2016 6102 mario gioia organização isabel portella isabella lenzi mario gioia matias monteiro raphael fonseca curadoria e texto crítico
zip’up 2016
Este catálogo traz a sexta temporada do projeto Zip’Up, transcorrida no ano de 2016 e que, desde 2011, tem se destacado por exibir a produção de artistas emergentes e abrigar programas inéditos de curadoria. A única regra é que o artista não seja representado por nenhuma galeria do circuito paulistano. Em coletivas, feitas mais no início de seu funcionamento, a participação não era rígida nesse ponto e, assim, nomes mais veteranos e inseridos puderam participar de exposições como Território de Caça (2011) e Imagem Mi(g)rante (2012). Ao final da temporada 2016, os números podem surpreender: 61 artistas; 17 curadores; 43 exposições. No entanto, não expressam as variadas e intensas trocas entre todos os participantes do processo que coloca no mundo uma mostra – da elaboração, passando pelos diálogos entre organizador, curador e artista, além da logística própria a cargo da galeria, que se responsabiliza em por no circuito algo que se pretende inovador. Assim, não pode se deixar de atestar que o projeto Zip’Up, até pela regularidade, foi um pequeno sopro oxigenador no meio contemporâneo das artes visuais em São Paulo.
This catalog features the sixth season of the Zip’Up project, held in 2016 and which, since 2011, has stood out for exhibiting the production of emerging artists and hosting unpublished curatorial programs. The only requirement is that the artist must not be represented by any gallery of the São Paulo circuit. In the collective exhibitions of its early years, this requirement was less rigid, and thus more veteran names were able to participate in exhibitions such as Território de Caça (2011) and Imagem Mi(g)rante (2012). By the end of the 2016 season, the numbers can be surprising: 61 artists; 17 curators; 43 exhibits. However, these figures do not express the multiple and intense exchanges among all of the participants of the process which reveals a work to the world - from the elaboration, to the dialogues among the organizer, the curator and the artist, in addition to the logistics managed by the gallery itself, who takes on the challenge to bring to the circuit something claimed as innovative. Thus, it cannot be denied that the Zip’Up project, has been a small but steady breath of new oxygen into the contemporary medium of visual arts in São Paulo, especially so for its regularity.
Na temporada 2016, cinco proposições, variadas entre si, tiveram espaço na sala expositiva do segundo andar da galeria. O carioca Raphael Fonseca pôde apresentar mais um artista, Zé Carlos Garcia, também da mesma cidade. Isabel Portella exibiu o trabalho multifacetado de Ursula Tautz, ambas do Rio de Janeiro. Radicada em Brasília, a paraibana Iris Helena, como artista, e Matias Monteiro, como curador, apresentaram sua pesquisa visual. A paulistana Isabella Lenzi fez a curadoria de Quando Linhas Imaginárias Entrecruzam Latitude e Longitude, da capixaba Thais Graciotti. E a produção híbrida, mas calcada no pictórico, da paulistana Diana Motta fechou o ano, com curadoria minha. Para a temporada 2017, outras novidades virão à tona, sempre com o propósito de, por meio de distintas e numerosas linguagens da visualidade contemporânea, não acomodar nem estancar a potência de novos artistas, curadores e críticos. Mais saudações a quem apoia tal programa.
In the 2016 season, five distinct propositions earned their space in the exhibition room of the second floor of the gallery. The Rio de Janeiroborn Raphael Fonseca had the opportunity to present another artist, Zé Carlos Garcia, also from the same city. Isabel Portella exhibited the multifaceted work of Ursula Tautz, both from Rio de Janeiro. Based in Brasilia, Iris Helena, as an artist, and Matias Monteiro, as curator, presented their visual research. The São Paulo-born Isabella Lenzi curated Quando Linhas Imaginárias Entrecruzam Latitude e Longitude, by artist from Espírito Santo Thais Graciotti. And the hybrid production, but based on the pictorial, of São Paulo-born Diana Motta closed the year, of which I was the curator. For the 2017 season, other novelties will come to the fore, always with the purpose of through different and numerous languages of contemporary visuality – to foster the power of new artists, curators and critics. A Salute to those who support such a program.
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Mario Gioia (São Paulo, 1974)
Mario Gioia (São Paulo, 1974)
Curador independente, é graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes desde 2011, instituição na qual fez o acompanhamento crítico de Luz Vermelha (2015), de Fabio Flaks, Black Market (2012), de Paulo Almeida, e A Riscar (2011), de Daniela Seixas, além do acompanhamento crítico da coletiva Ateliê Fidalga no Paço das Artes (2010). Foi crítico convidado de 2013 a 2015 do Programa de Exposições do CCSP (Centro Cultural São Paulo) e fez, na mesma instituição, parte do grupo de críticos do Programa de Fotografia 2012. Em 2015, no CCSP, fez a curadoria de Ter lugar para ser, coletiva com 12 artistas sobre as relações entre arquitetura e artes visuais. Já fez a curadoria de exposições em cidades como Brasília (Decifrações, Espaço Ecco, 2014), Porto Alegre (Ao Sul, Paisagens, Bolsa de Arte, 2013) e Rio de Janeiro (Arcádia, CGaleria, 2016). É colaborador de periódicos de artes como Select e foi repórter e redator de artes visuais e arquitetura da Folha de S.Paulo de 2005 a 2009. Coordenou por seis anos (de 2011 a 2016) o projeto Zip’Up, na Zipper Galeria, destinado à exibição de novos artistas e projetos inéditos de curadoria. Em 2016, assinou os textos críticos das mostras Pareidolia (Emma Thomas, em Nova York) e Territórios Forjados (Sketch Galería, em Bogotá) e em 2017 será o curador responsável pela seção brasileira na ArtLima 2017, a CAP Brasil.
