ENTRE GUEIXAS ENTRE SAMURAIS
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
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ENT R E G U E I X A S E N ENT R E S A M U R A I S FOTOGRAFIAS E RELATOS DE VIAGEM
ATÍLIO AVANCINI
Copyright © 2008 by Atílio Avancini
Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP Avancini, Atilio. Entre Gueixas e Samurais / Atílio Avancini. –- São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa Oficial, 2008. 160 p. ; 28 cm. Inclui fotos. ISBN 978-85-314-1100-7 (Edusp) ISBN 978-85-XXXXXXX (Imprensa Oficial) 1. Fotografia (Japão). 2. Fotógrafo. I. Titulo. CDD 770.952
Direitos reservados à Edusp – Editora da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6º andar – Ed. da Antiga Reitoria – Cidade Universitária 05508-010 – São Paulo – SP – Brasil Divisão Comercial: Tel. (11) 3091-4008 / 3091-4150 SAC (11) 3091-2911 – Fax (11) 3091-4151 www.edusp.com.br – e-mail: edusp@usp.br
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Printed in Brazil 2008 Foi feito o depósito legal
Foi feito o depósito legal
Passeio matinal, em que o bem disposto do corpo, tira fotografias sem parar. Mário de Andrade, O Turista Aprendiz
Os outros lugares são espelhos em negativo. Italo Calvino, As Cidades Invisíveis
SUMÁRIO
apresentação: sob as cores do preto-e-branco
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sakura koi
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SOB AS CORES DO PRETO-E-BRANCO
São 72 fotos contando histórias. E 12 textos fotografando paisagens. Entre Gueixas e Samurais, Atílio Avancini se deixa envolver sob a luz das quatro estações do Japão (entre 2006 e 2007) para encontrar flagrantes da vida cotidiana com rara sensibilidade. Capta expressões que revelam alegrias, emoções, angústias. O fotógrafo mergulha com a sua Nikon FM 10, companheira de uma década, por 13 cidades – Arashiyama, Himeji, Hiroshima, Kamakura, Katsuura, Kawaguchi, Kobe, Miyajima, Nagoya, Nara, Osaka, Tokyo e Kyoto (onde morou e lecionou). Nessa travessia, Avancini registra momentos de convívio e quietude. E reverencia a sabedoria da contemplação da natureza. Um exemplo é a imagem que abre este livro. O foco na flor da cerejeira brotando no tronco e o ser ao longe entre o sol da primavera atentam para o equilíbrio da arte oriental. O enquadramento flui compondo uma ikebana. Neste trabalho, câmera fotográfica e lapiseira se transformam em olhos atentos à procura de festas tradicionais, perfis, mitos, práticas. E também singularidades expressivas – indivíduos na multidão abstrata e amorfa. Avancini é espectador respeitoso, observa sem se deixar perceber.
japão em claro e escuro
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Como um discípulo de Henri Cartier-Bresson espera o “momento decisivo” para fotografar. A imagem do samurai, que passa numa fração de segundo galopando na festa em Kyoto parece ressurgir de um passado distante. Em Tokyo, flagra os primeiros passos de uma criança brincando em uma nuvem de vapor. Cenas que remetem ao Japão do cineasta Akira Kurosawa que contrapõem a tradição e a modernidade. Na contra-luz, surgem os guarda-chuvas, as sombras de pessoas que se perdem na multidão. É o olhar de Atílio Avancini Entre Gueixas e Samurais. Através dos textos, o fotógrafo quebra o silêncio. Escreve como um repórter em uma linguagem objetiva, priorizando as informações sobre as cidades, as festas, os costumes. Estes relatos ganham força poética ao serem apresentados pelos ideogramas desenhados pelo japonês Junichiro Eto. O pincel do artista se alia ao trabalho artesanal de Avancini que, em plena era digital, ainda insiste em revelar e ampliar as suas próprias fotos. Nas comemorações do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil (1908-2008), as imagens e os textos do autor contribuem para reafirmar os laços culturais de nações tão distantes e tão próximas. São Paulo, 18 de junho de 2008 Sedi Hirano Presidente da Comissão do Centenário da Imigração Japonesa da USP
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SAKURA
A paisagem muda rápido. No início da primavera – regida pelas árvores floridas sakura –, as famílias saem às ruas para apreciarem o belo espetáculo da natureza. Tudo é começo na terra do sol nascente. Principiante, demoro a me adaptar. Todas as convenções se mostram discrepantes: o jeito de andar, cumprimentar, receber objetos, sinalizar, responder, sorrir, se alimentar. Kanji, hiragana, katakana. A maior dificuldade é não conseguir ler absolutamente nada. Apenas olho os jornais, revistas, cartazes, avisos, placas de rua. Os números colaboram nas compras de supermercado. O transporte urbano é primoroso. Ônibus, trem e metrô possuem cadeiras forradas em veludo. Está no ônibus e não tem trocado? Coloque a nota ou moeda numa máquina ao lado do motorista e vai ter seu dinheiro fracionado. As pessoas preferencialmente se locomovem em transporte público, de bicicleta ou a pé. Surpreende o tamanho dos caminhões, das betoneiras, dos roliços para pavimentação de asfalto. Assim se compreende a filosofia de ser pequeno: mais funcional, ágil e quieto. Nada de buzinas, escapamentos abertos ou britadeiras.
Um ligeiro caos acontece nas calçadas, onde os pedestres e as bicicletas lutam pelo raro espaço. A concepção do passeio público veio com o europeu. Assim, na maioria das ruas não há meio-fio, a calçada se posiciona entre duas faixas pintadas de branco no próprio asfalto. Os fios elétricos são expostos, como no Brasil. As construções sem critério refletem a superaglomeração: 120 milhões de pessoas num país um pouco menor que o Estado de Minas Gerais (apenas 30% das terras são habitáveis). Para os japoneses, o imprevisível causa num primeiro momento uma certa estranheza, depois risos. Alguns jovens fogem à regra, ao menos aparentemente. E a repulsa vem pelos cabelos cinza, verdes, azuis, vermelhos; minissaias com botas; anéis, correntes e brincos; longas barbas.
Sem temer a chuva e o frio, desfilam com seus guarda-chuvas colori-
dos pelas ruas. Do alto, parecem cogumelos dançantes em ritmo combinado. As floridas cerejeiras, sakura, já se despediram apressadamente. O tempo chuvoso encurtou seu esplendor em apenas dez dias. A vida dessas flores é passageira. Abril é abrir-se.
A hierarquia natural das relações sociais é muito forte, demarca um país
com a presença simbólica do Imperador. Noto uma gente controlada, enraizada e que parece incansável quando em movimento. O guerreiro samurai dos tempos feudais é representado modernamente pelo jogador de beisebol: trocou a espada pelo bato (bastão usado para rebater a bola). O beisebol é tão popular quanto o nosso futebol, desde pequeninos já estão uniformizados para ensaiar algumas tacadas nas praças. Aqui, o professor é respeitado. Dar aulas de paletó e gravata é questão de hábito, para o qual o clima frio colabora. Assim como o terno é praxe entre os profissionais, o conjunto jeans-camiseta-tênis é adotado entre os estudantes. É o mundo ocidental a orientar o vestuário. Dar aulas em português é como estar em casa. Os alunos são quietos, mas quando você se vira para escrever na lousa eles cochicham. Volta, se calam. Para quebrar o gelo, me aproximo deles e faço per-
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guntas. Engraçado o tempo de resposta: olham para o chão, o caderno, o colega, o professor, a lousa, a janela. E nada. Vai falar, arrisca, tenta, balbucia. Mas nada sai – a classe participa inabalável. Mudo para outro estudante. O mesmo processo. Quem sabe um terceiro. Um quarto. Aí, finalmente brota algo. Pronto, deu o start. Agora todos são capazes de se arriscar. “Na estrutura da sociedade contemporânea, há uma forte influência do bushido (código dos samurai)”, afirma Ellen Nakamizu. O japonês aceita plenamente a realidade, até com certo conformismo. Há um termo para isso, shiyouganai. Mas algo surpreende, a capacidade de compor um produto advindo do nada. O exercício da polidez vem aos poucos. E a finalidade é sempre valorar o trabalho em equipe. Fora dos domínios universitários, minha troca com a gente de Kyoto se processa no mesmo eixo: assumir um olhar estrangeiro de gaijin e uma vontade de conhecer. Fotografo em filme preto-e-branco. De bicicleta, aproveito os finais de semana para conhecer a cidade e exercitar o gênero fotografia de rua: instantâneos de pessoas no espaço público. O desejo de tirar boas fotos dá energia para ir adiante e chegar mais perto do homem oriental. E é bom estar com a minha Nikon FM10 em sua casa. Como repórter, mergulho na realidade urbana para extrair uma visão subjetiva do mundo. Quando reflito calmamente sobre alguns cliques, percebo que posso ir além dos limites de minha experiência. Sempre amei as cidades e seus cidadãos. E fotografar é por a teoria de lado e partir em direção à prática. “Ver é um desfrute do olhar, deixa os pensamentos conceituais em repouso”*, já dizia Henri Cartier-Bresson. Estou bem acolhido. Kyoto localiza-se na ilha de Honshu, a 60 km de Osaka e 500 km de Tokyo. Sua população é de 1,4 milhão de habitantes. Antiga capital, lida simultaneamente com a tradição e a modernidade, o campestre e o urbano, o artesanal e o industrializado. Moro num confortável apartamento ao lado da Kyoto University of Foreign Studies (KUFS), cuja divisa é Pax Mundi per Linguas. Conhecida como Kyoto Gaidai,
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foi fundada em 1947 e é presidida pelo sr. Yoshikazu Morita. Conta com 4 800 alunos, dos quais cerca de 280 (setenta por ano) cursam português – este praticamente se iguala em procura ao espanhol, chinês, japonês, francês, alemão e italiano. Direcionada para o ensino de línguas estrangeiras, o destaque da universidade é o inglês. Sou o primeiro professor-convidado desse convênio de dez anos entre a USP e a KUFS. O intercâmbio atende principalmente estudantes de graduação. A realização dessa prática se ajusta às novas demandas de internacionalização e modernização da USP. Desenvolvo um trabalho pedagógico voltado para a Cultura Brasileira e Comunicação, em graduação e pós-graduação, no Departamento de Estudos Luso-brasileiros. Tenho um gabinete amplo com computador. Coincidência, meu apartamento e minha sala têm o mesmo número, 506. O professor responsável pelo convênio e sua esposa, Ikunori e Yoshiko Sumida, são cordiais e atenciosos. Eles me recebem para um almoço de domingo. Depois os assisto, numa escola municipal, a votarem na eleição para governador da Província de Kyoto: não enxergo um papel no chão. O jantar começa cedo, às dezenove horas. O que vemos no bairro da Liberdade é a culinária antiga e saudável. O entusiasmo contemporâneo dos brasileiros pelo Japão se explica pelos seiscentos restaurantes de comida japonesa na cidade de São Paulo. E, claro, aqui o sentimento é recíproco, eles gostam bastante do Brasil, país que ostenta a maior colônia nipônica do mundo. Uma atração mútua pelo contrário, inverso e contraditório? O professor Kiyokatsu Tadokoro já publicou dezenas de livros sobre o ensino da língua portuguesa. No caminho para o nosso almoço, escuto os primeiros acordes do Hino Nacional. Acreditem, era o toque de seu celular. Como a sakura, foi-se. Efêmera, a tela da vida passa, a moldura subsiste.
