato, não gostavam de nós nem apreciavam ali trabalhar; no entanto o faziam, pois disso necessitavam e, conosco, ganhavam bem. Estranhavam muitas outras coisas objetivas também. Uma delas era meu costume de, após ter mandado construir uma banheira grande de madeira no andar térreo, num cômodo reservado e cheio de vidros azuis, tomar longos banhos de água quente. Eu ainda amava muito a água; até os dias de hoje amo-a. As empregadas até podiam tolerar isso, as imersões, pois nossa criada especial, a “velha e forte” Glil, já lhes havia explicado que eram parte de um tratamento especial os banhos, os quais sábios orientais e médicos hindus prescreviam para quem sofre traumas graves, assim como sofrera eu com a invasão da fazenda pelos fanáticos adoradores de Kali. - Pobre da nossa milady! dizia. Ter visto a morte dos pais e de vários outros servos ingleses nas mãos de pessoas tão bárbaras, mudaram-na muito. Escapamos nós apenas por milagre e intervenção direta de Deus, continuava, numa voz cava. Agnes e Mary mantinham os olhos aterrorizados fixos em Glil enquanto ela lhes contava, com detalhes, como tudo acontecera: a inventada invasão da fazenda de chá, a revolta dos trabalhadores barbudos, com turbantes, seus costumes de assassinatos rituais, a fuga desesperada do que restara da família através de matas cheias de macacos agressivos e de predadores ferozes, arrastando consigo 124
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os poucos mas preciosos pertences que puderam levar, os dois criados e os animais de estimação. Foi num momento desses que percebi que os inorgânicos tinham realmente aprendido a mentir. Mentiam ou metaforizavam, não sei. Porém isso não lhes seria possível antigamente. Teriam eles também mudado? - Nós, Gregorius e eu, lhes devemos a vida! Emendava Glil, com olhos lacrimosos e voz dura. E aí, tinha eu, de quando em vez, a impressão de que Glil realmente já não mentia, que se remetia a Zion e à simbiose que se instalara entre nós naquele enorme e fixo tempo, ao nosso paraíso e à fuga sui generis daquele plano alienígena. No mais, Gregorius, para voltar a falar de hábitos domésticos e da vida comum, também tomava banhos diários de água fria, o que parecia igualmente indecente às serviçais. Mas ele trabalhava como jardineiro, pessoa de confiança do altivo e fino patrão e era o encarregado geral de manutenção da propriedade; tinham elas de calar as ansiosas bocas. Ele também teria grande poder de cativar, por si mesmo, as mulheres, se as vibrações de Zion não estivessem tão impregnadas nele. Então, elas o desejavam e o temiam. Também deixava-se ficar ele, durante muitas horas, no amplo galpão externo, o qual usava para experimentos diversos, invenção de maquinarias simples usando energia eólica, pensando sempre na utilização de outras energias renováveis e nas questões sanitárias que, como se pode imaginar, eram prementes ali. Em pouco tempo construiu na casa, cômodos que eram banheiros, com fossas verdes e tubulações interessantes. Áreas 125
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assim também para uso dos criados, ou das criadas ao menos, porque Jack preferia defecar e urinar ao redor dos muros da casa. Gregorius o proibira de fazer tais coisas nos jardins, mas Jack não era obediente. Porém todo esse comentário também me remete às plantas, afinal. Havia três grandes estufas. Os vegetais, árvores e mudas germinadas a partir das sementes que trouxéramos, cresciam muito. Eram nosso grande trunfo. Tínhamos um propósito definido e devíamos estar prontos para realizá-lo. ***** Eu, por outro lado, mulher jovem, solteira e passando sim da idade de casar, mostrava-me discreta o quanto podia para a sociedade local. Estranha sempre, pois fazia-me chegada a intelectualidades, ciências e a leituras dos clássicos; tal papel não me parecia difícil de representar. Mas assim mesmo, certamente despertava olhares de homens maduros e até de belos jovens, quando eventualmente era vista em público. Meu irmão Toll usualmente acompanhava-me em certas atividades. E o mais interessante é que ninguém jamais duvidou de que fôssemos parentes de sangue. Comentavam que éramos bem parecidos, muito semelhantes mesmo de alguma forma inexplicável e indefinida. Uns falavam dos nossos olhos ou das bocas, outros dos sorrisos, e outros ainda, dos modos de caminharmos, e alguns também mencionavam os trejeitos. Encontravam as pessoas, em nós dois, dezenas de semelhanças. Era eu também, publicamente, a idealista, a caridosa curadora dos muitos doentes dos arredores, trabalhando na igreja protestante, 126
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embora não descurasse das certas mas parcas atividades sociais já mencionadas, como alguns passeios em jardins públicos, ofícios religiosos e poucos festejos da cidade, para não parecer por demais apartada da sociedade local. As mulheres amavam Toll, mas apenas superficialmente, ou de modo interesseiro, pois, no fundo, havia grande temor, incompreensível por assim dizer, em relação a ele. Ele as evitava naturalmente, com toda a delicadeza que podia. Definia-se como um celibatário voltado às aspirações filosóficas, teológicas, e a estudos variados. A energia humana inclusive, aqui já não podia ser usada pelos inorgânicos, ou melhor, não podia ser captada nem armazenada, a não ser aquela que tinham acumulado nas interações conosco, em Zion. A troca energética só se operava no plano deles. Não era possível ser feita em nosso plano, e os inorgânicos não sendo nada humanos, apenas mimetizados na forma de pessoas, não se interessavam por erotismos. Assim, meu irmão Toll impressionava a muitos e era respeitado mas era, igualmente, uma incógnita. Não deixava de ser admirado à distância, mas somente se misturava à sociedade local tanto quanto um inorgânico podia se misturar... No entanto, ainda assim formava seguidores. Publicava artigos sobre filósofos, poetas, sobre religiões exóticas e teorias sobre os destinos das almas dos mortos, além de textos explicando as propriedades curativas do chá, desconcertantemente. Todos esses trabalhos eram por mim escritos, por ele assinados e faziam sucesso na época.