Independent Curator, graduated by ECA-USP (School of Communications and Arts of the University of São Paulo) and part of the Paço das Artes critics group since 2011, where he did the critical follow-up of Luz Vermelha (2015) by Fabio Flaks, of Black Market (2012) by Paulo Almeida, and of A Riscar (2011) by Daniela Seixas, as well as the critical follow-up of the collective exhibit Ateliê Fidalga no Paço das Artes (2010). He was a guest critic at the CCSP Exhibit Program (Centro Cultural São Paulo) from 2013 to 2015, and was part of the critics group of the 2012 Photography Program in the same institution. In 2015, at CCSP, Mario curated Ter lugar para ser, a collective exhibit with 12 artists on the relationship between architecture and the visual arts. He has curated exhibitions in cities such as Brasilia (Decifrações, Espaço Ecco, 2014), Porto Alegre (Ao Sul, Paisagens, Bolsa de Arte, 2013) and Rio de Janeiro (Arcádia, CGaleria, 2016). He is a contributor to art journals such as Select and was a reporter and editor of visual arts and architecture at Folha de S.Paulo from 2005 to 2009. He has coordinated the Zip’Up project at Zipper Galeria for six years (from 2011 to 2016) aimed at the exhibition of new artists and unpublished curatorial projects. In 2016, he signed the critical texts of the exhibitions Pareidolia (Emma Thomas, in New York) and Territórios Forjados (Sketch Galería, in Bogotá), and in 2017 he will be the curator responsible for the Brazilian section at ArtLima 2017, CAP Brazil.
ganimedes 6 zé carlos garcia | curadoria: raphael fonseca armadilha para distender o espaço ursula tautz | curadoria: isabel portella
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paraísos fiscais iris helena | curadoria: matias monteiro
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quando linhas imaginárias entrecuzam latitude e longitude thais graciotti | curadoria: isabella lenzi
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and listen to the wind blow diana motta | curadoria: mario gioia
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zĂŠ carlos garcia
ganimedes ganymede
O cenário dos acontecimentos é o Monte Ida, na atual Turquia, a sudeste da cidade de Tróia. Zeus se encanta com um príncipe, filho do rei da Dardânia, de nome Ganimedes e que trabalha nos rebanhos de seu pai. O rapaz é comumente representado nas artes visuais como portador de um corpo atlético, mas não exageradamente musculoso, aparentemente na virada entre a adolescência e a primeira fase adulta. Deslumbrado com a visão pastoril desse efebo, Zeus decide tomá-lo para si por meio de uma águia – há fontes que afirmarão que o próprio deus se transforma nela e outras dirão que ele invoca o animal. Tirado da esfera familiar da Dardânia, Ganimedes é levado para a companhia de Zeus e é o novo responsável por servir vinho aos deuses. Como agrado ao rapaz e benfazejo ao seu inconsolado pai, Zeus atribui ao jovem a imortalidade. A narrativa greco-romana sobre Ganimedes pode ser interpretada como um exemplo do poder de arrebatamento de uma imagem em diversas esferas: estética, geracional, sensual e sexual. *** A presente exposição de Zé Carlos Garcia dialoga com este mito. É possível aproximar
The scenario of events is Mount Ida, in modern Turkey, southeast of the city of Troy. Zeus is charmed by a prince, the son of the King of Dardania named Ganymede, who works in his father’s herds. The boy is commonly represented in the visual arts as having an athletic body, but not overly muscular, apparently transitioning between adolescence and early adulthood. In awe of the pastoral vision of this ephebe, Zeus decides to take ownership of him via an eagle - there are sources that affirm that Zeus himself turns into the eagle, while others say that he invokes the animal. Taken away from the family sphere of Dardania, Ganymede is brought to the company of Zeus and becomes the one in charge of serving wine to the gods. As a treat to the boy and in generosity to his devastated father, Zeus grants immortality to the young man. The Greco-Roman narrative of Ganymede may be interpreted as an example of the power of rapture of an image in different spheres: aesthetic, generational, sensual and sexual. *** This exhibition by Zé Carlos Garcia speaks to this myth. It is possible to connect the artist’s research, with a path of about ten years, to the 9
a pesquisa do artista, com uma trajetória de cerca de dez anos, à mutação entre o humano e o animal vivenciada por Zeus. As esculturas e objetos gerados por ele se encontram por diversas vezes entre o reconhecimento estrutural de móveis e anatomias animais, e o estranhamento proporcionado pela plasticidade dilacerada dos corpos estranhos que se instauram. De uma antiga cadeira de madeira saem penas de um pássaro e da trama de palha de outro móvel brota um pequeno inseto. Os fazeres artesanais e da zoologia se encontram e geram imagens que parecem em transformação perante os nossos olhos. Para a ocupação da sala destinada ao projeto Zip’Up, o ponto de partida do trabalho foi o encontro entre o corpo humano e os limites arquitetônicos dados pelo espaço; trabalhar a partir de site specifics é algo que tem interessado cada vez mais ao artista. A imagem de uma estrutura tridimensional suspensa e composta pela variação cromática de penas pretas emergiu perante os nossos olhos. Uma vez a observar a confecção da peça, parecia difícil distanciá-la de um grande pássaro preto que, por fim, nos remeteu à história de Ganimedes. Em vez de fugir das garras desse resquício de pássaro, desejamos que os espectadores se entreguem ao seu chamado e explorem seu movimento através de uma postura física ativa. Congelada no tempo pelas mãos de Zé Carlos, esta imagem pede uma lenta fruição de sua sensação de encarceramento, deixando
mutation between human and animal lived by Zeus. The sculptures and objects generated by him are found several times in the structural recognition of furniture and animal anatomies, and the estrangement created by the torn plasticity of odd bodies. Bird feathers come out of an old wooden chair, and a small insect sprouts out of the hay weaving of another piece of furniture. Artisanal and zoology motions meet and generate images that seem to be changing before our eyes. For the occupation of the room intended for the Zip’Up project, the starting point of the work was the meeting point between the human body and the architectural limits in the space; working from site specifics is something that the artist has become increasingly interested in. The image of a suspended three-dimensional structure composed by a chromatic variation of black feathers emerged before our eyes. When observing the making of the piece, it seemed difficult to distance it from a large black bird, which finally referred us to the story of Ganymede. Instead of running away from the talons of this remnant bird, we want the audience to surrender to its call and exploit its movement through an active physical posture. Frozen in time by the hands of Zé Carlos, this image calls for a slow enjoyment of his sense of imprisonment, rendering uncertain its landing or rise movement established by his presence.