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“Voir est une jouissance de l’oeil, laisser les penseés conceptuelles au repos.” Henri CartierBresson. Henri Cartier-Bresson. Kyoto, Kahitsukan - Kyoto Museun of Contemporary Art, 1997, p. 48.
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KOI
Maio é o mês do verde, quando os campos são semeados para o plantio do arroz. A chuva abundante e o clima mais ameno cooperam para as futuras colheitas. O dia das crianças, kodomo no hi, em cinco de maio, sexta-feira, é feriado nacional no Japão. Na verdade é o dia dos meninos, pois em três de março se comemora o dia das meninas – por sinal, dia útil. Para comemorar o cinco de maio, três koi, carpas, manufaturadas em pano são suspensas no alto das casas. Em suas respectivas bocas há uma abertura circular, que acolhe o vento e infla os tecidos em forma de tubo. Os tamanhos e as cores desses peixes oscilantes são variados: macho∕preto, fêmea∕vermelho, filhote∕azul. As carpas ascendem os rios e ultrapassam cascatas para procriar. Assim, os pais querem os meninos fortes como as carpas, que também sugerem fecundidade, renovação, vivacidade e família. Participo da festa do dia dos meninos no Kamigamo Jinja, templo xintoísta fundado no século VII. O xintoísmo é uma religião nativa, animista, cujo defensor maior é o Imperador, líder religioso e secular. Tarde de sol. Na entrada, um
imenso portal de madeira separa o mundo material. Cinco mil pessoas estão ali reunidas. Algumas estão sentadas no relvado com a família, comem, conversam, brincam, outras circulam pela extensa área do templo. E muitas fazem fé nos amuletos, objetos de papel ou madeira a que se pede ajuda para obter conquistas. O mote é hissho: sem falta, vencer. O restante já se posiciona nas muretas retilíneas de uma pista gramada. A rede de televisão NHK, estatal e independente, se faz presente. E uma cobertura especial em lona está disponível para os fidalgos: enquadro o tempo, o templo, a tenda. A festa se inicia pelo elementar da cultura oriental, pedir consentimento para adentrar espaços. O primeiro a se mostrar é o sacerdote e seus assistentes. Depois doze cavalos, jovens cavaleiros, cocheiros. E meninos, que mais parecem adultos, com armaduras e capacetes pretos, bem esquisitos. Por último, um homem de branco, munido de vassoura de bambu, limpa o “serviço” de algum animal descuidado. O ápice do dia é quando os cavaleiros cavalgam em alta velocidade. O deslocamento é feito em pares e deles emanam gritos longos e rudes. Galopam memórias e valores ancestrais – cultuam tal tradição para ensinar aos meninos lições de coragem e poder. Dez dias depois, quinze de maio, nada de feriado, tampouco ponto facultativo. Comemora-se o aoi matsuri (aoi, nome de planta e matsuri, festa ou festival). O desfile, que mais parece uma procissão pelo sossego e resguardo, sai do antigo Palácio Imperial. Mas os símbolos são bem diferentes. As ruas estão repletas de olhos que, como espelhos, refletem cada figura em trânsito. Conta-se a história do arranjo regulador da sociedade. Kyoto, antiga Heian-Kyo, é cidade histórica e foi capital por mais de um milênio (794-1868). Os kimono de seda dos personagens-atores são luxuosos. Possuem desenhos pintados à mão em cores vibrantes e inspirados na natureza, verdadeiras obras de arte. O momento sublime demarca a passagem de uma carroça vermelha com rodas imensas, puxada por um touro enfeitado também com seda vermelha. E com condutores de roupas brancas, caminhando com os próprios pés.
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Dentro – e fechada – está a princesa, cujo nome é Sai o Dai (literalmente, representante do rei para servir a Deus). Chefe da igreja, ela organizava no passado os trabalhos religiosos junto ao Imperador; moça virgem vinda de família nobre, vivia reclusa na floresta. Dia seguinte, manhã de sol, saio para correr numa praça próxima. Um menino de bonezinho e calças curtas azuis se desgruda da mãe e se lança em minha direção de braços abertos, grita de alegria e entusiasmo. Ele chega de supetão. Em voz alta, pula e sorri desconjuntadamente. Embaralha-se em minhas pernas, traquinando. Horas mais tarde, recebo uma pequena mensagem de uma estudante: “Muito obrigada por vir aqui em Kyoto. A cidade é maravilhosa porque representa uma cultura antiga do Japão. Você sabe que os japoneses não gostam de expressar diretamente os seus sentimentos? Esta cidade também não expressa as emoções das pessoas. Mas você poderá sentir tal cultura do silêncio, do respeito pela ação reservada”. Bandeiras para ver de que lado sopra o vento, as carpas voadoras podem operar em antagonismo. O hábito de cultivar civilidade, que implica valores de lealdade, autodisciplina e obediência, igualmente trouxe problemas: o coração do japonês tem os seus critérios. Mas há um elemento decisivo. O som koi também significa amar intensamente.
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AME
“Uma nuvem de hipocrisia anda anestesiando o país”, opina a jornalista Eliane Cantanhêde, da Folha de S. Paulo, em 11 de junho de 2006. Coincidência, ou não, junho é considerado o mês das intensas e constantes chuvas, ame. As nuvens evidenciam uma natureza confusa, sombria, mal definida. E ocultam o brilho da luz. Dia nublado, sexta-feira, tomo o trem-bala, shinkansen, pontualmente às 9h06 na estação de Kyoto com destino a Tokyo. Viajo a 360 km∕h no sistema mais rápido e caro: nozomi (literalmente, esperança). A tecnologia desta serpente mecânica garante segurança, nenhum ruído e baixa oscilação. A Japan Railway, a maior operadora do setor ferroviário, consegue registros surpreendentes em pontualidade e segurança. Viajo no vagão catorze, assento dezesseis, janela. A chuva faz avivar a folhagem verde e os canais encharcados das plantações de arroz. A neblina ilimitada dissolve o Monte Fuji em gotículas d’água. Não poderia suportar o seu esplendor? Inconformado, caminho em direção à toalete. A porta automática responde e adentro em névoa espessa: o vagão dos fumantes. Lotado de empresários e executivos, vestem ternos pretos e confabulam.
Chego ao distrito de Shinagawa, área metropolitana de Tokyo, às 11h18. Percorri 500 km em 2h12. Deixo as bagagens no bairro Omori. O tempo chuvoso me desafia a molhar o corpo nas ruas. Não resisto ao desafeto e logo me deparo no balcão de uma cafeteria, cuja dona gentilmente me oferece um guarda-chuva descartável e incolor. Visito o Palácio Imperial de Tokyo, Kokyo, antigo Castelo Edo. A metrópole Tokyo cresceu nas imediações do castelo. Conhecida como Edo, a cidade foi fundada em 1457 e tornou-se capital do Império em 1868. A primeira impressão de Tokyo é de uma cidade calma e limpa. As informações que recebo são aparentemente contraditórias: Tokyo conta com 12 milhões de habitantes, cerca de 10% da população do Japão, e possui em sua área metropolitana mais de 31 milhões de habitantes, a maior área urbana do mundo. Talvez a impressão de ordem seja pelo fato de Tokyo possuir um sistema de transporte público desenvolvido, com numerosas linhas de metrô, trens e ônibus. Seu sistema de metrô, o mais extenso do mundo, é administrado por onze empresas diferentes, nove delas privadas, que operam dentro dos 23 distritos da cidade. É a segunda rede mais movimentada do mundo, atrás apenas de Moscou. Dia seguinte, sábado chuvoso, estou às 10h na redação do jornal International Press. O semanário tem quinze anos e é publicado em duas versões, português e espanhol. Diante de mim, vinte silentes jovens profissionais da comunicação social: brasileiros, peruanos, uruguaios e japoneses. Tiro o dia de folga deles para ministrar um workshop de fotojornalismo, pois são os próprios jornalistas que produzem as fotos de suas matérias. Inicio com a Copa do Mundo de Futebol. Comento se ontem haviam reparado em um detalhe midiático no jogo Argentina versus Sérvia e Montenegro, em Gelsenkirchen (Alemanha): um assessor na boca do túnel ajeita a bola, na mão do capitão Juan Sorin, para melhor destacar a sua marca. Há alguma relação entre o estilo do futebol de cada país e suas visões de mundo. Limitado pela geografia montanhosa e pelos raros lugares habitáveis, o japonês joga futebol como se andasse comprimido em campos de arroz. Também as páginas dos jornais da grande imprensa são excessivamente tomadas pelo jogo cerrado en-
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tre as letras e as imagens. Os japoneses tendem a não mostrar publicamente a sua opinião: há pouca arte e subjetividade no futebol ou no (foto)jornalismo. Nitiyobi é literalmente o dia do sol. Todavia, neste domingo, prevalece a fina e ininterrupta chuva tsuyu, prenunciando o bom tempo do verão. Encontro numa pequena elevação um parque chamado Omori Kaizuka (Sambaqui Omori): depósito antiqüíssimo formado de montões de conchas, que há milênios o grande oceano alcançava. As conchas que protegem moluscos trabalham como a fotografia: testemunho, reconhecimento, identificação. Neste sítio nasceu a arqueologia japonesa, pesquisada pelo americano Edward Morse. De repente, poros artificiais no solo lançam nuvens d’água numa pequena extensão vertical. No conjunto de partículas em suspensão na atmosfera, contemplo a figura nebulosa de uma criança, que se experimenta entre as substâncias líquidas. O pai, estanque, olha tudo. Como se o filho, de uns dois anos, experimentasse pela primeira vez o deleite de estar num onsen (termas).