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Conseguiu Toll realmente alguns amigos influentes na Câmara dos Lordes, que apareciam para jantar eventualmente, mas todos, a despeito de a casa reluzir, jamais pareciam sentir-se totalmente confortáveis conosco. Só o cocheiro Jack parecia não nos temer. ***** Meu contato tão constante com Gregorius, inevitável é certo, tampouco era conveniente e não ficava bem. Por isso, um dia, Toll e Glil encenaram um diálogo para que a arrumadeira os ouvisse, fingindo ser o mesmo secreto, sigiloso. - Afinal, disse Toll em voz grave, por mais inconveniente que eu mesmo o considere, não se pode negar ou condenar minha irmã quanto a seu amor pelos pobres, nem separá-la de Greg, pois foram criados juntos desde crianças. Queiramos ou não, Mrs. Glil, e a senhora bem o sabe, Mr. Gregorius é nosso irmão; um bastardo infelizmente. Falou em voz baixa mas não tanto assim, parecendo meio sufocado e corado. Mas é nosso irmão! completou. Falava em tom, no mais, compungido. - Nosso pai o amava; amava-o mais do que conviria até, como a senhora é testemunha perante Deus. Criou-se, assim, o menino perto de nós. Ante tal discurso, a criada de confiança, a idosa e muito forte Mrs. Glil, baixou os olhos silentes, cheios de lágrimas e acenou afirmativamente com a cabeça. Isso bastou para que a treta caísse como luva, para que a criadagem tivesse, afinal, acreditado desvendar mais este grande segredo de família; foi o suficiente para que a história se espalhasse. Enfim os empregados já podiam compreender que eu passasse horas olhando as estufas de plantas, os projetos de construções e os 128
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apetrechos estranhos que fabricava meu suposto meio irmão bastardo, o jardineiro e encarregado geral, Gregorius. As saídas noturnas, por outro lado, seriam, para mim, mais difíceis de esconder e impossíveis de justificar. À noite, para atenuar minha ojeriza pelo passar do tempo, usava roupas masculinas simples e, muito quieta, no meu melhor silêncio das altas horas, saia a vagar pela cidade na fria neblina, na neve ou na chuva miúda. Muitas vezes Glil subia a meu quarto após a ceia, para “ajudar-me a despir” ou alegando que eu me achava indisposta, visando dar-me, assim, cobertura às escapadas. Esgueirava-me eu então pelos cantos, após sair da casa, ouvia as pessoas em suas moradas, prestava-lhes atenção na alegria e no sofrimento, andava pelos campos molhados até quase a alvorada, olhava os céus escuros, pisava a neve, corria célere pelos becos. Certa vez distraí-me olhando uma coruja branca e mal vi que um homem se aproximava de mim, num canto de certa viela sem saída. Era ele magro, sujo e tinha um hálito bastante ruim, percebi-o a certa distância, mas o aspecto não era pior que suas intenções. Trazia uma faca brilhando na mão coberta por uma velha e encardida luva que lhe deixava de fora os dedos grosseiros, calosos e imundos. Ao vê-lo, automaticamente saltei, agarrando-me aos tijolos da parede defronte, num reflexo medular. Fui, com facilidade, escalando o muro vertical até o telhado anguloso adornado com várias chaminés fumarentas. De cima, ainda notei sua face assustada luzindo na noite, a cara temerosa como se tivesse visto um demônio. Creio mesmo que acabou por vê-lo, pois saltei- lhe diante dos olhos mais à frente, chutando-lhe as pernas, ouvindo-as quebrarem-se, ao me evadir do local. Ele gritou horrivelmente e desmaiou creio. Ficou lá amontoado no chão. 129
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Achei, depois, bastante interessante correr pelos telhados, e o fiz até o amanhecer. Alguns sótãos mostravam pessoas estudando, fazendo anotações ou lendo à luz bamboleante de velas, criados dormindo, senhoras bordando, crianças encolhidas ou aconchegadas às mães, outras solitárias chorando, e várias atividades humanas. Era um mundo quase jovem. Para mim, aquele local úmido e frio poderia conter a semente de um lugar realmente feliz, no futuro. ***** O futuro que buscávamos, o qual burilávamos, criávamos, esculpíamos, o bom futuro para o mundo obrigava-nos a termos planos claros. Desta forma e com tal finalidade, muitas e muitas mudas foram feitas em nossas estufas e bom número de empregados foram contratados para plantá-las em tantas partes da cidade, nos arredores, nos jardins centrais e pelos campos. Produzimos centenas de quilos de sementes em alguns anos. Essas eram atiradas por todo lado. Isso, a disseminação das plantas de Zion, que fariam uma revolução local por si mesmas era uma etapa essencial e preciosa, mas o projeto incluía outros trabalhos também. Havia um ponto importante, crucial, que exigiria de nós todo o convencimento que pudéssemos ter sobre as opiniões de uma certa pessoa, de um sujeito específico. E se convencimento não bastasse, teríamos de matá-lo e de fazê-lo logo, antes de que este homem especial comentasse seu invento com qualquer outro, assim Nicolai muito bem nos instruíra. Tratava-se, a pessoa em questão, de um simples ferreiro, Thomas Newcomen , o homem que já inventara ou inventaria ainda inicialmente a máquina a vapor, a qual viria a ser aperfeiçoada por outros. Ou não, se não deixássemos. E não 130
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deixaríamos; pois isso bem o sabemos, daria base à revolução industrial que mudaria o mundo e levaria a natureza ao caos que, séculos depois, conhecêramos e o qual nos competia evitar. Assim, o projeto Nuova Terrae, de modo diferente do que se planejou no início, mas fiel às raízes, decolava plenamente.