incerto o seu movimento de pouso ou ascensão instaurado pela sua presença. Convidamos o público a, mais do que se colocar ficcionalmente no lugar do jovem raptado, subverter a fonte e recodificá-la a partir de suas visões particulares da soma entre desejo e posse. Tal atitude é dialógica ao gesto do artista de deslocar o material orgânico e criar uma narrativa que pede diferentes começos, meios e fins. Espera-se que o pássaro enviado ao Monte Ida pouse em São Paulo sendo um pouco de urubu, um pouco de pavão e outro tanto de corvo; que o fantasma da imortalidade de Ganimedes volte à sua terra-natal e que as imagens, sejam elas artísticas ou carnais, sigam a nos atiçar e nos jogar nesse lugar movediço entre a paixão e a violência.
We invite the public to do more than just fictionally put themselves in the shoes of the kidnapped youth, but to subvert the source and to recode it from their personal visions of the sum of desire and possession. Such attitude is dialogic to the artist’s gesture of moving the organic material and creating a narrative that asks for different beginnings, middles and ends. It is expected that the bird sent to Mount Ida will land in São Paulo, being part vulture, part peacock and part crow; that the ghost of Ganymede’s immortality return to its homeland and that the images, whether artistic or carnal, continue to entice and throw us into this shifting place between passion and violence. Raphael Fonseca
Raphael Fonseca
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GANIMEDES, 2016 Zé Carlos Garcia escultura em penas [sculpture with feathers] 500 x 250 x 300 cm
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ursula tautz
lugar familiar familiar place
Talvez seja mais uma questão de buscar estar em casa aqui, no único momento e contexto que temos...
Perhaps it is more a question of seeking to feel at home here,in the only moment and context that we have...
Ian Chambers
Ian Chambers
Ursula Tautz apresenta fotografias e uma videoinstalação. Pesquisando as relações que envolvem o habitar, o pertencer, a artista utiliza a (re) significação do espaço para o desenvolvimento de suas questões: a inquietação, um certo mal-estar permanente, condição pós-moderna de ser estrangeiro na própria terra. A série de fotografias foi desenvolvida na cidade de Ołdrzychowice Kłodzkie, Polônia, antiga Ullersdorf an der Biele, local de origem de sua família. São cinco fotografias manipuladas digitalmente, impressas em papel fotográfico sobre PS, além de uma projeção em looping na parede. Nestas apreensões, em posição fetal e de vermelho, a artista atua como personagem para se fundir à paisagem e à arquitetura. Após o registro, Ursula sobrepõe duas ou mais fotos, criando um duplo dela mesma, procurando outros significados para o espaço fotografado.
Ursula Tautz presents photographs and a video installation. Researching the relationships involving dwelling, belonging, the artist uses the (re) signification of the space for the development of her own questions: inquietude, a permanent uneasiness, the postmodern condition of being a foreigner in your own land. The series of photographs was carried out in the city of Ołdrzychowice Kłodzkie, Poland, former Ullersdorf an der Biele, where her family is from. They consist of five digitally manipulated photographs, printed on photographic paper in PS, as well as of a looping projection on the wall. In these snapshots, coloured in red and in the fetal position, the artist acts as a character so as to merge with the landscape and the architecture. After the capture, Ursula overlaps two or more photos, creating a double of herself, looking for other meanings to the photographed space.
Ursula faz uma viagem de buscas. Intrigada com a trajetória familiar, vai ao encontro do passado que não conheceu, mas que está sempre
Ursula makes a search journey. Intrigued by the familiar trajectory, she travels to the past she never knew, but which is always present, filling her everyday with memories. Retracing the path 23
presente, povoando de lembranças e memórias o seu cotidiano. Refazer o caminho percorrido por seus parentes é um impulso vital, necessário e urgente. Mais do que tudo, a artista procura a sua história, seus locais de pertencimento, suas raízes. É importante que nada fique esquecido. Nem a guerra, nem a fome, nem a casa da Polônia e seus arredores. Refazer ciclos ajuda a aplacar angústias e sentimentos de falta, mas nunca o estranhamento do não pertencimento. A proposta da artista é bastante reveladora de suas inquietações. Em solo polonês, terra natal de seus ancestrais, Ursula busca renascer, encontrar seu lugar. Assume uma posição fetal e se deixa fotografar sobre a terra, sobre a vegetação que cresce independente, sem cuidados. Ali é seu lugar de gestação, lugar secreto, aconchegante e familiar, mas também, de certo modo, estranho. “O estranho é algo secretamente familiar que foi submetido à repressão e depois voltou”, segundo menção de Freud, desenvolvida no ensaio “Das Unheimliche” (1919). A identificação com o lugar é tanta que ela mesma vai aos poucos se misturando à vegetação. A luz e as cores completam o texto que surge por trás da imagem. Com extrema delicadeza, as imagens de Ursula falam de reencontro, mudanças, entrega e aceitação. Isabel Portella
once taken by her relatives is a vital impulse, necessary and urgent. More than anything, the artist seeks her history, sites where she belongs, her roots. It is important that nothing is forgotten. Not the war, nor the hunger, nor the Poland house and its surroundings. Redoing cycles helps assuage anxieties and feelings of lacking, but never the strangeness of not belonging. The proposal of the artist is quite revealing of her restlessness. On Polish soil, homeland of her ancestors, Ursula seeks rebirth, to find her place. She goes into the fetal position and allows herself to be photographed on the ground, on the vegetation that grows independently and without care. This is her place of gestation, a secret, cozy and familiar place, but also foreign in a way. “The uncanny is something which is secretly familiar, which has undergone repression and then returned” according to a mention by Freud, developed in the essay “Das Unheimliche” (1919). The identification with the place is such that she herself gradually blends in with the vegetation. The light and the colors complete the text that appears behind the image. With extreme delicacy, Ursula’s images speak of reunion, changes, surrender and acceptance. Isabel Portella
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SÉRIE ESTRANHAMENTOS, 2014 Ursula Tautz manipulação digital, pigmentos minerais sobre papel fotográfico [digital manipulation, mineral pigments on photographic paper] 90 x 140 cm
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SEM TÍTULO (SÉRIE ESTRANHAMENTOS), 2014 Ursula Tautz projeção de vídeo sobre tecidos [video projection on fabrics] 1’09’’
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ESTAMOS TODOS TENTANDO NOS SENTIR EM CASA II, 2016 Ursula Tautz instalação – balanços em madeira 30 x 50 cm, cabo de aço dourados, fios dourados [wood swing 30 x 50 cm, golden steel cables, golden wires] dimensões variáveis [variable dimensions]
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iris helena
paraĂsos fiscais tax havens
a | pagar
to be paid | erased
[...] o olhar vertiginoso não precisa sequer de uma fissura explícita para se entregar.