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Calor no Japão é sinônimo de festivais. Um dos três mais famosos é o gion matsuri. O desfile, só com a participação de homens, tem como percurso um trecho retangular e plano de aproximadamente 6 km. Comenta-se que o verão – sufocante e abafado na bacia de Kyoto – começa a partir do gion matsuri. Este festival nasceu como ritual de purificação no ano de 869. O povo sofria uma epidemia de verão, resultado da ira divina de Gozu. Um monge budista do templo Gion (em sânscrito, lugar sagrado ou paraíso) buscava apaziguar Gozu, e conduziu sua gente a uma procissão. O rito se tornou popular quando a doença se dispersou. Nos primeiros festivais, jovens carregavam pequenos templos de madeira pelas ruas em busca do bem. Há um mistério sobre sua origem histórica. Parece ter havido uma interação ou justaposição (melhor evitar a palavra sincretismo) – compreendida como fenômeno cultural e religioso – de tradições xintoístas e budistas. A partir do século XVII, o festival se concentrou na apresentação dos yamahoko (templos portáteis), movidos exclusivamente pela força humana.
O gion matsuri é um discurso mítico. No evento, há 32 yamahoko divididos em duas modalidades: yama e hoko. Os 25 yama, peças indispensáveis nos festivais japoneses, são andores pequenos carregados nos ombros por 24 pessoas: peso de 1,6 t e altura de 6 m. Os sete hoko, carros alegóricos, possuem estruturas rígidas com quatro grandes rodas (cada uma com diâmetro de 2 m), puxados por cordas por quarenta homens: peso de 12 t e altura de 25 m. Um trio elétrico oriental? Os hoko possuem apenas um andar, lugar dos músicos, coberto por telhado em duas águas tal como capela. De longe, o todo da construção do carro alegórico se assemelha a uma torre gótica ou mesmo a um hashi (pauzinho para comer) ou até a um yubi (dedo), apontado para os céus. Os hoko são confeccionados de madeira, encaixes das traves e amarrações com cordas de fibras de arroz. Não usam som nem serra elétricos, tampouco pregos. A cada ano, são montados manualmente por exímios marceneiros, uma semana antes do desfile, na avenida Shijo-dori. Sabe-se que o Japão desenvolveu a cultura da madeira, a Europa, a cultura da pedra. A madeira nativa foi utilizada em casas, templos e palácios do Japão antigo. A pedra é aproveitada apenas na fundação das construções. A matéria mineral está relacionada à morte e o cerne da árvore, à vida. A madeira é mais resistente a terremotos e tufões, dada sua ligeira mobilidade e flexibilidade. O segredo é a limpeza e a ventilação. As montanhas inabitáveis cobrem mais de 70% da área territorial nipônica, o que torna os pequenos segmentos de planícies densamente povoados. Os países desenvolvidos que mais preservam áreas florestais são a Finlândia e o Japão. Dois dias antes do desfile, o centro de Kyoto é restrito somente para pedestres. O evento acolhe em torno de 350 mil pessoas diariamente nas ruas. Há muitos turistas estrangeiros. As avenidas Karasuma, Shijo e Kawaramachi são decoradas com incontáveis chochin (lanternas de papel). As jovens deixam o jeans e trajam yukata (kimono de verão feminino) e calçam gueta (tamancos de madeira). Lembram as exóticas maiko (aprendizes de gueixa). Com os cabelos pretos e presos, passos curtos e tortos, passeiam em grupos. Bem-proporcionadas, recatadas
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e muito alvas, estão sempre munidas de pequenas toalhas para enxugar o rosto ou com leques de papel a fremir incessantemente. Vez ou outra, atendem o celular para se afirmarem presentes. Nesses dois dias, os hoko são abertos para visitação. Paga-se um valor e, sem sapatos, pode-se adentrar na casa-marcenaria dos hoko. Primeiro a escada, depois a capela no primeiro andar. Nada de santos. Um grupo de músicos tradicionais, hayashi, entoa lentas e ritmadas canções: oito flautas de bambu (fue), dois tambores (taiko) e oito sinos ou gongos de bronze (kane). Tanto as paredes da casa-marcenaria como a parte externa dos hoko são decoradas com tapetes bordados. Foram adquiridos da Índia, China, Rússia, Bélgica, Pérsia, quando japoneses ricos do século XV comercializavam tecidos de seda pura. Por esta razão, os hoko são conhecidos como museus ambulantes do mundo. Nas ruas, inúmeras barracas dispostas vendem variedades em comes e bebes: água mineral, cerveja, ryokucha (chá verde), café gelado, sake; batata frita, salsicha, tempura (frutos do mar e vegetais fritos numa massa feita de farinha e ovos), ikayaki (lula na chapa), crepe, espetinho de frango, takoyaki (bolinho de polvo), churrasquinho, edamame (soja verde na vagem); morango, abacaxi, maçã-do-amor, banana com cobertura de chocolate, taiyaki (massa doce com recheio de feijão azuki), sorvete, kakigoori (gelo picado com xarope). As barracas e o calor lembram as festas populares brasileiras. Não se vê muita sujeira no chão. E as lixeiras são seletivas: papel, plástico, metal. Fato interessante, os policiais trajam branco e não portam armas de fogo – a segurança pública é preventiva e comunitária, jamais ostensiva. O evento principal do gion matsuri é em dezessete de julho, feriado nacional, quando se comemora o dia do mar. O tempo está chuvoso. O desfile abre pontualmente às nove horas. O chigo (menino), dentro do primeiro hoko, corta ritualmente a corda para adentrar o “espaço sagrado”. As calçadas estão repletas. O imenso carro alegórico se aproxima qual uma geringonça ambulante. Sob o grito de dois guias e o estalar de pedaços de bambu, o hoko pára. É o momento mais surpreendente do desfile: suas rodas não fazem curvas!
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Os quarenta homens – de jimbei (kimono de verão masculino), yamagassa (chapéu cônico utilizado no campo) e waraji (sandálias de palha de arroz) – se posicionam em ângulo de 90° para girar à esquerda o hoko, cujas duas rodas dianteiras apoiadas sobre as taquaras vão escorregar. Na espera, o hayashi e a chuva murmuram um quase silêncio. Bastam, em média, três impulsos para girálo. A cada arrastão, o público exprime um oh de admiração. “Yoi, yoi, yoi tosei”, os guias bradam ordens. E o hoko, como uma seta vertical, retoma sua senda com suave reverência. Assim, passam seguidamente os yama e os hoko para reavivar antigas memórias. Passar os olhos pelo gion matsuri pode parecer algo simples, repetitivo, entediante. Não há dança, nudez ou sensualidade. No entanto, contemplo uma prática milenar desempenhada de modo admirável em cor, som, forma, técnica, simbologia. Nisso, pouco diferem a Lavagem do Senhor do Bonfim da Bahia e o Círio de Nazaré de Belém do Pará. Enquanto a primeira rende homenagens a Jesus e a Oxalá, o segundo, a Maria. Do gion matsuri emana pouca fé religiosa. Seria a falta dos santos? Ou seria a ausência das promessas da plebe? As festas populares, em geral, representam coisas concretas e palpáveis para tornar visível o mistério que ocultam. Mas somos pequeninos, desinformados e míopes perante tal grandiosidade. Afirma um provérbio chinês, “quando o sábio mostra a lua, o tolo olha o dedo”.
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KANE
Dom, dom, dom, dom, dom. O sino de bronze, kane, reverbera em solene explosão sonora. Cinco pancadas na superfície externa do cone invertido precisamente às 8h15 da manhã. Realiza-se o cerimonial da paz. Durante a silenciosa oração, as cigarras se permitem vaiar ruidosamente em forma de si, si, si. É dia de domingo em Hiroshima, seis de agosto, céu azul e um calor de escaldar. O Parque Memorial da Paz é o local onde, há exatos 61 anos, a primeira bomba atômica do mundo explodiu e aniquilou toda a cidade. E sinalizou a entrada da raça humana na era nuclear. Assisto, inicialmente, às declarações cronometradas do Primeiro Ministro, do Secretário das Nações Unidas, do Prefeito e do Governador de Hiroshima. Depois, à dedicação das flores: uma multidão paciente deposita ramalhetes diante da chama da paz às almas dos desaparecidos. Olho os familiares das vítimas inocentes se curvarem e unirem suas mãos em forma de prece: trabalhadores, idosos, crianças. Assim, semeiam o “espírito de Hiroshima”, cidade-símbolo da paz mundial. Não por acaso, o código de ética do Japão antigo floresceu nos Estudos Clássicos de Hiroshima (século XVII). A cidade continua a exercer uma tradição educacional.