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Capítulo 23 Thomas Newcomen não era simplesmente um artesão trabalhador, apesar de sua profissão banal. Mas era um ferreiro, então seria fácil encontrá-lo na rua das ferrarias, pensamos Gregorius e eu, mas havia, logo descobrimos, dois homens com o mesmo nome. Quem saíra à cata dele fora, naturalmente, Gregorius. O primeiro suspeito, T. N., o qual meu companheiro encontrou, era um tipo taciturno, de olhos escuros que tossia sem parar e que lhe pareceu tuberculoso, embora a força física com que se empenhava no ofício contradissesse doença avançada . Gregorius não era tão bom quanto eu para perceber o que as pessoas escondiam, fosse física ou psicologicamente, mas era perfeito na criação, consertos e manipulação dos objetos. Precisando identificar o homem com certeza, embora até já soubesse ser aquele o Thomas errado, Gregorius entabulou conversa e apresentou-se como representante de seu patrão, homem excêntrico, que necessitava de muitas rodas para grande número de charretes de corridas, pois que aquele, o patrão, pensava em trazer este esporte para os arredores de Londres no próximo verão. O homem não lhe pareceu nem inventivo, nem com iniciativa ou ambição, nem tampouco interessado em trabalhar com rapidez. Tossia constantemente ao falar com Gregorius e escarrava. Sei disso porque Greg contou-me sobre o encontro, à luz baça de nosso jardim, numa noite nevoenta. Estávamos ambos tendo essa conversa nos galhos de um plátano e Blier era uma sombra escura, como grandes asas negras sobre o telhado da casa. A pouca distância 132
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podia-se ver Toll na forma de cilindro entre as árvores. Os criados tinham sido dispensados por ser um feriado especial e isso permitia que fôssemos, às vezes, simplesmente nós mesmos... - Não há de ser aquele nosso homem, Angeline, disse-me Gregorius. Amanhã procurarei o segundo, que hoje não se encontrava na oficina, pois saíra a fazer algum trabalho de urgência para um parente. ***** E assim sucedeu. Gregorius encontrou o outro ferreiro, um homem forte, hábil, inteligente e direto, e encomendou-lhe as tantas rodas de charretes, bem como novas ferragens e gradis para os jardins da casa. O pagamento seria régio. Greg deu-lhe um adiantamento, mas teria o ferreiro de ir pessoalmente conversar com seu patrão, um fino cavalheiro que vivera durante muitos anos na Índia, na qualidade de proprietário de extensa plantação de chá, mas que, desafortunadamente, tivera de abandonar suas terras e vir-se embora; Gregorius não podia dizer qual o motivo disso. A ideia das corridas de charretes seria porque o gentilhomem era aficionado a este ousado esporte. Gregorius explicava tudo, desta vez, a um calado e atencioso Thomas, que franzia a testa e ponderava, movendo no ar seus fortes e grandes dedos sujos, imaginando os desenhos dos objetos a serem confeccionados. E também a intenção, continuava Greg, era a de distrair sua irmã ainda jovem mas solitária e arredia, que se recusava a casar ou a escolher um pretendente dentre os que se apresentavam, falou Gregorius ao homem, sendo assim propositadamente um pouco indiscreto.
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Thomas Newcomen aceitou de imediato o trabalho, e quando o vi adentrar os jardins da casa, olhando-o através dos vidros das janelas da mansarda, sabia que ele estava um pouco curioso sobre nós e também sobre mim possivelmente. Gostei dele de imediato. Tinha por volta de uns quarenta anos. E apreciei de verdade seu jeito rude e forte, mas inteligente e criativo. Era um verdadeiro artifície e artista. Seria um físico quase, num outro tempo, mas o mundo que queríamos criar não precisaria mais da ciência e tecnologia que sairiam do cérebro dele e que viriam a ser nocivas ao planeta com o passar dos séculos, disso sabíamos. Teríamos de dissuadi-lo da invenção ou de, simplesmente, matá-lo. Mas, a rigor, não éramos assassinos por vocação. Zion, ao contrário, nos burilara para performances dramáticas, jogos, disfarces, habilidades físicas e truques. Nisso sim, éramos magistrais. Matar seria apenas num caso extremo ou incidental. Então, se mister fosse, não pensaríamos duas vezes, decidimos. Mataríamos. E foi então que o ferreiro Thomas, numa terça-feira cálida do parco verão de 1706, foi convidado a conhecer as estufas e a oficina de Gregorius que também trabalhava um pouco o ferro e onde havia aparelhos interessantes, todos manuais, feitos de um tipo especial de madeira que Thomas ainda não conhecia bem. Moinhos e engenhocas para captar o vento, tubos confeccionados de caules ocos e resistentíssimos das árvores de Zion, os quais canalizavam água, maquetes de casas e edifícios com fossas verdes e tratamento de dejetos, captação das águas de chuvas e muitas maravilhas que tanto interessaram ao empreendedor ferreiro. Thomas era um homem evoluído e esperto, um técnico e um idealista. Tudo o que pensava era para a melhoria da cidade e das condições de vida de seus habitantes. Na verdade T. Newcomen era 134