[...] the vertiginous view does not even need an explicit crack to deliver itself.
Luciana Paiva, Precário, fragilidade e instabilidade na imagem.
Luciana Paiva, Precarious, fragility and instability in the image.
Poderia essa dispersão de objetos, tão banais e precários, coadunar em uma inusitada constelação gráfica? Meros papéis (ou apenas suas imagens), ora ancorados sobre a parede, como esses pequenos abismos ordenados, ora emergindo impassíveis do solo, como insólitos objetos tectônicos; seja como for, a densidade não se dissipa: nada parece redimir esses recibos de sua condição de resto/rastro depreciado de uma transação comercial.
Could this dispersion of objects, so banal and precarious, be assembled as an unusual graphic constellation? Mere papers (or just its images), at times anchored on the wall, as small ordered chasms, and at times emerging indifferently to the ground, as uncommon tectonic objects; either way, the density does not dissipate: nothing seems to redeem these receipts from their condition of remains / trail depreciated from a commercial transaction.
O registro da compra como uma adesão silenciosa que se faz inscrever: os tickets, vias do cliente, comprovantes de compra, emitidos pelos sistemas informatizados de débito e crédito bancário, reiteram a dimensão mercantil da experiência cotidiana. Via: dubiedade semântica entre a nota de registro e a visão pretérita/olhar obsoleto... talvez um percurso? À vista: modalidade de fatura imediata ou aquilo que adere ao campo escópico. Vivemos, desde já, esse esgarçamento, condição da memória como paisagem.
The record of purchase as a silent membership that is recorded: the tickets, customer copies, the receipts, issued by computerized debt and credit bank systems, reiterate the commercial dimension of the daily experience. Copy: semantic dubiousness between the record slip and the preterit vision / obsolete view ... maybe a route? Cash/Debit Payment: an immediate form of invoice or that which adheres to the scopic field. We experience, as of now, this fraying, this condition of memory as landscape.
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Que a artista opte por esse suporte, em sua qualidade de rastro urbano, não causa espanto; Iris Helena o vem explorando há anos em meio a suas investigações acerca das noções de construção, representação, registro e ressignificação da memória urbana como fenômeno afetivo e social. No entanto, aparentemente, aqui ela abdica da intervenção por meio dos processos de impressão. Onde antes havia o interesse pela trama da sobreposição de inscrições (série arquivo morto [2014]), pela imagem da cidade que vai habitar, de bom grado, todo o tipo de suporte provisório da escrita (o post-it, o marcador de página... o cupom) ou de escombros (séries casa préfabricada [2016]), agora afigura o fascínio pela supressão, pela estratigrafia da inscrição. Em todo caso, estamos entregues ao enlace da memória: eis nosso próprio bloco mágico, no qual se tramam e enervam as inscrições e no qual todo apagamento é vivenciado como um evento de superfície. Afinal, a efemeridade da inscrição no papel termossensível faz deste esvaecimento condição destes subprodutos; evidências de um regime comercial condicionadas pela fugacidade do registro, tendo a obsolescência por programa e a efemeridade como suposta garantia de segurança/sigilo (e, em última instância, de um ideal metropolitano de anonimato). O amontoamento destes comprovantes se dá por causas incidentais e seu acúmulo sistemático por finalidades comprobatórias. Mas, aqui, não se trata de nenhum dos dois. O que justifica
That the artist chooses this support, in its quality of urban trail, does not cause astonishment; Iris Helena has been exploring this for years amid her investigations about concepts of construction, representation, registration and reinterpretation of urban memory as an affective and social phenomenon. However, here she apparently renounces the intervention through the printing process. Where once there was an interest for the plot of record overlays (series ‘arquivo morto’ [2014]), for the image of the city that will house, willingly, all kinds of temporary writing supports (post-its, page markers ... the coupon) or of debris (series ‘casa pré-fabricada’ [2016]), now there seems to be a fascination with suppression, with the stratigraphy of registering. In any case, we are subject to the entanglement of memory: here is our own magic block, in which records are plotted and are unnerved, and where all deletion is experienced as a surface event. After all, the ephemerality of registration on thermosensitive paper makes this evanescence a condition of these by-products; evidences of a commercial regime conditioned by the transience of the record, having program obsolescence and ephemerality as a supposed guarantee of security / confidentiality (and, ultimately, as a metropolitan ideal of anonymity). The heaping of these receipts is normally incidental and its systematic accumulation happens for evidential purposes. But here, it is neither. What justifies this collection? Would it be the same mysterious motivations of collections, driven by its perpetual incompleteness? Would