Elegante, moderna, repleta de prédios altos, árvores frondosas, rodeada por mar e montanha. O delta sinuoso e limpo realça a sua beleza geográfica. O Museu Memorial da Paz possui um grande vão livre e sua área expositiva se instala em dois blocos, no primeiro andar e no térreo. O arquiteto Kenzo Tange, vencedor de concurso público, em 1949, planejou em linha o Museu, o Cenotáfio (monumento à memória das vítimas, com a chama da paz) e o Domo (edifício com cobertura hemisférica em ruína, projetado pelo arquiteto tcheco Jan Letzel, em 1915). Por engano, entro no Museu pela porta da saída. Passo a tarde ocupado com maquetes, infográficos, fotografias, vídeos, desenhos, instalações, artefatos, objetos pessoais, manuscritos. Muita gente se debruça atônita diante do visível tal qual espelho de memórias. Os passos são curtos, o silêncio é incômodo, os corpos se contorcem no espaço contemplativo e terapêutico. As obras transcendem objetivos e forjam novas significações. Desde já, presencio dois paradoxos: os textos estão escritos na língua dos frios e calculistas bombardeadores e o local confortável, como sala de visitas, destoa das imagens de atrocidades humanas. Assisto em vídeo às declarações do único fotógrafo a produzir cinco cliques do cenário urbano após a explosão da bomba. Ele se preparava para ir ao jornal onde trabalhava. De repente, o mundo ao seu redor ficou branco e brilhante, como se tivessem disparado um flash no seu rosto. Como reagiu o fotojornalista Yoshito Matsushige, diante de algo tão desolador e repulsivo, a presenciar a morte de irmãos? “Eu tinha sofrido apenas ferimentos leves causados por estilhaços de vidro. Após 40 minutos peguei minha câmera fotográfica, vesti uma roupa que achei no meio de escombros e saí para a rua. Foi como uma visão do inferno. Vi um bonde queimando. Dentro estavam quinze ou dezesseis passageiros, mortos uns sobre os outros, com as roupas arrancadas. Meus cabelos arrepiaram e as pernas tremeram. Caminhei para tirar uma foto. Não consegui, meu coração estava partido, não pude tirar fotos de corpos mortos. Havia outros fotógrafos, mas nenhum deles conseguiu fotografar.” No centro da sala, repousa uma chaminé fissurada de concreto e ferro – um dos poucos objetos que sobraram no raio de 2 km do hipocentro da bomba. O texto
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de parede informa. “Depois de meia hora da detonação, a cidade inteira numa gigante conflagração consumiu tudo o que era combustível.” A bomba explodiu numa altitude aproximada de 580 m. Emitiu três formas de energia: calor, ventos fortes e radiação. No raio de 5 km do hipocentro, as temperaturas atingiram entre 3 e 4 000 °C; a rajada de vento soprou a 440 m∕s e criou uma energia física agente de 19 t∕m²; a radiação residual promovida pela fissão de 50 kg de urânio penetrou nas células humanas. A gigante nuvem cinza em forma de cogumelo carregou muita poeira e com o vapor d’água do ar gerou uma chuva negra intensa. O exato número de baixas ainda permanece desconhecido e muitas das vítimas nunca foram identificadas. Em 1976, a cidade de Hiroshima enviou às Nações Unidas um documento, Eliminação de Armas Nucleares e Redução de Forças Armadas e Armamentos, que estimava em cerca de 140 mil pessoas falecidas até o final de 1945. Há milhares de itens na coleção do Museu, que incluem pertences das vítimas e objetos materiais. Tais peças falam sem palavras: parece não haver distância entre o espectador e o referente. Impressionam os relógios de A. Kawagoe e de K. Nikawa: seus ponteiros estão encravados nas marcas do VIII e do III. Assusta o triciclo desfigurado e contorcido do menino Nobuo Tetsutani; a marmita transformada em bronze, com alimentos petrificados, do estudante Shigeru Orimen. Tudo desliza e ainda derrete nas duas garrafas esverdeadas de vidro, nas estátuas religiosas de metal, nas tigelas de cerâmica azulada ou nos aglomerados de moedas. Os retratos fotográficos de algumas vítimas, sem qualquer talento artístico, são testemunhos impactantes dos efeitos causados pela radiação: rostos, dentes, costas, cabelos, dedos, unhas, pés, peles. Acredito numa realidade que posso conhecer a partir das fotos, mas apenas processo subjetivamente. O Museu promove perguntas com respostas. Por que os Estados Unidos desenvolveram a bomba? Por que decidiram lançá-la no Japão? Por que Hiroshima? Mas emerge nas entrelinhas uma pergunta sem resposta. Por que conquistar a paz mundial é tão difícil e complexo? Talvez, por isso, haja pouca discussão sobre as
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ocupações japonesas (parte da Ásia, início do século XX); o ataque a Pearl Harbour (Havaí, 1941); a rendição do imperador Hiroito ouvida no rádio (Tokyo, 14 de agosto de 1945); a ocupação americana no pós-guerra; a Constituição do Japão de 1946 (o direito de voto e o Imperador tornado símbolo do Estado). A monarquia japonesa é a mais antiga do mundo. E com a democracia, o Imperador deixou de ser líder celestial e perdeu os poderes políticos relacionados ao governo. Saio árido. Tomo um banho japonês no ryokan (pousada típica). Bebo ligeiramente um café com gelo picado. Em direção a Hiroshima-eki (estação ferroviária), ascendo do chão e retomo o bonde com ar refrigerado – é como uma brisa refrescante da mãe natureza. Com o balanço, muitos passageiros sentados sobre o veludo verde se entregam ao sono. Aproximando-se do fim de linha, o condutor se serve do pequeno sino dourado a bimbalhar: tin, tin, tin. O pequeno marcador de tempo – como “bomba-relógio” – inunda tudo ao redor. Interruptor de sonhos, o agudo orientador sonoro agride as profundezas desses seres de cultura milenar. Atordoados, já estão prontos para a próxima. O grande foco contemporâneo parece ser a busca material – não por acaso, o som kane, além de sino, também significa metal ou dinheiro. O tempo cronometrado pouco relaxa, pouco folga, pouco afrouxa. O olho, como máquina, está quase sempre desperto. Mas e os anjos dos tempos de paz, onde estariam?
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MADO
O fotógrafo costuma estar à janela. Produz imagens de maneira livre e pessoal. Retira fragmentos da realidade para compor um ornamento de pontos de luz. Compactuo com Roland Barthes, na obra O Grão da Voz: “No fundo, o que eu gosto é da relação entre a imagem e a escrita, que é uma relação dificílima, mas que dá, por isso mesmo, verdadeiras alegrias criativas, como outrora os poetas gostavam de trabalhar em problemas difíceis de versificação.”* Pelas janelas, mado, contemplo – do trem, do ônibus, da estação ou do quarto – o Monte Fuji. Divertido lugar dos superlativos, constato as distorções com o meu Fuji interno, concebido imageticamente por cartões-postais, calendários, livros, fotografias ou filmes. Olho o suficiente para eliminar a distância entre o presente objeto e o antigo referente. Alguns detalhes surpreendem: a suprema grandeza (majestade divina?), a perfeição estética (escultura monumental?), o requinte geométrico (gigantesco triângulo isósceles?), o cume sem neve (augusto e flutuante kimono?), o volume tridimensional (ninho repleto de ovos?). Vou lentamente me avizinhando. Fotografo sensações. Na res-
peitabilidade de sua estatura, as montanhas ao redor se tornam parceiras do jogo adjetivado: alto-baixo, grande-pequeno, forte-fraco, pesado-leve, reto-curvo, real-fictício. Certos temas me convidam a fugir de mim mesmo. Outros são apenas fundo geral de pensamento. Alguns, como ímãs, geram interesse para o foco e a mobilização. Às vezes, o assunto passa instantaneamente em frações de segundo. Ou perdura por dias, meses, anos, séculos, milênios. Como o Fuji, nascido há 80 mil anos. E que se mostra por 10 mil anos no formato atual. A extensão espacial é o desafio do fotógrafo. Também especulo as possibilidades para delimitar com precisão o âmbito temporal com o assunto. Em trânsito, a contrapor chaminés enfumaçadas? Ao amanhecer, com cisnes à beira do lago Kawaguchi? Ao pôr-do-sol, em encharcados tons amarelos, vermelhos, laranja e azuis? À meia-altura, a flagrar nuvens enamoradas? Do alto, com salpicos de neve? À noite, com tripé, a rastrear estrelas dançantes? Há infinitos modos de interpretar. O caminho pragmático exige excluir n fenômenos. Tenho contato com o fuji-san tal qual um astronauta pisa a lua. Longe de qualquer povoação, a região de solo pedregoso e vegetação rara espelha, de certo modo, o nosso sertão. Raízes expostas, árvores contorcidas, vegetação rasteira em nichos, negras rochas de lava, ventos frios e persistentes, pássaros em sobrevôo no azul celestial, animais de matéria “inflamável”. A senda, sobre a estrutura magmática espalhada na superfície, é íngreme e escorregadia. Assim, a marcha dos 2 305 m (gogome, quinto estágio) aos 2 390 m (rokugome, sexto estágio) me faz lembrar o Pão de Açúcar, Pedra do Baú, Ibituruna, Monte Santo. Em setembro não dá para seguir viagem ao cume (altura de 3 376 m), permitida somente nos meses de julho e agosto. Considerado como uma espécie de ritual de purificação e fé, surpreende a quantidade de gente idosa. Formigas incansáveis, é como se habitassem aquele ecossistema. Munidos de cajado, com a bandeira do Japão, trajam roupas apropriadas e colocam o pé na estrada em constante peregrinação. Há um velho provérbio, “só um louco escala o Fuji duas vezes”.
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O cone que chamamos de Monte Fuji é constituído por três vulcões sobrepostos: Komitake, Ko-Fuji (Fuji Veterano), Shin-Fuji (Fuji Novo). O magma interno continua se movendo, embora a última erupção tenha sido há 299 anos. Caso o Fuji acorde, a capital Tokyo dista apenas 100 km, sem contar as estações turísticas e termais localizadas nas proximidades. O governo japonês investe alto em pesquisas científicas para prever quando será a próxima erupção. Há um observatório meteorológico na borda da boca do vulcão. A imagem do Fuji em preto e branco abre os filmes de cineastas clássicos japoneses. Um olhar singelo em tomada horizontal, como a câmera estática de Yasujiro Ozu, que sempre se posicionava à altura do tatami. Assim, os personagens crescem, servindo de suporte à fala ideológica para valorizar a família e criticar a modernização, ou americanização, da sociedade industrial. A terra e o céu juntando mãos, o Fuji é uma prioridade nesse curioso país. De qualquer modo, é sempre maior do que qualquer representação, sem jamais devolver um significado último. Um objeto que simboliza a busca da perfeição possível. Portanto infinito em suas janelas. E em suas revelações.
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Roland Barthes, O Grão da Voz, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 502.