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exatamente como nós, no íntimo. “Odiaria ter de matá-lo”; lembrome que pensei tal coisa, mas isso dependeria dele mesmo, de sua teimosia ou flexibilidade. Ou melhor, dependeria de ser ele muito obcecado ou não pela ainda onírica maquinaria a vapor que teria inventado. ***** Resolvi descer ao jardim, na segunda visita de Newcomen à casa, e adentrar a oficina como se tivesse alguma ordem a dar ao encarregado das tantas construções e da manutenção do lar. Newcomen debruçava-se sobre a planta desenhada e os detalhes das fossas verdes, dispositivo esse simples, construído com tijolos dentro de uma caixa no chão, esta feita de um tipo de argamassa e impermeabilizada com seiva de certas plantas de Zion, onde iam os dejetos dos banheiros e esgotos. As tubulações para saída dos gases e entrada do material eram feitas de caules grandes, montados, encaixados e muito bem colados entre si. Na caixa, depois, punha-se terra e plantas por cima. Somente uma vez a cada dois ou três anos a fossa teria de ser “desmontada” para limpeza. Gregorius estava ao lado do ferreiro inventor no pequeno barracão que era sua oficina, e claro que já se apercebera de minha presença. Thomas Newcomen ainda não. Teve este um enorme susto ao ver-me vizinha deles, a ponto de gaguejar. Desculpou-se, assim que conseguiu falar, dizendo que tão absorto estava, não dera pela minha presença. Gregorius cumprimentou-me com respeito e com certa reserva. Newcomem ao se refazer do choque, de modo cavalheiro para alguém simples, tomou-me a mão enluvada e, tocando-a levemente,
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beijou-a de modo delicado. Chamou-me de “mademoisele”, uma expressão estranha que nada tinha a ver com aquele país. O encarregado fez um movimento involuntário de cabeça, quase imperceptível e notei, com muita surpresa, que Gregorius realmente estava sentindo ciúmes de mim naquele momento. ***** O artesão recebeu do jardineiro, o homem da manutenção geral da casa, muitas explicações e pedidos de desculpas, pois este dizia àquele, que o patrão, Sir Edmund Toll, tivera ainda desta vez, de fazer uma viagem de urgência para tratar de negócios e que se demoraria por duas semanas ou mais talvez. Thomas não pareceu se importar, tanto porque já lhe fora passada razoável quantia em dinheiro, e mais ainda porque Gregorius com seus inventos simples e engenhosos, suas plantas tão desconhecidas, polimórficas e especiais, as quais, aliás, já cresciam bem pela região, fascinavam-no. Thomas trabalhava com fogo e ferro e não olhava os campos usualmente. Passou a ir à casa algumas vezes durante as semanas que se seguiram, para conversar com Greg. E imodestamente digo, talvez também para ver-me. Sei disso na verdade, embora fosse ele um homem maduro, casado e com filhos. O fato, porém, é que quando Gregorius mostrou-lhe em desenhos e, na prática, seu sistema de construções de moradias com captação de águas pluviais, armazenamento e bombeamento manual dessas águas de chuvas, seus banheiros e lavatórios, Newcomen rendeu-se. Confessou ao jardineiro a quem agora via como um digno e inteligente inventor e com o qual, aliás, se identificava, que ele mesmo acalentava já há algum tempo o projeto de um invento 136
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baseado no aquecimento de caldeiras e no vapor, aparelho esse que poderia bombear as águas puras das minas de carvão, abundantes que eram, para abastecer a cidade. Agora, continuava ele, ao ver a simplicidade e inteligência desses dispositivos para captar-se água das chuvas estava fascinado! Assim se confessava. Mas ainda não subestimava a importância das águas das minas de carvão, nem seu invento em andamento. Após este momento, decidimos que já era hora de nosso inventor encontrar-se com Toll, que teria, supostamente, finalmente voltado à cidade. ***** Foi desta forma que Thomas Newcomen, numa manhã de setembro, fora introduzido no hall de entrada da casa, e depois num escritório lateral que era também biblioteca, onde o patrão, Edmund Toll falaria com ele. Thomas, que parecia surpreso e muito honrado com tal acolhida, trazia roupas limpas e um ar altivo, embora respeitador e simples, apertando seu chapéu entre as mãos. Foi cumprimentado com desconcertante descontração e de modo álacre pelo suposto dono da mansão que, após as introduções adequadas, lhe fez a encomenda das rodas, louvando seu talento e mostrando-lhe os desenhos dos aros e do gradil do jardim que ele mesmo, o proprietário da mansão, solicitara que o encarregado Gregorius desenhasse. Eu me encontrava num canto mais afastado da sala e escrevia. Cumprimentamo-nos com discrição Thomas e eu, mas estava mais do que nunca sintonizada com o que sentia aquele homem e com suas disposições pessoais. 137
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Conversaram muito o ferreiro e o gentilhomem sobre os detalhes dos objetos encomendados, o tempo necessário de trabalho, prazos, e Sir Toll fez questão de dar-lhe mais dinheiro, outro adiantamento que Thomas, desconcertado, afirmou não querer aceitar. Não queria mas precisaria fazê-lo, prosseguiu corando, para empregar em um invento de sua autoria, que ele idealizara há anos, o qual viria a beneficiar toda Londres. Sabíamos muito bem que falava da rudimentar máquina a vapor... Neste momento, do canto onde me encontrava, vi perfeitamente, como se fosse um relâmpago em meu cérebro, que Newcomen não conseguiria desistir de sua produção, mesmo tendo visto as criações, sustentáveis e inteligentes de Gregorius. Aliás, exatamente por causa delas sentia-se ele, um homem