Marcelo De Angelis
Marcelo De Angelis
Escrevo para ser lido. Isto é, para que olhos possam contemplar palavras e abstrair impressões. Ainda que tenha nascido oral, a poesia hoje se apresenta impressa por excelência, no papel ou no meio virtual, e dessa forma se aventura e propõe elocubrações estéticas, míticas ou metafísicas, que são melhor absorvidas se captadas pelo olho. Quando verbalizada, porém, a palavra adquire certos contornos e intermediações que podem, eventualmente, gerar acréscimos e sentidos próprios, sentidos esses que o ouvinte lhe empresta mediante a atenção e a “tensão” emocional em que se encontra. O poeta procura desenhos dentro da palavra. Estabelece encontros sonoros, tateia sensibilidades e calcula distâncias. Na verdade, o poeta, nos seus lampejos, mais propõe esquecimentos do que visões. O poeta não é profeta, ainda que a rima, mesmo pobre, seja tentadora. Que nos decifre ou nos devore, a palavra é não dar com a língua nos dentes. Pois a palavra morde quando se inscreve na carne. A palavra nunca se apresenta sob disfarces, mas é próprio dela o mistério. E como gota de orvalho sobre a pétala da flor, pouco mais dura do que dura o auge de um império. A palavra sobrevive porque lavra a si mesma. E é dela, e somente dela, o juizo final.
Marcelo De Angelis
O papel aceita tudo diz o ditado Mas a pรกgina continua em branco qual noiva inviolada Virgem como lua cheia onde urinou nenhum astronauta
O tempo zomba de qualquer hip贸tese de mundo. Menos de si mesmo.
O que acontece se você dormir diariamente com cebolas nos seus pés Estrelas porejam a noite de metáforas. Uma voz atormentada alivia-se no bater dos ponteiros do relógio porém, o musgo da posteridade não se rende fácil à urina do céu ou ao fraterno estrume da pobreza. O suor mulato do verbo remete à fina astúcia dos templos gregos nas necrópoles. Sob o amparo da saliva, nacos de silêncio mastigados a esmo comprovam: a madrugada encrespa terremotos no interior dos formigueiros.
Como sobreviver a um ataque de begônias Considere a corrosão das horas, quando e se possível, sem se deixar abater pela ressaca dos vagalumes. Sele a epiderme púrpura das palavras. Uma a uma, todas as ilusões se confirmam. Observe vigilância sobre os substantivos. O teu silêncio antigo provoca estrondos na primavera. Pondere o consenso interno das desavenças. Aqui o barulho de existir se derrama como sussurros na intimidade da noite. A despeito do pânico cínico dos cães, aceite a cobiça do tempo e atente para o breve hiato entre o deslize do raio e o longo e aveludado queixume do trovão. Modere a refeição de carcomidas crenças, como se o próprio espírito reinasse sobre a indecisa carne do tempo. Dê a Deus o que é de César. Dê a César o que é de Deus. Dê adeus ao que é dos dois.
O que te motivou a sair da cama essa manhã?
Esconjuro teus bons modos tua culpa miúda Arregaço o peito e exponho em via pública à caridade lerda dos piedosos ao tédio dos transeuntes essa minha ferida que não cicatriza esse meu opróbio incensado A esquina, a sarjeta O muro é o meu genuflexório Fios de vida, nuvens esparsas Os fatores devidos As sombras, os tumores os amigos, os rumores. Os favores devolvidos. Para quem não vai a lugar algum, o que importa se as coisas não levam a nada? A noite remói remorsos. Mas à tarde, um homem é capaz ainda de reerguer-se.
7 maneiras de esquecer um amor rapidamente Cada coisa tem na vida uma dívida, uma dúvida e um afeto. As de menor carência de adjetivos são as que maior silêncio de formas. Nelas, as urgências de existir se ajeitam sem receio dos besouros da vaidade. Já aquelas sem qualquer objetivo que não seja o encanto sincero e aritmético de romper quimeras, melhor se prestam a compartilhar corizas e traquinagens. A utopia de um rio, por exemplo, que se traduz em peixes abduzidos em tardes úmidas de desesprezo. O amor é uma saudade que esvanece entre o aroma de um campo de papoulas e as fezes de um pássaro faminto. Em casos assim, de utopias sentimentais cercadas de volúpia e sofreguidão, penetrar sorrateiramente na madrugada das palavras é de bom tom.