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KOME
O arroz representa bem o Japão, cereal nutritivo e fonte de energia. O kome (arroz), largamente difundido na Ásia, é um cereal que por gerações vem sendo o alimento referência de uma grande parcela da população mundial. Chega o tempo da colheita. E o mês de outubro se apresenta como um período de abundância e riqueza. Há muito sol, céu azul, temperatura amena e ar com baixa umidade. Apesar de a área rural possuir apenas um hectare, é muito bem aproveitada. O Japão é auto-suficiente em arroz. Os agricultores, com subsídios do governo, utilizam novos métodos para aumentar a produtividade. Os arrozais, numa tonalidade obtida pela combinação do verde e do amarelo, dançam com o vento. E estão nos mais variados lugares: se espalham em zonas fora do perímetro urbano ou em pequenos terrenos nas grandes cidades. Com os tradicionais chapéus-desol, camponeses capinam os ine (pés de arroz), dispostos proximamente entre si. Quando maduro, o galho com os grãos se curva levemente em direção ao chão. A wara (palha do arroz) seca em varais campestres para ser aproveitada em utensílios: embalagens, sacos, chinelos, cordas.
O genmai (grão de arroz não-beneficiado ou integral) é aquele que mantém sua qualidade nutritiva, energética e vital completa. A versão mais utilizada é o arroz branco e polido, conhecido como hakumai, com textura mais acentuada, homogêneo, redondo e ligeiramente pegajoso. Companheiro ideal de pratos saborosos. A fórmula de preparo é muito simples, combina-se o arroz, a água e o calor. Nada de temperos: cebola, alho, óleo, sal ou salsinha. A panela automática suihanki é exclusiva para o seu cozimento, em torno de quarenta e cinco minutos. Durante séculos, o arroz se fez presente nas três refeições do dia e é sempre servido no chawan (tigela de arroz). Considera-se incompleta uma refeição que não apresente algum prato com o gohan (arroz cozido). O termo gohan é também sinônimo de refeição. Assim, café da manhã é asagohan (arroz da manhã), almoço é hirugohan (arroz do dia) e jantar é yugohan (arroz do entardecer) ou bangohan (arroz da noite). A primeira refeição do dia é substanciosa, e com pratos salgados. Além do gohan, fazem parte as seguintes variedades: missoshiru (sopa de misso), cozidos, conservas, tofu (queijo de soja), natto (grãos de soja fermentados), omelete, peixe grelhado e algas. Impossível, mas tente esquecer o café com leite, o pão com manteiga, o queijo fresco com geléia e as frutas. Os pratos são cozidos levemente, o necessário para ressaltar seus sabores naturais. Os legumes e as verduras mantêm cores, texturas e brilhos. País com poucos recursos naturais, a norma aqui é a precisão e a severidade. Assim, a cozinha japonesa é rica em verduras e alimentos com proteína vegetal (produtos derivados da soja). A base dos temperos é normalmente o shio (sal) e/ou o shoyu (molho de soja). O paladar é um dos sentidos mais aprimorados da cultura, que aproveita com sabedoria o ato de repor ou restaurar as energias gastas no dia-a-dia.
E como é o cotidiano dos lugares onde se preparam e se servem refei-
ções? Os restaurantes são identificados pelos noren (cortinas de pano que descem até meia-altura da porta dos estabelecimentos) e pelos pisos de entrada geralmente molhados. As casas mais acessíveis exibem em suas vitrines réplicas dos pratos oferecidos. País das imagens, os artistas da cópia produzem comida falsa
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com gosto de plástico. Mas se libere para adentrar os ozashiki (espaços reservados com o tatami) e compartilhar o kutsu o nogu (prática de tirar os sapatos). Antes das refeições, é praxe usar o oshibori (pequena toalha quente e úmida) para assear as mãos. Detalhe: não há talher, guardanapo, copo, tampouco sobremesa, e muito menos refrigerante. E em momentos especiais vale um kanpai (brinde) com o sake (vinho de arroz), a cerveja ou o vinho. O teishoku (prato pronto do dia) é muito comum em locais tradicionais e é servido todo de uma vez. Neste almoço completo, o gohan e o missoshiru são dispostos no centro da mesa. À frente de ambos, possivelmente numa tigela retangular de cerâmica, se apresenta o yakizakana (peixe assado). Num meio-círculo, diversos pratos enriquecem a refeição, e podem ser constituídos por mais de doze opções. Nesse ritual essencial à vida não há nenhuma seqüência a seguir, momento de desfrute. Tigelas pequenas de laca, madeira, cerâmica ou porcelana fazem parte ativa do cotidiano. É praxe que a sopa, servida com tampa, seja tomada diretamente no pote. O respeito com o alimento é evidenciado na condução da peça com as duas mãos à boca. Nos restaurantes, se observa a expressão budista “silêncio é ouro”. Entretanto, a quietude é quebrada assumidamente quando alguém se propõe a ingerir um prato de soba ou udon (macarrão delgado ou espesso). O slep, slep, slep do ruído provocaria risos em qualquer brasileiro – há o argumento de que é preciso colher ar ao mastigar a massa quente para não queimar a boca. O hashi é como a baqueta do maestro dessa sinfonia: leve, inteligente, estético, simples, versátil. Para manusear os hashi não se deve segurá-los com muita força. O polegar e o indicador fixam o hashi superior e exercem o controle de seus movimentos. Assim, ao apanhar o alimento, o inferior permanece imóvel apoiado sobre o dedo médio. Quando não estiverem em uso, deixe-os paralelos na horizontal com as pontas sobre o hashioki. Comer com o hashi revela uma habilidade fina. É belo ver o manuseio desses pincéis em mãos hábeis. O termo sushi designa diversos pratos feitos com bolinhos de arroz. São temperados com vinagre de arroz, sal, açúcar, dashi (sopa de peixe seco) e cobertos
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com peixe cru, cozido ou conservas. Alguém falou que não há mestiçagem no Japão? Pois este prato demarca um sincretismo milenar do peixe (cultura dos nativos) com o arroz (cultura do Sudoeste asiático). O peixe é sempre muito fresco. Como conseguem tal milagre? Além disso, o vinagre tem a função de conservante e a pasta wasabi (condimento picante de raiz-forte) é introduzida entre o arroz e o peixe. Programa animado é ir ao kaitenzushi (sushi giratório). Com preço acessível, o rodízio de sushi é um fast-food com esteira rotativa que circula ao lado das mesas: leva inúmeras iguarias produzidas por robôs.
O outono é a estação do ano propícia aos prazeres gastronômicos. Isso
porque é a época da fartura e dos produtos frescos. O mês de outubro e o arroz podem simbolizar, respectivamente, o cultivo do bem-estar coletivo e o oferecimento ao mundo dos bons grãos. Há segredos para se fazer uma boa colheita. Tudo depende dos saberes de cada lugar, transmitidos coletivamente. O ato de cultivar é um processo de doação: da terra e do coração humano.
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RYU
A paisagem de Kyoto é muito especial em novembro com as múltiplas tonalidades das folhas das árvores. Koyo é o nome do espetáculo da natureza que chega ligeiramente atrasado devido às temperaturas amenas. É o período preferido dos turistas para contemplar a cor vermelha da típica árvore momiji. Aqui a vida e a morte são belos processos naturais. Os jardins iluminados alteram a paisagem da antiga capital. O efeito de luz e cor gera um tipo de inquietação interna. Leves e compactas, as montanhas dão fundo à paisagem e se mostram multicoloridas contra o azul-celeste. Cumes ainda banhados pelo sol se erguem diante de outros mergulhados na sombra. O balanço claro-escuro muda a cada instante por entre formas e matizes. As folhas douradas se desprendem dos galhos ao sucumbirem como plumas em direção à mãe-terra. Resplandecentes como a luz do sol outonal, as folhas secas se espalham, tecendo um tapete trançado sobre o solo. As montanhas ao redor de Kyoto sempre foram contempladas com respeito. Em Arashiyama, na parte oeste da cidade, os montes que envolvem o rio Hozu se
aglutinam lado a lado e formam uma imensa tela verde. As árvores destoam em amarelo, laranja, marrom, vermelho e grená. Não é por acaso que desde tempos imemorais a região tem sido local sagrado. Assim, o outono é a melhor época para curtir não apenas o colorido koyo, mas também a irreverente presença do ryu (dragão). Embora a mentalidade japonesa sugira pictoricamente a parceria da árvore momiji com o shika (veado), numa ambientação nostálgica e solitária. No Oriente, a natureza e o dragão promovem a espontaneidade, o desprendimento, a impermanência. Vivem o momento presente, que não deve ser projetado para o passado ou futuro. Simbolicamente, o ser humano respeita o dragão como organizador do meio ambiente: clima, vento, tufão, relâmpago, vulcão, corrente marítima, sol, lua, seca, chuva, enchente, tsunami, plantação, colheita. Para o budismo, o dragão está numa fronteira entre o homem e o super-homem. Nas lendas asiáticas, que narram a ação da natureza e os valores básicos do povo, os dragões desempenham funções elevadas, normalmente como divindades, e teriam surgido no princípio do universo e criado o céu e a terra. Na mitologia chinesa, se dividem em quatro aspectos: celestiais, espíritos da terra, guardiões de tesouros e imperiais. Por influência chinesa, há aproximadamente 4 mil anos, algumas cidades ancestrais teriam tido como princípio a geometria espacial do dragão. E Kyoto, fundada há 1 200 anos, é uma delas. O feng shui (literalmente vento-água) é uma arte de harmonização energética que busca integrar o ser humano à natureza, à terra e ao céu. Como o tai chi chuan, foram difundidos de mestre para discípulo. Ikunori Sumida conta que o coração do dragão se posiciona no centro geográfico da cidade, isto é, no antigo Palácio Imperial de Kyoto. O dragão administra a natureza e o Imperador governa o homem. Sua cabeça está na direção das montanhas ao norte (Funaokayama). As patas, nas montanhas a leste e a oeste (Higashiyama e Arashiyama). E a cauda, na direção sul (templo Toji), onde se encontrava o extinto portal de madeira rashomon (título de um filme do cineasta Akira Kurosawa). O portal, voltado para a descampada região sul, evitava dissipar