esse conjunto? Seriam as mesmas motivações misteriosas das coleções, impulsionadas por sua perpétua incompletude? Seria a conduta rigorosa da coleta laboratorial? Seria o ímpeto arquivístico, na constituição de um inusitado acervo de tickets, na qual toda a existência é vertida nessas diminutas ruínas do consumo? Podemos, ainda, impelidos pela inconsequência de nossos devaneios, sonhar em cardumes: pensar nos depósitos salinos das estalactites, na cumplicidade dos grãos de uma duna, na afinidade milenar das rochas irmanadas em uma montanha – enfim, recorrer a toda sorte de geologias de pequenas gramaturas. Afinal, a via do consumidor é também uma ocorrência cromática, com azuis atmosféricos, esmaecidos amarelos matinais e horizontes lilasescrepusculares, como curiosas auroras boreais ortogonais, expressão mecânica que sinaliza senão o fim da bitola. A fugacidade das informações impressas contrasta com a persistência das informações institucionais/burocráticas que teimam, ainda, em fazer-se inscrição. A fragilidade do suporte faz com que a simples manipulação ou acondicionamento imprudente produzam-lhe novas texturas, sugiram-lhe novas plasticidades (a dobra, o rasgo, o amassado, as fraturas fibrosas) ... e, assim, por artifício da artista, revelam-se as topografias do descarte, que convertem estes pequenos restos depreciados em sutis eventos poéticos, em acidentes geológicos, paisagens vertiginosas, arquiteturas obtidas pela improvável engenharia dos vincos
it be the strict conduct of laboratory collection? Would it be the archival impulse in the creation of an unusual collection of slips, in which all existence is poured into such tiny ruins of consumption? We could also, driven by the inconsequence of our reveries, dream of shoals: think of the saline deposits of stalactites, the complicity of the grains in a sand dune, of the ancient affinity of twinned rocks on a mountain - in short, imagine all sorts of light-weight geologies. After all, the consumer receipt is also a chromatic occurrence, with atmospheric shades of blue, dimmed morning yellows, and lilac-crepuscular horizons as curious orthogonal auroras, a mechanical expression signalling but the end of the gauge. The transience of the printed information contrasts with the persistence of the institutional / bureaucratic information which is stubbornly recorded. The fragility of the support causes the simple manipulation or reckless packaging to produce new textures, to suggest new plasticities (fold, tear, crumpled, fibrous fractures) ... and thus by artifice of the artist, the topographies of disposal are revealed, which convert these small depreciated remains into subtle poetic events, into geological accidents, vertiginous landscapes, architectures obtained by the unlikely engineering of creases and folds. On the trail of consumption, dreams the paper geologist, to whom all prominence is imminent deletion or complete obscuration of the word in the night (as shown by one of the objects of the series ‘indícios’); every tectonic rumor insinuates itself in the inexorable 37
e dobras. Sobre o rastro do consumo, sonha o geólogo de papéis, para o qual todo relevo é iminência de apagamento ou de obscurecimento completo na noite da palavra (como demonstra um dos objetos da série indícios); todo rumor tectônico insinua-se no confronto inexorável entre a textura do desgaste e a textualidade em estado de desaparição.
COURTOISIE, Rafael. Estado Sólido. In: Jinetes del aire: poesía contemporánea de Latinoamérica y el Caribe. Santiago, Chile: Ed. RIL editores. 2011. PINHEIRO, Luciana Paiva. Precário: fragilidade e instabilidade na imagem. Brasília: Universidade de Brasília, Instituto de Artes, 2010. SOUSA, Edson Luiz André. Uma Invenção da Utopia. SP: Lumme Editor. 2007.
O abandono (uma poética não propriamente do detrito, mas da matéria em desamparo) convertese em um sistema construtivo no qual a textura preenche toda a superfície, ocupa a vacância do texto e sugere-se como uma escritura do incessante. São essas paisagens indiciais (como sugere o título da série), essas arqueologias, mitologias, esses quadrantes, que constituem um universo de reminiscências, no qual a precariedade singela mobiliza-se e faz resistência contra a ávida fúria do bom funcionamento [SOUSA: 2007, p. 12]. Matias Monteiro
confrontation between the wear texture and the textuality in a state of disappearance. The abandonment (a poetry not exactly of the debris, but of matter left to be) is converted into a constructive system in which the texture fills the entire surface, occupies the vacancy of the text and is suggested as a deed of the unceasing. It is these indexical landscapes (as suggested by the title of the series), these archaeologies, mythologies, these quadrants, that constitute a universe of reminiscences, in which the simple precariousness is mobilized and resists the greedy fury of good functioning [SOUSA: 2007, P. 12]. Matias Monteiro
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INDÍCIO N.1, 2016 Iris Helena composição com tickets de pagamento variados e apagadas [10 compositions with faded tickets foldings] 45 x 7 cm (cada) QUADRANTES, 2016 Iris Helena Impressão jato de tinta sobre papel algodão [inkjet printing on cotton paper] dimensões variáveis [variable dimensions]
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ARQUITETURA INCIDENTAL N.1, 2013 Iris Helena 10 composições com dobradura de tickets variados [10 compositions with tickets foldings] 8 x 133 cm
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thais graciotti
when imaginary lines interweave latitude and longitude
quando linhas imaginรกrias entrecruzam latitude e longitude
travessias e traduções
crossings and translations
“Eu tinha três anos. Meu irmão Miguel, um pouco mais. Embarcamos em Lisboa com destino ao Brasil. Foram 21 dias de viagem. Ou seriam 19? Minha memória me trai.”
“I was three years old. My brother Miguel, a bit older. We embarked in London bound for Brazil. It was a 21-day trip. Or was it 19? My memory betrays me.”
M. T.
M. T.
“O esforço é grande e o homem é pequeno. Eu, Diogo Cão, navegador, deixei Este padrão ao pé do areal moreno E para diante naveguei.”
“The effort is great and the man is small. I, Diogo Cao, navigator, left This pillar by the tawny sand And ahead I sailed.”