7 maneiras de esquecer um amor rapidamente Cada coisa tem na vida uma dívida, uma dúvida e um afeto. As de menor carência de adjetivos são as que maior silêncio de formas. Nelas, as urgências de existir se ajeitam sem receio dos besouros da vaidade. Já aquelas sem qualquer objetivo que não seja o encanto sincero e aritmético de romper quimeras, melhor se prestam a compartilhar corizas e traquinagens. A utopia de um rio, por exemplo, que se traduz em peixes abduzidos em tardes úmidas de desesprezo. O amor é uma saudade que esvanece entre o aroma de um campo de papoulas e as fezes de um pássaro faminto. Em casos assim, de utopias sentimentais cercadas de volúpia e sofreguidão, penetrar sorrateiramente na madrugada das palavras é de bom tom.
A dor e a candura das palavras: – o amor é mesquinho e prefere entrelaçar opostos. Convém também desfazer o estribilho de antigas manhãs recobertas pelo limo palpitante da embriaguez. Recomenda-se ainda relaxar e esquecer os nomes de batismo de nuvens mais remotas. Abrir os braços para o nada, esse suspiro de Deus, e colher o dia
Braga Certo, nunca fui à Braga. Ela é que foi. No entanto, e através dela, Braga veio até a mim. Eu cá a pensar nas maravilhas que haverá em Braga: a noite jovem sobre os telhados as calçadas luzas de orvalho a coleta de lixo feita no horário Em Braga, os hóspedes de hotéis e albergues preenchem fichas com seus nomes e endereços antes de voltar a seus lares. E uma mulher com nádegas de alabastro, nua e ofegante como se fosse o verão, vira-se de lado na cama e acende um cigarro sem derrubar taça de vinho alguma. Em Braga, um vira-latas é capaz de fazer saltar pombas e moscas com um simples latir de pálpebras.
Poetas búlgaros deixam nas mesas dos cafés páginas ilegíveis do que parece ser um poema sobre a fundação de Roma ou sobre o amor. O primeiro, o verdadeiro e jamais escrito poema sobre o amor. O que dizer sobre Braga uma cidade única, penso. Onde estrelas flutuam por entre pássaros e vermes. Ruas trocam de esquina como se esmorecesse o argumento. E luz e treva, uma vez ao dia, se encontram em pleno lusco fusco. Em Braga, o tempo, esse trapaceiro contumaz, rasteja para fora do relógio e os velhos, com olhos de sal reclamam os nomes de seus náufragos. Certo, o que dizer sobre Braga senão que nunca fui até la. Lá é que veio até a mim.
6 coisas que os astronautas não conseguem fazer no espaço Adiar o anúncio do dia. Inverter as hierarquias próprias das tempestades de areia. Furtar-se às alegorias da senilidade. Preterir as insistências do acaso. Determinar o número de Deus e colocar-se acima da soma. Tatear a cordura das galáxias, ali onde mais se afigura a bagaça de não ser, de nunca ter sido, princípio ou o fim de nada. Umedecer o mormaço da eternidade. Mentir para seu deus. Dançar um tango de rosto colado. Ressentir a melancolia dos suicidas. Distinguir, um do outro, os 9 tipos de silêncio. Apalpar a imaginação dos anjos. Chorar.
5 coisas que não podem passar perto da sua vagina
Uma tarântula embriagada. As parábolas de um eunuco perdulário. A cicatriz de um poema cujo coração reverdeceu. As labaredas de uma boca em estado permanente de assombro. O flash da agonia de uma árvore encharcada de promessas cinéticas. A carícia mercenária de um gafanhoto do tempo. O idioma cego de uma fotografia. A mão amarela do desprezo de Deus.
Repara, mon chér
Repara, mon chér, como tudo o que tens de ínfimo e desigual reaparece grande e se reveste de discreto mistério quando da minúcia te aproximas e te tornas íntima de sua inocência O poeta sensato e irrepreensível, a redigir atas de condomínio O sacristão, a recompensar a hipocondria das viúvas O general enlevado pela curva ascendente da colina O banqueiro impregnado pela tinta maviosa do poente A fieira de estrelas míudas fervendo como pérolas maternas O soneto grave e delicado que arqueja como um ânus em busca da garganta rude dos diamantes da memória
Fora de ti
Fora de ti n達o sou mais eu do que sou quando Fora de mim me apercebo de ti Fora de ti n達o estou mais nesse mundo do que esta estrela estrangeira que fora de si como uma janela aberta, nos une e completa em um banho de luz Fora de ti, eu n達o sou mais que eu
Marcelo De Angelis é natural de Porto Alegre e radicado em Curitiba, Formado pela UFRGS em Comunicação Social, atua na área editorial. O tempo, o devir e essa névoa que é o indivíduo são temas recorrentes em sua produção, marcada por um olhar enviesado, típico de quem confia mais na memória, inventada ou não, do que naquilo que vê.
Esta é uma publicação sem fins comerciais, cujo único propósito é divulgar a produção poética do autor. Fonte das imagens: //butdoesitfloat.com/ Fotos: Francesca Woodman