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a energia do dragão para guardar as almas boas da cidade. Em Kyoto, a circulação do ar e a fluência da água caminham no sentido norte-sul. As classes mais baixas – comerciantes e artesãos – ficavam na periferia de Kyoto, junto aos rios. Os templos xintoístas protegiam a Família Imperial, orientavam as águas nas aldeias para o melhor cultivo do arroz, produziam a sagrada bebida sake e sabiam evitar as enchentes. Diferentemente da visão ocidental, aqui não há o largo da matriz como referência central da cidade. Os templos budistas deveriam ficar ligeiramente afastados, pois acolhiam os cemitérios e também exerciam a função de promotores da paz. Os xintoístas e budistas recebiam os pequenos mercados a céu aberto promovidos pela classe baixa. Como existem ainda hoje, as feiras livres (alimentos, roupas, artesanatos, antigüidades) nas áreas de dois templos: o budista Toji (mercado kobosan), todo dia vinte e um de cada mês, e o xintoísta Kitano Tenmangu (mercado tenjinsan), todo dia vinte e cinco. Com a ascensão da tradicional classe guerreira dos samurai, há novecentos anos, a visão interativa do dragão foi destituída, pois a consideravam não-real – pensavam apenas em guerrear. É provável que outras cidades da cultura inca e∕ou maia tenham sido inspiradas nessas técnicas ancestrais, como Cuzco, no Peru. Na arte japonesa, o dragão é pintado dentro de um círculo imaginário e sempre se exibe de forma esparramada-dançante. Seu olhar é sempre assustador. Possui asas, plumas ou escamas, quatro patas, cauda. E é representado como animal de grande porte, geralmente de maneira reptiliana, como imensos lagartos ou serpentes. Sintetiza alguns animais: corpo de serpente, olhos de tigre, juba de leão, orelhas de boi, chifres de veado, bigodes de carpa, garras de águia, rabo de cão. Na paleontologia, os animais que mais se aproximaram do dragão foram os répteis voadores pterossauros. Junsaku Koizumi, artista contemporâneo, pintou dois dragões em sumi (tinta natural) para o aniversário de oitocentos anos do templo budista Kenninji de Kyoto, em 2002. Koizumi levou dois anos para pintá-los – basicamente nas cores preto, branco e vermelho-claro –, num papel artesanal medindo 11,4 m x
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15,7 m (o tamanho de 108 tatami). A pintura encontra-se no teto do hatto (salão de estudos), lugar utilizado para leituras formais de textos sagrados. Os monges acreditam que os dragões são os protetores dos ensinamentos budistas, além de serem considerados os deuses da água, enviando a “nutritiva chuva zen” aos seus seguidores. Durante o processo pictórico, Koizumi usou o espaço de uma quadra de voleibol coberta numa escola elementar em Hokkaido, ilha ao norte do Japão. Produzido pela NHK, há um documentário da criação do autor no próprio Kenninji. Assisti-lo a recobrir de tinta a imensa tela é confundir homem e objeto, branco e preto, mão e pincel, corpo e papel. É tocante assistir a um dos mais refinados artistas do mundo, que se desprende da homogeneidade cultural. A imagem final da dupla de dragões nas nuvens é instigante. O dragão da direita, com postura recuada e dentes cerrados, tem um olhar amedrontado. O da esquerda, todo arrepiado e com a mandíbula escancarada, apresenta um olhar de espanto: carrega em sua pata esquerda dianteira um “ovo”, que simboliza o planeta Terra. Um retrato do processo transformador e, às vezes, violento da natureza, homem e dragão. O fenômeno natural koyo se assemelha à essência do dragão: corpo avermelhado em movimento e sopro de fogo. Dá a impressão de que a “centelha de ignição” obtida pela fricção das folhas coloridas provoca uma reação exotérmica. O dragão de Koizumi encanta e protege. Mas também provoca o ser humano. E parece soprar duas perguntas à queima-roupa: O que é a vida? O que é o homem?
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Os ensinamentos do príncipe Sidarta Gautama foram sintetizados em algumas práticas cotidianas, por meio da cultura zen. O Buda, termo sânscrito que significa O Iluminado, nasceu na Índia há cerca de 2 500 anos. Myoan Eisai, fundador do templo Kenninji em 1202, viajou por duas vezes à China aprendendo os preceitos do zen no templo Paichang (erguido no século VIII). Para a construção do Kenninji, primeiro templo zen de Kyoto, Eisai obteve a autorização do Imperador e o apoio financeiro do shogun (chefe feudal dos guerreiros samurai). Entender o zen é encontrar o Japão. Um passo inicial é revelar os segredos do matcha (chá verde em pó), cuja bebida – ryokucha – é um prazer popular. O zen de Kyoto é a base de fazer um do (o caminho que o ser humano deve seguir). Cito alguns. Sado (cerimônia do chá): tigelas contendo o chá verde, concentrado e espumante, criam atmosferas íntimas de tranqüilidade. Kendo: golpes instantâneos com a espada visam a um estado de alerta que nos liberta das limitações mentais. Kyudo: treinos com o arco-e-flecha cultivam o forte poder mental do samurai. Shodo (caligrafia): o modo de escrever, caracteres chineses revelam
os traços psicológicos de um indivíduo, endossando o provérbio japonês “caligrafia é a pessoa”. Haiku: poemas com apenas 17 sílabas dão ensejo à imaginação. Kaiseiki (culinária): haute cuisine japonesa, alimentos básicos – arroz, sopa de misso, vegetais cozidos e picles – trazem o sabor de cada prato ao seu efeito máximo. Suibokuga (pintura): manchas pretas espalhadas assimetricamente em pequenas porções afirmam modos de expressão. Karesansui: seca paisagem, jardins de areia e pedra sugerem imagens congeladas no tempo. Kenchiku (arquitetura): construções dos templos no eixo norte-sul inspiram a disposição espacial do corpo humano. Dessas atividades destaco o sado. Uma homenagem ao meu avô, Attilio Régulo Arena, apreciador das coisas simples da vida como tomar um bom chá. O sereno xará apresentava algo diverso nos acordes do seu bandolim, tangido com palheta controlada por mão de marceneiro. Suas ações corriqueiras buscavam a perfeição e sempre evidenciavam significados especiais. No Japão, o antigo ritual da arte do chá é considerado um refinamento social. Tomar a infusão é apenas um detalhe do cerimonial, que inclui as valorizações do utensílio usado, decoração da sala, vestuário, postura e modo de tocar o pote. O sado manifesta uma “simplicidade elegante”: incorpora apenas o que é absolutamente necessário. E sempre com muito bom gosto. Há quatro princípios no sado: wa (harmonia); kei (reverência); sei (pureza); jaku (tranqüilidade). No preparo do ryokucha há três componentes necessários, além do matcha e da água: chawan (pote), chashaku (colher de madeira) e chasen (misturador feito de bambu). O modo de produzi-lo é simples: concentre 2 g de matcha (duas medidas de chashaku) no pote previamente escaldado; despeje 60 ml de água quente (80 °C) sobre o matcha; agite a mistura com o chasen até espumar. Fazer o sado exige certas regras a serem observadas. Toshimi Ueda, discípula do mestre Tokuda, afirma: “o ato de beber é em silêncio e consta apenas de três goles e meio”. Os alunos do mestre, homens e mulheres, assistem às aulas trajando o elegante kimono.
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Hoje, o kimono é usado principalmente pelas mulheres em celebrações especiais: festas populares nas ruas, solenidades, casamentos, atividades artísticas e culturais. A peça milenar é feita com um único tecido, cerca de 12 m de comprimento e 38 cm de largura, com belos e discretos motivos. Há nesse vestuário quatro outras características: kanzashi (presilha ornamental do cabelo); obi (tipo de faixa ou cinto para fixar o kimono); zori (sandálias com salto); tabi (meias brancas). O kimono exige das mulheres um andar lento, curto e fechado. O passo deve ser do comprimento do pé. Da mesma forma, não há pressa para o momento do chá, que é consumido vagarosa e respeitosamente. Iguarias doces equilibram o leve amargor do matcha. E como é produzido o matcha? O verão quente e úmido de Kyoto é o ambiente ideal para a planta. Uma técnica utilizada há 250 anos consiste em proteger o pé com uma cobertura de palha de arroz para deixá-lo à sombra. O bom matcha exige a fertilização orgânica do plantio com peixe seco e grão de soja. As folhas são tiradas do pé manualmente uma a uma. E a chave da produção do pó verde, num ambiente a 40% de umidade e 20 °C de temperatura, é a prensa de pedra artesanalmente preparada com ranhuras. A cada ano há sempre alterações na safra, relativas ao sabor, peso e coloração. Uma vez aberto o invólucro do matcha, a durabilidade é de apenas vinte dias. Um estudo realizado recentemente revela que os bebedores de matcha vivem mais. As pesquisas, coordenadas pelo professor Shinichi Kuriyama, da Tohoku University, revelam que o chá verde é rico em substâncias antioxidantes, que ajudam a neutralizar os radicais livres, responsáveis pelo envelhecimento celular precoce. A pesquisa se concentrou na região noroeste do Japão, onde 80% da população toma “a bebida da longevidade” e mais de 50% consomem três ou mais xícaras diárias. A infusão é eficaz para o coração, fígado e tireóide. E também tem efeito antidepressivo. Conforme a lógica, o chá verde fornece estamina aos monges para mantê-los acordados na madrugada durante o zazen (meditação sentada), foco principal da prática budista.
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Se no frio de dezembro o chá verde quente é um sucesso, no verão os jovens preferem o elixir gelado ao refrigerante. Compram as garrafas industrializadas em máquinas. Praticam assim o rappa-nomi (beber à trombeta). Quem poderia supor uma educada senhora japonesa bebendo chá à boca de uma garrafa? A publicidade televisiva transforma, dentro de um curto espaço de tempo, “o tabu num gesto banal praticável em público”, afirma Shiro Iyanaga. Os pontos de café também florescem. Cafeterias foram fundadas nos anos de 1920 e ainda estão disponíveis aos bons apreciadores. Pelo preço de uma boa xícara de chá ou café, pode-se ficar entre uma ou duas horas num salão de chá ou cafeteria (particular ou franqueada). O ambiente adequado para um bom papo, agradável leitura ou leve descanso. Espaços sagrados onde sem pretensão corpos relaxam, mentes se liberam, corações se abrem. Chega a ser comum reencontrar por lá Tom Jobim, João Gilberto, Vinicius de Moraes, Nara Leão, Baden Powell, Elis Regina. Os japoneses adoram a bossa nova. Tudo a ver: calmo, romântico, leve, discreto, ritmado e intimista. Ir a um kissa-ten (salão de chá ou cafeteria) para uma conversa informal entre amigos é, de certa forma, como produzir shashin, fotografia (literalmente, reflexo da realidade ou reflexo da verdade). Há um termo para a arte do chá, ichigo-ichie, que bate com o momento decisivo da fotografia: encontro único na vida. Ou, também, um tesouro a cada encontro, que nunca mais ocorrerá.