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa
“A aventura marinha e a viagem distante são, antes de tudo, aventuras e viagens contadas” – relembra Thais Graciotti citando o filósofo francês Gaston Bachelard. Nos relatos de viagens e travessias reunidos pela artista, realidade e ficção se mesclam todo o tempo. Os viajantes fabulam o distante e seus contos misturam sonhos e desejos.
“Sea marine adventures and distant travels are, above all, narrated adventures and travels” – Thais Graciotti recalls, quoting French philosopher Gaston Bachelard. In the accounts of travels and crossings put together by the artist, reality and fiction constantly merge. Travelers recount the distance and their tales blend dreams and desires.
A partir do mar e do ato de ir de um território a outro atravessando um oceano de incertezas que esta exposição é pensada. Nela, histórias reais e literatura convivem e se cruzam. Histórias heroicas, frustradas, alegres e de dor. Memórias turvas de imigrantes e emigrantes, relatos de refugiados, narrativas de tempestades no oceano, sensações daqueles que viveram entre a terra e o mar, o passado e o futuro, o cartografado e o inusitado.
From the sea and the action of moving from a territory to another crossing an ocean of uncertainties that this exhibition is thought up. In it, real stories and literature live together and intersect. Heroic, frustrating, happy and painful stories. Blurred memories of immigrants and emigrants, refugees’ accounts, narratives of ocean storms, sensations from those that lived between land and sea, the past and the future, the mapped out and the unusual. 51
O viajar pressupõe a ideia de fronteira, o risco geográfico e a relação com o outro. É um fenômeno transitório que implica na transgressão e na comunicação. A viagem é um limiar, uma ponte, uma encruzilhada que conecta geografias, diferentes civilizações, culturas, religiões, raças, ideologias e sistemas políticos. Já a escrita de viagem pode ser vista como um ato de tradução que, portanto, reconhece a diferença entre o local de partida e de chegada e relata a tensão deste “espaço entre” vivenciado pelo viajante. Nesses escritos há uma tentativa de domesticar o desconhecido e ultrapassar medos. Seja na viagem ou no seu relato, fica claro que a ideia de sobrevivência se aproxima de uma capacidade de reinventar outros mundos e instaurar novos territórios. Nessas travessias, impostas ou por escolha, resultantes de um desejo de ir em busca de um novo mundo ou de uma vida melhor, o risco está sempre presente. A própria etimologia da palavra – que vem do latim, risicare (ou resicare), que significa ousar – demonstra isso. O “risco” surge no contexto das primeiras viagens marítimas, como “perigo oculto do mar”, e passa a ter expressão nos séculos XVI e XVII. A palavra parece ter chegado ao inglês a partir do espanhol ou do português, línguas utilizadas para caracterizar a navegação em mares desconhecidos. Os relatos, de diferentes origens, chegaram à artista, em sua maioria, em português e inglês – somente alguns deles na língua original. Thais então pediu para que outros imigrantes,
Traveling presupposes the idea of a border, a geographical line and the relationship with the other. It’s a temporary phenomenon that involves transgression and communication. The trip is a threshold, a bridge, a crossroads that connects geographies, different civilizations, cultures, religions, races, ideologies and political systems. In contrast, travel writing can be seen as an act of translation that, therefore, recognizes the difference between the point of departure and the destination and depicts the tension of this “space in between” experienced by the traveler. In these writings there is an attempt to tame the unknown and overcome fears. Be it on a trip or in their account, it is clear that the idea of survival resembles an ability to reinvent other worlds and establish new territories. In these crossings, imposed or by design, resulting from a desire to search for a new world or a better life, the risk is always present. The etymology of the word itself – which comes from Latin, risicare (or resicare), and means to dare – makes that clear. The “risk” emerges in the context of the first sea travels, as a concealed danger at sea, and becomes an expression in the 16th and 17th centuries. The word seems to have entered the English Language coming from Spanish or Portuguese, languages used to depict sailing in unknown seas. The accounts, from different origins, reached the artist mostly in Portuguese and English – only some of them in their original language. Thais then asked other immigrants, refugees, emigrants
refugiados, emigrantes, viajantes nômades, fizessem a tradução dessas falas para sua língua original. Neste exercício, pôde investigar a comunicação entre diferentes línguas e as perdas e novas camadas que surgem nesse processo. A falta de neutralidade do espaço de tradução, atravessado por relações de poder e desejo, é então ressaltado. A artista opta por materializar essas múltiplas vozes e experiências narradas em placas de vidro com os relatos gravados com sal. As placas, de diferentes tamanhos, espalhadas pelo espaço, retomam sensações trazidas pelo mar e o movimento das águas. A transparência, a reflexão, o horizonte, as barreiras e o risco. Sobrepostas e postas lado a lado, as memórias das trajetórias marítimas, tão díspares, criam uma zona de contato transcultural e atemporal, em que sujeitos anteriormente isolados - geográfica e historicamente - cruzam suas histórias com outros tempos e espaços. A pluralidade dos textos e a mescla entre ficção, literatura e realidade instauram um território expositivo entre o mar e o livro. A água, em seus diferentes estados, está presente no texto, no vidro, no sal, no ambiente. O sal, cristalizado e fixado no vidro, desenha a história dos viajantes e se modifica de acordo com o clima, escorrendo em dias mais húmidos e enrijecendo em dias secos. Do viajar, que é uma forma de esparramar-se geograficamente por espaços abertos, resta, seja
and traveling nomads to translate these accounts into their original language. In this exercise, she could look into the communication between different languages, and the losses and the new layers that stand out in this process. The lack of neutrality in translation space, cut across by relations of power and desire, is then highlighted. The artist chooses to bring forth these multiple voices and narrated experiences through glass plaques etched in salt. The plaques, of different sizes, scattered all over the place, bring back sensations triggered by the sea and the movement of water. Transparency, reflection, the horizon, the barriers and the risk. Overlapped and placed side by side, memories from sea journeys, so dissimilar, create a place of transcultural and timeless contact, in which previously isolated subjects – geographically and historically – interweave their stories with other times and spaces. The plurality of texts and the blend of fiction, literature and reality establish a depictive territory between the sea and the book. Water, in its different states, is present in the text, in the glass, in the salt, in the environment. The salt, crystallized and stuck to the glass, draws the story of travelers and undergoes changes according to the weather, trickling down on humid days and stiffening on dry days. From traveling, which is a way of stretching geographically through open spaces, what remains is, be it in literature or in the narrative 53
na literatura ou na narrativa daqueles que viveram a experiência da travessia, a memória gloriosa, romanceada e repleta de lacunas. “Guardo a imagem nebulosa de um homem na piscina e do navio a singrar mar azul. O comandante se chamava Cristo. É mesmo verdade? Ou inventei? Quando cheguei ao porto de Santos, não reconheci meus pais, que não via há mais de seis meses. Isso me contaram depois. Mas nem isso é certo. Outro dia meu pai me disse que não era verdade.”, relata uma das viajantes.