simples, menos desconfortável naquele local, considerando mesmo ser ali certo núcleo de criatividade e de invenções, de saber e de técnicas. Imaginava, equivocadamente, que Toll fosse uma espécie de patrono das ciências e das pesquisas. Não sei o que, dentro de mim, disparou a ordem; nem sei como aconteceu, mas estava convencida de que não podíamos perder mais tempo, de que nossas táticas precisavam prosseguir. Então sai do canto menos iluminado do recinto, agarrei Thomas com força e surpresa, derrubando-o ao chão e colando meu corpo ao dele. Falei com Toll em voz alta, usando palavras soltas, truncadas. Ele claro, sendo um inorgânico nosso aliado, entendeu-as perfeitamente. Deixou de ser pessoa ou de ter o aspecto de uma e tornou-se, na minha frente, o cilindro que na verdade era, com o interior que parecia um tipo de plasma borbulhante e cheio de emanações algo eletrificadas, enrolou-se ao nosso redor. Newcomen não sei exatamente o que via ou percebia no cômodo que se tornara escuro mesmo sendo manhã , e notei que os olhos do ferreiro traduziam um 138
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mosaico de surpresa, incredulidade e depois de terror, mas antes que desmaiasse, Toll levou-nos dali. Rodopiando saímos os três janela afora e rapidamente ganhamos altura, voando sobre a cidade atual, mas era de noite agora, uma noite estranha e fria. Fazíamos movimentos balouçantes, não desagradáveis ao corpo humano, mas o ferreiro não poderia deixar de ter pavor além de fascínio. Depois de flutuarmos um pouco,Toll evocou a visão da Londres futura, cheia de devastação, de guerras e cinzas, de explosões e mortes, produzindo um espetáculo para Thomas, e exclusivamente para ele, num derradeiro recurso para que compreendesse tudo afinal, sem a necessidade de maiores frases ou de longas palavras e, principalmente, num apelo derradeiro para que não precisássemos acabar com ele ali mesmo, coisa que sem dúvida faríamos com grande facilidade e de modo bastante “limpo”, se é que me entendem. Ali, olhando a devastação futura da cidade, após um apogeu esplendoroso que pareceu mesmerizar Thomas, este tornou-se horrorizado e eu não menos horrorizada fiquei. Pairamos naquele inferno por horas, até que nos vimos novamente na sala, com o dia aceso, pássaros no jardim, os papéis sobre a mesa lustrosa, Toll, digno e elegante recostado no espaldar da cadeira, eu recomposta e bem vestida e Newcomen desmaiado, caído ao chão. À porta trancada, as criadas batiam fortemente e Glil estava com elas. Abrimos; isto é, Toll o fez. Entraram de supetão as mulheres e viram-me debruçada sobre nosso visitante, desafogando-lhe o colarinho fechado. Toll explicou que eu gritara porque Mr. Thomas, o qual tivera um mal súbito e desfalecera, igualmente gritara antes, e de modo assustador. 139
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Ordenou também a Glil que avisasse Jack, o cocheiro, para que este trouxesse um doutor com rapidez e a Gregorius, que acabara de chegar e sempre estivera bem perto, que carregasse nosso visitante para um dos quartos e o colocasse num leito. Tudo isso foi feito. Mary comentava que Sr. Thomas tivera um ataque apoplético, que já vira isso ocorrer antes. Dispersamos o falatório, dispensando as criadas para outros locais da residência, com exceção de Glil. O tempo que o médico levou para chegar foi mais do que suficiente para, sem ajuda dos aliados e usando apenas nossa tecnologia, estabilizarmos pressão, pulso, frequência cardíaca, temperatura de Thomas, além de lhe infiltrarmos líquido e eletrólitos, para hidratá-lo, Gregorius e eu. Assim mesmo ele continuava inconsciente, mas não tinha lesões orgânicas. O doutor chegou finalmente. Examinou-o e prescreveu-lhe umas bobagens, mas partiu logo, deixando-nos em paz. Nosso homem ficou assim por dois dias. Gregorius foi avisar a família e explicar-lhes, tranquilizando a esposa, que Newcomen estava sob os cuidados de um abastado cavalheiro, que o mal-estar era transitório e que tudo ia muito bem. Levou-lhes também uma enorme cesta com mantimentos. Quando Thomas acordou, quarenta e oito horas depois, viu-nos aos quatro no quarto: Toll, Gregorius, Glil e eu. Gregorius disse-lhe de imediato, mas não de modo truculento: - Nem se atreva a pensar mais na máquina a vapor! Nós o mataríamos! Terá de se contentar com bombas manuais.
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Soube-se de imediato que Newcomen fora capaz de entender o recado, à sua maneira ao menos. Quem sabe visse-nos como anjos que o alertavam contra o inferno na Terra. Quero crer nisso. ***** De qualquer modo, com o passar das semanas, o ferreiro ligou--se definitivamente à casa, auxiliando Gregorius e apaixonando-se mais ainda por seus inventos. Foi ele importante auxiliar para a disseminação das tecnologias de sustentabilidade que Greg criava. E logo idealizaram uma máquina manual para tirar água das minas, a qual acabou sendo largamente empregada e o é, até os dias de hoje. Gregorius, por sua vez, conquanto sempre demonstrasse sentir ciúmes de Thomas em relação a mim, apesar deste último ter mudado bastante porque agora parecia considerar-me “outra coisa”, diferente de antes (o que não parecia diminuir a atração que por mim sentia, mas a ela acrescentava o medo), tratava-o sempre com amizade e deferência e era evidente que ambos se queriam bem.