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KAERU
Durante séculos, o Japão se bastou com seus problemas e mistérios. Não havia a tal fúria capitalista do mundo dito “ocidental-civilizado”. A isolada cultura nipônica seguia o seu curso contínuo, lento e inexorável. Hoje, bem se poderia dispensar grande parte da parafernália advinda pós-Hiroshima. O excesso de tudo borbulha, fria e ruidosamente, no alvorecer do ano novo. Nas metrópoles não há indícios de poluição, mas algo no ar intoxica. Não há mais tempo para apreciar as estéticas dos jardins. Nem para escutar o pouco que ainda resta do grasnido áspero do corvo, do canto estridente da cigarra e do coaxar denso do kaeru (rã). Vive-se mais na rua do que em casa. E na rua se constata uma sociedade igualitária, justa e homogênea. Por esse motivo o país é seguro. Idosos e mulheres podem sair sozinhos. Há senhoras andando de bicicleta nas noites frias de janeiro. Em Osaka, no movimentado bairro de Namba, vejo uma jovem deixando o café com creme, o celular e a carteira abandonados numa mesa sobre a calçada por alguns minutos. Nesses cafés, chega a ser normal, dorminhocos “oferecerem” documentos aos passantes. Aqui, a consciência de grupo se sobrepõe à individual.
Ter um carro significa possuir uma casa ambulante. Automóveis estacionados se transformam em lar. Dentro, os motoristas comem, dormem, assistem à tevê, lêem jornal, fazem a barba e até escovam os dentes. A solidão é uma tendência: não é preciso fazer amizade ou entrar na intimidade de alguém. Os relacionamentos se resumem apenas ao meio profissional. É hábito não ter envolvimento com vizinhos, tampouco receber amigos em casa. As relações são permeadas por ares de cordialidade. Abraços, beijinhos, apertos de mão e toques corporais significam invadir terreno alheio. Não há transparência na vida familiar. O shoji (porta ou janela corrediça forrada com papel branco) deixa passar apenas a luz, não o olhar. Na família japonesa, o relacionamento vertical é mais importante que o horizontal: a ligação entre pais e filhos é mais forte que o envolvimento entre homem e mulher. O marido é o responsável pela vida social da família, mas a esposa é a autoridade dentro do lar: controla a educação dos filhos e as finanças. Há uma certa leveza espacial nos domicílios pelas poucas luzes, cores, divisórias, arranjos e mobílias. Por outro lado, há sempre cantos abarrotados com inúmeros objetos gerados pelo excesso consumista. A segunda maior economia do mundo satisfaz plenamente as necessidades da família e entope lugares da casa com o acúmulo de bens materiais. O Japão vive um conflito entre o Oriente e o Ocidente. Há poucas praças públicas. Mas os sento (banho comunitário), de certo modo, substituem as trocas que as praças promovem, como o ver e o ser visto. De origem popular, o primeiro sento foi idealizado em 1590 e buscou ser uma réplica urbana do onsen (água termal). O banho no Japão é uma paixão e tem sido mais utilizado para se atingir a pureza do que a limpeza. Todos os sento aderem ao mesmo plano básico: a retirada dos sapatos – e dos problemas pessoais – na entrada. Divididos em ambientes masculino (cor azul) e feminino (cor vermelha), a regra é todo mundo nu. Nada de roupão, toalha ou roupa de banho. Os pais levam seus filhos ou filhas com muita naturalidade e se divertem acompanhados: conversam, brincam, se abraçam, riem, se agitam com movimentos graciosos.
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Os banhos são freqüentados como ritual, distração e prazer. Relíquia do Japão pré-guerra, eram encontrados a cada esquina. Hoje, é possível tê-los em casa. A primeira regra nos banhos é, sentado, se ensaboar abundantemente. Com o corpo físico limpo, se entra no ofuro (banho de imersão com água quente). Ou seja, quanto mais limpo você estiver, mais adequada ficará a água para o próximo. Após o longo banho é o momento para esfriar o corpo e relaxar. Há confortáveis lugares ao ar livre num pequeno jardim japonês. Deita-se numa esteira de bambu ou se reclina com calma numa pedra. E a mente pode ser esvaziada. Vez ou outra, no espaço masculino, adentram jovens funcionárias uniformizadas. Os homens não estão nem aí. E elas cumprem rigorosamente a atividade de cuidadoras do ambiente. Busca-se nos sento o relaxamento, pois o cotidiano da vida profissional é muito estressante. País formatado para cumprir regras e obrigações, há uma certa pressa em comprar e ser pontual. Imersos nas cidades, os prédios voltados ao consumo têm proporções megalomaníacas. Algumas redes de loja de departamento pertencem às próprias companhias de transporte e estão construídas sobre as estações de metrô. Caminhos para consumir ou acessar os trens se confundem. Na superfície, o brilho das vitrines e painéis publicitários ofusca. No subterrâneo, o intenso frenesi agride. Outro gigantismo: viadutos. Superposições de planos, curvas justapostas, configurações helicoidais. São formas plásticas que giram incessantemente como carrossel. Ou carro-céu? “No Japão, transite no contrafluxo”, sugeriu a amiga brasileira Rosa Koshiba. Estar em Kyoto – a cidade-alma do país – significa amenizar o choque da modernidade. Para se ter uma idéia do porte da antiga capital, basta dizer que há dezessete sítios tombados como patrimônio mundial pela Unesco. Dentre eles, o jardim zen globalmente famoso, criado pelo pintor e jardineiro Soami (falecido em 1525). O Ryoanji. Nesse templo budista não há nada de extraordinário. É um simples jardim de pedras. Percebo a sabedoria de uma cultura milenar. As pessoas, como num
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teatro, assistem àquele cenário por minutos ou horas. O lugar explica o sentido de o vazio ser a forma e a forma ser o vazio. Os japoneses estão sempre dispostos a desvendar a essência das formas no silêncio. O singelo local possui apenas 250 m² (25 m x 10 m). O arranjo do jardim zen em relação ao jardim dos nobres da Idade Média é completamente diferente: pontua a inexistência de árvores. O Ryoanji conta apenas com quinze pedras grandes numa base de seixos brancos, que são ordenados em forma de ondas. O jardim seco pode sugerir uma folha branca com algumas manchas, um céu com poucas nuvens, um campo nevado com raras árvores, um oceano com pequenas ilhas, um manjar branco com ameixas pretas. De qualquer modo, fica para cada espectador descobrir significados. Ou eventualmente apenas receber, procurando nada imaginar ou pensar. Isto é, o exercício de deixar a forma adentrar nosso ser sem qualquer pré-conceito. É fundamental o Japão desenvolvido valorizar a diversidade dos seus antigos modos de conceber a vida. O Ryoanji é daqueles lugares onde ainda se pode ouvir cair a neve, ou a chuva, suave e intermitente. Um espaço adequado para saborear a natureza em cada uma das estações do ano. Os veteranos poetas do haiku – a poesia japonesa de 17 sílabas (5-7-5) – encontraram nesse universo inumeráveis temas. Como o clássico haiku, escrito por Matsuo Basho, em 1692: Furuike ya kawazu tobikomu mizuno oto No velho lago uma rã salta o som da água
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MATSU
Ele me olha estanque com um leve sorriso. Ancião, rugas no rosto, queixo com longas barbas brancas, bigode suave, olhos amendoados em forma de elipse, dois dentes incisivos à mostra, lábios rubros. Está repousante, entregue aos sabores dos ventos e das estrelas. Sua força é regenerar o tempo e o espaço, para subtrair o homem da inevitável degradação. Tal entidade é conhecida como nohmen: máscara do teatro noh (drama japonês florescido no século XIV, em Kyoto). O fragmento talhado de matsu (pinheiro japonês) está disposto sobre uma mesa improvisada de um mercador. Vinte e um de fevereiro, dia da grande feira a céu aberto do templo xintoísta Toji. Os artistas antigos empregavam sua habilidade nas máscaras e algumas delas tinham uma força e intensidade de expressão únicas. E são, muitas vezes, objetos de veneração dedicados aos deuses ou demônios. O teatro noh expressa um momento poético e é visto como uma “escultura viva”. A velha máscara do mercador é utilizada em uma das 250 peças do tradicional repertório, numa encenação conhecida como takasago – das mais populares pelo seu
caráter de oferenda. A narrativa retrata um casal de idosos que limpa e purifica um matsu em Takasago. A dupla relata a um monge nômade as virtudes do pinheiro. O casal desaparece, após se mostrar como o verdadeiro espírito da árvore. E entra em cena a divindade Sumiyoshi no Myojin para celebrar a paz reinante no mundo. O matsu é um dos ícones do Japão. Na parede de madeira do cenário de todo teatro noh está esculpido um elegante matsu – o fundo de todas as peças, do restrito repertório, é sempre o mesmo. Além de simbolizar a paz e a natureza, acreditam também que a alma do pinheiro ajuda os atores e músicos em cena. Os artistas profissionais do teatro noh são em sua grande maioria homens. O uso das máscaras é privilégio do shite (ator principal), que sempre representa seres sobrenaturais com dignidade e beleza. Em termos psicológicos, a máscara transforma o seu portador em duas imagens arquetípicas: serenamente apolínea ou instintivamente dionisíaca. Os atores secundários, acompanhantes, músicos e ajudantes de cena não usam máscaras. Meu interesse pelo noh começa com o convite da artista amadora e estudante de pós-graduação Tomoe Tsukada. Assisto, no Kawamura Noh Theater, à clássica peça kokaji, em que ela faz o papel principal de um menino. A história é baseada em fatos reais sobre o ferreiro Munechika, que aparece como segundo ator, waki, sem máscara. Munechika viveu no século X. Um dia, o ferreiro recebe ordem do Imperador para manufaturar um katana (espada) de alta qualidade e beleza. Mas para malhar o ferro necessita de alguém para ajudá-lo. Assim, resolve visitar o santuário xintoísta Fushimi Inari para pedir a colaboração de Inari, divindade da abundância e do alimento. No caminho, encontra um menino que, na verdade, era um deus disfarçado. Aquele ser especial o encoraja e lhe oferece ajuda. Munechika volta para casa, prepara as condições materiais para produzir a espada e começa a orar. É quando aparece a divindade Inari para ajudá-lo a malhar o ferro. O ferreiro grava seu nome na espada, com a inscrição kogitsune (raposa pequena, símbolo do Fushimi Inari). Realizado o trabalho manual, Inari monta numa nuvem e desaparece nas montanhas.