of those that experienced the crossing, the glorious memory, romanticized and fraught with gaps. “I retain the cloudy images of a man in the swimming pool and the ship sailing on the blue sea. The captain’s name was Cristo (Christ). Is this really true? Or did I make it up? When I arrived at the port of Santos, I didn’t recognize my parents, whom I hadn’t seen for more than six months. They told me that afterwards. But not even that is certain. Another day my father told me it wasn’t true”, says one of the travelers.
Isabella Lenzi
Isabella Lenzi
SEM TÍTULO, 2016 Thais Graciotti impressão fotográfica sobre papel algodão [inkjet printing on cotton paper] 33 x 38 cm
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diana motta
and listen to the wind blow
* O título do texto se inspira em livro homônimo, datado de 1919, de Alfonsina Storni (18921938), figura de proa das vanguardas literárias da Argentina * The title of the text is inspired by a book with the same title, which dates from 1919, by Alfonsina Storni (1892-1938), a figurehead of Avant-Gard literature in Argentina.
irremediavelmente*
irremediably*
Adentrar uma sala de espelhos pode ser a sensação que se evidencia para o público quando visita And listen to the wind blow, de Diana Motta, no projeto Zip’Up. A primeira exposição individual da artista paulistana em galerias conduz a alguns vetores poéticos da sua produção, muito particular no cenário da pintura do nosso circuito. Talvez o mais destacado seja a potência do projeto pictórico empreendido por ela. Mesmo que por meio de outras linguagens, a pintura marca vídeos, desenhos e colagens, entre outros suportes, realizados por Diana.
Stepping into a mirror room could be the sensation that the public experiences when they visit And listen to the wind blow, by Diana Motta, on project Zip’Up. The first solo exhibition by this artist from Sao Paulo in art galleries leads to some poetic vectors of her production, which is very unique when it comes to painting in our cultural scene. What may stand out is the power of the pictorial project carried out by her. Even through other languages, painting leaves a mark on the videos, drawings and collages, among other supports, produced by Diana.
Outra vertente clara dentro do recorte apresentado é a autorrepresentação, que navega numa tênue linha entre o intimismo quase obsessivo do ateliê, que a faz produzir muitos trabalhos nessa linha, e um sedutor traço de exibição deles. E isso tudo criado, visto, experienciado e veiculado em tempos de overdose de selfies e outros procedimentos de narcisismo ostensivo. Nesse campo, também vêm fecundas discussões sobre o feminino hoje, em narrativas mínimas que cruzam o confessional, o intuitivo e o ativista, por exemplo.
Another clear line presented in this excerpt is the self-portrayal, walking a thin line between an almost obsessive intimacy of the atelier, which makes her produce more works along these lines, and their alluring trait of an exhibition. And everything is created, seen, experienced and disseminated in times of an overdose of selfies and other ostensive signs of narcissism. In this area, there are also fruitful discussions about feminism today, in minimalist narratives that overlap the confessional, the intuitive and the activist, for example.
Um dado também bastante frisado em And listen to the wind blow (verso da canção The Wind, da britânica PJ Harvey, de 1998) é o trânsito fluido
Another emphasized aspect in And listen to the wind blow (taken from the song The Wind, by British singer PJ Harvey, 1998) is the artist’s 65
1. AUMONT, Jacques. O Olho Interminável (Cinema e Pintura). São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 114 2. AUMONT, Jacques. Op. cit., p. 114
da artista por uma figuração de marcante apuro e uma abstração construída com habilidade – nesta, as transparências, a sobreposição de camadas e o uso irrestrito de materiais atestam com vigor a pertinência do seu programa.
smooth circulation through an accurate figuration and a skillfully crafted abstraction – in it, the transparencies, the juxtaposition of layers and the unrestricted use of materials vigorously attest to the pertinence of her program.
