Serrinha e a paisagem
Equador
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20º
Trópico de Capricórnio
25º OCEANO PACÍFICO
30º
A Serrinha
OCEANO ATLÂNTICO
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Tudo se transforma o tempo todo. O presente é a soma de vários tempos, alguns que podemos perceber com nitidez e outros mais apagados, que permanecem como cicatrizes tênues, sinais sutis mas fundamentais para compreendermos melhor o ambiente onde vivemos. Procuramos aqui recuperar um pouco da nossa história a partir de elementos da paisagem em tempos e espaços diferentes. Claro, trata-se de um olhar entre tantos possíveis: esta história, como todas, pode ser contada de muitas maneiras.
Começando pelo que há de mais expressivo na nossa paisagem natural, estamos na serra da Mantiqueira, uma terra antiga e desgastada, que se ergueu entre dobramentos, falhamentos, terremotos e erupções vulcânicas, e hoje se aquietou. Mantiqueira significa “serra que chora”, na língua dos povos indígenas.
São muitas as águas que correm pelos nossos vales. Córregos que vão se juntando em riachos maiores, formando grandes fontes de água: os rios Jaguari e Atibaia. Estes, ao se unir na região de Campinas, formam um rio ainda maior, o Piracicaba, que deságua no grande rio do estado de São Paulo, o Tietê. Este por sua vez, engrossa as águas do rio Paraná.
Muito antes de ter gente por aqui, toda esta região era inteiramente ocupada por uma mata exuberante. Uma floresta que se espalhava pela costa atlântica do Brasil, do Nordeste ao Sul, adentrando em alguns pontos ao interior: a Mata Atlântica.
Sabemos que os índios tupis, que habitaram esta região por mais de mil anos, viviam em pequenas clareiras na floresta. Para fazer suas roças, chamadas de coivaras, escolhiam um lugar com solo fértil, derrubavam as árvores que sombreavam mais e depois ateavam fogo nas folhas e troncos, para que as cinzas adubassem o solo. Em seguida plantavam espécies como mandioca, milho, feijão, batata-doce, cará, amendoim, tabaco e abóbora.
Depois de dois ou três anos, quando a fertilidade do solo já estava se esgotando, os índios abandonavam a área e buscavam outro local para fazer a coivara, deixando a floresta tomar conta do espaço novamente. Entravam na mata para caçar e colher frutos, transformando-a, mas mantendo-a viva e íntegra.
Em 1500, quando chegaram, os colonizadores portugueses encantaram-se com a riqueza dos trópicos; apesar disso, desdenharam do conhecimento milenar que os povos nativos tinham sobre a biodiversidade e o funcionamento da floresta. Os colonizadores saquearam as madeiras de mais valor e impuseram a força simplificadora das monoculturas, iniciando com a cana-de-açúcar; depois, em busca de ouro, exploraram agressivamente as terras da colônia. Mais tarde, viriam o café e os pastos para a pecuária.
Derrubada de uma floresta, obra de Johann Moritz Rugendas do início do século 19
Pouco a pouco, o Brasil derrubava suas matas, afastava-se da natureza, desenraizava-se.
Observe a paisagem quando estiver na estrada. Há muitas casas, fábricas, plantações, pastos. E, aqui e ali, apenas algumas matinhas, quase sempre em locais montanhosos.
O café, planta cuja semente torrada e moída é tão apreciada em todo o mundo, foi a cultura que fez o Brasil entrar no caminho da modernidade. E que acelerou ainda mais a derrubada da Mata Atlântica. Nativo das florestas da Etiópia, o café se adaptou muito bem ao Sudeste brasileiro. As plantações começaram no país no século 18 e espalharam-se rapidamente ao longo do vale do Paraíba e, em seguida, pelo oeste paulista. Houve um tempo em que a paisagem de São Paulo era de cafezais até onde a vista alcançava. A região de Bragança Paulista possui uma combinação de altitude e clima perfeita para o cultivo do café; não foi à toa que sua chegada ofereceu grandes oportunidades econômicas.
Assim, em 1899, o bragantino Benedicto Moreira, um republicano muito ativo na política – tendo sido o prefeito que trouxe a luz para a cidade –, adquiriu algumas terras num local montanhoso do município para investir na cafeicultura. Denominou a propriedade Fazenda Serrinha, plantando ali noventa mil pés de café.
A atividade floresceu por cerca de meio século, sucumbindo após sucessivas crises econômicas, geadas e o empobrecimento do solo. Uma história que se repetiu em quase todas as terras de Bragança. Depois disso, toda a região foi sendo ocupada com roças, pastos, eucalipto, olarias e loteamentos – mais ou menos a paisagem que se vê hoje.