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Capítulo 24 Quinze anos se passaram desde que aportamos nós nas docas de Londres. Tempo ínfimo, concordo, mas neste plano de grandes agitações e de velocidade, veem-se tantas coisas acontecerem em parcos espaços de tempo... Muito diferentemente de Zion é aqui. De fato, a cidade e os arredores mudam. As plantas alienígenas crescem por toda parte. Demo-lhes nomes nós mesmos. Reesefolia encantata , por exemplo, a qual produz frutos durante todas as estações e são frutos diferentes em formas, cores e propriedades, todos no mesmo pé, o que vem a ser extraordinário. Ricos em proteínas alguns deles, outros com vitaminas abundantes, propriedades diversas, e outros mais que mantêm o calor do corpo, em tempos frios. Alessapiro perenis é madeira fantástica, porque ao se queimar, o faz com lentidão imensa e sem fumaça. Pequena tora desta árvore aquece uma casa ou um ambiente com área de talvez uns cem a cento e cinquenta metros quadrados, durante uma semana inteira. E a madeira cresce em abundância mesmo quando cortada. Isso tudo está mudando, e muito, a situação e necessidades energéticas dos habitantes do lugar. Há tantas outras plantas, para se fazerem tubulações flexíveis e estruturas diversas, sem falar em Nicolaienses maraviglosa, cujos frutos têm grandes propriedades curativas, uma panaceia; remédio contra qualquer doença... Atenua a todos os males. Reequilibra o corpo aquela que citei, enquanto Nadinenses perfectorum melhora os espíritos e acalma as mentes conflituosas, 142
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além de inebriar a todos com suas flores brancas, amarelas e vermelhas, olorosas, que perduram por meses. Além do mais, Toll conseguira com amigos no parlamento, implantar as fossas verdes com obrigatoriedade nas construções novas e nas antigas. Muitíssimas casas, agora, já possuem água encanada. Captação de águas de chuvas se fez; mas quanto às bombas, só aquelas manuais são usadas. Também reaproveitavam-se os materiais diversos, sem desperdícios. Banhos públicos, com águas quentes, foram construídos. Abolem-se os penicos, as sujidades e muitas doenças . Nas ruas, mesmo em épocas muito frias, existem trepadeiras floridas. Com isso tudo, a população também se alterou bastante e, com ela, a cidade ganhou feições muito diversas das de antes. Bonitas feições. As pessoas andam com bem menos agasalhos, pois os alimentos fazem os corpos produzirem calorias. A criminalidade e a prostituição caíram drasticamente, embora a sexualidade tenha florescido um tanto mais. E as casas, autossustentáveis, estão adornadas com espécies de plantas diversas, exóticas. Grupos de crianças e jovens cantam alegremente nas ruas, ou param calados a contemplar os horizontes e o mar, sentam-se sob as árvores e fazem esculturas ou músicas. Dançam, olham os céus. Com os banhos públicos as pessoas já não cheiram mal. O alcoolismo diminuiu muito também. Mas a taxa reprodutiva, estranhamente, não aumentou, nem se manteve baixa como já era, caiu ainda mais até. Isso, após pesquisas, Gregorius e eu descobrimos ser efeito das árvores de Zion sobre a população em geral; como tudo o mais, diga-se.
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O mais impressionante para mim, é que desde há uns quatro anos, as empregadas habituaram-se à casa e não parecem nos temer tanto como antes. Um dia vi Mary afagando o cão Murum que, retribuiu-lhe o afago com um uivo tremendo, que não a assustou muito porém. Sim, o país mudara e o mundo com ele, por tabela. O futuro que se aproxima será outro, muito diferente do horror que conhecêramos e o qual o projeto Nuova Terrae queria e, aparentemente conseguira, semear. De qualquer forma, Gregorius e eu consideramos que é hora de partirmos, com essas vitórias aqui firmadas. Até porque não envelhecêramos um dia desde nossa chegada. A população por outro lado, víamos, vivia bem mais, adoecia menos, sofria pouco, mas não deixava de envelhecer e de morrer, em paz até. Ninguém parece ser, nem será como nós, e eles acabarão por reparar nisso. Temos de exportar mais sementes também. Toneladas delas. Vamos espalhar as plantas por toda a Europa, China, Américas e, para tal, Blier e Murum abandonaram as formas de animais e adotaram a de um casal jovem, um homem forte e sorridente e uma jovem de cabelos escuros, alta e de voz firme. Abriram eles um escritório no centro de Londres, e foram com as cartas, permissões, alvarás e licenças providenciadas por Toll, a todos aqueles lugares mencionados, pessoalmente e através de alguns empregados contratados. Preferem sempre usar transportes convencionais, barcos, para não desperdiçarem sua energia. Mas poderão voltar num átimo, se deles precisarmos. Partiram há quinze dias, desta vez.