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Durante a apresentação teatral, constato que algumas cenas não são explícitas. O noh é baseado na sobriedade e oratória – proferida por um conjunto vocal em japonês antigo e som gutural. De fato, a contenção cumpre um papel essencial na criatividade das cenas. Outra surpresa é a dança narrativa com movimentos bem reduzidos. Nesse jogo conciso está a música da Corte imperial gagaku (século VII, advinda da Coréia), repercutida no palco, que determina o ritmo e a intensidade do espetáculo. A parte musical se resume ao gosei (cinco vozes), composto pelo coro jiutai e quatro instrumentos do conjunto hayashi: nohkan (flauta transversal), kotsuzumi (tamboril apoiado no ombro), otsuzumi (tamboril apoiado na perna), taiko (tambor de baquetas). O escritor Junichiro Tanizaki, no livro Elogio da Sombra*, defende a tese de que a chave do mistério do Oriente é a “magia da sombra”. Ele compara a luz indireta do teatro noh com a penumbra das residências japonesas antigas. “É portanto absolutamente essencial que o palco do noh conserve a sua obscuridade original, e um edifício convir-lhe-á tanto mais quanto mais antigo for.” Os dois episódios teatrais descritos possuem algo em comum. Ambos têm seres humanos iluminados: o casal de idosos e o menino. Para o noh, esses tipos que se transformam em divindades, Sumiyoshi no Myojin e Inari, são inabaláveis e não devem mostrar sentimentos e alterações emocionais, portanto, rostos mascarados. A depender do ângulo e da luz, o espectador pode sentir emanações diferentes, como o cômico ou o trágico. As máscaras e os cabelos postiços tendem para algo extravagante, além da combinação dos elegantes kimono, estampados em cores radiantes. Constato que o Japão é como a máscara noh: o segredo e o sagrado. Vive-se de uma maneira misteriosa e oculta diante do irreal-inatingível. A identificação do ator principal como manifestação divina é o próprio objetivo do noh. O mascarado, revestido de poder mágico, encarna o ser que instrui os homens e assim os protege contra as constantes ameaças e riscos da vida. A máscara preenche igualmente a função de agente regulador da circulação das energias espalhadas
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pelo mundo. E impede o vagar errante do homem para não prejudicar a ordem da coletividade. A máscara também visa a dominar e controlar o mundo invisível, pois a multiplicidade de forças no espaço explica a variedade das máscaras. Onde há luz, há sombra. A máscara faz parte do nosso ser. Reflete como espelho as contradições humanas e deve ser considerada como um duplo da consciência humana. Kagemi é uma palavra antiga para espelho (kage significa sombra e mi, enxergar). Essas oposições se confrontam e se harmonizam. A máscara reúne tendências diabólicas, manifestando aspectos inferiores e satânicos. Em sua aparição, se busca o movimento contrário, isto é, o afastamento dessas entidades do meio social. Também pode funcionar como catarse, que lembra alguns aspectos do Carnaval brasileiro. Assim, a máscara não esconde, mas revela tendências inferiores, que devem ser trabalhadas e conscientizadas. Naquela movimentada feira popular, contemplo a quieta nohmen, entregue à inclinação da chuva, sol, mãos e olhares. O mercador pede seis mil ienes. E aquele matsu para resguardar o rosto penetra em minha sacola de pano. Entretanto levo a mensagem do herói Munechika: sinceridade, simplicidade e humanidade de assumir sua face.
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Junichiro Tanizaki, Elogio da Sombra, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1999, p. 42.
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KAZE
“Vamos chamar o vento”, assim entoa Dorival Caymmi. A música existe no vento e no tempo, que é generoso quando se faz dele a arte de harmonizar sons. O vento, kaze, transmite essências em voz baixa para evitar a falta de memória. Escrevo o último “diário de bordo”, idéia sugerida pelo amigo Gutemberg Medeiros. Sempre fui tímido para tocar violão e cantar. Mas de meu pai veio o incentivo e de minha mãe, a inspiração. Em Kyoto, já andava desanimado de falar, mostrar, ler ou escrever em sala de aula. Foi quando decidi dar voz ao violão. O som da bossa nova trouxe brilho aos olhos dos estudantes, os corpos renovaram seus movimentos, as barreiras se diluíram. Com a introdução de elementos didáticos brasileiros e afinados com a identidade japonesa, promovi a troca de idéias: dar prazer aos ouvidos e estimular o pensar. A bossa nova favoreceu um trabalho de compreensão das letras; discussão sobre os “anos de ouro” da cidade do Rio de Janeiro; enriquecimento gramatical; estudos que concernem à história e geografia; aproximação aos nossos poetas, artistas e músicos; vivências rítmicas; experiências bem-sucedidas com o coral formado pelos alunos.
Favorecidos pela tonalidade do idioma, os nipônicos têm maior probabilidade de possuir um ouvido absoluto. Eles coordenam bem a batucada sincopada. E chega a ser natural a atração pelo suave e melodioso gênero bossa nova. De fato, o novo método de tocar samba trocou o marchar pelo flutuar: ondular ao sopro do vento. As linhas sinuosas das montanhas, as vagas oceânicas, as leves e suspensas nuvens, as curvas das mulatas, os dribles do futebol, as gingas do sambista, o falar cantado. Formas moldadas pelo vento tropical? Extraído do próprio acaso da vida, encontro o músico Shiro Iyanaga, amador da bossa nova e professor de português. Nossa direção inicial: a encantadora Pontocho, viela com traços nipo-lusitanos (a crônica japonesa teppo-ki relata que os portugueses teriam chegado às costas de Tanegashima em 23 de setembro de 1543 num junco chinês, a primeira ligação direta e marítima entre a Europa e o Japão). O espetáculo no teatro Pontocho Kaburen-jo é promovido por um gênero de artista especial, gueixa e maiko, conhecido como miyako odori (dança da antiga capital). As mulheres representam também papéis masculinos. Percebo que os brandos deslocamentos dançantes são acompanhados por alterações identificadas com as estações do ano e os sentimentos humanos: contentamento e melancolia, serenidade e ameaça, confiança e ciúme, luta e entrega, amor e ressentimento. Os gestos das dançarinas são controlados no tempo, indicados pelos shamisen e otsuzumi (cordas e tambores), executados por um grupo de gueixa – cantoras e musicistas – de kimono formal, em preto. As luzes, cores, sons, cenários, vestuários e maquiagens criam atmosferas em movimento para entreter os convidados. No Oriente, tudo é prefaciado pela ausência de ruído. Uma busca pela intensidade e pelo timbre interior? De fato, o espetáculo da companhia kamogawa odori, uma das cinco escolas da tradicional dança de Kyoto, abre a possibilidade de constatar as alternativas expressivas do menos. E perceber os significados das formas de expressão não-verbais para os povos da Ásia. Essas atividades artísticas são devaneios entre a encantadora gueixa e o intrépido samurai.
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Dias depois, o pianista Iyanaga me apresenta a sua canção Sonho Primaveril. “Busco uma letra para cantar a primavera japonesa em português.” Assimilo a melodia. E aproveito o embalo do trem-bala, shinkansen, via Hiroshima, para me enternecer ao som musical. Sensibilizado, brinco com a relação som-palavra. Surge o grupo musical “Ventos Tenros”. Ou os soyokaze (literalmente, maneira calma de ventar). Há uma meta, se apresentar no festival acadêmico da Kyoto Gaidai. Além do nosso dueto, o conjunto agrega o estudante de pós-graduação Ryota Takahashi (violão) e a professora brasileira Fernanda Torres Magalhães (vocal). Também faço a letra da canção Só em Kyoto. Nesse caso, exprimo o outono japonês. O professor Iyanaga relata: “Tive a inspiração para esta melodia quando tocava minha viola numa noite outonal de 2006. Naquela altura, praticava com bastante assiduidade o instrumento, para atuar num recital do grupo ‘Ventos Tenros’. A combinação de acordes é um pouco parecida com a da música Cabelos Brancos (Herivelto Martins e Marino Pinto), do repertório do grupo. Porém, a canção é essencialmente uma balada jazzística”. O ano se desdobra em várias facetas nos ritos diversos da vida cotidiana. A sakura florida, a chuva tsuyu anunciando o verão, o koyo em nuanças laranjaavermelhadas, a yuki (neve) em eterna suspensão. O ritmo é dado pelas quatro estações: haru, natsu, aki, fuyu. Vivenciei lentamente cada mês em si próprio. Ora como turista diante da nova paisagem, ora como cidadão encantado com a espiral da vida. Em março, retorno ao Brasil numa modalidade de vôo sem motor. As altas diferenças de temperatura favorecem bons ventos. A viagem se faz na melhor velocidade possível. A rota desenha um longo arco semicircular. Na aurora, o vento benfazejo aninha pássaros. Aprecio o vôo das araras em matizes obtidos pela combinação do verde, amarelo, branco e azul. Sopram sons múltiplos, indecifráveis. E colocam em evidência questões atemporais: as raízes da identidade brasileira.
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ÍNDICE DE FOTOS
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Título Autor Fotos Colaboradores Produção Projeto Gráfico, Capa Editoração e Revisão de Texto Divulgação Secretaria Editorial Formato Tipologia Papel Número de Páginas Tiragem CTP, Impressão e Acabamento
Entre Gueixas e Samurais Atílio Avancini Atílio Avancini Irene Tomita Joel La Laina Sene Leila Kiyomura Silvia Santos Vieira Marcela Souza Marcela Souza Alice Kyoko Miyashiro Regina Brandão Cinzia de Araujo Eliane dos Santos 21 x 28 cm Bodoni 10,5/18 Rives Tradicion 320 g/m2 (capa) Couché Fosco 180 g/m2 (miolo) 192 2000 Imprensa Oficial