Foi aqui, em volta da Fazenda Serrinha, que a cidade de São Paulo, tendo poluído seus rios, veio buscar água na década de 1970. Os reservatórios do Sistema Cantareira, que abrangem doze municípios, ajudaram a matar a sede da capital. Também fizeram sumir montanhas, desalojar comunidades, inundar vales férteis, alterar ciclos naturais e apagar histórias. As represas redesenharam a paisagem, impulsionaram o avanço das cidades e escreveram uma nova história muito diferente daquela do Brasil rural. Sistema Cantareira
Construção da barragem do Jaguari, no fim de década de 1970
1982
2000
2007
2018
Com a urbanização, as olarias se expandiram. Pequenas manufaturas de tijolos, olarias sempre estiveram presentes nas fazendas do Brasil, fornecendo tijolos para a construção das habitações locais. Nas últimas décadas do século 20, na região bragantina, tornaram-se verdadeiras fábricas, passando a produzir com muito mais velocidade. Máquinas que cospem tijolos aos borbotões substituíram um ofício manual altamente especializado. A mula, por sua vez, perdeu lugar para o trator: o trabalho com a terra foi ficando cada vez mais mecânico. A Fazenda Serrinha cumpriu esse mesmo roteiro.
Nossa olaria funcionou durante pouco mais de dez anos, entre 1986 e 1997, tempo suficiente para produzir uma grande cratera numa área de nascentes da fazenda. Era triste ver a terra sendo corroída dia a dia. Em contrapartida, essas alterações fizeram nascer um olhar mais cuidadoso para a paisagem. E aí surgiu a pergunta: o que fazer em uma terra infértil? Começamos a observar a natureza com atenção. Intuímos que uma boa resposta poderia estar na própria natureza.
Uma área degradada deixada sem nenhum tipo de interferência em alguns anos se transforma em uma floresta
Tempo
Florestas se desenvolvem sem que ninguém regue, semeie ou adube. Não há arquitetos, engenheiros, operários. A natureza age por si, com sua própria sabedoria. Ela conhece o caminho da vida, da abundância. Aprendendo com a natureza, podemos entrar em seu ritmo e em seus ciclos, contribuindo com seus processos. Foi nessa época que viramos passarinhos.
O ser humano, atuando em parceria com a natureza, pode acelerar a recuperação de áreas degradadas, criando florestas cheias de alimentos
Tempo
A primeira coisa a fazer para começar recuperar aquela paisagem era, na verdade, não fazer nada. Deixar a terra descansar, impedir queimadas, parar de roçar o mato, limitar as áreas do gado. E, mais que tudo, espalhar muitas sementes. Logo a vida magicamente começou a voltar. Jacus, bugios, saracuras, tucanos e outros animais que não costumavam aparecer naquela terra se tornaram visitas frequentes. As florestas que vão renascendo atraem a fauna, ajudam a proteger a terra do sol forte, melhorando o clima, e fazem do solo uma grande esponja de matéria orgânica que absorve a água da chuva, alimentando as nascentes.
Hoje, todas as obras na fazenda são sonhadas, projetadas e realizadas com o objetivo de melhorar nosso lugar, contribuindo com os processos ecológicos de regeneração da terra. Isso vale para as habitações, os caminhos, as construções. E se reflete nas manifestações artísticas, um elemento incomum nas zonas rurais que aqui é encontrado por todos os cantos.
Justiça selvagem, Lucas Bambozzi
Tronco para Exú, Hugo França
A arte está na alma da Serrinha. As obras espalhadas pela paisagem, em contínuo movimento de criação e recriação, interagem com as pessoas e com todas as espécies animais e vegetais do entorno. Estabelecem com elas diálogos instigantes, ricos, provocativos. São como pegadas deixadas por artistas que passam pela fazenda, participando do esforço de recuperação dos ambientes naturais ao dar-lhes novos significados e experimentá-los de forma harmoniosa e livre.
Casulo, Fabio Delduque
Carro verde, Bijari
Fértil, Fernando Limberger
Repouso, Laura Gorski
Mula sem cabeça, Bijari
Eu te como, José Roberto Aguilar
Mercado, Eduardo Srur
Harpa, Marcos Amaro
(I) mobiliário, Gustavo Godoy
Nau, Eduardo Srur
Hoje a fazenda é um espaço que promove experiências criativas e resgata os processos da natureza. Um lugar onde se entende que gente, bicho, planta, pedra, enfim, tudo faz parte de um grande organismo vivo e que as coisas estão todas relacionadas. Aqui convivem bem arte e roça, agricultura e floresta, mato e jardim, pixels e enxada.
A grande espiral, Bené Fonteles
Enquadrando a paisagem, Luiz Hermano
Espelho d’água, Jean Paul Ganem
E, para terminar, voltamos ao começo. Esta história está em aberto, seguindo caminhos que a todo tempo desviam, retornam, seguem adiante. Agora mesmo, quando você está acabando de ler este livrinho, a fazenda, o bairro da Serrinha, toda a região bragantina e o mundo estão se transformando, movidos por tantas energias - a sabedoria da natureza, as intenções de cada um, a força do acaso e outras que nem mesmo conhecemos. Nesse movimento eterno, nessa realidade complexa e sempre em ebulição, seguimos nosso percurso, vivenciando em profundidade e celebrando com alegria os mistérios e encantos da paisagem viva.
Texto e edição Marcelo Delduque Projeto gráfico Gustavo Godoy Ilustrações Daniel Patto Preparação de texto Laura Aguiar Fotos Arquivo Serrinha Colaboração Educativo Serrinha Impressão Leograf Esta publicação foi concebida e impressa na primavera de 2018 em Bragança Paulista, SP Para conhecer os projetos da Fazenda Serrinha www.fazendaserrinha.com.br www.arteserrinha.com.br