A tela Espelho é uma obra-chave na mostra, em especial por sua proximidade com o vídeo Queda. A pintura, em uma escala discreta, coloca atualmente um fértil elemento de discussão já trazido por pincéis, paletas, enquadramentos de outrora e hoje (ainda mais) por cliques, stills e frames. É visível a fonte do fotográfico como base da pintura, que retrata uma paisagem menor, banal, com uma figura feminina, árvores e um carro numa rua algo tranquila, tudo envolto por uma opacidade e uma indefinição que dá ao trabalho uma envolvente atmosfera. “A tela pintada, como enunciado e como significação, se produz e se lê a partir de um espaço que não é o da ficção, mas um espaço discursivo, um fora-dequadro”1, escreve Jacques Aumont. “(…) Fazer uma imagem é, portanto, sempre apresentar o equivalente de um certo campo – campo visual e campo fantasmático, e os dois a um só tempo, indivisivelmente.”2
The painting Mirror is a key work in this exhibition, especially because of its closeness to the video Fall. The painting, on a modest scale, brings up nowadays a fruitful item for discussion provoked by paintbrushes, palettes and framing in past years and today by clicks, stills and frames. Resort to photography is evident as a foundation for painting, which portrays a minor and banal landscape, with a female figure, trees and a car on a somewhat peaceful street, everything surrounded by an opacity and an uncertainty that provide the work with an enclosing atmosphere. “The painted canvas, as an enunciation and meaningfulness, is produced and read from a space that is not fictional, but a discursive space, out of frame”1, writes Jacques Aumont. “(…) Creating an image is, therefore, to always present the equivalent of a certain field – visual field and phantasmatic field, and both at the same time, indivisibly.”2
Pois bem. Espelho, então, se aproveita desses polos do ver/não ver e migra nessa condição movediça para Queda, outra peça que habilmente se liga a procedimentos audiovisuais usualmente empregados. A água que corre com fluência e ritmadamente, na perspectiva de uma câmera fixa sintetiza com ferramentas simples
Mirror then takes advantage of those poles of seeing/not seeing and migrates in this evermoving condition into Fall, another piece that is skillfully linked to commonly adopted audiovisual procedures. The water that flows smoothly and rhythmically, from the perspective of a steady camera, summarizes with simple tools what is inseparable, inextricably linked. Then the
o indissociável, o intrincadamente ligado. E a perspectiva algo rígida da tela caminha para uma imagem móvel, na mesma toada do pigmento a tingir a água.
3. GONÇALVES FILHO, Antonio. O futuro da obra literária. O Estado de S.Paulo, Caderno 2, 30.set.2016, p.C4
O lado autorretrato de And listen… poderia se perder num exibicionismo superficial, mas o corpus da produção de Diana tem outras boas referências, como a versátil investigação sobre o feminino, entre a ostentação e a vulnerabilidade, da norte-americana Laurel Nakadate. Com vídeos, longas e fotografias, a jovem artista, criada no Iowa, parte da América profunda, desestabiliza miradas mais conservadoras e fala, em especial, de identidade em relações e encontros que hoje podem ser encarados como anacrônicos. Aqui em São Paulo, Diana envereda por um tom que flerta com o naïf e o pop, por vezes obsessivamente construído, como transparece no desenho Festa na Árvore, em que Kurt Cobain convive com divindade hindu numa frondosa vegetação ao sul do Equador. “As confissões surgiram com a religiosidade individualista da Reforma cristã e os diários se firmaram no período romântico. A autoficção é apenas a forma atual de uma prática antiga”3, explica à crítica literária Leyla Perrone-Moisés, acerca do recrudescimento desse formato e que reiteradas vezes esbarra numa raleza discursiva (o cinema também possui variados exemplos parecidos). E, por fim, a incursão abstrata de Diana pode ter uma chave formativa, já que ela estudou nos EUA por anos, e as correntes pictóricas
somewhat rigid perspective of the painting flows into a moving image, in pace with the pigment that dyes the water. The self-portrait portion of And listen to the wind blow could get lost in a superficial exhibitionism, but the corpus of Diana’s production has other good references, such as the versatile investigation of femininity, between the ostentation and the vulnerability, by NorthAmerican Laurel Nakadate. With videos, feature films and photographs, the young artist raised in Iowa, belonging to deep America, destabilizes a more conservative look and talks about identity in relationships and gatherings that can be considered anachronic. Here in Sao Paulo, Diana adopts a tone that flirts with naïf and pop, sometimes obsessively constructed, as it seems in the drawing Festa na Árvore, in which Kurt Cobain coexists with a Hindu deity in a leafy vegetation to the south of the Equator. “The confessions came from religious individualism in the Protestant Reformation and the diaries took hold in the Romantic period. Autofiction is only the current form of an ancient practice”3, explains literary critic Leyla Perrone-Moisés in an interview, about the recrudescence of this form and that it oftentimes bumps into discursive shallowness (there are many similar examples in cinema). In conclusion, Diana’s abstract incursion could have a formative key, in that she studied in the USA for years, and the pictorial currents that circulate there may be less rigid than the ones experienced here. The new phase of this artist 67
que circulam por lá talvez sejam menos rígidas que as vivenciadas por aqui. A nova fase da artista paulistana ecoa influências tão diversas como Joan Mitchell (1925-1992), Albert Oehlen, Dana Schutz e Eddie Peake, entre outros. A obra pouco reverente de Diana Motta, lançando mão de estratégias fragmentadas, exala frescor, como um escrito seu, Fresh, a explodir em pintura homônima recente. O cromatismo e a multiplicidade do seu olhar, portanto, têm muito a falar sobre a transitoriedade e a permanência, o desencanto e o fascínio, o parcial e o completo da visualidade contemporânea. Mario Gioia
from São Paulo draws upon influences as diverse as Joan Mitchell (1925-1992), Albert Oehlen, Dana Schutz and Eddie Peake, among others. The slightly reverent works by Diana, adopting fragmented strategies, exhale freshness, as one of her writings, Fresh, exploding into a recent painting by the same name. The chromaticism and the multiplicity of her look, therefore, have a lot to say about the fleetingness and the permanence, the disenchantment and the fascination, the partial and the complete of contemporary visuality. Mario Gioia
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ร RVORE, 2015 Diana Motta รณleo sobre tela [oil on canvas] 18 x 30 cm
COQUEIROS, 2016 Diana Motta colagem sobre papel [collage on paper]
SEM TÍTULO, 2016 Diana Motta óleo sobre tela [oil on canvas] 50 x 70 cm
FESTA NA ÁRVORE, 2015 Diana Motta lápis grafite sobre papel [graphite pencil on paper] 80 x 100 cm
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CORAÇÃO, 2016 Diana Motta óleo e spray sobre tela [oil and spray on canvas] 180 x 130 cm QUEDA, 2016 Diana Motta vídeo [video] 1’16”
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ESPELHO, 2016 Diana Motta รณleo sobre tela [oil on canvas] 60 x 60 cm
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catálogo elaborado no verão de 2017
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diana motta iris helena thais graciotti ursula tautz zé carlos garcia
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