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Neste ponto é bom mencionar: não tem sido tão fácil empregarem-se pessoas. Suas necessidades básicas em muito diminuíram e não é muito comum trabalharem de modo pesado. ***** A nós caberá partir certo tempo depois dos dois aliados mencionados, para todos esses lugares onde foram eles, para vermos se as plantas alienígenas crescem, espalhavam-se e se já têm melhorado a existência das pessoas. Mas também para nos certificarmos de que por causa da generosidade botânica inaudita, farta, outros inventos ameaçadores ao planeta serão supérfluos, portanto, nunca inventados. Mas se a mentalidade humana se atrever a criar bobagens, precisaremos estar espertos para impedi-lo. Então vigiamos, vigiaremos. Sempre lemos jornais, ouvimos histórias de outros países e lugares, usamos nossos dons intuitivos. Precisamos saber de tudo o que está ocorrendo no mundo atual. E finalmente, os inorgânicos, economizando energia, podem transformar-se em qualquer pessoa. Copiar formas de governantes, reis, papa, magistrados podem eles, para dar as ordens que sejam necessárias, com objetivo de preservação da Terra e de felicidade coletiva. ***** - Angeline, minha querida, conseguimos! Estamos conseguindo! disse-me Gregorius. - Já mudamos o planeta, estou certo disso. Creio que a guinada está concretizada. O futuro já será outro, limpo. Tivemos sucesso, não acha, meu amor? - Estamos indo até onde nos está sendo dado ir e sem os andróides; quem diria, não? 145
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- Mas conseguimos aliados extraordinários, disse-lhe eu, melhores do que máquinas. - Sinto-me feliz também por, não só não termos tido de matar Thomas, continuo, mas ainda por cima, tê-lo como amigo e colaborador. - Porém há alguém que teremos de matar sem falta. Isto é, se ele vier a nascer, pois agora não o sabemos nem ao menos se existirá, retruca Greg. Bem sei de quem ele fala, pois o culto Nicolai muito nos instruíra sobre tal homem . Trata-se de Isambard Kingdom Brunel, o qual fora (ou viria a ser) o pai do capitalismo. Engenheiro, desenhista de pontes e de estradas de ferro. Mas como agora? Isambard talvez nunca pudesse vir a ser Isambard. Sem maquinaria a vapor e com uma população equilibrada, saudável, alegre, isenta de necessidades primárias não satisfeitas, a não ser a de viver com calma e felicidade, aprender a desenhar, a fazer músicas e criar instrumentos musicais, danças, esculturas, a destilar perfumes, catalogar plantas e estrelas, observar marés, caminhar e conhecer os lugares ao redor, talvez o capitalismo, ou o desenvolvimentismo nem sejam mais qualquer ameaça ao mundo. - Mas ele nasceria ou nascerá apenas em 1806, de qualquer forma. Quase daqui a cem anos. Acredita que estaremos vivos até lá? - Não podemos ter certeza, mas assim nos parece, Angeline. Assim nos parece...E não precisamos esperar em linha reta. Se percebemos que estamos envelhecendo, recorreremos aos aliados e saltaremos para frente, até Isambard. - Assim o faremos, querido, se preciso for. 146
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Capítulo 25 Esses navios nada têm de muito confortável para pessoas que conheceram tantas tecnologias modernas e, ainda mais, que estiveram em Zion, isso é fato. Por outro lado, nós dois que lá passamos tanto “tempo” temos, agora, nossas resiliências altas e nossos organismos bastante fortes. Adaptados somos a quase tudo. Gosto de deitar-me e de dormir no convés ao lado de Gregorius. Esta viagem a fazemos, em sequência a nossos planos de conhecermos e vigiarmos os países mais importantes do mundo, verificando o desenvolvimento das plantas, as mudanças sociais. Acompanham-nos Toll e Glil, com suas posturas e disfarces costumeiros. Na maior parte das vezes ficam silentes e calados nos cantos escuros da amurada. Parecem amar olhar para o mar noturno. Lembra-lhes esse sua própria casa? Mantemos ainda (esclareço para completar a questão da missão) Gregorius e eu, o objetivo antiescravagista e libertário, como complemento da ética ideal, para a felicidade da humanidade, bem como ambicionamos a sobrevivência das outras espécies e ecossistemas principalmente. Saúde para este nível da Terra, isso desejamos e foi o que viemos aqui criar, antes de mais nada. ***** Mas acabo de acordar agitada, encharcada em suor, pálida até creio, nesta noite tranquila, e com um pensamento atroz que me corta a mente como laser, clareia-a, quase cegando-me, tal qual explosão nuclear. 147
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- O que foi, querida? Indaga-me Gregorius. - Greg, falo a tremer e em voz baixa. E se tivermos apenas caído numa armadilha desses estranhos seres? - O que quer dizer? Retruca ele. - De fato, juntos mudamos a feição da Terra neste plano, continuo; alteramos os caminhos da humanidade. Futuro imediato para o planeta se assegura, e concreta ventura começa a haver até para os homens. Porém, eles que agora pouco se reproduzem, que contemplam as estrelas, que dançam ao luar, que comem os frutos de Zion, que vivem em casas construídas com as madeiras dessas árvores, não poderão ser, mais facilmente capturados pelos inorgânicos da nova cepa? A cepa da dor? Será que não caímos tolamente num engodo? Não estamos nós oferecendo aos inorgânicos a energia da qual precisam para moverem-se e fazer coisas extraordinárias? - Como pudemos acreditar, por um minuto sequer, que Toll e os outros captadores e distribuidores de energia estivessem preocupados conosco? Acreditar que nos “amam”? - Somos idiotas infantis, somos argila moldável nas mãos desses seres aberrantes! Tudo era apenas um plano para conseguirem energia disponível para Zion. Usaram-nos! E rompi em pranto. Gregorius queda-se um pouco quieto, depois responde: - Angeline, você está grávida, isso a torna muito sensível e a desestabiliza. Você teme pelo nosso filho, é lógico. Seu raciocínio se deturpou, vejo assim. E continua: 148
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- Escolhemos tudo, e era isso que sempre pretendemos fazer. Além disso, se a humanidade mudar tanto assim, se, e eu disse “se” puderem muitos humanos entrar sozinhos diretamente em Zion, talvez também tenham facilidade para sair de lá, como aquele grupo de jovens de civilizações primitivas que víamos. Ou podem chegar a Alscor... Além do mais, a cepa violenta já poderá ser eliminada. Isso não me consola. Temo tanto por meu filho! E percebo bem agora, porque as leis “físicas” e energéticas de Zion não permitem ali a sobrevivência de seres que se reproduziram. São frágeis e quebradiços, seus corpos de luz encolhem-se agora vejo, muito sensíveis, como sinto-me eu mesma agora. Neste instante Toll e Glil, percebendo o que ocorre, se acercam de nós, vindos de um canto escuro da amurada. - Nós não os enganamos, Angeline, fala-nos Toll com voz mansa mas firme. Não possuíamos capacidade para tal em nosso plano, mesmo que quiséssemos fazê-lo. Tínhamos de ser sempre verdadeiros lá. Somos assim. - Realmente nos amalgamamos a vocês, realmente fizemos simbiose incomum. Juntos estivemos por muitos séculos, e não queríamos vê-los sofrer depois, vítimas de tormentos intensos. - Mataríamos vocês até para que não fossem torturados, se isso se fizesse necessário, prosseguiu. Felizmente tivemos opções, naquela altura. - Gregorius tem razão, continua Toll, sua energia diminuiu com a gravidez. E não é só; tendo vivido lá onde conosco viveram, sua mente se alterou e repele sem que o saiba, a realidade da sua gestação. Você ama seu filho, mas a mente e o corpo lutam contra isso e criam temores e fantasmas caóticos. 149
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- De fato a linhagem mutante já deve estar até debelada; isto é, voltou a ser como era primitivamente, partidária da extração de energia a partir do prazer humano. - Além disso, uma coisa é que as pessoas de hoje aprendam a entrar, através dos sonhos, em nosso nível. Isso ocorrerá, suponho. E outra, muito diferente, será serem carregadas com o corpo físico para lá, verem o deserto amarelo, adentrarem nele. Outra história... -Em milênios, prossegue Toll, Alessa foi a única que conseguimos, para lá, transportar com corpo de luz e corpo físico, acredite. Era uma situação extrema para ela, e ela era muito poderosa, por isso fomos bem-sucedidos. Quanto a vocês, tinham um equipamento, afinal. Passavam por ali... Isso tampouco ocorrera antes. - Mas prometo-lhe, Angeline, quando quiserem vocês, quando daqui nos dispensarem, considerando a missão Nouva Terrae cumprida, com a energia que nos restar, e deve restar-nos alguma, voltaremos nós, os quatro inorgânicos, ao nosso mundo e postar-nos-emos na entrada, no portal do deserto amarelo onde chegaram. Juro que, se houver qualquer perigo para os seres orgânicos de cá, se eles lá chegarem um dia com seus corpos físicos, mataremos cada um deles instantaneamente, homens ou bichos, os que o fizerem, caso a cepa violenta domine Zion. Não os deixaremos sofrer. Isso, juro-lhe! Quando Toll assim fala, metamorfoseado na forma humana, beijando-me a mão como um apaixonado o faria, ou mesmo mudando para o corpo sonhador, cilíndrico, cheio de bolhas efervescentes internas, transmite-me confiança, paz e creio nele totalmente. Mas, então, ele se afasta, e tanto ele quanto Glil viram bastões grossos, jogam-se ao mar bem ao lado do navio, seguindo-o. 150
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Vendo-os de relance, à noite, chegam a parecer-se com estranhos golfinhos. Qualquer um os confundiria com esses mamíferos. ***** Sinto-me em paz por enquanto, mesmo sabendo que serei, depois, assaltada por dúvidas e ansiedades, por medos, achando-me sem saída. Mas sejam quais forem as tempestades mentais, terminaremos a missão que iniciamos. ***** Que sei eu? Quem sou eu neste imenso universo? Apenas um peão, um lampejo de poeira, mas esta pequena célula que sou sempre quis dar sentido à própria existência. Caberá agora a nosso filho, meu e de Gregórius, dar sentido à sua, uma vez que foi gerado, e eu desejo que nasça! Mas se assim o desejo, também sei que entregarei meu filho ao mundo forçosamente. Ao amplo, insondável mundo, com toda a sorte de fenômenos inimagináveis. A um mundo onde os inorgânicos também existem, nutrindo uma consciência. Decido-me por ainda continuar carregando o bebê no ventre, o qual acaricio sob a luz quase inexistente desta lua nova que não brilha sobre o convés do barco, o qual navega silencioso e nômade pelos mares desta Terra.
FIM
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Comentário da Autora
Quando resolvi escrever ZION, um romance de ficção científica, misticismo e aventura (decisão tomada há anos), desejava principalmente homenagear um famoso autor, o antropólogo Carlos Castañeda que nos presenteou , há décadas, com A Erva do Diabo e outros livros. Tais romances foram escritos a partir de pesquisas com plantas alucinógenas, feitas pelo referido escritor no México, e de sua vivência como aprendiz de um mestre feiticeiro indígena. Para tal homenagem, nada melhor do que colocar entre os personagens, em interação todos eles, os estranhos seres etéreos que ele mencionou ou revelou a nós, pareceu-me. E assim o fiz. Porém, mais adiante no decorrer da obra, considerei igualmente interessante abarcar ou citar ao menos, as crenças de várias vertentes religiosas. E também assim procedi, embora tenha efetuado isso de modo despretensioso, sem ambição afinal. Ambiciosos são os personagens de ZION, pois buscam, cada qual a seu modo, o “paraíso perdido”; ou ao menos a sobrevivência de seu grupo, sociedade ou do planeta, do modo como parece ser o ideal a cada um deles. O livro também transborda afeto pela Terra, nossa Mãe, Gaia vivente da qual todos nós fazemos parte.
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